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Português, 12º ano

Análise do Poema

"Autopsicografia"

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Reflexão:

Neste poema Fernando Pessoa fala da teoria do fingimento poético, pois um poema
não traduz aquilo que o poeta sente, mas sim aquilo que o poeta imagina a partir da
recordação do que anteriormente sentiu. O poeta é, assim, um fingidor que escreve uma
emoção fingida, pensada, por isso fruto da razão e da imaginação e não a emoção sentida pelo
coração, que apenas chega ao poema transfigurada na tal emoção trabalhada praticamente.

O leitor não sente nem a emoção vivida realmente pelo poeta, nem a emoção por ele
fingida no poema, sentido apenas o que na sua inteligência é provocado pelo poema – assim, a
poesia, segundo Fernando Pessoa, é a intelectualização da emoção.

http://www.notapositiva.com/trab_estudantes/trab_estudantes/portugues/12portofolio1/12
portofolio1f.htm, 26/10/2011, 12.30h
http://storamjoao.blogspot.com/2009/01/poema-autopsicografia.html, 26/10/2011, 12.50h

Esta composição poética é uma esplêndida síntese do que Pessoa pensava sobre a
génese e a natureza da poesia. Podemos, pois, considerá-lo como uma verdadeira "arte
poética".
O assunto do poema desenvolve-se em três partes lógicas, que correspondem a cada
uma das estrofes.
Na primeira parte, o primeiro verso contém a ideia fundamental do poema, na frase de
tipo axiomático "o poeta é um fingidor", que, logo a seguir, é explicado, ou confirmado, por
meio de uma particularização centrada na dor. Quer isto dizer que a poesia não está na dor
experimentada, ou sentida realmente, mas no fingimento dela. Isto é, a dor sentida, a dor real,
para se elevar ao plano da arte, tem de ser fingida, imaginada, tem de ser expressa em
linguagem poética, o poeta tem que partir da dor real, a dor que deveras sente.
Não basta, para haver poesia, a expressão espontânea dessa dor real, tal como o faria,
por exemplo, um doente relatando a sua dor ao médico. Não há poesia, não há arte sem
imaginação, sem que o real seja imaginado de forma a exprimir-se artisticamente, de forma a
surgir como um objectivo poético (artístico), de forma a concretizar-se em arte.
Esta concretização da dor no poema opera na memória do poeta o retorno à sua dor inicial,
parecendo-lhe a dor imaginada mais autêntica do que a dor real. É a sobreposição do objecto
artístico à realidade objectiva que lhe serviu de base: “chega a fingir que é dor/a dor que
deveras sente”. Isto conduz-nos à ideia de fruição artística, da parte do poeta.
Na segunda parte do poema, o poeta alude à fruição artística da parte do leitor. Este
não sente a dor real (inicial), que o poeta sentiu, nem a dor imaginária (dor em imagens) que o
poeta imaginou, ao ser artífice do poema, nem a dor que eles (leitores) têm, mas só a que eles
não têm. Isto é, o que o leitor sente é uma quarta dor que se liberta do poema, que é
interpretado à maneira de cada leitor.
Há na segunda estrofe referência a quatro dores: a dor sentida (real), a dor fingida
pelo poeta, a dor real do leitor e a dor lida (dor intelectualizada que provém da interpretação
do leitor e que é objecto da sua fruição.
A terceira parte do poema, como a própria expressão "E assim" prenuncia, constitui
uma espécie de conclusão: o coração (símbolo da sensibilidade) é um comboio de corda
sempre a girar nas calhas da roda (que o destino fatalmente traçou) para entreter a razão. Há
aqui uma referência à função lúdica da poesia, que começa na fruição de que o próprio poeta
goza, no acto da criação artística. São aqui marcados os dois pólos em que se processa a
criação do poema: o coração (as sensações donde o poema nasce) e a razão (a imaginação
onde o poema é inventado). Fecha-se neste fim do poema como que um círculo cuja linha
limite marca uma pista sem fim em que nunca se esgota a dinâmica do jogo sensação-
imaginação.
Quanto aos aspectos morfo-sintácticos, desde logo a ligação por meio do síndeto
(coordenativa "e") das três estrofes do poema impondo não só a divisão do texto em três
partes lógicas, mas também sugerindo uma sequência lógica no desenvolvimento do assunto.
Os verbos, com excepção da forma teve (pretérito perfeito), encontram-se no presente, o que
está de acordo com a natureza teórica do poema, que é anunciada pelo título
"Autopsicografia" (estudo que o poeta faz do fenómeno psicológico que nele se passa, no acto
de criação artística, portanto no presente).
A forma do perfeito "teve" explica-se porque é exigida para marcar a prioridade
temporal em que o poeta experimentou as suas dores em relação ao tempo (presente) em que
o leitor experimenta a dor lida.
A expressão infinitiva "a entreter" apresenta-se com um nítido aspecto durativo,
insinuando a repetição continuada do processo criativo. Note-se a insistência do poeta no
processo mais importante da criação poética: o fingimento. Este processo é marcado pelas
formas verbais "finge" e "fingir" e pelo substantivo "fingidor". O verbo fingir (do latim "fingere
" = fingir, pintar, desenhar, construir) aponta não apenas para disfarçar, mas também para
construir, modelar, envolvendo, assim, todo o processo criativo desenvolvido pelo poeta na
produção do poema: o poeta é um artífice.
É interessante a perífrase "os que lêem o que escreve" (para significar os leitores) por
ser portadora de uma expressividade especial: aponta para os dois intervenientes
fundamentais do processo poético --o emissor (poeta) e os receptores (leitores).
Além da reiteração (repetição), já apontada, do verbo fingir, há ainda a do verbo
sentir, que não se deve desligar da repetição do substantivo dor (três vezes), além de outras
três vezes que se repete por intermédio de pronomes, ou expressões ("que","as duas", "a
que"). A insistência na dor e no sentir está de acordo com o facto de o poeta ter tomado a dor
como tema exemplificativo da criação poética e pelo facto de as sensações (o sentir) serem o
ponto de partida dessa criação.
Em relação à sensação do sujeito lírico e dos leitores, são expressivos os advérbios:
"Finge tão completamente";... Deveras senta"; "...sentem bem". Estes advérbios sugerem a
veemência, o rigor com que a sensação da dor se impõe, quer ao poeta quer aos leitores. Os
advérbios estão pois a marcar a intenção do autor: expor a sua teoria poética com rigor. O acto
de fingir é tão importante que o poeta o superlativou não apenas pela expressão adverbial
"tão completamente", mas também por meio da subordinada consecutiva "que chega a fingir".
Notemos que a subordinação (hipotaxe) é muito mais importante do que a coordenação, o
que está de harmonia com um discurso teórico que tem por finalidade apresentar uma teoria
da criação poética.
Repare-se na expressividade das duas metáforas, de valor altamente simbólico, que se
encontram na última estrofe: calhas de roda e comboio de corda. Esse comboio de corda (o
coração), ultrapassando o significado denotativo de brinquedo, aponta sobretudo para um
sentido simbólico relacionado com a função lúdica da poesia., e assim, gira nas calhas de roda.
Também essas calhas de roda ultrapassam o significado de carris (correspondente ao sentido
de comboio de corda) para apontarem simbolicamente para um rumo necessário, marcado
pelo destino, qualquer coisa que sucede por fatalidade, na vida (na roda da vida).
O poeta, é pois, um ser predestinado a brincar intelectualmente com as sensações,
elevando-as ao nível da arte poética, transformando-as num objectivo, artístico, que é o
poema, também objecto de fruição lúdica para os leitores.
No que toca à forma do poema, aos seus aspectos fónicos, parecer-nos-á estranho que
Pessoa tenha escolhido o verso de redondilha (verso curto de sete sílabas), de feição rítmica
popular, distribuídos em quadras, para expor uma teoria intelectualizada e de alto nível
mental. Trata-se de um entre tantos paradoxos de que o proceder de Pessoa é fértil. Note-se
que os casos frequentes de transporte, verificados em grande parte dos versos vem reduzir as
dificuldades que o metro curto poderia oferecer ao desbobinar do raciocínio do poeta.
A rima é sempre cruzada, apresentando uma certa irregularidade nos versos 1º e 3º da
última estrofe. Notar os dois pares rimáticos fingidor/dor e razão/coração, em que se poderá
ver uma certa intenção expressiva, se relacionarmos razão com fingidor e o coração com dor:
ficariam assim em lugar de destaque, bem marcados os dois pólos de criação poética – as
sensações e o fingimento.
O título do poema pode levar-nos à conclusão de que o poeta quer explicar o processo
psíquico que nele se passa, ao elaborar um texto poético. Como se explica, então que o poeta
nunca empregue o pronome "eu", nem qualquer verbo na primeira pessoa, e que parte
precisamente de uma afirmação axiomática, "O poeta é um fingidor", de aplicação universal,
aplicável a todos os poetas? "Este poema está construído na 3ª pessoa como a lei de Newton,
ou qualquer outro enunciado científico" – afirma A. J. Saraiva – "para significar que é a
inteligência, como um ser autónomo, que explica o processo de criação poética".
Por meio do título, o autor quis significar que a teoria da criação poética, exposta no
poema, de valor universal porque aplicável a todo o verdadeiro poeta, foi elaborada por via da
auto-introspeccção, por meio da qual Fernando Pessoa verificou o processo em si próprio. O
título aponta para o palco de experimentação e verificação de uma teoria poética que o autor
julgou de valor universal.

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