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| peer | Aristételes | | POETICA ) Edigao bilingue editoral34 TradugZo,intcodugo e notas de Paulo Pinheiro Introdugao Paulo Pinheiro © que devemos considerar quando nos dedicamos a lei- tura de uma poética e, mais precisamente, de uma poética proposta por Aristételes? © que é uma poésica? Eis uma boa questo que pode nos servir de mote para abordar esse pe- queno, porém complexo, tratado. A Poética de Aristételes é tida por grande parte dos comentadores como obra incom- pleta e lacunar, cujas partes conservadas parecem constituir ‘uma compilacao de notas destinadas a ajudar 0 autor duran- te uma exposigao oral. Nada disso, entretanto, a impediu de se constituir como obra fundamental tanto para o estudo de um género especifico de produgo literaria quanto para a propria definicao de poética, pois, além de Aristételes se dedi- car A poesia mimética, de modo geral, ¢ & t-agédia, de modo, privilegiado, a sua Poética se apresenta como um método — normativo, presctitivo e, muitas vezes, apenas descritivo — para a composicio do poema mimético. De fato, a Poética de- ve ser compreendida como uma obra de cunho escolar orien- tada aos estudiosos que frequentavam o Liceu onde Aristé- teles ensinava e, no decorrer dos anos, a tocos os que preten- deram aprofundar o conhecimento sobre 0 modus operandi do poema mimético e as suas implicagées filosoficas. Como o préprio termo nos indica, a poética (poiétiké) de Aristételes deve ser compreendida como uma discussio “sobre o modo de composicio do poema” (peri poiétikés). Ela deveria nos ensinar a compor ou produzir um poema mimético (uma tragédia), evidentemente segundo os critérios expostos e defendidos pelo seu autor. Para tal fim, a questéo eminentemente poética para Aristételes nao deve se confun- dir, a0 menos in extremo, com a questo ética, que um autor como Plato certamente privilegiaria. Antes, o que interessa a0 estagirita é a possibilidade de compreender a utilizagao artistica de uma nogao estética como a de mimesis (mimese),! ainda que nos deparemos, no contexto da Poética, com as questdes relativas a formagao do éthos, isto é, do carater e da caractetizagao das personagens. Assim, a Poética nos remete, antes de tudo, & produgéo do miméma, ou, para sermos ain- da mais precisos, & produgao de uma imagem poética — ve~ rossimil ou mesmo necesséria — que nao se confunde com a experiéncia objetiva que temos das coisas ¢ das acbes, pois encontra a sua medida no apenas no objeto da representa- ao mas também, e sobretudo, no efeito mimético produzido. ‘Assim sendo, um poema mimético-dramatico serd tragico se, entre outros motivos e ao contrario do que se passa com a comédia, for capaz de produzir uma caracterizagao enobre- cedora da personagem e da ago levada a cena. Sem excluir a possibilidade de uma referéncia anterior, o poema miméti- co no se limita a ser o espelho (ou 0 reflexo) de tal referén- cia. O miméma jamais ser4 tomado como uma imagem de eventos tal como estes ocorreram e sim como uma imagem poética que introduz algo de novo, ou seja, que introduz uma diferenca, como, por exemplo, o caréter enobrecedor da mimésis tragica. De fato, 0 agente primeiro da mimésis é, para Aristételes, 0 poeta, ou seja, aquele que elabora uma * Ao longo da Poética, optei por traduzir mimésis por *mimese ‘mas, para manter a fidedignidade face aos textos citados nesta breve in- ‘odugo, mantenho aqui o termo transliterado, ou seja, mimésis. A tea- dugie de mimésis por “mimese” & sem ddvida alguma, questionsvel, mas de fato possuimos em portugués 0 termo “mimese”, que, sobretudo quan- {0 a0 aspecto fonético, se aproxima muito do termo grego miinésis. De todo modo, ser sempre oportuno lembrar que mimesis uma palavra que deveria constar num dicionério de termos gregos intcaduatveis. releitura dos antigos mitos da civilizagéo grega e que, no caso do poeta tragico, seria capaz de produzir, por meio des- sa releitura mimética, um efeito catartico, fruto da mani- pulagdo de emogies precisas que nos levariam depuracéo (katharsis) do pavor e da compaixdo evocados. Como nos explica M. Canto-Sperbes, a mimésis designa a inclinagao do homem a representar as coisas tal como poderiam ou deve- riam set endo como sio.” Ela é, portant, téo criativa quan- to imitativa, ou seja, ela nos remete a uma agao ocorrida que 6 no entanto, retomada e recomposta pela dtica inventiva do poeta mimético.’ As dificuldades de tradazir 0 termo mimesis sio intimeras ¢ as solugdes de que dispomos hoje em dia transitam, de modo geral, em torno de quatro possibilidades: a manutengao do termo grego mimésis, solugao de Halliwell; *processos imitativos” (“imitative processes”), de Else; “re- presentagées” (“représentations”}, de Dupont-Roc e Lallot; ¢, simplesmente, “imitacdes”, de Eudoro de Souza. A opcao adotada de traduzir mimésis por “mimese”, que se justifica pela proximidade fonética e por um certo aportuguesamento do termo grego, jamais agradaré a “gregos e troianos”. “Mi- mese” foi a solucéo aproximativa utilizada para fazer refe- réncia & “mimética produtiva” ou “inventiva”, que se distin- gue da ideia que temos de representacio e de imitacao, assim como da imitatio latina, pois nao se trata da reapresentacao imitativa de um modelo, mas de um modus operandi deter- minado para reunir, dispor ou compor as agées ¢ aconteci mentos trgicos “ocortidos”. ‘Como dizemos com certa frequéncia, 0 objeto proprio da poética nao é a obra literéria em si mesma e sim a sua 2 M, Canto-Sperber, Philosophie grecque, Paris, PUF, 1997, p. 435, 3 Avisroceles deverto privilegia a nogdo aqui exposta de mimesis, mas {sso ndo 0 impede de remeter 0 seu pilico a exemplos de tragédia em que ppersonagens ¢ agdes sio inteiramente inventados, como ocorre no Anthew cde Agithon (ver Poética, 145120).

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