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José Augusto Cardoso Bernardes*

Unidade 1 – Fernando Pessoa, poesia do ortónimo

A verdade vivida e a verdade pensada

Como é sabido, o nome de Fernando Pessoa não se basta a si próprio. É sempre necessário pensar
nos outros nomes, os inventados, que não correspondem a uma verdadeira identidade civil. Não podemos
esquecer-nos, porém, de que Fernando Pessoa é também um autor real. Isto significa que teve uma vida
concreta, incluindo uma infância assinalada pela perda do pai, relações familiares marcantes (envolvendo a
mãe, os irmãos e uma certa avó Dionísia) e ainda algumas amizades pessoais e literárias, vindo a falecer aos
47 anos.

De uma maneira ou de outra, os poetas costumam falar das suas próprias experiências. Com
Fernando Pessoa, porém, não parece ser assim. Num determinado poema, por exemplo, evoca-se o sino de
uma aldeia que o poeta diz ser a sua mas onde nunca viveu; noutro, descreve-se uma situação de morte em
campo de batalha, sem que o escritor tenha alguma vez vivido uma experiência semelhante; noutro ainda
evoca-se uma ceifeira que canta, sabendo-se que o poeta nunca teve proximidade com situações deste tipo.

Mesmo quando assina os poemas com o seu nome, Pessoa não deixa de ser um fingidor. Sob este
ponto de vista, pode dizer-se que define um caminho próprio, afastando-se da tradição lírica que prevaleceu
até ao Modernismo. Esta tradição, da qual Pessoa se afasta, era assinalada pela autenticidade subjetiva e
nela se integra, desde logo, Luís de Camões. De tal forma que muitos leitores acreditam que os versos
camonianos revelam aspetos da sua vida real. Esta aparente sinceridade autobiográfica (que tem em
Petrarca o seu iniciador) viria depois a projetar-se fortemente nos poetas românticos, com destaque para
Garrett, que, mesmo quando não parece, nunca deixa de nos falar de si próprio.

Tudo é diferente com Fernando Pessoa. Em vez da autenticidade a que estávamos habituados, a obra
de Pessoa impressiona justamente pelo fingimento e por uma certa teatralidade.

Confrontados com esta nova maneira de escrever (e de sentir) poderíamos concluir que estamos
agora perante uma obra menos verdadeira. Por estranho que pareça, porém, talvez não seja assim. A obra
de Fernando Pessoa (ortónimo) assenta num outro tipo de verdade: já não uma verdade vivida, mas uma
verdade sonhada ou pensada.

* Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

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