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A Nostalgia da Infância

Insatisfeito com o presente e incapaz de o viver em plenitude, Pessoa

refugia-se numa infância, regra geral, desprovida de experiência biográfica e

submetida a um processo de intelectualização.

Por último, a nostalgia de um estado inocente em que o “eu” ainda não se tinha

desdobrado no “eu” reflexivo está representada no símbolo da infância. A infância é a

inconsciência, o sonho, a felicidade longínqua, uma idade perdida e remota que

possivelmente nunca existiu a não ser como reminiscência. À nostalgia alia-se um

desejo sem esperança: “O que me dói não é/O que há no coração/Mas essas coisas

lindas/Que nunca existirão...”.

De tudo isto resulta o timbre melancólico e o sabor a irremediável desta poesia:

“Outros terão/um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo,/A inteira, negra e fria

solidão/Está comigo.”

Isabel Pascoal, Poemas de Fernando Pessoa, Ed. Comunicação

Oh, o passado morto que eu trago comigo e nunca esteve senão comigo! As

flores do jardim da pequena casa de campo e que nunca existiu senão para mim. As

hortas, os pomares, o pinhal, da quinta que foi só um meu sonho! As minhas

viligiaturas supostas, os meus passeios por um campo que nunca existiu! As árvores de

à beira da estrada, os atalhos, as pedras, os camponeses que passaram... tudo isto, que

nunca passou de um sonho, está guardado em minha memória a fazer de dor e eu, que

passei horas a sonhá-los, passo horas depois a recordar tê-los sonhado e é, na verdade,

saudade que eu tenho, um passado que eu choro, uma vida real morta que fito, solene,

no seu caixão.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Assírio & Alvim

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“(...) opera-se com frequência no “tempo interno” do Poeta uma inversão de

tempos cronológicos de forma a possibilitar a felicidade, ao menos no passado, como se

se tratasse de uma felicidade com efeito retroactivo.”

Alfredo Antunes

Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado , já não o tenho.

Pesa-me como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho

esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje – tantas

vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara -, que posso presumir da minha vida

de amanhã, senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de

fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre

com o desejo inútil de o repetir. nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O

meu passado é tudo quanto não consegui ser.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Assírio & Alvim

Tudo é ilusão

A primeira reacção de Fernando Pessoa em face do mundo, incluindo o eu que

reflecte, é um sentimento de estranheza, um arrepio de espanto. Pessoa nega-se, com

todas as forças do seu espírito, a aceitar o mundo tal como as suas percepções lho

transmitem: é absurdo, não pode ser. Tomado da angústia de intuir o mistério,

interroga para satisfazer de certeza uma razão exigente. Toda a sua obra exprime a

interrogação, ou as respostas possíveis para essa interrogação, ou a melancolia de saber

que não há resposta.

Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, Ed. Verbo

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