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Universidade de Santiago do Chile

Departamento de Linguística e Literatura


Área de Português

Anais do I Congresso Internacional de Língua Portuguesa:


experiências culturais e linguístico-literárias contemporâneas

Santiago do Chile
13 - 14 de outubro de 2016
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Anais do I Congresso de Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e


linguístico-literárias contemporâneas

©Mônica Baêta Neves Pereira Diniz

Santiago, Chile - 2016

ISBN: 978-956-368-332-5

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Comissão organizadora

Professora Vera Fonseca, leitora do Camões I.P. no Chile.

Professora Mônica Baêta Neves Pereira Diniz, leitora do Brasil da Pontificia Universidad
Católica de Chile

Professora Ana Laura dos Santos Marques, Departamento de Linguística e Literatura


Faculdade de Humanidades (DLL FAHU) USaCh, responsável pela Área de Português.

Professora Gladys Cabezas - bolseira Fernão Mendes Pinto Camões I.P (2015 a agosto de
2016)

Profesora Alondra Silva – bolseira Fernão Mendes Pinto Camões I. P (agosto de 2016)

Professora Mila Araújo Fonseca, docente Departamento de Linguística e Literatura Faculdade


de Humanidades (DLL FAHU) USaCh.

Professora Carolina Contreras, docente Departamento de Linguística e Literatura Faculdade


de Humanidades (DLL FAHU) USaCh

Secretaria

Alicia Sartori, secretária.

Secretaria Geral do Evento: Universidade de Santiago de Chile

Endereço: Avenida Libertador Bernardo O'Higgins nº 3363. Estación Central. Santiago. Chile

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Congresso realizado ao abrigo do programa de apoio concedido por

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contemporâneas

Organização

Universidade de Santiago do Chile, Departamento de


Linguística e Literatura - Área de Português

Camões Instituto da Cooperação e da Língua Portugal -


Leitorado Camões I.P. no Chile

Rede Brasil Cultural - Leitorado brasileiro no Chile

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Apoios Institucionais

Camões Instituto da Cooperação e da Língua Portugal -


Leitora Camões I.P. no Chile

Centro Cultural Brasil Chile


e - CCBRACH

Embaixada de Portugal no Chile

Embaixada do Brasil no Chile


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Pontifícia Universidade Católica do Chile

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Prólogo

Os trabalhos publicados nesta coletânea na forma de Anais do I Congresso Internacional de


Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias contemporâneas são o
resultado da participação de acadêmicos e pesquisadores do mundo lusófono que se dedicam
a promover seus estudos e mostrar os avanços de suas áreas. Nestes Anais, deixamos
registrados encontros necessários da academia em um espaço físico não lusófono que possui
um grande potencial para representar a consolidação da área de português como língua
estrangeira, os estudos culturais e suas convergências com a América Latina, a literatura
como elo entre culturas. Damos início, com esta publicação, a outros encontros possíveis,
entendendo-os como decorrentes de nossa iniciativa, a qual seguramente não finaliza nos dias
13 e 14 de outubro de 2016.

Nosso compromisso como organizadoras do I Congresso de Língua Portuguesa na


Universidad de Santiago de Chile era abrir caminhos para que tanto a língua quanto a cultura
e a literatura lusófonas estivessem presentes e revelassem seus pontos de vista. Fruto do
trabalho e dedicação de três professoras que desejavam promover a curiosidade, instigar o
pensamento acadêmico, congregar pessoas que nos representam e são representadas por
nossas vozes nas mais diversas rotinas profissionais. Talvez o termo mais preciso para
caracterizar nossa iniciativa seja sonho. Porque sonho tem uma possibilidade ambígua
quando traduzido ao espanhol e, quiçá, assim aproxime-se mais da realidade vivenciada por
nós que, nos meses que antecederam à realização propriamente do evento, desfrutávamos
pouco das nossas noites, cujos sonhos, se ocorressem, certamente girariam em torno desse
grande feito que agora se concretiza graças ao aporte de todo esse profícuo e abrangente
material acadêmico-investigativo no sentido mais amplo das pesquisas, seja no âmbito da
Linguística ou no da Literatura.

Estão considerados neste registro do I Congresso Internacional de Língua


Portuguesa 68 trabalhos em sua integralidade, os quais representam as áreas de abrangência
que fizeram parte do nosso evento. As valiosas contribuições que são encontradas neste
expressivo material serão fonte constante de busca, de citações e isso nos alegra
demasiadamente, fazendo-nos crer que os sonhos existem para serem sonhados e
transmutados nesta ora concreta realidade que alicerçará, oxalá, futuros e benfazejos novos
sonhos.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Este Congresso partiu do entendimento do universo de língua portuguesa, nas suas


manifestações linguísticas, literárias e culturais, enquanto eixo onde se cruzam questões
fundamentais como unidade e diversidade, identidade e alteridade, memória e presente,
espaço centrípeto e centrífugo numa cartografia aberta ao futuro. Nesse sentido, esperamos
que esta publicação possa cartografar os temas apresentados ao longo da nossa atividade,
mostrando modelos teóricos, metodologias de ensino e investigação em torno da língua
portuguesa.

Nossos sinceros agradecimentos à Fundação Calouste Gulbenkian pelo aporte financeiro para
a concretização desse I Congresso Internacional de Língua Portuguesa na Universidad de
Santiago de Chile. Da mesma forma, sinceros agradecimentos às instituições que nos
apoiaram no transcurso da organização deste evento.

Ana Laura dos Santos Marques


Mônica Baêta Neves Pereira Diniz

Vera Cristina Faiais Fonseca

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contemporâneas

Índice
Literatura ........13
Entre nascimentos e mortes: percursos narrativos no labirinto ficcional do romance No meu
peito não cabem pássaros, de Nuno Camarneiro. 14
Literatura negra brasileira na sala de aula: espaço de identidade, cultura e discursividade ne-
gra 25
A mulher na literatura lusófona- vozes que se aproximam 39
Memória do mundo oculto: o rastro contemporânea da resistência judaica na modernidade
portuguesa 51
Franz Potocki, Rubem Fonseca e o mundo 63
Drummond na sala de aula: uma proposta para o ensino-aprendizagem de literatura em língua
portuguesa 69
Manifestações da memória traumática no conto A terceira margem do rio, de João Guimarães
Rosa 83
Cadernos negros: uma experiência de leitura com os contos afro-brasileiros em sala de aula ..
89
Vocalidade e literatura em Timor Leste 101
Afinidades, ambiguidades e discrepâncias: relações entre espaço, memória e identidade no
projeto urbano-social luandense através das obras de Ondjaki 121
Literatura nos jornais: Lima Barreto, Eça de Queirós e a profissionalização do escritor 132
O personagem-escritor e a ficção como crítica∗ 143

Jó Joaquim e Virgínia: o real e o válido, uma aproximação entre Mia Couto e Guimarães
Rosa 163
Poéticas do contemporâneo: performances da linguagem em Ó, de Nuno Ramos e EEMC, de
Luiz Ruffato 170
Práticas narrativas no tempo: pluralidades orais nas histórias do sertão nordestino 185
Quando a voz local ecoa em outras paragens: diálogos entre Jorge Amado e Ariano Suassuna
197

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contemporâneas

Mulheres em desalinho: (des)construções de gênero em As doze cores do vermelho de Helena


Parente Cunha 208
A relação homem-terra na obra “Os magros” de Euclides Neto 220
La traducción literaria como proyecto colaborativo. La propuesta de la revista Pontis - Prácti-
cas de Traducción 235
Um diálogo modernista entre as obras Azulejos (1963) e Primeiro Caderno do aluno de poe-
sia Oswald de Andrade (1928) 244
Caminhos da lusofonia: a descrição histórico-cultural de Macau nos textos de Henrique de
Senna Fernandes 255
E se os trovadores medievais fossem repentistas... 266
Desnacionalizar a memória: percursos identitários e desafios para uma nova escrita 288
Gestos do olhar, fronteiras da visão: imagem, memória e poesia 295
A escrita de transição em Júlia Lopes de Almeida 303
Poesia para crianças: só se for de brincadeira... 316
“Quem sou eu?” Nao sou o negro do “Navio negreiro”: um olhar sobre o negro nos poemas
de Castrol Alvez e Luiz Gama 331
Signos, códigos e estratégias literárias da literatura negro-brasileira 344
(Des)Construção da arte e do ser nas obras Perto do coração selvagem e Paixão segundo GH
de Clarice Lispector 363
A desconstrução na prática da tradução literária: uma análise de Paulo Coelho e Isabel Allen-
de 372
Português como Língua Estrangeira ..385
A arte como instrumento no processo de ensino-aprendizagem do Português do Brasil como
Segunda Língua 386
Multiletramentos nos livros didáticos de Português Língua Adicional: análise da página de
abertura das unidades 387
A multiculturalidade na aprendizagem de PLE: 407
uma investigação discursiva na avaliação do Celpe-Bras 407
Os monumentos materiais: recursos didáticos em aulas de PLE/PL2 421
Desenvolvimento de material didáctico para o ensino de Português Brasileiro como língua de
acolhimento no projeto PBMIH-UFPR 430
O professor-reflexivo no ensino de PLE 444

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contemporâneas

Desenvolvimento de material didáctico para o ensino de Português Brasileiro como língua de


acolhimento no projeto PBMIH-UFPR 430
O professor-reflexivo no ensino de PLE 444
A abordagem de textos literários brasileiros no livro didático Fala Brasil – Português para
estrangeiros, de Pierre Coudry e Elizabeth Fontão 452
A criança brasileira residente no Japão e a aprendizagem da língua japonesa 465
Ensino de Português como segunda língua em comunidades indígenas em Mato Grosso/Bra-
sil 483
Los hipermedios en la construcción de material didáctio para abordar la interculturalidad en
la enseñanza del Português LCE 498
O ensino do Português Língua Estrangeira para imigrantes haitianos na Missão Paz em São
Paulo 504
Impacto social dos testes de proficiência: o Celpe-Bras como espaço para formação do cida-
dão e aquisição de conhecimentos 522
Uma experiência triangular de diferentes geografias e gramáticas de língua 532
Aspectos histórico-culturais das designações da culinária no ensino de PLE/PL2 542
Com o pé na sala de aula de PLE 553
“Pensamento crítico em sala de aula (PLE)” 591
Português como Língua Materna .......596
Estudos sobre gêneros textuais e implicações pedagógicas no ensino da Língua Portuguesa:
atuando na contemporaneidade 597
Cadeias referenciais em textos do gênero carta aberta: um projeto didático para a educação de
jovens e adultos 603
Língua portuguesa e gêneros digitais: ressignificações necessárias na hipermodernidade 617
A constituição da autoria no gênero textual resumo: um projeto de engenharia didática apli-
cado à Educação Profissional Técnica de Nível Médio 631
A representação da subjetividade em epitáfios: uma análise benvenistiana 650
Ensino de língua portuguesa na modalidade a distância: uma experiência 662
Da leitura para escrita – a engenharia didática do trabalho com o texto dissertativo-argumen-
tativo em sala de aula 672
Gramaticalização de formas/construções verbais no português brasileiro, europeu, angolano e
moçambicano: convergências intralinguísticas 688

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contemporâneas

Educação, ensino de língua portuguesa e desenvolvimento da expressão oral: da tradição


epistemológica moderna à pedagogia ludoestética Waldorf 705
Concepções do ensino do papel do professor de língua portuguesa na formação docente 725
Falando e escrevendo em português do Brasil: uma proposta didática 744
A Diversidade Linguística e Cultural no Pará e a formação de professores de Português 747
Palavras a girar: vivências com o léxico de origem africana nos espaços de letramento de
Alagoinhas 758
Sensibilização para o/pelo olhar: um projeto de engenharia didática sobre a leitura e a escrita
do gênero textual crônica 771
Transglossia e Transculturalidade: 790
características dos empréstimos linguísticos da língua inglesa presentes em vocábulos de es-
portes do Português do Brasil 790
Gêneros discursivos e plano de trabalho docente: por um ensino contextualizado das práticas
sociais de linguagem 804
O conceito de ‘cigano’: o léxico e os aspectos culturais 822
Ensino de leitura sob o olhar das relações lexicais mobilizadas na construção dos sentidos ..
835
Metodologias de aprendizagem para o processo de leitura e reflexão no ensino superior 844
O jornal ‘O Sinopeano’ e o processo de identificação do sujeito sinopense durante a coloni-
zação da região norte mato-grossense da década de 70 do século XX 851

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Literatura

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contemporâneas

Entre nascimentos e mortes: percursos narrativos no labirinto ficcional do romance No


meu peito não cabem pássaros, de Nuno Camarneiro.

Entre nacimientos y muertes: recorridos narrativos en el laberinto ficcional de la novela


No meu peito não cabem pássaros, de Nuno Carmaneiro.

1Adriane Figueira Batista, USP.


E-mail: adrianefigueira@usp.br

Resumo: a busca pela marca da escrita ficcional suscita trajetos incomuns em cada novo
autor. Em todos eles, ao que parece, é possível notar pelo menos um ponto de interseção:
seguir os rastros e absorver fôlego e luz por meio dos manuscritos dos grandes mestres da
literatura universal. A metalinguagem e a polifonia surgem como uma tentativa de adequação
da linguagem e a lapidação do estilo que conjuga em uma nova estética autoral. Este trabalho
apresentará como arquétipo uma obra da literatura portuguesa contemporânea e debaterá a
partir do romance de estreia do escritor Nuno Camarneiro, No meu peito não cabem pássaros
(2012), no qual emergem vozes poéticas bastante conhecidas que participam ora como
personagens, ora como narradores nas três distintas e interdependentes histórias contadas.
Camuflados em personagens, os espectros literários de Franz Kafka, Jorge Luís Borges e
Fernando Pessoa dão vida a uma nova perspectiva narrativa que enriquece ao mesmo tempo
em que presta homenagem ao universo ficcional da grande literatura mundial, redesenhando
os limites da criação literária e expandindo os horizontes desta narrativa. As contribuições
teóricas acerca do narrador, autor e a entidade escritor que carrega o peso das marcas e
memórias, serão vislumbradas partindo dos debates propostos pelos pensadores: Walter
Benjamin, Roland Barthes e Michel Foucault, em seus manuscritos canônicos sobre estas
temáticas; o gênero romance, suas transformações ao longo da modernidade, a prosa
distendida por vielas conceituais servirão de suporte para apreender o modus operandi do
romance português contemporâneo.

Palavras-chave: escrita ficcional, estética autoral, narrador/escritor/autor, romance português


contemporâneo.

RESUMEN: la búsqueda por la huella de la escrita ficcional cria trayectos inusuales en cada
nuevo autor. En todos ellos, al que parece, se puede percibir por lo menos un punto de
intersección: seguir los rastros y absorber aliento y luz a través de los manuscritos de los
grandes nombres de la literatura universal. El metalenguaje y la polifonía surgen como una
tentativa de adecuación del lenguaje y el talle del estilo que produce una nueva estética
autoral. Este trabajo presentará como arquetipo una obra de la literatura portuguesa

1Mestranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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contemporánea y debatirá desde la novela de estreno del escritor Nuno Carmaneiro, No meu
peito não cabem pássaros (2012), de la cual emergen voces poéticas muy conocidas que
participan ya sea como personajes, ya sea como narradores en las tres distintas e
independientes historias contadas. Disfrazados de personajes, los espectros literarios Franz
Kafka, Jorge Luís Borges y Fernando Pessoa dan vida a una nueva perspectiva narrativa que
enriquece al mismo tiempo en que presta un homenaje al universo ficcional de la gran
literatura mundial rediseñando los límites de la creación literaria y expandiendo los
horizontes de esta narrativa. Las contribuciones teóricas acerca del narrador, autor y la
entidad escritor que lleva el peso de las huellas y memorias serán vislumbradas partiendo de
los debates propuestos por los pensadores: Walter Benjamin, Roland Barthes y Michel
Foucault, en sus manuscritos canónicos respecto a esas temáticas; el género novela, sus
transformaciones a lo largo de la modernidad, la prosa distendida por caminos conceptuales
servirán de aporte para aprehender el modus operandi de la novela portuguesa
contemporánea.

Palabras-clave: escrita ficcional, estética autoral, narrador/escritor/autor, novela portuguesa


contemporánea

1 EXÓRDIO

No ciclo eterno das mudáveis coisas


Novo inverno após novo outono volve
À diferente terra
Com a mesma maneira.
(Ricardo Reis)

Partindo da epígrafe de um dos heterônimos mais célebres de Fernando Pessoa,


adentramos nos domínios múltiplos das narrativas contemporâneas. A literatura como agente
e expoente das questões mais subjetivas dos indivíduos e do estar no mundo, se instala no
imaginário criativo como uma espécie de ponte, interligando fenômenos externos e internos,
redesenhando movimentos, linguagens e experiências. Nessa dança de reapropriação o tempo
tem sido o elemento principal para a presentificação dos textos literários no universo virtual e
de subjetivação. As trocas afetivas entre sujeitos e comunidades inteiras afetam o ambiente
biossocial que causam rupturas, abrem lacunas e reinventam a humanidade e suas formas de
comunicação, descentralizando e reavivando novos lugares, novos devires.

Os romances escritos a partir de meados do século XX ganharam contornos diversos


no tocante aos temas e os modos de narrar. Em Portugal, os escritores em atividade até o
presente, incorporaram as novas maneiras e construíram um campo vasto onde se chocam

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metaficções, releituras históricas, paródias entrecruzando universos linguísticos e culturais,


questões de autocrítica, presença de personagens marginalizadas, pontos de vista diversos, o
dito e o não-dito pela história oficial e as réstias do colonialismo imputados por eles aos
países lusófonos que tem o português como língua oficial.

Este trabalho tem como proposta apresentar o novíssimo escritor português, Nuno
Camarneiro e seu romance de estreia, No meu peito não cabem pássaros (2012), que desenha
mapas narrativos a partir de figuras-conceito retiradas dos cânones literários ocidentais, que
abrem e fecham capítulos, encaminhando o leitor para fora do lugar comum em que essas
“entidades” narrativas são apresentadas independentes uma das outras e (sobre)viventes do
mesmo processo histórico e cultural nos limites do romance.

O protagonista da primeira estória alude a uma personagem do universo ficcional


kafkaniano, que transita entre universos linguísticos e geográficos outros para além de sua
terra natal; a segunda personagem dialoga diretamente com o escritor argentino Jorge Luís
Borges no tocante a sua infância e vida adulta: um sempre estrangeiro a navegar pelo mundo;
o terceiro elemento reinventa a juventude do poeta português Fernando Pessoa, seus dilemas
existenciais e o mergulho no delírio. Entre os três um acontecimento, um fato verdadeiro
noticiado em todo o mundo no início do século XX: a aproximação de dois cometas na
superfície da Terra e o prenúncio do fim do mundo, precisamente no ano de 1910.

O início de cada seção será intitulado de acordo com a organização estabelecida pelo
autor nos capítulos de No meu peito não cabem pássaros: Exórdio, Confronto, Acerto,
Assombro e Fecho que encaminham o leitor a novas descobertas, abrindo para novas
linguagens, novas formas de narrar e recepcionar os textos.

2 CONFRONTO

O homem é uma monstruosa superfície de


pântano. Se o entusiasmo o apanha, então é, sob
o aspecto geral, como se em algum canto dessa
superfície uma pequena rã saltasse
desajeitadamente na água verde. (Franz Kafka)

O gênero romance se edificou na modernidade, como expõe Lukács em sua obra


Teoria do romance (2000). Esta forma literária provém da necessidade de unir a história e
filosofia. O autor demonstra as características clássicas contrapondo o romance à epopeia,
gênero apreendido do mundo grego, nele as personagens conjugam seus valores e crenças
com o grupo social do qual faziam parte, não há o distanciamento de ideais, as personagens
da epopeia representam a comunidade.

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Diferente do que ocorre no romance, no mundo moderno, em que as personagens


vivem dramas existenciais, se distanciam da vida em sociedade, são representações diversas
de conflitos internos: uma subjetivação dos sujeitos dentro da narrativa a partir do olhar de
fora. O romance é a forma de representar o mundo interior, forma esta que não é encontrada
nas estruturas sociais vigentes.

O surgimento do romance advém da disparidade entre ser e mundo, é essa


inadequação, o ato de reflexão que estimulam o conhecimento. O gênero romance é a
evolução da épica, sua fase madura. George Lukács afirma que o mundo contemporâneo é o
berço do romance. Isso demonstra o caráter materialista do gênero que não é tão somente um
produto criado por pura inspiração, mas uma soma de fatores sociais e históricos que o
delineiam forjando novos modos de apreensão e novas linguagens.

Epopeia e romance, ambas as objetivações da grande épica, não diferem pelas


intenções configuradoras, mas pelos dados histórico-filosóficos com que se deparam para a
configuração. O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida
não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se
problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade. (LUKÁCS, 2000, p. 59).

O romance, assim concebido, é uma estratégia de fuga não somente de quem escreve,
como de quem lê. O mundo moderno (capitalista) é símbolo de disputas por poder em que a
subjetividade do sujeito pressupõe a sua alienação. Por isso, as personagens dos romances são
dotadas de características subjetivas, fogem aos padrões sociais comuns e se voltam para seus
dramas pessoais, visões singulares, a criação de universos paralelos, a necessidade e o desejo
de encontrar e dar sentido à vida, descobrir sua “essência”, seu lugar.

No texto “O romance é concebível sem o mundo moderno?”, ensaio que compõem a


obra A cultura do romance (2009), o autor Claudio Magris convoca grandes vozes de
pensadores para dar vazão as suas colocações e assim apresenta os desdobramentos sofridos
pelo gênero romance, ou o que ele chama de “epopeia moderna” ou “épica moderna”. Para
Magris, o romance surge a partir da falta. O indivíduo que se encontra desconectado do
mundo sente sua inadequação em fincar raízes, um sentimento de culpa que invade e um
“estar” em atraso com a própria vida.

A instabilidade causada pelas transformações históricas e sociais é a mola propulsora


para o surgimento do romance, uma criação burguesa que, de acordo com Magris, procurou o
sentido último para vida, o rompimento dos limites sociais, em uma busca mítico-religiosa da
unidade da vida.

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O romance é um paradoxo, uma lança de Aquiles que fere e cura; é tecido


com as lacerações do moderno e simultaneamente abarca-o em uma nova
totalidade. De Hugo a Dickens, a Tolstói ou a Dostoiévski o romance,
nascido como fragmento da desagregação da épica, parece produzir aquela
unidade e totalidade de vida que o moderno, de quem ele provém como Eva
da costela de Adão, tende a despedaçar; celebra ideais e narra paixões,
debate grandes questões sociais, mas também fornece informações e
notícias, é um mapa de fantasia e até de conhecimento. Ou ele exaspera a
negatividade (categoria substancialmente criada pelo moderno), a
dissociação entre o indivíduo e a vida, a sua incompatibilidade. (MAGRIS,
2009, p.1025)

Na cultura contemporânea, o gênero romance ganhou novas formas e seus conceitos


foram expandidos, hoje se fala em narrativas para dar conta da multiplicidade da escrita em
prosa, das entradas e saídas no universo ficcional. O sujeito moderno cedeu lugar ao sujeito
contemporâneo que já não obedece aos preceitos de um profundo mergulho em um mundo
primitivo e solitário.

Esses novos sujeitos, que se transformam em novas personagens dentro das estórias/
histórias escritas a partir de meados do século passado e do século vigente, transitam mais
confortavelmente pelos lugares antes obscurecidos ou não frequentados. Estamos em estado
de intensas trocas subjetivas, experimentações e experiências partilhadas.

A literatura portuguesa passou durante o século XX por diversas modificações de


caráter ideológico e inventivo. Com a Revolução dos Cravos em 25 de abril, ocorrida em
1974, foi declarado o fim do Estado Novo. O povo português experimentou a democracia e a
abertura para manifestações genuínas em arte naquele país, ainda que tardias, pois houve
alguns anos de silêncio depois da revolução deflagrada.

Os escritores portugueses influenciados pelo boom da literatura latino-americana, pelo


retorno à pátria após exílio e a trégua das guerras de colonização em África, saíram das
questões puramente históricas e adentraram por terrenos narrativos densos em que a poética,
a estética, a existencialidade, a crítica e autocrítica ampliavam o lugar e o papel da literatura
portuguesa no cenário universal.

Na tese defendida em 2002, na Universidade de Coimbra, a estudiosa Ana Paula


Arnaut desdobra os processos pelos quais a literatura portuguesa passou, fazendo uso de
exemplos literários e diluindo os conceitos pré-estabelecidos para colocar novos parâmetros
de leituras e de criação artística. A autora divide em três as etapas que estruturaram o
romance português contemporâneo, são elas: o cruzamento entre real e ficcional; o
embricamento das diferentes formas narrativas e a volta constante a questões históricas.
Sobre a condição pós-moderna Arnaut escreve a partir de Lyotard:

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[...] é caracterizada por uma radical crise epistemológica e ontológica que é,


afinal, uma crise de legitimação respeitante ao facto de que as grandes
narrativas e metanarrativas que organizavam a sociedade burguesa das
Luzes entrarem em desuso. Neste sentido, a literatura postmodernista é
‘unmakin’; ela desfaz, expõe o (tradicionalmente) não apresentável, expõe o
que julgamos poder ser entendido como o próprio processo de construção da
obra. (ARNAUT, 2002, p.51)

Com a diluição das fronteiras de gênero narrativo, o romance português ainda atrelado
ao romance histórico, pois que literatura e sociedade não se podem separar, apontou e aponta
para o entrelaçamento entre as entidades autor/escritor/narrador/leitor. Os escritores
portugueses dessa nova era literária cruzaram e cruzam estes universos escriturais e de
recepção, transitando entre realidades e ficções, mas não mais como modo de apreensão de
“verdades” ou ainda como pura representação da vida histórico-social, mas como um
rompimento de barreiras entre sujeitos e objetos, no movimento constante de apagamento e
aparição de novos olhares, reflexões e caminhos outros de compreensão e criação.

3 ACERTO

A liberdade, sim, a liberdade!


A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!
(Álvaro de Campos)

A obra No meu peito não cabem pássaros (2012) é aqui recolhida como mote para a
descentralização das entidades que criam e recebem os discursos, atravessados pelos
espectros literários de três grandes nomes da literatura ocidental, na ordem que aparecem no
livro: Franz Kafka, Jorge Luís Borges e Fernando Pessoa. Nuno Camarneiro em seu romance
de estreia tateia às cegas em busca de um lugar próprio, uma marca escritural que caracteriza
o autor dentro desse universo discursivo e de criação artística.

Camarneiro materializa em seu romance vozes advindas do cânone literário a partir


do legado narrativo e poético deixado pelos três escritores supracitados e suas vivências
pessoais. As personagens que são convocadas para contar e viver as estórias são atravessadas
por questões existências, urgências cotidianas, solidões e profundos mergulhos subjetivos.
Em uma conversa informal pela rede, Nuno me disse certa vez sobre a escolha das três

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entidades literárias: “[...] creio que tem que ver com a desadequação que todos tinham em
relação ao meio em que viviam... o que os levava a criar mundos internos muito ricos.”

Nesta narrativa os planos se desenrolam em três cenários distintos, no primeiro plano


temos Karl, um imigrante pendurado por vigas de aço que lava vidros em um arranha-céu na
cosmopolita Nova York em seu primeiro dia de trabalho. No segundo plano em Sueson Birea
(anagrama de Buenos Aires) a criança “diferente” Jorge brinca no jardim numa tarde cinza e
fria com a irmã mais nova, eles caçam animais reais e imaginários, inventam nomes,
enquanto a avó os observa pela janela. No terceiro plano o jovem Fernando em estado febril
perene, navega pelas águas do oceano Atlântico, a pensar e escrever textos e cartas, viaja em
busca de um porto, de volta para sua terra natal: Lisboa, onde suas tias o esperam no cais.

Estas personagens transitam entre discursos de ausência, silêncio e solidão. Homens


que se sabem incomuns, capazes de modificar a partir de dilemas subjetivos o mundo a sua
volta e para além. Estão conectadas por fios invisíveis estreitados pela agonia, desespero,
fuga e buscas. São quatro vozes, afinal, visíveis neste romance: as três personagens e o
narrador que transita pelas histórias como testemunha dos acontecimentos externos e
internos, como aquele ser que está para além da compreensão, nos brindando com
comentários persuasivos e imprimindo o seu olhar perante a vida das três personagens em
cena.

Karl percorre as ruas como se fossem partes de um labirinto. Procura o fim


daquilo, uma meta para o que lhe falta: alguém com quem falar, uma
refeição quente, um lugar tranquilo e bonito onde haja árvores e raparigas.
(p. 31)

Um dia quando for maior e tiver barbas, partirá para as florestas do mundo à
procura da ave dos suspiros, do peixe-macaco, da galipestra e do pampaleão
riscado. Jorge lamenta as penas verdes do farrinco estrelado mas faltam-lhe
os lápis azuis, terá de inventar-lhes um grito louco para o encontrar no meio
do arvoredo. (p. 33)

- Vai um pássaro a voar baixinho, tia, é lindo e vai perdido a voar. Aqui não
é céu de pássaros. Tenho muito calor dentro de mim, tia, tenho calor e falta-
me o ar. Leve o pássaro para a rua, lá para onde puder voar. No meu peito
não cabem pássaros. (CAMARNEIRO, 2012, p. 34)

Antecipando os debates teóricos e conceituais que serão elaborados na próxima seção,


podemos organizar essas vozes de acordo com as definições preestabelecidas para as funções
de narrador, autor, escritor e leitor.

Como o contador dessas estórias se porta, se envolve, nos envolve de acordo com as
contribuições de Benjamin. O autor que morre em cada página do livro e se encerra quando

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

escreve o último ponto da obra, quando nos debruçamos nos questionamentos de Barthes. E o
escritor que carrega as marcas de suas vivências íntimas, suas preferências, influências
literárias e culturais se transmutando em outras vozes para dar vida a estórias, criaturas e
estilos linguísticos e poéticos de acordo com Foucault. Ainda o leitor que passeia por entre os
cacos de realidade e ficção, imprimindo o seu olhar e dando novos sentidos a produção de
outrem.

Esses questionamentos são amplos, talvez genéricos de acordo com as potencialidades


que discursos literários engendram ainda mais em um romance tão plural como é este de
Nuno Camarneiro, sendo ainda o primeiro, aquele relegado a categoria de experimento, um
teste para medir o alcance da linguagem, a altura do voo. Como se desprender das imagens
tão fortemente marcadas na experiência literária e de leitor do mundo do escritor?

4 ASSOMBRO

Insuportavelmente, sonhei com um exíguo e nítido labirinto: no


centro havia um cântaro; minhas mãos quase o tocavam, meus
olhos o viam, mas tão intrincadas e confusas eram as curvas
que eu sabia que ia morrer antes de alcançá-lo.
(Jorge Luís Borges)

No labirinto conceitual as figuras retóricas encontradas: narrador, escritor e autor nos


encaminham para espaços fechados dentro dos domínios de criação literária. Essas entidades
eram compreendidas até meados do século XX, dentro de hierarquias narrativas, como os
elementos determinantes para análises e julgamentos de valor estético-literário. A
constituição de sujeitos na modernidade era percebida como confinamento a universos
íntimos de subjetivação, uma centralidade do indivíduo e um afastamento da vida social
tendo como parâmetro somente o universo onírico em que o leitor era transposto ao entrar em
contato com a obra literária.

Walter Benjamin em seu ensaio intitulado “O narrador: considerações sobre a obra de


Nikolai Leskov” que faz parte da obra Magia e técnica, Arte e política (2012) tece uma teia
de proposições sobre atribuições da entidade narrador que conduz a leitura e olhares lançados
sobre qualquer que seja a obra narrativa. Para Benjamin a crise da narrativa se justificava
pela mudança no paradigma social e de subjetivação, o leitor de romances era encarado por
ele como um leitor solitário, aquele que empreende à estória lida suas vivências, projetando
questões e reflexões sobre um sentido mais amplo para a vida e seus desdobramentos.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê


partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais
solitário que qualquer outro leitor (pois mesmo quem lê um poema está
disposto a declamá-lo em voz alta para um ouvinte ocasional). Nessa
solidão, o leitor do romance apodera-se da matéria de sua leitura de uma
maneira extremamente ciosa. Quer apropriar-se dela, devorá-la, de certo
modo. Sim, ele destrói, devora a substância lida, como o fogo devora lenha
na lareira. A tensão que atravessa o romance se assemelha muito à corrente
de ar que alimenta e reanima a chama. (BENJAMIN, 2012, p. 230 e 231)

Nessa chave perceptiva, Walter Benjamin alarga o papel do narrador e do leitor, não
restringindo o interesse pela leitura de um romance e seus temas apenas a meras descrições e
ensinamentos pedagógicos, mas conferindo as narrativas o poder de aquecer as experiências
do criador, da criatura e de quem entra em contato com a estória que está sendo contada: “Do
barco grande onde vai Karl vê-se muito mar e não se vê mais nada, quase nada. Ao fundo,
longe, um ponto negro há de crescer até ser um barco pequeno. É um barco desses de levar
um homem sozinho ao encontro de nada.” (Camarneiro, 2012:177)

Em “A morte do autor”, ensaio pertencente ao livro O rumor da língua (2004),


Roland Barthes envereda por caminhos tortuosos traçando novos passos juntamente com o
“ser” que narra estórias, um nascimento e uma morte constante impressa na voz de quem cria,
conta e participa dos fatos relatados. Barthes fala sobre a legitimação da entidade autor por
grande parte da crítica moderna, por ele próprio (o autor) que almejava um lugar de prestígio
no cânone literário.

O autor é aquela figura que precede à obra, o produto final que é o texto só nasce por
vontade do autor, é ele quem gesta e sente cada uma das partes da narrativa por vir, porém o
escritor moderno como define Barthes é aquele ser que está ao mesmo tempo dentro e fora do
contexto de sua escrita, não há antecedência ou precedência, ele só vive enquanto o texto é
produzido, está eternamente em composição, em feitura dentro do agora, do momento
presente.

[...] um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e


que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação:
mas há um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o
autor, como se disse até o presente, é o leitor: o leitor é o espaço mesmo
onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é
feita uma escritura: a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu
destino, mas esse destino não pode mais ser pessoal: o leitor é um homem
sem história, sem biografia, sem psicologia: ele é apenas esse alguém que
mantém reunidos em um único campo todos os traços de que é constituído o
escrito. [...] para devolver à escritura o seu futuro, é preciso inverter o mito:
o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor. (BARTHES,
2004, p. 64)

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Na transição de modernidade para a pós-modernidade, muitos estudiosos abandonam


o conceito de representação do real, da pura mimeses literária que encerra por muitas vezes
os debates a cerca do cânone e da criação artística. Barthes recoloca o lugar do leitor,
esquecido e renegado pela crítica e cultura clássicas, dentro do cenário da escritura como
parte integrante para que o texto em si ganhe sentido, vida. A linguagem que fala e não o
autor.

Essa contribuição é primordial para a análise proposta pela corrente pesquisa: a


dissolução da entidade autor que abre espaço para outros domínios e que amplia e divide as
funções narrativas com outras figuras como o escritor e o próprio leitor. No caso do romance
de Nuno Camarneiro temos funções duplicadas, visto que temos uma figura que é o autor/
escritor/narrador e leitor da obra que produz e da obra que interpreta.

Quem nunca quis dormir até a vida ser um lugar praticável, quem não
conhece o desconsolo de vestir cada dia uma pele curta nas mangas, que vá
abanar este homem, que o chame com a voz cheia de realidades e diga:
“Levanta-te, Karl, levanta-te à hora de viver.” (p. 158)

Enquanto a cabeça do velho se enrola nestas considerações, as mãos vagas


de Jorge procuram lápis e papel. De onde chegam as respostas não importa e
não se sabe, por vezes chegam e é já tanto. Uma mão que começa a escrever
sem olhos que fiscalizem, uma mão que vai sozinha à procura da
imortalidade sem deus nem outro. (CAMARNEIRO, 2012, p. 181)

Na obra de Michel Foucault intitulada Ditos e escritos III – Estética: literatura e


pintura, música e cinema (2015) há a transcrição de uma conferência que se chama “O que é
um autor?” em que Foucault justifica o uso dos termos autor, escritor, assinatura e obra,
concernentes ao estudo proposto nessa pesquisa, partindo dos debates travados a partir do
século XVIII que engendrou aos autores a produção de discursividade. Para ele essa diluição
do sujeito que se insere na discursividade vai além de questões propriamente narrativas e se
instaura como uma função, um mecanismo capaz de conjugar traços diversos de
racionalidade e organização escritural, uma pluralidade de vozes e eus, avaliação datada já no
século XX. O filósofo ressalta algumas considerações sobre quais os papéis desempenhados
pelo autor a partir do olhar da crítica literária moderna:

[...] o autor é o que permite explicar tão bem certos acontecimentos em uma
obra como suas transformações, suas deformações, suas diversas
modificações [...] O autor é, igualmente, o princípio de uma certa unidade de
escrita [...] O autor é ainda o que permite superar as contradições que podem
se desencadear em uma série de textos [...] O autor, enfim, é um certo foco
de expressão que, sob formas mais ou menos acabadas, manifesta-se da

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contemporâneas

mesma maneira, e com o mesmo valor, em obras, rascunhos, cartas,


fragmentos etc. (FOUCAULT, 2015, p. 282)

Os apontamentos de Michel Foucault para além de fechar os debates sobre atribuições


auferidas sobre o autor, expande os conceitos da crítica moderna, pois afirma que o autor não
é o único ente que cria discursividade e apaga as marcas subjetivas do sujeito, ele está no
âmbito institucional e jurídico, existe para dentro e fora do contexto literário, textual e
discursivo. Esses posicionamentos enriquecem os outros papéis que fazem parte do labirinto
narrativo contemporâneo e que causam divergências entre teóricos e críticos de literatura.

Benjamin, Barthes e Foucault ainda são potentes para pensar o lugar das entidades
narrativas e de criação literária, pois uma obra só pode ser entendida como tal, ganhar status,
quando recepcionada pela crítica e pelos leitores. O leitor como ponte que estabelece e alarga
as experiências das personagens e a sua própria, conferindo novas possibilidades
interpretativas e redesenhando o lugar da crítica, da teoria e da estética em literatura, no
discurso artístico e poético.

5 FECHO

Tudo é incerto e derradeiro.


Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
(Fernando Pessoa)

Nesse barco que navega pelas turvas e múltiplas águas da narrativa pós-moderna em
Portugal, as figuras de Kafka, Borges e Pessoa são o aporte encontrado pelo criador do
romance No meu peito não cabem pássaros. Uma bússola que conjuga as particularidades
desses cânones ao mesmo tempo em que presta homenagem e reinventa linguagens.

Nuno Camarneiro se apresenta como forte nome dessa nova escrita portuguesa, do
homem pós-moderno que convive, empresta e divide espaços com as mais diversas
manifestações artísticas e culturais. Podemos depreender dos modelos narrativos ficcionais
em língua portuguesa, a partir da literatura portuguesa contemporânea, que estes se erguem
conectados aos discursos hegemônicos em criação literária, porém ultrapassam as fronteiras
linguísticas, geográficas e discursivas.

“[...] Um dia amanhã e outro dia depois, tempo ao tempo. Viver


como quem passeia cá por baixo, distraído de um universo
aonde se há de voltar em alguma hora, até que sopre um frio de

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contemporâneas

fim de tarde e uma voz chame para dentro, ‘vamos, que vem
noite’.” (CAMARNEIRO, 2012, p. 184)

Estas novas narrativas portuguesas não abandonam a tradição, pelo contrário,


encontram nos manuscritos clássicos o suplemento para novas experimentações, subvertendo
universos fechados de produção e se encaminhando para a abertura de novos devires, onde as
figuras do narrador, escritor, autor e leitor se entrecruzam formando uma teia discursiva em
que as trocas de papéis são a energia que movimenta o novo, o eu que se dissolve e se
confunde com o outro na noite que está sempre por vir.

Referências

ARNAUT, Ana Paula. Post-Modernismo no Romance Português Contemporâneo: Fios de


Ariadne, Máscaras de Proteu. Coimbra: Almedina, 2002.
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, Arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad.
Sérgio Rouanet. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. CAMARNEIRO, Nuno. No meu peito
não cabem pássaros. Rio de Janeiro: Leya, 2012. FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos III,
Estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. 4ª ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
LUKÁCS, George. Teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da
grande épica. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora 34, 2000. MAGRIS,
Cláudio. O romance é concebível sem o mundo moderno?. In MORETTI, Franco (org.). O
romance: A cultura do romance. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p.
1013-1028.

Literatura negra brasileira na sala de aula: espaço de identidade, cultura e


discursividade negra

Ana Cristina da Costa Gomes


Programa de Pós-Graduação em Educação - UNIRIO
Abebecalebe811@hotmail.com

Resumo: no ano de 2003, o governo brasileiro sancionou a Lei 10.639/03 que, acrescentando
o artigo 26A à sua Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96), determina
a obrigatoriedade do ensino das histórias e culturas africanas e afro-brasileiras no contexto

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

escolar. A Lei aponta, como primeiras ferramentas para este fim, o ensino da História, da
Literatura e das Artes e, sob esse contexto, a Literatura Negra ganha força, aumentando
significativamente o número de escritores negras e negros no Brasil, se configurando como
uma vertente da Literatura Brasileira. Como afirma Kabenguele Munanga (1996) “Essa arte
literária é constituída de uma fonte riquíssima de saber e conhecimento que abrange tanto a
história e cultura afro-brasileira como também africana”. A literatura negra fornece textos que
indagam e revelam, em sua escrita, a vida, o cotidiano da comunidade afro-brasileira e suas
subjetividades, desviando-se das formas estereotipadas que são compostas e representadas
fora desse espaço. Compreendendo a relevância daquele movimento literário, este trabalho
tem como objetivo analisar, por meio do conto He Man da escritora Lia Vieira, o seu papel,
destacando-o como possibilidade de fortalecimento das identidades negras pela introdução de
sua cultura e discursividade no ambiente escolar, garantindo, pelo ensino da língua, a
consolidação de uma prática de ensino multicultural e a construção de uma sociedade
antirracista. Para este fim, toma-se como embasamento teórico sobre literatura negra Cuti,
Eduardo Duarte, Conceição Evaristo. Também fundamentam esse estudo os seguintes
autores: Irandé Antunes, Mikhail Bakhtin, Frantz Fanon para compreender, respectivamente,
ensino da língua e linguagem e cultura negra.

Palavras-chave: Literatura Negra; Lei 10639/03; Ensino da Língua Portuguesa.

Introdução

Dois fatos têm ocupado minhas reflexões acadêmicas: o primeiro é a observação de


que a discursividade negra é desconsiderada no ensino da Língua Portuguesa no Brasil, tendo
sua prática didática se apoiado na legitimação e manutenção do poder e da dominação dos
ideais colonizadores sobre a população negra, antes escravizada e agora sistemicamente
segregada. Totalmente organizada sob os referenciais eurocêntricos, esvaziada da existência
dos outros sujeitos e culturas que formaram o Português do Brasil e que, muito mais do que
aqueles, hoje a dinamizam.

O outro ponto é que a Literatura Brasileira, ao observarmos o romance


contemporâneo brasileiro, ainda mantém na invisibilidade negros, indígenas e mulheres, tanto
como personagens principais, quanto como autores. Regina Dalcastagnè traz a seguinte
informação:

(...) um corpus de 258 romances, que correspondem à totalidade das


primeiras edições de romances de autores brasileiros publicadas pelas três
editoras mais prestigiosas do País, de acordo com levantamento realizado
junto a acadêmicos, críticos e ficcionistas: Companhia das Letras, Record e
Rocco3. No conjunto, são 165 escritores diferentes, sendo que os homens
representam 72,7% do total de autores publicados. Mas a homogeneidade

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

racial é ainda mais gritante: são brancos 93,9% dos autores e autoras
estudados (3,6% não tiveram a cor identificada e os “não-brancos”, como
categoria coletiva, ficaram em meros 2,4%). (DALCASTAGNÈ,2008,p.89)

Dalcastagnè também agrega fatores como protagonismo, função narrador e posição


social e, nesses casos, os números revelam que nenhum indígena é narrador, no caso dos
negros, 2,7%, em oposição a 86,9% de brancos. O protagonismo é 84,5% de brancos.

Quanto à situação econômica, os negros aparecem como pobres e miseráveis em


percentual expressivamente maior que indígenas e brancos, e com os papéis sociais em que
são predominantemente bandidos, empregados domésticos, profissionais do sexo e escravos.

Partindo dessas considerações, este trabalho representa mais um passo nessas


reflexões sobre ensino-aprendizagem da língua e o papel da literatura neste processo.
Ressalto que ao me referir à Literatura não me apego exclusivamente aos clássicos e
canônicos, mas penso-a como espaço de expressividade em que, no ponto de vista dos
Estudos Culturais de Stuart Hall (1997), abrigam todas as expressões sociais.

Entendendo a literatura como linguagem, sendo, portanto um locus dos


partilhamentos significativos que são produzidos neste espaço cultural. Assumindo com
Stuart Hall a importância da discursividade para representar o mundo de maneira que seja
significativa a outras pessoas. Porque “a representação é parte essencial no processo pelo
qual os significados são produzidos e partilhados” 2 (1997,p.15).

As reflexões de Stuart Hall referem-se a cultura não como matéria fixada, distanciada
dos rumos da vida e cheia de erudição. Ao contrário, tem a ver com o conjunto de
significados e de valores que são partilhados. Neste contexto, a literatura negra brasileira
apoiada pela Lei 10.639/03 se consolida como um momento em que é possível unir
discursividade negra, literatura e ensino da língua portuguesa.

Lei 10639/03 - da política à prática: um novo currículo

A Lei 10639/03, assinada em janeiro de 2003, que torna obrigatório o ensino de


História e Culturas Africanas e Afro-brasileiras direcionou o currículo escolar para uma
perspectiva de problematização das questões raciais, possibilitando com isso a eliminação da
desvalorização do negro, dos preconceitos e, consequentemente, das desigualdades.

2 Tradução minha.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Em meio à pauta de reivindicações do Movimento Negro Brasileiro, sempre existiu a


de que as culturas negras e a história dos africanos que aqui foram escravizados fossem
incluídas no currículo escolar oficial como forma de combate ao racismo e também como
reconhecimento do direito do povo negro3. Neste caminho, a constituição de 1988, em seu
Artigo 215, § 1º, trata da proteção às manifestações culturais e mais tarde, no ano de 1996,
por conta do Programa Nacional de Direitos Humanos, o decreto 1.904 assegura a presença
histórica dos negros na constituição do país.

No âmbito escolar, em 1997, o Ministério de Educação (MEC) introduz a temática da


Pluralidade Cultural nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Os PCN foram
preparados para orientar professores na adoção de um currículo que refletisse sua realidade
regional e cultural, permitindo formar o cidadão consciente. No entanto, este referencial de
apoio não teve força para consolidar-se e para romper as bases eurocêntricas da educação
brasileira.

Com a Lei 10.639/2003 chega-se, finalmente, ao momento em que, por intervenção


do Estado, a uma política educacional que valoriza o sujeito negro, considerando suas
culturas e historicidade, foi implementada.

No ano de 2004, a lei é regulamentada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a


Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Ela direciona para a inserção de um novo currículo e também de uma nova prática
pedagógica, visando os estabelecimentos educacionais, em todas as modalidades e níveis de
ensino.

A promulgação da lei 10.639/03, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação,


lei 9.394/96, faz com que haja um maior direcionamento para a introdução da temática
africana e afro-brasileira no conteúdo programático sem a necessidade da criação de uma
nova disciplina. O artigo 26-A propõe que o trabalho se desenvolva a partir da arte, literatura,
história e outras disciplinas dos Ensinos Fundamental e Médio.

Art.26-A- Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e


particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre história e Cultura Afro-
Brasileira.
Parágrafo Primeiro - O conteúdo programático a que se refere o caput deste
artigo incluirá o estudo da África e dos Africanos, a luta dos negros no
Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à História do Brasil.

3 A organização das Nações Unidas (ONU) inicia, em 94, o reconhecimento dos direitos do povo negro.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Parágrafo segundo - Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-


Brasileira serão ministrados no âmbito de todo currículo escolar em
especial, nas áreas de Educação Artística e de Literatura e Histórias
Brasileiras. (BRASIL, 2003).

Considerando a necessidade de adaptação do currículo escolar e das práticas


pedagógicas para que a lei se efetivasse nas salas de aula, o Conselho Nacional de Educação
(CNE) elabora o Parecer CNE/CP3/2004, que por meio da Resolução nº1, de 2004, instituiu
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

O Conselho Nacional de Educação instituiu o Parecer nº 1, de 17 de junho de 2004,


que orienta e regulamenta os dispositivos legais com vistas a uma efetiva implementação
desta Lei no âmbito escolar que é a garantia legal de que todo brasileiro, em qualquer nível
de escolaridade, instância e rede de ensino terá como componente de sua formação a garantia
e o direito de conhecer a história da constituição do seu país assim como a das diversidades
culturais, religiosas, étnico-raciais .

Nesta perspectiva, propõe a divulgação e produção de conhecimentos, a


formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos
de seu pertencimento étnico-racial–descendentes de africanos, povos
indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos – para interagirem na
construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham
seus direitos garantidos e sua identidade valorizada. (BRASIL, 2004, p.02)

O Parecer é redigido tendo como referências o Estatuto da Infância e Adolescência e


o Programa Nacional de Direitos Humanos, e não traz uma orientação direta sobre teorias do
currículo a ser trabalhado. Porém há uma citação de Frantz Fanon que é encontrada na página
seis e aponta para uma perspectiva pós-colonial do documento. Fanon, que era psiquiatra,
alertava para o fato de que a vida dos que eram condenados pelas instituições coloniais e
racistas deveria ser transformada.

É o trecho do livro4 do psiquiatra martinicano, Os condenados da terra (1979) que se


encontra no Parecer. “Nele o autor nos orienta a superar os procedimentos e atitudes que
reforçam a negação e a subjugação dos povos, isto é, dos saberes e que reforçam a relação
colonizados/colonizador para que, com liberdade em todos os lados, seja possível construir
relações étnico-raciais.” (GOMES; RIBEIRO, 2015,p.4) .

4 (...) descendentes dos mercadores de escravos, dos senhores de ontem, não têm, hoje, de assumir culpa pelas
desumanidades provocadas por seus antepassados. No entanto, têm eles a responsabilidade moral e política de
combater o racismo, as discriminações e, juntamente com os que vêm sendo mantidos à margem, os negros,
construir relações raciais e sociais sadias, em que todos cresçam e se realizem enquanto seres humanos e cida-
dãos. Não fossem por estas razões, eles a teriam de assumir, pelo fato de usufruírem do muito que o trabalho
escravo possibilitou ao país (FANON, 1979)

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Pensando em qual currículo dará conta das questões anteriormente destacadas, isto é,
que a partir dos conhecimentos e saberes que o mesmo seleciona teremos uma sociedade
composta de pessoas que têm as suas subjetividades e suas identidades construídas nas
relações antirracistas e não-discriminatórias, que interpretam as histórias e culturas dos
Africanos e afro-brasileiros como seus lugares de pertencimento.

Destaco que Tomaz Tadeu da Silva alerta para o fato de que o “currículo é uma
questão de identidade porque “Está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido
naquilo que somos, naquilo que nos tornamos”(2001, p.16).

Percebendo as implicações existentes entre identidade, subjetividade e currículo,


recorro ao citado professor para com ele compreender que a Lei 10639/03, pela sua
especificidade que leva em conta a cultura do negro africano e brasileiro, deve apoiar-se nas
teorias pós-críticas de currículo, afastando-se das teorias de reprodução de conhecimento.

São as teorias pós-críticas que analisam as relações de poder na qual o currículo está
inserido e se mobiliza no sentido de que este poder seja descentralizado. São elas que mais do
que apontar a organização racista dos currículos, vão encaminhar no sentido de que os
mesmos refaçam os percursos de dominação, que afetam as questões de saber e de poder dos
negros no Continente Africano e na Diáspora.

Vale ressaltar que inicialmente as questões relacionadas aos problemas negros e a


educação baseavam-se exclusivamente ao campo do acesso, observando os aparatos sociais e
institucionais ali envolvidos, sem que identificasse o currículo como um responsável direto
do fracasso escolar da comunidade negra. Silva afirma que

(..) a partir das análises pós-estruturalistas e dos Estudos Culturais que o


próprio currículo passou a ser problematizado como sendo racialmente
enviesado. É também nas análises mais recentes que os próprios conceitos
de raça e etnia se tornaram crescentemente problematizados. ( IDEM, p.99)

Concentrando-se na análise da cultura, os Estudos Culturais dão a esta uma significação


mais dinâmica do que a concebida nos conceitos de superestrutura e infraestrutura de Marx,
localizando-a nas “relações de poder que definem o campo cultural (...) os Estudos Culturais
estão preocupados com as questões que se situam na conexão entre cultura, significação,
identidade e poder.”( Idem,p.134).

Outro ponto a ser destacado é que a perspectiva de cultura de que trata a Lei se afasta
da ideia de folclorização, que retira da cultura este viés político dinamizador e a deixa
cristalizada e esvaziada das significações reais que são produtoras de uma discursividade

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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também real, porque o racismo ou a desconstrução são movimentos de representação do


negro em face às relações de poder, geradoras de um discurso com este ou aquele valor.

Há uma narrativa antirracista que necessita ser construída no “texto racial do


currículo”( IDEM, p. 102).

Ainda caminhando com Tomaz Tadeu da Silva, para ratificar o papel da Lei 10639/03
para uma releitura, reescrita e reinterpretação do currículo e, no caso deste trabalho, em
contato com o ensino da língua concluo que

O texto que constitui o currículo não é simplesmente um texto: é um texto


de poder. Além de uma poética é necessário, pois, que tenhamos também
uma política de currículo. Conceber o currículo como representação
significa vê-lo simultaneamente, inseparavelmente, como poética e como
política. Seus efeitos de poder são inteiramente dependentes de seus feitos
estéticos; inversamente, seus efeitos estéticos só fazem sentido no interior
de uma economia afetiva movimentada pela obtenção dos efeitos de poder
( 2010, p.6)

Que negro é esse na Literatura Negra?5

Reconhecendo que o discurso literário não se constrói distanciado de uma visão de


mundo, com isso Conceição Evaristo afirma que,

(...) o sujeito autoral acaba por colocar no texto sinais reveladores da


constituição de uma sociedade em determinado momento histórico. Sinais
esses que, como marcas textuais, podem ser capturados nas linhas e muito
nas entrelinhas dos textos. O silêncio da sociedade ou do escritor(...) pode
ser desvelado eloquente pela literatura. Nesse sentido, o “não dito”, o “não
explicitado”, se considerado com “o sonho” e com “o recalcado” na
perspectiva da psicanálise, pode conferir sentidos ao “silêncio” e à
“ausência”, assim como para as estereotipias do negro presentes no discurso
literário brasileiro. (2009, p. 21).

Evaristo analisa os aspectos ideológicos da literatura brasileira, e denuncia o para fato


de que esta se dá sob os mesmo moldes das relações raciais e que, desde o Brasil colônia até
o momento contemporâneo, há uma tendência a invisibilizar o negro, “referendando a visão
construída sobre o negro nos discursos: históricos, antropológicos, político, científico,
medicinal, educacional, religioso... Desde a sua gênese, a literatura surge falando do negro, o
que a sociedade de cada época diz.”(Idem, p.22).

Há uma constatação de que escritores brasileiros não-negros esquecem-se das

5 Este título é uma alusão ao texto de Stuart Hall, publicado primeiramente em 1992.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

complexas demandas sociais surgidas após a assinatura da Lei Aurea e representam o negro
brasileiro com suas caraterísticas fenotípicas depreciadas, com um comportamento que
sempre o aproxima de um negro sofredor e passivo, cuja história teve início “em coleiras de
ferro”6 ou de uma mulher que, sem identidade, é simplesmente mãe-preta7 . Eles apenas
deixam o negro no mesmo lugar de escravo8.

A Literatura Brasileira reforça o ideal romântico em que a mestiçagem brasileira é


indígena e excluem o negro deste lugar e o imobiliza nas senzalas reais ou nas simbólicas em
que seus saberes, poderes e existência são no máximo folclorizados, o que demonstra a não
validação daqueles pontos.

Ao tratar da relação do preconceito contra negro e produção cultural, Cuti considera


que aquele

Tem sua origem na escravização e no racismo (teoria que buscou


justificativas para o processo de violência e dominação dos povos de origem
africana, disseminada cotidianamente nos produtos culturais , por meio de
rádio, jornal, televisão , cinema, artes plásticas, literatura etc.). A
discriminação (prática do preconceito que se constitui na rejeição do outro,
seja por desqualificação verbal, seja por agressão física) instala-se não
apenas no relacionamento entre as pessoas . A discriminação se faz presente
no ato de produção cultural, inclusive produção literária. Quando o escritor
produz seu texto, manipula seu acervo de memória onde habitam
preconceitos. (CUTI, 2010, p. 25).

O escritor negro brasileiro assume o lugar da enunciação e retomando o sentido de


sua história rompe com o preconceito e discriminação racial, tratando do racismo que o
aflige não só do ponto de vista social, mas também no campo das representações que fazem
do seu corpo e de sua subjetividade.

O ponto nevrálgico é o racismo e seus significados no tocante à


manifestação das subjetividades negra, mestiça e branca. Quais experiências
vividas, que sentimentos nutrem as pessoas, que fantasias, que vivencias,
que reações, enfim, são experimentadas por elas diante das consequências
da discriminação racial e da presença psíquica do preconceito (CUTI,2010 ,
p.39).

6Verso do poema Negro, escrito por Raul Bopp, poeta modernista que participou do Grupo da Semana de Arte
Moderna. Este poema faz parte do livro Poemas Negros que foi publicado em 1932.

7Mesmo autor e livro, poema de nome Mãe-preta.

8Tenho regularmente repetido este termo de maneira proposital para reforçar este pensamento do colonizador
que não reconhece o negro como sujeito que foi escravizado, mas como um objeto: o escravo.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

São essas preocupações que compõem o contexto em que se encontra a Literatura


Negra. A literatura é o lócus da enunciação (Bhabha, 1998) do negro que, seja como narrador
ou como escritor, se coloca como sujeito, isto é, cheio de complexidade, conflitos e interesses
que o retiram da homogeneidade e o colocam na humanidade. Deslocando o negro dos
espaços de subordinação, torna-o visível a si mesmo.

Ainda me aproximando de Homi Bhabha, percebo que o pensador indiano nos


convoca a entender a Literatura Negra Brasileira como apropriação ao discurso de modo que
tanto a produção, quanto a recepção estarão carregados de significação histórica, política,
estética, ideológica e não de uma imagem isolada.

Neste lugar, então, o escritor negro realiza sua escrita como um engajamento político,
em que a cor de sua pele e os “dramas” (BHABHA,1998) que ela vivencia são expostos em
contradição com o discurso colonialista. Como única voz autorizada, fala de dentro desta
pele, como testemunha dos abusos sofridos, mas também como construtor de um presente e
de um futuro próprio.

Uma voz “muscularmente” comprometida com a conscientização dos seus e da


sociedade em atitude de debate e de combate, sabendo de seu papel de intelectual que quando

(...) escreve para seu povo deve (...) fazê-lo com o propósito de abrir o
futuro, convidar à ação, fundar a esperança. Mas para garantir a esperança,
para dar-lhe densidade, é preciso participar da ação, engajar-se de corpo e
alma ao combate nacional (...) quando se decide falar dessa coisa (...) que
representa o fato de abrir o horizonte, de levar a luz à sua casa, de por em pé
o indivíduo e seu povo, então é necessário colaborar muscularmente.
(FANON, 1979, p.193).

Daé e espada de He Man, uma narrativa mítica

Há uma humanidade que se individualiza – negra - em meio aos nove contos que
compõem o livro de Lia Vieira. Com o título Só as mulheres sangram, o livro de Vieira,
publicado em 2011 pela editora Nandyala, mostra, sem nenhum desvio, uma leitura (e escrita)
feminina de seu universo que assim ela proclama e “partilha consumada e
tranquila”(VIEIRA,2011).

Em todo o livro, observa-se uma autoridade narrativa9 que permite identificar o


contexto maior que ali é revelado e, deste modo, a comunidade negra é

9Expressão utilizada por Vicent Jouve para qualificar uma narrativa ficcional que traz informações de um dado
universo, mas essas não objetivas, explícitas. Elas vão se construindo no decorrer da narrativa.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

emocionalmente10 revelada por meio de seus gestos, vocabulários, complexidades, anseios e


subjetividades.

O terceiro conto do livro - He Man - apresenta, de maneira muito singular, o


personagem Daé: menino pobre que decide assaltar uma casa na noite de um 24 de dezembro
e, deste modo, levar presentes para sua mãe, seu irmão mais novo e para si mesmo.

O conto tem o narrador em terceira pessoa, que não somente relata o fato, mas invade
e revela pensamentos de Daé. Observa-se também a presença de muitos polissílabos, estes
conferem ao texto um ritmo levemente arrastado e que se contrapõe a agilidade da situação
narrada.

É um dia de verão, inquieto, com extremas variações de luz e nuvens


sombrias. Daé aprexima-se, timidamente, e para a alguma distância do local,
sem ousar ir adiante. Um dancing acende seu luminoso, espalhando
flutuações de cores amareladas na noite. É uma imensa área residencial com
casas de meia altura, maltratadas, negligenciadas, ao longo de ruas
impregnadas de um asfalto com enormes falhas. Aqui e ali veem-se crianças
que se esparramam como pássaros esfomeados. Estão meio ocultos e
parecem-se com fantasmas azulados; não se falam.Galgou o muro e
perscrutou o silêncio. Ninguém em casa.( VIEIRA, 2011, p.16)

A narrativa inicia com o verbo no tempo presente e assim descreve o local onde se
passa a história. As ações de Daé estão no pretérito perfeito o que enfatiza a simultaneidade
entre o fato e a narração.

Esta tecitura textual, com muitas tramas, forma uma leve cortina entre Daé e o leitor e
este não consegue ver o crime, mas, talvez, uma travessura de menino ou ainda a jornada de
um herói porque ao mostrar a intenção do menino em construir uma nova realidade há a
aproximação de uma narrativa mítica e, assim, assiste-se Daé pular o muro da casa, avançar
pelo corredor e encontrar todas as portas fechadas.

Um corredor comprido levou-o a quatro portas.Experimentou a primeira


porta. Fechada. a segunda, fechada.(...) Passou a terceira, aberta.(...)No
outro lado do quarto, um duplex ameaçadoramente odesafiava. Ousou.
Avançou em direção à porta do armário. Não sabe quanto tempo depois que
a experimentara. Trancada. O silêncio é concreto, quase de se tocar nele.
(VIEIRA,2011,p.17-18).

10Goodmam afirma que “ Na experiência estética, a emoção é um meio de discernir que propriedades uma obra
possui e exprime”. Com isso, a emoção manifesta é aquela que, fazendo parte do conteúdo da obra, identificam
esta obra e não deve ser confundida com a emoção sentida pelo leitor.

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contemporâneas

Na frustação, Daé desce aos infernos como ocorreu a Ulisses, Orfeu ou


principalmente a Gilgamesh, pois tanto um quanto o outro percebem que não existe a chance
de uma segunda realidade e retornam ao lar de mãos vazias. O texto revela que o menino
chorou "um peso insuportável, uma desesperança que queima", de mesmo modo Gilgamesh,
ao constatar a perda da planta que lhe daria a imortalidade, chora

Então Gilgamesh sentou-se e chorou,


Grossas lágrimas correram-lhe pelo rosto..
[…]
Nada obtive para mim, nada
Encontrei o sinal da vida e agora o perdi.( Anônimo)

Em seu caminho de volta, Daé vê uma espada de He Man incrustada nas brechas do
muro e volta para buscá-la

Acariciou o que sobrara de um grande sonho – de plástico – meio


usada – mas, pelo menos, faria o irmão menos infeliz...Não seria um
trenzinho, mas também não seriam mãos vazias. Pensando em outro
dia, lá se foi Daé, naquele 25 de dezembro solitário, carregando na
mão a pequena espada de He Man. (VIEIRA, 2011,p.18)

Porque o texto não tem nenhum objetivo de julgar ou justificar a atitude de Daé, a
imagem final é a de um herói que retorna à casa sem vitória, mas, de toda forma, iluminado
pela grandeza da perda.

Este personagem e todos os outros deste livro são cuidadosamente delineados por Lia
Vieira. É possível constatar suas consciências alertas para as mais variadas manifestações de
racismo por eles enfrentadas. Entretanto, cada um tem a sua individualidade humana bem
desenvolvida, concretizando uma reflexão poética da realidade.

(...) as múltiplas conexões que relacionam os traços individuais de seus


heróis aos problemas gerais de sua época quando personagem vive diante de
nós os problemas de seu tempo, mesmo os mais abstratos, como
individualmente seus, como algo que tem para ele uma importância.
( LUKÁCS, 2010, p.192).

Percebe-se também que estas questões não são dadas pela narrativa, mas suscitadas
por meio delas e, por isso, uma das importantes ferramentas para a condução do processo de
transformação social, tendo como eixo a eliminação dos conflitos e tensões raciais, é a
literatura. As perguntas que se levantam diante deste jogo da enunciação são: que Daé somos

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contemporâneas

cada um de nós? Qual a minha aflição que Daé carrega consigo? Por que quando penso em
Daé ele me aparece com uma determinada cara, um determinado jeito, uma determinada
história?

É pela narrativa literária que Lia Vieira faz de dentro para fora uma reflexão social. As
imagens que as palavras dela desenham não estão diagramadas ou legendadas, mas
efetivamente colocam o leitor diante do conflito de cada uma delas. Um diante que não é
passivo mas dialético. Vieira tece o seu texto como quem escava emoções e refaz, nas muitas
tramas, a herança-memória que são colheitas de tempos fugazes (VIEIRA, 2010, p.40). Neste
caminho, a realidade narrada instiga a imaginação, remetendo a uma aventura que, embora
não seja dos contos de vida tem heroínas e heróis.

Não estão colocadas em Daé as discussões atuais sobre maioridade penal, arrastão,
impunidade.11 Daé não é uma notícia nem mero tema para debate. Ele é subjetividade de Lia
Vieira, do leitor e dele mesmo. Em nenhum momento a autora trata do tema de maneira
moralizante, porque trabalhando com a ética do lugar que ocupa (o de escritora) não lhe é
adequado aconselhar, no entanto leva o leitor a repensar a sociedade e temas relacionados à
pobreza, à infância, à negritude e à desigualdade social.

O livro de Lia Vieira revela que quando a imagem do negro se desloca das forças de
subordinação, chega também o entendimento de como se dão as relações raciais no campo
simbólico e como este é um grande desafio a ser vencido nos muitos espaços sociais em que
esses conflitos emergem.

Conclusão

O contato literário garante, por conta de sua própria natureza, a experiência da


alteridade. A literatura é o espaço da enunciação que, como entende Bakhtin (2003), não
pauta seu sentido no indivíduo, na palavra ou nos interlocutores, mas é o efeito da interação
entre o locutor e o receptor, produzido por meio de signos linguísticos. A interação constitui,
assim, o veículo principal na produção do sentido.

Pensando em seu uso sala de aula, que deve aqui ser considerada como um ambiente
intercultural, será também um local propício para que ali emerjam as relações de alteridade .

Bakhtin (2003) alerta que o sistema de normas imutáveis deve abrir espaço para a
ideia de consciência subjetiva do locutor das várias comunidades linguísticas e em um

11O Brasil, desde, 2015 tem trazido para a pauta politica dos setores mais conservadores o tema da redução da
maioridade penal, como forma de combate a uma alegada impunidade relacionada a delitos que seriam pratica-
dos atualmente por menores de 18 anos de idade.

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contemporâneas

determinado momento histórico. Isto é, o locutor deve contemplar a língua a partir de uma
realidade enunciativa concreta, na qual ele está imerso.

Impondo uma interação polifônica de que nos fala Bakhtin, na qual o sujeito que é
social, histórico, ideológico e também corpo é construído na linguagem e construído pelo
outro. Isto porque projeto de fala de um sujeito depende do “outro” e não apenas de sua
intenção. Primeiro é o “outro” com quem se fala; depois o “outro” ideológico porque é
constituído por outros discursos do contexto e, ao mesmo tempo, o sujeito é corpo constituído
por outras vozes. A polifonia é própria da literatura e, de acordo, com Rildo Cosson

Na leitura e na escrita do texto literário encontramos o senso de nós mesmos


e da comunidade a que pertencemos. A literatura nos diz o que somos de nós
mesmos e nos ajuda a desejar e expressar o mundo por nós mesmos. E isso
se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada. É mais do que
um conhecimento a ser elaborado, é a incorporação do outro em mim sem
renúncia da minha própria identidade. No exercício da literatura podemos
ser outros, podemos viver como outros, podemos romper os limites do
tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos.
(COSSON, 2014, p.17).

Com isso, o uso da literatura negra na sala de aula, viabilizando um efetivo exercício
antirracista, deve se deslocar da consideração exclusiva das convenções canônicas do sistema
literário e buscar referências do signo com a realidade e com o indivíduo, de maneira que se
explique sua lógica interna, que é o que caracteriza a literatura como um uso da língua em
seu processo dinâmico e interativo, uma atividade e não um fato cristalizado.

As reflexões didáticas sobre o ensino da língua devem privilegiar o diálogo político


construído em torno das transformações sofridas pela sociedade, no qual se produzem
embates ideológicos e se discutem políticas de oposição às ideologias que homogeneízam
identidades. É uma tomada de consciência política do papel que a produção de conhecimento
e a partilha de saberes devem desempenhar em um contexto em que se privilegia o ideal da
diversidade humana e do dialogismo.

No confronto dos elementos dos intertextos e das situações de produção é que surgem
os processos de compreensão da leitura assim como sua interpretação. Ao trabalhar com
literatura o professor poderá aproximar um “funk ostentação” 12 de um conto de Machado de

12 Estilo musical brasileiro em que o cantor fala ostensivamente de seus bens materiais. Referindo ao conto O
espelho que apresenta um personagem frívolo, preocupado com a opinião alheia, para quem “a felicidade é um
par de botas.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Assis, ou um “funk proibidão”13 à clássica Guerra de Troia narrada por Homero, respeitando
suas construções textuais, reconhecendo-os como textos autênticos e significativos por conta
de sua circulação social. A alteridade é relevante neste contexto de discussão a respeito dos
aspectos relacionados à visibilidade do outro e sobre as questões de etnia, gênero, orientação
sexual e religiosa, que continuam gerando conflitos neste século XXI.

É fundamental o estudo da língua historicamente contextualizado, tendo o professor


de Língua Portuguesa o papel de interpenetrar o universo afro-brasileiro, trazendo inúmeras
referências do campo cultural e comunitário e dos espaços sociais e políticos, repensando a
sociedade com temas relacionados à negritude, à desigualdade social, ao racismo e à
igualdade.

Tornando imperativo fazer do ensino da língua uma resposta contínua aos


questionamentos: a favor de quem? A favor de quê? Como conclui Irandé Antunes (2014).

(...) se as pessoas não ficam mais capazes para – falando, lendo, escrevendo
e ouvindo – atuarem socialmente na melhoria do mundo, pela construção de
um novo discurso, de um novo sujeito, de uma nova sociedade, para que
aulas de português? (ANTUNES, 2014, p.176).

Referência Bibliográfica:

ANTUNES, Irandé. Gramática contextualizada: limpando “o pó das ideias simples”. São


Paulo. Editora Parábola, 2014.
BHABHA,Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
_______________. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo : Hucitec Editora, 2009.
BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin. Magia e Técnica. Arte e Política. São Paulo: Editora
Brasiliense, 2012.
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Editora ouro sobre azul. 2006.
CUTI , Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Editora Contexto, 2014.
DIDI-HUBERMAN, George. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2013.
DUARTE, Eduardo de Assis (Coord.). Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII
ao XX . Rio de janeiro: 2014.
EVARISTO, Conceição. Questão de pele para além da pele.(in) Questão de pele. Rio de
Janeiro: Língua Geral, 2009.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: UFBA, 2008.

13Estilo musical de ritmo funk que traz exaltação ao tráfico de entorpecentes, neste caso, refiro-me especifica -
mente do funk de Mc Didô, que apresenta um episódio (não sei se real) em que um grupo se esconde num ca-
minhão da Light para invadir a favela da Rocinha.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

HALL, Stuart. “The work of representation”. In: HALL, Stuart (org.) Representation.
Cultural representation and cultural signifying practices. London/Thousand Oaks/New Delhi:
Sage/Open University, 1997.
____________.Os condenados da terra. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
GOMES, Ana Cristina da Costa. O sequestro da língua – Jovens negros e o baixo
desempenho em Língua Portuguesa . Nova Iguaçu. COPENE Sudeste, 2015.
__________________________ e RIBEIRO, Luciana. Reflexões pós-coloniais e as
possibilidades de práticas pedagógicas incluídas nas no Parecer que regulamenta a Lei
10.639/03. Vitória: ANPED, 2016.
LIMA, Luiz Costa. Análise sociológica da literatura, vol 2. Rio de Janeiro: Editora
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LUKÁCS, György. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2002.
OLIVEIRA,Carlo Daudt (trad.). A história de Gilgamesh.São Paulo: Editora Martins Fontes,
2009.
PAIVA, Aparecida et al.(orgs.) Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces – o jogo
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SOUZA, Maria Elena Viana. Relações raciais e educação: desafios e possibilidades para a
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http//www.versosnalinhadotempo.wordpress.com/2012/11/21/urucungo-raul-bopp/
Consultado em 28 de agosto de 2015.

A mulher na literatura lusófona- vozes que se aproximam

Ana Maria de Carvalho Leite (FALE/UFMG)


anadecarvalholeite@gmail.com
Lídia Maria Nazaré Alves (UEMG; FACIG)
lidianazare@hotmail.com

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Resumo: os Estudos Literários viabilizam diferentes formas de adentrar o espaço da


lusofonia. Um dos caminhos que se tem seguido é a análise comparada da literatura de
autores de língua portuguesa, para a qual a língua tem sido fator primordial da expressão de
modos de ser. Sendo assim, o foco deste trabalho recai sobre a presença da voz feminina em
romances de épocas e estilos distintos, cujas protagonistas são mulheres que tentam subverter
padrões sociais e literários tradicionalmente estabelecidos. Nosso interesse se justifica
considerando-se a necessidade de inovar a abordagem literária, que tradicionalmente vinha
sendo feita sob a perspectiva do acontecimento histórico (Miranda, 1999). Torna-se
pertinente, então, a realização um trabalho com a Língua Portuguesa na sala de aula que
favoreça a contextualização sociocultural, incluindo o estudo das manifestações literárias
inserido nas práticas de leitura, de modo a observar como a obra literária dialoga com temas
sociais. Nessa perspectiva, na proposta curricular Conteúdo Básico Comum de Língua
Portuguesa (CBC-LP,2008), elaborada pela Secretaria de Estado da Educação de Minas
Gerais, recomenda-se o estudo de Literatura como interlocução, voltado para a interação
entre aluno e texto literário, a partir da qual são construídos conceitos sobre o fazer literário,
seus contextos e especificidades (CBC-LP, 2008, p.15-16). No intuito de fomentar o estudo
literário nesse âmbito, desenvolveu-se o Projeto de Leitura Literária “A mulher na literatura
lusófona- vozes que se aproximam”, que faz parte de um Projeto maior de Pesquisa
desenvolvido na UEMG (unidade de Carangola), denominado Poéticas da Modernidade: um
olhar para a diferença. Com o acompanhamento de alunos do 3º período de Letras, sob a
orientação das autoras supracitadas, o professor de Língua Portuguesa de uma turma do 3º
ano, Ensino Médio, abordou tópico 34 do CBC-LP (2008), cujo tema é “O amor e a mulher”
na literatura brasileira (nesse projeto, incluiu-se literatura portuguesa), com foco nas
diferentes formas de representação da mulher em contextos históricos e literários diferentes
(Beauvoir, 1980; Flax, 1992; Macedo, 1999). A partir das obras literárias Senhora (José de
Alencar), Memorial de Maria Moura (Rachel de Queiroz) e Natália (Hélder Macedo),
propuseram-se atividades em que os alunos deveriam realizar análises comparativas entres as
referidas obras, tendo em vista as seguintes questões: Em que sentido e até que ponto as
personagens subvertem os representações literárias tradicionais? Verificou-se que tais
protagonistas romperam, de certa forma, com os padrões de comportamento, a partir da
reivindicação de uma voz que fala de um outro lugar social.

Palavras-chave: literatura, lusofonia, representação, mulher

1.Introdução

Os Estudos Literários viabilizam diferentes formas de adentrar o espaço da lusofonia.


Um dos caminhos que se tem seguido é a análise comparada da literatura de autores de língua
portuguesa, para a qual a língua tem sido fator primordial da expressão de modos de ser.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Sendo assim, o foco deste trabalho recai sobre a presença da voz feminina em romances de
épocas e estilos distintos, cujas protagonistas são mulheres que tentam subverter padrões
sociais e literários tradicionalmente estabelecidos. Nosso interesse se justifica considerando-
se a necessidade de inovar a abordagem literária, que tradicionalmente vinha sendo feita sob
a perspectiva do acontecimento histórico (Miranda, 1999).

Dessa perspectiva, portanto, torna-se pertinente, a realização um trabalho com a


Língua Portuguesa na sala de aula que favoreça a contextualização sociocultural, incluindo o
estudo das manifestações literárias inserido nas práticas de leitura, de modo a observar como
a obra literária dialoga com temas sociais. Nessa perspectiva, na proposta curricular
Conteúdo Básico Comum de Língua Portuguesa (CBC-LP, 2008), elaborada pela Secretaria
de Estado da Educação de Minas Gerais, recomenda-se o estudo de Literatura como
interlocução, voltado para a interação entre aluno e texto literário, a partir da qual são
construídos conceitos sobre o fazer literário, seus contextos e especificidades (CBC-LP, 2008,
p.15-16).

No intuito de fomentar o estudo literário nesse âmbito, desenvolveu-se o Projeto de


Leitura Literária “A mulher na literatura lusófona- vozes que se aproximam”, que faz parte de
um Projeto maior de Pesquisa desenvolvido na UEMG (unidade de Carangola), denominado
Poéticas da Modernidade: um olhar para a diferença. Com o acompanhamento de alunos do
3º período de Letras, sob a orientação das autoras supracitadas, o professor de Língua
Portuguesa da referida turma abordou o tópico 34 do CBC-LP (2008), cujo tema é “O amor e
a mulher” na literatura brasileira (nesse projeto, incluiu-se literatura portuguesa), com foco
nas diferentes formas de representação da mulher em contextos históricos e literários
diferentes (Beauvoir, 1980; Flax, 1992; Macedo, 1999).

Com base nas leituras das obras: Senhora (José de Alencar), Memorial de Maria
Moura (Rachel de Queiroz) e Natália (Hélder Macedo), propuseram-se atividades em que os
alunos deveriam realizar análises comparativas entres as referidas obras, tendo em vista as
seguintes questões: Em que sentido e até que ponto as personagens subvertem os
representações literárias tradicionais? Verificou-se que tais protagonistas romperam, de certa
forma, com os padrões de comportamento, a partir da reivindicação de uma voz que fala de
um outro lugar social.

2. Pelo viés dos estudos de gênero: um flash na história

Pode-se dizer, grosso modo, que esta crítica volta-se para o estudo de práticas
culturais responsáveis pela construção do Outro. Essa construção vem ocorrendo ao longo da
história através de discursos que marginalizam grande parte da população, dentro da qual se

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

encontra a mulher. A partir dessa realidade urge a necessidade deste estudo devido à
consciência de que

Las formas mediantes las cuales la cultura se habla con palabras e imágenes –
los sistemas de signos que la comunican y las redes de mensajes que la
transmiten socialmente – encarnan y defienden intereses partidistamente
ligados a ciertas representaciones hegemónicas que refuerzan lineamentos de
poder, dominância y autoridad”. 14

Nosso sistema cultural é construído a partir destas representações hegemônicas. Uma


das colunas-mestras de tais representações é a ideologia patriarcal. Foi este sistema cultural
que se incumbiu da formação do mito do gênero: o masculino e o feminino. Esse mito faz-
nos acreditar que a divisão da humanidade em dois gêneros distintos é natural e não
construída socialmente. Essa marginalização acontece também nas práticas culturais tais
como a literatura, jornal, cinema, televisão, rádio, teatro, etc., que se têm encarregado da
construção e/ou reconstrução do gênero. O estudo de tais práticas nos faz perceber que muito
do que parece ser próprio de homens e mulheres, não passam de práticas políticas de poder.
Ainda Nelly Richard:

Las ideologias culturales se encargan de invisibilizar (naturalizar) las


construciones y mediaciones de los signos, para hecemos creer que palabras e
imágenes hablan por si mismas y no por las voces interpuestas y concertadas
de los discursos sociales que históricamente traman sus sentidos. Desocultar
los códigos de transparencia que borran el trabajo significante de las
ideologías culturales, es la primera maniobra de existencia crítica al falso
supuesto de la neutralidad de los signos.15

Embora muitas escritoras tenham optado por reiterar tais ideologias culturais, outras
não o fizeram, preferindo questioná-las. A literatura que acena para este desocultamento,
tanto pelo viés temático quanto pelo viés expressivo-simbólico, contribui com esses estudos
de cunho desconstrucionistas.

14 RICHARD, 1993. p. 11. “As formas mediantes as quais a cultura se faz com palavras e imagens – os sistemas
de signos que a comunicam e as redes de mensagens que a transmitem socialmente – representam e defendem
interesses partidistamente ligados a certas representações hegemônicas que reforçam linhas de poder, domínio e
autoridade”. (tradução nossa)
15
RICHARD, 1993. p. 11. “As ideologias culturais se encarregam de ocultar (naturalizar) as construções e me -
diações dos signos, para fazer-nos crer que palavras e imagens falam por si mesmas e não pelas vozes interpos-
tas e concertadas dos discursos sociais que historicamente tramam seus sentidos. Desocultar os códigos de
transparência que ocultam o trabalho significante das ideologias culturais, é a primeira manobra de resistência
crítica à falsa suposição da neutralidade dos signos”. (tradução nossa)

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Segundo Beauvoir, desde os primeiros tempos do patriarcado, as mulheres encontram-


se em estado de dependência, por isso constituíram-se no Outro. Para melhor legitimar essa
espécie de colonialismo e essa recusa de considerar a mulher como pessoa humana plena, um
seu semelhante, uma gama considerável de mitos foram forjados pelo imaginário masculino,
baseados nas características psicobiologias das mulheres. Esses mitos ao mesmo tempo que
viabilizavam pertencimento às mulheres, delimitavam seus espaços de atuação. Quando nos
voltamos para eles verificamos o quanto eles encurralam a mulher nos apertados limites de
seu próprio corpo e, conseqüentemente nos limites da casa paterna. Beauvoir elucida isso
quando atenta para nossas práticas culturais. Segundo ela:
A mulher á a Bela Adormecida no Bosque, Cinderela, Branca de Neve, a que
recebe e suporta. Nas canções, nos contos, vê-se o jovem partir
aventurosamente em busca da mulher; ele mata dragões, luta contra gigantes;
ela acha-se encerrada em uma torre, um palácio, um jardim, uma caverna,
acorrentada a um rochedo, cativa, adormecida: ela espera [...] Os refrões
populares insuflam-lhe sonhos de paciência e esperança. A suprema
necessidade para a mulher é seduzir um coração masculino; mesmo intrépida,
aventurosas, é a recompensa a que todas as heroínas aspiram; e o mais das
vezes não lhes é pedida outra virtude senão a beleza. 16

Tal estratégia de colonização só se torna possível depois de “um extraordinário


trabalho coletivo de socialização difusa e contínua que as identidades distintivas que a
arbitrariedade cultural institui se encarnam em habitus”.17 Esse termo foi usado por Bourdieu
para denotar a oposição entre os gêneros “isto é, como habitus viril, e portanto não feminino,
ou feminino, e portanto não masculino”.18 Incorporado esse habitus, cada gênero procura
responder às especificidades que lhes foram atribuídas, ingressando assim no sistema de
sexo-gênero no qual estamos inseridos todos.

A partir dessa estratégia política, estavam lançadas as bases de um sistema de


genderização cultural. Dois gêneros foram formados: masculino/feminino, ancorados nos
pares biológicos homem/mulher. Lançadas tais bases, coube às práticas culturais tão somente
“zelar”, assim entre aspas, para que a posteridade lhe fizesse eco.19 Como lembrou Nelly
Richard. 20

16 BEAUVOIR, 1970. p. 33-4.

17 BOURDIEU, 1999. p. 34.

18 Segundo Bourdieu os gêneros têm apenas uma existência relacional sendo cada qual produto de um trabalho
diário, ao mesmo tempo prático e teórico à sua produção como corpo socialmente diferenciado do gênero opos-
to (BOURDIEU, 1999:33).

19 Bourdieu lembra que “inscrita nas coisas, a ordem masculina se inscreve nos corpos através de injunções táci -
tas, implícitas nas rotinas da divisão do trabalho ou dos rituais coletivos ou privados” (BOURDIEU, 1999:34).

20 Cf. nota 3 da Introdução desta dissertação.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Assim podemos dizer que a “nudez” do primeiro par biológico criado, homem/mulher
é agora “vestida” pelo processo de genderização cultural, masculino/feminino. Essa nova
“roupagem” caiu-lhes tão bem, que por muito tempo não se pôde diferençar uma coisa da
outra. Explico-me melhor, masculino passou a ser condição para que se fosse homem e
feminino passou a ser condição para que se fosse mulher. Entretanto, quem define os
predicativos o faz de maneira subjetiva e a partir de estereótipos que nem todos podem
alcançar. Hoje, quando preconizamos (des) historicizar tal questão, destacando-lhes as partes,
para estudarmos os processos culturais de sua construção, porque nos beneficia, somos
incompreendidos e muitas vezes satanizados, uma vez que há sempre os que objetariam que
inúmeras mulheres romperam com as normas pré-estabelecidas pela tradição. Conscientes
desse fato precisamos indagar sobre até que ponto essa ruptura, essa libertação não
continuam subordinadas ao ponto de vista masculino.

Embora estejamos conscientes de que uma exposição teórica sobre o assunto seja
complexa, pretendemos levar esse estudo até os limites de nossa compreensão desse processo
de genderização cultural, porque acreditamos que, em alguns aspectos, tal processo impediu e
ainda impede que muitas mulheres, a maioria delas, construíssem suas próprias identidades.
Por fazermos parte de uma minoria que tem acesso a tal informação, vislumbramos a quebra
do silêncio a que fomos submetidas, servindo de ponte para aquelas (aqueles) que ignoram tal
saber, através do nosso discurso e da nossa dissertação. Assim estaremos fazendo eco à meta
básica da teoria feminista que, segundo Jane Flax:

[...] é (e deve ser) analisar as relações de gênero: como as relações de gênero


são constituídas e experimentadas e como pensamos ou, igualmente
importante, não pensamos sobre elas. O estudo das relações de gênero inclui
temas que são em geral considerados caracteristicamente feministas, mas não
se limita a eles: a situação das mulheres e a análise da dominação masculina.
A teoria feminista inclui também um (pelo menos implícito) elemento
prescritivo. Através do estudo do gênero, esperamos alcançar um
distanciamento crítico em relação aos arranjos de gênero existentes. Esse
distanciamento crítico pode ajudar a desobstruir um espaço no qual a
reavaliação de nossos arranjos de gênero existentes se tornem mais
possíveis.21

À luz dos teóricos que expusemos até o momento e de outros, que citaremos
oportunamente, e ainda resgatando o olhar de Jane Flax, procuraremos refletir nesse artigo
sobre o modo como as relações de gênero são constituídas e experimentadas.

3. A criação do gênero na literatura brasileira

21
BUARQUE DE HOLLANDA (Org.). 1992, p. 217.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

À luz do que vimos até aqui, já podemos diferençar sexo e gênero. Recordamos que o
primeiro relaciona-se às diferenças biológicas, mais especificamente anatômicas entre o
corpo do homem e da mulher, sendo o segundo produto de uma construção social. Este foi
predicado de forma tão eficiente àquele que por pouco não nos damos conta da diferença
entre ambos.
O gênero, enquanto um constructo social, arrasta consigo a faculdade de oferecer
pertencimento a ambos os sexos. Isso devido as suas especificidades que, se bem
orquestradas (queremos dizer de forma equilibrada) promoveriam a satisfação plena do
homem e da mulher. Para alcançarmos esse ideal urgiria a compreensão de que cada sexo é
um modo de ser da pessoa humana devendo, por isso, realizar-se (cada qual) de forma plena e
integrada.

O mito criacionista lança luz sobre esse aspecto da vida humana, sobre essa
necessidade de realização e integração. Adão não era feliz no paraíso porque lhe faltava o
sexo oposto, Jeová cria-lhe uma companheira, Eva. Diante dela Adão rejubila e agradece. A
realização plena de ambos deve ser permitida, cada um respeitando a originalidade do outro.
A cena original da sexualidade aponta para a necessidade do relacionamento afetivo entre os
opostos. Obviamente não pretendemos absolutizar a sexualidade, colocando-a como condição
única para a realização plena do ser, mas acreditamos que ela seja uma peça importante no
jogo dessa realização. É possível que ela esteja relacionada com a originalidade a que nos
referimos anteriormente.

Contudo, a hierarquia existente entre os opostos instiga-nos a voltar o nosso olhar


para o caráter contingente e arbitrário da construção do gênero. No lugar do esperado
pertencimento, observamos que as mulheres parecem cada vez mais alienadas nos limites de
seu próprio corpo. Referimo-nos sempre ao corpo porque, conforme lembra Bourdieu, é ele
que o mundo constrói como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e
divisão sexualizantes.

De fato, quando voltamos nosso olhar para a literatura brasileira notamos que é no
corpo que esta procura inscrever a diferença entre os sexos biológicos, “conformando-a aos
princípios de uma visão mítica do mundo enraizada na relação arbitrária de dominação dos
homens sobre as mulheres”22, caso em que a diferença biológica justifica, por assim dizer, a
diferença socialmente construída.

4. A voz da mulher em diferentes contextos: Aurélia, Maria Moura e Natália


Tendo por base os estudos sobre gênero supracitados, procuramos neste trabalho
relacionar diferentes formas de representação da mulher, em contextos históricos e literários

22 BOURDIEU, 1999. p. 20.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

diferentes. Por meio da leitura e das análises comparativas das obras Senhora (José de
Alencar), pertencente ao Romantismo; Memorial de Maria Moura (Rachel de Queiroz), obra
modernista, e Natália, de Hélder Macedo, representativa da literatura contemporânea
portuguesa. Os principais objetivos são reconhecer, nas referidas obras os conflitos e formas
de resistência do feminino, bem como a perpetuação de determinados discursos sobre a
mulher e o silenciamento de suas vozes.

Em Senhora, Jose de Alencar apresenta um mulher autônoma que subverte o sistema,


esta é uma personagem que desafia a sociedade da época, por sua determinação e
incompatível com figura e padrão feminino da época, trata-se de uma personagem que
pretende reajuste social, onde o foco e mostra o relacionamento pessoal com as diferenças. O
estereótipo utilizado por Jose de Alencar ao construir sua protagonista foi o mestiçado.
Aurélia era nascida no Brasil, mas possuía características europeias. É descrita pelo autor
como mulher muito bela, elegante, rica, formosa, jovial com hábitos finos, personalidade
forte, calculista, sarcástica e irônica. Era um ser percebido por todos e um ser para o outro,
sendo rico e bela sempre chamava a atenção. Jose de Alencar deixa explícita a capacidade
intelectual de Helena, provando que ela é, sim, muito inteligente e forte.

Era uma expressão fria, pausada, inflexível, que jaspeava sua beleza, dando-
lhe quase a gelidez da estátua. Mas no lampejo de seus grandes olhos pardos
brilhavam as irradiações da inteligência. Operava-se nela uma revolução. O
princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para
concentrar-se no cérebro, onde residem as faculdades especulativas do
homem (pag.31).

Percebe-se que o autor dá voz à mulher, pelo fato de Aurélia ser a própria
administradora de sua vida e sua riqueza, algo incomum na sociedade da época. Outra ironia
é Fernando que no passado abandonou Aurélia devido a sua pobreza, porém acabou sendo
comprado por ela, ou seja, vê-se aqui algo desafiador para a época uma mulher que compra
um marido, vive de aparências e o trata mal na intimidade, até que este prove que mudou e
que é digno do amor de Aurélia que se entrega a ele. A personagem desafia a sociedade da
época com atitudes inovadoras e tem um final feliz. Aqui a obra traz um pensamento
moderno, onde a mulher assume as decisões de sua vida e consegue superar os obstáculos e
sobreviver no final.

Ao contrário da narração tradicional, observa-se em “Memorial de Maria Moura”, a


presença de três núcleos narradores, que contam a história de acordo com seus respectivos
pontos de vista: Maria Moura e os primos, Tonho e Irineu, com os quais ela disputa a
herança. Padre José Maria que abandona a batina e torna-se o Beato Romano. O casal
Marialva e Valentim, e a vida de ambos no circo em que trabalham. A protagonista maior é

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Maria Moura, cuja personalidade pode ser revelada pela fala de Irineu: “O diabo é que a
Maria Moura, apesar de nova, não vai dar facilidade. Ela tem um jeito de encarar a gente que
parece um homem, olho duro e nariz pra cima, igual mesmo a um cabra macho” (pág. 50) e
ainda: “...A cabrita é capaz de se defender até de faca. A maneira dela é de mulher que
carrega punhal no corpete; ou não seria tão atrevida.” (Pág.50) ou pela própria boca de Maria
Moura: “- Aqui não tem mulher nenhuma, tem só o chefe de vocês. Se eu disser que atire,
vocês atiram; se eu disser que morra é pra morrer. Quem desobedecer paga caro...” (pág. 84).
A própria Maria se anuncia desafiante:
Nunca se viu mulher resistindo à força contra soldado. Mulher, pra homem
(...) só serve para dar faniquito. Pois, comigo eles vão ver. E, se eu sinto que
perco a parada, vou-me embora com meus homens, mas me retiro atirando. E
deixo um estrago feio atrás de mim. (...) pra ninguém mais querer botar o pé
no meu pescoço (pág. 92).

Passando agora ao território português, temos a surpreendente narrativa de Hélder


Macedo – Natália. O romance é organizado em forma de diário, no qual a protagonista
Natália descreve seus dias cheios de interrogações sobre o fazer literário e sua própria
identidade. Dessa forma, a personagem adentra seu passado, a fim de encontrar suas origens,
cada vez mais confusas: “escrever alguma coisa que faça sentido é mais complicado do que
eu julgava, Senhor Escritor da Entrevista” (MACEDO, 2010). A dificuldade com essa escrita
faz com que Natália abandone seu diário. Após esse distanciamento, alguns anos se passam e
Natália volta aos seus registros e consegue construir os sentidos de sua vida.

Vemos assim, que as personagens das obras que selecionamos como corpus de
análise para o projeto que aqui descrevemos são protagonistas que conseguem se desenredar
das amarras opressoras impostas ao gênero. Ao invés de aparecerem submissas,
desempenham papéis importantes e conquistam a própria voz, ao desafiarem o domínio
masculino da sociedade patriarcal.

5. Literatura e ensino – um olhar crítico sobre a obra literária

A literatura como objeto didático é um discussão frequente e exige profunda reflexão


metodológica. O que pretendemos ao abordar o texto literário na sala de aula? Se por um lado
ainda vigoram os modelos tradicionais de ensino da literatura, pautados pela história literária,
por outro, crescemos questionamentos ao tradicionalismo, que se traduzem em novas
experiências com as obras literárias, que desenvolvam o espírito crítico e a capacidade de
análise dos alunos. Diante desse quadro, que enfoque adotar no ensino da literatura? Na
proposta curricular Conteúdo Básico Comum de Língua Portuguesa (CBC-LP,2008),
elaborada pela Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais, recomenda-se o estudo de
Literatura como interlocução, voltado para a interação entre aluno e texto literário, a partir da
qual são construídos conceitos sobre o fazer literário, seus contextos e especificidades (CBC-

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

LP, 2008, p.15-16). No intuito de fomentar o estudo literário nesse âmbito, desenvolveu-se o
Projeto de Leitura Literária “A mulher na literatura lusófona- vozes que se aproximam”, que
faz parte de um Projeto maior de Pesquisa desenvolvido na UEMG (unidade de Carangola),
denominado Poéticas da Modernidade: um olhar para a diferença. Com o acompanhamento
de alunos do 3º período de Letras, sob a orientação das autoras supracitadas, o professor de
Língua Portuguesa da referida turma abordou o tópico 34 do CBC-LP (2008), cujo tema é “O
amor e a mulher” na literatura brasileira (nesse projeto, incluiu-se literatura portuguesa), com
foco nas diferentes formas de representação da mulher em contextos históricos e literários
diferentes (Beauvoir, 1980; Flax, 1992; Macedo, 1999). Com base nas leituras das obras:
Senhora (José de Alencar), Memorial de Maria Moura (Rachel de Queiroz) e Natália (Hélder
Macedo), propuseram-se atividades em que os alunos deveriam realizar análises
comparativas entres as referidas obras, tendo em vista as seguintes questões: Em que sentido
e até que ponto as personagens subvertem os representações literárias tradicionais?

Para melhor visibilidade do projeto, apresentamos o plano geral das atividades.

NOME DO PROJETO

“A mulher na literatura lusófona- vozes que se aproximam”

SÉRIE: 3º ano/Ensino Médio TEMPO DE DU-


RAÇÃO: 06 aulas

DISCIPLINAS ENVOLVIDAS: Literatura/Língua Portuguesa

PARTICIPANTES: Dezoito alunos, professora de Língua Portuguesa, alunos do 3º


período de Letras/UEMG

OBJETIVOS:

● Comparar representações da mulher em textos literários de épocas diferentes


da história literária brasileira.

● Reconhecer, em textos literários apresentados, conflitos e formas de resistên-


cia do feminino.

● Reconhecer, na perpetuação de determinados discursos sobre a mulher e o si-


lenciamento de suas vozes.

● Estabelecer relações intertextuais entre um texto literário e uma outra mani-


festação cultural sobre o amor e/ou a mulher.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

TEXTOS BASES

Senhora, de José de Alencar

Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz

Natália, de Hélder Macedo

ETAPAS DO PROJETO

1. Socialização do projeto entre alunos e professores

2. Contato com as obras e construção do contexto histórico-literário das mesmas

3. Leitura e análise das obras

Identificar nas obras analisadas as marcas discursivas e ideológicas do estilo


de época e seus efeitos de sentido;

Relacionar características discursivas e ideológicas de obras ao contexto histó-


rico de sua produção, circulação e recepção;

Estabelecer relações intertextuais entre as obras analisadas e outras manifes-


tações literárias e culturais de épocas diferentes

Posicionar-se, como pessoa e como cidadão, frente a valores, ideologias e

Propostas estéticas representadas nas obras analisadas;

4. Resultados e discussão

Debates

Seminários

Quadro produzido pelas autoras

7. Considerações finais

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contemporâneas

A realização do projeto “A mulher na literatura lusófona- vozes que se aproximam”


veio consolidar a ideia de que o texto literário é permeado por diversas vozes, sejam elas
estilísticas, linguísticas ou ideológicas. Abordada na sala de aula a partir de uma leitura mais
reflexiva, a obra literária é capaz de revelar ao aluno, pelas vozes de seus personagens, em
diferentes contextos, posicionamentos políticos, sociais e filosóficos. Embora a literatura
ainda, em muitos momentos, seja tratada na sala de aula nos limites da superficialidade
estética, nota-se que é possível realizar um trabalho que leve em conta o papel do aluno como
sujeito ativo, capaz de mergulhar nas profundezas do fazer literário. Buscou-se, por esse
ângulo, uma interação entre o texto literário e a dimensão sociocultural, especificamente
sobre as representações da mulher em diferentes contextos literários.

Conforme apresentamos os pressupostos teóricos que fundamentaram esse projeto,


reiteramos que a teoria literária pode e deve subsidiar a prática pedagógica, a fim de
desenvolver nos alunos a capacidade de compreender o texto literário como lugar de
manifestação de ideologias, posicionando-se, como pessoa e como cidadão, frente a qualquer
manifestação preconceituosa e opressora que encontre representação em obras literárias. Por
fim, acreditamos, sem a menor dúvida, que um trabalho dessa natureza possa contribuir para
que o aluno compreenda a literatura como forma de conhecimento do mundo e de si mesmo.

8. Referências

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. v. 1 e v. 2. 9ª. ed. Trad. Sérgio Milliet. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1999.
CÂNDIDO, Antônio. A educação pela noite: e outros ensaios. São Paulo: Editora Unicamp,
2009.
DEL PRIORE, Mary (Org.); BASSANESI, Carla (Coord. de texto). História das mulheres no
Brasil. 8. Ed. São Paulo: Contexto, 2006.
FLAX, Jane. Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista. Trad. De C.A.C.
Moreno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (Org.). Pós-modernismo e política, 2ª. ed.
Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica
da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
MACEDO, Helder. Natália. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010.
MINAS GERAIS. Conteúdo Básico Comum – Proposta curricular de Português/Educação
Básica. Belo Horizonte: SEE, 2008
PERRONE-MOISÉS, L. O ensino da literatura. In: NITRINI, S. Literatura, artes e saberes.
São Paulo: Abralic/Hucitec, 2008. p. 15.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

RICHARD, Nelly. Masculino/ Feminino: práticas de la diferencia y cultura democrática.


Santiago: Francisco Zegers Editor, 1993.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva – Secretaria da
cultura, ciência e tecnologia. 1978.
SANTIAGO, Silviano. A aula inaugural de Clarice. In: MIRANDA, Wander (Org.).
Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

Memória do mundo oculto: o rastro contemporânea da resistência judaica


na modernidade portuguesa

Prof. Dr. Angelo Adriano Faria de Assis


Universidade Federal de Viçosa (UFV)
angeloassis@ufv.br

A história é um romance verdadeiro.


Paul Veyne, Como se escreve a História.

Todas as biografias são ficção.


Todos os romances têm biografias dentro de si.
Mário Cláudio. “Sou incapaz de desinventar completamente uma vida”.
Entrevista ao jornal Público (29/06/2011).

Os rastros das letras: dimensões da memória

No início do século XX, a ciência histórica experimentaria um processo de transfor-


mações que permitiriam um novo olhar sobre o passado e o reformular do devir histórico. O
principal marco destas mudanças seria, a partir da França, o movimento dos Annales, cele-
brado pela publicação da revista de mesmo nome, iniciada em 1929. Capitaneado por Marc
Bloch e Lucien Febvre, “pais fundadores” dos Annales, o movimento teria papel fundamental
no processo de ressignificação do trabalho do historiador ao modificar a noção de fonte do-
cumental e da abrangência e prática históricas, possibilitando, posto que tudo é História, per-
ceber quaisquer rastros deixados pelo homem como material passível de análise.

Esta Nova História permitia fazer, assim, contraponto ao modus operandi então domi-
nante, de uma historiografia mais tradicionalista que ganhou forma e peso no Novecentos,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

influenciada pelos ideais positivistas, e que, em linhas gerais, fixava a compreensão do pas-
sado à análise de documentos oficiais, escritos legitimados pelas classes dominantes e pelo
poder, e que limitavam o campo de trabalho historiográfico ao olhar dos vencedores, dos
grandes eventos e modelos explicativos, dos nomes e personagens de destaque, prezando pela
objetividade das análises, deixando ao largo a preocupação com as camadas menos privilegi-
adas e fatos considerados pouco relevantes, marginalizados e excluídos da História.

Com os Annales, abria-se o leque de interpretações a novas fontes e tipos de docu-


mento, a personagens até então esquecidos ou invisíveis, ao surgimento de áreas de pesquisa
e debates estranhos ou desprestigiados, e a uma nova preocupação com as relações e aproxi-
mações entre a História e os demais campos do conhecimento. Percebia-se, na prática, que os
seguidores de Clio não possuíam o monopólio sobre o passado, e que outras ciências poderi-
am, a partir de seus interesses próprios e especificidades, utilizando teorias, metodologias e
ferramentário próprios, também ajudar no desvelar de questões acerca das ideias, vivências e
ações dos homens em outros tempos.
A importância do movimento, que influenciaria os rumos da História desde os seus
primórdios, foi bem definido pelo historiador inglês Peter Burke, que nomeou uma de suas
mais importantes obras com expressão que resume a dimensão dos rumos difundidos pelos
Annales: “The French Historical Revolution” - “A Revolução Francesa da historiografia” -,
em contraponto ao momento anterior, verdadeiro “Antigo Regime” das análises históricas23...
O próprio Bloch, em seu Apologie pour l’histoire, ou Métier d’un historien, que, em sua tra-
dução para o português e em edição brasileira, intitulou-se Apologia da História ou o ofício
do historiador, já indicava que o banquete da História está no homem, e é por ele – e para ele
– que a História se tece e faz:
Há muito tempo, com efeito, nossos grandes precursores, Michelet, Fustel de
Coulanges, nos ensinaram a reconhecer: o objeto da história é, por natureza, o
homem. Digamos melhor: os homens. Mais que o singular, favorável à abstra-
ção, o plural, que é o modo gramatical da relatividade, convém a uma ciência
da diversidade. Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, [os artefa-
tos ou as máquinas,] por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as
instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram, são os
homens que a história quer capturar. Quem não conseguir isso será apenas, no
máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o ogro da
lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça” 24.

E esta “caça” promovida pela História ganhou, com o advento dos Annales, possibili-
dades variadas, proporcionando aos historiadores – os “ogros” a que se refere Bloch – refi-

23BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Edi -
tora da UNESP, 1989.
24
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.
54.

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contemporâneas

namento científico no trato com seu objeto de trabalho: se tudo que faz referência ao homem
é História, os indícios, fontes e provas documentais passam a se multiplicar ao infinito. Cabe,
então, bom senso ao selecionar e dar voz às suas presas…

Uma destas fontes, das mais profícuas e que aqui torna-se foco desta análise, são os
escritos literários. Seja em formato de relatos de experiências ocorridas, seja através de textos
ficcionais, o certo é que a Literatura tem se firmado como parceria das mais pujantes para a
análise histórica. Uma aliança, cabe frisar, que não ocorre em mão única, mas antes, envolve
rotinas de circularidade, a troca de experiências entre os dois campos que, não raro ainda des-
conhecidos entre si ou vitimados pelos preconceitos de ambas as partes, reconhecem-se tão
próximos e complementares: se a Literatura é cara à História por ajudar na reconstrução das
lacunas deixadas pelas fontes, permitindo imaginar não o que exatamente foi (tarefa impos-
sível, é bom frisar) mas, ao menos, atingir a proximidade com o que pode ter sido, os sinto-
mas de um passado que se percebe mas do qual não se pode ter a completude pelos limites
impostos pela fonte documental, também a História faz-se fundamental aos escritores literá-
rios que utilizam da sua produção para uma reconstrução de época e ambientação de suas nar-
rativas mais próximas do fidedigno. Prova desta proximidade e colaboração mútua entre os
dois campos é a recorrência, em romances contemporâneos, de vasta citação de fontes docu-
mentais e bibliografia produzida por historiadores consultadas pelos romancistas para a com-
posição do ambiente, dos personagens e do enlace das narrativas. Autores como os portugue-
ses José Saramago e Mário Cláudio, o angolano Pepetela, e as brasileiras Ana Miranda e
Mary del Priore recorrem a esta estratégia em várias de suas obras25 . Ou, ao contrário, da uti-
lização de trechos de escrita ficcional por historiadores que auxiliam em sua descrição do
passado26.

Com exemplo de como representantes atuais das duas áreas enxergam estas interações
pode se perceber nas falas de Ana Miranda e Sandra Jatahy Pesavento. Para a romancista Ana
Miranda,
Eu não trabalho propriamente com a História – a arte, a ciência da História. Eu
não sou uma historiadora. Nós trabalhamos com a mesma matéria. Agora, nós
nos relacionamos com ela de maneira diferente. O historiador precisa ficar
isento, permanecer de fora do material para ter capacidade de fazer as análises,
não é? Ele tem de discernir da forma mais lógica, mais racional possível, aque-
le material que está sendo examinado. O ficcionista não: ele tem que mergulhar

25É o caso, por exemplo, dos romances históricos Memorial do Convento, de José Saramago (1982); Oríon
(2003), de Mário Cláudio; A Gloriosa Família: o tempo dos flamengos (1997), de Pepetela; Desmundo (1996) e
Amrik (1997), de Ana Miranda; O Príncipe Maldito (2006) e Beije-me onde o sol não alcança (2015), de Mary
del Priore.
26Referência recente, neste sentido, é o livro de Yllan de Mattos, A Inquisição Contestada, em que o autor utili -
zada, logo no início de sua introdução, trechos do clássico Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévisk, para
descrever o alvoroço popular gerado com a ação dos representantes do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição
na Modernidade. MATTOS, Yllan de. A Inquisição Contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português
(1605-1681). Rio de Janeiro; Mauad, 2014.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

naquilo, transformar aquele material. Eu tenho que ser aqueles personagens


porque senão eu não realizo o meu trabalho. Se eu ficar de fora, não escrevo. A
postura é exatamente contrária. Tempos atrás, em um debate nos EUA, eu disse
uma frase que tem tudo a ver com isso que estamos conversando agora: os his-
toriadores são ficcionistas que fingem que estão dizendo a verdade, e os ro-
mancistas são historiadores que fingem que estão falando uma mentira 27.

A historiadora Sandra Jatahy Pesavento, por sua vez, afirma:


Assim, literatura e história são narrativas que têm o real como referente, para
confirmá-lo ou negá-lo – construindo sobre ele uma outra versão –, ou ainda
para ultrapassá-lo. Como narrativas, são representações que se referem à vida e
que a explicam. Mas, dito isso, que parece aproximar os discursos, onde está a
diferença? Quem trabalha com história cultural sabe que uma das heresias atri-
buídas a essa abordagem é afirmar que a literatura é igual à história...
A literatura é, no caso, um discurso privilegiado de acesso ao imaginário das
diferentes épocas. No enunciado célebre de Aristóteles, em sua Poética, ela é o
discurso sobre o que poderia ter acontecido, ficando a história como a narrativa
dos fatos verídicos. Contudo, o que vemos hoje, em nossa contemporaneidade,
são historiadores que trabalham com o imaginário e que discutem não só o uso
da literatura como acesso privilegiado ao passado – logo, tomando o não acon-
tecido para recuperar o que aconteceu! – mas colocam também em pauta a dis-
cussão do próprio caráter da história como uma forma de literatura, ou seja,
como narrativa portadora de ficção28!

Cabe lembrar, porém, que, apesar de ser cada vez mais comum que romancistas e his-
toriadores usem obras de ambas as áreas em seus processos de escrita, desde muito antes do
advento dos Annales algumas experiências neste sentido já eram realizadas por autores cele-
brados no Novecentos, como Alexandre Herculano e Machado de Assis, só para ficar em
exemplos em língua portuguesa. Herculano dividir-se-ia entre a produção ficcional e a narra-
tiva histórica, escrevendo desde análises pioneiras e de densa pesquisa historiográfica, como
a História de Portugal (1846-1853), a História da Origem e Estabelecimento da Inquisição
em Portugal (1854-1859), e a Portugaliae Monumenta Historica (1856-1873). Mas também
produziu vasta obra ficcional, em boa parte influenciada por temas e fontes históricas, como
Eurico, o Presbítero (1844) e Lendas e Narrativas (1851). Machado, por sua vez, produziu
romances e crônicas que espelhavam a sociedade em que vivia em suas mazelas, o que pode
ser percebido em seu clássico Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). A História também
se faz presente em temáticas abordadas em seus poemas, como se percebe em Americanas,
obra poética publicada em 1875, em especial, no poema “A cristã-nova”, em que o autor

27 MIRANDA, Ana. “A Arte de fingir que se mente”. (www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/a-arte-de-


fingir-que-se-mente). Acesso em 03 de agosto de 2016.
28
PESAVENTO, Sandra Jatahy. “História, Literatura e Cidades: diferentes narrativas para o campo do patrimô -
nio” In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Número 34, 2012, p. 401.

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contemporâneas

aborda o drama dos judeus transformados em cristãos-novos e a perseguição que sofreram da


Inquisição portuguesa durante a Modernidade.

Embora a contemporaneidade esteja recheada de exemplos neste sentido, o que aqui


nos interessa são outros tipos de escrita, produzidas em outra época e com foco específico:
textos produzidos na Modernidade por indivíduos que foram pessoalmente vitimados, pre-
senciaram ou ouviram relatos sobre a perseguição a judeus e mouros na Península Ibérica en-
tre fins do século XV e as últimas décadas do Setecentos.

Antes de tudo, porém, recorramos à História. No último quartel do século XV, a Pe-
nínsula Ibérica vivenciaria o processo de monopólio da fé católica e, em consequência, a
proibição e repressão a qualquer crença ou prática religiosa que fosse considerada uma amea-
ça ao Catolicismo dominante. Primeiro, na Espanha, com a instauração do Tribunal do Santo
Ofício em Castela, no ano de 1478, e a posterior expulsão dos judeus e mouros, em 1492,
concluindo o processo de Reconquista sob o reinado de Isabel de Castela e Fernando de Ara-
gão. Com a unificação, considerável parcela dos judeus espanhóis, aproveitando-se da pro-
ximidade geográfica, da longa fronteira seca e dos laços com as comunidades judaicas portu-
guesas, atravessaram a fronteira lusa, e fixaram-se em no lado lusitano da Ibéria. Com a che-
gada dos judeus espanhóis, estima-se que os a comunidade judaica passou a corresponder por
cerca de 10 a 15 por cento da população do reino, cerca de cem a cento e cinquenta mil pes-
soas do total de um milhão de portugueses. Números altíssimo, que dão conta da importância
e da influência que os judeus exerceram na Lusitânia.

Poucos anos depois, os judeus sofreriam novo revés e uma segunda diáspora ibérica:
os interesses envolvendo o matrimônio do monarca português com a infanta espanhola daria
novo viés ao problema: uma das exigências para o casamento seria a implantação em Portu-
gal, aos moldes do que ocorrera na Espanha, do monopólio católico, o que levou D. Manuel I
a fixar prazo de dez meses para que judeus e mouros deixassem o reino. Findo o prazo, ao
invés de facilitar a saída dos judeus do reino, monarca os batizou forçadamente ao catolicis-
mo, transformando-os em batizados em pé, neoconversos ou cristãos-novos – para que fos-
sem assim diferenciados dos cristãos de origem.

O fato é que considerável parcela destes neoconversos continuariam a manter, em se-


gredo, no oculto do lar, as práticas, crenças e vivencias da Lei Mosaica, sendo por isso deno-
minados de judeus ocultos ou criptojudeus, principal motivação para a instauração em Portu-
gal, cerca de quatro décadas após o processo de expulsão dos judeus e mouros de Portugal, de
um tribunal religioso que atuasse como vigilante das questões de fé e da prática religiosa ca-
tólica, julgando aqueles que fossem vistos como ameaça à pureza cristã. Os cristãos-novos,
suspeitos indiscriminadamente de judaizar em segredo,

Depois de anos de negociação e de idas e vindas com o Papado, em 1536, seria, en-
fim, instaurado o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em Portugal, responsável por zelar

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pela pureza e boa norma cristãs e perseguir aqueles considerados hereges. Os cristãos-novos -
antigos judeus batizados à força ao catolicismo -, suspeitos de judaizar em segredo, seriam,
ao mesmo tempo, o motivo primeiro para a implementação do Santo Ofício e as suas princi-
pais vítimas. Dos mais de quarenta mil processos do Tribunal do Santo Ofício português de-
positados no Arquivo Nacional da Torre o Tombo, em Lisboa, estima-se que mais de oitenta
por cento destes envolva acusações de prática de judaísmo. Dentre estes casos, chama a aten-
ção o papel exercido pelas mulheres na propagação da memória da fé dos antepassados. Seri-
am as mulheres as grandes responsáveis por repassar os ensinamentos judaicos às novas ge-
rações, exercendo, concomitantemente, as funções de mãe, professora, catequista e “rabina”.
Ensinavam o judaísmo ao mesmo tempo em que ensinavam as primeiras letras, enquanto cui-
davam dos variados afazeres domésticos, educando as novas gerações na “cultura do silên-
cio” e no “costume do segredo”, para que não fossem delatados por parentes, vizinhos, ami-
gos, inimigos e até mesmo desconhecidos... Um judaísmo limitado, oculto, diminuto, dissi-
mulado, feminino, oral, simplificado, longe das tradições, adaptado à nova realidade de ex-
clusão e proibição, sem rabinos, textos sagrados, festas públicas e propagação aberta dos en-
sinamentos, desconhecedor de determinadas regras e condutas, não raro permeado de práticas
não judaicas. Mas, enfim, o judaísmo possível, que permitiu sua resistência em ambiente de
total impedimento durante os séculos em que vigorou este quadro de exceção.

Este período de proibição religiosa e de exclusão dos judeus do mundo ibérico e de


seus domínios foi descrito tanto por cronistas e escritores de época em obras que, para além
do peso literário, permitem perceber a resistência e continuidade das ideias e comportamentos
presenciados ou vividos por muitos destes escritores. Aqui, em especial, nos interessam obras
literárias de escritores a darem conta do problema judaico e cristão-novo na Modernidade.

Memórias contemporâneas: supor o passado entre o ficto e facto


Distanciada no tempo e, portanto, do clima de perseguição inquisitorial, a literatura
contemporânea - portuguesa e brasileira - tem recuperado a temática cristã-nova, atrelada a
outras possibilidades de interpretação, que vinculam o drama judaico a situações várias de
opressão e resistência.

Não são poucos, nos últimos anos, os lançamentos de romances que usam as perse-
guições religiosas do período Moderno, o problema da expulsão dos judeus de Portugal e o
Santo Ofício e suas vítimas como pano de fundo. No Brasil, Dias Gomes foi um dos pionei-
ros, com a peça O Santo Inquérito, encenada prima volta em 1966, nos primórdios da Ditadu-
ra Militar instaurada no Brasil dois anos antes. Gomes perfila o drama da cristã-nova Branca
Dias, nome de uma das mais conhecidas vítimas da Inquisição no Brasil, seguidamente de-
nunciada durante a primeira visitação inquisitorial ao Brasil, mesmo já sendo morta à época,
e que se tornou figura mitológica e emblemática para a memória da presença neoconversa no

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contemporâneas

Nordeste brasílico29. O processo contra Branca Dias – bem como os processos envolvendo
outros membros da sua família – encontra-se nos arquivos da Torre do Tombo, e pode ser
consultado em versão digitalizada no portal de pesquisas da instituição30. Misturando infor-
mações históricas e mitológicas sobre a personagem, o autor usa a intolerância inquisitorial
para dar voz ao silenciamento das ideias diversas do pensamento dominante e à falta de liber-
dade vivenciados no regime militar que denunciava:

O mais importante é que eu sinto a presença de Deus em todas as coisas que me


dão prazer. No vento que me fustiga os cabelos, quando ando a cavalo. Na água
do rio, que me acaricia o corpo, quando vou me banhar. No corpo de Augusto,
quando roça no meu, como sem querer. Ou num bom prato de carne-seca, bem
apimentado, com muita farofa, desses que fazem a gente chorar de gosto. Pois
Deus está em tudo isso. E amar a Deus é amar as coisas que Ele fez para o nos-
so prazer. [...] Deus deve estar onde há mais claridade, penso eu. E deve gostar
de ver as criaturas livres como Ele as fez, usando e gozando essa liberdade,
porque foi assim que nasceram e assim devem viver31.

Mais recentemente, outros autores percorreram a temática das perseguições religiosas


movidas pelo Santo Ofício em terras brasílicas. Em 1993, Luzilá Ferreira publicou Os Rios
Turvos32, espécie de bibliografia romanceada de Bento Teixeira, nosso escritor primaz, autor
da Prosopopeia, denunciado durante a primeira visitação da Inquisição ao Brasil, entre 1591
e 1595, e processado por culpas de judaísmo. O livro começa com trecho da confissão de
Bento à mesa da visitação. Ao longo do romance, aparecem várias informações sobre a vida o
perfil de Bento Teixeira e de sua esposa Filipa que se encontram em seu processo, o que de-
monstra a pesquisa histórica feita pela autora para a caracterização do personagem e recons-
trução de sua trajetória.

Já Moacyr Scliar, em Na noite do ventre, o diamante 33, obra publicada em 2005, traça,
a partir, da trajetória de uma pedra preciosa, a representatividade do mito do “judeu errante”.
A narrativa persegue, na longa duração, o cruzamento de histórias que englobam as perse-
guições religiosas aos cristãos-novos na época da mineração no Brasil colônia, e se envereda
até a Rússia em tempos das revoluções de 1917, retornando, sem seguida, ao Brasil contem-

29A história de Branca Dias foi retratada em outros livros que misturam ficção e história para reconstrução de
sua trajetória. É o caso das obras de Miguel Real, Memórias de Branca Dias (Lisboa: Quidnovi, 2003) e de Ar-
naldo Niskier, Branca Dias: o martírio (Rio de Janeiro: Consultor, 2006).
30 http://digitarq.arquivos.pt.
31 GOMES, Dias. O Santo Inquérito. 26a ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 33.
32 FERREIRA, Luzilá Gonçalves. Os Rios Turvos. 3a ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
33 SCLIAR, Moacyr. Na noite do ventre, o diamante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

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porâneo, interligando histórias e dramas ao longo de tempos e espaços diversos tão distintos
quanto próximos…

Em Portugal, a temática também tem ganhado força nos últimos anos. Não é raro en-
contrar, nas estantes das livrarias portuguesas, obras de ficção que se debruçam sobre o pas-
sado. Algumas editoras, inclusive, possuem coleções voltadas para este tipo de produção. É o
caso da coleção “A história de Portugal em romances”, da Editora Saída de Emergência. A
Editora usa, como um dos marketings para atração de leitores, o seguinte convite, um tanto
quanto questionável, estampado na quarta capa de alguns dos livros da coleção: “Venha des-
cobrir a História de Portugal, não no tom pesado dos historiadores, mas pela pena inspirada
dos grandes romancistas”. Um dos títulos da coleção é o romance O anjo e o inquisidor34, de
Pedro L. Torres. A obra, ambientada no Nordeste brasílico do final do Quinhentos, narra a
chegada da visitação do Santo Ofício e as transformações ocorridas no cotidiano local, com a
revelação, através das confissões e denúncias feitas ao visitador de comportamentos tidos
como heréticos, abalando relações sociais e minando o ambiente de convívio que então exis-
tia.
Um céu de desventuras – Mário Cláudio e a narrativa do desterro infantil

Um dos exemplos desta literatura preocupada com a releitura temática de fatos histó-
ricos é o romance Oríon, do português Mário Cláudio, que retrata as desditas de um grupo de
crianças neoconversas portuguesas arrancadas de suas famílias e enviadas para as inóspitas
ilhas de São Tomé e Príncipe, para serem criadas na religião cristã.

Rui Manuel Pinto Barbot Costa, nome verdadeiro de Mário Cláudio, nasceu em 1941
na cidade do Porto, ao Norte de Portugal. Possuidor de variadas facetas - ficcionista, poeta,
dramaturgo, romancista, ensaísta – e um dos principais nomes entre os escritores contempo-
râneos portugueses, além de autor de vasta obra literária. É comum, em sua escrita, a relação
com a História, dando destaque a fatos e personagens reais como elementos estratégicos de
reconstrução de época. É o caso, dentre tantas outras obras, de Amadeo35 , em que relata o
percurso do pintor Amadeo de Souza-Cardoso, transitando entre as terras de Amarante e Paris
em inícios do Novecentos, e de Triunfo do Amor Português36, coletânea de histórias de amor
e transgressão presentes nas lendas e na História de Portugal reescritas pelo autor.

Oríon, obra de 2003, é o segundo volume da “Trilogia das Constelações”, completada


pelos romances Ursamaior (2000) e Gémeos (2004), buscando cada obra o significado para
os diferentes tipos de exílio que descreve. Compostas as obras por nomes de constelações, o

34 TORRES, Pedro L. O anjo e o inquisidor. 2a ed. São Pedro do Estoril: Saída de Emergência, 2015.
35 CLÁUDIO, Cláudio. Amadeo. Alfragide: Leya, 2008.
36 CLÁUDIO, Mário. Triunfo do amor português. 3a ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2014.

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autor afirma que “cada constelação conta sete estrelas, e sete é o número dos personagens que
intervêm em cada romance da trilogia. Procurei aproveitar os três conjuntos de sete estrelas
como horizontes desejáveis para as três tribos de fragilizados que peregrinam ao longo das
várias histórias”37, refletindo os embates entre as minorias e o poder.

A obra trata de um fenômeno particular e episódio ainda pouco estudado ou conhecido


na história portuguesa, mas referido em textos de cronistas de época como Garcia de Resende
(1470-1536) e Damião de Góis (1502-1574): o sequestro de crianças de origem judaica para
serem criadas por famílias cristãs em inícios da Modernidade. Historicamente, o fato narrado
por Cláudio é parte integrante e um dos episódios mais dramáticos do processo de conversão
forçada dos judeus ao catolicismo em Portugal 38 e dá o tom da violência que marcou as tenta-
tivas de conversão forçada no reino. Alguns relatos de época descrevem, em detalhes, o so-
frimento vivenciado pelas famílias ao verem suas crianças arrancadas dos braços. No limite,
alguns relatos descreviam famílias que no desespero do momento, sem enxergar nenhuma
outra saída para manter fidelidade à fé mosaica, preferiam tirar a vida dos próprios filhos a
verem os rebentos serem levados para serem criados por famílias cristãs, educados numa ou-
tra fé.
O livro conta a história de sete destas crianças – Abel, Débora, Raquel, Benjamim,
Séfora, Jairo e Caim -, tiradas de suas famílias em Portugal ao tempo em que reinava Dom
João II, e enviadas para as florestas tropicais do arquipélago de São Tomé e Príncipe, no lito-
ral africano. A narrativa é feita por uma destas crianças – Abel –, que, a partir de suas memó-
rias, descreve as dificuldades enfrentadas por estas crianças, desde o momento da captura, no
reino, os dramas da viagem e a chegada ao inóspito arquipélago que lhes fora dado como mo-
rada:

Eu completara há pouco os doze anos, mas adquirira já aquele porte dos man-
cebos, conscientes de que sobre a sua virilidade haverão de se apoiar as colunas
do futuro, e amordaçava o choro dentro de mim. Os guardas interpelavam-me,
não lhes respondia. Ocupava um lugarzinho ao fundo do carro, velando por que
não faltasse o ânimo aos restantes prisioneiros, alguns dos quais de tão tenra
idade se revelavam, carentes dos desvelos maternos, que se previa seguríssimo
o seu fim. E ao longo do percurso mais infantes se agregavam a nós, e o cortejo
de carripanas progredia por montes e vales, e debaixo da neve, parando aqui
para acender uma fogueira, interrompendo-se além diante da torrente de um rio
que cumpria galgar, desatrelados os cavalicoques, encaixados os pequenos em
botes que se procuravam como agulha em palheiro por léguas e léguas em re-

37 CLAÚDIO, Mário. Destino e escrita. Uma história vinda do passado. Entrevista ao site www.circuloleito -
res.pt. Acesso em 24 de julho de 2007.
38Outros autores contemporâneos também dedicaram obras ao assunto. Exemplo é o recente livro do escritor
santomense Orlando Piedade, Os meninos judeus desterrados: de Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem
d’el-Rei D. João II em 1493. Lisboa: Edições Colibri, 2014.

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dor. E em cada aldeola onde constasse que se haviam acobertado hebreus idên-
tico espectáculo se representava, gritos e assassínios, lamentos e furtos, pragas
e maldições39.

Abel, o personagem-narrador, em estrutura narrativa descontínua e labiríntica, mescla


sua própria memória pessoal com a historicidade dos fatos, intercalando ficção e realidade ao
relacionar seu sofrimento à memória das diásporas dos judeus portugueses através da Histó-
ria, o seu drama particular ao drama universal do povo escolhido, encontrando significado no
testemunho escrito nas entrelinhas da Torá: “As linhas da minha escrita atravessaram agora
as páginas da Tora, apertadinhas umas de encontro às outras, e não conservasse eu na memó-
ria o que lá se diz, não alcançaria ler os versículos sagrados” 40:
Na minha solidão cruzou-se a lembrança do que fora a aventura em que me
metera, infante como os outros, arrebatado aos seus pais, de olhar muito atento
aos verdores da vida que no meu caso, e no dos infelizes garotinhos da minha
criação, se confundiam com as misérias do exílio. E assisti na imaginação en-
quanto esperava que os salteadores me decapitassem às convulsões de João II,
o qual se comprovara ter sido castigado com agonia hedionda, em consequên-
cia do modo desumano como afrontara os de Israel41.

Mas não apenas o destino de Abel aparace na narrativa marioclaudiana: uma a uma, as
desventuras das demais seis crianças e, através delas, de outras milhares de crianças e demais
infelizes que vivenciaram e coadunam-se pelo mesmo triste destino de exílio, trazido à tona
em flashes e memórias entremeadas com a história do narrador.
Desembarcou na Ilha uma leva de degredados, gente que mirava as novidades
da paisagem com uma brasa em cada olho, se deslocava numa lentidão de cau-
tela e de pasmo, hesitante quanto ao solo que pisava, mas decidida a beber até
ao seu termo a vida que lhes fora poupada. E constituíam este grupo homens e
mulheres que tinham presenciado cousas extraordinárias, nascidas de dentro e
de fora dos seus corações, e que se mostravam capazes de estripar um menino e
de comer uma salamandra, de arrombar o sacrário de uma igreja e de dormir
com o esqueleto de uma bruxa. Por morte do próximo e por feitiçaria, por adul-
tério e por traição, culpadosquase todos de imaginar crimes mais terríveis ainda
do que os que haviam cometido, apresentavam-se dispostos a cumprir a pena
com a crueza que lhes sobrava, carregando a alma com quantos pecados cou-
bessem na malícia da terra 42.

No recontar das histórias de cada um, o relembrar do drama dos judeus ibéricos, o
peso histórico da perseguição contra os descendentes de Moisés, ao mesmo tempo proibidos
de ficar e impedidos de sair, impossibilitados de manter a fé judaica e mal aceitos no catoli-

39 CLÁUDIO, Mário. Oríon. 2ª ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2003, pp. 75-77.
40 Idem, p. 12.
41 Idem, p. 105.
42
Idem, p. 63-64.

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cismo, divididos entre a religião dos antepassados e o cristianismo imposto, desconhecedores


de ambos, praticando-os de acordo com as conveniência, o momento, as possibilidades, co-
nhecimentos e vontades de cada um. Ou, nas palavras do próprio Abel,

nada como o infortúnio para nos ensinar com que linhas se cose o nosso desti-
no. Quando caímos num poço de atribulações, olhamos para trás, e tudo parece
corresponder à vontade de Deus. Desconhecemos o futuro, e o que importa
para o merecermos, mas achamo-nos na posse de um tesouro luminoso, capaz
de nos guiar na peregrinação 43.

Arrancados das famílias, degredados, abandonados à própria sorte, subjugado e obri-


gados a abraçar uma fé que não conheciam e tampouco acreditavam, jogados nos confins
inóspitos do Atlântico debruçado sobre o litoral de África, temerosos da Inquisição e de ani-
mais selvagens, vitimados por um exílio eternizado no calor dos trópicos, já desconhecedores
do reino que deixaram contra a vontade, assumem o drama judeu como parte integrante de
sua própria epopeia, responsáveis pela escrita de sua própria história, comparando os dois
tempos de vida, a infância e a maturidade, o reino e o exílio, a liberdade e o abandono:
“Sem nenhuma preocupação residia na casa herdada dos meus antepassados.
Na célebre cidade de Lisboa, a maior de todas as cidades portuguesas, Deus
bendizia-me com a riqueza, a dignidade e quanta alegria cabe no destino huma-
no. A minha casa era ponto de reunião de homens cultos e sábios, e costumava-
se falar de livros e de escrituras, do saber e do temor de Deus. Prestava eu ser-
viço na Corte de Dom Afonso, um soberano justo, sob o reinado do qual os ju-
deus podiam viver em liberdade sem serem perturbados”. Bem me recordo des-
ta passagem que se me cravou na memória, lida por Joseph, meu tio, de uma
das obras do douto Isaac Abravanel. Chegava o leitor aos beiços a copa de li-
monada, a fim de molhar as palavras que ia proferindo, e grandíssima tristeza
nos invadia a alma e o coração. Abria-se para nós a calamitosa idade da fuga,
calava-se meu pai à escuta dos ruídos da noute, mas era apenas a madeira do
armário que estalava.
Boto-me agora a vadiar pelos matagais desta África. Despojado de tudo, da
própria lembrança de mim, desconheço o onde nasci, e em que sítio haverá a
morte de me atingir. Sento-me em suma, e caio num sono mui leve, e nem acer-
to se durmo, se desperto num longínquo país que nunca vi, mas que se me torna
tão verdadeiro com o sangue que a sua morada me corre. Larga o nosso Patriar-
ca Abraão a sua morada em Ur na Caldeia, e caminha ao longo da planície de
pedregulhos, tacteando o solo com um cajado mais vetusto do que ele. Sobre a
sua cabeça dispõem-se as estrelas de Oríon, e no silêncio lhe ensinam o percur-
so. Atravessam depois as multidões o deserto, e à voz de Moisés brotam as fon-
tes, e aluem os ídolos, e chove maná, e levantam-se as imensas águas do Mar
Vermelho. Constantemente Oríon cintila nas suas sete alâmpadas inigualáveis,

43
Idem, p. 137.

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e eis que mais distante se situa a terra que não é de baixo, nem de cima, e onde
o leite flui, e o mel44.

Desta forma, a representação dos dramas vivenciados pelas sete crianças judias envia-
das para exílio em África no romance de Mário Cláudio percorre a história portuguesa em
uma de suas mais marcantes páginas, rememorando um tempo de exclusão e perseguição re-
ligiosa, de intolerância e de imposição, mas focando, para além do drama, no contrapelo, a
resistência. Dramas ficcionais que se aproximam do real, permitindo ao leitor o auxílio da
literatura na percepção mais refinada da História. Em Oríon, Mário Cláudio dá-nos mostra de
como esta interação pode ser benéfica. Afinal, nem a História nem a Literatura possuem o
monopólio sobre o passado, mas unidas, auxiliam a um olhar mais profundo sobre este.
Como bem lembra o autor, “A vida é reinvenção permanente. Tudo é mentira e tudo é real”45 .

Referências Bibliográficas:

ASSIS, Angelo Adriano Faria de & FRANCO, Roberta Guimarães. “Tecer a ficção
com os fios da história: as recriações estéticas de Mário Cláudio”. In: ROANI, Gerson Luiz
(org.). O Romance português contemporâneo: História, memória e identidade. Viçosa: Arka
Editora, 2011, pp. 227-240.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2001.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da Histo-
riografia. São Paulo: Editora da UNESP, 1989.
CLÁUDIO, Mário. Oríon. 2ª ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2003.
CLÁUDIO, Cláudio. Amadeo. Alfragide: Leya, 2008.
CLÁUDIO, Mário. Triunfo do amor português. 3a ed. Lisboa: Publicações Dom Qui-
xote, 2014.
CLAÚDIO, Mário. Destino e escrita. Uma história vinda do passado. Entrevista ao
site www.circuloleitores.pt. Acesso em 24 de julho de 2007.
CLÁUDIO, Mário. “Sou incapaz de desinventar completamente uma vida”. Entrevista
ao jornal Público (29/06/2011).
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. Os Rios Turvos. 3a ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
GOMES, Dias. O Santo Inquérito. 26a ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
MATTOS, Yllan de. A Inquisição Contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício por-
tuguês (1605-1681). Rio de Janeiro; Mauad, 2014.

44 Idem, pp. 181-182.


45
CLÁUDIO, Mário. “Sou incapaz de desinventar completamente uma vida”. Entrevista ao jornal Público
(29/06/2011).

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SCLIAR, Moacyr. Na noite do ventre, o diamante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
TORRES, Pedro L. O anjo e o inquisidor. 2a ed. São Pedro do Estoril: Saída de
Emergência, 2015.

Franz Potocki, Rubem Fonseca e o mundo

Antonio Lamenha
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
tonilamenha@gmail.com

1 - Breve antibiografia

Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora, em Minas Gerais, no ano de 1925, mas ainda
criança mudou-se para o Rio de Janeiro. Antes de se dedicar exclusivamente ao ofício de
escritor, estudou Direito e trabalhou como policial. Hoje, aos 91 anos, ainda escreve, publica
e, vez ou outra, vence algum prêmio literário, entre os quais já angariou o Jabuti, o Camões e,
recentemente, em 2015, o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra.

Falar da biografia de Rubem Fonseca não é uma tarefa simples, pois, desde o início de
sua carreira literária, ele opta pela fuga dos holofotes, pela reclusão, assim como o escritor
curitibano Dalton Trevisan. Não há muitos registros de entrevista com o escritor, que
raramente cede a uma mínima exposição e participa de algum evento público. Talvez o fato
relacionado à vida pessoal que mais tenha causado rebuliço na mídia nos últimos anos seja a
sua saída da editora Companhia das Letras — e não se conhece ao certo o motivo. Muito se
especulou sobre o caso, mas poucas informações conclusivas foram dadas pela editora e pelo
escritor. Rubem Fonseca repele repórteres e fotógrafos, e não se sabe muito sobre ele, a não
ser o que se pode, fragilmente, vislumbrar dos livros.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Em relação a esse apagamento voluntário de Rubem Fonseca da mídia, o autor de


livros infanto-juvenis “de fantasia” e megaempresário do gênero Raphael Draccon afirmou,
na Bienal do Livro do Rio de 2013, que atualmente não existe espaço para autores reclusos,
solitários, distanciados da divulgação da internet e da cena literária. E, para fundamentar sua
tese, disse que “Rubem Fonseca, hoje, não seria publicado” e que o escritor contemporâneo
precisa mostrar, além de livros, uma história de vida impactante para seus leitores.

É impossível saber se Rubem Fonseca seria visto pelas editoras de hoje — o que
resulta em imprudência e precipitação de Draccon, muito ligado ao sucesso de vendas e aos
aplausos. Podemos afirmar, sim, que ele é um autor muito procurado nas livrarias e serve de
influência para a maioria dos escritores contemporâneos. Entre os muitos livros de contos e
romances do autor mineiro-carioca, Feliz ano novo (1989) e O cobrador (1979), por
exemplo, são considerados obras-primas e possuem muitos leitores. Há o reconhecimento
pela obra e, se houver pela pessoa, talvez seja apenas pela condição — ou sorte — de recluso.

2 - Visão geral da obra

A partir da leitura dos seus textos e dos poucos dados biográficos que mencionamos
anteriormente, podemos apontar alguns traços que recorrentemente se encontram na obra de
Rubem Fonseca.

Primeiramente, citamos a cidade do Rio de Janeiro como cenário de muitos textos


fonsequianos. Entre os mais emblemáticos, os contos “Feliz ano novo” (1989) e “O
cobrador” (1979), que perpassam favelas e bairros nobres cariocas, e também O caso Morel
(1973), seu primeiro romance, que, além de delegacias, visita famosas praias e até deixa um
cadáver por uma delas. Obviamente há tramas que se desenvolvem em outros locais (Manaus,
interior de Minas, Alemanha, etc.), mas a cidade do Rio de Janeiro, suas (anti)belezas,
contradições e fragilidades, sem dúvida, preponderam na obra de Rubem Fonseca.

A violência, ou a natureza-podre — através de uma linguagem igualmente violenta,


que tende a agredir e espantar o leitor —, é a temática central da obra de Rubem Fonseca,
tanto pelo lado da polícia como pelo do infrator. Isso pode se vincular ao fato de o autor ter
trabalhado como policial e, naturalmente, vivido situações inusitadas. E o gênero romance
policial (ou algo próximo a ele, por ser difícil reduzir um texto de Rubem Fonseca a uma
sequência de crime, investigação e resolução), em alguns momentos, foi bastante explorado
pelo escritor.

Sobre a linguagem violenta, Oliva (2004), no início do seu artigo “Transgressão,


violência e pornografia na ficção de Rubem Fonseca”, releva percepções pessoais de leitura:

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Ler um texto de Rubem Fonseca sempre foi um exercício de inquietação e


embate. Eu sinto que se estabelece uma luta entre mim e o texto
fonsequiano, como se a linguagem desse renomado escritor quisesse me
agredir todo o tempo de duração da leitura (p. 40).

Apesar de esse fragmento ser uma confissão de apenas um só leitor, o impacto que o
texto de Rubem Fonseca causa parece se repetir. Inclusive comigo: lembro-me do golpe que
sofri ao ler cada texto do autor na coletânea Os cem melhores contos brasileiros do século, de
Italo Moriconi, há mais ou menos sete anos. Desde lá, em uma mescla de desejar novamente
o mesmo golpe e precisar da dor fria daqueles personagens para sofrer junto e refletir,
busquei incessantemente outros textos de Rubem Fonseca. E, em experiências de apresentar o
autor a algum outro (novo) leitor ou grupo de leitores, pude presenciar o impacto, o golpe, o
choque. [Destaco a importância que o texto fonsequiano exerceu na minha formação de leitor.
Quando do primeiro contato com o autor, ainda adolescente, já havia lido diversos livros que
me marcaram profundamente, mas nada de tal forma carregado de tanta violência e crueza.]

Também o experimentalismo formal aparece bastante na obra fonsequiana, desde os


primeiros textos que trabalham essa linguagem que violenta o leitor, como “Feliz ano
novo” (1989), até os que brincam com o aspecto visual de organização das palavras e sua
distribuição na página, como no conto “Lúcia McCartney” (1987).

Por fim, a própria reclusão de Rubem Fonseca lança reflexos nos seus escritos, em
personagens que apresentam a solidão e o desamparo do ser humano moderno ou “o
desamparo que o faz explodir o real” (2007, p. 873), como aponta Nejar. E ainda a reclusão
vista na recusa ao aparecimento na mídia e aos seus discursos veladamente parciais aparece
na sua obra, como diz Pellegrini (1999): “E é ela [linguagem da narrativa] que,
dialeticamente, ao mesmo tempo que aproxima, consegue distanciar a narrativa da
espetacularização que a mídia confere à violência, no quotidiano de suas imagens” (p. 102).
Assim veremos na análise do conto “Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo” (2009).

3 - Potocki: obra, público, sucesso e declínio

Optamos pela análise do conto “Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo” — do


primeiro livro de Rubem Fonseca, Os prisioneiros (2009) — por, além de não ser um dos
textos mais lidos e estudados do autor, apresentar um panorama da carreira do pintor-
personagem Franz Potocki, sua recepção tanto do lado da crítica quanto do público, as
características principais da obra e um pouco de sua biografia. No conto, há ênfase,
curiosamente, na introspecção e aversão à superexposição midiática, assim como se vê em
Rubem Fonseca. Percebemos, portanto, certos traços no personagem Franz Potocki e em sua
obra conectados à vida e à obra de seu criador.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

No primeiro parágrafo do conto, já se sabe da ascensão do pintor e seu declínio, pois o


narrador fala situado em um momento posterior ao boom da natureza-podre. “Hoje já não é
assim, mas houve época em que o interesse pela natureza-podre era tão grande que o seu
criador, Franz Potocki, e alguns hábeis imitadores, ganharam verdadeiras fortunas” (p. 91).
Sabe-se também que, no tempo presente do narrador, não mais se venera a natureza-podre.
Esta, porém, serviu de base para a obra fonsequiana: através da natureza-podre Rubem
Fonseca conseguiu violentar, impactar, chocar leitores. Além disso, ainda hoje se explora a
natureza-podre na literatura contemporânea, principalmente em textos ligados à temática da
violência social e urbana.

Mas o perigo da natureza-podre se encontra em sua recepção. Muitos escritores que


seguiram os passos de Rubem Fonseca (talvez os “alguns hábeis imitadores” de que se fala
no conto) caem na armadilha de tornarem-se objeto de adoração da classe média, e não de
reflexão e acusação. Não se referindo a todas as narrativas de Fonseca, mas apenas às que
acredita quebrarem o mencionado conforto, Pellegrini (1999) diz que

A atmosfera pesada [dos textos fonsequianos] produz descargas elétricas,


choques que, embora correndo o risco de criar um novo tipo de exotismo,
para deleite da classe média, acabam com a tranquilidade contemplativa do
leitor diante daquilo que lê (p. 104).

O maior desgosto de Potocki era ver que

[...] as pessoas mostravam um total desconhecimento dos seus objetivos ao


pintar aqueles quadros. Ele mesmo não sabia ao certo o que queria dizer,
mas o esforço para fazer cada quadro quase o matava [...] (p. 95).

Nenhum artista consegue moldar a recepção exata e ideal de sua obra — até pela
multiplicidade, explicada por Calvino (1990), e pelas idiossincrasias de cada leitor,
defendidas por Borges (1984) —, mas certas leituras são desautorizadas pela própria obra.
Irritava Potocki algumas reações do público, como o narrador expressa no trecho: “Como
suportar, pois, frente aos seus quadros, homens perfumados fazendo piruetas, mulheres de
voz estridente gritando adjetivos, umas às outras?” (p. 95). Se há leituras desautorizadas,
também deve haver reações que nem em leituras se constituem, como as que aterrorizam
Potocki.

No que concerne à questão da mídia, Potocki e Fonseca se parecem. Vejamos o


parágrafo em que se narra a entrevista silenciosa de Potocki a um canal de TV: “Chamado a ir
à televisão, Potocki não disse uma palavra, nem mesmo para responder a um telespectador
que lhe perguntou por que motivo ele pintara a própria mãe ‘daquele jeito’” (p. 93). Será que

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

um artista necessita de outro espaço para expor suas ideias (e o que lhe convenha de sua vida
pessoal) que não seja a sua obra? Muitos acreditam que sim. Já Rubem Fonseca e Franz
Potocki não. Estes parecem combater os leitores de entrevistas e incentivar os leitores de
livros. De certa forma, entre tantos outros gêneros de exposição midiática, a entrevista, que
mostra uma vida interessante e vendável, retira, da obra de arte, sua aura e seu valor, e os
repassa para o autor. [Não condeno aqui a exposição de escritores aos meios de comunicação.
Apenas ressalto um ponto a que Rubem Fonseca parece se ater: importa a obra, o escritor a
escreve e já se expõe ali. Pode ele também utilizar outros meios e recursos, mas a obra não
deve deixar de ser o foco.]

Talvez por isso os melhores admiradores de Potocki fossem as crianças, ainda não
contaminadas, na melhor das hipóteses, pelas dominações da mídia e do mercado. No conto,
porém, as dominações vêm de outro lado:

A Associação dos Pais de Família publicou nos jornais uma carta aberta aos
poderes competentes exigindo providências da parte das autoridades e dos
educadores no sentido de verificar se aquela influência não seria prejudicial
ao caráter infantil (p. 94).

Os pais de família, com medo da reação dos seus filhos à natureza-podre, querem
abolir, afastar, censurar. Ou, no mínimo, convencer-se da validade de manter aquele material
próximo às crianças se a avaliação dos “especialistas” (que profissional teria esse poder?) for
favorável. Pais sem autonomia, maleáveis, portanto, a um parecer governamental qualquer.
Note-se ainda a ironia na expressão pais de família: não integram a associação quaisquer
pais, só aqueles que forem pais de família, remetendo ao conservadorismo da instituição
familiar.
No final do conto, o declínio de Potocki traz à tona a efemeridade da recepção
apaixonadamente vazia, sem entendimento, sem reflexão, que não deixa marcas.
Paulatinamente, Potocki é esquecido. Seria por conta da reclusão? O texto mostra que havia
especulações sobre a vida pessoal de Potocki. A razão do declínio do pintor estava na
infidelidade do público, fruto do vínculo fraco, frágil e afetado que se estabelecera com a
obra. Vínculo apaixonado — após o desinteresse, surge a repulsa, que chega ao ápice no
momento em que “[...] centenas de pessoas, soube-se, queimaram os seus Potockis” (p. 96).

Por fim, ainda há, no conto, explicitamente em seus dois últimos parágrafos, a união
entre artista e obra. O painel mais famoso e divulgado de Potocki se situava no aeroporto da
cidade. No entanto, como consequência do desinteresse em relação ao pintor, o painel deveria
ser substituído por outro, de um cavalo, “[...] pintado por um médico que se tornara
pintor” (p. 97) — note-se que qualquer pessoa pode conquistar o efêmero sucesso, basta
“tornar-se” artista. E é no instante da substituição que percebemos a união de Potocki e sua

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obra: “Foi ali, entre as pessoas que se acotovelavam para apreciar aquele animal [...] que
Potocki foi visto pela última vez” (p. 97). Se a obra desaparece, portanto, não há por que o
artista aparecer.

4 - Considerações finais

Pudemos verificar, em suma, na análise do conto “Natureza-podre ou Franz Potocki e


o mundo” (2009), aspectos gerais da obra fonsequiana. A reclusão como um posicionamento
ético em relação à obra e ao público, contra a supervalorização do artista e o esquecimento da
obra. Se este acontecer, que o artista fielmente o siga. A desmistificação da falsa e efêmera
união artista-mídia (no lugar da união artista-obra, que vive Potocki), mas a mídia sendo “o
olhar vigilante e denunciador” (2007, p. 875), como comenta Nejar, e dominador,
padronizador. E ainda a exploração da própria natureza-podre como temática e linguagem.

A obra fonsequiana e seu autor, nesse sentido, permitem a comparação com a união
artista-obra potockiana, tendo como elo fundamental não o fã passageiro, mas o leitor, fiel,
curioso, investigador e crítico.

5 - Referências

BORGES, J. L. Kafka y sus precursores. In: ______. Obras completas 1923–1972. Buenos
Aires: Emecé, 1984.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras,
1988.
COHEN, M. ‘Rubem Fonseca hoje não seria publicado’, diz diretor do selo Fantasy. O
Globo. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/megazine/rubem-fonseca-hoje-nao-seria-
publicado-diz-diretor-do-selo-fantasy-9720135>. Acesso em: 25 jan. 2014.
FONSECA, R. Feliz ano novo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
______. Lúcia McCartney. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
______. O caso Morel. Rio de Janeiro: Artenova, 1973.
______. O cobrador. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
______. Os prisioneiros. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
NEJAR, C. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2007.
OLIVA, O. P. Transgressão, violência e pornografia na ficção de Rubem Fonseca.
Unimontes Científica. Montes Claros, v. 6, nº 2, 39-50, jul./dez. 2004. Disponível em: http://
www.ruc.unimontes.br/index.php/unicientifica/article/viewFile/120/117. Acesso em 25 jul.
2016.
PELLEGRINI, T. A imagem e a letra: aspectos da ficção brasileira contemporânea.
Campinas: Mercado das Letras; São Paulo: Fapesp, 1999.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Drummond na sala de aula: uma proposta para o ensino-aprendizagem de


literatura em língua portuguesa
Ariane Baldez Costa
Universidade Federal do Pará
arianebaldez@hotmail.com
Iris de Fátima Lima Barbosa
Pontificia Universidad Católica de Chile
iris_flb@hotmail.com

Professor é para ler toda a obra?


Tudo isso?
Mas esse livro é imenso!
Ah, pelo menos tem o filme...
E essa linguagem? Difícil...
O que isso ajudará na minha vida?
Qual a importância de um poema, romance, novela, conto, etc., para o meu futuro?

Esses são alguns dos inúmeros questionamentos que nós professores ouvimos por
parte de nossos alunos em sala de aula, é inegável que atualmente o texto literário tradicional
tem passado por grandes resistências para ser mantido na escola talvez em virtude da
valorização e a presença excessiva de imagens, filmes, telenovelas que se fazem de forma
muito intensa na sociedade contemporânea, a qual “dispensaria” a mediação da escrita das
práticas culturais e sociais.

Apesar de manter uma relação muito estreita com a educação, é de nosso


conhecimento que a literatura é um grande instrumento não só educativo, mas, se trabalhada
adequada e convincentemente, principalmente, de prazer, de fruição, porque ela é formadora
de opiniões, descortina leitores de todas as idades, constrói e reconstrói conceitos, confirma e
nega, apoia e combate, propõe e denuncia comportamentos; formando personalidades, não de
acordo com as convenções sociais, mas sim com a liberdade que sempre norteou a elaboração
dos textos literários.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Mas, para formar bons leitores, é necessário ultrapassar o processo de decodificação


do texto. Não basta somente o professor apresentar uma obra e pedir aos alunos que a leia, ou
explanar uma aula inteira sobre a vida dos escritores e características de estilos literários etc.
Formar bons leitores requer passar por um processo contínuo de sensibilização, de orientação
quanto à essência mesma da literatura. À escola cabe a função de ensinar a maneira adequada
de receber e usufruir o texto, para poder explorá-lo. Porém, de que maneira nós professores
estamos contribuindo para que isso ocorra? De que forma levamos a literatura para a sala de
aula? Que tipo de leitores estamos formando? Nós, enquanto professores, também nos
consideramos-atuamos como professores-leitores?

O objetivo desse trabalho não é apresentar uma maneira correta e única para percorrer
o caminho da leitura, mas sim, de sugerir ideias, proporcionar reflexões que possam
colaborar e facilitar o contato entre o aluno e a literatura, fazendo da leitura uma experiência
prazerosa. Dessa forma, utilizaremos como fonte literária a prosa Drummondiana, mais
precisamente A incapacidade de ser verdadeiro, Flor, telefone, moça e A Doida, contos que
fazem parte do livro Contos de Aprendiz (2006), que ora parecem representar recortes do
cotidiano, ora aparentam ser volumes de memórias, enfim, são narrativas que possuem um
lirismo, uma linguagem poética, perpassada de ironia e humor e que mexem com a
imaginação do leitor, transportando-o para diversas aventuras que só a leitura pode
proporcionar, despertando no receptor, no ato da leitura, vários sentimentos como o trágico, o
medo, a descoberta, o amor, o cômico, o nostálgico etc.

1. A década de Drummond: contexto e influências

A geração de 1930 foi marcada historicamente tanto no ambiente político quanto no


social pelo período em que Getúlio Vargas46 tem no Brasil um poder centralizado até 1945.
Vargas era pressionado a renunciar, porém até isso acontecer o país viveu quinze anos de
repressão institucionalizada, com perseguições políticas e censuras de todo tipo. Deste modo
era impossível aos artistas permanecerem alheios a este quadro.
No ambiente literário, o panorama modernista brasileiro traz à tona o início de outras
direções neste cenário artístico: destacava-se a partir daí, o papel da prosa, na qual o
regionalismo e os temas sociais passam a se tornarem muito frequentes nas obras literárias.

Desses prosadores, alguns representam uma espécie de modernização do


Naturalismo; outros enriquecem o romance com preocupações psicológicas
e sociais; quase todos aspiram a uma expressão vigorosa e simples, a um

46 Getúlio Dornelles Vargas foi um advogado e político brasileiro, líder civil da Revolução de 1930, que pôs fim
à República Velha.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

estilo liberto do academismo, e por aí coincidem com a atitude dos


modernistas. (CÂNDIDO, 1975. p.18)

Vale ressaltar que, os escritos dessa época também eram tidos como verdadeiros
documentos que representavam a realidade brasileira, caracterizando as denúncias sociais, a
relação do indivíduo com o mundo. Alguns personagens eram retratados de acordo com o seu
meio natural e social. Nesse contexto, tornava-se também perceptível a busca do homem
brasileiro em diversas regiões do país, como poderemos perceber nas produções do autor
nascido em Itabira do Mato dentro no estado de Minas Gerais em 31 de Outubro de 1902, ou
melhor, o escritor Carlos Drummond de Andrade, filho do fazendeiro Carlos de Paula
Andrade e D. Julieta Augusta Drummond de Andrade.

Drummond sempre gostou muito das palavras, mesmo quando não sabia ler era
fascinado pelas letras encontradas em jornais e revistas, o aspecto visual lhe prendia a
atenção, causando uma impressão muito forte, e ele atribuiu sua produção literária a esse
primeiro contato com as palavras.

Em seu universo literário deixava transparecer originalidade, emoções, ironias e


perplexidades. Falava de maneira especial sobre um tempo, um tempo que existia
distintamente entre Minas Gerais e Rio de Janeiro, tudo rodeado de uma linguagem
densamente poética. Como poeta, via-se que suas poesias tratavam em especial da infância,
da família e Itabira, sua terra natal, falava ainda dos amigos, e refletia lírica e profundamente
sobre a própria poesia, sobre o ato de escrever. O amor sensual, tendendo para o erótico,
também vai pontuar a trajetória do autor.

Como prosador, iniciou esta atividade na redação do Diário de Minas, tendo o seu
alcance de maior projeção no Rio; como cronista, assim como na poesia, se tornou um dos
mais notáveis na literatura, constituindo uma das partes de maior destaque em sua prosa. O
autor tinha o poder de transformar acontecimentos cotidianos desde os mais significativos e o
de menos relevância em literatura.

Cabe ressaltar que suas obras dividem- se em poesia, contos, crônicas, ensaios entre
outras. Verdadeiras obras-primas da Literatura Brasileira, dentro desse panorama literário
destacam-se as seguintes publicações:

Na Poesia: Alguma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo
(1940), Poesias (1942), A Rosa do Povo (1945), Poesia Até Agora (1948), A Máquina do
Mundo (1949), Claro Enigma (1951), A Mesa (1951), Viola de Bolso (1952), Fazendeiro do
Ar e Poesia até agora (1954), Soneto da Buquinagem (1955), Ciclo (1957), Poemas (1959),
Lição de Coisas (1962), Versiprosa (1967), José e Outros (1967), Boitempo e A Falta que

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contemporâneas

Ama (1968), As Impurezas do Branco (1973), Menino Antigo (1973), Amor Amores (1975), A
Visita (1977), Discurso de Primavera e Algumas Sombras (1977), O Marginal Clorindo Gato
(1978), Nudez (1979), Esquecer para Lembrar (1980), A Paixão Medida (1980), O Elefante
(1983), Caso do Vestido (1983), Corpo (1984), Mata Atlântica (1984), Amar se Aprende
Amanda (1985), O Prazer das Imagens (1987), Poesia Errante (1988), Arte em Exposição
(1990), O Amor Natural (1992), A Vida Passando a Limpo (1994), Farewell (1996), A Senha
do Mundo (1996), A Cor de Cada U m (1996).

Na Crônica: Fala Amendoeira (1957), A Bolsa e a Vida (1962), Cadeira de Balanço


(1966), Caminhos de João Brandão (1970), O Poder Ultrajovem (1972), De Notícias e não
Notícias faz-se a Crônica (1974), Os Dias Lindos (1977), Crônicas das Favelas Cariocas
(1981), Boca de Luar (1984), Crônicas de 1930-1940 (1984), Moça Deitada na Grama
(1987), Auto-Retrato e Outras Crônicas (1989), O Sorvete e Outras Histórias (1993), Vó
caiu na Piscina (1996).

No Conto: O Gerente (1945), Contos de Aprendiz (1951), 70 Historinhas (1978),


Contos Plausíveis (1981), O Pipoqueiro da Esquina (1981), História de Dois Amores (1985),
Criança Dagora é Fogo (1996).

Ensaios: Confissões de Minas (1944), Passeios na Ilha (1952), A Lição do Amigo


(1982), Em Certa Casa de Brandão de Jaguaribe (1984), O Observador no escritório (1985),
Tempo, Vida, Poesia (1986), Saudação a Plínio Doyle (1986), O Avesso das coisas (1987),
De tudo fica um pouco (1991), Conversas na livraria (1941 e 1948)

Dentre essas obras citadas, Drummond também teve seus escritos traduzidos em
algumas línguas, Alemão, Búlgaro, Chinês, Dinamarquês, Espanhol, Francês, Holandês,
Inglês, Italiano, Latim, Norueguês, Tcheco, além de produções de antologias e livros em
braile.

Nesse contexto, vemos que o escritor nos disponibiliza um leque de possibilidades


para adentrar no universo da literatura, o que nos leva a dialogar com o uso de suas obras
para o ensino-aprendizagem de literatura em língua portuguesa, como veremos a continuação.

2. Diálogos entre literatura, leitura e educação

O ensino da literatura e o espaço que esta ocupa atualmente nas escolas ainda é caso
de alguns questionamentos entre alguns teóricos. Apesar de o seu caráter educativo existir
antes do surgimento da escola formal, nota-se que nos dias de hoje, há certa resistência em
mantê-la no currículo escolar no Brasil. Para alguns estudiosos, a literatura ainda está
presente nas escolas por força da tradição e da inércia curricular, já que a educação literária é

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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um produto do século XIX e que não tem motivos para ser do século XXI; o que acaba
dificultando ainda mais essa relação tão estreita entre a literatura e a educação.

As justificativas para essa resistência são inúmeras, a começar pela multiplicidade de


textos, a valorização e a presença das imagens, filmes, telenovelas, entre outras
características da sociedade contemporânea que estão presentes com muito mais intensidade
do que a escrita. Segundo Cosson (2006), “a cultura contemporânea dispensaria a mediação
da escrita ou a empregaria secundariamente. Por isso, afirma-se que se o objetivo é integrar o
aluno à cultura, a escola precisa se atualizar, abrindo-se ás práticas culturais contemporâneas
que são muito mais dinâmicas e raramente incluem a leitura literária”. Outro possível motivo
para aversão a essa arte é o fato dela ser utilizada em grande parte, para instruções morais ou
objeto histórico o que impossibilita a experiência do aluno vivenciar a literatura como objeto
estético.

A literatura precisa ser encarada como fenômeno artístico, considerada em


sua natureza educativa por excelência, porque traz valores, crenças, idéias,
ponto de vista de seus autores, que podem enriquecer a vida daqueles que a
lêem. Não deve estar presa a modismos pedagógicos e sim ser considerada
como uma atividade prazerosa de conhecimento do ser humano e das
diversas funções da linguagem, dentre elas a função poética, pois retrata e
recria as questões humanas universais, numa linguagem esteticamente
trabalhada, transgressora da rotina cotidiana.47

É notório que em nossa realidade não ocorre dessa forma, no ensino médio, por
exemplo, as tradicionais aulas de Literatura Brasileira, geralmente, se resumem a
memorização de características de estilos de épocas, dados biográficos dos autores e cânones,
o que podemos chamar de história da literatura. Os textos literários quando se fazem
presentes, são fragmentados e servem somente para comprovar se realmente as características
dos períodos literários estão no texto, logo esse processo de ensino-aprendizagem vem a
priorizar o ingresso do aluno para uma universidade, mas de forma alguma o prepara para a
futura vida acadêmica.

Quanto ao ensino fundamental, não há muita diferença, Cosson (2006), afirma que
nesse nível “a literatura tem um sentido tão extenso que engloba qualquer texto que apresente
parentesco com a ficção ou poesia”. E ainda acrescenta que são predominantes as
interpretações dos livros didáticos, as quais são feitas a partir de textos incompletos; o que ele
denomina de “falência do ensino de literatura”. Certamente essa metodologia é contraditória
as teorias de estudiosos que priorizam o estudo do texto literário, tendo esse como ponto de

47
DUARTE E WERNECK, A Literatura e o ensino de leitura para o público juvenil.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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partida, pois assim o aluno teria a oportunidade de construir e reconstruir conceitos, ideias e
desenvolver o senso crítico ao invés de se conformar com informações definidas dos livros
didáticos ou até mesmo com as do professor.

Aprender literatura tornou-se um jogo de advinhas, não dos sentidos


conotativos, singulares simbólicos das palavras, das construções poéticas,
mas dos sentidos que o professor havia atribuído ao texto; e, dessa forma, os
que ousavam falar, falavam o que os professores queriam ouvir e não,
necessariamente, a expressão de sua visão particular do objeto.48

Logo, o próprio professor, com essa prática facilita a aversão à literatura impedindo
assim qualquer tentativa de leitura crítica e criativa de seus alunos e menosprezando o
processo de motivação, autoconfiança e a construção do saber literário
.
Antonio Candido em um de seus escritos intitulado O Direito à Literatura (2004)
reforça a ideia de que além de bens indispensáveis aos seres humanos como moradia, saúde,
vestuário, liberdade, alimentação, enfatiza também o direito à leitura, à literatura, à arte de
uma forma geral independentemente de cor, raça, crença ou posição social.

A leitura e a literatura estão presentes em diversas camadas sociais, em algumas por


meio dos grandes cânones da literatura universal, em outras através do folclore, dos mitos e
das lendas, que preservam a tradição de um povo, levando em consideração que grandes
obras literárias de cunho universal surgiram, graças à oralidade. Livre de contextos sociais, a
literatura é claramente uma manifestação universal entre as civilizações sendo que não exista
povo que possa viver sem ela, seja o indivíduo analfabeto, jovem, criança, adulto, letrado ou
não letrado, manifestando-se desde uma simples contação de história entre amigos, devaneios
amorosos, novelas de televisão ou em uma leitura de romances, consequentemente a
literatura passa a ser tida como uma necessidade universal.

A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita


sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos
sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e
portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa
humanidade. 49

Partindo disso, vemos que a literatura é sim um grande instrumento de instrução e


educação, pois ela forma opiniões, descortina leitores de todas as idades, ela confirma e nega,
apoia e combate, propõe e denuncia. Ela forma personalidades, mas não de acordo com as
convenções, mas sim de acordo com a realidade ou com o contexto que o indivíduo se insere.

48 BRAGA, Patrícia. O ensino da Literatura na era do extremo.


49
CANDIDO, in: Vários Escritos.

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contemporâneas

2.1-O Uso do texto literário no ambiente escolar:

Atualmente notamos que no processo de ensino-aprendizagem de língua materna os


alunos possuem grandes dificuldades no que diz respeito à leitura/interpretação de texto. Um
dos motivos desse problema ocorre devido às aulas de língua portuguesa privilegiar o ensino
da gramática normativa, ou seja, uma abordagem tradicional da linguagem.

Ao se falar em leitura, a maioria dos professores é questionada constantemente por


seus alunos sobre a importância desta para a vida dos mesmos. Muitos cultivam a ideia de
que leitura é sempre algo enfadonho, desnecessário e de pouca utilidade, logo a palavra
leitura fica estigmatizada a expressões negativas, transparecendo a dificuldade de desfazê-las.
Isso se torna ainda mais grave ao se falar no uso do texto literário. Essa visão equivocada de
alguns alunos sobre ela, muito se deve à forma de como o texto é trabalhado, se fazendo
quase sempre de modo obrigatório desprovido de prazer e curiosidade, elementos
fundamentais para o exercício de uma boa leitura.

De fato, no ambiente escolar, a leitura dos textos literários –quando ocorre- é cobrada
ou imposta ao invés de ser indicada, o que se torna para o aluno uma atividade tediosa e
cansativa, essa ideia o leva acreditar que a leitura é feita para a escola e não para si mesmo
uma vez que ela possibilita transformações e evoluções intelectuais e psicológicas.

No processo de ensino aprendizagem da leitura, o texto literário perde espaço para


outros gêneros - não que se tenha que privilegiar este - por possuir uma linguagem
artisticamente elaborada e metafórica, com um vocabulário, na maioria das vezes, mais
rebuscado, com expressões arcaicas, entre outras características, as quais são motivos do
aluno não adquirir uma interação ou uma intimidade maior com o texto literário, logo, em
grande parte das aulas, prevalece a interpretação do professor ou dos livros didáticos. Vale
ressaltar que, o educador deve ser o mediador e facilitar essa interação entre o aluno e o texto
literário, pois dependendo da forma de como o texto será abordado, esse encontro pode
apresentar um grande significado, seja na busca plena para o texto literário, para o próprio
aluno e para a sociedade em que estão inseridos, pois de acordo com os Parâmetros
Curriculares Nacionais de Língua portuguesa.

É importante que o trabalho com o texto literário esteja incorporado às


práticas cotidianas da sala de aula, visto tratar-se de uma forma específica
de conhecimento. Essa variável de constituição da experiência humana
possui propriedades compositivas que devem ser mostradas, discutidas e

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contemporâneas

consideradas quando se trata de ler as diferentes manifestações colocadas


sob a rubrica geral de texto literário.50

Faz-se necessário enfatizar que, para a leitura de um texto literário, cabe a nós
professores, considerar não apenas a leitura retilínea, superficial aplicada ao texto, mas
destacar os inúmeros significados construídos a partir dele, que envolve a compreensão,
interpretação, apreensão daquilo que se está lendo, destacando o seu valor semântico uma vez
que o texto literário deve ter intertexto, intertextualidade, tecer sentidos, levando o aluno a
outras percepções, a concepções de culturas, de vida e de mundo.

Portanto, fortalecer o hábito da leitura desde cedo, caracteriza também a formação de


posturas críticas nos leitores, desencadeando formadores de opiniões partindo da relação
texto-leitor. O gosto pela leitura deve ser descortinado desde o primeiro contato da criança
com as letras na educação infantil, esse despertar da imaginação, emoção, sentimento de
desvendar o mundo da leitura uma descoberta feliz, a concepção de felicidade, neste caso,
também pode ser atribuído aquela criança desprovida de bens materiais que alcança através
do fascinante mundo da leitura a descoberta de mundos, de personagens, de fatos que só a
imaginação pode transportá-las.

3. Drummond na sala de aula: uma proposta para o ensino-aprendizagem


de literatura

A nossa proposta de metodologia de ensino-aprendizagem está baseada a partir das


teorias de Rildo Cosson (2006) que defende a ideia do letramento literário escolar, ou seja,
um ensino de literatura de forma sistematizada, no qual a leitura pode e deve ocorrer de
maneira metodologicamente planejada, estabelecendo estratégias para a sua compreensão e
interpretação. Dessa forma, uma de suas propostas se fundamenta em um processo de:
motivação, introdução, leitura e interpretação, os quais ele denominou de “sequência básica”.

O primeiro passo implica que, antes de qualquer atividade de leitura, é necessário que
se faça a motivação para introduzir os textos literários na sala de aula, ou seja, preparar o
aluno para “adentrar” no texto através de uma situação para que se estabeleçam laços
estreitos com o texto a ser lido.

O processo de introdução significa uma sucinta apresentação da obra e do autor


somente com informações básicas (nome do autor e da obra, período em que foi escrito, etc.)
sem muitos detalhes. É fundamental que neste momento se evite fazer uma síntese da história
para deixar essa descoberta para o aluno. Após esse passo, a leitura do texto entra em cena,

50
Parâmetros Curriculares Nacionais, Língua portuguesa.

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contemporâneas

sendo que esta tem que ser feita na íntegra, pois o contato com texto por completo
proporciona uma experiência estética que não temos ao lermos somente o resumo de uma
obra. É neste momento que o leitor aprecia a literatura como objeto estético.

Por fim, adentramos na interpretação, processo em que o leitor primeiramente faz a


apreensão global partindo em seguida para o que está implícito no texto. Nesse momento, o
contexto cultural, o conhecimento de mundo e de leitura são fatores primordiais que
contribuirão para a construção da interpretação textual. A interpretação será finalizada
somente após a concretização, isto é, a materialização da leitura, momento exterior que se
resume em atividades de interpretação, dessa forma os alunos tomarão consciência de que são
membros de uma coletividade e o quanto é importante manter diálogos com a comunidade
escolar, uma vez que através dessas atividades o leitor pode refletir sobre a obra lida,
compartilhar, fortalecer e ampliar seus horizontes de leitura.

Como podemos observar os contos, como narrativas breves, são muito adequadas para
um trabalho introdutório de aquisição de leitura e de formação de leitores efetivos. Os contos
podem ser ainda, considerados como uma preparação para a leitura de narrativas maiores,
como as novelas, os romances etc.

Baseando-se na “sequência básica” propomos algumas atividades com os contos


mencionados anteriormente:

Atividades de motivação:

A Incapacidade de ser verdadeiro, nesta narrativa a personagem central é Paulo, uma


criança dona de uma grande imaginação e que acabava passando sempre como um grande
mentiroso, cada dia Paulo aparecia com uma conversa diferente em casa, em suas histórias
surgiam de tudo, dragões- da- independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas, na semana
seguinte algo ainda mais curioso um pedaço da lua havia caído no pátio da escola, ela era
feita de queijo com buraquinhos e gosto de queijo, uma vez que o próprio Paulo havia
provado, em outro caso o menino falou que todas as borboletas da terra passaram pela
chácara de Siá Elpídia e que formariam um espécie de tapete voador e que iriam transportá-lo
ao sétimo céu.

Por consequência de tantas histórias a mãe de Paulo aplicara a ele vários castigos, foi
proibido de jogar futebol durante quinze dias, ficou sem sobremesa e por fim foi levado ao
médico, o Dr. Epaminondas, a opinião do especialista foi surpreendente, pois ele dissera que
o menino era mesmo um caso de poesia. Uma vez que a imaginação o dominava, o
transportando para qualquer lugar que desejasse, e a poesia tem esse poder, criar, viajar,
imaginar, o poeta tem o poder de ser, de fingir, de descobrir os mais profundos desejos. Deste

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modo Paulo também detinha esse poder, porque criava tão perfeitamente suas histórias que
eram para ele a mais pura realidade.

Assim que, este conto aborda a temática da imaginação, portanto antes de sua leitura,
o professor questionará a expressão “a incapacidade de ser verdadeiro”, o que é ser
verdadeiro? A mentira é necessária em alguns momentos da nossa vida? Quais os limites
entre mentira e imaginação?

No texto Flor, Moça, Telefone, relata a história de uma moça que morava próximo ao
cemitério São João Batista, Rio de Janeiro, que não só adquiriu o hábito de ver e acompanhar
os enterros que por ali passavam, como também, o de passear durante as tardes “pelas ruinhas
brancas do cemitério”. Tudo neste lugar era motivo de curiosidade, pois “olhava uma
inscrição... descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida, uma águia, comparava as
covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de idade dos defuntos…”.

Certo dia, em um de seus passeios, foi até a parte mais nova do cemitério, onde se
encontravam as covas mais modestas e justamente lá apanhou uma flor, como de costume,
chegou, depois amassou e jogou fora. Ao voltar para casa, poucos minutos em seguida o
telefone tocou e a moça atendeu do outro lado da linha era uma voz “longínqua, pausada,
surda” pedindo de volta a flor que a moça havia tirado da sua sepultura.

A princípio, acreditando na possibilidade de ser um trote passageiro, a moça encarou


tudo na brincadeira. Contudo, a voz continuou insistindo através de diversos telefonemas de
uma “voz” sempre pedindo a sua flor de volta. A trama toda se desenvolve em meio a esses
telefonemas misteriosos e incansáveis, a moça já se encontrava desesperada, irritada, enfim,
exausta da perseguição telefônica, recorre à família. O pai e o irmão passaram a indagar,
apurar a vizinhança, nos telefones públicos; a mãe até que fez a sua tentativa, pois levou
ramalhetes e os deixou em alguns túmulos, queixaram-se à polícia, à companhia de telefone e
até mesmo ao espiritismo, mas nada adiantava.

Desanimada, a moça passou a perder o apetite, o sono, o ânimo para sair, “sentia-se
miserável, escravizada a uma voz, uma flor, a um vago defunto que nem se quer conhecia”.
Depois de alguns meses, exausta, a moça falece e a voz finalmente deixa de perturbar.

Nessa narrativa, o Professor escreveria o título do conto no quadro, como se trata de


três palavras soltas que aparentemente não possuem nenhuma ligação, seria pedido aos
alunos que construíssem uma pequena história envolvendo essas três palavras, em seguida
guardá-las para serem lidas somente no final do processo de interpretação. Essa é uma
atividade não para apurar qual a história que se aproxima mais do conto de Drummond, mas

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

sim para estimular a criatividade dos alunos na produção textual e a curiosidade sobre o
conteúdo do conto que será lido.

A doida, é um conto que tem como personagem principal uma mulher tomada pela
loucura e que ao ser repudiada pela família, fora se abrigar em um chalé no centro do jardim
maltratado. Lá próximo havia um córrego, onde, os moleques que moravam pelas redondezas
costumavam tomar banho e, é claro, perturbá-la só para não perder o hábito; por medo, não
passavam do jardim, havia uma curiosidade em saber como ela era, se questionavam o
motivo da loucura e porque fora abandonada, já que morava por tanto tempo ali e gerações
sucessivas de moleques passavam pela porta e atiravam pedras.

Certa manhã, três garotos desceram para o córrego e aproveitaram a oportunidade e


passaram no chalé da doida com o intuito de irritá-la. Pegaram calhaus lisos, de ferro para
atirar na casa, mas não obtiveram “bons” resultados, pois a doida não percebeu a agressão e
não reagiu, jogar pedras já tinha perdido a graça, “as vidraças partidas não se recompunham
mais”. Em seguida um dos garotos se encheu de coragem e invadiu o jardim para praticar
outras e maiores façanhas. Firme e cauteloso, era o primeiro a pisar naquele espaço, onde
raramente se tinha coragem de chegar.
Excitado com a aventura, o menino observava tudo e estava determinado a conhecer o
local e o que ocorre nele. Por sua vez, a doida apesar de assustar-se com a invasão não deu
sinal de guerra, pelo contrário, estava recolhida, amedrontada “era simplesmente uma velha,
jogada no catre preto do solteiro... E que pequenininha! O corpo sob a coberta formava uma
elevação minúscula.... E parecia ter medo”. Neste instante ocorre um momento de
cumplicidade, pois a doida percebeu que podia confiar naquele menino, este deixou de lado o
desejo de maltratá-la ao notar que ela aparentava necessitar de cuidados. Notou que estava
frágil e que talvez estivesse morrendo, até pensou em pedir ajuda, mas decidiu não a deixar
sozinha em casa exposta a pedradas. Então se sentou ao seu lado, pegou-lhe nas mãos para
esperar o que iria acontecer, afinal, não queria que ela morresse em completo abandono.

Nesse contexto, o professor pode escolher uma das temáticas que o conto aborda, por
exemplo, o preconceito e fazer uma enquete sobre as pessoas que mais sofrem preconceitos
na nossa sociedade. Será registrado no quadro os três nomes mais votados para o professor
iniciar uma pequena discussão sobre esse assunto, para depois começar a leitura do conto.

Introdução e leitura:

Após as atividades de motivação o professor fará uma breve apresentação do conto e


do autor e partirá para a leitura. Como se trata de narrativas curtas, ela poderá ser lida em
uma ou duas aulas, ficando a critério do professor de que forma ela será feita (individual, em
grupo, dupla). Neste caso, quando se tratar de textos pequenos, devem ser feitos na sala de

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aula, na biblioteca ou qualquer outro local agradável e adequado. Quando, no entanto, se


tratar de narrativas mais longas, o professor pode, além de estimular, de motivar a leitura,
estipular um tempo determinado para a leitura, desde que seja uma leitura acompanhada e
sempre levar em conta as possíveis dificuldades do aluno.

Interpretação:

Como já foi comentado anteriormente, a interpretação se dará de acordo com o


contexto cultural, o conhecimento de mundo e de leitura dos discentes. Destacando também o
papel importante do professor em contribuir para a interpretação acrescentando suas
considerações em conjunto com os seus alunos.

Portanto, para contribuir de maneira mais profunda para a interpretação é importante


inserir atividades que materializem o entendimento de cada texto, ou seja, as atividades de
interpretação, por exemplo, podemos incluir a literatura com outras artes:

Como o teatro, o qual possibilitará a interpretação teatral feita pelos alunos


representando o conto ou a cena mais importante para eles. O cinema, o professor pode
utilizar filmes que abordam as mesmas temáticas ou até mesmo os que são adaptados como
no caso do conto “A Doida” que adaptado para o cinema em forma de curta-metragem
dirigido por Bel Bechara e Sandro Serpa. Em seguida fazer um trabalho comparativo das
duas artes (literatura e cinema).

Vale ressaltar que o cinema é um recurso que auxilia a interpretação do aluno, por isso
é fundamental primeiramente que o aluno tenha contato com o texto literário. Com a pintura,
os alunos poderão desenhar as cenas que mais lhe impressionaram, ou a que define a história
para cada um e confeccionar um mural.

Outras possibilidades de atividades são a produção textual, pois os alunos poderão


produzir finais alternativos, incluir outros personagens, produzir histórias em quadrinhos,
textos com colagens ou pinturas entre outros. E a pesquisa de campo, por exemplo, através
do conto “Flor, Telefone, Moça”, o corpo discente poderá pesquisar histórias, causos, que
envolvam o sobrenatural e produzir uma pequena coletânea como registro para a escola.
Desde que sejam atividades expostas para a comunidade escolar.

Como vimos os contos abordam diversas temáticas, o que possibilita o trabalho com
temas transversais (ética, gênero, saúde, pluralidade cultural), logo é de extrema importância
o professor instigar o aluno a uma reflexão sobre temas presentes no cotidiano como: a
imaginação, a verdade ou a mentira; presentes no conto “A incapacidade de ser verdadeiro”;
os valores e os preconceitos sociais, a ausências das bases educacionais da família, o

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tratamento que a sociedade dá aos seus “doentes”, a descoberta individual etc., abordados em
“A doida”; o sobrenatural, os hábitos pessoais, a morte, entre outros que estão em destaque
em “Flor, Telefone, Moça”.

Refletindo, à guisa de conclusão , um pouco mais sobre a prática pedagógica

As palavras povoam o nosso universo cotidiano. É nosso instrumento de trabalho, é a


nossa ferramenta de comunicação. No entanto, as palavras não nos representam, ou o fazem
apenas precariamente. O poeta já nos adverte quanto à luta insana de se lutar contra as
palavras. Símbolos precários, as palavras não traduzem o que somos. Através delas nos
apresentamos, através delas, nos ocultamos.

O fazer docente é sempre um processo em construção. Nunca estamos prontos, nunca


estamos acabados. Cada sala de aula apresenta uma realidade específica e única. O professor
como facilitador, deve estar atento às diversas realidades que ocorrem na sua sala de aula. As
aulas de literatura devem, antes de mais nada, ser aulas de prazer, de descoberta, de incentivo
e não aulas maçantes, de cobranças irracionais, de teorias para serem memorizadas. A história
da literatura deve apenas ser um dos componentes das aulas. Não o principal. Mas o que
esclarece, que acompanha, que elucida o texto literário.

Segundo Paulo Freire


O educador faz “depósitos” de conteúdos que devem ser arquivados pelos
educandos. Desta maneira a educação se torna um ato de depositar, em que
os educandos são os depositários e o educador o depositante. O educador
será tanto melhor educador quanto mais conseguir “depositar” nos
educandos. Os educandos, por sua vez, serão tanto melhores educados,
quanto mais conseguirem arquivar os depósitos feitos. (Freire, 1983:66)

O educador precisa repensar a prática pedagógica, uma vez que ela implica o direito
de protestar, questionar o sistema de ensino, os “modismos” pedagógicos, mas sempre
refletindo sobre o seu fazer porque não existe fórmula para educar e sim sujeitos sociais,
inseridos num contexto específico forjando uma maneira de ler o mundo a qual deve ser
buscada no diálogo com uma literatura, que não seja sinônimo de “fardo”, castigo e suporte
gramatical.

Diante disso, novas teorias e maneiras de agir tentam modificar tal situação, as
atividades sem uma direção metodológica estabelecida podem até distrair os alunos, mas não
apresentarão a efetividade esperada de uma estratégica educacional. É claro que as atividades
de proposição de textos devem variar, levando-se em consideração a idade, a série, a
dificuldade do texto a ser abordado e a realidade do aluno.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Nesse sentido, não há receitas prontas. A leitura nos prepara para que nós nos
tornemos mais potencialmente humanos. A leitura nos informa, nos forma, nos conforma. A
leitura suscita diálogos com o nosso conhecimento prévio. Imediatamente, ao ler,
correlacionamos, formulamos associações, estabelecemos critérios de valor.

Todos os tipos de textos devem ser privilegiados em sala de aula. O presente trabalho
se concentrou em apenas uma modalidade textual. Isso não quer dizer que outros tipos de
textos não devam estar presentes na vida do aluno. Não há, também, qualquer
posicionamento contra a veiculação das imagens, já que as imagens são também
possibilidades textuais que exigem tipos de apreensão diferentes da apreensão que se dá em
um texto verbal.

A leitura deve preparar o indivíduo para a vida. A escola é apenas uma fase nessa
trajetória. Nem sempre a fase melhor. Cabe ao professor despertar esse gosto pelo belo, pelo
novo, pela palavra, pelas imagens, pelo estético, pela realidade, pela reflexão etc. etc. etc.

Ler é, em suma, estar em sintonia com tudo.

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos de Aprendiz. 49ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.
__________, Carlos Drummond de,... [et al.]. Deixa que eu Conto: Antologias de Contos.
Coleção Literatura em Minha Casa v2. São Paulo: Ática, 2002.
BOSI, Alfredo. O Conto Brasileiro Contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 2008.
BRAGA, Patrícia Colavitti. O Ensino da Literatura na era dos Extremos. Revista Letra
Magna Eletrônica de divulgação Científica em Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura.
Ano 03. nº05. Semestre de 2006.
CÂNDIDO, Antonio. Vários Escritos 4ª Ed. Rio de Janeiro, 2004.
COSSON, Rildo. Letramento Literário: Teoria e Prática. São Paulo: Contexto, 2006.
COUTINHO, Afrânio & COUTINHO, Eduardo de Faria. A Literatura no Brasil: era
Modernista. v.05. São Paulo: Global, 2001.

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contemporâneas

Manifestações da memória traumática no conto A terceira margem do rio,


de João Guimarães Rosa

Bruna Stéphane Oliveira Mendes da Silva


Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
brunamendes_90@live.com

Resumo: este trabalho pretende estabelecer uma análise do conto A terceira margem do rio,
de Guimarães Rosa, baseando-se, principalmente, nas representações da memória traumática
do narrador-personagem observadas ao longo de seu discurso. Além disso, tenciona-se
apontar a importância do relato como mecanismo de elaboração e superação da memória
traumática por parte do narrador e a consequente construção de um entre-lugar desde o qual
este processo torna-se possível.

Palavras-chave: “A terceira margem do rio”; “Memória”; “Trauma”; “Entre-lugar”;


“Relato”.

Em seu conto A terceira margem do rio, Guimarães Rosa nos traz o relato de um filho
sobre a decisão de seu pai de construir uma canoa para si e abandonar a família a fim de
habita-la sozinho, sem deixar claros os motivos que o levaram a tomar esta decisão. O
narrador-personagem mantém cuidados regulares com o pai, deixando mantimentos para ele
na beira do rio. A mãe tenta, inutilmente, fazer com que seu marido volte para casa.

Com o passar dos anos impõe-se um silêncio dentro da família através da proibição de
se mencionar o nome paterno. Pouco-a-pouco todos começam a ir embora, primeiro os
irmãos do narrador-personagem e em seguida sua mãe. No entanto, o narrador permanece.

Transcorrem-se mais alguns anos, o filho começa a envelhecer, quando decide


anunciar ao pai seu desejo de assumir seu lugar na canoa. Então, o homem, que desde que
partiu nunca respondeu a nenhum gesto dirigido a ele, assente, se levanta e começa a
movimentar-se em direção ao filho. O narrador se assusta e foge.

O trauma decorrente do abandono paterno injustificado permeia o discurso do narrador-


personagem e funciona como pano de fundo na elaboração de seu relato. Ele demonstra
sentimentos de angustia e culpa que entendemos serem provenientes de sua dificuldade de
desprender-se da memória do pai e finalmente deixa-lo ir. O filho sente-se de alguma forma
responsável pela situação vivida por esse homem, ao ponto de terminar decidido a assumir
seu lugar no rio, como em uma linha sucessória em que se espera que o primogênito dê

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sequência ao trabalho paterno. No entanto, por ele ceder ao medo eacabar fugindo dessa tal
responsabilidade, seus sentimentos anteriores de angustia, e especialmente de culpa se
intensificam e chegam ao ápice.

Entendemos a necessidade do pai de habitar sozinho sua canoa no meio do rio como
uma busca por autoconhecimento, possivelmente para a elaboração de uma memória
traumática particular da qual o narrador-personagem não tem conhecimento. No entanto, o
distanciamento e silêncio paternos transmitiram o trauma ao filho, levando-o a sentir
necessidade de habitar sua própria canoa rumo à elaboração da vivência traumática e
compreensão de sua identidade. Pois, Márcio Seligmann-Silva, citando a Bohleber¹ coloca
que,

nas famílias em que os pais se protegeram do trauma negando-o e se


recusando a falar dele, as crianças receberam de modo inconsciente os fatos,
relacionando-se com ele via fantasia e – dentro de um esquema mítico-
repetitivo – ‘agindo’. Em certos casos, a identificação com o sofrimento dos
pais levou ao que foi denominado de ‘télescopage’ de duas ou até três
gerações. (SELIGMANN-SILVA, 2005:69)

Chegamos a esse entendimento levando-se em conta as várias marcas do trauma no


discurso no narrador, que serão abordadas com maiores detalhes no decorrer desse trabalho, e
sua intenção de assumir o lugar do pai na canoa, seguida do profundo sentimento de culpa
por fugir dessa suposta responsabilidade.

No decorrer do relato o narrador-personagem questiona-se sobre uma culpa que ele


provavelmente sente, mas nega: “De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai,
sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo (ROSA, 1988:36)”.
Segundo Seligmann-Silva (2005:71), a negação da culpa pode gerar um bloqueio no processo
de luto, o que dificulta a superação da situação traumática, pois a vivência se distancia do real
e consequentemente se aproxima do simbólico.

Bohleber¹, citado por Seligmann-Silva, destaca ainda que “a incapacidade de enlutar


leva à melancolia” (SELIGMANN-SILVA, 2005:68). Com base nisso, destacamos a obsessão
do narrador pela presença latente da ausência paterna, pois ele nunca conseguiu se acostumar
com aquela situação e sempre pensava no pai, preocupado com as condições que o homem
estaria enfrentando na canoa e questionando-se sobre como ele poderia sobreviver às mais
variadas adversidades. Entendemos, portanto, que a resistência em aceitar a ausência de seu
pai gera um sentimento de angustia no narrador, que não compreende o distanciamento
paterno e chega a duvidar dos sentimentos dele pela família. Em suas próprias palavras:
“Nem queria saber de nós; não tinha afeto?” (ROSA, 1988:35).

O narrador ainda se define como sendo um homem de tristes palavras, o que torna
ainda mais evidente a angustia que ele sente relacionada à memória traumática, não apenas

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do momento de partida do pai, mas de uma vida inteira de abandono e de uma


presença parcial – a presença latente da ausência de alguém que na verdade nunca partiu.

Márcio Seligmann-Silva, citando Nicolas Abraham e Maria Torok², ressalta que “a


realidade é revista sob a ótica da psicanálise como o ‘lugar em que o segredo está
escondido’” (SELIGMANN-SILVA, 2005:73). O grande segredo em A terceira margem do
rio reside no mistério sobre os motivos que levaram o pai do narrador-personagem a construir
a canoa e habita-la sozinho no centro do rio próximo a sua casa. Esse segredo atormenta o
narrador e o leva a um constante questionamento, a uma incansável busca por respostas que,
é sabido, ele jamais poderá encontrar. Esse limite entre ausência e presença, norteado por
inúmeras perguntas e nenhuma resposta, incomoda o filho e o leva a questionamentos tais
como: “se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou
descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse” (ROSA,
1988:35).

Após o desaparecimento do pai do narrador, de quem ninguém nunca mais tem


noticias, este segredo morre com as únicas pessoas que possivelmente o conheciam: Ele
próprio e o homem a quem incumbiu à fabricação da canoa – já que, nas palavras do
narrador-personagem: “constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao
homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém
soubesse, fizesse recordação, de nada mais” (ROSA, 1988:36). Desta forma, a realidade dos
fatos que motivaram a decisão do pai torna-se completamente impossível de ser revelada e,
portanto, assimilada pelo filho. Entendemos que devido a essa incapacidade de assimilar a
situação traumática, o narrador é levado a reviver repetidas vezes o trauma buscando
compreender o vivido, pois de acordo com Paul Valéry¹, citado por Seligmann-Silva, “a nossa
memória nos repete o discurso que nós não havíamos compreendido. A repetição responde à
incompreensão” (SELIGMANN-SILVA, 2005:78).

Em A Terceira margem do rio a sensação de perda está presente no ambiente familiar


de forma perturbadora. Difere-se da dor da morte de um ente querido, em que as esperanças
de seu retorno são completamente destruídas, restando apenas, como alternativas, superar ou
sucumbir. O que a família deste conto sente é na verdade a mesma angustia vivida pelos que
aguardam notícias de um desaparecido, condenados a uma longa espera por alguém que não
se sabe se voltará. E é por isso que, com o passar dos anos, pouco-a-pouco, os familiares
passam a abandonar a lembrança de um pai cuja presença se confunde com sua ausência,
como um recurso para conseguir seguir com suas vidas adiante. No entanto, o narrador-
personagem é aquele que fica, é incapaz de abandonar a lembrança paterna e mantém viva a
esperança de seu retorno. Sua dificuldade em aceitar a essa ausência o leva a buscar vias de
aproximação com o pai a partir do autoconhecimento. Isso se torna possível a partir da

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decisão do narrador de construir sua própria canoa e assumir sua identidade no rio, na terceira
margem.

Lívia Duarte e Maria Silva compreendem a terceira margem como um entre-lugar e o


interpretam como um ponto de união, pois “tal palavra comporta o sentido de ser a linha do
que se reflete na água e também, ao mesmo tempo, do próprio reflexo; do concreto e do
abstrato; do estar dentro e fora; da partida e da chegada; do instável e do certo” (DUARTE e
SILVA, 2011).

Este conceito está muito bem representado no conto através da ambiguidade vivida
pelo pai, que ao mesmo tempo em que vai embora de sua casa e abandona a família, não se
distancia de fato, passado a viver próximo deles no meio do rio. Habitar esse entre-lugar
significa ao mesmo tempo presença e ausência. É um eterno retorno cristalizado no tempo,
uma partida sem volta, visto que nunca se foi de fato. Como o próprio narrador define:
“Nosso pai não voltou, ele não tinha ido a nenhuma parte” (ROSA, 1988:33).

O narrador-personagem reconhece que ainda que seu pai tenha partido ele não havia
ido a parte alguma, de modo que pensar em seu retorno é algo incoerente. Assim ele admite
que este pai na verdade está habitando um lugar simbólico que se contrapõe ao real, um
entre-lugar.

Ainda de acordo com Duarte e Silva, a concepção de margem poderia significar


“término e ao mesmo tempo continuidade de uma viagem em direção ao infinito, busca de
solução para determinado problema” (DUARTE e SILVA, 2011). Portanto, entendemos que a
terceira margem é também espaço para o autoconhecimento, é uma representação simbólica,
um entre-lugar que precisa ser construído, reflexo dos principais anseios e buscas na vida de
um indivíduo.

O narrador, dominado pela culpa e pela angustia em resposta a vivência traumática,


sentirá o desejo de habitar sua própria canoa na terceira margem em busca da elaboração do
trauma e da compreensão de si mesmo. O relato aparecerá como um meio para iniciar este
processo.

De acordo com Marcio Seligmann-Silva, “a experiência traumática é, para Freud,


aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre. [...] A linguagem tenta cercar
e dar limites àquilo que não foi submetido a uma forma no ato da sua
recepção” (SELIGMANN-SILVA 1999:1).

Seligmann-Silva (1999) destaca ainda que o relato pode funcionar como um


mecanismo que possibilita ao sujeito libertar-se das lembranças traumáticas, pois a
elaboração da memória é uma autorreflexão que permite a passagem da insciência para a
consciência, do real para o simbólico. Ressaltando também a importância da unicidade do

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

testemunho, que de acordo com o autor, em citação a Primo Levi¹, “expressa o ponto de vista
único e insubstituível do narrador” (SELIGMANN-SILVA, 2005:79), entendemos que o
caráter testemunhal do conto possibilitará ao narrador construir sua própria consciência, pois
é através do relato que ele pode superar os sentimentos de culpa e dor relacionados à ausência
da figura paterna.

No que tange ao relato expresso através da literatura de testemunho, Márcio


Seligmann-Silva (2005:74) aponta que a literatura é uma das vias através da qual o sujeito
pode elaborar a experiência traumática em busca de sua assimilação, pois ela encena a
criação do “real”, sua encriptação, resistência ao simbólico e o desejo de introjeção. O autor
ainda completa:

A literatura está na vanguarda da linguagem: ela nos ensina a jogar com o


simbólico, com as suas fraquezas e artimanhas. Ela é marcada pelo “real” –
e busca caminhos que levem a ele, procura estabelecer vasos comunicantes
com ele. Ela nos fala da vida e da morte que está no seu centro [...], de um
visível que não percebemos no nosso estado de vigília Angst (angústia),
diante do pavor do contato com as catástrofes externas e internas
(SELIGMANN-SILVA, 2005:74)

Portanto, entendemos que ao apresentar-se como um simulacro do “real”, a literatura


permite ao indivíduo uma melhor análise e assimilação da experiência traumática e funciona
como um caminho rumo à superação do trauma.

Na construção de seu relato o narrador-personagem não entra em muitos detalhes,


permitindo que o leitor crie suas próprias interpretações. Walter Benjamin destaca como
característica de um texto narrativo que o contexto psicológico não seja imposto ao leitor,
sendo este “livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge
uma amplitude que não existe na informação” (BENJAMIN, 1936:203).

Desse modo, ao não explicar tudo, criando lacunas que só podem ser preenchidas pela
interpretação do leitor, o narrador de A terceira margem do rio nos oferece uma história
atemporal e ampla no que tange a diversidade de interpretações possíveis, como as “sementes
de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das
pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas” (BENJAMIN, 1936:204).

Durante vários anos o narrador-personagem viu-se impedido por sua mãe de falar
sobre o pai, ainda que o assunto fosse uma constante em seus pensamentos. Seligmann-Silva,
citando a Walter Benjamin¹, nos revela que “a imagem do passado que cintila no agora da sua
reconhecibilidade é de modo geral uma imagem da memória. Ela assemelha-se às imagens do
passado que assaltam as pessoas” (SELIGMANN-SILVA, 2005:80). Entendemos que tal
imagem está representada no conto através da impossibilidade de se esquecer do pai, de
modo que sua lembrança permeia continuamente o universo familiar na figura de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

sobressaltos, de acordo com o que descreve o narrador-personagem: “Nós, também, não


falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e,
se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente,
com a memória, no passo de outros sobressaltos” (Rosa, 1988:35).

Logo, apesar da permanente ausência do pai e da proibição por parte da mãe em se


mencionar seu nome, a família não consegue esquecê-lo, de modo que a figura paterna, como
uma imagem da memória, segue presente no cotidiano familiar através dos sobressaltos
descritos pelo narrador, que entendemos como marcas diárias e recorrentes de reminiscência.

O silêncio inicialmente imposto ao narrador-personagem perpetuou durante muito


tempo em sua vida, inclusive depois que a família partiu, após sua fuga e durante algum
tempo posterior a ela. Este silêncio só é quebrado quase no fim da vida do narrador, quando
ele finalmente recorre ao relato para elaborar seu testemunho sobre a situação traumática
vivida. Considerando-se a afirmação de Seligmann-Silva, citando a Laub², tal fenômeno é
perfeitamente compreensível, pois “Laub enfatiza a belatedness do testemunho: o tempo que
ele demorou para ser elaborado e para que a sociedade pudesse ouvi-lo é resultado da
impossibilidade de testemunhar diretamente o evento” (SELIGMANN-SILVA, 2005:70).
Entendemos que a dificuldade do narrador em lidar com a memória do trauma é o que o
impede durante um longo período de elaborar seu testemunho, de modo que ele apenas
consegue fazê-lo no fim de sua vida.

Concluímos que o narrador-personagem apresenta diversas marcas do trauma em seu


discurso, evidenciando sentimentos de angustia, hesitação, medo e culpa. Entendemos que
tais sentimentos são provenientes do abandono paterno, mas também de um trauma por
tabela, resultante do silêncio do pai em sua dificuldade em lidar com seus próprios conflitos
internos. Dessa forma, o relato apresenta-se como uma importante via de elaboração da
vivência traumática, a partir de um entre-lugar que o pai constrói e que o narrador deseja
construir rumo ao autoconhecimento e superação do trauma.

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e


técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,
1994.
DUARTE, Lívia Lemos; SILVA, Maria de Fátima Santos. Artigo: O entre-lugar na Terceira
margem do rio, de Guimarães Rosa e em Las dos orillas, de Carlos Fuentes. Disponível em:
< h t t p : / / w w w. l e t r a s . u f r j . b r / n e o l a t i n a s / m e d i a / p u b l i c a c o e s / c a d e r n o s / a 4 n 3 /
livialemos_mariasantos.pdf>. Acesso em: 15 de ago. de 2016.
ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1988.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A literatura do trauma. Cult, n. 23, junho de 1999.


SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura e Trauma: Um novo paradigma. In: O local da
diferença. São Paulo: Editora 34, 2005.

Cadernos negros: uma experiência de leitura com os contos afro-brasileiros


em sala de aula

Cláudia dos Santos Gomes51


Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
rical_fsa@yahoo.com.br

O projeto de intervenção surgiu da necessidade de inserir no espaço escolar uma


literatura que apresentasse autores afro-brasileiros cujas vozes são, muitas vezes, silenciadas
por conta de aspectos sociais, políticos, ideológicos e culturais. A ausência de um trabalho de
leitura com a Literatura Afro-Brasileira, contrariando a Lei 10.639/03, que obriga as
Instituições Escolares a inserem em seus currículos a História e Cultura Afro-Brasileira em
salas de aula do Ensino Fundamental II, torna distante o reconhecimento de produções de
escritores negros que retratam aspectos inerentes à vida do afro-brasileiro. Assim, a Literatura
Afro-Brasileira foi apresentada aos educandos através do gênero conto, pois sendo um gênero
narrativo, ele facilitará o diálogo entre os educandos e os autores que lhes foram apresentados
através da obra Cadernos Negros, volume 30. A proposição foi desenvolvida a partir da
pesquisa qualitativa e participativa dos sujeitos envolvidos através da leitura em sala de aula
desses contos. Na coletânea, os temas presentes possibilitaram maior aproximação entre os
leitores e as histórias narradas, pois são contos que abordaram questões sobre moradia,
infância, abandono, preconceito, aspectos culturais, gravidez na adolescência, racismo dentre
outros temas muito comuns na realidade atual. Esperou-se com a aplicação da proposição
tornar o contato e a leitura da Literatura Afro-Brasileira nas aulas de Língua Portuguesa
possíveis através dos contos apresentados no Ensino Fundamental II, a fim de formar leitores
multiplicadores, mais conscientes e críticos diante da realidade em que estão inseridos,
valorizando sua cultura, sua ancestralidade e elevando sua autoestima num ambiente
favorável à discussão em torno da temática afro-brasileira e sua contribuição para a formação
de identidade nacional.

51Mestranda no Profletras - Mestrado Profissional de Letras – UNEB – Campus V – Santo Antonio de Jesus,
Bahia. Endereço eletrônico: rical_fsa@yahoo.com.br.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Palavras-chave: Literatura Afro-Brasileira; Cadernos Negros; Contos; Negritude; Lei


10.639/03.

Introdução

A proposta de intervenção “Cadernos Negros: uma experiência de leitura com os


contos afro-brasileiros em sala de aula” visou despertar nos educandos do 9º ano a
importância do contato com uma Literatura que envolvesse temas pertinentes à negritude
ancorados pela Lei Federal 10.639/03, alterada posteriormente para 10.645/0852que legitima a
inserção no currículo das escolas públicas e particulares no ensino da História e das Culturas
Africana e Afro-Brasileira de forma interdisciplinar cumprindo assim o direito à igualdade de
condições de vida e de cidadania já dispostos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), Lei 9394/96, que garante igual direito às histórias e culturas que formam a
nação brasileira.

A Lei 10.639/03 que completou 13 anos recentemente e que foi fruto de Lutas de
Movimentos Negros ao longo do tempo surgiu da necessidade de ressignificar a valorização
da cultura africana que compõe a diversidade cultural brasileira. No entanto, em muitas
instituições escolares, o ensino sobre africanidades é tratado de modo insatisfatório, isso só
vem reforçar que o centro do ensino escolar ainda é “europeizado” deixando às margens uma
gama de conhecimentos voltados para a cultura de um povo que foi a base para a construção
econômica, principalmente, e social-cultural. Nesse sentido, a Lei Federal 10.639, sancionada
no dia 09 de janeiro de 2003, reacendeu uma discussão, pois falar em África para muitos, é
falar em miséria, sofrimento, fome e doença, criando-se assim, um estereótipo. No entanto,
outros defendem que:

A educação tem fundamental importância nesta luta, pois se acredita


que o espaço escolar seja responsável por boa parte da formação
pessoal dos indivíduos, sendo assim um ambiente fundamental para a
superação das desigualdades raciais e superação do racismo. (COSTA
E DUTRA, 2009)

Assim, a ideia defendida por Costa e Dutra (2009) está ancorada na Lei 10.639/03
que descreve:

Art. 1º A lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar


acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:

52A Lei 10.645/08 estabelece a inserção obrigatória nos currículos escolares o ensino da História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,


oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e
Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas
áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial
nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira.
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como
‘Dia Nacional da Consciência Negra’. (LUIZ INÁCIO LULA DA
SILVA / Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque)

Ao analisar o trecho da Lei, observa-se um olhar especial para o ensino de


africanidades não somente na perspectiva física, mas principalmente na perspectiva
ideológica que faz com que o espaço escolar desperte no educando o senso crítico fazendo-o
perceber o papel do indivíduo na formação de sua identidade e na (re) afirmação dos valores
culturais que formaram ao longo do tempo a identidade do povo brasileiro.

Assim, a presente proposta firmou-se com ênfase no estudo da Literatura


envolvendo alguns contos afro-brasileiros que abordam a cultura e a história da
afrodescendência na formação das identidades culturais, seus valores e estereótipos
construídos, negativamente, ao longo do tempo.

Perfil dos sujeitos

A série do 9º ano A do Ensino Fundamental II foi a que se destinou a proposta


“Cadernos Negros: experiência de leitura com a Literatura Afro-Brasileira em sala de aula”.
Essa turma apresenta educandos de 13 a 15 anos do turno vespertino e um Colégio Estadual
da cidade de Feira de Santana, Bahia.

Embora o Colégio esteja localizado em uma parte nobre de um bairro com boa
infraestrutura, a maioria dos alunos que estuda nesse colégio é oriunda de outros bairros
desprovidos de saneamento básico, infraestrutura e segurança, principalmente. Os educandos
do 9º ano A são, em sua maioria, de baixa renda, pertencem a uma família grande, com
muitos irmãos, muitos deles, filhos de pais separados, alguns moram com avós e são negros.
Por morarem longe de onde estudam e/ou trabalharem no turno oposto, os educandos, já

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

chegam à escola cansados e sem estímulos para estudar, não gostam muito de ler e
apresentam um contato restrito com as literaturas nas aulas de Língua Portuguesa.

Apresentação da Proposição

A proposição partiu da necessidade em apresentar aos educandos uma literatura


envolvida em temáticas que abordam aspectos da realidade presente no que se refere a temas
como negritude, desigualdade social, preconceito, racismo e exclusão social. Assim, a
preocupação com a progressão escolar, com as avaliações externas e atividades pautadas em
um currículo fechado e excludente, é muito mais preocupante do que com a própria formação
do indivíduo.

A proposta de intervenção “Cadernos Negros: experiência de leitura com a


Literatura Afro-brasileira em sala de aula” será oportuno para os educandos, pois a partir do
contato com alguns contos presentes nos Cadernos Negros, volume 30, eles puderam
conhecer uma literatura cujas histórias eram de cunho social e político, além disso, os contos
dos Cadernos Negros os ajudaram a compreender melhor a realidade daqueles que por muito
tempo foram/são excluídos da sociedade.

Os contos selecionados nos Cadernos Negros apresentaram histórias, cujas


personagens estavam no limite da existência, mas que lutavam por uma vida mais digna e
humana. Dramas, paixões e injustiças estavam presentes nos enredos que traduziram a
rejeição da discriminação. Mesmo sendo ficcionais, as histórias apresentaram nessa obra
aspectos da realidade de uma grande parcela da nossa sociedade.

Fundamentação Teórica

O espaço escolar é o local onde acontece o ensino da Literatura. É na escola que os


educandos têm seus primeiros contatos com uma Literatura de cunho didático. No entanto, a
leitura da Literatura deve acontecer de forma atrativa, significativa, não ficando entrelaçada
somente no teórico, no didático, contribuindo assim para o surgimento de um leitor
responsável e crítico capaz de entender e compreender a realidade através da linguagem
literária.

A linguagem literária, polissêmica, envolve elementos pertinentes à humanidade, à


história em diferentes épocas e é essa linguagem que sustenta a Literatura, assim, para
compreender as diversas funções que Literatura exerce, principalmente na
contemporaneidade, é necessário o entendimento das razões pelas quais ela surgiu aqui no
Brasil. Segundo Alfredo Bosi “é a partir da afirmação de um complexo colonial de vida e de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

pensamento” (1970, p.11), que a Literatura se originou. Ainda sobre a origem da Literatura
no Brasil, Afrânio Coutinho diz:

A literatura nasceu no Brasil sob o signo do Barroco, pela mão barroca dos
jesuístas. E foi ao gênio plástico do Barroco que se deveu a implantação do
longo processo de mestiçagem que constitui a principal característica da
cultura brasileira, adaptando as formas europeias ao novo ambiente, à custa
da transculturação[...]o europeu e o autóctone. (COUTINHO,1975, p.29)

O sentimento de nacionalidade é retratado, portanto, através da arte literária. No


entanto, a vontade por uma Literatura não no Brasil, mas uma Literatura Brasileira que
verdadeiramente representasse a diversidade cultural nacional, em seus vários aspectos, era o
que buscavam muitos poetas durante o percorrer literário. Esses poetas eram, em sua maioria,
excluídos e marginalizados por serem negros, segundo Eduardo de Assis Duarte:

Desde o período colonial, o trabalho dos afro-brasileiros se faz presente em


praticamente todos os campos da atividade artística, mas nem sempre
obtendo o reconhecimento devido. No caso da Literatura, essa produção
sofre ao longo do tempo, impedimentos vários à sua divulgação, a começar
pela própria materialização do livro. (DUARTE, 2002, p. 47)

Nos livros didáticos, a presença da Literatura Afro-Brasileira só veio aparecer há


pouco tempo, mesmo assim, esses compêndios não apresentam de forma efetiva a cultura
africana e a afro-brasileira. No entanto, quando a temática aparece, favorece em sua maioria
aspectos como comiseração, miséria, doença, escravidão. Esses compêndios não oportunizam
aos educandos discussões53 voltadas para a valorização da diversidade cultural e a formação
da própria identidade nacional. Para Duarte, “nossa literatura é uma só, e afinal, somos todos
brasileiros” (2002, p.47). Assim, se somos todos brasileiros, por que ainda as Literaturas
Africanas e a Afro-Brasileira não ganharam espaço de destaque nas salas de aulas brasileiras?
E por que a Literatura Brasileira não contempla a voz daqueles que tanto contribuíram para a
construção da identidade nacional? Sobre isso, a pesquisadora Rosemere Ferreira da Silva
(2008) aponta:

Para falarmos de literatura afro-brasileira, de suas articulações de sentido


com a literatura brasileira, da maneira como alguns conceitos e
determinadas leituras foram ressignificadas neste universo de construções e
desconstruções da imagem do afro-brasileiro na sociedade contemporânea, é
necessário nomearmos as produções culturais a literárias que buscaram na
própria polêmica sobre a existência de uma literatura negra dar visibilidade

53O termo “discussão” presente várias vezes no presente projeto faz alusão às diversas manifestações de inter -
ação entre os educandos e o professor em sala de aula.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

cultural e política a uma comunidade, até então, supostamente representada


por alguns discursos legitimados socialmente.54 (SILVA, 2008, p.4)

O discurso legitimado era o discurso de exclusão, pois marginalizava toda e


qualquer manifestação cultural e artística que resgatava a memória e a história dos afro-
brasileiros. Os estereótipos sobre o negro estavam tão enraizados na sociedade que
Movimentos Negros a favor da liberdade de expressão eclodiram em todo o Brasil. Assumir
sua negritude55 como consciência do seu papel social é a primeira tomada de decisão para sair
do lugar do dominado, do excluído, para o lugar de sujeito social através da aceitação da
identidade que o caracteriza:

A negritude foi basicamente um movimento que pretendeu provocar uma


ruptura com o padrão cultural imposto pelo colonizador como único e
universal. Essa revolução, operando um deslocamento de perspectiva,
oportunizou a revalorização de outras culturas, como as de origem africana
e indígena, que haviam resistido à voragem assimilacionista. (BERND,
1988, p.52, grifo do autor)

Nesse sentido, romper com as ideologias do passado, lutar pela conquista do espaço
no campo literário, foi o que fizeram os escritores do Jornal do MNU e dos Cadernos Negros.
O Jornal do MNU traz um conjunto de textos voltados à discussão do papel do negro nas
estâncias sociais e políticas. A partir daí, há uma desestabilidade dos estereótipos negativos
criados ao longo do tempo sobre os afrodescendentes. Nos Cadernos Negros, tem-se um
olhar voltado para a comunicabilidade com seus leitores através de uma linguagem simples
que atinja seu verdadeiro propósito: divulgar e valorizar a cultura dos afrodescendentes que
aqui residem. Em estudos realizados pela pesquisadora Florentina da Silva Souza, os
periódicos apresentados fazem parte de um discurso proferido pelos autores negros
brasileiros no intuito de tornar audível sua voz, abafada por tanto tempo. De acordo esses
estudos:

Os autores negros assumem, assim, uma função pedagógica e a missão


político-cultural de alertar e unir os leitores para avaliação do lugar étnico
de onde falam os grupos que constroem ou reelaboram os discursos
nacionais [...]. Como afro-brasileiros, os escritores propõem-se a falar do
seu lugar étnico-cultural e, a partir dele, sugerem modelos de análise da
cultura africana e das relações raciais no Brasil. (SOUZA, 2005, p. 13)

54Trecho extraído da Revista África e Africanidades – Ano I – n.1 – Maio. 2008 – ISSN 1983-2354 Disponível
em: < http://www.africaeafricanidades.com.br> Acesso em: 15 de julho de 2015.

55O termo “negritude” foi usado nesse contexto no sentido de orgulho, afirmação de identidade, de indepen -
dência, ultrapassando assim a ideia de movimento ideológico e político.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

As produções literárias desses movimentos fogem da tradição estética a qual


privilegia os grandes marcos da humanidade, autores e temas que não despertam discursos
reivindicatórios em sala de aula. Entretanto, em 2003, o Governo Federal sancionou a Lei
10.639/2003 que determina às Instituições Escolares tratarem da Cultura Africana e dos Afro-
Brasileiros como temas interdisciplinares rompendo assim o silêncio e estabelecendo o
diálogo e “propõe reconceituar, pela escola, o negro, seus valores e as relações raciais na
educação e na sociedade brasileira” de acordo a pesquisadora Jeruse Romão (2005)56. Assim,
temas como racismo, preconceito, escravização, diversidade cultural dentre outros terão
destaques e formarão o currículo escolar. Isso é importante por que:

As ideologias racistas a esta altura já profundamente enraizadas nos


corações e nas mentes das pessoas. E o que ainda é pior: essas ideologias
racistas, que dão fundamento aos preconceitos, são introjetadas até mesmo
pelos próprios negros, que ou permanecem em um estado de alienação ou
decidem parar para reavaliar a situação, o que muitas vezes desencadeia
uma verdadeira crise de identidade. (BERND, 1988, p. 14, grifo do autor)

Nessa visão, a autora expõe que a crise de identidade é consequência de uma série
de fatores que historicamente está impregnada na sociedade. Um deles, é a não aceitação de
sua identidade, negando assim sua cultura e sua etnia. Bernd afirma, ainda, para o querer “ser
negro” (1988, p.42), aceitar-se como negro restaurando daí sua própria identidade e suas
manifestações culturais.

Quanto às manifestações culturais, Stuart Hall em seu livro “Da Diáspora:


Identidades e Mediações Culturais” (2003) traz uma reflexão sobre o que se faz com as
tradições. Como o sujeito se constrói, culturalmente? Para ele:

A cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de


retorno. Não é “arqueologia”. A cultura é uma produção. Tem sua
matéria-prima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. [...] Mas o
que esse desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, a nos
produzir a nós mesmos de novo, como novos sujeitos. Portanto, não é
uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós
fazemos de nossas tradições. (HALL, 2003, p. 44)

56 Pesquisadora que contribuiu para a elaboração do livro História da Educação do Negro e outras histórias/
Organização: Jeruse Romão. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. – Brasília: Mi-
nistério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. 2005.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Analisando a cultura a partir de um olhar literário, a escola deve oportunizar aos


seus alunos o contato com obras literárias, cujas vozes são de afro-brasileiros, em especial, às
engajadas em ideologias referentes à vida do negro em diferentes épocas/contextos.
Compreender, então, a Literatura Afro-Brasileira é percorrer pela diversidade cultural para
que assim, os sujeitos-leitores possam se sentir coparticipantes de todo o processo histórico e
social. Essa Literatura Afro-Brasileira apresenta autores que, segundo Silva57:

[...] não reivindicam um conhecimento particularizado e específico das


tradições negras na diáspora, mas a necessidade de diálogo entre formas
distintas de conhecimento, através das quais as tradições negras sejam
contempladas. (Silva, 2010, p. 217)

Assim, nesse sentido, a Literatura Afro-Brasileira em sala de aula contemplará,


significativamente, as tradições negras que marcaram e marcam a diversidade sociocultural
ao qual o corpo discente está inserido. Falar sobre afrodescência na literatura é antes de tudo
estar no lugar do outro, como diz Frantz Fanon “uma vez que falar é existir absolutamente
para o outro” (2008, p. 33). Diante do exposto, entende-se que a Literatura não está isolada,
não pertence a um só grupo, pois, segundo Antonio Candido:

A literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer uma certa


comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza
afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um
momento, para chegar a uma "comunicação". (CANDIDO, 2006, p.144)

Sendo coletiva, portanto, a Literatura, em especial, a Afro-Brasileira, vem


representar um grupo que acredita em suas raízes e seus valores e que nem o tempo nem as
atrocidades que comediram o povo africano não apagaram da história do homem as lutas, as
conquistas, a cultura e as resistências que os marcaram.

Essa visão de coletividade que envolve a Literatura, segundo Duarte (2014),


apresenta fatores de inter-relação como autoria, temática, linguagem, público e ponto de vista
presentes na Literatura Afro-Brasileira que fazem resultar na plenitude das produções
literárias. Essas produções motivam o ensino-aprendizado, também, no letramento literário.

Assim, o letramento literário é um processo que envolve dinâmica e interação entre


leitor e (con)texto. Para que esse processo proporcione a construção de sentidos, Rildo
Cosson, diz que “o letramento literário trabalhará sempre com o atual, seja ele

57 Rosemere Ferreira da Silva, em sua tese de doutorado “Trajetórias de dois Intelectuais Negros Brasileiros:
Abdias Nascimento e Milton Santos” investiga a importância das obras desses intelectuais na contemporaneida-
de.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

contemporâneo ou não. É essa atualidade que gera a facilidade e o interesse dos


alunos” (2014, p.34). Assim, pensando a Literatura Afro-Brasileira como atual, temos então a
diversidade de temas para os diversos públicos presentes em salas de aula e que farão leituras
para ampliarem seus horizontes em busca do conhecimento e da sua formação enquanto
sujeitos políticos e sociais.

Objetivo Geral:

✓ Introduzir nas aulas de Língua Portuguesa a leitura do gênero textual


contos cujas vozes são de autores afro-brasileiros efetivando assim, a
implementação da lei 10.639/03 na Unidade Escolar.

Objetivos Específicos:

✓ Compreender os elementos textuais (narrador, ponto de vista do negro, tema


do negro, enredo, personagens, tempo, espaço, clímax e desfecho) presentes
nos contos afro-brasileiros;
✓ Conhecer alguns autores afro-brasileiros e suas produções;
✓ Estimular a leitura de alguns contos selecionados da Literatura Afro-Brasileira
presentes nos Cadernos Negros, volume 30;
✓ Proporcionar a discussão da temática através de uma página criada pela
pesquisadora no facebook, cuja finalidade, também, seja a divulgação da
literatura afro-brasileira.

Descrição da Proposta de Intervenção

Esta proposta de intervenção foi desenvolvida a partir da leitura em sala de aula de


contos afro-brasileiros nos Cadernos Negros, volume 30. No entanto, vale salientar que
foram selecionados, nesse volume, contos que apresentaram uma linguagem acessível aos
sujeitos envolvidos na proposição e com temas que possibilitaram maior aproximação entre
as histórias narradas e os leitores, pois são contos que abordaram questões sobre moradia,
infância, abandono, preconceito, aspectos culturais, gravidez na adolescência dentre outros
temas muito comuns na realidade atual.

Os contos selecionados para o desenvolvimento da proposição foram “Charutinho”,


de Michel Silva, que trouxe a história de um morador de rua, cujo nome é Adoniram e que
ficava na esquina observando o movimento das pessoas que por ali passavam. Foi uma triste
história e ao mesmo tempo comovente. Triste porque Adoniram foi despejado de sua maloca,
por isso vivia nas ruas; alegre por representar um personagem inteligente e conhecedor do
fazer artístico, dizia-se ser sambista. Outro conto selecionado para esta proposição foi

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

“Sulfato Ferroso”, de Ademiro Alves (Sacolinha). Esse conto abordou a história de um


personagem denominado de Sulfato Ferroso, por ser muito bom na capoeira e que vivia o
drama de tentar voltar para a sua terra natal: Bahia. Sem profissão, sem adesão às novas
tecnologias, Sulfato Ferroso apegou-se à capoeira para fugir das mazelas sociais que a vida
lhe ofereceu. Em “Zaita esqueceu de guardar as bonecas”, de Conceição Evaristo, temos a
narrativa em torno de duas meninas gêmeas, muito pobres, que viviam em favela e que
tinham como diversão figurinhas, bonecas incompletas e outras tralhas que mais pareciam
objetos sem função. Entretanto, o cuidado por “aqueles brinquedos” era para Zaita, uma das
gêmeas, uma maneira de ser feliz. Essa felicidade, no entanto, foi interrompida ao sair em
meio a um tiroteio, nos becos da favela, para procurar sua irmã Naita que havia escondido
sua figurinha.

Outros contos que ainda apresentaram crianças e jovens como personagens também
apareceram no desenvolvimento da proposição. “Bife com batatas fritas”, de Cristiane
Sobral, trouxe como personagem principal, lóli, uma menina que, mesmo pertencendo à
classe social menos favorecida, é rechochunda por causa da má alimentação. Embora tivesse
uma mente criativa para obter e criar seus brinquedos, lóli viu sua infância indo embora ao
perder a sua mãe. Em “Conluio das perdas”, do escritor Cuti, os personagens, pai e filho,
sofreram o drama da perda de entes queridos, da desigualdade social, do preconceito e do
racismo. Dramas esses que oportunizaram reflexões acerca do cotidiano e do enfrentamento
dos problemas presentes na atualidade.

Já em “Sim, eu posso”, de Décio de Oliveira Vieira, tivemos como temas a gravidez


na adolescência e o abandono em decorrência do preconceito racial. Foi uma história
interessante que trouxe a obediência aos pais como fator preponderante para não cair nas
armadilhas sociais. No conto “Nada contra os caras”, de Márcio Barbosa, o personagem
apresentado foi um jovem enfermeiro que vivia o drama de ser confundido com um
delinquente e ser levado para a delegacia por ser negro.
Em “Minha cor”, de Raquel Almeida, o enredo apresentou o drama de uma garota
negra que não sabia a qual cor pertencia, pois em sua Certidão de Nascimento constatava a
cor parda. E agora? Que cor é essa?

Após escolhidos os contos, a proposição ocorreu através de etapas, com duração de


três meses, iniciadas por atividades motivadoras para a leitura dos contos como vídeo, acesso
aos portais Literafro, Quilombhoje e Profliterário, músicas, conversa com um Mestre em
Capoeira e com professor de História, depoimentos e visitação. Durante todo o processo de
aplicação da proposição, os educandos envolvidos foram convidados a participar de uma
página no facebook, criada para discussão sobre as temáticas presenciadas nos contos, para a
divulgação da Literatura Afro-Brasileira, assim como a valorização das diversidades sociais.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Os alunos fizeram o registro escrito após cada etapa em um CADERNO DE REGISTRO


(CR) que receberam no primeiro contato com a proposta, no entanto, esse CR ficou com a
professora que o entregara para os educandos a cada encontro. Essa estratégia para os
educandos não os esquecessem em casa e registrassem com calma as experiências trocadas a
cada leitura literária afro-brasileira em sala de aula. Vale salientar ainda que as atividades
aconteceram em espaços diferentes como Sala de Vídeo, Sala de Leitura, Laboratório de
Informática, Pátio da Escola, Museu Casa do Sertão e na Sala de Aula. Assim, houve
possibilidades de dinamizar mais os encontros.

Resultados Esperados

Esperou-se com a aplicação da proposta de intervenção tornar o contato e a leitura


da Literatura Afro-Brasileira nas aulas de Língua Portuguesa possíveis através dos contos
apresentados nas salas de aula do Ensino Fundamental II, a fim de formar leitores
multiplicadores, mais conscientes e críticos diante da realidade em que estão inseridos,
valorizando sua cultura, sua ancestralidade e elevando sua autoestima a partir de um
ambiente favorável às discussões de temas presentes pelos Cadernos Negros. Assim,
estreitou-se a relação leitor-escritor como uma proposta oportuna para discussão sobre as
histórias presentes nos contos lidos.

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oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira",
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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Vocalidade e literatura em Timor Leste

Daniel Batista Lima Borges


Paris Ouest Nanterre La Defènse
borgesdaniel26@gmail.com

Colônia de Portugal de 1515 até 1975 e possessão da Indonésia até 1999, Timor-Leste
sempre esteve no meio de conflitos ligados às grandes decisões político-econômicas do
mundo moderno. Devido a grandes movimentações históricas mundiais, foi duramente
invadido por conquistadores portugueses no século 16, por soldados japoneses e australianos
durante a Segunda Guerra Mundial e por soldados e milicianos Indonésios em 1975. Após
sofrer inúmeros episódios de violência em massa, o país foi somente conquistar seu direito de
autodeterminação em 1999, com a expulsão dos soldados indonésios.

Em 30 de agosto de 1999, a população timorense foi às urnas votar o Referendo


Popular e, com o apoio da ONU, restaurou sua independência. De lá para cá o país vive a
construção do Estado Nacional: a República Democrática de Timor-Leste-RDTL. Com
apenas 14 anos de independência, um dos grandes desafios que o país enfrenta é a formação
de recursos humanos nas diferentes áreas do conhecimento, o que gera conflitos de “estilos”
entre estrangeiros e timorenses.

No ensino de literatura, seja nos colégios, seja nas universidades, predominam


currículos institucionalizados baseados no que seria uma literatura lusófona e uma cultura
nacional timorense. Ocupando um espaço marginal em relação a esse currículo, dentro das
salas de aula de literatura e muitos timorenses escrevem suas narrações orais como formas de
expressão de suas cosmologias, de entendimento da própria realidade e, ao mesmo tempo,
são a memória viva da resistência às diversas invasões.

A cisão entre formas conhecimentos institucionalizados e saberes deixados de lado


pode ser percebida na comparação entre a análise dos manuais de literatura empregados no
ensino em Timor-Leste e o tratamento marginal dado a certas narrativas orais que circulam
clandestinamente entre timorenses nas aulas de literatura. As explicações teóricas dos
manuais de literatura e cultura colocados em circulação em 2012 não alcançam a
potencialidade destas narrativas e centram-se em pressupostos europeus insuficientes para
abordar produções orais que nascem de modelos míticos e têm marcas textuais de voz viva
(vocalidade) que apontam para linguagens externas ao texto escrito.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Em relação a esse contexto, este trabalho visa refletir sobre a consideração de


narrativas orais no ensino de literatura praticado em Timor-Leste, de modo a fortalecer as
diversas culturas e línguas maternas existentes no país. Pra tanto, ensaiaremos uma lógica de
valorização de pensamentos locais dentro de um exercício de contextualização do ensino de
literatura em Timor-Leste. Faremos um esforço de mapear quais são as potências criativas
deixadas de lado para a construção de um Estado moderno timorense e formação de suas
instituições.

1 – A República e o Irmão mais novo

Cesar Augusto López,58 (2015, p.121)em seu artigo intitulado Experimentar la


literatura desde un pensamiento otro propõe que “Contra el mito del método, [se fortalezca]
el método del mito”. Em seu texto, o autor se refere, de um lado, às ontologias naturalistas e
ocidentais, e de outro, às ontologias animistas ou ameríndia59, e emprega o texto de Platão
para comparar os indígenas aos poetas, expulsos da polis.

A República de Platão, mito ocidental, aparentemente não faz diretamente parte do


imaginário timorense. Indiretamente talvez o faça, se pensarmos que as narrativas ocidentais
de construção do Estado são baseadas, em parte, na hegemonia do pensamento de Platão no
Ocidente. Nesse caso, propomos que sejam experimentadas etnologicamente, como
narrativas de origem e de contato entre povos.

No livro III da República, após ter sido reverenciado como um ser divino, ungido com
óleos perfumados e coroado com uma grinalda de lã, o poeta é expulso da cidade idealizada
por Platão. A poesia constitui um problema para o platonismo e para organização da polis,
seguramente, dos mais desconcertantes. O texto faz referência aos poetas como aqueles que
não poderiam fazer parte do Estado, pois são perigosos. Os que poderiam acessar o mundo
das ideias seriam os filósofos (e o próprio Platão), mas ao descrever os poetas como uma
ameaça, Platão dá indícios para que se entenda que os poetas podem ultrapassar a ordem do
Estado, não respeitando-a e, mesmo assim, aceder ao mundo das ideias.

Segundo López, « el poeta es ese rezago de prácticas míticas que Platón quiso
eliminar, pero que no pudo, dado que todo gobierno precisa de cuerpos para efectuarse y la
poesía es sentir posibilidades de existencia.” (2005, p.125) Os poetas são concebidos em sua

58 Neste artigo, todas as referências a este autor são tradução livre.

59 Como o próprio autor aponta, para Eduardo Viveiros de Castro, o perspectivismo ameríndio é um
modo de pensamento diferente do animismo, mas com pontos de contato.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

capacidade de sentirem possiblidades de existência e, para nosso trabalho, pode ser


interessante perspectivar essa narrativa de Platão com uma outra narrativa de origem,
timorense, conhecida em todo Timo-Leste, Ita maun alin60:

O mito timorense sugere que a humanidade tem origem na ilha. Em um momento,


dois irmãos, descendentes dos seres humanos originais, separaram-se, sendo que o mais velho
permaneceu em Timor e o mais novo partiu, pelo mar, para terras distantes. Este último
voltaria mais tarde, transportando consigo bens que vão constituir o poder temporal sobre a
ilha.

Muitas versões deste mito foram colhidas por pesquisadores e os objetos variam.
Exemplos destes objectos são o tambor (Traube, 1986); a bandeira (Hohe, 2002) ou o livro
(Seixas, 2010; Engelenhoven, 2010). Na versão colhida por nossa pesquisa, durante uma aula
de estudos literários, em 2014, e escrita por um aluno, antes do irmão mais novo partir e
fundar Portugal, ele leva um livro, escrito em Timor, onde estariam escritos todos os
conhecimentos de Timor-Leste, inclusive as técnicas de telecomunicações.

Os timorenses não traduziram diretamente o texto de Platão, mas pode-se considerar a


narrativa do irmão mais novo como inversão da lógica que expulsa aqueles que, por causa de
seu conhecimento, são perigosos para a polis. Isso porque aquele que carrega o conhecimento
técnico, escrito e racionalizado, o irmão mais novo, poderia muito bem fazer parte da
República de Platão.

A lógica de exclusão é parecida com a que guiou os contatos coloniais, e não espanta
que muitos timorenses tivessem se revoltado contra ela em seu imaginário. Importa salientar
também que, além disso forma, a de se pensar a cultura é diferente da ocidental.

Os timorenses têm, no centro de seu processo de autodeterminação, narrativas de


contato baseadas em ontologias animistas, que apresentam outras formas de agir em relação
ao outro. Nela, o interior e a identidade são subordinados à exterioridade e à diferença. Para
esse tipo de cosmologia apresentada na narrativa do irmão mais novo, os outros são uma
solução, antes de serem - como foram os timorenses para os invasores europeus 1515, um
problema.

A diferença entre a narrativa platônica e a timorense pode também simbolizar um


pouco a lógica do ensino de literatura em Timor-Leste após a reconstrução do Estado
Timorense em 2002. Isso porque um momento decisivo da reconstrução de Timor-Leste a
partir de 2002 é o contato com muitos métodos de ensino, advindos de programas distintos de
cooperação internacional, como o português e o brasileiro.

60 Da língua Tétum “Irmão mais novo”.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Notadamente, o passo mais relevante em termos de ensino de literatura resulta da


implementação do projeto de Reestruturação do Ensino Secundário Geral timorense
(2009-2012), apoiado pelo IPAD – Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, pela
Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Fundo da Língua Portuguesa. Trata-se de um projeto
realizado por uma equipe sediada na Universidade de Aveiro, e desenvolvido em colaboração
com o Ministério da Educação de Timor-Leste. Incluiu a elaboração de um Plano Curricular
para o Ensino Secundário Geral e Programas, Manuais e Guias do Professor para as 14
disciplinas (e para os 3 anos de escolaridade) previstas, incluindo a nova disciplina de Temas
de Literatura e Cultura que integra a componente das Ciências Sociais e Humanidades61.

Nós consideramos a distribuição desse material como decisiva, pois representa o


reestabelecimento da possibilidade sistemática de discussão literária em Timor-Leste. Isso,
em um âmbito que visa compreender o pais como nação, em um sistema educacional
consolidado.

Os manuais são elaborados sobre ideias correntes que fazem parte da última “fase” de
transformação decisiva da “comunidade imaginada”62 da nação de Timor-Leste: a
consolidação do Estado e no seu reconhecimento por outras nações. Assim, as noções de
literatura são baseadas em conceitos como lusofonia nacionalismo, autorizadas pelo projeto
de governança do século XXI em Timor-Leste a estruturarem os discursos das instituições.

Analisando o manual de literatura e cultura do décimo ano, pudemos verificar a


predominância das seguintes características estruturantes: a) o manual toma a escola como
lugar onde o conhecimento da nação é afirmado; b) há momentos de pouca clareza entre os
limites da construção do Estado timorense e uma espécie de supra-Estado formado pela
comunidade imaginada da lusofonia; c) em relação à oralidade, o manual de literatura e
cultura deixa um grande espaço para abordar temas como « tradição » e « literatura oral »; d)
não há contextualização precisa do contexto e dos narradores das narrativas apresentadas e as
narrativas são analisadas de acordo com gêneros literários europeus não empregados pela
etnologia; e) Há uma diferenciação entre « culto » e « popular », sendo que culto é o que é
apresentado como artefato cultural literário, dentro do manual63. (Ramos, A. M. et al., 2012)

Apesar destas ideias de literatura veiculadas nos manuais, nos cursos de literatura,
para os alunos, literatura era baseada em outras concepções. Classificações narrativas em

61 Ver (RAMOS, A. M. et al., 2012)

62 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do naciona -


lismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

63 Infelizmente não temos espaço suficiente neste artigo para comentar cada aspecto da análise, mas pro -
curaremos recuperar as que mais forem pertinentes ao desenvolvimento de nosso percurso teórico.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

tétum, vindas de verdadeiras tradições orais eram frequentemente empregadas pelos alunos
timorenses.

Durante nosso trabalho de ensino em Timor-Leste64, tivemos a oportunidade de fazer


regularmente a alunos de diversas instituições de ensino certos questionamentos, como: “O
que é literatura?”; e as respostas eram, frequentemente: “A literatura são as histórias que
contamos nas aldeias.” Após estes questionamentos, pedimos aos alunos que escrevessem
essas histórias em língua portuguesa, e o resultado foi um corpus de pelo menos 100
narrativas,.

Tal caracterização das narrativas pode ser uma pista para que se
possa pensar a própria oralidade em relação à formação nacional de
Timor-Leste. Isso porque, se um grande número de timorenses
considera suas narrativas como sendo literatura, quer dizer que eles
veem atitudes literárias em suas narrativas orais, as quais não são, a
priori, literatura 65.

Além disso, as salas de aula são lugares de ressignificação da literatura ocidental


pelas narrativas orais. Entre as histórias transcritas pelos estudantes se encontram
apropriações de narrativas essenciais para a formação da identidade europeia. Podemos dar o
exemplo da história da invenção do fogo pelos timorenses ou as ressignificações de textos
bíblicos66 .

Diante desse contexto encontrado nas aulas de literatura, elaboramos alguns


questionamentos: porque não tomar os textos em si, em leituras fechadas, tendo a língua
portuguesa como horizonte, como sugeriam os manuais? Para a análise dessas narrativas
orais não seriam necessárias contextualizações como as que as pesquisas etnológicas e a
históricas sobre Timor-Leste poderiam oferecer?

64 No ano de 2014, trabalhamos em duas universidades timorenses, UNTL e UNITAL, em disciplinas de


estudos literários de cursos de formação de professores. O número de alunos atendidos foi de 120, divididos em
5 turmas, durante um semestre letivo. Os primeiros encontros basearam-se na sondagem e no preenchimento de
questionários pelos alunos, bem como na redação intensa de textos orais vindos das diversas aldeias de Timor-
Leste.

65 É importante esclarecer que, em acordo com as definições de Paul Zumthor, não consideramos a na -
rração oral como literatura, pois esta está ligada ontologicamente à letra escrita, é historicamente determinável e
sua abrangência acaba onde começa a distância etnológica de povos de tradição predominantemente oral. Com
base em tais argumentos é que Paul Zumthor adota a expressão “poesia ou poética da voz”, a qual seria mais
específica e menos comprometida com enfoques redutores e generalistas do que “literatura oral” (ZUMTHOR,
1983, p. 21).

66 Em 2007, em Aileu, vilarejo de Timor-Leste, os sábios do vilarejo se reuniram, escreveram e enviaram


ao bispo de Dili uma carta afirmando que Jesus Cristo é timorense, nascido e crucificado em Timor. Prova disso
era que os timorenses de Aileu tinham, guardados em uma casa sagrada, os objetos da crucifixão. Sobretudo,
Cristo não era loiro, alto e de olhos azuis. Ele era timorense.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Aludindo a contextos semelhantes ocorridos na formação da Indonésia pós-colonial e


em países recém independentes do continente africano, Benedict Anderson (2008) lembra que
o esquecimento de várias culturas, não por acaso, é característica da formação de um Estado.
Dentro desse projeto, um ensino de literatura que não contextualiza suficientemente as obras
literárias e não considera as teorias locais em relação à narração acaba incorrendo em
epistemicídio.

Nesse sentido, no que concerne à possibilidade de análise das narrativas orais


timorenses, de acordo com os pressupostos dos manuais de literatura e cultura podem gerar
graves distorções. De acordo com López (2015, p.123), análise de produções que não
possuem uma origem ontológica comum seriam distorcidas ou insuficientemente explicadas
pela inadequação do instrumento de pesquisa.

Pensando nisso, consideramos que, para a possibilidade de um trabalho em literatura


que considere os pensamentos locais é necessário um projeto de natureza estética, por sua
relação com a instituição literária, política, por sua historicidade, e ontológica, em respeito
aos diferentes mundos em questão. Supomos isso importante, pois o contexto do ensino de
literatura em Timor-Leste, segundo nossa hipótese, adviria de uma falha ética que se sustenta
politicamente e que tem raízes históricas. Seria a falha, intencional ou não, da não
consideração dos saberes orais daqueles que participaram diretamente da autodeterminação
de Timor-Leste de 1975 (ou antes) até 1999, quando o direito à autodeterminação de Timor-
Leste foi reconhecido pela ONU, a Resistência Clandestina, da qual nos ocuparemos adiante.

Para que se possa pensar em como agir em relação a essas narrativas orais e refletir
sobre o modo de sua importância no ensino de literatura em Timor-Leste, propomos um
percurso que considere o cruzamento entre: a) uma perspectiva histórica que evidencie o
papel fundamental da oralidade para a Resistência Clandestina durante a invasão indonésia;
b) uma perspectiva etnológica que possa colocar em perspectiva a ontologia das narrativas
ocidentais (como a da lusofonia) e levar em conta a potência do pensamento contido na
ontologia das narrativas de contato sustentadas oralmente pelos timorenses e evidenciadas
pelo estudo etnológico.

Para a delimitação dos elementos de comparação, consideraremos dois momentos


decisivos que definem a relação com a literatura em Timor-Leste. O primeiro é o a atuação
fundamental da oralidade na Resistência Clandestina durante o período de resistência à
dominação indonésia, de 1975 a 1999. O segundo, já citado, é a publicação dos manuais de
literatura e cultura utilizados no ensino secundário como parte da política do estado para a
estruturação da educação.

2. Os poetas foram proibidos de participar do Estado

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A confusão entre o conhecimento escolar e a ideia de nação nos manuais de ensino de


literatura e cultura nos levou a procurar o lugar desse outro conhecimento que as narrativas
me traziam. Isso porque, seguindo Guillory (2016, p.860), a escola e a universidade não são
veículos da ideia de nação. Elas devem ser pensadas como instituições, que tem seu papel
fundamental no processo de socialização.

O que é transmitido pela escola é um tipo de cultura, a cultura da escola, composta de


uma certa diversidade de discursos e, principalmente, de agenciamentos culturais. Importa
salientar que cultura da escola não unifica culturalmente a nação, e em relação ao objetivo de
disseminação de uma cultura nacional, há outros agenciamentos que passam despercebidos
ou permanecem clandestinos.

Nas palavras de Guillory, a cultura da escola teria duas mãos: a « mão


direita» (disseminação de uma cultura nacional) permanece ignorante do que a « mão
esquerda» faz67 . Há a intenção de disseminar uma cultura nacional, mas, ao mesmo tempo,
existem os diversos percursos dos estudantes de acordo com seu estrato social ou a possessão
de capital cultural, em uma clara referência a Bourdieu. (op.cit.)

Nesse sentido, o projeto de escola é sempre um projeto de classe e Guillory propõe


reconhecer a presença de forças sociais que operam entre os currículos de literatura. Assim,
quando o autor escreve que é necessário considerar a escola como um espaço institucional,
ele quer pensar esse espaço como um lugar onde os discursos institucionais se cruzam com os
contextos históricos e políticos. Seu projeto é o de pensar a escola dentro de uma perspectiva
histórica.

Dentro dessa perspectiva, importa para nosso trabalho que façamos o seguinte
questionamento: o discurso institucional dos manuais se cruza com quais contextos em
Timor-Leste?

2.1 Contextos político e histórico

Em Timor-Leste, o projeto de reestruturação realizado pelo governo em 2002 e


coordenado pela ONU foi executado, em primeiro lugar, por dissidentes daqueles que
formavam a Resistência Armada, representada pelos ex-comandantes da guerrilha, Xanana
Gusmão, presidente de 2002 a 2006 e Taur Matan Ruak68, presidente desde 2012 até o
momento presente. Em segundo lugar, a reestruturação contou com a influência aqueles que

67 Todas as referências a Guirolly (2016) são tradução livre.

68 Perfil no jornal Le Monde: http://www.lemonde.fr/web/recherche_breve/1,13-0,37-1185229,0.html

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formavam a Resistência Diplomática, composta pelos timorenses que, durante a invasão


indonécia, atuaram pelo direito de autodeterminação de Timor-Leste fora do país. O exemplo
mais conhecido é José Ramos Horta, Nobel da paz em 1996 e presidente de Timor-Leste de
2007 a 2012. É significativo lembrar que todos estes ex-presidentes alternaram seus cargos
com a função de primeiro-ministro.

A Resistência Armada e a Resistência Diplomática se colocaram no centro do


processo de institucionalização de Timor-Leste (Durand, 2010). A circulação em grande
escala dos manuais de literatura lusófonos advém desse projeto de construção de nação, que
deixava claro em seu planejamento econômico o objetivo de estruturar uma nação
economicamente competitiva em um plano de modernidade de fundo neoliberal, tendo como
modelo o Estado de Singapura. As políticas de estruturação das universidades seguiram à
risca o plano neoliberal de desenvolvimento, que se reflete no que Guillory (op. cit)
denomina “mão direita” da cultura da escola (Da Silva, 2014).

Entretanto, há o outro lado, a formação da “mão esquerda”, que não participa desse
processo. Durante o período da resistência timorense, formaram-se três fronts de resistência
timorense, e o terceiro seria composto pela chamada Résistência Clandestina, sempre referida
em descrições teóricas sobre o período da invasão indonésia (Anderson, 2008).

Aqueles que compunham esta resistência, salvo raras exceções, não fizeram parte do
projeto de governo colocado em execução em 2002. Isso porque era quase impossível
identificar quem fazia parte dessa resistência, pois o anonimato era sua forma imanente. A
Resistência Clandestina era formada pela pela população ou, segundo o termo utilizado por
Negri para descrever formações semelhantes, a multidão (Negri & Hardt, 2012, p.141 69).

Sua principal diferença em relação às outras duas resistências é de ser sempre


anônima e direcionada à horizontalidade política, estética e ontológica. É mantida pelo que o
autor chama de comum, ou seja, aquilo que é compartilhado dentro de um território. A
Resistência Clandestina vai ter sua multidão considerada pelo governo o que se denomina
“povo” para um sistema político verticamente hierarquizado e comandado por uma
hegemonia.

Ao mesmo tempo, é de se supor que, após a expulsão dos indonésios, a Resistência


clandestina se torna um obstáculo antimoderno para o projeto hipermoderno de
desenvolvimento econômico do governo. Ela era formada, em sua maior parte, por pequenas
comunidades tradicionais mais ou menos independentes economicamente umas das outras, e
que tinham seus próprios sistemas de leis e de crenças de cosmologia animista praticadas e

69 Todas as referências a estes autores são tradução livre.

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transmitidas oralmente (Negri & Hardt, 2012, p.101).

Ainda hoje, estas comunidades são separadas linguisticamente, em um nível regional,


e por clâs de famílias, em um nível local. Elas formam uma imensa diversidade
etnolinguística em um país a duras penas unificado como nação.

Durante a reconstrução do Estado, era necessário eliminar o que pudesse impedir a


construção de um Estado moderno, e toda essa diversidade era facilmente classificável como
antimoderna. Um dos modos de eliminar estes elementos antimodernos é perpretando a súbita
ocidentalização do sistema de ensino e fazendo tabula rasa dos alunos, que de resistentes e
filhos de resistentes, passavam à categoria de analfabetos.

Um projeto de modernidade não é algo a ser combatido, a princípio. Eliminar o


analfabetismo é fundamental dentro de uma modernidade pensada em valores democráticos.
O problema é de qual modernidade estamos falando, pois faz parte de um projeto de
modernidade que haja forças não modernas em sua constituição. As chamadas « comunidades
tradicionais », por exemplo, inserem-se como forças antimodernas mas, ao contrário do que
se pode pensar, fazem parte da modernidade como resistência70.

Negri & Hardt, (2012, p.147) se propõem a apresentar a maneira com que certas
forças da antimodernidade agem no seio dos processos de globalização capitalista e contra
eles, desvelando escapatórias à agressividade da cadeia desenvolvimentista. Sem isso, acaba-
se por se fazer o que o autor chama de hipermodernidade, que é o processo agressivo de
homogeneização em função de expectativas neoliberalistas. Nesse caso, eliminar o
analfabetismo pode também ser o caminho mais rápido para a destruição de mundos e em
direção a um desenvolvimento econômico no nível de Singapura, modelo de modernidade
escolhido.

Entretanto, há como romper com a antimodernidade sem negá-la, e a produção


simbólica de uma ligação em comum o faz ao ultrapassar os limites da família. Isso o modelo
patriarcal das comunidades tradicionais é excludente e não abre espaço para variações dentro
dos papéis familiares (Negri & Hardt, 2012, p.241). A família é a unidade timorense de base e
a autodeterminação nacional foi, em determinado momento da invasão, uma ideia nova em
relação a ela.

Entretanto, as guerras de autodeterminação abalaram bastante as relações familiares


antes que elas se assentassem novamente após os conflitos. A maioria das famílias ficaram
desestruturadas e esse sofrimento ajudou a reunir os elementos comuns necessários à

70 « […] l'antimodernité traverse l'histoire du monde dominant, avec les rébelions d'esclaves, les révoltes
paysannes, les résistances prolétaires et tous les mouvements de libération. » (Negri & Hardt, 2012 p.157).

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autodeterminação decisiva 71 e à criação de um comum.

O poder indonésio era infinitamente mais penetrante, infinitamente mais espalhado do


que o poder colonial português alguma vez foi, fazendo-se presente nas aldeias mais isoladas
e representado por centenas de postos militares e por um enorme aparelho de recolha de
informação. “A consciência de se ser timorense oriental aumentou rapidamente desde 1975
devido, precisamente, à expansão do Estado, do qual faziam também parte as novas escolas e
os projetos de desenvolvimento” (Anderson, 1993, p. 6).

Esse momento coincide com a subida dos guerrilheiros da FRETILIN72 (Resistência


Armada) em direção às montanhas timorenses. Era a tentativa da guerrilha para encontrar as
forças da antimodernidade que cada guerrilheiro conhecia desde a sua infância em Timor-
Leste.

Os guerrilheiros foram prontamente acolhidos pelas multidões que os seguiam de


longe, ajudando-os com provisões e como informantes dentro de eficientes redes de
comunicação oral. Informações essenciais para o deslocamento e ataques eficientes da
FRETILIN eram transmitidas em uma velocidade incrível de um canto a outro do país por
causa de redes de comunicação oral formadas pela Resistência Clandestina.

Os guerrilheiros promoviam ações de doutrinação política e de alfabetização nas


montanhas. Mas eram ações isoladas que foram brutalmente reprimidas até 1989, quando o
povo sentia aumentar a violência dos soldados indonésios, em função da frustração de não
conseguir extinguir a FRETILIN. Os timorenses eram constantemente vigiados pelos
indonésios e mortalmente punidos se suspeitos de contatos com guerrilheiros.

Assim, pode-se dizer que a consciência da autodeterminação não nasceu apenas de


setores intelectuais, mas das multidões. As ações anônimas do que veio a se denominar
Resistência Clandestina se baseavam, de maneira autônoma e criativa, em esperanças e
sonhos de sobrevivência ao mesmo tempo antimodernos e anticapitalistas. Segundo Negri &
Hardt (2012, p.155), esse tipo de resistência, tem a imaginação excessiva e transbordante
como potência e excede sempre a relação de dominação, sendo que nenhuma relação
dialética com o poder moderno pode reabsorver.

Isso quer dizer que há uma imensa probabilidade da Resistência Clandestina não ser

71 É necessário salientar que a antimodernidade precisa ser relativizada e pode tanto representar resistên -
cia positiva no seio da modernidade quanto negativa. Basta lembrar as acusações correntes feitas a Xanana
Gusmão durante toda a sua permanência no governo de haver beneficiado apenas amigos e parentes com os be-
nefícios diretos do poder político.

72 Frente Revolucionária por Timor-Leste Independente.

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“criação” da Resistência Armada, e sua potência criativa não pode ser facilmente domada e
submetida pelo Estado. Diferentemente do “povo”, a multidão resulta de um processo de
constituição política mesmo se, embora o povo se forme como uma unidade graça a um poder
hegemônico que paira sobre o campo social plural, a multidão se forma através de
articulações sobre o plano da imanência e sem hegemonia. (NEGRI & HARDT, 2012, p.251).

3. Anti-Platão: A criatividade e a forma de atuação da oralidade.

Analisando as narrativas dos alunos timorenses, nós desconfiamos que a oralidade


que se apresenta nas salas de aula de literatura hoje seja muito mais que falta de
alfabetização. É, em parte, a mesma oralidade que formava o comum da Resistência
Clandestina.

De acordo com Benedict Anderson, a oralidade foi fundamental no processo de


autodeterminação de Timor-leste. Durante a invasão indonésia, a partir de 1975, não havia
uma imprensa estabelecida que possibilitasse produção e recepção regulares de informação
jornalística, nem sistema de produção, editoração e recepção de literatura, nem sistema
capitalista moderno. Isso significa que outros fatores que não os comumente aceitos no
ocidente entraram em jogo para a formação da nacionalidade 73.

Uma imprensa moderna, seja pelas mídias de informação como jornais, blogs e redes
sociais, seja pela literatura, pode fazer face a medidas repressoras e autoritárias de um Estado,
visando a articulação de minorias74. Entretanto, no século XX, quase um terço do país sofreu
deslocamentos forçados, que obrigaram as pessoas a abandonar tudo, salvo aquilo que
podiam carregar em suas memórias. Assim, à falta da imprensa, a oralidade foi e é
fundamental para os timorenses: valorizar e articular a memória oral de diferentes culturas foi
uma estratégia que as permitiu sobreviver e não serem assimiladas pelos indonésios. A voz
era o meio principal para garantir uma coesão.

De acordo com nossa hipótese, eles exploraram a criatividade da “multidão” da qual


fala Negri, colocando em evidência narrativas tradicionais mais táticas para empreender as
atualizações culturais que eles tinham necessidade para constituir sua autodeterminação.
Assim, eles acabavam por enfatizar narrativas animistas que evidenciavam a incorporação do

73 O autor sugere uma “religião católica popular”, atuando em Timor de forma a difundir valores co -
muns. Essa religião católica popular resultava da atuação de padres que optaram por ficar em Timor durante a
invasão. Entretanto, é significativo ressaltar que, em muitos casos, as narrativas bíblicas foram absorvidas e res-
significadas oralmente pelas culturas tradicionais, o que provavelmente os ajuda a pensar as movimentações
históricas de outras formas.

74 Um exemplo é o papel das mídias alternativas no Brasil no sentido de denunciar o golpe de Estado
perpretado contra a presidenta Dilma Roussef em 2016.

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outro dentro de suas culturas.75Isso pode ser evidenciado por meio da narrativa do irmão mais
novo, comentada no início deste artigo, quando pode-se perceber que há um lugar para o
estrangeiro na cultura timorense.

Nos quadros de violências generalizadas do século XX, os timorenses foram forçados


a reunir e a compartilhar mecanismos culturais que já existiam em suas culturas. Isso quer
dizer que a mobilização destes mecanismos visando um comum é histórica e que foi essencial
no processo de autodeterminação. Isso porque elas faziam emergir valores relacionais
capazes de fazer face à pluralidade de mundos em Timor e à desintegração causada pela
guerra.

Por outro lado, eles empreenderam o que se pode chamar de “atitudes literárias” com
suas narrativas. Isso destacou as narrativas do fundo sagrado para criar a base da comunidade
imaginária que era necessário criar, sem que as leis do sagrado de cada comunidade fosse
infringidas. Havia nesse comum apenas um resíduo ontológico que não podia mais mudar.

Pensando-se nas possibilidades de incorporação de atitudes literárias, em Timor Leste,


durante o período do governo salazarista, a literatura era atrelada ao fortalecimento da
nacionalidade portuguesa. Nesse momento a atitude literária predominante era de
investimento na instituição literária como afirmação de identidade e consolidação de nação.

Em 1960, com os escritores da Geração da Resistência, há a assimilação desta função


da literatura, mas como estratégia de independência em relação a Portugal. À medida que a
invasão indonésia se aproxima, essa função se fortalece como resistência à opressão ligada à
afirmação da identidade e à autodeterminação (Barbosa, 2013).

Durante o período da dominação indonésia, há a interdição de práticas de literatura,


principalmente aquelas em língua portuguesa, mas a resistência política timorense continua,
na clandestinidade. Isso significa, de um lado, a não circulação de literatura dentro de Timor-
Leste, e de outro, a atribuição, às narrativas orais, das funções literárias antes experimentadas
antes, durante o contato com os poetas da Geração da Resistência.

Consequentemente, à medida que a oralidade passa a ser o registro predominante na


luta contra a dominação indonésia, as narrativas orais também passam a desempenhar
atitudes literárias. São as mesmas atitudes literárias encontradas nas literaturas ligadas às
formações nacionais: a afirmação da identidade e a constituição do imaginário nacional por
meio do compartilhamento de narrativas.

75 Nous ne voulons pas dire que ces récits n'étaient pas vehiculés avant, dans des autres processus histo -
riques, ni qu'il n'y a pas d'autres récits qui ont le même statut.

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Isso fortalece uma influência recíproca entre narrações orais e movimentos históricos.
Pode-se dizer que, de acordo com esta hipótese, estas atitudes literárias foram percebidas
pelos timorenses em relação às suas narrativas, o que explicaria que os estudantes que
escreveram as narrativas orais em nossas aulas classifiquem suas narrativas literatura.

As narrativas orais timorenses alargavam o ponto de vista de sua comunidade


imaginária e incorporavam valores da literatura escrita76 . Assim, quando um aluno chama de
literatura suas narrativas, não seria uma resistência ético-política, visto a participação da
oralidade junto aos processos de independência ?

É dessa forma que teria se estabelecidas narrativas de base do comum timorense,


como a narrativa do irmão mais novo que, do mesmo modo que a narrativa da lusofonia em
relação ao povo português, ocupam um lugar maior nas culturas timorenses, e funcionam
como narrativas de contato entre culturas. É necessário salientar que a narrativa do irmão
mais novo não é a única do tipo. Há, por exemplo, uma história conhecida que diz que, após
sua morte, os timorenses passam pelo monte sagrado, o Ramelau, transformam-se em pássaro
fogem da ilha e retornam como estrangeiros. Aqui é possível notar o elemento forte da
transformação em animal, presente em muitas das narrativas timorenses. Esta narrativa
também apresenta uma extraordinária incompletude ontológica.

Se contextualizamos essas narrativas, é possível compreender porque elas


predominaram e permaneceram sobre outras. Esse contato deveria manter a integridade do
modo de existir do outro, à ajuda do qual era necessário expulsar os soldados indonésios. Ao
mesmo tempo era necessário incorporar o mundo do outro para se modificar e fazer com que
suas culturas não terminassem violentamente.

4 Platão e o irmão mais novo: plano estético

Se levarmos em conta essas características das narrativas timorenses, notamos um


contraste violento em relação à concepção de literatura e cultura dos manuais. A violência
desse contraste é a mesma dos contatos coloniais.

É preciso deixar claro que inclusão do ponto de vista histórico não é para fazer uma
história anti-canônica, ou anti-qualquer coisa, mas para que se escreva e se fale sobre essas
relações sempre escondidas e não-ditas que emergem de outros meios de se pensar a cultura
«by reference to each other». Richter, p.871

76 Mas, diferentemente da escrita, a dinamicidade da oralidade favoreceu mais esse contexto que os mei -
os escritos aparentemente podiam. Isso porque naquele meio histórico era fundamental mudar e notar as mudan-
ças.

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A ideia de lusofonia, que embasa a constituição dos manuais de literatura e cultura, se


afirma como uma identidade imposta e defendida se comparada com a história do irmão mais
novo. Essa comparação nos leva a colocar a questão seguinte, segundo Clifford (1988, p.344)
como são apresentadas as narrações de contato, de resistência ou de assimilação do ponto de
vista de grupos para os quais é a afinidade relacional, portanto, não a identidade substancial,
o valor a ser afirmado ? p.206, Inconstância

A lusofonia, neste caso, passa a ser uma narrativa da busca do que é sempre igual a si
mesma, seja à língua portuguesa, seja a traços de cultura lusitana. Não há possibilidade de
modificação dessa identidade, ao contrário da ontologia timorense, que busca no outro o que
é diferente como forma de atualização.

Diante disso, achamos que não seria o caso de colocar em oposição trabalhos
canônicos e não canônicos, ou ocidentais ou não ocidentais, escritos e não escritos ou
lusófonos ou não lusófonos77. Não acreditamos que a solução seja declarar o cânone lusofone
e escrito como um antagonista político para que se possa substituí-lo à oralidade
multiculturalista. Essa polarização esconderia a questão do que seria a cultura da escola, de
fato.
Isso porque, à medida que alguém tem acesso apenas a obras da literatura lusófona na
escola, esses trabalhos serão legitimados como objetos de estudo do mesmo modo, por um
processo de desenraizamento das atuais circunstâncias culturais de sua produção e consumo.
(Guillory, 2013, p.862) Ceder o direito de definição do capital cultural à cultura
institucionalizada não é uma estratégia muito efetiva da « mão esquerda », e fatalmente as
narrativas orais tenderia a ser classificadas com categorias quase pejorativas como Folklore
ou algo semelhante.

Em um aspecto mais amplo, pensar em uma polarização do discurso do cânone pode


corresponder, em nosso caso, à definição da modernidade como relação de poder, e a reduz a
um projeto inacabado. Se se compreende a modernidade como relação de poder, atingi-la
pode significar então a perpetuação da mesma dominação. Se pensamos que a modernidade é
uma força oposta à barbárie e à irracionalidade, esforçar-se por atingi-la é um processo
necessariamente progressista. Sugerimos, assim, recorrer à lógica de transformação que
predomina nas narrativas.

Segundo Fanon (Negri & Hardt, 2013, p.160), o resultado último do processo
revolucionário deve criar uma nova humanidade que ultrapasse a oposição estática entre
modernidade e antimodernidade, e que se manifeste como dinâmica, em um processo criador.
É a ruptura e a transformação que define esse processo, e não a oposição, como a que poderia
se manifestar em uma discussão anti-cânone.

77 Que fazem referência à comunidade imaginada da lusofonia.

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Assim, convém o seguinte questionamento: qual relação com a cultura é produzida


pelo estudo de artefatos culturais? Para responder à questão, Guillory sugere expor o conceito
de cultura implicado nos diferentes agenciamentos culturais envolvidos na “cultura da
escola” (Guillory, 2016, p.863).

No ensino de literatura em Timor-Leste há uma ambiguidade crucial em relação aos


conceitos de cultura implicados no ensino de literatura e que configura os dois conjuntos
identificados: a) cultura como refinamento (grandes obras escritas da lusofonia), que se
assemelha ao respeito à polis, como no mito de Platão, em relação ao qual o diferente, apesar
de acessar o mundo das ideias, não deve fazer parte do Estado. b) Cultura em seu sentido
etnográfico, consistindo em “um conjunto de estruturações potenciais da experiência, capaz
de suportar conteúdos tradicionais variados e de absorver novos: ela é um dispositivo
culturante ou constituinte de processamento de crenças.” (Viveiros de Castro, 2002, p. 209)

Como se pode ver, o que está em jogo na relação entre os tipos de capital cultural é
uma diferença ontológica em relação ao conceito de cultura. O conceito de cultura que
embasa a cultura dos manuais é hierarquizante. Por outro lado, a ideia de cultura que
podemos desenvolver a partir das narrativas orais timorenses é muito mais anárquica e
insubmissa politicamente, por isso não interessa dentro dos domínios do Estado.

Miller (1983) aponta para uma alternativa que poderia colaborar para o
reconhecimento dos diversos capitais culturais e agenciamentos culturais dentro da escola e
da universidade. O autor investe no conceito de intercultural literacy, que consiste em um
modo de investigação que respeita a acumulação de símbolos compartilhados (daí o termo
literacy) mas também convida a pesquisar em processos em que culturas são formadas e,
particularmente, encoraja a análise de como as culturas constituem a si mesmas em relação a
outras.

Assim, propõe-se que se considere a pesquisa constante e ativa sobre os processos de


constituição das culturas às quais as narrativas orais se referem, sejam elas timorenses ou
não. Isso significa partir da pesquisa ontológica de cada cultura envolvida e pensar a
literatura a partir do mundo possível de cada uma, como nos mostra as próprias narrativas
timorenses discutidas neste artigo.
Para tanto, é preciso pensar quais são os parâmetros estéticos que podem ser
utilizados como valores de avaliação para a obra literária. Apenas assim não se incorreria em
uma apropriação (desastrosa) dos agenciamentos culturais ocidentais para as narrativas
timorenses.

5. Ontologias - retorno dos poetas e a phonè


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5.1 comum é uma cultura que engloba várias naturezas.

Toda cultura possui uma estética, e as percepções são calibradas segundo o


ordenamento dos entes dentro de uma comunidade perceptiva. A ontologia é o modo de
distribuição dos entes no cosmos e a lente ontológica é intermediária das sensações e das
expectativas do corpo frente ao desconhecido ou por conhecer (Lopez, 2015, p.123).

Para a maioria das comunidades timorenses, a natureza é definida pelo Lulik


(sagrado), que é voz e linguagem que, durante o processo de especiação dos entes no mundo,
são incorporados na voz do lia-na'in (dono da palavra), que age como um tradutor do Lulik. É
por essa linguagem que que ele faz circular os códigos na comunidade. Cada casa sagrada
(uma lulik) é um domínio de uma voz que é uma manifestação da linguagem do Lulik. A uma
lulik, por sua vez se inscreve, junto com outras casas sagradas, em um domínio maior de
códigos de linguagem que tem, na maioria das vezes, a língua como limite.

O lia-na'in é o mestre que narra os mitos e é semelhante ao poeta descrito por Paul
Zumthor: “O poeta é voz: linguagem que vem de além, das Musas, segundo Homero. Daí a
ideia grega de epos, palavra inaugural do ser e do mundo: não o logos racional, mas o que
manifesta phônê, voz ativa, presença plena, revelação dos deuses.” (Zumthor, 1983, p.5478) A
phônê não se une diretamente ao sentido, mas prepara o meio no qual ele se afirma.

Há que se considerar a especificidade da formação da palavra timorense: há primeiro


uma fundação de palavra vocal, e depois o sentido se afirma sobre ela. A voz é uma phônê
que vem antes do sentido. Este sentido será a vida de cada um na comunidade. Não é o logos
que impulsiona o sentido, mas a voz e as linguagens que ela articula com as narrativas
míticas.

De forma análoga, de acordo com Lopez (2015, p.122) no caso da ontologia animista,
no início não existe uma divisão radical de seres, porque o princípio comum deles é a
humanidade e a comunidade (como pode ser notado na narrativa do irmão mais novo). Não
existe um princípio regente conhecido como Ideia, no caso da ontologia platônica, ou Deus,
na ontologia cristã. Existe a humanidade e humanidades como princípios e deles é que vieram
as diferenciações materiais.

Do mesmo modo que essa humanidade animista, Paul Zumthor postula que a voz
seria anterior a toda diferenciação, indizibilidade apta a se revestir de linguagem. A voz teria
qualidades materiais, como o tom, o timbre, o alcance, a altura, o registro, e a cada uma delas
se ligaria um valor simbólico. A consequência disso é que a linguagem seria impensável sem

78 Todas as referências a Paul Zumthor são tradução nossa.

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a voz. Por outro lado, a voz ultrapassaria a palavra.

No contexto timorense, cada domínio de linguagem existe como uma natureza


diferente, com recortes homem/natureza específicos e com definições identitárias socialmente
diferentes. As linguagens estavam desde o início “dentro” do sagrado e emergem para
construir domínios por meio da voz. São os domínios de linguagem que definem a especiação
e as vozes concretas animam esses domínios.
Em uma comparação com uma outra descrição de ontologia não ocidental, Viveiros
de Castro escreve que, paras cosmogonias ameríndias, entre totemistas e animistas, a
humanidade era multidão polinômica; ela se apresentou desde o início sob a forma da
multiplicidade interna, cuja externalização morfológica, isso é, a especiação, é precisamente a
matéria da narrativa cosmogônica. É a Natureza que nasce ou se “separa” da Cultura e não o
contrário, como para nossa antropologia e filosofia. Danowski y Viveiros Há mundo por vir?,
(2015, p. 92). Para os timorenses, a Cultura seria uma só, que adviria do Lulik, mas em Timor
habitam diversas naturezas, cada uma com suas formas de agenciamento, seus códigos, etc.
Nessa ontologia, a narrativa mítica estrutura a experiência reconhecendo a
simultaneidade de tempos e espaços na explicação do mundo, e a constante mescla de
elementos que correspondem a um plano de composição que o mundo apresenta à
experiência. (López, 2015, p.121). Isso se manifesta na participação na construção mítica de
espíritos, deuses, animais e outros tipos de seres que pertencem a mundos de linguagem
diferentes.
É isso o que os timorenses fizeram durante a resistência por meio dos mitos
apresentados aqui, e outros análogos: fortaleceram e colocaram em evidência uma cultura
comum, sendo que, dentro dela, havia diversas “naturezas” advindas de vários povos
timorenses e mesmo de povos de fora de Timor. O valor da voz nesse processo é
fundamental, pois ela é o suporte imanente da mudança, e ao mesmo tempo liga essas
diferentes naturezas à cultura de partida. É assim que o mito pode reunir “naturezas diferentes
dentro da mesma cultura”.
Ainda sobre a linguagem, que precede a natureza, pode-se dizer que há o domínio do
mar, onde se articula uma linguagem específica do rei e da rainha do mar e animais
específicos são parte desse reino e definidos por essa linguagem, como o crocodilo, o tubarão
e a kakatua. Quando se circula em um outro domínio de linguagem, há uma transformação
corporal79 e, como podemos verificar nas narrativas míticas, ao se incorporar a linguagem de
outro domínio, transforma-se temporariamente ou definitivamente em um ser de outra
natureza. Isso não quer dizer que não seja possível fazer acordos, trocas, e mesmo
casamentos entre seres desses outros domínios. Se essa transformação não é mais possível,

79 É preciso salientar que a noção de corpo não é a mesma concebida no ocidente.

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quer dizer que você está constituído da linguagem de um mundo específico, uma casa
sagrada, por exemplo80.

Quando além se metamorfoseia, entra em outro mundo (reino de linguagem), e pensa


com o pensamento do outro. Assume a voz do outro, ou a voz que constitui o outro.

Transferindo esse processo para o contato com a obra literária, os leitores


transformam-se então em etnólogos de nossa própria ficção, como fazem os timorenses que
ressignificam as narrativas ocidentais e fazem “narrativas sobre narrativas”. “Produzidas por
nós, as vozes poéticas e os personagens são nossos estranhos ou o estranho que há em nós.
Eles são nossas potencialidades, que visitamos e inventamos como quem é capaz de habitar e
sonhar em uma língua estrangeira.” (López, 2015, p.121).

5.2 Da ontologia timorense para a ontologia do texto literário (vamos comer Platão)

Conforme discutimos, a maneira de atuação da Resistência Clandestina exemplifica a


influência recíproca entre história e literatura. Nossa hipótese é que foi preciso que a
Resistência Clandestina incorporasse outros mundos para criar o comum necessário à
autodeterminação. Fizeram passar, assim, determinadas narrativas pela história e pelos
sujeitos sociais que compunham a multidão dessa resistências. O movimento contrário
também foi feito, e os timorenses passaram por essas narrativas, carregadas de atitudes
literárias, para formar sua autodeterminação. Agora é preciso admitir que esses sujeitos
também possam passar pelas obras literárias para construir e elaborar seu destino.

As narrativas orais, salvo em casos muitos especiais, sofrem constantes alterações,


advindas de vários fatores, como a memória do narrador, a movência da obra e a mudança de
estrato cultural.
Em relação à literatura escrita a mudança seria mais difícil. Conforme nos lembra Librandi-
Rocha (2012, p.187), os personagens não têm como alterar seu destino já escrito, nem as
palavras pronunciadas, mas nós nos relacionamos com eles, e nessa relação eles e nós nos
alteramos mutuamente. “ontologia instável”.

Librandi-Rocha ainda propõe que se considere “ouvir” o texto literário. Isso quer

80 Em uma das narrativas orais escritas por nosso alunos, tivemos a narrativa de Bui-Laho, (princesa
rata), que contava que um bebê, filho de uma rata, foi encontrado e criado por um humano. A menina rata tam-
bém recebia a visita de sua mãe rata, cresce, torna-se uma princesa e se casa com o príncipe de outra aldeia. No
dia do casamento, sua mãe rata morre, atacada por cães. Depois disso, os timorenses nunca mais comeram ratos,
em respeito à linhagem da princesa.

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dizer personificar um personagem de um romance e escutá-lo como quem integra um outra


natureza à sua cultura.

A voz é presença e é algo que ultrapassa a língua, e a literatura também pode ser
pensada como algo que carrega este objetivo, pois ela cria uma nova linguagem para dizer o
indizível. Essa linguagem não pode ser confundida com a língua corrente, da qual a literatura
também busca livrar-se para alcançar o que ainda não foi dito, ao alcance de uma plenitude
que também se traduziria em presença.

A obra literária se constitui a partir da diferença, e o o leitor incorpora essa diferença


assim como a ontologia timorense buscaria o outro. É no estrangeiro, o diferente e dotado de
outra linguagem que atualizam sua cultura. Ambos buscam, assim, novas naturezas e novos
mundos.

5.3 Como liberar as forças criativas da multidão?

Librandi-Rocha tem uma honorável intuição para a diferença entre os filósofos e


poetas do Estado de Platão. A de que talvez haja uma espécie de incompossibilidade entre
nossos artefatos artísticos e nossas epistemologia, cosmologia e ontologia. Diante disso, por
que não supor que outras diferentes epistemologias, cosmologias e ontologias possam ser
mais afins aos nossos textos literários? p.184

Por meio desse raciocínio, os poetas expulsos na República de Platão encontram


refúgio muito mais facilmente retornando a Timor-Leste, ou mesmo permanecendo lá, de
onde nunca saíram.

A proposta de Librandi-Rocha (p.186) é radicalizar a equivalência entre os leitores,


que estão fora da literatura e personagens que estão dentro da ficção. Esse procedimento
permite pensar a ficção como uma outra cultura dentro da nossa com a qual estabelecemos
relação e que devemos respeitar na sua diferença. Retomando o par nativo-estrangeiro, é
como se o texto de ficção fosse estrangeiro a nós que o criamos e que o lemos.81

Assim, imensas possibilidades de ressignificação de textos escritos se abrem. Um


texto escrito lido em uma comunidade predominantemente oral é o mesmo texto assim como
o Quijote de Borges/Pierre Menard não é o mesmo Quijote de Cervantes apesar de ser o
texto idêntico? Quais as possibilidades de ressignificação da literatura diante da ontologia do
animismo timorense e da investida da voz no texto?

81 Neste momento não há como não invocar mais uma vez o modelo da narrativa sobre os timorenses
que, após a morte, os voltam ao Timor como estrangeiros.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Segundo Librandi-Rocha, nós estamos ligados a uma imensa lista de comunidades de


papel. Segundo ela, há também aí uma continuidade humana e uma descontinuidade
somática. Não é o caso de se disputar espaço com a literatura na sala de aula, mas abrir
espaço para o naturalmente diferente (que é culturalmente igual) para que sua voz se
manifeste e anime outros mundos no mundo. Assim nos transformamos incessantemente.

Para que essas ideias seja exploradas, é necessário que se considere os alunos como
autores, não como analfabetos. A vocalização e a reescritura da literatura devem ser
possíveis a ponto de obras literárias serem narradas por alunos nas aldeias e recontadas de
outro jeito, já apropriadas pelos timorenses nas salas de aula. Junto a isso, advogamos que
seja possível fazer passar o mito pela obra e a obra pelo mito, com a possibilidade de
apropriação pela voz e de modificação intensa dos textos literários.

Bibliografia

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nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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Afinidades, ambiguidades e discrepâncias: relações entre espaço, memória


e identidade no projeto urbano-social luandense através das obras de
Ondjaki

Diana Gonzaga Pereira


Universidade Federal de Viçosa
dianagonzagapereira@gmail.com

O crescente interesse voltado atualmente para os estudos africanos de língua


portuguesa vem trazer à tona algumas justas considerações que enfatizam desde o inegável

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

prazer da novidade no cenário literário até questões mais antigas como as relacionadas à
memória e ao processo de formação de identidade.

Neste sentido, o escritor e sociólogo angolano Ondjaki, vem contribuindo de maneira


bastante significativa através de sua produção artística, que abrange, entre outros, cinema,
com filmes e documentários, e literatura, com contos, poemas e romances, sendo dois destes
últimos, Bom dia camaradas e Avó Dezanove e o segredo do soviético, objetos de análise
para este breve estudo que se pretende realizar.

O autor, nascido em 1977, é apenas dois anos mais novo do que a independência de
Angola, em 1975 e, deste modo, pode-se dizer que goza de uma posição e tempo
privilegiados quando se pretende retratar a situação política, econômica e social deste
período.

Podemos dizer que Ondjaki cresceu sobre os destroços da guerra que assolou Angola
durante décadas e sobre a reconstrução depois da independência do país. Claramente, sua
visão é um retrato de quem assistiu, sem participar dos conflitos mas, suas observações e
memórias dessa infância e adolescência durante esse período em Luanda contribuem,
indubitavelmente, para retratar este contexto na Literatura e mesmo na História.

Como se sabe, o processo de independência angolano foi marcado por conflitos


violentos e por acirradas disputas por poder e desejo de dominação. As primeiras
movimentações contra o colonizador português datam da década de 1920, ganham força e
forma nos anos 60, de maneira politicamente mais organizada e desembocam no ano de 1975,
em que se deu a independência. Todas essas décadas de organização partidária e tentativas de
acordos já denunciam os tempos de mudança que viriam a acontecer após a década de 1970.

O papel que a literatura desempenhou antes e durante esse período é inegavelmente


importante. De maneira engajada desde a sua essência, ela propiciou análises e atitudes que,
não só incentivaram como mudaram o rumo das negociações angolanas. Sobre isso, Manuel
Ferreira, escritor português, registra:

Simplesmente, é dos livros. A subterrânea força libertadora da inteligência


nada a pode deter. Nem a polícia, nem a censura, nem qualquer outro tipo de
opressão ou repressão é capaz de suprimir o crescimento da consciência
revolucionária. E em 1960 a Casa dos Estudantes do Império volve, agora
em força, e mais bem apetrechada pela experiência de seus novos
associados, ao exercício de uma atividade cultural que se mantém até 1965
(...), como uma das mais importantes tarefas empreendidas, no domínio da
cultura, neste período, em todo o “Império”. (FERREIRA, 1977. apud
VIEIRA, 2007, p. 105)

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Angola, assim como o Brasil, é um país que enfrentou seu destino e agora luta por sua
afirmação, usando as armas que são, genuinamente, suas: as origens, o povo, a cultura. Esse
colonizador comum – ainda que os processos de independência tenham se dado de maneira
distinta entre os dois países – torna-se um elemento que soma no processo de independência e
de formação literária angolana. Referimo-nos, aqui, não apenas ao impulso, após a
independência do Brasil nas lutas pela libertação, mas, sobretudo, pela influência literária que
muitos escritores angolanos nunca fizeram questão de omitir. Conseguimos reconhecer as
influências de Guimarães Rosa, Manuel de Barros, Drummond, Jorge Amado, Graciliano
Ramos, entre outros, nas obras de autores como Luandino Vieira, Pepetela, Mia Couto,
Paulina Chiziani, João Melo, Manuel Rui, Manuel Lopes, José Eduardo Agualusa e Ondjaki.

Outro fato inegável é que a literatura continua desempenhando seu papel de instruir,
construir e consolidar a independência angolana. Os romances Bom dia camaradas (2006) e
Avó dezanove e o segredo do soviético (2009), por exemplo, retratam este período que
compreende os anos após 1975 e permitem observar questões pertinentes à formação da
identidade angolana pós-guerra amparada pela memória e, adotando o espaço – real e fictício
– como fio condutor dessa análise.

Depois de enfrentar conflitos de ordem violenta e devastadora, a cidade de Luanda


precisava se reconstruir, redefinir suas ruas, seus monumentos, seu patrimônio, sua
arquitetura, seu espaço como um todo. Neste ínterim, convém observarmos como a
reconstrução do espaço físico ou a revitalização dos lugares já existentes na cidade,
caminham lado a lado com a memória, porque é por ela, principalmente, que se faz a ponte
com o passado do local e, sobretudo, como este dueto memória/ espaço se configura de modo
a contribuir neste processo de formação da identidade angolana.

Alguns locais ganham destaque no romance ondjakiano, por representarem não só o


cenário como elemento da narrativa, mas por comportar significados para a obra e, deste
modo, representar como determinados lugares e determinados espaços fazem parte do
cotidiano angolano e abarcam significados sociais para o país.

Como se dão essas relações entre memória, espaço e identidade, nesses dois romances
anteriormente citados, de Ondjaki, é a proposta para este trabalho, que será delineada a
seguir.

Numa época em que o individualismo era comumente priorizado, o sociólogo francês


Maurice Halbwachs desenvolveu o que chamaria de identidade coletiva. Para ele, um
indivíduo só é capaz de se lembrar de fatos de seu passado, se estivessem estes associados a
um pensamento coletivo. Segundo Myrian Sepúlveda dos Santos,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

“Halbwachs faz parte de uma importante geração de intelectuais que procurava


desenvolver uma ciência aplicada para resolver os problemas sociais.” (SANTOS, 2003, p.
36).

O conceito de memória também deve ser considerado, por estar constantemente


ligado à tradição angolana. Japiassú e Marcondes, no Dicionário Básico de Filosofia,
definem que “a memória pode ser entendida como a capacidade de relacionar um evento
atual com um evento passado do mesmo tipo, portanto com uma capacidade de evocar o
passado através do presente” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 128).

Como uso social, o professor Celso Pereira de Sá analisa a memória, seguindo os


estudos de Halbwachs e faz algumas considerações a respeito da memória social e coletiva:

(1) a memória tem um caráter socialmente construtivo, e não meramente


reprodutivo das experiências individuais passadas; (2) são as pessoas que se
lembram e se esquecem, embora o que ou como se lembram e se esquecem
seja determinado pela sociedade, pela cultura e, em especial, pela
linguagem; (SÁ, 2012, p. 96)

Logo, podemos dizer que a memória passa, desde então, a ser vista como uma
ferramenta de resgate e de construção do meio social. É através dela, do que se lembram e do
que esquecem, que os indivíduos se sentem pertencentes a um (ou a vários) grupos sociais
como os quais se identifica.

O professor Andreas Huyssen inicia seu livro Seduzidos pela memória, de 2000, da
seguinte maneira:

Um dos fenômenos culturais e políticos mais surpreendentes dos anos


recentes é a emergência da memória como uma das preocupações culturais e
políticas centrais das sociedades ocidentais. Esse fenômeno caracteriza uma
volta ao passado que contrasta totalmente com o privilégio dado ao futuro,
que tanto caracterizou as primeiras décadas da modernidade do século XX.
(HUYSSEN, 2000, p. 9)

Por este fragmento, podemos perceber que a memória ganha cada vez mais destaque
no século XXI, de modo que passa a ser uma das grandes preocupações para os indivíduos
contemporâneos.

Ao nos depararmos com as tecnologias, com o desenvolvimento das mídias e as


facilidades que elas proporcionam, pelo menos uma questão vêm à tona: estamos cada vez
mais ligados ao passado, dependentes, portanto, da memória, mas, cada vez mais, confiando-

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

a a dispositivos capazes de armazená-la por tempo indeterminado. E, não raras vezes, jamais
acessamos essas recordações.

Algumas culturas, como a angolana, que passou, recentemente, por um processo de


transição política e social, necessitam, de maneira particular, desse acesso ao passado, dessa
memória coletiva do passado, para reconstruir a identidade de seu povo, agora independente.

Zigmunt Bauman, em entrevista a Benedetto Vecchi, em 2005, continua analisando a


questão da identidade coletiva afirmando que:

Quando a identidade perde as âncoras sociais que a faziam parecer


“natural”, predeterminada e inegociável, a “identificação” se torna cada vez
mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um “nós”
a que possam pedir acesso. (BAUMAN, 2005, p. 30)

Há poucos documentos disponíveis sobre o processo de independência de Angola.


Colonizada por Portugal desde o século XVI, o país foi explorado, foi privado de se expressar
em suas línguas nativas e de exercer sua cultura. Apenas no fim do século XX, em novembro
de 1975, recuperou, legitimamente, o domínio de seu território, fato que desencadeou uma
guerra civil que durou até o ano de 2002, quando o MPLA – Movimento Pela Libertação de
Angola – assume, finalmente o poder depois de conflitos diversos e intensos.

O fato é que o retorno à memória, neste contexto, se torna de extrema importância, já


que é nela, sobretudo, que os indivíduos se apoiam para (re)conhecer o seu passado e projetar
o seu futuro. Mas, onde estão estas memórias? Nos escassos e inacessíveis documentos? Nos
monumentos comemorativos pelo país? Guardada com os mais velhos, testemunhas do
processo? Ou com os mais jovens, que buscaram por ela e agora têm a missão de a propagar?

A resposta seria um pouco de tudo, na verdade. Para Jacques Le Goff, “a memória


coletiva e sua forma científica, a história, aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos
e os monumentos.” (LE GOFF, 1990, p. 535). E, mais adiante, no mesmo livro, História e
Memória, cita os fundadores da revista “Annales d’histoire économique et sociale”:

A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes


existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando
não existem. (...)Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem,
depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a
presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem. (Idem.
1990, p. 540)

Este fragmento exemplifica, como já foi dito, a situação que ocorre em Angola pós
guerra. A ausência ou a pouca disponibilidade de documentos que relatam o processo e que

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

seriam capazes de esclarecer questões acerca do processo de independência, faz com que
outras fontes precisem ser produzidas e observadas. Neste sentido, a literatura torna-se de
grande valor, como afirma Maria de Fátima Marinho:

À medida que os estudos históricos deixaram de se arrogar aquela


imutabilidade própria do positivismo, aceitando a relatividade do
acontecimento histórico e a sua questionação, a literatura percebeu que
poderia, com toda a legitimidade, explorar os interstícios silenciados, os
segredos escondidos que lhes acenavam em todas as palavras não ditas e
situações não esclarecidas. (MARINHO, 1999, p. 136)

Sendo assim, a literatura pode cumprir um papel de fonte documental porque, em sua
totalidade, é representação registrada de um contexto, com a linguagem, com as descrições de
cenário, com as ações da narrativa. Toda obra literária, portanto, é um registro de algum
momento, de locus e de ethos. É importante ressaltar que a literatura, como expressão
artística de caráter ficcional que é, não tem compromisso com a verdade, mas, ainda assim,
ela colabora no sentido de registrar, guardar e propagar as memórias e a identidade do
contexto que retrata.

A incipiente literatura angolana conta, por sua vez, com esse suporte a fim de analisar
e estudar o seu passado para compreender o seu presente e construir, consequentemente, seu
futuro.

Há um fator que, sem dúvida, é indispensável quando se fala em literatura angolana: a


guerra. Não há como dissociar a literatura de Angola de seu passado – em alguns aspectos
ainda se pode dizer presente – de conflitos, uma vez que, desde quando se pode afirmar que
há uma literatura genuinamente angolana, eles se fazem presentes, ora como assunto, ora
como contexto. Em função disso, logo após a independência, a construção da identidade
angolana unificada se faz essencial no cenário artístico, como escreveu Frantz Fanon, em Os
condenados da terra: “o processo da consciência nacional do povo modifica e precisa as
manifestações literárias do intelectual colonizado” (FANON, 2005, p. 274) e, em
consequência disso, “a consciência de si abre portas para o diálogo com outras
nações” (Ibidem. p. 282).

A literatura de Angola está intimamente ligada à história de Angola e esta, por sua
vez, está ainda muito ligada à guerra. Logo, a constante presença da guerra nos textos
africanos de expressão portuguesa é justificada por Inocência Mata: “se é certo que à
independência literária precede a independência política, esta última situação não deixará de
influenciar, decisivamente, a história, a crítica e a avaliação do sistema literário” (MATA,
2003, s.p.).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Após a década de 1970, com a chamada “crítica da modernidade” podemos observar


uma crescente busca pelas questões relacionadas à memória, justamente nesta tentativa de
repensar o presente, bem como os resultados da modernização.

Neste sentido, vamos nos embasar na teoria de Pierre Nora e seus “lugares de
memória” para exemplificar os espaços físicos representados por Ondjaki nos romances

Bom dia camaradas e AvóDezanove e o segredo do soviético e o modo como eles são
retratados para que se possa analisar o processo de reurbanização de Luanda, a fim de
perceber como estes espaços são representações de memória para, deste modo, participarem
da formação da identidade angolana. Trata-se de dois romances que remetem à infância e
juventude do autor, portanto, romances memorialistas da Luanda de seu tempo. Para o
historiador francês:

Os lugares de memória (...) são lugares, com efeito nos três sentidos da
palavra, material, simbólico e funcional (...). Mesmo um lugar de aparência
puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória
se a imaginação o investe de uma aura simbólica. (NORA, 1993, p. 21)

A construção do mausoléu em homenagem ao falecido presidente e combatente na


luta pela independência de Angola, Agostinho Neto, em Luanda, é um exemplo de lugar de
memória. Um lugar que é motivo de orgulho, em Bom dia camaradas:

_ Tia, Portugal já tem um foguetão? _ Não, não tem, filho.

_ É que nós temos, e não é do tempo dos portugueses, não penses... _


Apontei para a esquerda, onde se podia ver o mausoléu. _ Quer dizer, ainda
não tá pronto, mas tá quase. (ONDJAKI, 2004, p. 53)

E se torna motivo de contestação, algum tempo depois, quando as crianças começam


a entender que seria necessário desapropriar os moradores das ruas vizinhas ao Mausoléu
devido ao fato de que iriam explodir o lugar. Esse “foguetão” – o Mausoléu tem o formato
semelhante ao de um foguete – é, ao mesmo tempo, abrigo da memória e da história de
Angola e objeto de descontentamento da população vizinha a ele, como fica claro em Avó
Dezanove e o segredo do soviético: “_ Não comeces com estórias, se os cobois costumam
dinamitar montanhas como é que um Mausoléu construído por soviéticos bêbados não vai
pelos ares? Lembra-te só dos pontos cardeais que estudamos na escola.” (Idem, 2009, p. 123).

O Bairro da Praia do Bispo, onde fica a casa da Avó Agnette, bastante explorada em
Avó Dezanove e o segredo do soviético, também constitui um lugar de memória, na obra. É
na vizinhança da casa e no interior da mesma, que se passam as ações da narrativa. É ali que
o mausoléu está sendo construído e, para tal, como já dissemos, algumas casas precisarão ser

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

dinamitadas. Neste ponto, reafirma-se o significado desse lugar para o narrador, que
demonstra, ao longo do enredo, o seu carinho, bem como explicita o papel social e político
que se está pretendendo com a construção do “foguetão”.

Quer dizer, nunca ninguém fala das crianças, está certo que a nossa vida
ainda é pequenina, mas nós também gostamos muito da Praia do Bispo e os
mais velhos sempre esquecem que quando há problemas nós podemos
ajudar a resolver. (Ibidem, 2009, p. 106 - 107)

Podemos notar, neste fragmento, que o narrador-personagem deste romance,


demonstra o seu descontentamento e uma certa nostalgia em relação àquele espaço. O que ele
pretende, juntamente com seus amigos, também moradores do bairro, é, através da explosão
do monumento, manter o lugar como está, fato que prova a negação deste monumento como
parte integrante da Praia e que demonstra a não-identificação com esse novo lugar, que é um
símbolo da luta angolana pela liberdade.

De maneira semelhante quanto ao carinho dedicado pelos meninos e completamente


diferente, quanto à identificação e aceitação, encontramos o espaço da escola, em Bom dia
Camaradas. Os professores cubanos82, que compunham esses lugares, são um dos
responsáveis por conferir à sala de aula, o posto de lugar de memória. As relações sociais que
ali são travadas, geram significado para os alunos e para os professores. O leitor consegue
perceber a empatia que transcende o lugar físico para tornar-se memória, como se vê nessa
fala do camarada professor de química: “No quiero que se queden con esa cara... están
pálidos de miedo! Miren, la escuela tambien es um sítio de resistência...” (ONDJAKI, 2006,
p. 70).

Ou ainda, na relação desses professores com os meninos:

_ Camarada professor... Eu sei que tudo que o camarada professor disse da


revolução é verdade, e que... o mais importante é sermos verdadeiros... _ e
não consegui dizer mais nada.

Ele me abraçou e limpou as lágrimas. Depois abraçou a Romina. Depois


abraçou o Cláudio. Depois abraçou a Petra. Depois abraçou a Kalí. Depois
abraçou a Catarina. (Ibidem, 2006, p. 127)

Gaston Bachelard explica a relação que pudemos observar nos fragmentos


anteriormente citados:

82O governo angolano, de tendência marxista-leninista, contou com o apoio do governo cubano na luta e na
manutenção das atividades primordiais, em Angola. Enviaram estrategistas de guerra, médicos e professores,
sendo estes últimos, figuras de grande admiração por parte dos alunos. No romance Bom dia camaradas, esta
boa relação fica evidente e confere ao texto, uma emocionante despedida quando os cubanos são mandados de
volta à cuba, já no fim da guerra civil.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

O espaço compreendido pela imaginação não pode ficar sendo o espaço


indiferente abandonado à medida e reflexão do geômetra. É vivido. E é
vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da
imaginação (BACHELARD, 1978, p. 196)

Desta maneira, o binômio espaço-literatura, tão difundido no final do século XX, mostra que
o espaço no qual o sujeito está inserido revela traços de sua origem e, logo, de sua identidade.
A tentativa de preservar o seu local, nos romances, mostra, também, a maneira como se dá a
relação desses sujeitos com outros anteriores a eles. O Mausoléu não é só uma construção de
concreto, é um símbolo, é uma alegoria da nova condição de Angola, que, ainda que
independente do colonizador, é oprimida pela guerra civil. Para o estudioso Davi da Silva
Gouveia:

A realização da “conquista” acarreta relações de domínio e controle,


dando ao espaço a configuração de território que, nos estudos
foucaltianos, está atrelado a uma concepção de caráter jurídico-
política. (GOUVEIA, 2013, p. 88)

Sendo assim, o espaço observado nas obras ondjakianas (ficcional) e o espaço dos territórios
de Luanda (real), se configuram de modo a representar o processo de consolidação da
independência angolana tomando a memória desses lugares como parte importante em um
outro processo que é resultante deste primeiro: o da identidade angolana, da angolanidade.

É importante observarmos, entretanto, que, neste momento, entramos num terreno que mais
problematiza do que soluciona o processo de formação dessa identidade angolana. Na,
verdade, a questão da identidade, semeada no Renascimento83, com o incentivo ao
Antropocentrismo em detrimento do Teocentrismo, largamente trabalhada no Barroco84 para
florescer no Iluminismo85, onde aparecem, de fato, o individualismo e a ideia de nação, que
também identifica o povo coletivamente torna-se, vem, novamente, à tona.

Há, portanto, dois momentos significativos neste processo de formação da identidade. O


primeiro é aquele em que há a luta pela libertação do domínio português, em que os

83 Historicamente, período que compreende o final do século XIV e o final do século XVII, em que o homem
figura como centro do universo, em que há a transição do sistema feudal para o capitalismo e que marca muda-
nças nos setores econômicos, sociais, culturais e religiosos que servirão de base para a sociedade moderna.

84 O estilo barroco, que surgiu como reflexo do pensamento renascentista, demonstra o início dos conflitos do
homem novo. Por ser, essencialmente, dualístico, o barroco problematizava questões como a vida terrena e
plano espiritual, razão e fé, homem e Deus.

85 Movimento intelectual e político, o Iluminismo foi um período de efetiva consolidação da consciência mo -


derna. Criticava, principalmente, o absolutismo monárquico, a fé e o mercantilismo.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

angolanos se organizam numa luta contra o colonizador europeu. É necessário, nesta fase,
reforçar as diferenças entre um e o outro. Mais uma vez, a memória e os espaços se fazem se
fazem fundamentais neste processo.

Num segundo momento, durante a guerra civil, essa identidade “africana”, diferente da
europeia, tanto ressaltada no primeiro momento, fragmenta-se, mais uma vez. A luta interna
que se estabelece neste contexto, reforça as variadas características das também variadas
etnias angolanas. Podemos inferir, então, que o processo de formação da identidade angolana
trata-se, na realidade, de um processo de reformulação de identidades angolanas. Stuart Hall,
alerta-nos sobre isso:

As sociedades da modernidade tardia, [...] são caracterizadas pela


“diferença”; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos
sociais que produzem uma variedade de diferentes “posições de sujeito” –
isto é, identidades – para os indivíduos. Se tais sociedades não se
desintegram totalmente não é porque elas são unificadas, mas porque seus
diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser
conjuntamente, articulados. (HALL, 2004, p. 17)

Essa diferenciação que ocorre na chamadas sociedades tardias, como é o caso de


Angola, enquanto ex-colônia de Portugal, é derivada ora do afastamento do colonizador e da
aproximação, da união do seu povo, ora da marca que diferencia esse mesmo e diversificado
povo.

As afinidades, as ambiguidades e as discrepâncias que se encontram presentes nas


relações de memória, espaço e identidade, tanto no espaço físico, real, como no espaço
fictício dos romances de Ondjaki, revelam, mais do qualquer outra coisa, que esses processos
estão, ainda, em desenvolvimento e que, ainda que de maneira tardia, Angola tem trabalhado
essas questões dia a dia, na tentativa de reforçar sua independência.

O papel da literatura, hoje, igualmente, continua seguindo como importante


instrumento de reconhecimento da nação, das culturas daquele povo, das suas identidades,
agora, entretanto, de uma maneira sua, sem a presença do colonizador, “com a liberdade nos
olhos”, como bem escreveu o veterano Agostinho Neto e com o otimismo possível da geração
de Ondjaki.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Literatura nos jornais: Lima Barreto, Eça de Queirós e a profissionalização


do escritor

LIMA, Elizabeth Gonzaga


Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Profa. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Pós-doutoranda em Literatura e Contemporaneidade – PUC-RIO/PROCAD/CAPES
betylyma@gmail.com

O panorama cultural do Brasil na passagem entre os séculos XIX e XX caracterizou-


se pela efervescência na vida literária devido à visibilidade proporcionada pelos jornais aos
escritores do período. Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto e o português Eça de
Queirós publicavam nos periódicos do Rio de Janeiro formas literárias diversas, sejam
folhetins, contos e crônicas. Flora Süssekind (1987) afirma que no fim de século XIX
assistia-se ao processo embrionário da profissionalização do escritor, em virtude da expansão
da técnica. A máquina de escrever substitui a pena, o processo demorado da edição de livros
passa a conviver lado a lado com a publicação diária e rápida da literatura nos jornais. Este
cenário redimensiona o ofício do escritor em relação ao alcance do público leitor, que, por
sua vez, conquista maior acesso à literatura e, consequentemente, à recepção dos textos
literários, ainda que circunscritos ao espaço das colunas. A escrita imediata para o jornal
passa a contaminar os modos de criação dos escritores.

Lima Barreto e Eça de Queirós são exemplos de escritores que perseguiram formas de
escrever mais ágeis, comunicativas e em constante diálogo com os acontecimentos de seu
tempo. A partir dessa perspectiva, o trabalho propõe examinar os escritos jornalísticos de
Lima Barreto reunidos em Vida Urbana (1956) e de Eça de Queirós publicados em Textos de
imprensa IV (2002), analisar a relação que se estabeleceu entre jornal e literatura, seja no
conflito entre o discurso jornalístico e a concepção da escrita para o literato, seja na utilização
de novos espaços de publicação, que em última instância aponta para o processo de
profissionalização dos escritores e da constituição de um público leitor.

Os jornais, os literatos e o público leitor

Em 1808 com a chegada da família real ao Brasil, a imprensa é autorizada a funcionar.


Este atraso na circulação dos jornais pode ser tributado a fatores combinados, como o
controle da Coroa portuguesa em todos os segmentos da sociedade brasileira colonial, a

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contemporâneas

legião de escravizados excluídos do convívio social e cultural, além de uma elevada taxa de
analfabetismo. Circunstâncias que impediam o progresso técnico e o avanço cultural.
Apesar deste contexto precário em relação aos meios de difusão, existia uma rede de
comunicação e sociabilidade já estabelecida entre a população, em decorrência de uma
cultura oral marcante na sociedade do período, prática que continuou mesmo com a
multiplicação no número de jornais a partir de 1822, como afirma Marialva Barbosa (2010, p.
21):
Mas serão necessários alguns decênios para que o cotidiano dos jornais faça
parte do universo oral/letrado de uma população mais vasta. A teia de
notícias é construída, sobretudo, pela rede de informações verbais, que
podem ter origem nas letras impressas, as quais são retransmitidas
oralmente a outros ou diretamente pela conversa oriunda dos ambientes
privados. Ao mesmo tempo, as letras impressas passam a se nutrir do jogo
das práticas orais.

A palavra e o poder sempre estabeleceram uma relação intrínseca, pois o poder se


concretiza com o domínio do discurso e numa sociedade letrada isto se faz pelos meios de
comunicação e da consequente circulação de ideias. Após 1820, os jornais no Brasil passam a
ter um papel estratégico na produção intelectual, na visibilidade de alguns escritores frente a
um segmento editorial limitado e precário, circunstância ilustrada na imagem emblemática
desse período descrita por João do Rio: “Hoje o escritor trabalha para o editor e não manda
vender como José de Alencar e o Manuel de Macedo por um preto de balaio no braço, as suas
obras de porta em porta, como melancias e tangerinas” (JOÃO DO RIO, 1908, p. 326).

Nesse contexto, surgiu em oito páginas, o jornal Ostensor Brasileiro – Jornal Literário
Pictoreal que circulou entre 1845 e 1846 propondo:

É preciso civilizar o povo, dizem todos, o jornal literário é uma poderosa


alavanca da civilização; porém, ignora-se que para o povo no Brasil, e em
muitas partes ainda não é a leitura uma necessidade? Enfastiam-no
cientificamente e depois gritam que as empresas literárias no Brasil são
impossíveis de manter, que o povo não lê vinte e trinta páginas, que de uma
vez só lhe atiram, ainda mais, para que esta civilização estrangeirada, que
não cria raízes no coração do povo? (Ostensor Brasileiro, 1, 1845).

Nesse projeto de civilizar pela leitura e pela literatura, o jornal literário veiculava
poemas, romances, biografias e ensaios que sempre eram introduzidos tematicamente por
uma ilustração. De certo modo, o Ostensor e os jornais do período tomam para si a missão de
formar um público de leitores, a fim de constituírem uma cultura letrada diante das novas
circunstâncias socioculturais que advieram com a chegada da corte portuguesa em 1808 e
com a Independência do Brasil em 1822.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A concepção de público e de público leitor ou público consumidor faz eco, de forma


simplificada, à concepção de Habermas (1984) de esfera pública86, espaço no qual, segundo o
filósofo, ocorrem encontros e debates para a formação da opinião pública local propícia ao
exercício da crítica. O número de analfabetos no Brasil, em fins do século XIX chegava a
quase 80% da população. Em contrapartida, o Rio de Janeiro concentrava a elite ilustrada que
se reunia em cafés, confeitarias, livrarias para discutir literatura, cotidiano e política,
configurando-se assim a esfera pública literária apontada por Habermas. Diante do
melancólico quadro de leitores, o segmento letrado sentia o peso da missão pedagógica de
instruir a massa, ocupando assim o espaço lacunar entre o poder público e o povo.
Nesse sentido, o jornal configurou-se como porta-voz da missão de educar o público
leitor ao estabelecer uma comunicação mais simples, rápida, inovar com ilustrações, charges,
com o uso da técnica da fotografia, provocando a ampliação das tiragens, sintoma do
aumento do número de leitores.

A colaboração de escritores nos jornais converteu-se em prática comum nos


periódicos e os literatos assistiram à expansão do alcance de seus escritos e, nessa esteira, o
aumento do poder de influência na sociedade do período. Flora Süssekind (1987, p.89-91)
aponta que esta ligação estabelecida entre escritores e imprensa decorre também do avanço
da técnica, em virtude de novas formas de divulgação, de adequação da escrita literária à
linguagem jornalística com sua rapidez, objetividade e “fiel reprodução da vida”. Segundo
Sérgio Miceli estas transformações operacionalizadas pela imprensa estabeleceram condições
favoráveis à profissionalização do trabalho intelectual em virtude de “toda” vida intelectual
ser dominada pela grande imprensa, o que constituía “a principal instância de produção
cultural da época”. (1977, p.14).

Os periódicos, aos poucos, converteram-se em instrumentos comunicacionais


estratégicos para que os escritores assumissem a representação da intelectualidade, intérpretes
do cotidiano urbano, formadores de opinião e tomassem o jornalismo também como ofício.
O esforço cotidiano da imprensa e dos jornalistas-literatos para aumentar o número de
leitores refletia em algumas estatísticas87, resultados considerados ainda insuficientes para

86 Em 1974, Richard Sennet publicou o que atualmente, considera-se um clássico da área de Ciências Sociais, O
declínio do homem público. A partir de um panorama histórico da sociedade urbana do século XVIII, o estudio-
so aprofunda e problematiza as questões que envolvem a esfera pública, apresentando um outro foco em relação
às reflexões de Habermas, lançando luz sobre o que o próprio autor considerou como a tese do livro “ [...] os
sinais gritantes de uma vida pessoal desmedida e de uma vida pública esvaziada [...] são resultantes de uma mu-
dança que começou com a queda do Antigo Regime e com a formação de uma nova cultura urbana, secular e
capitalista (SENNET, 1988, p. 30).

87 De acordo com Maurício Silva (1999) em “Profissionalização do escritor e publicidade editorial: dois capítu -
los da leitura pré-modernista no Brasil”, em 1846, o Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, contava
com mais de 6 mil leitores, cinquenta anos depois (1896), a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro já contava
com mais de 16 mil, para três mais tarde, ultrapassar a marca dos 20 mil. Estatísticas da Revista Universal Bra-
zileira de Instrução e Recreio (1848) e Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (1887).

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contemporâneas

escritores como Olavo Bilac que lamentava a circulação restrita de jornais, reflexo do quadro
de leitores da época:

O jornal é um problema complexo. Nós adquirimos a possibilidade de poder


falar a um certo número de pessoas que desconheceriam se não fosse a folha
diária; os proprietários de jornal vêem limitada, pela falta de instrução, a
tiragem das suas empresas. Todos os jornais do Rio não vendem, reunidos
150 mil exemplares, tiragem insignificante para qualquer diário de segunda
ordem na Europa. São oito os nossos! Isso demonstra que o público não lê”.
(BILAC apud SÜSSEKIND, 1987, p. 73-74).

Enquanto o livro impresso cumpria a realização de um projeto pessoal, o respaldo de


um status social, em alguns casos sem almejar lucros, a colaboração em jornais consagrou-se
como fonte de renda, que com o passar do tempo conscientizou o escritor de que o texto
literário não era objeto de sacralização artística, mas de troca comercial, mais uma
mercadoria cultural, como afirma Olavo Bilac (1897), “Quem escreve quer os aplausos fúteis
das turbas néscias, e quer ainda ver pago seu trabalho, não só em louvores, mas também em
dinheiro”.

O fato é que alguns escritores para além da glória literária enxergavam no jornalismo
uma possibilidade de subsistência e visibilidade, como Lima Barreto, enquanto outros, como
Eça de Queirós, vislumbrava o prestígio sociocultural. Segundo Silva Ramos, em resposta à
enquete de João do Rio sobre o jornalismo como fator bom ou ruim para arte literária, o
jornalismo apresentava uma utilidade precípua para a literatura: oferecer ao literato um
emprego, abrigando-o das necessidades mais urgentes, o que facilitava os contatos e as
possibilidades de colocação no serviço público com vistas à estabilidade financeira e
aposentadoria (JOÃO DO RIO, 1908, p. 164)

Lima Barreto e Eça de Queirós: entre a escrita literária e o discurso jornalístico

As trajetórias literárias de Lima Barreto e Eça de Queirós são bem diversas, enquanto
Lima Barreto negro-mestiço, oriundo de família suburbana sem recursos, construiu sua
carreira literária enfrentando toda sorte de preconceitos e dificuldades, Eça de Queirós, por
sua vez, filho ilegítimo, mas procedente de uma família de recursos, obteve sólida formação,
formou-se advogado e seguiu a carreira diplomática, paralelamente tornou-se jornalista e um
dos mais prestigiados ficcionistas de Portugal.

Os dois escritores distanciados pela condição étnica e social, aproximam-se no que


tange à concepção de uma literatura sem arroubos idealistas ou patrióticos. Lima e Eça
notabilizaram-se por tensionar o núcleo da literatura romântica ao denunciar as mazelas
sociais, as hipocrisias políticas e religiosas em seus respectivos países. Compartilhando uma

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contemporâneas

visão realista em relação à vida cotidiana, passaram a incorporar na escrita a observação


direta dos fatos sem volteios, numa linguagem ágil e mais próxima dos leitores da época. E
esta forma de conceber e escrever literatura encontrou nas colunas de jornais novo espaço de
representação ficcional e circulação de ideias, seja nos grandes e prestigiados, como Eça na
Gazeta de Portugal, seja nos pequenos e marginais como Lima Barreto na Lanterna.

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) colaborou ativamente na imprensa do


Rio de janeiro nas duas primeiras décadas do século XX. Segundo Francisco de Assis
Barbosa (1988), em 1901, ainda estudante da Escola Politécnica, Lima Barreto por indicação
do amigo Bastos Tigre passou a colaborar no jornal estudantil A Lanterna, periódico de
Ciências, Letras, artes, indústria e esportes, com o pseudônimo de Alpha Z. Neste primeiro
texto, Lima já demonstrava a característica que marcou sua produção literária, o uso do
sarcasmo e da ironia, estilo que agradou o editor do periódico estudantil.

A partir dessa primeira experiência, o escritor passou a circular pelas rodas boêmias
de estudantes, filósofos e artistas, nos cafés da Rua do Ouvidor, tornando-se conhecido, o que
possibilitou, tempos depois, novas oportunidades de colaboração em periódicos e revistas,
como A Época, Fon-Fon, O País, O Debate, O Mundo Literário, A Voz do Trabalhador (com
o pseudônimo de Isaías Caminha), Floreal (revista literária criada por ele, durou quatro
números) e na revista Careta, para qual escreveu ao longo de quinze anos.

A presença de literatos nos jornais era uma maneira encontrada pelo jornal a fim de
melhorar a qualidade dos textos, do conteúdo e diversificar as formas que surgiam com as
demandas da imprensa, seja em função do cumprimento de prazos, seja para atender ao
anseio de novidades dos leitores. E nesse sentido, o folhetim foi o gênero por excelência que
aproveitou o rodapé dos jornais para veicular a ficção e muitos escritores surgiram a partir
dessa textualidade.

A trajetória de Lima não foi diferente da experiência de outros escritores. Sem


recursos, relações e posição social, o escritor encontrou nas folhas diárias ao mesmo tempo, o
caminho para experimentar a escrita e o canal de visibilidade. No entanto, sua primeira
participação na imprensa é no Correio da Manhã com uma série de reportagens sobre as
escavações no Morro do Castelo. Sem assinar os textos, o escritor de forma criativa
estabeleceu um liame entre linguagem jornalística e escrita ficcional, devido ao
desenvolvimento do folhetim D. Garça junto com a reportagem, envolto ainda por uma
atmosfera gótica. Mais do que apresentar a estreia de Lima Barreto no universo jornalístico, o
texto revela sua capacidade de escrita do cotidiano, como assinala Carlito Azevedo (1999, p.
137), “Assim o Subterrâneo do Morro do Castelo nos ajuda a perceber melhor que a

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contemporâneas

evolução de Lima Barreto não se deu a partir de narcísicos refinamentos formais, mas de uma
proximidade cada vez maior com a matéria suja da vida e dos dias”.

A colaboração de Lima Barreto no Correio da Manhã foi breve e ele não voltaria a
frequentar suas colunas em função de seu romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha,
que retrata de forma sarcástica os bastidores da redação do jornal O Globo com seus tipos
característicos, como o redator Ricardo Loberant, o inflexível gramático Lobo e o superficial
crítico literário Floc. Logo que o romance chegou às mãos de leitores e escritores, as
referências ao Correio da Manhã mostraram-se evidentes, fazendo com que Lima Barreto
fosse preterido e mesmo excluído do Correio e de outros veículos de comunicação.

A despeito desse percalço inicial, Lima demonstrou capacidade de adaptação às


exigências do texto jornalístico, pois seus romances foram publicados em folhetins, como
Triste fim de Policarpo Quaresma no Jornal do Comércio entre 11 de agosto a 10 de
novembro de 1911; o periódico A Noite trouxe a lume Numa e a Ninfa, de 15 de março a 26
de julho de 1915; e Clara dos Anjos foi publicado de fevereiro de 1923 a maio de 1924 na
Revista Souza Cruz, logo após a morte do escritor. A visão crítica em relação à política
brasileira ensejou inúmeros artigos políticos e a participação na emergente imprensa
proletária; exerceu a crítica literária, adaptou-se à narrativa curta produzindo contos para os
jornais e desenvolveu largamente um dos gêneros mais apreciados pelos leitores do período, a
crônica, em função do texto leve, rápido e heterogêneo, escrito ao sabor da observação do
dia-a-dia urbano.

A participação diária de Lima Barreto nos jornais revela uma produção caudalosa de
textos de diferentes gêneros, mas isto não isentou o escritor de criticar os jornais, desvelando
a relação conflituosa entre o literato e o jornal, como as crônicas de Vida Urbana88 revelam.
No texto cronístico “Os nossos jornais”, Lima observa: “Os nossos jornais diários têm de
mais e têm de menos, têm lacunas e demasias. Uma grande parte deles é ocupada com
insignificantes notícias oficiais” (1956, p. 53) e prossegue ironizando a falta de conteúdo das
folhas diárias e a participação dos portugueses em nossa imprensa:

Excetuando a Imprensa, que tem a sua frente o grande espírito de Alcindo


Guanabara, e um pouco O País, os nossos jornais da manhã nada têm que se
ler. Quando excetuei esses dois, decerto, punha hors-concours o velho
Jornal do Comércio; e dos dois, talvez, só a Imprensa seja exceção, porque

88As inúmeras colaborações de Lima Barreto em vários periódicos ficaram dispersas até a organização de sua
obra completa por Francisco de Assis Barbosa. O volume Vida urbana reúne artigos e crônicas do escritor em
diversas épocas de sua vida, em particular os textos publicados na revista Careta. Nestes e em outros textos, o
escritor demonstra que em seu horizonte de criação, cabia não somente a matéria ficcional, mas o contexto ime-
diato da vida em sociedade e do papel do escritor e de seus conflitos naquele momento.

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a colaboração do País é obtida entre autores portugueses, fato que pouco


deve interessar à nossa atividade literária (1956, p.55).

O incremento da imprensa empresarial e o acirramento das relações capitalistas nas


primeiras décadas do século XX diminuíram o espaço de participação dos literatos e
provocaram o declínio na oferta de textos literários, como o folhetim, o artigo, impondo,
segundo Muniz Sodré, aos homens de letras que escrevessem “menos colaborações assinadas
sobre assuntos de interesse restrito” (SODRÉ, 1999, p. 297). Circunstância notada por Lima
Barreto (1956, p. 56): “Seria tolice exigir que os jornais fossem revistas literárias, mas, isto
de jornal sem folhetins, sem crônicas, sem artigos, sem comentários, sem informações, sem
curiosidades, não se compreende absolutamente”. Leitor contumaz de jornais, Lima
demonstrava curiosidade e avidez pelas notícias do estrangeiro, buscando na coluna “O que
vai pelo mundo” do Correio da Manhã, reportagens sobre França, Japão ou África,
entretanto: “Leio de fio a pavio. Qual nada! O mundo aí é Portugal só e unicamente Portugal.
Com certeza, foi a república recentemente proclamada, que o fez crescer. Bendita república!”
(p.57).

Antes de ser escritor, Lima Barreto mostrou-se um leitor metódico, que tinha nos
jornais uma forma de pesquisa para a escrita ao fazer recortes e colagens em cadernos e até
nas paredes de sua casa, colecionando ainda revistas e suplementos. Alguns leitores do
período compartilhavam essa preferência pelos recortes, como relatou o escritor na crônica
“Velhos ‘Apedidos’ e velhos Anúncios”, a respeito de um vizinho idoso apaixonado pela
leitura dos jornais e pelos recortes. Pouco tempo antes de morrer entregou ao escritor
diversos retalhos de vários jornais, entre estes, folhetins de quarenta anos atrás:

Tentei ler os que recebi, mas não pude. Não há nada que envelheça tão
depressa como o que chamamos ainda nos jornais – humorismo, leveza,
graça, etc. Todos os relatos que recebi deviam ter no seu tempo essas
pretensões e como tal serem estimados, mas eu os achei soporíferos. Não sei
o que tem o tal gênero folhetim de tão estritamente atual, do momento, do
minuto em que é escrito que, passado esse fugace instante, rançam logo e
perdem todo o sabor. Considerem que eu já fiz, faço e farei folhetins...
Mas.... (1956, p.151).

Dessa maneira, Lima Barreto estabeleceu uma relação de leitor, de colaborador, como
folhetinista, cronista, contista e articulista nos jornais da primeira década do século XX, mas
isto não obliterou sua visão crítica em relação à participação do literato na construção do
discurso jornalístico e de seu espaço na imprensa.

O escritor José Maria Eça de Queirós (1845-1900) exerceu a advocacia e o jornalismo


em Lisboa. Em 1867, por incentivo do pai, tornou-se diretor jornal de oposição O Distrito de
Évora. A experiência como redator do jornal o aproxima das contradições da realidade de

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Portugal, circunstância que somada à circulação das ideias do socialismo reformista de


Proudhon, fertilizou a verve crítica e realista do escritor.

Eça de Queirós estreou na carreira literária no Jornal Gazeta de Portugal com o


gênero mais cultivado até então, o folhetim. Notas Marginais causaram estranheza no público
leitor em função do escritor apresentar a nova estética literária que emergia em Portugal.
Após a morte do escritor esses textos foram recolhidos e compilados em Prosas Bárbaras
(Cf. SARAIVA, 1982, p.923).

Em 1869, como jornalista, assistiu a inauguração do Canal de Suez, no Egito, que


resultou na obra O Egito. Em 1871, incursionou pela novela policial em O Mistério da
Estrada de Sintra com a colaboração do escritor Ramalho Ortigão seguindo-se o lançamento
do folheto mensal As Farpas, contendo sátiras à sociedade portuguesa e suas instituições.
Considerado um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos, construiu também
uma carreira no jornalismo. O estilo realista voltado para as mazelas da sociedade seduzia os
leitores de jornal. Tal característica aliada ao sucesso que Eça gozava no Brasil levaram os
editores de um dos jornais mais prestigiados do Brasil no século XIX, a Gazeta de Notícias,
convidar o escritor português como colaborador.

Fundado em 1875 por Elísio Mendes, Henrique Chaves e Ferreira de Alves, o jornal
Gazeta de Notícias oxigenou o cenário da imprensa brasileira ao baratear o exemplar,
deixando-o acessível ao público, investir na divulgação de artistas como pintores, músicos,
escultores e colaborações literárias de peso, como Machado de Assis e Ramalho Ortigão.
Circunstâncias que levavam os jovens aspirantes à carreira literária a sonhar com a
oportunidade de escrever na Gazeta de Notícias, como revela Olavo Bilac (1916):

Nunca houve dama, fidalga e bela, que mais inacessível parecesse ao amor
de um pobre namorado: escrever na Gazeta! Ser colaborador da Gazeta!; ser
da casa, estar ao lado da gente ilustre que dava brilho! Que sonho! [...] É
que a Gazeta, naquele tempo, era consagradora por excelência. Não era eu o
único que a namorava: todos os da minha geração tinham a alma inflada
daquela mesma ânsia ambiciosa. Não era o dinheiro o que queríamos:
queríamos consagração, queríamos fama, queríamos ver os nossos nomes ao
lado daqueles nomes célebres. Nós todos julgávamos, então, que a
publicidade era um gozo e que a celebridade era uma bem-aventurança.

A coletânea Textos de Imprensa IV (2002) organizado pelas pesquisadoras Elza Miné


e Neuma Cavalcante trouxe ao cenário acadêmico a edição crítica dos textos jornalísticos de
Eça de Queirós para o jornal Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em dois momentos, de
1880 a 1882 e de 1882 a 1897. A primeira colaboração do escritor português ocorreu em

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24/07/1880 tornando-se mensal até fevereiro de 1883 a 1886, quando houve um intervalo
sem publicações, retornando a colaboração em 1887.

Segundo Miné e Cavalcante, a colaboração de Eça para a Gazeta de Notícias não se


resumiu aos textos mensais, houve em 1892 uma participação mais efetiva com a publicação
do primeiro número de um Suplemento Literário, gênero não veiculado no Brasil até então:
“Eça foi o mentor, o responsável pela criação e o diretor do Suplemento, sendo de sua autoria
o texto de abertura ou editorial de lançamento: ‘A Europa em resumo’”. (MINÉ;
CAVALCANTE, 2002, p.15).

Os textos de Eça revelam um repórter/jornalista cosmopolita e uma relação


contraditória com o jornal, ao oferecer ao leitor a visão e a interpretação da maneira como o
literato confrontava seus objetivos de escrita frente às demandas do discurso jornalístico.
Com um olhar crítico sobre os modus operandi de escrever dos jornalistas do período, aponta
a superficialidade das matérias e a banalidade com que tratavam temas os mais díspares:

E quem nos tem enraizado estes hábitos levianos? O jornal, que oferece
cada manhã, desde a crônica até aos anúncios, uma massa espumante de
juízos ligeiros, improvisados na véspera, das onze à meia noite, entre o
silvar do gás e o fervilhar das chalaças, por excelentes rapazes que entram à
pressa na redação, agarram uma tira de papel, e, sem tirar mesmo o chapéu,
decidem com dois rabiscos da pena, indiferentemente sobre uma crise do
Estado, ou sobre o mérito de um vaudeville. (QUEIRÓS apud MINE, 2002,
p. 459).

O escritor observou que os jornais foram preponderantes para acentuar um dos


pecados capitais da sociedade do período, a vaidade, “O jornal é hoje, com efeito, o grande
assoprador da vaidade humana”. E prossegue:

E dessa forma nova e especial da vaidade só o jornal é culpado, porque foi


ele que a criou. Essa forma consiste na notoriedade que se obtém através do
jornal. ‘Vir no jornal!’ Ter o seu nome impresso, citado no jornal! Eis hoje,
para uma forte maioria dos mortais que vivem em sociedade, a aspiração e
recompensa supremas (2002, p. 460-461).

Ainda que denunciasse o lado frívolo do jornal, disseminador da sedução pela


aparência, pela fama, Eça de forma irônica assumia seu ofício “De resto é por pura humildade
cristã que eu, que me considero a meu modo um jornalista, confessei, falando do jornalismo,
estes pecados em que colaboro impenitentemente” (2002, p.462).

A idealização do Suplemento Literário, comum na Europa, surge na Gazeta pelas


mãos de Eça, em janeiro de 1892 seu artigo sobre “Nosso suplemento”, o escritor discorre
sobre a importância desse novo gênero para o Brasil:

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Ora, foi para que o Brasil pudesse realizar ideal tão cômodo, que nós
criamos este Suplemento. Ele é o compte rendu desta famosa representação
que se dá no teatro da Europa, mandado cada semana pelo paquete, para que
o enredo e os atores possam ser conhecidos sem cansaço, a despesa, o tempo
consumido em atravessar as águas e vir ao teatro, que não é confortável,
nem bem ventilado, e está cheio de lazaretos. Melhor ainda! É a própria
representação condensada em meia folha de jornal, com uma seleção
cuidadosa dos seus episódios mais atraentes, dos seus personagens mais
característicos, das suas decorações mais vistosas e ricas. Neste Suplemento
vai o resumo de uma civilização.

A perspectiva realista de Eça em relação à literatura e à própria existência mostrou-se


fundamental para suas atividades no jornal. Neste veículo de comunicação prepondera o
mergulho no cotidiano, a observação direta dos fatos, o que possibilitou a escritores como
Eça transfigurar esta experiência pulsante da vida em matéria-prima ficcional.

Considerações finais

A ligação entre literatura e imprensa diária, conforme Arnold Hauser provocou “um
efeito tão revolucionário quanto o uso do vapor para fins industriais, toda a produção literária
muda de caráter” (2003, p. 739). O estudioso entende que novas relações econômicas se
estabeleceram entre os intelectuais e o capitalismo a partir das empresas jornalísticas, que em
última instância, transformou a condição do homem de letras na sociedade do período. E
nesse panorama emerge ainda um público leitor burguês, novas práticas de leituras e,
consequentemente, a democratização da cultura letrada.

No Brasil, com a permissão do funcionamento da imprensa pela Coroa Portuguesa nos


Oitocentos, os jornais multiplicaram-se a despeito do elevado analfabetismo no país. Segundo
Nicolau Sevcenko, o jornalismo no século XIX tornou-se uma força que absorveu toda a
atividade intelectual, desafiando inclusive “a própria igreja na disputa pelo controle das
consciências” (2003, p. 126). Os tentáculos da imprensa diária alcançaram e desassossegaram
os literatos ao impor padronização da linguagem, banalização da linguagem literária, e em
alguns casos, oferecendo baixa remuneração para as colaborações.

Lima Barreto e Eça de Queirós vivenciaram esse processo, mas cada um com suas
batalhas pessoais. O escritor brasileiro enfrentando as dificuldades do negro-mestiço para
desenvolver o discurso jornalístico e literário numa imprensa elitista, enquanto Eça,
diplomata cosmopolita, usou o jornal também como visor para suas observações de outras
culturas em relação à realidade de Portugal.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Eça e Lima iniciaram a experiência com a escrita nos jornais almejando a carreira
literária, a visibilidade de suas produções ficcionais nas colunas de jornais, contudo estes
espaços jornalísticos estavam comprometidos com os fatos cotidianos e imediatos. Os dois
literatos conseguiram manejar as formas que emergiram com as demandas de espaço do
jornal, dos conteúdos diários, como o artigo, a reportagem, a crônica. Textualidades
largamente desenvolvidas pelos escritores que contaminaram igualmente o discurso
jornalístico. No entanto, a despeito dessas participações ativas, Lima e Eça mantiveram suas
consciências críticas ao demonstrarem uma visão clara acerca da relação que se estabeleceu
naquele momento entre o literato-jornalista com suas demandas de criação artística em
oposição às exigências da escritura no jornal. Por isso em diversos artigos e crônicas
ironizaram impiedosamente a superficialidade das matérias, o despreparo dos jornalistas, as
imposições do jornal em relação à linguagem e na escolha de textos para publicação.

Dessa maneira, o liame entre literatura e jornalismo possibilitou aos romancistas Lima
Barreto e Eça de Queirós participar das transformações promovidas pelos meios de difusão
nas sociedades brasileira e portuguesa em fins do século XIX e primeiras décadas do XX,
proporcionando aos escritores a profissionalização do ofício de escrever e o reconhecimento
da importância do homem de letras em uma sociedade que vislumbrava ser moderna com o
avanço na comunicação.

Referências

AZEVEDO, Carlito. Posfácio. In: BARRETO, Lima. Os subterrâneos do Morro do Castelo.


Introdução Beatriz Resende. Rio de Janeiro: Dantes, 1999.
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio,
1988.
BARBOSA, Marialva. História da Comunicação no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.
BARRETO, Lima. Vida urbana. São Paulo: Brasiliense, 1956.
BILAC, Olavo. “Fantasio”. A Bruxa, jan. n.49. 1897.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução Flávio Kothe. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Tradução Álvaro Cabral. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
JOÃO DO RIO. O momento literário. Rio de Janeiro; Paris: H. Garnier, 1908.
MICELI, Sérgio. Poder, sexo e letras na República Velha. São Paulo: Perspectiva, 1977.
MINÉ, Elza; CAVALCANTE, Neuma (Org.). Textos de imprensa. IV (da Gazeta de Notícias).
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002. (Edição crítica das obras de Eça de
Queirós).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Ostensor Brasileiro – Jornal Literário e Pictoreal, I, 1845.


SARAIVA, Antônio José; LOPES, Oscar. História da literatura Portuguesa. 12. ed. Porto:
Porto Editora, 1982.
SENNET, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Tradução Lygia
Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SILVA, Maurício. “Profissionalização do escritor e publicidade editorial: dois capítulos da
leitura pré-modernista no Brasil”. Magma, n.6, p.65-77, 1999.
SODRÉ, Muniz. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil:
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

O personagem-escritor e a ficção como crítica89∗

Flávio Pereira Camargo


Universidade Federal de Goiás
E-mail: camargolitera@gmail.com

Resumo: de acordo com Patricia Waugh (1984, p. 6), “o menor denominador comum da
metaficção é simultaneamente criar uma ficção e fazer uma declaração sobre a criação
daquela ficção”. São esses dois processos que ocupam, juntos, uma tensão formal que tenta
eliminar a distinção entre criação e crítica. Podemos dizer que a metaficção tem um traço
constante e específico: a existência, no corpo do texto, de um comentário crítico, reflexivo e
consciente do narrador ou de um personagem-escritor sobre os procedimentos de composição
do próprio romance. Partindo de estudos teóricos sobre a metaficção (HUTCHEON, 1985;
OMMUNDSEN, 1993; WAUGH, 1984), propomos a análise do romance Um crime delicado,
de Sérgio Sant’Anna, publicado em 1997.

Palavras-chave: personagem-escritor; metaficção; Sérgio Sant’Anna; literatura brasileira


contemporânea.

89∗ Este trabalho contribui para o projeto de pesquisa intitulado “O personagem-escritor e a questão da narrativa
metaficcional”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq nº
444438/2014-9), vinculado ao grupo de pesquisa “Estudos sobre a narrativa brasileira contemporânea” (CNPq).
A apresentação deste trabalho contou com o auxílio financeiro para participação em eventos científicos no exte-
rior da Fapeg (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás – chamada púlbica nº 01/2016 – Auxílio
financeiro para participação em eventos).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A experimentação literária e o autoquestionamento da literatura negam, às vezes,


explicitamente, as fronteiras entre os gêneros. Entretanto, “os gêneros não desaparecem
totalmente, mas suas fronteiras continuam modificando-se, apagando-se até o indiscernível,
produzindo obras que não correspondem a uma só categoria” (RODRÍGUEZ MONEGAL,
1979, p. 142, grifo do autor).

Neste sentido, na narrativa metaficcional (HUTCHEON, 1985; OMMUNDSEN,


1993; WAUGH, 1984) há uma visão lúcida do caráter fictício da narração e uma ruptura com
as formas tradicionais da narrativa realista, pois a noção de ficcionalidade é questionada no
corpo do próprio romance. Acreditamos que tais procedimentos estejam na origem do caráter
experimental desse tipo de narrativa, uma vez que “é no romance que toda experimentação
acaba por encontrar seu lugar predileto” (RODRÍGUEZ MONEGAL, 1979, p. 147), pois
ocorre aí um questionamento da forma romanesca e de seu próprio fundamento – sua
estrutura, sua textura.

É exatamente esse autoquestionamento que leva à produção de novas formas


romanescas na contemporaneidade, como sói ocorrer no romance Um crime delicado, de
Sérgio Sant’Anna, publicado em 1997. Trata-se de uma narrativa que se dobra sobre si
mesma, na qual o escritor Sérgio Sant’Anna dá continuidade àquelas experimentações por ele
empreendidas em romances anteriores, a exemplo do que ocorre em As confissões de Ralfo –
Uma autobiografia imaginária (1975), e em Simulacros (1977), entre outras obras.

O enredo de Um crime delicado refere-se, de modo geral, a uma narrativa na qual o


protagonista Antônio Martins, um crítico de teatro exerce a dupla função de narrador e de
personagem-escritor no romance denominado por ele como uma “peça escrita”, para tentar se
defender da acusação de um suposto crime cometido por ele: o estupro da bela, jovem e coxa
Maria Inês de Jesus, modelo do artista plástico Vitório Brancatti.

Trata-se, portanto, de uma narrativa que é, por excelência, dobradiça (SÜSSEKIND,


2003), com um tom ao mesmo tempo confessional e analítico, decorrente das interrupções e
das digressões de Antônio Martins, personagem-escritor, crítico de teatro, e narrador que
apresenta ao leitor, retrospectivamente, o relato de seu drama após ter sido acusado de um
“crime delicado” que julga não ter cometido.

Há, no decorrer dessa narrativa um embate entre o crítico e o artista, entre a arte e a
crítica, representados respectivamente pelo crítico Antônio Martins e pelo artista plástico
Vitório Brancatti. A obra deste pode ser considerada um work in progress em decorrência de
uma mescla entre a pintura e a instalação que, por um lado, acaba por absorver e envolver em
seu cenário o próprio crítico Antônio Martins como um de seus personagens, e, por outro

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

lado, o artista e sua obra também são incorporados à reflexão crítica de Antônio Martins ao
escrever sua própria peça de defesa.

O personagem-escritor busca uma compreensão, por meio de sua escrita e de suas


reflexões de ordem teórica e crítica, de uma verdade plausível sobre sua relação com Inês,
mas acaba descobrindo que as verdades são, na realidade, criadas pela própria linguagem,
remetendo o leitor atento a uma reflexão sobre a representação da realidade tanto no âmbito
das artes plásticas e do teatro, quanto no da própria ceara literária.

O romance Um crime delicado está estruturado em três partes que se complementam e


que fazem referência a três momentos distintos na vida de Antônio Martins. Na primeira,
Antônio Martins explica ao leitor o porquê da escrita do romance, assim como ele revela
como e onde conheceu Inês e o desencadeamento desse encontro em sua vida, entre outros
aspectos que são mesclados aos demais. Na segunda parte, o personagem-escritor relata ao
leitor, com tintas realistas, o momento de sua conjunção carnal com Inês e suas
consequências, entre as quais a abertura do processo criminal contra ele por estupro. Na
terceira e última parte, Antônio Martins expõe ao leitor, entre outros aspectos, o sucesso da
obra de Vitório Brancatti e de Inês graças à divulgação midiática do caso Inês, como ficou
conhecido o episódio da acusação de estupro.

No decorrer de seu relato, o personagem-escritor inúmeras vezes interrompe sua


narrativa para refletir sobre os elementos composicionais constitutivos do próprio romance e
sobre a arte de modo geral.

O início do relato de Antônio Martins apresenta uma clave memorialística,


considerando-se o seu esforço consciente para a reconstituição dos fatos e dos
acontecimentos considerados por ele como verdadeiros para tentar se defender da acusação
de um crime delicado contra Inês e, ao mesmo tempo, para convencer o seu leitor de que ele
também pode ter sido vítima de um plano estrategicamente pensado, elaborado e
desenvolvido por Vitório Brancatti com o auxílio de Inês, sua protegida, para seduzir Antônio
Martins e, a partir daí, conseguirem notoriedade.+

Devemos advertir ao leitor que, no caso de Um crime delicado, estamos diante de uma
narrativa em que há a presença de um sujeito na escritura (KRYSINSKI, 2007). Neste caso, o
leitor se depara o tempo todo com constantes intervenções subjetivas, pois temos, no caso do
romance em questão, um personagem-escritor que exerce a função de crítico de teatro, e, ao
mesmo tempo, a de narrador, responsável direto pela escolha do que e de como serão
narrados os acontecimentos e os fatos que ele julga serem importantes em sua defesa. Temos,
portanto, uma questão referente à perspectiva narrativa à qual o leitor deve estar atento,
sobretudo o que se refere à representação da personagem feminina, Inês.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Na produção contemporânea há certa tendência por parte do narrador em fazer


interrupções e digressões que se intercalam na narrativa. É o que faz Antônio Martins ao
dispor os acontecimentos e fatos referentes à Inês, mesclados a outras situações ou às suas
reflexões sobre a arte, de modo geral. É o que verificamos no momento em que o
personagem-escritor passa da narração da cena no Café Lamas para uma reflexão sobre o
papel do crítico e sua relação com a sociedade, com a realidade empírica.

Para ele, um homem de seus cinquenta anos, encerrado em sua solidão, o seu trabalho
como crítico demanda dele uma racionalidade exacerbada e aguçada. Além disso, em alguns
momentos, o crítico se vale da ironia como recurso estratégico para criticar, analisar e
comentar a encenação de alguma peça teatral. De modo geral, a sociedade, segundo ele, vê o
crítico ou o intelectual como um homem singular, arredio da vida social e cultural, alheio aos
problemas cotidianos, sociais e econômicos. No entanto, ele afirma que, apesar de
desempenhar com certo zelo a sua função como crítico de teatro, ele não consegue “evitar a
realidade externa, a rua” (SANT’ANNA, 1997, p. 12).

Posterior ao evento do Café, certo dia, quando Antônio Martins descia os degraus do
largo do Machado para adentrar na estação de trem, sentiu uma premonição de que algo
estava para acontecer, e de fato ocorreu que, nas escadas rolantes, enquanto descia, caiu atrás
dele Inês, que foi devidamente amparada de modo instintivo por ele, que percebeu e gravou
em sua memória a leveza de seu corpo: “Reconheci-a como a moça que me impressionara no
Café, o que os eventuais leitores desta peça escrita já terão antecipado há
muito” (SANT’ANNA, 1997, p. 14).

Além do reconhecimento de Antônio Martins de que a mulher que ele ampara é Inês,
o que salta aos olhos do leitor é o fato de ele, enquanto narrador/crítico e personagem-
escritor, estabelecer um diálogo com seu leitor, isto é, ele interrompe a “peça escrita” para
tecer um comentário de ordem crítica sobre a sua própria narrativa. Até então ele não havia
percebido que ela era coxa, mas esse fato, ao invés de provocar nele certa repulsa, causa-lhe
um maior fascínio e admiração por ela, por ser “[u]ma beleza que aquela imperfeição só
realçava” (SANT’ANNA, 1997, p. 32, grifo do autor), despertando ainda mais seus desejos
recônditos.

Em um primeiro momento, essa afirmação demonstra ao leitor que a narrativa com a


qual ele se depara é, na verdade, uma peça escrita, remetendo ao seu caráter fictício e à
encenação de ações pelos personagens que nela estão inseridos. Em um segundo momento,
considerando-se este aspecto, temos aí dados preliminares que contribuem para a composição
de uma das personagens dessa peça escrita – Inês –, além de o narrador/crítico revelar ao
leitor os espaços nos quais as ações das personagens da peça se passam, como, por exemplo,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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o largo do Machado, o Bar Lamas, denominado pelo personagem-escritor como “Café


Lamas”, a Rua Marquês de Abrantes, entre outros espaços urbanos da cidade do Rio de
Janeiro.

Um crime delicado trata-se de uma narrativa metaficcional 90, uma peça escrita, teatral,
que explicita a sua encenação ao leitor, revelando o próprio caráter fictício tanto da narrativa
quanto do próprio narrador/crítico nesse jogo de espelhos: “Mas antes que o meu corpo
desaparecesse por inteiro no subterrâneo – e vejo a mim mesmo enquanto narro – tive a idéia
de olhar para trás” (SANT’ANNA, 1997, p. 14). Personagem de sua própria peça escrita, o
personagem-escritor vê sua imagem desdobrada, espelhada na narrativa tecida por ele,
revelando ao leitor sua artificialidade, fruto de um exercício rigoroso no processo de escrita.
O narrador/crítico tenta, pois, criar uma verdade, por meio de uma linguagem teatral e, ao
mesmo tempo, crítica, para convencer o seu leitor – este, por sua vez, é levado a reconhecer o
caráter artificial do relato.

Em outro momento, referindo-se a Inês, o narrador/crítico afirma: “Mas a honestidade


me obriga a admitir que se a mulher não tivesse aqueles dentes muito brancos e pequenos, os
olhos negros – uma beleza singular, enfim, e algo estranha, que me movia a decifrá-la –, com
toda certeza eu não teria voltado” (SANT’ANNA, 1997, p. 14). Antônio Martins, atraído pela
bela e jovem coxa, vê-se tentado a voltar para ajudá-la até chegar ao seu apartamento, pois
quer decifrar a mulher que desperta nele certo desejo.

A referência à decifração da mulher pode ser compreendida como uma metáfora da


própria obra artística de Vitório Brancatti, a tela A modelo, e também do próprio texto escrito
por Antônio Martins – a peça escrita. O crítico, ao estabelecer uma relação de conjunção
carnal com Inês, julga decifrar a mulher que possui. Mais do que isso, ele acaba por decifrar,
pelo menos parcialmente, a obra plástica de Vitório Brancatti.

Nesse sentido, o ato sexual entre Inês e o crítico pode ser compreendido como a
própria crítica da obra, que é dissecada no decorrer da narrativa pelo personagem-escritor,
que penetra nas entranhas de sua narrativa, em suas linhas e entrelinhas, mostrando suas
camadas mais profundas ao leitor, inclusive as sobreposições de diferentes registros em sua
composição, como, por exemplo, a imbricação entre ensaio e ficção.

Esta imbricação entre ensaio e ficção é evidenciada, sobretudo, na parte em que o


personagem-escritor apresenta ao leitor o enredo da peça teatral Folhas de Outono, para, em
seguida, comentar crítica e analiticamente sua encenação. É válido ressaltar que essa

90 Para Linda Hutcheon (1984, p. 39), a narrativa metaficcional deve ser compreendida como uma mimesis do
processo, ou seja, como uma narrativa que está em processo de construção e que explicita seu status ficcional
dentro do corpo do próprio texto literário.

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recensão crítica feita por Antônio Martins sobre a referida peça é, na verdade, o próprio
capítulo que lemos, ou seja, há aí uma sobreposição de registros de diferentes dicções – o da
crítica que se mescla e se funde ao da ficção – por meio dos quais o ele irá problematizar
várias estratégias referentes à composição da peça, tais como o cenário e a disposição dos
móveis, a performance dos atores, o tempo, e o próprio enredo.

O personagem-escritor, em sua análise da peça Folhas de Outono, se detém em uma


reflexão sobre o tempo para afirmar que, sendo um elemento básico e constitutivo das
narrativas – teatral ou épica –, ele é inventado, criado à revelia do autor da peça de teatro, ou
do romance, e, no caso dele, de sua peça escrita. Por ser um tempo ficcional, as ações que se
desenvolvem e se desencadeiam nele também podem ser consideradas artificiais,
principalmente a teatralidade e a simulação de uma relação amorosa na trama teatral.

Mas não seria a própria peça escrita de Antônio Martins balizada pela teatralidade e
pela simulação? Assim como o tempo da peça teatral é ficcional, outra leitura possível é a
própria natureza inventiva da narrativa que está sendo tecida pelo personagem-escritor que
busca a compreensão de uma verdade empírica ou das possíveis verdades que podem ser
criadas pela linguagem.

As digressões teóricas e teatrais do personagem-escritor expõem ao leitor a sua


subjetividade inerente à sua crítica da peça Folhas de Outono, pois ele se deixa levar pela
imagem de Inês, isto é, ele acaba por cair na armadilha condenada por ele: a entrega do
crítico à catarse nele provocada pela obra de arte no momento de criticá-la: “confesso que
escrevia pensando em Inês, desejando que ela lesse aquela matéria. Um pequeno delito
crítico” (SANT’ANNA, 1997, p. 21).

Nessa narrativa em camadas, que vão se desdobrando continuamente, a subjetividade


do narrador, sujeito inscrito na escritura, interfere de modo significativo na seleção, na
disposição e na narração dos fatos e das ações dos personagens envolvidos nessa “peça de
natureza quase processual”, fruto das inúmeras digressões e interrupções do fluxo narrativo
por Antônio Martins.

Escrever. Fragmentos dispersos, cenas nebulosas, frases soltas, olhares,


visões reais ou subjetivas, eis, possivelmente, como se deveria escrever
sobre um encontro em que se ficou bêbado, apesar de ter havido, a princípio,
uma certa ordem, reproduzível em diálogos quase banais, como se verá
adiante.
Prefiro, no entanto, obedecer a certas prioridades, hierarquias, dentro do
todo que aqui se narra, para ir direto à manhã seguinte a esse encontro [...].
Sofro de amnésia parcial, às vezes quase total, depois que bebo em excesso,
e era preciso rastrear o final da noite para verificar se meus temores eram
mais justificados do que a euforia. Quanto a esta última, devia-se então não

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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somente aos resíduos de álcool em meu sangue, como à quase-certeza de


que eu penetrara de alguma forma na intimidade de Inês. O que acontecera a
partir daí é que era o problema, pois havia, dentro de mim, além de
apreensão, culpa (SANT’ANNA, 1997, p. 23).

Há, nessa passagem, uma evidente parcialidade do personagem-escritor, tanto na


escolha dos fatos e das ações a serem narradas, quanto na organização de sua disposição,
inclusive no próprio silêncio que é, de certa forma, imposto a Inês. Além disso, o leitor
percebe que essa fragmentação da narrativa é decorrente, em parte, de uma tentativa de o
personagem-escritor recuperar, com o auxílio da memória, o encontro que teve com Inês em
certa noite, e também do fato de ele ter amnésia alcoólica após beber em excesso.

A suposta amnésia parcial ou total, que acomete Antônio Martins após o excesso de
bebida, pode ser compreendida como um estratagema para convencer o leitor ou de sua
inocência ou de que o crime delicado cometido por ele contra Inês foi, de certa forma,
bloqueado em sua memória, graças à amnésia alcoólica. São os lapsos de memória que
provocam nele o sentimento de culpa e de apreensão em relação à violação da intimidade de
Inês, sendo, pois, o motor para que ele tente criar para o seu leitor uma ilusão de verdade em
sua defesa.

Ao resgatar a imagem do apartamento de Inês, Antônio Martins percebe que, na


verdade, aquele espaço foi devidamente criado e ali instalado por Vitório Brancatti. Trata-se
de um cenário cuja disposição dos móveis e dos objetos que o constituem funcionam como
elementos composicionais de um espaço cênico no qual Inês está inserida e nele se
movimenta. Nesse work in progress de Vitório Brancatti, o crítico torna-se um ator,
desempenhando o papel atribuído a ele pelo artista plástico.

Na composição do cenário, o crítico destaca alguns dos instrumentos utilizados pelo


artista em seu processo de criação, tais como um cavalete de pintura, o cheiro de tinta, e a tela
que julga estar em branco, que pode ser compreendida como uma metáfora da própria folha
em branco sobre a qual se debruça o personagem-escritor em seu ofício. A composição do
quadro em sua totalidade ocorre de forma fragmentada, mesclando ficção e realidade.

Nesse processo de reconstituição dos fatos, a construção da personagem feminina se


dá única e exclusivamente pelo olhar do crítico de teatro, aparentemente educado e sagaz no
trato com as palavras. Além disso, a fragilidade de Inês e a necessidade que o personagem-
escritor admite sentir de protegê-la não seriam elementos motivadores e desencadeadores do
desejo e do impulso sexual de Antônio Martins?

Afinal, o tempo todo ele faz conjecturas sobre os possíveis sentimentos de Inês por
ele, sentindo inclusive ciúmes dela ao saber que ela é a modelo de Vitório Brancatti. Essas

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contemporâneas

conjecturas são utilizadas por ele, inclusive para se defender em sua peça processual, ao
afirmar em um dado momento que ela parecia ser uma mulher dissimulada, o que nos remete
a uma avaliação pejorativa de Antônio Martins, que tenta denegrir a imagem de Inês diante
do leitor para se defender, em uma tentativa de transpor a culpa de seu ato criminoso para a
própria mulher, que, segundo ele, foi condescendente ao permitir a conjunção carnal.

No caso do crítico, a afeição se mescla à perversão, à medida que ele se apropria


indevidamente do corpo de Inês, que, supostamente, estava inconsciente. Mas como se
explica o fato de ele ter tido a nítida impressão de tê-la visto abrir os olhos? Não estaria Inês
desempenhando uma performance? Afinal, era preciso enredar e seduzir o crítico em sua
trama, em seu cenário, em sua instalação preparada por Vitório Brancatti anteriormente para
que, a partir do processo criminal, se desencadeasse o sucesso do artista e de sua modelo.

Nessa reconstituição do encontro entre Inês e o crítico prevalece a fragmentação das


imagens, que se justapõem continuamente em uma tentativa de ele apreender a sua totalidade.

Não tenho a pretensão de rastrear, reproduzir, aqui, a consciência, a


memória, em seu fluxo veloz e descontínuo, pois tal procedimento se
encontra muito além de minhas potencialidades narrativas, talvez além do
alcance das palavras, porque a maior parte desses pensamentos, lembranças
e projeções se fazia por meio de sensações e imagens superpostas, como a
da muleta e a da tela sobre o cavalete, ou de sons, como os do trompete, e
cheiros, como o de tinta e, ainda mais tênue, o de perfume (SANT’ANNA,
1997, p. 29).

A superposição de sensações e de imagens é decorrente de uma sobreposição de


distintos registros da crítica, da ficção, do teatro, do memorialístico e do jornalístico. Paralelo
a esse procedimento, o personagem-escritor examina a própria peça escrita por ele,
remetendo o leitor a uma mimesis do processo (HUTCHEON, 1985), a uma narrativa em que
o leitor se depara o tempo todo com os questionamentos acerca dos procedimentos de
composição interna da obra.

Com a mente ora exaltada ora profundamente abatida, de acordo com os


presságios, se pode dizer assim, sobre a noite anterior, ao sabor da ressaca,
eu tinha uma investigação interna a fazer: como era exatamente Inês, o que
acontecera depois que deixáramos o restaurante? Quem sabe reconstituindo
o princípio, quando eu ainda estava sóbrio, poderia vislumbrar o fim?
(SANT’ANNA, 1997, p. 27, grifos nossos).

A investigação interna a que se refere o personagem-escritor tem como objetivo


decifrar os acontecimentos de uma realidade exterior referentes ao seu encontro com Inês, e
também àqueles procedimentos de uma realidade interior da própria narrativa, peça escrita

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

por ele, de modo a apurar as possíveis verdades criadas pela linguagem. Ao decifrar a mulher,
ele decifra sua própria peça escrita:

é preciso organizar esse fluxo, como o tenho feito, para que eu próprio possa
segui-lo, dominá-lo ao menos nestas páginas, estas frases que se encadeiam,
como se elas, sim, criassem a verdadeira realidade. Uma realidade em que
voltava a destacar-se – destaca-se também agora, enquanto escrevo – a
presença do biombo, o biombo negro com ramagens prateadas
(SANT’ANNA, 1997, p. 29-30).

A dificuldade em recompor e organizar devidamente a multiplicidade de imagens e de


fragmentos que se sobrepõem é reconhecida e admitida pelo personagem-escritor, que
explicita mais uma vez as engrenagens da narrativa ao leitor, principalmente a sua tentativa
em recriar, por meio da representação literária, portanto ficcional, uma dada realidade. Afinal,
ele é o responsável por criar e reconstruir cenas e acontecimentos; enfim, Antônio Martins
fabrica uma realidade com todas as suas nuanças em uma tentativa de compreensão de uma
verdade que é criada pela própria linguagem, expondo ao leitor uma reflexão sobre a tensão
que se estabelece entre ficção versus realidade.

O personagem-escritor, ao escrever uma peça da qual participa também como


personagem, exercendo o duplo papel de autor e de ator, busca a compreensão de uma
verdade; só que seu conceito, como se sabe, é relativo e está associado às distintas
perspectivas narrativas. Nesse caso, temos apenas a perspectiva de Antônio Martins, que nos
apresenta sua versão dos fatos, permeada por uma subjetividade latente em seu discurso.
Portanto, essa verdade que é apresentada ao leitor, embora de forma fragmentária, é passível
de questionamentos, pois se trata de um narrador suspeito, que exige do leitor uma
desconfiança em relação ao que é narrado por Antônio Martins.

Como o seu corpo era leve!


Foi essa a sensação física, nítida em mim, repetindo a da escada do metrô,
que acabou por completar, ali na fila, todo um processo mnemônico pleno de
alegria e terror, detonado, inicialmente, pela aliteração que fundia o desejo
ao castigo. Pois, subitamente, aquele que a transportava nos braços era eu.
Procurarei ser o mais factual possível a partir de agora, para descrever a
sequência de atos que foi se formando em minha memória, como se eu
organizasse numa seleção quase arbitrária de gestos que eu ia executando no
momento mesmo de sua reconstituição (SANT’ANNA, 1997, p. 35).

Eis a encenação da peça teatral escrita pelo narrador/crítico e sua pretensa


objetividade para reproduzir fielmente as cenas rememoradas por ele. Antônio Martins
encontra-se inserido no cenário instalado no próprio apartamento de Inês, no qual ela também
desempenha com certa desenvoltura o seu papel ao seduzir o crítico. É certo que esse
julgamento advém daquela subjetividade do narrador que acaba interferindo, de alguma

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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maneira, na interpretação do texto, de modo a guiar o leitor e a convencê-lo de sua inocência,


que, diga-se de passagem, é questionável.

Esse questionamento das atitudes do personagem-escritor advém do fato de ele ter


tomado em seus braços Inês, que estava desacordada, tê-la transportado do divã para a cama
e, principalmente, por ter retirado o seu penhoar e as suas sapatilhas, deixando-a apenas com
uma camisola, transparente, que revelava a sensualidade de seu corpo distendido na cama, em
seus braços. É a partir desse momento que Antônio Martins passa a acariciar o corpo de Inês,
sobretudo os seus pés, remetendo o leitor ao fetiche masculino pelos pés das mulheres,
despertando ainda mais a libido e o desejo de Antônio Martins: “Senti um arrebatamento que
posso traduzir como a descoberta em mim de uma força delicada” (SANT’ANNA, 1997, p.
36). É justamente esta força delicada que impulsiona o desejo de Antônio Martins em possuir
Inês em sua completude, principalmente após a sua camisola se entreabrir e deixar entrever,
por uma fenda, parte de seu corpo.

Apesar de todos esses indícios, além de Antônio Martins ter observado


minuciosamente os seios, as pernas, o rosto, os cabelos e a própria pele de Inês, o crítico vê-
se forçado a admitir: “Não cheguei a sentir um desejo físico concreto”, para logo em seguida
afirmar que cobriu o corpo de Inês “antes de apagar a luz do abajur. Não é uma defesa, mas
uma constatação” (SANT’ANNA, 1997, p. 37). Eis uma estratégia ardilosa do personagem-
escritor ao relatar o que se passou naquela noite. É ele o responsável por dispor os
acontecimentos, é dele a responsabilidade pela representação, pela criação da peça escrita,
portanto, a narrativa de Antônio Martins está nitidamente impregnada por aspectos
subjetivos.

Antônio Martins, com sua “força delicada”, sente sim um desejo de dar carinho a Inês.
O que para ele é visto como “carinho”, talvez tenha sido, na verdade, um ato sexual, pelos
indícios de seu próprio texto. A narrativa de Antônio Martins apresenta uma dicção
memorialística, e a memória é, por excelência, seletiva, apagando de nosso subconsciente
aquilo que pode de alguma forma nos desestabilizar. Talvez por isso o crítico não consiga,
nesse momento, resgatar os flashes de sua conjunção carnal com Inês, se é que de fato houve
a concretização do ato na noite em que esteve com ela.

Há, ainda, outro aspecto a ser abordado: Inês estava, supostamente, inconsciente, mas
como explicar o fato de Antônio Martins ter a impressão de que ela estava com os olhos
abertos? Estaria Inês dormindo? Se, de fato, ela trama essa encenação e o desenvolvimento
de sua performance com Vitório Brancatti para seduzir Antônio Martins, a estratégia, como
vimos, parece ter obtido sucesso.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Talvez Inês não seja, de todo, inocente, pura, frágil e desprotegida, nessa peça de
natureza quase processual, mesmo porque ela é A modelo de Vitório Brancatti, que a sustenta
e, inclusive, custeia suas despesas, além de instalar no apartamento dela um cenário criado ao
seu bel prazer para que Inês se movimentasse nele. Tudo o que ocorre no apartamento é, na
verdade, uma encenação, uma performance de atores no palco da vida, de tal forma que o
personagem-escritor tenta, de todas as formas possíveis, eximir-se do sentimento de culpa,
provocado principalmente pelo lapso de memória: “a sequência de atos que eu narrara para
mim mesmo fora produzida por uma memória prejudicada, deixando vazios que
possivelmente encobririam algum ato que minha mente não ousava trazer à
tona” (SANT’ANNA, 1997, p. 38).

A dúvida se instaura e provoca em Antônio Martins questionamentos sobre seus atos


na noite em que esteve com Inês. Portanto, são esses espaços vazios – deixados pela
memória, e também na própria escrita da peça do crítico – que nos possibilitam perscrutar as
fendas, em uma tentativa de penetrar nas camadas mais profundas dos níveis de leitura e de
compreensão da obra. Antônio Martins, como um jogador experiente, joga com os fatos e
com a sua disposição no decorrer da narrativa.

Nesse sentido, ele joga com a própria representação ficcional, durante seu processo de
criação, e com a verdade que ele almeja resgatar, mas a verdade é também uma criação da
própria linguagem, por meio da qual criamos mundos possíveis.

No dia seguinte a esse encontro entre Inês e Antônio Martins, este é convidado
gentilmente pela modelo para comparecer à mostra coletiva d’Os divergentes. O convite foi
feito por meio de um bilhete escrito por Inês e deixado na portaria do prédio onde o crítico
reside.

O que ocorre é que, ao ler o bilhete, ele continua fazendo conjecturas sobre os
sentimentos da jovem modelo por ele, interpretando o fato de ela ter escrito o bilhete de
próprio punho, em papel cor-de-rosa e suavemente perfumado, como um sinal de que ela não
guardara nenhuma mágoa do encontro na noite anterior.

Inês, em seu bilhete, mantém ou procura manter uma relação amistosa, mas sem
demonstrar indícios de sentimentos afetivos pelo crítico Antônio Martins ou ressentimentos
por algum delito cometido por ele. A impressão que o leitor tem é de que Inês e Vitório
Brancatti, de fato, já conheciam o crítico desde o primeiro instante em que o viram no Café
Lamas, e de que eles também já deviam ter conhecimento dos seus hábitos. O fato de ela
afirmar que leu no jornal a crítica sobre a peça Folhas de Outono, na qual o crítico comete o
delito de se deixar levar pela subjetividade e pela lembrança de Inês, mostra ao leitor que, ao
que parece, a estratégia empreendida por ela e pelo artista plástico está funcionando.

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contemporâneas

Outro aspecto que merece atenção é o fato de o bilhete, assim como a crítica
ensaística sobre as peças teatrais e os recortes de jornais, ser um elemento constitutivo da
linguagem que compõe a peça escrita por Antônio Martins, o que nos remete à plasticidade e
à maleabilidade do gênero romance para assimilar outros gêneros literários e não literários
em sua composição (BAHKTIN, 1998, p. 400). Aliás, tanto o bilhete quanto a carta que o
crítico escreve e envia para Inês estão em duplo destaque no texto, recuados com espaço
entre as partes que os precedem e também estão em itálico, justamente para reafirmar que são
gêneros não literários.

Bem, ali estava eu a decifrar os subentendidos possíveis nos espaços,


entrelinhas e na pontuação de um bilhete, o que se reflete no texto cheio de
curvas que agora escrevo, também pleno de interrogações. Ao escrevê-lo,
percebo como é difícil fazê-lo quando não se têm os “pré-textos”, ou
espetáculos, que servem de apoio, bengala, a esses seres cautelosos que são
os críticos. Percebo como a escrita nos distancia, quase sempre, das coisas
reais, se é que existe uma realidade humana que não seja a sua
representação, ainda quando apenas pelo pensamento, como numa peça
teatral a que não se deu a devida ordem, aliás inexistente na realidade
(SANT’ANNA, 1997, p. 50).

Nesta passagem, a narrativa, enquanto mimesis do processo, é novamente evidenciada


ao leitor no momento em que o personagem-escritor se propõe a decifrar e a ler o bilhete em
suas linhas e entrelinhas, preenchendo os seus subentendidos e os seus espaços em branco.
Ao mesmo tempo, ele se refere ao trabalho do escritor com a palavra, ao fazer referência ao
processo artesanal do artista, a um labor que demanda do escritor certo esforço e acuidade em
sua criação ficcional, pois a narrativa é um laboratório aberto a todas as experimentações
possíveis empreendidas pelo escritor.

Na passagem “o que se reflete no texto cheio de curvas que agora escrevo, também
pleno de interrogações”, percebemos o espelhamento da própria narrativa, uma ficção
dobradiça, por meio da qual o personagem-escritor se propõe a problematizar, logo em
seguida, questões referentes à representação ficcional versus realidade. Ele admite, portanto,
a impossibilidade de a arte, de modo geral, conseguir representar fotograficamente uma
realidade empírica, pois a partir do momento em que o artista se propõe a representar essa
realidade, seja ela qual for, ele está apenas partindo de um ponto da realidade para
transformá-lo, recriá-lo artisticamente.

Enfim, a representação ficcional não implica necessariamente uma correspondência


direta e certeira com uma realidade empírica, o que leva Antônio Martins a admitir ao leitor
desatento, que a peça escrita por ele “inexiste na realidade”, explicitando, mais uma vez, o

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contemporâneas

seu caráter ficcional, inventivo, em um constante jogo de espellhamento, próprio de uma


ficção dobradiça, de uma narrativa metaficcional.

Essa crítica é estendida, inclusive, a alguns dos artistas da mostra d’Os divergentes,
em decorrência de haver em algumas das telas um excessivo realismo brutal e em outras um
“realismo mais inofensivo” (SANT’ANNA, 1997, p. 53). Fato que nos remete a certa
tendência do retorno do realismo ou do hiperrealismo nas artes plásticas e na literatura
contemporânea, assim como aquela multiplicidade de suportes e de tendências na arte
produzida recentemente, fato que é constatado pelo próprio crítico Antônio Martins.

A mostra justificava o seu nome. As obras, quase todas, divergiam – e não


apenas pelo suporte – não só dos melhores valores e tendências
contemporâneos, apesar de ser difícil detectar tendências ou valores nítidos
neste final de século, ao contrário de seu princípio, como divergiam entre si.
Fiquei pensando se os expositores não haveriam se unido sob aquele rótulo
apenas por terem sido rejeitados pelo mercado, galerias e salões
(SANT’ANNA, 1997, p. 52-53).

A discussão sobre a fertilidade, a multiplicidade e a qualidade da arte e da literatura


contemporânea, proposta por Beatriz Resende (2008), podem ser evidenciadas, na passagem
supracitada, no discurso do crítico Antônio Martins. Além disso, ele estende sua reflexão
sobre outro aspecto inerente à literatura e à arte contemporânea, a sua relação com o
mercado, principalmente com os salões e as galerias de arte, considerados espaços
tradicionais. Talvez por isso mesmo a exposição tenha ocorrido fora de um desses ambientes,
justamente para romper com o tradicional, com o convencional.

Associada a essa ponderação crítica sobre os espaços tradicionalmente destinados às


exposições de arte, há uma reflexão que abarca a recepção dessa produção na
contemporaneidade, pois a arte produzida com o auxílio de novos suportes e técnicas provoca
o seu espectador e nele, por vezes, é capaz de suscitar certo choque devido às inovações
propaladas pela arte e pela literatura contemporânea, pois o espectador está acostumado aos
suportes e às técnicas mais tradicionais.

É na exposição d’Os divergentes que Antônio Martins espera encontrar Inês, o que
não ocorre, pois ela não comparece. No entanto, o crítico se depara com o quadro, pintado
por Vitório Brancatti, que se encontra estrategicamente localizado em uma das paredes da
exposição. Ao se deparar com a tela, ele se dá conta de que está diante de uma obra que tenta
representar o cenário criado no apartamento de Inês, assim como a própria modelo, cujo
nome artístico é Inês Brancatti e não Maria Inês de Jesus, seu nome de batismo.

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contemporâneas

Inês usa o sobrenome de Vitório Brancatti em seu nome artístico e, como artista que é,
pelos indícios do texto, planeja e leva adiante a sedução do crítico de teatro, de modo a
colocá-lo em contato com a obra de Vitório Brancatti, especialmente, com a tela A modelo,
em que há uma representação de Inês no cenário instalado em seu apartamento pelo artista
plástico, que é “como um verdadeiro pai” para ela.

Apesar de haver na tela uma tentativa de criar uma ilusão referencial ou uma ilusão de
realidade, cara aos artistas realistas, decorrente de uma representação que se quer muito
próxima da realidade empírica, a problematização da própria representação mimética é
instaurada, conscientemente ou não, por Vitório Brancatti, a partir do momento em que o
artista põe, no cenário instalado no apartamento de Inês, uma tela aparentemente em branco,
em um cavalete, próxima a pincéis e tintas, sobre a qual repousa uma muleta que, aliás, não é
usada por Inês em momento algum.

A representação do cenário e da própria Inês ocorre por uma perspectiva diversa


daquela de Antônio Martins, pois a tela está, na verdade, pincelada levemente com cores
claras que remetem a um céu de cor azul celestial e ao mesmo tempo a tonalidades prateadas,
direcionando o espectador da obra artística de Vitório Brancatti a uma reflexão sobre as
possibilidades de criação, de representação de uma dada realidade pela arte.

Além disso, o pintor expõe ao seu espectador os materiais empregados em sua


criação: os objetos e os móveis utilizados no cenário instalado, criado, no apartamento de
Inês, o jogo de luz e de sombras, a disposição dos móveis e da própria modelo, Inês,
parcialmente escondida atrás do biombo, assim como os espaços em branco na tela, à espera
do artista para criar mundos ou realidades possíveis através da própria arte.

Outro aspecto que é problematizado, no decorrer da narrativa, diz respeito à dicção


ensaística do personagem-escritor que é retomada no exato momento em que há, novamente,
a inserção no romance, de forma consciente e deliberada, de várias recensões críticas
referentes a peças teatrais que Antônio Martins assistiu, entre as quais estão a adaptação de
Vestido de noiva, de Nélson Rodrigues, e a peça Albertine, baseada na obra de Marcel Proust.
Afinal, em “uma narrativa autobiográfica em que o narrador exerce profissionalmente a
crítica, nada mais natural que sua obra venha permeada por esse exercício” (SANT’ANNA,
1997, p. 83).

Em ambas as recensões críticas, o que nos interessa, de fato, são aquelas questões
sobre o processo de adaptação teatral, que, na maioria das vezes, distorcem o texto-base. No
caso da adaptação de Vestido de noiva, há uma crítica severa “à ausência dos véus do pecado
e das proibições” (SANT’ANNA, 1997, p. 75) em decorrência de uma releitura ou de uma
adaptação que resvala para o pornográfico, esquecendo a autora da peça que este recurso

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nunca esteve na base do teatro de Nelson Rodrigues, “pois a carga de dramaticidade e


erotismo, contida nesta como em outras peças [do autor], provém muito mais de sua
atmosfera de pecado, dos véus das proibições e convenções, que explodem
surdamente” (SANT’ANNA, 1997, p. 67).

A crítica de Antônio Martins também se estende à obra d’Os divergentes, na segunda


parte do livro, quando o crítico faz um julgamento de valor das obras ali expostas,
principalmente referente à de Vitório Brancatti. No entanto, para o personagem-escritor, a
obra de Vitório Brancatti revela uma espécie de “ready-made duchampiano, isso se não fosse
tudo fruto de um acaso dissociado do jogo de Duchamp” (SANT’ANNA, 1997, p. 91). A
referência a Marcel Duchamp, pintor, escultor e poeta francês do século XX, considerado o
precursor da arte conceitual, é significativa, pois ele foi o responsável pela introdução do
conceito de ready-made, que consistia em transpor um elemento da vida cotidiana, a priori
não reconhecido como objeto artístico, para o campo das artes. É justamente o que ocorre
com a obra de Vitório Brancatti, ao introduzir elementos da vida cotidiana no cenário criado
por ele no apartamento de Inês, inclusive considerando Antônio Martins como um de seus
atores em sua instalação.

Trata-se, portanto, de um processo de retomada de técnicas já utilizadas


anteriormente. Para Antônio Martins, há o fato de que a perspectiva da tela, “para uma cena
que se desdobrava em profundidade, era um tanto chapada, aproximando e realçando os
elementos de fundo – a tela no cavalete, a muleta e o divã – sem ofuscar o
principal” (SANT’ANNA, 1997, p. 89). O leitor percebe que o personagem-escritor retoma
as suas discussões sobre a obra de Vitório Brancatti no decorrer de praticamente todo o seu
relato – marcado pelas constantes e conscientes digressões críticas –, de modo que sua
apreciação estética da obra revela, entre outros elementos composicionais, a técnica
empreendida pelo artista para criar um efeito de desdobramento e de profundidade.

Assim como a cena se desdobra em profundidade, a peça escrita pelo personagem-


escritor também se apresenta em camadas encaixadas, em abismo, o que nos remete a uma
narrativa dobradiça, na qual o crítico anseia pela compreensão de uma verdade, que se
“oculta sob uma camada de disfarces, ou no caso, talvez fosse melhor dizer, de
tinta” (SANT’ANNA, 1997, p. 98).

É nessa parte da narrativa que o personagem-escritor resgata o momento em que foi


novamente ao apartamento de Inês, em um final de tarde, convidado por ela para tomar um
chá. Inês, como sempre, vestida sobriamente e de modo elegante, ao mesmo tempo, desperta
em Antônio Martins o seu desejo e a sua libido, embora, aparentemente, esse não fosse seu
objetivo principal, mas, para o narrador, o artifício de Inês talvez seja necessariamente

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transparecer o mais natural possível naquele cenário instalado em seu apartamento por
Vitório Brancatti:

Como se trata de uma peça escrita, de natureza quase processual, devemos nos ater a
essa representação de Inês que vai sendo construída e realimentada no decorrer da narrativa,
de modo a indicar ao leitor que ela é ou foi a responsável por ele ter cometido um crime
delicado. Aliás, em suas conjecturas sobre os possíveis sentimentos de Inês, Antônio Martins,
partindo do pressuposto de que realmente possuiu Inês em um momento anterior, julga que
ela, naturalmente, estaria querendo reviver o passado, ou seja, na perspectiva de Antônio
Martins ela estaria usando de um artifício – o convite para um chá – para seduzi-lo
novamente.

O que ocorre é que, possesso de ciúme ao perceber que o apartamento de Inês é, na


verdade, um cenário para que ela se movimente nele ao bel prazer do artista plástico para
quem trabalha como modelo, Antônio Martins acua e julga Inês, provocando nela certo mal-
estar que a faz desfalecer, sendo o seu corpo amparado pelo crítico,

naquele cenário com seus móveis e adereços, fazendo de nós imagens de um


quadro em movimento, uma cena para dentro da qual eu fora tragado, e onde
Inês, igual uma flor noturna e silenciosa, se abria, à medida que eu avançava
em minhas carícias sempre ternas e, desabotoando seu vestido, sob o qual
não havia nenhuma peça de lingerie, a despia (SANT’ANNA, 1997, p. 103).

Antônio Martins, nessa passagem, percebe-se como um personagem no cenário


instalado e criado por Vitório Brancatti. Eis aí as múltiplas possibilidades de um work in
progress: a obra do artista plástico envolve o crítico, que, por sua vez, incorpora o artista e
sua obra ao seu texto escrito – à sua peça escrita. Há, ainda, na passagem supracitada, dois
aspectos relevantes: 1) Inês está aparentemente desfalecida e, talvez, esse estado seja
decorrente da disritmia cerebral que ela, no decorrer do processo contra o crítico, na terceira e
última parte do livro, irá afirmar que sofre, ou, então, ela está, de fato, atuando como uma
atriz no cenário instalado em seu apartamento pelo artista plástico; 2) Antônio Martins, além
de fazer especulações sobre a suposta abertura que Inês lhe dá para continuar com suas
carícias, despe-a e a possui ainda em estado de inconsciência, em uma conjunção carnal que
não é endossada por Inês, pelo contrário, ela reage negativamente aos impulsos de Antônio
Martins.

O que Antônio Martins julga, ao seu bel prazer, ser um estremecimento de gozo é, na
verdade, como saberemos mais adiante, no decorrer do processo, uma crise convulsiva
provocada em Inês devido à sua disritmia cerebral. A rejeição de Inês, durante o ato sexual
criminoso, cometido pelo crítico, é interpretada por ele, em seu ardente desejo para possuí-la,
como uma resposta afirmativa, uma concessão. Frágil, delicada, com um corpo extremamente

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leve e, ainda por cima, deficiente, Inês se percebe acuada, coagida, não tendo como fugir ou
escapar de debaixo de Antônio Martins, por isso ela usa as suas mãos, braços e unhas para se
defender, o que provoca nele uma potencialização de seu desejo, ao invés de repulsa ou
interrupção do ato.

Trata-se, portanto, de um narrador muito suspeito, exigindo do leitor certa cautela em


relação àquilo que é narrado por ele.

Aliás, uma das vantagens – a par de todas as desvantagens, é claro – de se


colocar as coisas por escrito, é que elas adquirem essa permanência, além de
as dispormos como queremos, o que não quer dizer que mentimos. [...]. Mas
o registro de uma coisa nunca é a própria coisa, é outra coisa, às vezes a
melhor e verdadeira coisa, não sendo de admirar que para lá de toda a
vaidade tantos almejem tornar-se artistas, criar obras (SANT’ANNA, 1997,
p. 106).

Nesse sentido, o leitor percebe que, no decorrer da narrativa de Antônio Martins,


fundem-se questões relacionadas ao seu desejo exacerbado por Inês e às suas consequências,
assim como reflexões teóricas e críticas sobre a arte e a literatura, de um modo geral, como
ocorre na citação acima em que há uma reflexão sobre a relação opositiva entre ficção versus
realidade, cara à mimesis do processo. Esta oposição remete o leitor à questão da
representação artística, ficcional, que não se quer uma cópia da realidade, no caso da
narrativa metaficcional, explicitando a possibilidade de haver mais de uma representação ou
perspectiva em relação a um mesmo fato ou acontecimento, mesmo porque Antônio Martins
exerce uma dupla função em sua peça escrita – ele atua como autor e como mero ator
(SANT’ANNA, 1997, p. 106).

Por fim, na terceira e última parte do romance, o personagem-escritor se detém em


alguns dados do processo movido contra ele por Inês com o auxílio de Vitório Brancatti, sua
esposa Lenita e seu amigo Nílton, um dos expositores d’Os divergentes. No processo de Inês
contra Antônio Martins, este é acusado de ser “um criminoso delicado,
refinado” (SANT’ANNA, 1997, p. 117), precisamente por não ter deixado marcas em sua
vítima, justamente porque naqueles instantes em que o crítico repousa sobre o corpo de Inês,
que estava sobre um divã, ele procurou ter o máximo de cuidado para não colocar o seu peso
totalmente em cima do corpo dela, pois ela poderia se machucar.

O exame de corpo de delito não detecta em Inês outros indícios além do sêmen de
Antônio Martins e dos resquícios de pele em baixo das unhas dela. Além disso, em momento
nenhum ele nega ter mantido conjunção carnal com Inês, pelo contrário, afirma com
veemência que julgou, pelo seu comportamento e alguns de seus gestos, que ela queria repetir
o que acontecera em outro momento, de que Inês afirmou não se lembrar. No entanto, ao

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saber da disritmia cerebral e dos medicamentos controlados que Inês regularmente toma para
evitar as crises provocadas pela doença, decorrente de um acidente de carro em sua infância,
responsável ainda pelo fato de ela ter ficado coxa, segundo os autos do inquérito, Antônio
Martins cai em uma dúvida visceral em relação ao crime delicado contra Inês.

Pois eu mesmo me perguntava se era de todo inocente. Ou melhor, se


desejava essa inocência completa. Pois uma parte minha reclamava, sem
dúvida, que eu rompera certos limites demarcados, a princípio, por Brancatti
e Inês, não apenas penetrando na obra e na modelo, mas fazendo com que
esta se rendesse a mim, no final, bandeando-se para o meu lado naqueles
momentos definidores. E se eu pretendia – embora meus atos e atitudes
perante a justiça não pudessem assegurar-me disso – ser absolvido, era em
meus termos, que incluíam essa posse conquistada de Inês, elevando-me da
mera condição de fantoche manipulado pelo pintor e sua modelo à de ator
consciente dentro da obra, apesar de eu não ter uma certeza cabal disso,
procurando iluminá-lo um pouco melhor em minha própria obra: este relato
(SANT’ANNA, 1997, p. 119, grifos nossos).

Na verdade, o relato que envolve os acontecimentos referentes ao processo revela um


embate que não se refere somente ao caso Inês, mas expõe de modo explícito um choque
entre o crítico Antônio Martins e o artista plástico Vitório Brancatti, tanto que, no decorrer de
sua defesa, o crítico volta a fazer digressões teóricas e críticas sobre a obra de Brancatti,
resgatando vários de seus comentários judicativos revelados ao leitor no decorrer de sua peça
escrita.

Trata-se, pois, de “um processo estético, um jogo de xadrez entre [ele] e Vitório. O
crítico como criminoso, como louco, em sua racionalidade exacerbada, ou o artista enquanto
ambas as qualificações” (SANT’ANNA, 1997, p. 121).

Além disso, o próprio Antônio Martins, em sua peça escrita, vale-se de um relato de
natureza autobiográfica como um meio para que ele possa analiticamente tentar compreender
a obra de Brancatti por dentro, tanto que ele se torna um ator consciente de seu papel dentro
da produção do artista plástico. Esse processo de iluminação, ao qual o crítico se refere, é
justamente o procedimento de análise dos elementos composicionais da obra de arte, tanto
aqueles que compõem a instalação de Vitório Brancatti – o cenário, a modelo, os objetos, os
móveis e as ações – quanto os procedimentos internos à própria constituição do romance – o
narrador, as personagens, as ações, o espaço, o tempo, o enredo, e a própria representação
ficcional, ao buscar uma compreensão de uma verdade ou de várias verdades referentes à
representação de uma realidade.

Mas todos os que tiverem a condescendência de ler este relato, não atraídos
pelo simples escândalo – ainda que não passem de algumas centenas, pelas
exigências culturais e intelectuais requeridas para tal leitura –, poderão

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constatar o tempo todo o meu empenho na perseguição desse ideal fugitivo e


talvez inalcançável que é a verdade, restando o consolo e a esperança de
que, ao buscarmos atingi-lo, esse ideal, talvez iluminemos outras faces,
subterrâneas até para nós mesmos, da realidade. Pois eu próprio, como já
disse, punha em dúvida se eu era – ou queria ser – totalmente inocente
(SANT’ANNA, 1997, p. 126).

Na passagem supracitada, verificamos que a problematização acerca da possibilidade


de se construir verdades e realidades possíveis por meio da linguagem é retomada pelo
personagem-escritor, que endossa, mais uma vez, a possibilidade de ele mesmo ter criado
uma ilusão de realidade ou de verdade em relação a Inês para tentar convencer a si mesmo e
ao seu leitor de que a conjunção carnal com ela foi deliberadamente consentida e não um
crime delicado, do qual está sendo acusado. Por insuficiência de provas, o réu acaba sendo
inocentado da acusação.

– In dubio pro reo – pronunciou e escreveu o magistrado, numa sentença


que deixava recair sobre mim, enquanto estivesse vivo, ou mesmo depois,
levando-se em conta a possível perenidade das obras artísticas, a tal dúvida
que, entre outras conseqüências, fez com que eu perdesse meu lugar de
consultor na Fundação Cultural do Estado, onde não tinha estabilidade
funcional (SANT’ANNA, 1997, p. 129).

A dúvida, portanto, prevalece e provoca em Antônio Martins uma reflexão sobre a


perenidade das obras artísticas, principalmente aquelas resultantes de instalações, de
performances, de um work in progress. Talvez por isso mesmo a necessidade de Vitório
Brancatti reproduzir, ou pelo menos tentar criar uma ilusão referencial sobre o cenário
instalado por ele no apartamento de Inês, como uma forma de reter essa perenidade.

Em decorrência do processo de Inês contra o crítico, houve necessariamente uma


divulgação em massa nos meios de comunicação, principalmente na mídia jornalística da tela
A modelo, de Vitório Brancatti, e também do próprio cenário instalado no apartamento de
Inês. Graças a essa divulgação, tanto o artista plástico quanto sua modelo obtêm um sucesso
instantâneo nos meios artísticos, recebendo, inclusive, vários convites para exposição da tela
e para instalação do cenário do apartamento de Inês, como ocorre, por exemplo, na
Documenta de Kassel, na Alemanha, considerada uma das maiores e mais importantes
exposições da arte moderna e da arte contemporânea internacional.

Uma réplica do interior do apartamento de Inês, abrigando o biombo, o divã,


o tamborete, o quadro A modelo, o conjunto que incluía a muleta, um
guarda-roupa exibindo as peças de roupa mais relevantes etc., foi exibida
como instalação, com grande alarido crítico, na Documenta de Kassel,
Alemanha, de lá viajando para outros países, sempre contando com a
presença de Vitório, Lenita e Inês nas aberturas das mostras. Quanto a

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Nílton, fui informado de que aproveitou seu quinhão de notoriedade para


abrir uma academia de fisicultura, bastante concorrida.
Aos desavisados informo que à entrada da instalação itinerante de Vitório
nunca se deixa de afixar cópias do material de impressa sobre o caso Inês,
com traduções para o alemão, o inglês e o Francês. Desses recortes,
naturalmente, além dos retratos do artista e sua modelo, constam alguns
deste crítico, inclusive a foto que o capturou no instante em que
contemplava a pintura de Brancatti em Os divergentes. E também a
caricatura do crítico enquanto vampiro (SANT’ANNA, 1997, p. 130-131,
grifos do autor).

Por um lado, a obra de Brancatti é decorrente de uma mescla entre pintura e


instalação, que absorve em seu processo composicional o próprio crítico Antônio Martins,
que se vê encerrado dentro da obra do artista plástico, fato que o impede de analisá-la com
objetividade e imparcialidade, pois a obra de Brancatti ainda desafia o crítico, que não
conseguiu decifrá-la em sua totalidade. Por outro lado, Antônio Martins, em sua peça escrita,
incorpora o artista, sua modelo, sua tela e sua instalação ao seu próprio texto.

Desse modo, esse recurso contribui para uma simbiose entre ficção, crítica e memória
em um jogo de espelhamento por meio do qual o leitor se depara com uma narrativa
metaficcional, cujo personagem-escritor, um crítico de teatro, expõe deliberada e
conscientemente as engrenagens da narrativa em processo de construção, exigindo do leitor
uma cooperação ativa em seu percurso de leitura e compreensão da obra.

Portanto, Um crime delicado trata-se de uma narrativa metaficcional que


problematiza, entre outros aspectos, a crise da representação e a reconfiguração do narrador
na ficção contemporânea, expondo de modo consciente e deliberado uma narrativa que está
em constante processo de construção, que se dobra sobre si mesma, para expor ao leitor sua
própria ficcionalidade.

Referências

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Ed. da Unesp, 1998.
HUTCHEON, Linda. Narcissistic narrative: the metafictional paradox. London/New York:
Methuen, 1984.
KRYSINSKI, Wladimir. Questões sobre o sujeito e suas incidências no texto literário. In:
___. Dialéticas da transgressão: o novo e o moderno na literatura do século XX. São Paulo:
Perspectiva, 2007. p. 51-67.
RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. Tradição e renovação. In: FERNÁDEZ MORENO, César.
América latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 131-159.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

OMMUNDSEN, Wenche. Metafictions? Reflexivity in contemporary texts. Melbourne:


Melbourne University Press, 1993.
RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio
de Janeiro: Casa da Palavra; Biblioteca Nacional, 2008.
SANT’ANNA, Sérgio. Um crime delicado. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
SÜSSEKIND, Flora. Ficção 80: dobradiças e vitrines. In: ___. Papeis colados. Rio de
Janeiro: Ed. da UFRJ, 2003. p. 257-271.
WAUGH, Patricia. Metafiction: the theory and practice of self-conscious fiction. London:
Methuen, 1984.

Jó Joaquim e Virgínia: o real e o válido, uma aproximação entre Mia Couto e


Guimarães Rosa

Gisele Pimentel Martins


Universidade Federal de Uberlândia – UFU
gipimarti@gmail.com
Camila da Silva Alavarce
Universidade Federal de Uberlândia – UFU
camilaalavarce_ufu@yahoo.com.br

Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação,


a Jó Joaquim apareceu. (Rosa, p. 72)91

Virgínia, Virginha, Virgininha: quem era? (Couto, p. 90)92

É sabida e influência de Guimarães Rosa na obra do escritor moçambicano Mia


Couto. As marcas desta influência apresentam-se em diversos níveis e de diferentes formas.

91 ROSA, Guimarães. Terceiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 8° ed. Todas as referências a
esta obra são desta edição.

92COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. Todas as referências a esta obra são
desta edição.

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contemporâneas

Neste estudo, pretendemos elaborar uma aproximação entre alguns elementos do conto
“Desenredo” de Terceiras Estórias, de Rosa, e a história da personagem Virgínia do romance
Terra Sonâmbula, de Mia Couto.

O personagem Jó Joaquim mostra-se bastante hábil em reescrever o passado de


traições e mentiras da esposa Virília; Virgínia, a mãe adotiva de Farida, e personagem
importante para a desfecho da narrativa de Terra Sonâmbula, também se mostra hábil em
refazer seu passado e sua identidade e, com isso, modificar seu futuro.

Este estudo não visa a esgotar o assunto e configura-se mais como uma hipótese de
trabalho para um aprofundamento maior posteriormente. Principalmente se consideramos a
especificidade da obra de Mia Couto, legítimo representante da literatura africana e, como tal,
fiel aos seus valores, e da possível dificuldade de analisar sua obra à luz de teorias literárias
ocidentais que não são capazes de fornecer um caminho tão seguro para a leitura de textos tão
particulares como o de Mia Couto.

Num primeiro momento, é possível observar uma semelhança sonora entre o nome da
personagem Virgínia e de Virília, esposa de Jó. Esta semelhança não está só no som. Virgínia
não muda de nome no decorrer da narrativa, como Vírília que assume, no início do conto, três
possibilidades de nome: Livíria, Rivília ou Irlívia e, encerra o conto, com o nome de Virília,
ou seja, nenhum nos nomes anteriores, mas todos advindos da reorganização das mesmas
letras. A reorganização das letras para formar outro nome materializa a jornada da
personagem no decorrer do conto já que esta assume outro nome, outra história, outro
presente e, consequentemente, outro futuro.

No caso de Virgínia, as possibilidades Virginha e Virgininha também são uma


variação do mesmo nome, que pode representar uma síntese concreta de sua jornada no
romance. Virgínia, a esposa de Romão; Virginha a mãe que não concebeu, numa referência à
Virgem Maria e ao fato de ter sido mãe de Farida sem tê-la concebido, como se verá
oportunamente; e Virgininha, numa representação do prolongamento da vida da personagem,
já que ela “durava mais que a validade de seu corpo” (Couto, p. 193) e de sua diminuição de
tamanho, como ela mesma se consola “- Não é a selva que cresceu. Fui eu que
adiminuí.” (Idem, p. 192), ou ainda pode representar um jeito carinhoso de tratá-la,
infantilizado.

O primeiro momento em que a personagem Virgínia aparece na narrativa é quando


Farida está contando sua própria história para Kindzu; Virgínia foi uma mãe adotiva para
Farida, lhe ensinou a escrever, a falar e “era generosa como já não há” (Idem, p. 89).

Nas palavras de Farida, reescrita por Kindzu, sobre Virgínia: “Dela o quanto se sabia
era pouco. Cabia em mão fechada, sobrando entre os dedos aquilo que mais queríamos

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agarrar. Vivia vagarosa como uma lágrima.” (p. 89). Como se nota, Virgínia tinha uma
existência difusa, cuja essência escapava pelos dedos. Vagarosa no viver e no ser.

Virgínia era portuguesa, morava na África, lugar que amava, e era casada com Romão
Pinto, homem que violentou Farida e com ela teve um filho, Gaspar.

Ainda neste momento da narrativa, quando Farida está contanto sua história, ela
expõe o comportamento confuso e melancólico da velha numa descrição bastante lírica do
momento em que Virgínia começa a reorganizar suas memórias:
E sorria, alegre desse mais tarde, consoante o sonhado. Ficava na janela
olhando o país que inexistia, desenhado em geografia da saudade. Tanto
esmolou a Deus um outro lugar que ela se foi fazendo remota e, aos poucos,
Farida receou que sua nova mãe nunca mais se acertasse. Sobre velhas
fotografias, com um lápis, a velha portuguesa desenhava outras imagens. Às
vezes, recortava-as com uma tesourinha e colava as figuras de umas fotos nas
outras. Era como se movesse o passado dentro do presente.

- Olha, vês? Este é meu tio. Foi quando ele veio cá visitar-nos.

Um tal parente jamais estivera em África. Mas eu nem ousava desmentir. As


fotos recompostas traziam novas verdades a uma vida feita de mentiras.
(Couto, p. 91)

Na passagem citada vemos como a personagem, após “esmolar” tanto a Deus por um
outro lugar, foi se fazendo remota, distante, reinventando, movendo seu passado dentro de
seu presente. Muito simbólica a ação de a personagem modificar as fotografias, seja
desenhando sobre elas ou recortando-as, num movimento de reorganização das lembranças e
de seus rastros.

Virgínia rememoriza visitas que nunca aconteceram, fica olhando pela janela, para um
país que inexiste, ansiando por estar em outro lugar. Interessante que, como resposta a esse
desejo, a velha senhora passa a reorganizar o lugar de suas memórias que passam a assumir
contornos espaciais, não só temporais, levando a personagem a momentos/lugares jamais
vividos.

Notamos que existe um descompasso entre as memórias da personagem e seu


presente, tanto que Farida teme que ela “não mais se acerte”, teme que esse descompasso seja
irreversível e acabe por determinar a vida da personagem Virgínia e dela mesma, Farida, a
partir daquele momento. Mudança que, efetivamente, vai se concretizar no curso da narrativa.

Assmann, 2006, explica que:


As recordações estão entre as coisas menos confiáveis que um ser humano
possui. As respetivas emoções e os motivos de agora são guardiões do
recordar e do esquecer. Eles decidem que lembranças são acessíveis para o
indivíduo em um momento presente e quais delas permanecem inacessíveis.

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(...) O ser humano orientado por seus interesses em agir jamais dispõe por
completo da soma de suas lembranças. (ASSMANN, 2006, p. 72)

A descrição de Assmann, sobre a reorganização das lembranças de acordo com os


motivos do presente, explicam bem o processo de reorganização das lembranças por que
passa Virgínia. Assmann ainda ensina que “No âmbito dos conceitos vinculados a recordar e
esquecer cumpre-se uma reorganização radical da identidade.” (Idem, p. 74). Virgínia vai
reconstruir sua identidade presente a partir da reorganização de seu passado.

Muito simbólico também é o fato de Virgínia recortar as fotografias ou desenhar sobre


elas, segundo Susan Sontage, citado por Assmann: “Uma fotografia não é apenas uma
imagem (como a pintura o é), uma interpretação do real; ela é ao mesmo tempo um vestígio,
um modelo direto do real, como uma pegada ou uma máscara mortuária.” (SONTAG, Susan,
apud ASSMANN, 2006, p. 169).

Redesenhar e recortar as fotografias – que são intepretação, vestígio, pegada do real e


este podendo variar de acordo com a reconstrução das memórias - pode legitimar a intenção
de reorganização do passado da personagem para que ela assuma outra identidade. Refazer
os rastros e as pegadas para refazer o passado, a memória e a identidade presente. A
personagem parece mesmo mover o passado no presente.

Interessante notar que, refazendo as fotografias, a personagem desfaz aquela


lembrança inicial, do momento em que a foto foi tirada, esse momento é destruído em
benefício da construção de outro momento, de outra lembrança. O rastro é apagado e cria-se
outro. Aquela lembrança, “original”, já não existe mais, numa representação concreta da
mudança de identidade da personagem a partir da redefinição de seu passado.

Neste sentido, o comportamento da personagem Virgínia se assemelha muito ao


comportamento de Jó Joaquim no conto “Desenredo”, já que Jó Joaquim “genial, operava o
passado – plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta.
Mais certa? (Rosa, p. 74). O passado de Virília reorganizado de forma diferente, mais alto,
sobrepõe-se ao passado anterior de traições e será o que vai ficar registrado. Virília, sabendo-
se inocente e pura, fez-se inocente e pura, mudou sua identidade em decorrência da
reformulação de seu passado-rascunho.

Jó Joaquim explora o que Assmann prevê, considera que a memória não é confiável e
que as recordações devem servir ao presente, selecionando o que ele, o povo e a própria
Virília deveriam lembrar e propondo até o questionamento: será que esta realidade é “mais
certa?”. É o próprio narrador do conto quem responde “O real e válido, na árvore, é a reta que
vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.” (Rosa, p. 75). Se o
real é o que está mais visível e “O grupo torna estáveis as lembranças.” (Assmann, 2006, p.

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144), no caso de Jó, a realidade recriada por ele também acaba sendo a certa, legitimada por
ele e pelo grupo, considerando que “todos já acreditavam” na inocência de Virília.

Assim como Jó, Virgínia refaz seu passado e as fotografias adulteradas marcam o
momento em que o plástico e contraditório rascunho das memórias é reprocessado. Farida
segue sua narrativa contando que, num determinado momento, Virgínia pediu que Farida lhe
escrevesse cartas:

Era. Farida deveria enviar-lhe cartas, falseando autorias, fingindo o longe.


Foi o que passou a fazer, se entretendo a ser, de cada vez, um diferente
familiar. Nunca pode imaginar quanta bondade estava criando. Virgínia lia as
cartas com aquele soluço que é tropeço do choro. Farida escutava em tal
embalo que se desconhecia autora da missiva. Ou era a velha que inventava,
refazendo a irrealidade do escrito? (Couto, p. 91)

Neste caso, percebe-se o mesmo mecanismo empregado nas fotografias, criando, na


própria Farida, autora das cartas, a dúvida sobre a autenticidade de sua autoria, já que ela não
era capaz de reconhecer, naquilo que Virgínia lia, as palavras que tinha escrito. Aqui a
construção da memória se dá pela escrita das cartas por Farida, comprovando a existência de
parentes, de saudades mútuas, já que Virgínia quase chorava ao ler as cartas, experimentando
sentimentos autênticos, ainda que vindos de cartas inventadas por Farida ou pela própria
Virgínia. Seguindo a lógica de Jó Joaquim, se o que aparece mais é o mais real, as cartas de
Farida, podem estar construindo um passado novo, proporcionando sentimentos autênticos
em Virgínia e se fixando como o que é válido.

Do que é feita, afinal, a memória? Assmann responde “uma massa plástica que é
sempre reformulada sob as diferentes perspectivas do presente.” (Assmann, p. 170). Virgínia
e Jó parecem perceber essa plasticidade e moldam seus passados, suas lembranças e suas
identidades para o presente e para escrever um outro futuro.

Jó, a partir da reinvenção do passado de Virília, alcançou sua felicidade “Três vezes
passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Virília retomaram-se, e conviveram,
convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.” (Rosa, p. 75)

Virgínia, também por ser personagem de um romance, tem um desfecho mais


complexo. Virgínia leva Farida embora de sua casa por temer não mais conseguir protegê-la e
a narrativa de Farida ganha outros rumos que não vamos seguir neste estudo e vamos voltar à
personagem Virgínia, agora mostrada pelo próprio Kindzu que vai conhecer e conversar com
ela.

A Virgínia apresentado por Kindzu já é fruto daquela reconstrução do passado que se


operara quando Farida e Virgínia estavam juntas. Kindzu, numa intepretação interessante
sobre Virgínia diz:

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Ela se refugiara onde nunca mais nem mortos nem vivos lhe pudessem
encontrar. Me recordei dos conselhos da minha infância. Me diziam: você,
miúdo, faça como o galo que mostra as penas do rabo. Quanto mais belas as
penas, menos você vai na panela. Virgínia exibia os coloridos sinais da
loucura. Assim, ninguém mais dela se recordaria. (Couto, p. 217)

Parece-nos que era esse um dos objetivos de Virgínia, ao reconstruir suas memórias,
abrigar-se num estado de insanidade, de desconfiança, de forma que tudo o que ela falasse
não pudesse mais ser confiável, e mais, explicitando em suas falas, em seu ser, toda a falta de
confiança que devemos atribuir à memória, como exposto por Assmann. Sugerindo que, para
as pessoas ainda lúcidas, a insegurança das memórias talvez seja menos visível do que se
torna para pessoas insanas, velhas ou para as crianças.

O comportamento de Virgínia a protege porque suas memórias não representam


perigo, já que instáveis e difusas, fruto de sua construção de loucura. Com isso, a personagem
explicita a instabilidade da memória que a constrói, fazendo como o galo, exibindo as penas,
as marcas da loucura, e não é incomodada por ninguém, como o galo, não vai para a panela.

Interessante que a construção da loucura como meio de se atingir um objetivo também


está em “Desenredo”:
No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a
progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível?
Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Deseja ele, Jó
Joaquim, a felicidade – ideia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à
conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. (Rosa, p. 74)

Assim como Virgínia, construindo sua loucura para proteger-se, Jó Joaquim,


retomando a história de Ulisses, sugere que fazia parte de seu plano fazer-se de louco,
confundir as lembranças, as memórias para buscar sua felicidade. Redimir a mulher,
introduzindo lentamente um outro passado, reconstruindo a memória que se tinha da mulher e
dos acontecimentos que a rodearam, até que a ideia deixe de ser loucura e passe a ser a que
vai ser posta em ata.

Voltando a Virgínia, Kindzu dedica um capítulo a ela em seu caderno de memórias,


interessante porque as memórias de Farida e de Virgínia são as memórias de Kindzu que
serão as memórias de Muidinga e de Tuahir, já que ambos saberão as histórias de Kindzu
através da leitura de seus diários. A construção desse romance se dá a partir da construção de
memórias, mas essa discussão é assunto para outro estudo, dada a sua complexidade.

No capítulo dedicado a Virgínia, Kindzu se mostra bastante sensibilizado com a


velhice duradoura da personagem e constrói seu relato de maneira bastante delicada,
dedicando à velha um olhar generoso e paciente, mostrando-a como se ela estivesse imersa
numa existência infantil e explicitando a personagem que se refez a partir da reordenação das
memórias, daquele momento em que a velha vivia com Ferida e era mais jovem do que no

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momento em que Kindzu a vê e faz seu relato. Neste momento, Virgínia já está viúva há dez
anos e “Ali estava ela, varandeando no exercício de sua última meninez” (Couto, p. 192).

Impossível não reparar no termo “varandeando”, a carga semântica dessa palavra


inventada para este contexto é bastante lírica. A união de “varanda” com “andando” é bem
poética e significativa para a personagem. Estar na varanda é estar num lugar intermediário,
nem dentro, nem fora da casa; nem dentro, nem fora da vida. Um entre-lugar da velhice e da
meninez, pelo lado oposto, como se após a velhice e a morte, voltássemos a ser crianças,
então a velhice estaria mais próxima da infância de que se considerarmos a cronologia da
existência humana, em que a infância está distante da velhice. E o verbo “andando”, estar na
varanda, andando, vivendo, vagando, de qualquer forma, em movimento.

Prosseguindo com a descrição de Virgínia, Kindzu, a partir do que ouviu dizer (mais
uma narração dentro de outra), que “Dona Virgínia amealhava fantasias, cada vez mais se
infanciando. Suas únicas visitas são essas crianças que, desde a mais tenra manhã, enchem o
som de muitas cores. (...) A vida finge, e a velha faz conta. No final, as duas se escapam,
fugidias, ela e a vida.” (Idem, p. 192) e, ainda:

Do defunto esposo ela não guardava senão o inverso da saudade. Um


pressentimento que ele haverá ainda de chegar, fosse o falecido não um ente
do passado mas do porvir. Os vizinhos se admiravam com essa falha em sua
lembrança. No princípio, acreditavam ser desbotura da memória dela.
Coitada, o hoje é para ela mais antigo que o anteontem, diziam. Mas, depois,
se convenceram de que outro problema se tratava. Porque Virgínia seguia
teimando na ideia de um noivado ainda por estrear. No lugar do suspiro
saudoso ela punha a ânsia do há-de vir.

- Quando eu for na idade de casar esse homem me vai chegar.

Os vizinhos não variavam: a velha durava mais que a validade de seu corpo.
Deixassem seu sonho enlouquecer. (...) É assim a velhice. Virgínia que
trocasse passado por futuro, sonhasse não com o fim da vida mas com as
nascenças que lhe faltavam. Tudo isso que importava? (Idem, p. 193)

Conforme Assmann, já transcrito acima, a personagem escolhe quais lembranças


estão acessíveis no momento presente. Para Virgínia, passado, presente e futuro parecem
fazer parte da mesma matéria: suas lembranças acessíveis e o desejo de reescrever sua
história futura. A personagem não distingue passado, presente e futuro. A noção de tempo,
para ela, também se infanciou e perdeu a rigidez das sequências cronológicas.

Principalmente se pensarmos na continuação desta passagem em que Virgínia projeta


a chegada de um “cavaleiro Romão” (Couto, p. 193) que vai encontrá-la para com ela se
casar. Interessante essa projeção, porque assemelha-se a uma personagem de conto de fadas
e suas várias princesas salvas por cavaleiros ou príncipes. Parece-nos que tal memória do

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futuro está vinculada a valores culturais arraigados em sua criação europeia e na construção
de representação tipicamente infantis.

Assmann explica que as principais características da memória funcional são


“referência ao grupo, à seletividade, à vinculação a valores e à orientação ao
futuro” (Assmann, 2001, p. 147). O que se nota no trecho citado é que Virgínia é seletiva,
escolhe a memória que deseja, tais memórias são vinculadas a valores e se projetam para o
futuro, com um “há-de ser” empolgante e inédito.

Os vizinhos conseguem detectar em Virgínia essa perda da cronologia temporal, mas,


o que isso importa? Segundo o narrador de Jó Joaquim, em “Desenredo”, o real não é aquilo
mesmo que é válido? Desta forma, suas memórias passadas, reorganizadas e projetadas para
um futuro outro, repleto de encantos, também pode ser válida e contribuir para a construção
da personagem com todo o lirismo, imprecisão e delicadeza com que é apresentada.

Virgínia cercava-se de crianças e contava histórias para elas, todas desencontradas,


cada dia contava de um jeito, e conclui que “Verdade, em infância, é um jogo de
brincar” (Idem, p. 195). Parece-nos que Virgínia percebeu antes desse momento de velhice
extrema que a verdade é um jogo de brincar, não só na infância.

Assim como Jó Joaquim, que reconstrói a história de Virília – e a sua própria –


deixando essa nova história mais exposta, mais alta, mais dominante, Virgínia também
constrói suas memórias, lembranças e, em certa medida, até sua loucura, afinal, será mesmo
louca? Ou está apenas moldando suas lembranças plásticas à maneira que convém ao seu
presente, rompendo com barreiras cronológicas e reorganizando suas memórias onde e como
eles deveriam estar.

Bibliografia

ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.


Tradução de Paulo Soethe.
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
ROSA, Guimarães. Terceiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 8° ed.

Poéticas do contemporâneo: performances da linguagem em Ó, de Nuno


Ramos e EEMC, de Luiz Ruffato

Ilmara Valois Bacelar Figueiredo Coutinho

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contemporâneas

Universidade do Estado da Bahia (UNEB)


Ilmaravalois@hotmail.com

Se tivessem a coragem de escrever e falar com pedaços e


destroços, então seriam parte deste caos, desta correnteza de
lava e de morte, mas trariam a cabeça erguida, seus passos
teriam o temor do terremoto que os aniquilou e sua risada, a
potência do vento lá fora.
(RAMOS, 2008, p. 31)

O objetivo do presente texto é problematizar a presença de uma estética-poética do


fragmento e suas possibilidades criadoras na literatura brasileira contemporânea,
considerando que o contemporâneo, catalisador anacrônico de tempos entrecruzados e
margens limiares, oferece constantes desafios aos estudos teórico-literários, inclusive por
performatizar linguagens que se (re)(des)constróem, enquanto moldam dizeres diveros. Esse
talvez seja o grande mérito das obras aqui em destaque: indagar o poder da linguagem por
exposição de ruínas-potências que podem se multiplicar nos intervalos silenciosos e
disformes que as constituem. Para tanto, o recorte empírico consta das obras Ó, de Nuno
Ramos, e Eles eram muitos cavalos (EEMC), de Luiz Ruffato, mesmo recorte feito no texto
da tese defendida pela mesma autora em 2014, na Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (COUTINHO, 2014), quando se estudou a poética do fragmento.

São obras reconhecidas e festejadas em pesquisas e premiações, fazendo parte de uma


parcela dita privilegiada dentro do campo literário brasileiro e tendo como lugar de diferença
a escrita de fragmentos, a forma como são arquitetados performaticamente temas e
linguagens para significar o conturbado presente. Se o contemporâneo está apto a visualizar
pontos de escuridão, por dirigir fixamente o olhar ao seu tempo, percebendo “não as luzes,
mas o escuro”, como nos diz Agamben (2013, p. 72), as obras literárias aqui estudadas tocam
nesse escuro, fazendo esgarçar o opaco tecido da escuridão que somos e vivemos, por isso,
talvez, não seja possível a seus narradores traçar outra artesania que não aquela estilhaçada
em fragmentos.

A noção de performance, significada por Zumthor (2007, p. 50) como “momento


privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido” (ZUMTHOR, 2007, p. 50), faz-se
relevante para significar as linguagens mobilizadas nas obras, porquanto permite amalgamar
a escrita como evento multimodal dado à apreciação; a recepção como tempo social e
histórico; e a performance mesmo como temporalidade momentânea, o que indica a
realização de leituras desconstrutoras da referencialidade exclusivista dos códigos,
propiciando interpretabilidades encruzilhadas por diferentes (des)racionalidades. Há uma

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hibridação fazendo pulsar os textos, em movimentos que intercalam (des)acelerações,


cadências, tons, ritmos, vozes, dicções, imagens, formas, uma interseccionalidade com
materiais plásticos-poéticos e uma solicitação para que o leitor transite as lacunas, os vazios,
as fissuras (dos)entre os fragmentos.

O fragmento: (im)possibilidades da palavra plural

[...] as verdades do fragmento podem raiar as do silêncio.


(STEINER, 2012, p. 32)

No âmbito das disputas realizadas sob a bandeira do valor essencial da arte literária,
numa “República Mundial das Letras”, como significou Pascale Casanova (2002), a literatura
não deixou de erigir pilares segregacionistas em prol de uma estrutura tentacular de natureza
purista que acab(ou)a por criar suas próprias hierarquias e violências, tanto por valorizações
diferenciadas mundialmente quanto dentro do âmbito nacional, o que, nos lembra
Dalcastagné (2012), não encontra soluções apenas no interior do campo literário. Assim, cabe
ao Contemporâneo, e a cada contemporâneo, fazer girar a roda das estéticas, como acontece
em nosso conturbado e instável presente, tempo em que sujeitos deslocados (identidade,
gênero, sexualidade, etnia, tempo/espaço) forjam (e forjam-se em) diálogos dispersos, a partir
das mais variadas paisagens culturais e das mais diversas formas de subjetivação, voltando-
se, em algum nível, para as poéticas das diversidades e, sem poder encontrar lastros
duradouros ou sólidos, potencializam a lacuna, o vazio, o silêncio.

No bojo desse movimento incessante e a despeito de sua origem milenar, o fragmento


vem ganhando destaque e fazendo despontar uma estética do fragmento, que, conforme
George Steiner (2012, p. 30),

[...] tornou-se recentemente objeto de atenção. Não só na literatura. Nas


artes, o estudo, a maqueta, o esboço foram postos acima da obra acabada. O
romantismo investiu na aura do inacabado, do que não chegou a completar-
se graças a uma morte prematura. As manifestações emblemáticas do
moderno são muito frequentemente inacabadas: Proust e Musil no romance,
Schoenberg e Berg na ópera, Gaudí na arquitetura. Rilk celebra o torso, T. S.
Eliot torna os fragmentos esteios ‘contra a nossa ruína’.

Essa escrita fracionada tem sido estudada sob a ótica de uma diferenciação
estabelecida entre fragmentação e fragmentário, estando o primeiro destinado à obra em si,
com sintaxe e foco narrativo esfacelados; o segundo, à linguagem, na qualidade de fenômeno
sintático e semântico feito do entrelaçar de perspectivas na memória/digressão, no recurso da
intertextualidade, na linguagem sintomática, englobando uma conotação psicanalítica,

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tributária de estudos de Freud e Lacan, principalmente no que refere o Ser como linguagem.
Conforme Andrade (2007), “fragmentação/obra, fragmentário/linguagem”.

A performance ofertada por tal constituição não raro gira em torno da instituição de
formas lacunares de escrever, ler e compreender as artes, inclusive por conta das interfaces
trazidas pela internet. Podemos considerar, trazendo também a teoria de Blanchot (2010a),
tratar-se, a escrita de fragmentos, da busca por uma palavra plural afeita a transgredir tanto o
espaço inter-relacional, destinado ao diálogo e à unidade, quanto a comunicação dialética e
sua polarização antagônica. Em ambos os casos, a ordem é a unidade, a imagem idealizada de
um dizer uno capaz de solucionar as contradições e as diferenças do ser-mundo e que a
palavra plural não busca ratificar, tão ligada está ao estilhaçado espelho das
(im)possibilidades.

Uma palavra plural almeja potencializar a interrupção, a ruptura, a diferença,


encontrando horizonte exemplar, como afirma Blanchot (2010a, p. 142), nos quebrados
textos de Heráclito, como “uma das primeiras obras em que o pensamento foi chamado a si
pela descontinuidade da escrita - obra rompida pelo tempo como que para tornar acidental
sua presença fragmentária” - deixando antever uma infinidade de assombros no correr dos
tempos. Não é estranho que o contemprâneo queira abraçar essa lição despretensiosa do
tempo, de Heráclito e de tantos outros filósofos e poetas, com a força intempestiva de quem
não teme o estilhaço, podendo fazer dele uma (anti)morada.

A linguagem como a encontramos significada tanto em Ó qunto em EEMC,


destacando certa propensão por fundar (entre)lugares conflitivos patentes às muitas exclusões
forjadas a partir das palavras-fragmentos, é complexidade que reúne “pedaços e destroços” na
condição de lugares de enfrentamento entre realidades e ficções; parte do caos e da
correnteza que faz a potência das obras e seus universos desdobráveis: “a potência do vento
lá fora”, como diz Ramos (2008, p. 31); “o lá-fora?”, “o aqui-dentro?”, pergunta Ruffato
(2013, p. 83).

Ó: uma linguagem de pedaços e destroços

Nuno Ramos tece sua “sustentação estético-filosófica” (RENAN JI, 2011, p. 115)
arrebanhando materiais concretos de vocação plástica para contaminar a filiação verbal da
obra, também híbrida, por agregar aspectos das artes visuais, como se mostrasse uma
instalação. Ao colocar sob rasura qualquer possibilidade de comunicação desprovida de
complexidade, Ó lança um riso irônico-pessimista para realidades fundadas, ou mediadas,
pela racionalização dos saberes. Logo no primeiro ensaio, como parte das discussões
empreendidas acerca de uma possível genealogia ficcional da linguagem, pode-se ler uma
crítica aos pensadores que realizam seu torpor indagativo segundo um sistema de códigos

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

designativo e gregário, universo metafórico incapaz de permitir entendimentos para as


“verdades” buscadas, principalmente quando há propensão por perpetuar lugares discursivos
excludentes. Uma tal posição discursiva se aproxima dos estudos realizados por Nietzsche
acerca do que Mosé (2005) destaca como sua grande política da linguagem, a saber: a
necessidade de se reinventar o pensamento, a linguagem, por meio da desmontagem do
edifício conceitual erigido a partir do absoluto, da essência, da consciência, do sujeito, em
detrimento do corpo, da intensidade da vida.

Coadunando com tais predicativos, atravessa toda a obra Ó um questionamento acerca


do entendimento da linguagem como abrigo, como ficção/invenção destinada a criar um
mundo idealizado pela necessidade de comunicação, e cujo instinto coletivo foi imposto
como imprescindível à sobrevivência. Ignorando uma gramática em que sujeito e predicado
fossem compostos pelas coisas mesmas, foi deliberado criar um abrigo ficção que, tendo seu
valor de verdade primordial elevado acima de tudo e de todos, atenta contra a vida, como já
havia ressaltado Nietzsche (1999, p. 72): “A significação da linguagem para o
desenvolvimento da civilização está em que, nela, o homem colocou um mundo próprio ao
lado do outro, um lugar que ele considerou bastante firme para, apoiado nele, deslocar o
restante do mundo de seus gonzos e tornar-se senhor dele”.

A linguagem de “pedacos e destroços”, como se pode ler na epígrafe do presente


texto, sugerida por Ramos (2008), personifica, em algum nível, tais questões, no que coaduna
com Borges e sua enciclopédia chinesa, claramente voltada a destacar a coexistência
rizomática de pensamentos, palavras e categorias conceituais, segundo ordenações
diferenciadas, mesmo espantosas, para o logos ocidental, e que Foucault (2007, p. XIV-XV)
caracteriza como “[...] espaço solene, todo sobrecarregado de figuras complexas, de
caminhos e emaranhados, de locais estranhos, de secretas passagens e imprevistas
comunicações [...]”.

Em Ó, a linguagem é comparada a um vírus capaz de substituir-se ao real, com


propensão para se colocar como célula sadia, sacrificando qualquer eco contrário à sua
proliferação; significada como ferramenta de exclusão, “[…] pois é próprio da mais estranha
das ferramentas, da mais exótica das invenções (a linguagem), parecer tão natural e
verdadeira quanto uma rocha, um cajado ou uma cusparada. Este é o seu fundamento, sua,
digamos, astúcia, a de substituir-se ao real como um vírus à célula sadia” (RAMOS, 2008, p.
23).

Como ação parricida de encruzilhada, a escritura de Ramos (2008) questiona os


pilares fundacionais da linguagem, movimento a partir do qual é feita a fabulação de uma
outra linguagem, criada por encaixes discursivos atravessados por sete atos linguístico-

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epifânicos (do primeiro ao sétimo Ó), em que o escrito/dito prescinde de qualquer princípio
de coerência conhecido. Trata-se, então, de um “grito”, “sussurro”, “canto”, “zumbido”,
“hino”, “zurro”, que talvez tenha a intenção de ser choque capaz de nos deixar sem palavras,
como sugere o narrador, ao tratar da existência de uma etapa anterior à linguagem que
adotamos: “Quando entramos em choque com algo inaceitável ou excessivamente belo e
ficamos, literalmente, sem palavras, estamos recuperando esta etapa adormecida da nossa
natureza” (RAMOS, 2008, p. 24).

Os sete fragmentos “Ó” perpassam os ensaios componentes da obra, fazendo ecoar, no


universo desterritorializado que faz a linguagem fora da linguagem, palavras, silêncios e
rumores, como um canto desconexo, em que os sentidos deslizam indóceis. Cada fragmento
“Ó”, agregando polissemias errantes, faz-se interstício por meio de palavras suspensas pela
força dissimulada de cortes materializados como canto linguístico de coerência desordenada;
um “canto de abismo”, que está na base dos seres e das coisas, atravessados por
ambiguidades e vazios, como nos diz o narrador, numa tentativa de significá-lo: “[...] então
alguma coisa como canto sai de alguma coisa como boca, alguma coisa como um á, um ó, um
ó enorme, que toma primeiro os ouvidos e depois se estende pelas costas, a penugem do
ventre, feito um escombro bonito, um naufrágio no seco, [...]” (RAMOS, 2008, p. 59).

A origem a que a linguagem é chamada a protagonizar, quando se faz “Ó”, longe de


ser a cristalização de um (novo) começo, faz-se acontecimento por vir, solicitando das
palavras, sentidos, relações, seres e coisas que jamais cessam sua (ante)comunicação nômade.
Questionando ou ironizando a apropriação que fizemos das palavras, porquanto as
destinamos ao controle das consciências, tranquilizando-nos frente ao terrível burburinho que
faz o viver, o que está arquitetado na linguagem “Ó”, sem sugerir qualquer saída, é um canto
que não deixa de gritar a necessidade de uma outra política para a linguagem. O livro expõe a
força patente à invenção e uso de uma ferramenta destinada a escravizar mentes e corpos
levados, por livre e espontânea vontade - como se diz no senso comum -, a arquejar
amedrontados frente ao trovão do Uno, do logos, de um deus inventado para sabotar a própria
criação.

No “Sexto Ó” (RAMOS, 2008, p. 203-206), há menção a uma vida que prepara sua
vingança para quem a quer cantar, sendo tomados por traidores aqueles que a desejam em sua
potencialidade desaquietante. A despeito de toda a sanha continuadora, fica patente a
necessidade de libertarmos nossos fantasmas, a nós mesmos e a nossos deuses da pesada
carga das interpretações institucionalizadas:

[...] aqui viemos para olhar de frente e não para morrer de medo, viemos
para a grande transfusão de um peito coletivo, para a mordida na maçã de
uma glande mútua e feminina, viemos para, desarmados, querer, querer,

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para a luz vermelha, não essa mortiça e bege, cor de fórmica, viemos para
livrar nosso defunto de seus cravos, de suas vestes de domingo e levá-lo de
volta para a rua onde morava, para espantar seus corvos, viemos para beber
com ele rindo de tantas flores (RAMOS, 2008, p. 205-206).

Ó evidencia esse desejo de quebrar (quem sabe apenas ironizar) os pedestais da


identidade, sugerindo livrar “nosso defunto de seus cravos”, por meio de conhecimentos
edificados no caos e não na causalidade perpetuadora de uma verdade, de onde advém a voz
dissonante e fragmentada do narrador, que não pode achar equivalência entre o sopro da boca
e o nó no peito, no topo do estômago, “essa vontade de cantar e vomitar ao mesmo tempo
[...]” (RAMOS, 2008, p. 204); um canto-vômito de metamorfoses constantes, que toma a
linguagem como phármakon (DERRIDA, 2005), fruto de alegoria mítica geradora de cisões
que, em última instância, entrecruzam forças de poder e múltiplas (des)funcionalidades na
mesma “ferramenta”.

A violência deslocadora dos fragmentos pode ser lida como uma solicitação a que se
inventem outros arremates e acabamentos para as representações e realidades. Entre as duas
possibilidades elencadas por Blanchot (2010b, p. 97) para a obra fragmentária, a partir da Ars
nova, a saber: “renúncia ao ato de compor”, como imitação de uma linguagem pré-musical
“ou, ao contrário, como a busca de uma forma nova para a escrita [...]”, pode-se asseverar
que a narrativa literária aqui destacada se situa no limiar da segunda possibilidade. Ó é
claramente tributária das chamadas vanguardas históricas, das tendências expressionistas e
surrealistas e molda, nos fragmentos também intitulados “Ó”, não uma renúncia ao “ato de
compor”, mas uma composição diferenciada, efetivando a reinvidicação de uma “nova”
forma para escrever o ser-mundo.

Na obra, fazendo valer uma força de conflito geradora de negociações, o fragmento é


“dis-curso”, “curso desunido e interrompido”, à moda de Pascal93 (BLANCHOT, 2010a, p.
30), o que possibilita relações espaço-temporais condizentes com o estilhaçamento
vivenciado no presente. Desse lugar desconcertante, podemos perceber as teses, críticas,
transes, reflexões, elaboradas por estilos e repertórios moldados no desalinho de escritas
performáticas, cujo paradigma expressivo se materializa nas grafias de uma pele
holisticamente contaminada por muitas suspeitas, como lembra Delcastgnè (2012, p.
105-106), ao pesquisar o romance contemporâneo brasileiro.

Eles eram muitos cavalos: a arte de colecionar silêncios

93 Conforme Blanchot (2010a, p. 30), Pascal escreve uma apologia, um discurso concatenado e coerente,
destinado a ensinar verdades cristãs, mas seu discurso “manifesta-se em curso desunido e interrompido que,
pela primeira vez, impõe a ideia de fragmento como coerência”.

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A teorização feita por Ramos ao indagar a linguagem sobre o que poderia fazê-la parte
das caóticas paisagens socioexistenciais e que, não sendo abrigo, pudesse ter a força de um
dizer entrecortado por significâncias questionadoras de racionalidades engessantes, tem um
correspondente fortemente reconhecível na forma desarticuladora com que Luiz Ruffato tece
o seu EEMC 94. Os “pedaços e destroços”, reunidos na obra, pelas cidades-sujeitos-linguagens
excluídos dentro da cidade, não deixam de ser parte da correnteza de “lava e de
morte” (RAMOS, 2008, p. 31) que faz o encadear dos episódios - coordenados
insubordinadamente e promíscuos no que tange ao entrecruzar de elementos gráficos95,
sintáticos, semânticos - e, ao mesmo tempo, o estilhaçar da relação causal das ações, como a
reunir, no interior da arqueologia citadina, pontos de exclusão e dispersão, somente
apreensíveis nessa coleção de limiares que faz a fragmentária poesia do cotidiano, suas
revoluções e resistências.

Pode-se ler, a partir da linguagem performática de EEMC, uma crítica às hegemonias


grafocêntrico-racionalistas, o que fica patente na forma como a escrita busca inverter um
ponto de referência preconceituoso e elitista, afeito a representar o outro como exótico.
Conforme Dalcastagnè (2012, p. 28), a forma como as “minorias” têm povoado a literatura
brasileira, muitas vezes, representa, não o outro com suas diversidades e diferenças, mas o
outro como querem enxergá-lo aqueles que se propõem a fazer a representação de suas
existências, a estereotipia de suas vidas, a banalização redentora de suas histórias, a
higienização de suas linguagens.

Mais do que representar uma cidade e seus povos, a obra (re)cria-os, com
singularidades anônimas, desgarradas, nômades; nem individuais nem pessoais, mas inseridas
no fluxo (não)identitário da brevidade de suas passagens; ser e mundo atravessados por
condições de vida cortantes, a compartilhar o mesmo horizonte de derivas. Tal atmosfera se
ergue das ruinas urbanas, de subjetividades e linguagens reunidas na dispersão de “destroços”
que dizem de cenários que não se tocam, de personagens que não se cruzam, de “narrativas
que não se encontram” (LAJOLO, 2007, p. 102), mesmo estando amalgamados em contextos
humanamente fortes de dores e esperanças, são atravessados por uma indiferença abissal que
os faz distantes, como se pode ler na forma como são organizados os fragmentos, na presença
de duas páginas pretas, sem nenhum escrito, ou na fala de um casal de personagens
explicitando a reação de impotência frente aos gemidos ouvidos lá fora: “– Deve ter sido

94 Não há qualquer intenção hierarquizante em relação às obras, mas entendimento de que as estratégias de
escrita de ambas trazem pontos de contatos aqui destacados.

95 Em advertência ao leitor, ressalto que a escrita de EEMC será citada, no presente trabalho, de forma a
preservar as marcas de sobreposição estabelecidas pelo autor, a exemplo do itálico, sublinhado e negrito, que
aparecem com sentidos rasurados em relação ao uso regulamentado para trabalhos acadêmicos.

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facada... pelo jeito...”, “– E a gente não vai fazer nada? – Fazer? Fazer o quê, mulher? Fica
quieta... E se tem alguém lá fora?, de tocaia?” (RUFFATO, 2013, p. 129).

Como diz Schollhammer (2007, p. 75), há uma indicação do “esgotamento do valor


comunicativo das palavras” perpassando a obra e solicitando recursos gráficos agregadores
de outros sentidos. As páginas em “black out” performatizam esse esgotamento, ratificando
realidades em que as palavras falham ou simplesmente assumem a ineficácia do dizer, o que
faz o escritor legar ao leitor o incômodo da noite, como um convite à visualização de janelas
entreabertas ao infinito de acontecimentos pertencentes a escuridões ubiquamente
metafóricas. E não como inércia ou passividade, mas como fratura voltada a focalizar, no
escuro, uma luz que se distancia infinitamente de nós, tornando-se imperceptível na condição
de luminosidade, como a conhecemos.

As trincheiras da comunicação estão estabelecidas não porque a linguagem desliza em


sentidos ou porque as interpretações/identidades são desviantes, mas porque inserida em um
universo cujas muitas violências fazem o silenciamento cruel frente às barbáries. Não há
mensagem facilmente (de)codificável quando as vozes se encontram amedrontadas e seus
gritos são ecos tímidos e encurralados por biopoderes que se colocam acima e ao largo da
vida comum; por posturas genocidas que assombram as margens das diferenças, muitas
vezes, capitalizadas por interesses socioeconômicos incapazes de gerar equidade.

Como significar condições extremas do viver, se não subvertendo linguagens


engavetadas? Nessa perspectiva, a palavra fragmentária é chamada a ser “guerra e loucura”,
como disse Blanchot (2010a, p. 67), enunciando irônicos “paraísos” de silenciamentos
trágicos, como aquele em que vive o garoto explorado sexualmente por um Alemão, em “29.
O Paraíso”: “Ao menino não agrada muito, mas, se lembra de há dois meses, é como se o
paraíso” (RUFFATO, 2013, 56). Antes vivia nas ruas, amargando toda a sorte de misérias e
perigos, agora tinha um teto, estava bem alimentado, mas prisioneiro, explorado,
incomunicável. O garoto, ao trocar as violências da rua pelas violências do cativeiro, foi
obrigado a emudecer, mantendo contato apenas com o Alemão e com garotas com quem
dividia “o trabalho”. Perspectiva: “[...] noite dessas, se conseguir pôr o pé no parapeito da
janela do andar de baixo, pulo na marquise, já calculei, estou pensando” (RUFFATO, 2013, p.
57). Espera-o a noite e suas (im)possibilidades. Se há um futuro, ele se mostra em black out,
enunciável apenas pela fratura.

Dessa forma, os índices, “coisas” coletadas nas ruas, impõem uma realidade que, não
sendo documental, atribui poesia aos textos que fazem o cotidiano da cidade e que poderiam
ser vistos como funcionais ao extremo para habitar as letras literárias. Esses índices da
cidade, tal como foram recolhidos, tornam-se importantes recursos para a montagem da

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(não)representatividade que a obra acaba por mostrar. Neles, o poeta não imprime rimas,
apenas evidencia a poesia patente às suas existências, procedimento que faz uma inversão
importante para o significar das ruas e suas etnoescrituras, inclusive no sentido de confrontar
a própria literatura com suas estratégias de exclusão.

A presença da oralidade atravessa todo o texto, invadindo o espaço da escrita,


significando a cadência performatizada da fala, invocando a pulsão de corpos, sons,
movimentos, burburinhos, ecos, silêncios; narrares próprios da estilhaçada voz da cidade,
forjada no trânsito entre fronteiras. As frases interrompidas, as reticências frequentes, as
pausas, as onomatopeias, as repetições e o excesso de símbolos gráficos significam a
expressividade livre dos usuários da língua, a partir de significações sobrepostas, o que pode
ser observado em diversas passagens, como em “6. Mãe” (RUFFATO, 2013, p. 18),
“cuidado, cuidado, cuidado, cuidado, cuidado, cuidado”; o motor zunindo em-dentro do
ouvido (zuuuummmm)”; ou em “25. Pelo telefone” (RUFFATO, 2013, p. 47-48):

“Oi, aqui é a Luciana. Deixe seu recado após o sinal.”


O que você ganha com isso?, cadela!, o quê? (Pausa) O quê que você ganha
com o sofrimento dos outros?, hein? (Pausa) Ver um filho chorando... sem
entender... o pai... noites fora... A filha rebelde... a mãe (Voz esgarçada) O
pai... tem... outra... (Descontrolada) Desgraçada! Desgraçada! O quê que
você ganha com isso? Filha da puta! Filha da puta!

Trata-se se um texto que vibra convocando preenchimentos ritmados na presença de


elementos linguísticos voltados a suscitar um corpo leitor que reage por (des)identificações
performáticas. As repetições estilísticas, a pontuação, por vezes, incomum, os cortes e
breques, mostram uma linguagem para ser ouvida, mirada, sentida em suas minúcias
significantes. A obra dialoga também com as destinações midiáticas das sociedades
contemporâneas para as quais a visibilidade é conceito essencial. Trazendo às páginas
literárias parte dos sofisticados mecanismos de sedução próprios das mídias e suas
interferências na imagem e opinião públicas, Ruffato insere sua escrita no bojo de questões
urgentes e emergentes para tempos em que reinam as tecnologias da informação e
comunicação. Transformando “o olhar em argumento” (MAIA & CASTRO, 2006, p. 130),
como fazem os media, mas imprimindo padrões literários que fazem o seu texto se distanciar
de espetáculos sensacionalistas voltados a registrar marginalidades, o autor faz desfilar
identidades complexificadas por relações sociais, culturais, políticas, humanas, mostrando um
real cuja credibilidade se fragmenta em índices, discursos, imagens e imaginários
questionadores de certezas restritas.

Em “56. Slow motion”, há um movimento visual, próprio de câmeras que registram a


retomada de uma situação, seguindo a “trajetória descendente em rotação na diagonal” de

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uma lata semivazia de cerveja. O acontecimento retratado é o lance pontual de como se


tornam visíveis, uma para a outra, duas pessoas na multidão de um estádio, determinando a
vingança de “Marlon” e seus companheiros contra Pecê, “ladrãozinho” que havia assaltado a
borracharia de Marlon na Vila Guilherme (RUFFATO, 2013, p. 101). A recuperação da cena
diz de um efeito de filmagem aplicado a lances muito velozes e dificilmente visualizáveis a
olho nu; recurso muito usado no futebol e possibilitado a partir do uso de câmeras cuja
velocidade é maior que o normal, fazendo a exibição posterior acontecer em câmera lenta.

Em “13. Natureza-morta”, as imagens nos são dadas aos poucos, sem estardalhaço,
registrando acontecimentos desoladores para os membros de uma escola invadida, mas, de
alguma forma, triviais para a sociedade em geral. Escancarando o trágico da civilidade, as
cenas são exibidas, como se as lentes de uma câmera acompanhassem uma lição de
desesperança, expondo a perplexidade de quem apenas ousa balbuciar o horror da violência
dos subúrbios. Assim, somos levados a conhecer, pelo olhar das crianças e da
“tia” (professora), o resultado da invasão de arruaceiros viciados a uma instituição de ensino.
Percorrendo as dependências da escola, geográfica e simbolicamente, destruídas, podem ser
vistos “trabalhinhos rasgados, pincéis embebidos em fezes que riscaram abstrações nas
paredes brancas, pichações ininteligíveis, uma garrafa de Coca-Cola cheia de mijo, um
cachimbo improvisado de crack [...]” (RUFFATO, 2013, 29).

Em contraponto ao ângulo fechado que registra a violência nos cômodos da escola, o


ambiente circundante é retratado, no observar silencioso da professora, em perspectiva
horizontal ampla, marcando a impotência da educação frente à esmagadora estrutura físico-
humana daquele ponto da cidade, como uma denúncia cansada contra a crescente e mesma
urbanização desprovida de condições de vida mais equânimes: “até onde a vista alcança [...]
as escandalosas casas de tijolos à mostra, esqueletos de colunas, lajes por acabar, pipas
singrando o céu cinza, fedor de esgoto [...]” (RUFFATO, 2013, p. 29). Fracasso do progresso?
Ao final, restam “a solidão e o desespero”, nos diz o narrador (RUFFATO, 2013, 29).

Entrecruzando falas, opiniões, lembranças, com o auxílio de tipos diferenciados -


negrito, itálico, espaçamentos, cortes - moldam-se fragmentos que se atravessam, como são
atravessadas as muitas percepções acerca das cidades e seus moradores. A indicação de que
“precisamos reinventar uma civilização”, para além das posturas elitistas afeitas a fazer de
diferenças desigualdades, encontra ressonâncias no próprio texto de Ruffato (2013) e sua
linguagem híbrida. Ao menos para quem não observa as realidades do alto de um helicóptero,
mas integra o caótico das ruas, becos e avenidas, parece pertinente considerar que reinventar
uma civilização perpassa pela necessidade de uma linguagem reinventada, advinda dos cacos
e destroços das homogeneidades, das falas que complexificam os frágeis contornos da “razão
cínica” (SLOTERDIJK, 2012).

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A pontuação também busca aderência visual, feita para ser enxergada e significada,
muitas vezes, por transgressão das normas. O uso dos dois pontos, das vírgulas, das
interrogações faz a desautomação gramatical que conduz o entendimento do texto,
requerendo participação perspicaz do leitor. Os recursos linguísticos desfilam com valores
comunicativos diferenciados e, apresentando certa autonomia transgressora em relação a uma
esperada atuação coadjuvante, ditam ritmos, reordenam entendimentos, provocam questões, a
exemplo do uso dos parênteses, muitas vezes, chamados a protagonizar lugares subversivos,
como em “40. Onde estávamos a cem anos?”, abrindo e fechando ao contrário, “)o avô
materno [...] nasceu desse desencontro.(” (RUFFATO, 2013, p. 73). Ou como as
interrogações, em “21. Ele)”, que adensam os questionamentos, ressaltando a carga semântica
da enunciação:

e o dia?
é bonito o dia? e feio?
faz frio? faz calor?
¿e o vento embalou as nuvens no céu ou elas regaram
mansamente o asfalto?
¿um motoboy se esparramou na faixa de pedestres?
¿um executivo espancou um menino de rua com o laptop?
¿um cobrador impediu um assalto?
¿o mundo, o mundo acabou? (RUFFATO, 2013, p. 43).

Esse entrelaçar relacional, entrecortado por abismos, faz a singularidade performática


do romance, dobrando a linguagem de forma a escancarar realidades contemporâneas numa
arquitetura (extra)verbal incerta, vazada por não sentidos. O resultado é uma língua rasurada,
crítico-criativa e irônica, em suas malhas multimodais, inclusive, no sentido de questionar
determinantes patentes às redes geopolíticas e suas (in)comunicabilidades.

Não é demais dizer que a identidade (ou identidades) buscada nas linhas da escrita de
Ruffato trilha a perspectiva das diferenças marginalizadas, compondo um arquivo-mundo
que, nas palavras de Foucault (2011, p. 151), estabelece que “somos diferença, que nossa
razão é a diferença dos discursos, nossa história a diferença dos tempos, nosso eu, a diferença
das máscaras”, porquanto traz um povo que se mostra em suas falências, gritando uma outra
possibilidade de nação. Há um trágico (tempo-espaço) perpassado por ações devastadoras da
unidade, há uma mistura de raças, crenças, gêneros, filiações, sotaques, e a certeza de que não
há linguagem beletrista capaz de uniformizá-los, de que não há veios identitários capazes de
representá-los hegemonicamente.

Entre pluralidades, esvaziamentos, focalizações, sobreposições, excessos, o romance é


jogo de forças, trazendo, ao palco performático da literatura, seres-mundos codificados,

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tornados linguagem, feitos ficção moldada a partir da multiplicidade, do conflito, do


movimento, da dor, da solidão, tão presentes nessa estrutura gigantesca e esmagadoramente
opressora que pode ser a metrópole e seus (in)existentes projetos de futuro. A cidade, nessa
artesania, permanece esfinge, erguendo-se e dissipando-se na linguagem de “pedaços e
destroços” que a compreende e a faz enigma dado ao leitor (BLANCHOT, 2010a, p. 50).

A obra de Ruffato está notadamente situada no limiar de linguagens chamadas a


significar uma cidade extemporânea em sua atualidade inquestionável. Quando ergue uma
cidade de marginalizadas materialidades e subjetividades, privilegia vozes cotidianas que,
não fugindo à pena seletiva da sua literatura, dizem-se de lugares próprios, como se
(VAIHINGER, 2011) fossem elas mesmas a escrever suas vidas, como se fosse a própria
cidade a abrir-se ao mundo por intermédio das páginas do livro. As ficções narradas ou
reunidas na obra trazem essa propensão por teatralizar a provisoriedade que (a)enunciam.

A partir da bricolagem de pontos de vista e linguagens situadas no campo da ficção


literária, ainda que pareçam mostrar eventos inquestionavelmente reais, edifica-se uma
cidade que, de tão real, é como se não fosse ficção e, justamente por ser tão real, somente
pode ser percebida, encarada, suportada como se fosse ficção. O entrelugar real-ficcional
patente à obra traz esse jogo irônico pessimista de um como se voltado a desdobrar a cidade
que não é sendo. Por não ser a megalópole real, torna-se uma megalópole real possível entre
tantas que fazem o seu universo existencial.

Considerações finais

As tessituras narrativas das obras aqui em destaque potencializam uma poética do


fragmento voltada a marcar lugar no bojo das polêmicas do seu tempo, mirando pontos
complexos a serem jogados na face dos contemporâneos. Ó, longe de efetivar-se como uma
alienada forma de entender as guerras de poder realizadas em torno das linguagens,
identidades e diferenças, grita a inevitável guetização ideológica a que podem sucumbir os
grupos fechados em suas trincheiras. Assim como EEMC nos diz de indivíduos cujas
realizações da linguagem, da língua, e das identidades figuram estranhas sob a ótica do
hegemônico, permanecendo à margem dos referenciais idealizados, que os prende aos
espaços de exclusão. Ambas as obras ratificam que, a despeito de tudo o que foi construído
acerca das linguagens e suas potencialidades inventivas, dos saberes elucidativos erigidos em
torno das identidades/alteridades, dos estudos acerca de preconceitos e discriminações a
serem questionados e combatidos, continuamos ratificando, por meio dos símbolos colocados
a significar, nossas miopias acostumadas a dar à vida um centro redutor.

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Podemos situar o caráter performático das obras como eventos discursivos com
propensão por trazer a tradição do fragmento para o bojo das escuridões de uma presente
testemunha de todos os tempos e com o qual não é possível coincidir (AGAMBEM, 2013).
Trata-se de uma arte que não rejeita construções passadas, incorporando-as na
intempestividade de “um eterno retorno” (NIETZSCHE, 1999), cuja expressividade está
justamente na propensão por entrecruzar realidades distintas. É isso que, em última instância,
faz as margens limiares da literatura contemporânea, marcando, também, a poética do
fragmento. Sem projetismos salvadores para o futuro, sem nenhum consolo socioexistencial
ou indicação de fórmulas e modelos, o contemporâneo das obras abriga a multiplicidade de
tempos/espaços/conhecimentos que fazem confluir pontos dispersos integrantes de um
presente em eterno devir. A forma como os espaços fazem ressonância ao modo estilhaçado
com que a linguagem se edifica no interior dos livros, performatizando valores nômades,
extensivos aos lugares de fala, aos fluxos identitários, ao trânsito de saberes que apontam
tanto uma crítica à desumanização galopante, no cenário capitalista, quanto uma reflexão
acerca da necessidade dos sonhos, dos projetos, dos desejos, das pulsões que fazem o
humano.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinicius Nicastro


Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2013.
ANDRADE, Maria Luzia Oliveira. A fragmentação do texto literário: um artifício da
memória? In: Interdisciplinar. Vol. 4, n. 4, 2007. Disponível em http://200.17.141.110/
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09/2012.
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita - 1: a palavra plural. São Paulo: Escuta, 2010a.
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita - 3: a ausência de livro, o neutro o fragmentário.
São Paulo: Escuta, 2010b.
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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Práticas narrativas no tempo: pluralidades orais nas histórias do sertão


nordestino
Jackelina Pinheiro Meira Kern
Universidade de Coimbra
Jackelinapm@hotmail.com

O presente artigo discorre sobre as narrativas e histórias contadas ao longo do sertão


nordestino, mais precisamente em um fragmento da região conhecido como semiárido e a
construção de uma memória que se tornou regionalista e que permanece em busca da
compreensão do papel da língua portuguesa em suas mais variadas vertentes. Através de um
trabalho que teve como tema o estudo das casas de influência colonial, encontradas ao longo
do rio São Francisco, mais precisamente nas cidades de Juazeiro/BA, e Petrolina/PE, Brasil,
construídas entre o final do século XIX e início do século XX, pudemos perceber através das
narrativas e dos modos de apresentação diário, o abeiramento de um discurso reproduzido em
países como Portugal. A história do cotidiano dessas cidades foi contada através de
historiadores e memorialistas, muitas vezes perpassadas por informações extraídas do que
permaneceu na memória dos seus habitantes mais antigos, onde festas, folguedos, cantigas e
rememorações, fizeram-se informações que delinearam a trajetória das cidades e dos que lá
moram e moraram com as peculiaridades de cada família. Assim, sua cultura, de certo,
permite evidenciar um modo de vida com suas particularidades. Baseado em uma
metodologia qualitativa, de cunho bibliográfico e utilizando a técnica da história oral, através
das narrativas que permearam as construções e as ocupações dessas casas, que
inexoravelmente se encontram impregnadas das questões culturais da época, buscamos
identificar traços do pensamento local e suas peculiaridades em interposição à produção
literária de caráter regionalista, na tarefa de evidenciar suas convergências e, ou,
distanciamentos. A ideia que norteará este trabalho é a de justamente trabalhar no
microcosmo das mentalidades de um universo limitado e em vias de desparecimento.

Palavras-chave: história oral, memória, regionalismo, cultura, discursos.

Practicas narrativas en el tiempo: pluralidades orales en historias del sertão nordestino

El presente artículo discurre sobre las narrativas e historias contadas al longo del
sertão nordestino, más precisamente en un fragmento de la región conocido como semiárido
y la construcción de una memoria que se tornó regionalista y que permanece en busca de la
comprensión del papel de la lengua portuguesa en sus más variadas vertientes. A través de un
trabajo que tuvo como tema el estudio de las casas de influencia colonial, encontradas al
longo del rio São Francisco, más precisamente en las ciudades de Juazeiro/BA, y Petrolina/

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

PE, Brasil, construidas entre el final del siglo XIX y principio del siglo XX, podémonos
percibir a través de las narrativas y de los modos de presentación diario, el acercamiento de
un discurso reproducido en países como Portugal. La historia del cotidiano de esas ciudades
fue contada a través de historiadores y memorialistas, muchas veces repasadas por
informaciones extraídas de lo que permaneció en la memoria de sus habitantes más antiguos,
donde fiestas,” folguedos”, cantigas y rememoraciones que se hicieran informaciones que
delinearan la trayectoria de las ciudades y de los que ahí viven y vivieran con las
peculiaridades de cada familia. Así, su cultura, de cierto, permite evidenciar un modo de vida
con sus particularidades. Basado en una metodología cualitativa, de cuño bibliográfico y
utilizando la técnica de la historia oral, a través de las narrativas que permearan las
construcciones y las ocupaciones de esas casas, que inexorablemente se encuentran
impregnadas de las cuestiones culturales de la época, buscamos identificar trazos del
pensamiento local y sus peculiaridades en interposición a la producción literaria de carácter
regionalista, en la tarea de evidenciar sus convergencias y, o, distanciamientos. La idea que
norteará este trabajo es la de justamente trabajar en el microcosmo de las mentalidades de un
universo limitado y en vías de desaparecimiento.

Palabras llave: historia oral, memoria, regionalismo, cultura, discursos

Introdução

Região Nordeste do Brasil, berço da colonização portuguesa, guardiã de fortes


costumes, artes, crenças e hábitos, formada por nove Estados litorâneos, constitui o
aglomerado de maior herança portuguesa no Brasil. A língua, falada por todos os habitantes
do país, é sem dúvida o maior patrimônio português no mundo. O falar nordestino, exaltado
em inúmeras músicas, películas e também na literatura, faz da língua portuguesa pertencente
ao nordeste, bastante peculiar, em algumas localidades, podemos dizer que beira a um
dialeto.

A linguagem, muitas vezes considerada popular, rural ou regional, foi construída a


partir da oralidade do povo e persistiram tradicionalmente, tornando-se palavras hoje
presentes no meio literário e acadêmico.

A informalidade que representa uma realidade foi adaptada a novos hábitos


fonéticos, de indígenas e africanos, sofrendo pouca ou nenhuma influência de outros
imigrantes que não o português. As histórias vindas do além-mar, relatos orais, escrita e
literatura, perpetuaram na cultura brasileira subsidiando para a conservação deste patrimônio
cultural.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Discutiremos nesse artigo a linguagem simples encontrada pelo nordeste brasileiro,


português do sertanejo, muitas vezes lembrado nas obras de Patativa do Assaré, Luiz
Gonzaga, Ariano Suassuna e na literatura de cordel que acontece no dia a dia das cidades
interioranas. Procedemos com uma pesquisa qualitativa, de cunho bibliográfico, baseado na
história oral e o histórico de vida dos moradores de cidades do interior do Brasil, discutindo a
cultura do povo sertanejo, o seu imaginário, buscando valorizar a língua existente nessas
comunidades pesquisadas.

Ao longo da pesquisa para o desenvolvimento da tese denominada Cal, Barro &


Luz: memória e registro visual das casas do sertão da Bahia e Pernambuco, Brasil, séculos
XIX e XX, que tem como tema o uso e as representações das casas de influência colonial no
vale do rio São Francisco, produtos da presença da herança da cultura portuguesa, pudemos
perceber como a oralidade do cotidiano, extremamente rica, contribui para a construção dos
personagens literários, expresso no regionalismo que rompe fronteiras e destaca-se diante do
mundo.

A herança portuguesa no Nordeste do Brasil além da urbanística, principalmente no


estreito de suas ruas, com pequenas calçadas, quando aparecem, e fachadas margeando os
limites do terreno, o que não é difícil de ser reconhecido, chegou na bagagem do colonizador,
junto com o catolicismo, os folguedos e a língua. O português que já foi usado ao lado do
tupi (língua do litoral brasileiro, da família tupi-guarani), graças aos jesuítas, e, proibida pela
coroa (com a expulsão dos jesuítas), fixou-se definitivamente como a língua oficial. A língua
recebeu influência também dos idiomas africanos, principalmente do iorubá vindo da Nigéria,
e do quimbundo angolano.

Com o movimento modernista, rompeu-se os laços com algumas palavras expressas


na variedade brasileira da língua portuguesa. A professora Nely Carvalho96, explica que:

Quando nós fomos colonizados pelos portugueses, as duas primeiras


vertentes da língua, pode-se dizer, foram Pernambuco e Bahia, porque
ficavam mais perto do Velho Continente. Havia um porto em Recife, outro
em Salvador. Mas divididos por uma barreira natural, que era o Rio São
Francisco. Salvador se tornou a capital do Brasil. O Rio de Janeiro teve o
problema da invasão francesa logo no começo e São Paulo foi colonizado
pelos jesuítas, que não levaram a língua portuguesa - eles antes levaram o
latim e procuraram aprender o tupi-guarani.

Assim, a história de um lugar está relacionada diretamente com as pessoas desse


lugar, com as coisas que estão inseridas, criadas, inventadas em uma tradição ou

96 Professora no Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco, (UFPE).


https://falabonito.wordpress.com/2006/12/08/lingua-do-nordeste/

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contemporâneas

transportadas de outro lugar pelos nossos antepassados, portugueses, indígenas ou africanos,


como uma maneira de lazer, de diversão, de tecnologia e de criatividade da época.

A comunicação oral, expressa a identidade de um individuo, retratando também a


cultura da região, eternizando na escrita, garantindo sua permanência por várias gerações. Foi
no universo da pesquisa da tese intitulada Cal, Barro & Luz: Memória e Registro Visual das
Casas do Sertão da Bahia e Pernambuco, Brasil, séculos XIX e XX, que percebemos a
linguagem de outro Brasil, um Brasil que fala um português com “sotaque” e com palavras
diferentes de um país litorâneo ou mesmo do português acadêmico.

Cidades e diversidades

A região estudada é localizada entre os Estados de Pernambuco e Bahia,


denominada de semiárido, no sertão nordestino. Tem como vegetação a caatinga, único
bioma exclusivamente brasileiro, ocupa cerca de 10% do território e engloba os Estados do
Piauí, Ceará, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Bahia, Rio Grande do Norte, Maranhão,
Sergipe, (toda a região Nordeste) e o norte de Minas Gerais (região Sudeste). Juazeiro da
Bahia está localizado do lado direito do rio São Francisco e Petrolina em Pernambuco do lado
esquerdo.

O rio São Francisco é chamado rio da Unidade Nacional, quarto maior rio da
América do Sul e dos mais importantes cursos de água do Brasil, percorre 05 Estados e 2.830
km do território brasileiro, popularmente chamado de Velho Chico, apresenta uma das mais
belas paisagens naturais do Brasil. Ao longo de seu curso comercializavam-se vários produtos
que eram conduzidos por barcos para as diversas cidades. Estes barcos, chamados “gaiolas”,
asseguravam as ligações entre os assentamentos localizados nas margens do rio e o oceano e
levando a cultura de um lado ao outro.

Em pesquisa anterior97 , observamos que nessas cidades o desenvolvimento dos


povoados e as características culturais assumiram condições análogas às encontradas em
algumas regiões de Portugal, ainda que em contexto diferente. Os portugueses sempre
buscaram propagar suas tradições e suas experiências através das artes, folclores,
religiosidades. Não foi diferente em nenhum lugar por onde passaram.

Mas a cidade desenvolveu-se de forma cabocla, mestiça, nas margens do rio São
Francisco, mesclando estilos e adquirindo sua própria matriz. Em todos os tempos, esses
registros sobreviveram e conservaram assim sua história.

97Dissertação de Mestrado denominada Cal, Barro e Luz: Memória e Identidade Cultural de Moradores das
Casas com Desenhos nas Fachadas nas Cidades de Juazeiro/BA e Petrolina/PE

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Ao adentrar as casas dos entrevistados, percebemos que a linguagem do lado


pernambucano não era tão parecida como o português do lado baiano e veio então, a
curiosidade para aprofundar a pesquisa nesse contexto.

Buscamos nas palavras da professora Nelly Carvalho98 mais uma vez, que diz:

Pernambuco mandava do lado esquerdo do São Francisco e a Bahia, do


direito. Pernambuco, então, levou a língua para todo o Nordeste até o rio
Parnaíba, que era outra barreira natural. Com o tempo tivemos outras
mudanças (que influenciaram o falar local): vieram os holandeses; nós
éramos um porto até meados do século XX bastante movimento; e o São
Francisco continuou uma barreira natural até construírem pontes.
A gente (de Pernambuco) teve uma história diferenciada da Bahia e do resto
do Brasil. Durante os dois primeiros séculos de colonização, a Bahia e
Pernambuco foram os dois maiores centros. Tanto que o movimento literário
Barroco foi na Bahia e Pernambuco. Depois de certo tempo é que surgiu no
século XVIII, quando começou a exploração das minas de ouro, e deslocou-
se o centro do interesse para Minas Gerais, quando surgiu o Arcadismo.
Depois disso, se (o interesse) desloca para o Rio de Janeiro, porque em 1808
a família real vem para o Brasil trazendo 15 mil cortesãos que se instalaram
ali. O Rio de Janeiro passou a ser o modelo da língua para todo o Brasil - e
ainda hoje ostenta esse título que foi reconhecido em dois congressos de
língua falada. E São Paulo vem depois, com 1922 (a Semana de Arte
Moderna). Nós deixamos de ser o foco da língua portuguesa.

Nesse sentido, procuramos compreender a língua através do tempo, do espaço e


também do modo que foi explorada nesse contexto. Na região do São Francisco, a história
contada através dos memorialistas mostra que causos e folclores narram lendas que povoaram
e povoam o imaginário popular. O modo de contar as histórias do cotidiano expressam traços
que identificam os indivíduos fortalecendo o regionalismo e uma identidade.

Segundo Hall (2003),

Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é
interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser
ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes,
descrito como constituindo uma mudança de uma política de identidade (de
classe) para uma política de diferença. (p. 21).

Não é de maneira simplista que se define uma identidade. Mas pode ser com
simplicidade que criam raízes e transformam em tradição. As diferenças e as diversidades
fazem parte de uma construção que são heranças das tradições guardadas na memória

98 Em entrevista para a revista Universia Brasil em 16 de setembro de 2005, na matéria, O falar do Nordeste.
Também na mídia eletrônica. http://noticias.universia.com.br/ciencia-tecnologia/noticia/2005/09/16/462323/
falar-do-nordeste.html

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trazidos de gerações, como é o caso dos repentes e cordéis cantados no sertão nordestino.
Nesse sentido encontramos em algumas casas pesquisadas cantadores de repentes, cordelistas
e contadores de histórias que nos remete a autores famosos do Nordeste brasileiro como
Patativa do Assaré, Luís Gonzaga e Ariano Suassuna quando afirmando um português dito
popular, fazendo referência ao apelo típico do povo nordestino e as contradições de
sofrimento e alegria de viver.

Uma narrativa popular

Os moradores das duas cidades, Juazeiro na Bahia e Petrolina em Pernambuco, são


conhecedores e admiradores dos ditos populares, em comum, frisando o gosto pelo repente,
cordel e lendas. Artistas como Patativa, Gonzaga e Suassuna, este último que carinhosamente
visitava constantemente a região, são lembrados em músicas, versos e disputados em peleja99.
Conhecido como o Rei do baião100, Luiz Gonzaga, nascido na fazenda Caiçara, no município
de Exú, sertão pernambucano, trazia nas suas canções as manifestações e sentimentos de um
povo que até então era esquecido pelo poder público brasileiro.

Ferreira (2010) aponta que:

Como todo grande artista, Luiz Gonzaga foi capaz de tomar uma criação
coletiva e torná-la universal: de absorver toda a vivência cultural de centenas
de milhares de pessoas e torná-la objeto de admiração e de afeto para
dezenas de milhões (2010, p. 16).

Gonzaga apresentou um novo Nordeste ao Brasil e também um novo português,


onde o falar nordestino é preservado na escrita, muitas vezes da mesma forma como é
pronunciado, o que gera conflitos em outras regiões por ser considerada uma linguagem
atrasada, incorreta e que foge ao padrão.

Na letra ABC do Sertão, Gonzaga descreve como as palavras foram ensinadas desde
o princípio no interior do Nordeste.

Lá no meu sertão pros caboclo lê


Têm que aprender um outro ABC
O jota é ji, o éle é lê
O ésse é si, mas o érre
Tem nome de rê

99 Luta ou batalha nos cantos de um repente.

100Gênero Musical tocado no Nordeste, para Cascudo (2010), o baião tem ainda raízes no fado, fandango por -
tuguês e na batida modal da viola decantadores e repentistas.

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contemporâneas

O jota é ji, o éle é lê


O ésse é si, mas o érre
Tem nome de rê

Até o ypsilon lá é pissilone


O eme é mê, O ene é nê
O efe é fê, o gê chama-se guê
Na escola é engraçado ouvir-se tanto “ê"

A, bê, cê, dê,


Fê, guê, lê, mê,
Nê, pê, quê, rê,
Tê, vê e zê

Lá no meu sertão pros caboclo lê


Têm que aprender outro ABC
O jota é ji, o éle é lê
O ésse é si, mas o érre
Tem nome de rê

O jota é ji, o éle é lê


O ésse é si, mas o érre
Tem nome de rê

Até o ypsilon lá é pissilone


O eme é mê, O ene é nê
O efe é fê, o gê chama-se guê
Na escola é engraçado ouvir-se tanto "ê"
A, bê, cê, dê,
Fê, guê, lê, mê,
Nê, pê, quê, rê,
Tê, vê e zê

A, bê, cê, dê,


Fê, guê, lê, mê,
Nê, pê, quê, rê,
Tê, vê e zê

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Atenção que eu vou ensinar o ABC


A, bê, cê, dê, e
Fê, guê, agâ, i, ji,
ka, lê, mê, nê, o,
pê, quê, rê, ci
Tê, u, vê, xis, pissilone e zê

Conversando com alguns entrevistados, recordamos exatamente de como as escolas


ensinavam as chamadas cartilhas101 com a leitura do mê, fê, nê e Lê, diferente do eme, efe,
ene, ele, ensinados no sul e sudeste do país. Gonzaga expressou o português do seu povo em
várias canções, despertando para outros problemas do Nordeste e abrindo um leque para as
tradições e o encontro com a natureza como em Estrada do Canidé.

Ai, ai, que bom


Que bom, que bom que é
Uma estrada e uma cabocla
Cum a gente andando a pé
Ai, ai, que bom
Que bom, que bom que é
Uma estrada e a lua branca
No sertão de Canindé
Artomove lá nem sabe se é home ou se é muié
Quem é rico anda em burrico
Quem é pobre anda a pé
Mas o pobre vê nas estrada
O orvaio beijando as flô
Vê de perto o galo campina
Que quando canta muda de cor
Vai moiando os pés no riacho
Que água fresca, nosso Senhor
Vai oiando coisa a grané
Coisas qui, pra mode vê
O cristão tem que andá a pé

A temática descrita nas canções de Gonzaga revelou ao Brasil dos letrados o


português falado em uma parte do Nordeste e que durante 500 anos, foi escrito e comentado
de outra maneira, mas não deixando de ser a mesma língua portuguesa. Nesse sentido, o

101 Livrinho em que se aprende a ler.

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universo oral falado, no curso da história tem um papel importante no processo de


comunicação.

Segundo ONG:

[...] a linguagem é tão esmagadoramente oral que, de todas as milhares de


línguas – talvez dezenas de milhares – faladas no curso da história humana,
somente cerca de 106 estiveram submetidas à escrita num grau suficiente
para produzir literatura – e a maioria jamais foi escrita [...] Ainda hoje,
centenas de línguas ativas nunca são escritas: ninguém criou um modo
eficaz de escrevê-las. A oralidade básica da linguagem é constante. (1998, p.
15)

Por certo, a oralidade precede a escrita contribuindo para influenciar a qualidade


literária, no caso do Nordeste, fruto de uma tradição dos antepassados, como o cordel,
importante instrumento da identidade nordestina, que resultou em largas produções populares
que expressam a linguagem de um povo. Destacamos a pessoa de Patativa do Assaré,
batizado como Antonio Gonçalves da Silva, nasceu em Assaré, Ceará, Nordeste brasileiro.
Foi alfabetizado aos 12 anos e frequentou nessa época a escola por somente alguns meses. A
obra de Patativa é concebida pela oralidade em rádios da região do Crato no Ceará, o diálogo
é a peça fundamental, movimentam-se as palavras, são cenários no imaginário popular.

ARTE MATUTA
Eu nasci ouvindo os cantos
das aves de minha serra
e vendo os belos encantos
que a mata bonita encerra
foi ali que eu fui crescendo
fui vendo e fui aprendendo
no livro da natureza
onde Deus é mais visível
o coração mais sensível
e a vida tem mais pureza.
Sem poder fazer escolhas
de livro artificial
estudei nas lindas folhas
do meu livro natural
e, assim, longe da cidade
lendo nessa faculdade
que tem todos os sinais
com esses estudos meus

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contemporâneas

aprendi amar a Deus


na vida dos animais.
Quando canta o sabiá
Sem nunca ter tido estudo
eu vejo que Deus está
por dentro daquilo tudo
aquele pássaro amado
no seu gorgeio sagrado
nunca uma nota falhou
na sua canção amena
só canta o que Deus ordena
só diz o que Deus mandou.

A performance dos versos de Patativa, é essencialmente vocal, onde os atores


ganham vida e nos trás um repertório que revela significativamente o seu prazer em fazer um
jogral com os participantes nas suas intervenções. A realidade que associava os versos aos
acontecimentos do cotidiano trazia quadros menmônicos, vividos e ambientados naquele
universo.

“Meu sertão das vaquejadas


Das festas de apartação
Das alegres luaradas
Das debulhas de feijão
Das danças de São Gonçalo
Das corridas de cavalo
Das caçadas de tatu
Onde o caboclo desperta
Conhecendo a hora certa
Pelo canto do nambu”.
O retrato do meu sertão (PATATIVA, 2004, 233)

O poeta Patativa sempre cantou a poesia evocando a influência lusitana nos cordéis,
convivendo de forma harmoniosa com a escrita não reduzindo a maneira da sua transposição.
Carvalho declara que “Sua poesia é, continua sendo, e será oral” (2002, p. 3). É como se
sentissem o desejo de serem falados, lidos e cantados, unidos à performance, que como diz
Patativa, o poema é todo o corpo, é apresentar a verdade que enuncia. Os versos que possuem
variações nas palavras, não diminuem a grandeza da obra, percebemos a simplicidade da
comunicação, com o respeito que tanto a língua, quanto o povo merecem.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Zumthor (1993) nos fala de três tipos de oralidade, relacionadas a três situações de
cultura:
Uma primária e imediata, não comporta nenhum contato com a escritura.
(...) Outros dois tipos de oralidade cujo traço comum é coexistirem com a
escritura, no seio de um grupo social. Denominei-os respectivamente
oralidade mista, quando a influência do escrito permanece externa, parcial e
atrasada; e oralidade segunda, quando se recompõe com base na escritura
num meio onde esta tende a esgotar os valores da voz no uso e no
imaginário (p. 18).

Patativa coloca o sua obra como se o pano de fundo fosse a voz, o escrito não sufoca
a oralidade, convive, dialoga com o ouvinte/leitor. São formatados como se fossem um apelo
em forma de versos, apelos estendidos ao seu povo, que constroem uma teia de significados e
ganhando uma forte identidade oral, apesar de ser considerada uma literatura dita “menor”.

Outro grande defensor da cultura nordestina foi o escritor Ariano Suassuna, nascido
na cidade de João Pessoa, Estado da Paraíba, autor das obras Auto da Compadecida e O
Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Ariano volta a sua obra
como porta voz de uma coletividade, identificando as diferenças, buscando também nas
origens tradicionais ibéricas do Nordeste e reconhecendo na sua obra, personagens do Brasil
real, como os famintos, despossuídos, analfabetos e semianalfabetos, os que são ou foram
marginalizados.

Uma história contada torna-se domínio público. Causos, contos e lendas do sertão,
muitas vezes preenchidos de metáforas, amplia o universo no imaginário popular, recriando
elementos da cultura da identidade de cada individuo. Suassuna foi o criador de um
movimento denominado Armorial, um projeto que congregou músicos, pintores, poetas,
ceramistas, dramaturgos, coreógrafos, recriando em poética a maneira de ver a arte
industrializada, a partir das fontes populares rurais nordestinas.

Baseado nos heróis anônimos do interior do nordeste brasileiro, escrito de forma


medieval, as histórias criadas pelo escritor perpassam pelas cidades, famílias, personagens da
vida real que conheceu durante a sua trajetória. A seca que sempre marcou o nordeste, as
mazelas, a opressão e o descaso do poder público com o povo nordestino, o coronelismo, a
religiosidade e a fé, bem como a sua alegria e astúcia diante de tão grandes desafios para
sobreviver.

Entretanto, é importante destacar que o autor define diálogos antagônicos,


basicamente teatrais, com enfoque regionalista, de composição simplista, que transmite
reflexões para o público, reproduzindo a ideia de que a cultura Nordestina se constitui como

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

expressão de uma cultura nacional, já que acredita ser esta região do país o palco onde se
opera a convergência das três raças.

Conclusão

Dentro de uma diversidade no perfil identitário do povo nordestino, preservar a


história e memória por meio da tradição oral, é dar continuidade a divulgação de um
português desconhecido no resto do mundo, e quiçá, do próprio povo brasileiro, dada as
dimensões continentais de nosso país e as gritantes diferenças regionais.

Através da oralidade a linguagem que constitui a nossa história, ganha outra


dimensão e sotaque em outras regiões e diferenciam-se de formas linguísticas habituais. O
português falado no nordeste brasileiro não é formalmente distante dos demais falados em
outras regiões, mas é sim, diferente naquilo que mais o destaca, é uma fala que vem do
sentimento regional, do cotidiano, da vida prática e simples, onde o que mais importa é o
saber definir algo a partir de sua utilidade ou peculiaridade e não de sua definição acadêmica.

Hoje o preconceito linguístico com os sotaques tem perdido espaço por ser
considerado discriminatório, tornando-se mais brando que em tempos passados, mas no meio
acadêmico, lugar que abraça uma infinita diversidade cultural, ainda demanda muito debate,
uma vez que são em setores populares que a Universidade mais dialoga com as pesquisas.

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Quando a voz local ecoa em outras paragens: diálogos entre Jorge Amado e
Ariano Suassuna

Prof. Dr. João Evangelista do Nascimento Neto


Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
E-mail: jeneto@uneb.br

Resumo: Jorge Amado e Ariano Suassuna, com as obras Tenda dos Milagres e Auto da
Compadecida, conseguem suscitar a discussão acerca da utilidade da ficção e da contribuição
que essa pode trazer, tocando em pontos cruciais da vida social. Tais obras, ao referirem-se a
uma região subalternizada economicamente, o Nordeste, optam por tornar audíveis as vozes
de figuras relegadas ao esquecimento pelo poder constituído oficialmente. Propositadamente,
elevam essa região a uma discussão maior: quem é o Brasil e qual a identidade deste povo
que o forma, voltando a literatura para a problemática da identidade nacional. Desse modo,
esta análise visibiliza uma cultura brasileira forjada a partir dos caracteres negro-mestiços, na
obra amadiana, e da cultura popular sertaneja, no texto suassuniano, a fim de tornar
perceptível a defesa dos autores por uma multiplicidade de estilos, de modos de vida, de
capacidade de pensar e agir. Eis aí a beleza da formação do caráter identitário nacional: do
heterogêneo eflui e subsiste a existência de uma nação, o Brasil. Tal discussão tem, como

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contemporâneas

pressupostos teóricos, os estudos de Bakhtin (1993), Duarte (1997), Mendes (2008), Souza Jr.
(2003), dentre outros.

Palavras-chave: Identidade; Nordeste; Negritude; Sertanejo; Brasil.

1. UM ENCONTRO LITERÁRIO ENTRE AMADO E SUASSUNA

Há, no imaginário literário, um espaço mítico reservado aos escritores. Chamado de


Parnaso ou a Arcádia, esse céu literário, mesmo em face de todas as teorias contemporâneas
da morte do autor, como a de Foucault, ainda permanece na fantasia de leitores e é
alimentado por muitos artífices das letras.

Mas se há um espaço destinado aos mestres da inspiração e lutadores da palavra,


certamente, este não é um lugar de unanimidades. Pelo contrário, creio, veementemente,
numa insurreição de certos escritores em ocuparem tal espaço. Em contrapartida, optam por
outra habitação, a princípio, menos atraente aos olhos, mas muito mais livre das amarras
teóricas.

É desse modo que vejo a entrada de Jorge Amado e de Ariano Suassuna no espaço
mítico do cômico, na casa da pilhéria, a instância do riso e do farsesco, numa tentativa clara
de negar-se ao formalmente estabelecido, à sisudez da escrita e aos dogmas literários que,
muitas vezes, matam a palavra em vez de libertá-la de seu uso cotidiano: Segundo Lélia
Parreira Duarte, o riso é a “[...] defesa contra a morte por parte do homem consciente das
limitações da vida e da fragilidade do corpo [...]” (1997, p. 52).

Nessa casa, Suassuna e Amado se encontram e dividem os mesmos recintos.


Transitam pelos mesmos corredores, sentam-se no mesmo sofá, dialogam muitas vezes.

Imbuídos de um projeto identitário nacional, os dois autores mergulharam na


religiosidade a fim de visibilizarem traços de uma nação que ainda procura por suas origens,
que caminha em busca do rosto para seu registro geral (RG), e ainda busca resolver, em
definitivo, os problemas da paternidade de sua certidão de nascimento.

Em um país onde só se conhece a mãe, a terra onde nasceu, e em que há muitos


reclamando a paternidade, Amado e Suassuna optam por uma guarda compartilhada entre os
pais, na defesa de uma família que se formou e firmou-se por diversas inserções sexuais e
ideológicas, se é que é possível separar esses dois elementos. Assim, os escritores, com as
obras Tenda dos Milagres e Auto da Compadecida, conseguem trazer à baila a discussão
acerca da utilidade da ficção e da contribuição que essa pode gerar na sociedade, tocando em
pontos cruciais da vida social.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Tais obras, ao referir-se a uma região subalternizada economicamente, o Nordeste,


optam por tornar perceptíveis as vozes de figuras relegadas ao esquecimento pelo poder
constituído e cujo pensamento segregador fora disseminado, gerando uma ideia coletiva de
superioridade de uma religião sobre a outra. Propositadamente, elevam essa região a uma
discussão maior: quem é o Brasil, para, em seguida, privilegiar qual a identidade deste povo
que o forma.

A partir da explicitação de quem somos enquanto brasileiros, o Nordeste é o local


escolhido para simbolizar o macrocosmo que é o país, que ainda busca por sua identidade, em
face de diversas possibilidades que se apresentam.

Identidade cultural não é um tema novo e entre o final do século XX e a primeira


década do XXI, tornou-se a agenda do dia na área de Humanas. Stuart Hall (2005), Homi
Bhabha (1998), Zilá Bernd (1992), só para citar alguns estudiosos, acercaram-se dessa
matéria nos âmbitos históricos, sociológicos e da teoria literária. Mas à literatura, esse tema é
caro desde que ela existe. A discussão acerca de quem é o ser humano sempre povoou a voz
dos contadores de causos e as letras grafadas do papel dos detentores da escrita. Também o
fizeram, Jorge Amado e Ariano Suassuna, mas por meio da intersecção entre o oral e o
escrito, sorvendo a cultura popular das vielas e ladeiras do Centro Histórico de Salvador, bem
como das picadas sertanejas de Taperoá, no sertão da Paraíba.

E aqui, a religião retorna à pauta central das minhas elucubrações. Tanto o autor
paraibano quanto o nascido na Bahia optam por recriar traços identitários nacionais através
de duas manifestações místicas nascidas no país: o candomblé, criado pelo encontro dos
negros escravizados advindos de diferentes regiões do continente africano em contato com as
religiões indígenas e portuguesa; e o catolicismo popular, gerado pelo movimento contínuo
de descaracterização do catolicismo tradicional e consequente recaracterização de uma
religião já inserida também de elementos negros e indígenas.

No entanto, as duas religiosidades, tratadas por Amado e Suassuna, são vistas sob uma
ótica menos severa, e cuja austeridade pode ser comprovada muito mais por meio de um
compromisso de fé de seus fiéis do que da seriedade de semblantes no trato com o divino. Em
ambos, a religião habita o altar do riso, reconhece-se no sacerdócio da alegria e é
materializada na verificação da pilhéria, do escárnio e da ironia:

O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco,


destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significação incondicional
e intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana,
que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas
possibilidades. (BAKHTIN, 1993, p. 43).

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contemporâneas

A carnavalização, a sexualidade exposta, a religiosidade popular, o uso de piadas, a


visibilidade do chiste e do riso dele recorrente: todas essas são matérias recorrentes dos
autores.

2. JORGE AMADO UTILIZA-SE DO CANDOMBLÉ PARA ASSINALAR UMA


NOVA ORDEM NA BAHIA, MARCADA PELO CONTRASTE ENTE O
POPULAR E O ERUDITO, ENTRE O ACADEMICISMO E O SENSO COMUM.

Pedro Archanjo, personagem central do livro Tenda dos Milagres, concentra os


embates sociológicos com a ciência e utiliza-se dela mesma para refutá-la, artificio usado
para tornar audível a voz emudecida do nordestino diante da comunidade letrada. Na verdade,
defende a inserção do mulato como elemento unificador da sociedade brasileira, resultado de
séculos de miscigenação. Sua defesa não é em prol da supremacia negra, porém da aceitação
de que não há mais uma cultura brasileira negra, branca ou indígena, mas mestiça.

O bedel da Escola de Medicina dispõe da sabedoria popular como ponto de debate


para a defesa da raça mestiça, brasileira. Essa cultura baseada não somente nos princípios e
costumes trazidos pelos escravizados, mas pela miscigenação de raças e culturas. Mas cultura
denota também uma forma de poder, por isso ela está no cerne das discussões. Para os
puristas, encarnados como os acadêmicos da Escola de Medicina, é necessário contestar as
manifestações populares, pois essas significam um desvio à norma, ao bem comum e aos
costumes.

A miscigenação é conceituada pelas teorias sociológicas do início do século XX como


uma liberdade perniciosa: de amar e dar-se à luxúria, de errar mesmo na tentativa de acertar,
de arremeter-se em busca da felicidade sem culpa. Em detrimento do vocábulo miscigenação,
Vilson Caetano Júnior prefere utilizar o termo ‘dissimulação’, no lugar de ‘sincretismo’, já
que, para ele

Do ponto de vista conservador da igreja católica, o sincretismo é


compreendido como algo pejorativo, negativo e denunciador da falta de
legitimidade e originalidade religiosa. Algo que deve ser contraposto às
experiências autênticas de fé, como o Cristianismo. (SOUZA JR., 2003, p.
45).

A mestiçagem é, assim, combatida, visto que aceitá-la é concordar com a igualdade


étnica, é também aceitar a permissividade sexual destes indivíduos mulatos, contrariando os
próprios preceitos da Igreja:

Nunca cheguei a saber, por exemplo, se a negra Rosa de Oxalá foi ou não a
mesma mulata Risoleta descendente de malês, ou a tal de Dorotéia do pacto

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contemporâneas

com o diabo. Houve quem a personificasse em Rosenda Batista dos Reis,


vinde de Muritiba, enquanto outros atribuíam a narrativa à formosa Sabina
dos Anjos, “de todos os anjos o mais belo”, no galanteio de mestre Archanjo
[...]
Um dia fora a riquíssima Princesa do Recôncavo em pompa e luxo. Dona de
plantações de cana, de engenhos de açúcar, de escravos, de sobrados nas
cidades de Santo Amaro, Cachoeira e Salvador. Por ela suspiraram os galãs
da corte e em duelo um oficial feriu de morte o noivo da catita, bacharel em
direito. Depois, no encalço de seus favores, arruinaram-se banqueiros e
barões. Teve vida acidentada, muitos amores, palmilhou o mundo; títulos,
cargos e fortunas aos seus pés. Nunca se deu por dinheiro e os que, para tê-
la, gastaram loucamente em jóias, palacetes, carruagens, só a tiveram
quando conseguiram lhe acender no peito a chama do desejo ou inspirar-lhe
ao menos breve inclinação; amorosa insaciável era de capricho fácil e
coração volúvel (AMADO, 1969, p. 13; 167).

A casa de axé, em Amado, é o espaço da alegria e da resistência. É o local onde


Archanjo e os demais propagadores da fé pobre-negro-mestiça encontram-se para revitalizar
sua memória e suas forças. Há, no terreiro, um exercício contínuo de autoestima que
contrasta com o discurso oficial difundido nas ruas e nos centros do conhecimento.

O candomblé, em Tenda dos milagres, insurge-se como a religião dos pobres e


rejeitados socialmente; ascende, não muito tempo depois, para a marca identitária mais
relevante de uma grande parcela da população, certamente, a maior dela, a que inclui negros,
afrodescendentes, cafuzos, mamelucos e brancos pobres. Pelas mães e pais de santo, esses
alijados das benesses sociais conhecem a história de seus antepassados, descobrem sua
genealogia e compartilham respeito, amor, solidariedade:

A voz do pai de santo Nèzinho se ergue no canto fúnebre, em língua


iurubá:
“Axerê, axexê
Omorode.”
O coro repete, as vozes crescem na cantiga de adeus:
“Axexê, axexê”.
(AMADO, 1969, p. 46).

No terreiro, os adeptos do axé são iniciados na música, na culinária, nas histórias, nas
relações hierárquicas. Enfim, é-lhes dado todo um arcabouço cultural para que seja repassado
à família e, posteriormente, às demais pessoas do convívio social.

Mas o terreiro também é o espaço da brincadeira e do gracejo. Aqui, tais vocábulos


não possuem caracteres pejorativos. Brincadeira significa folgança, festa familiar e gracejo é

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contemporâneas

ato inofensivo de rir-se de algo ou alguém. E a dança une os dois elementos. Ao sambar,
Archanjo e seus semelhantes expurgam seus sofrimentos, ao mesmo tempo em que evocam a
proteção dos Orixás para suas vidas. A dança ainda possui uma função libertadora do corpo,
quando a sensualidade coexiste com o divino sem culpa e sem cobrança, num jogo rítmico,
que sintetiza a nova identidade brasileira defendida por Jorge Amado, que, vê surgir, o
movimento antagônico, vindo da base da pirâmide social para o topo, enegrecendo o país
culturalmente.

3. ARIANO SUASSUNA, POR MEIO DO CATOLICISMO POPULAR, DEFENDE


UM CONSERTO QUE VIABILIZE UMA SOCIEDADE ETICAMENTE JUSTA,
COM BASE NUMA CULTURA QUE OPORTUNIZE AS MANIFESTAÇÕES
REGIONAIS

O Auto da Compadecida, de Suassuna, é uma rapsódia moderna. Encerra uma série de


pequenos acontecimentos que, de tão forte carga de lirismo e ao mesmo tempo teor epopeico,
são em seus diversos atos, diversos cantos de um heroísmo diferente. Cada ato não se baseia
em feitos extraordinários, mas na incrível capacidade de o sertanejo sobreviver e resistir
frente às decepções e agruras.

Cada ato burlesco do Auto é também um canto que exprime a fortaleza do nordestino.
Esse brasileiro, embora seja homem e por isso mesmo suscetível a falhas, muitas vezes,
reveste-se de herói e obtém forças para burlar a fome, a miséria, as desigualdades sociais, o
descaso do governo.

A religiosidade exacerbada também faz parte da cultura popular no Auto, quando


todos os fatos são justificados pela religião cristã e as esperanças são renovadas
constantemente pela fé. A crença que João Grilo atribui às artimanhas que cria, reflete uma
forma de crer que possui a proteção divina da Compadecida. Através dessa convicção que
possui, é salvo e recebe uma nova oportunidade dada por Emanuel (Cristo) de voltar à vida e
à companhia de seu amigo inseparável. É uma oportunidade única de ressurreição, retorno à
vida terrena e demonstração de mudança.

Ariano Suassuna consegue, através do Juízo Final, unir a ideologia católica com a
crítica social, tudo isso através do folclore nordestino, abusando de antíteses como morte
versus vida, bem versus mal, trevas versus luz. Para ele, a religião é a tábua de salvação,
quando todos os instrumentos terrenos falham, mas não uma religião que privilegie a dor,
contudo a alegria, o cômico. O catolicismo do Auto propicia que o homem zombe do
Encourado, ria da morte e sobrepuje a Deus através da dialética da sobrevivência.

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Nesse processo de reencarnação, Grilo, que aprendera a driblar a fome, a miséria e a


morte, diversas vezes, logra a Compadecida e o próprio Emanuel com a única arma de que
dispõe: seu discurso. O saber que utiliza? O conhecimento do povo, invocado, inclusive, para
chamar a advogada de defesa, a mãe do Cristo, ao recitar uma quadra popular:

Manuel: Com quem você vai se pegar, João? Com algum santo?
João Grilo: O senhor não repare não, mas de besta eu só tenho a cara.
Meu trunfo é maior do que qualquer santo.
[...]
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,
A braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada,
A braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio,
Mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,
Só me falta ser mulher.
[...]
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!
(SUASSUNA, 1957, p. 165; 168-170).

É pela palavra que o Amarelo convence as divindades a retornar a Taperoá, livrando-


se do inferno e do purgatório. É dominando o verbum e utilizando-o para o convencimento da
plateia, que transforma seus juízes em jurados, induzindo-os a emitir o veredito que melhor
lhe apraz. Desse modo, o pseudodiscurso que lhe imputa culpabilidade é somente uma
retórica bem arquitetada para sensibilizar o tribunal divino.

Na entrada do céu, no entrelugar que é a sala de julgamento, João Grilo está diante de
duas possibilidades acima citadas: perecer junto às hostes infernais ou expurgar-se por um
tempo ainda a ser determinado. O céu propriamente dito foi-lhe descartado.
Ora, se tais locais tem origem mítica, o malandro popular parece ter conhecido sua
representação terrena. Logo, tal experiência credencia-o a reviver, rompendo com o dogma
cristão da morte única e subvertendo as relações de poder. Nem sempre vence aquele que
possui maior força, mas o que tem maior capacidade de convencimento.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Grilo consegue manter um humor que lhe é peculiar. Não basta enganar, mas tem que
fazê-lo de modo jocoso. Adquirir comida e dinheiro não serve se não expuser os poderosos à
execração pública. Grilo quer rir deles e dá autoridade para a plateia o fazê-lo também. Os
dois, Chicó e o público são cúmplices em todas as artimanhas do pícaro. Calados ou apenas
rindo dos feitos do Amarelo, ajudam-no, encorajando e concordando com os atos realizados.

João Grilo, então, protagoniza uma série de denúncias, o que inclui injustiça social,
falta de ação governamental e discriminação racial. Embora apenas apareça a discussão no
terceiro ato, a questão racial é focalizada na peça suassuniana ao desvelar o preconceito de
todos os personagens que estão diante do julgamento diante do Cristo negro:

João Grilo: Mas, espere, o senhor é que é Jesus?


Manuel: Sou.
João Grilo: Aquêle Jesus a quem chamavam Cristo?
Jesus: A quem chamavam, não, que era Cristo. Sou, por quê?
João Grilo: Porque... não é lhe faltando com o respeito não, mas eu
pensava que o senhor era muito menos queimado (SUASSUNA,
1957, p. 148).

Aquela que é a tônica central de Tenda dos Milagres aqui é desmascarada por
Emanuel através da recriminação das falas do Amarelo.

O tom da pele de Grilo comprova a sua identidade de sertanejo raquítico, descrito por
Euclides da Cunha (2000), e esse é o protótipo do brasileiro, na visão suassuniana, por
encerrar em sua formação físico-intelectual as características do homem tupiniquim: a
magreza pela alimentação precária, gerada pela exploração capitalista nas relações de
trabalho e a malandragem, que dera origem ao jeitinho brasileiro, temática discutida pelo
sociólogo Roberto da Damatta (1997).

Há, no Auto da Compadecida, uma força moralizadora muito grande, mas também
uma permissividade de ação do protagonista, cujos atos são perdoados em virtude das
mazelas por ele sofridas. O discurso final, proposto pelo palhaço, o narrador da peça, reforça
uma ética cristã popular pelo seu tom irônico beirando o deboche, o que revela a certeza de
que tal quadro de picardias, tramoias e vantagens, arcabouço rico utilizado pelo brasileiro
para lograr os mais diversos êxitos, não cessará.

4. JORGE AMADO E ARIANO SUASSUNA: VOZES DO BRASIL

Suassuna e Amado utilizam as vozes de João Grilo e Pedro Archanjo para


desmascarar os pilares da sociedade brasileira. O governo, a polícia e a religião são

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apresentados como instituições cujos pilares estão apodrecidos e necessitam de novas vigas.
Os discursos dos protagonistas das obras, quase inaudível aos detentores do poder, só
sobressaem por meio da ironia e do humor, artifícios que destroem a resistência séria do
cientificismo e do status quo há muito estabelecido na sociedade.

Nos dois textos, reverbera o discurso de Clastres (1990), ao afirmar que não basta a
voz, mas é preciso ter o poder de falar. Contudo, eles não se acovardam, mas forçam sua
entrada nos espaços proibidos, a saber: a Faculdade de Medicina e a Igreja. Se não podem
falar, porque não serão ouvidos, eles gritam. Não são meros gritos cheios de vazio, são
brados de inconformidade e de revolta, mas, sobretudo, constituem-se em clamores de
reforma do meio em que vivem.

Pedro Archanjo e João Grilo não detêm um capital cultural simbólico significativo,
baseando-me na teoria de Pierre Bourdieu (2006). Eles são pobres, mestiços, analfabetos ou
sem muito estudo formal, por isso mesmo, podem promover uma revolução ideológica na
Faculdade de Medicina e no sertão brasileiro. E retomando outro conceito de Bourdieu
(2007), se os gostos são forjados, também podem ser revistos e substituídos por outros menos
perniciosos e sectários.

Dessa forma, Jorge Amado conseguiu criar de maneira didática uma história
imbricada na outra, contrapondo o presente ao passado. Em sua obra, argumenta sobre a séria
questão do preconceito e suas sequelas, como a disparidade econômica e o patrulhamento
ideológico. Tais consequências encontram-se personificadas através da perseguição à religião
e costumes mestiços.

Ao mesmo tempo, Amado compôs uma obra de intensa criatividade, em que o real é
visitado constantemente pelo imaginário, trafegando de forma livre entre o físico e o
metafísico, lembrando aos leitores que Tenda dos Milagres não é um tratado científico.
Embora defenda a tese da equidade humana, seu livro não é ciência, mas ficção, e por isso
mesmo, um recorte mais livre e divertido da realidade.

Suassuna evidencia no Auto da Compadecida que embora fatos histórico-geográficos


possam ser regionais, os sentimentos e atitudes não possuem fronteiras. Ao ambientar a sua
obra no sertão nordestino, não se refere tão-somente a um espaço determinado, mas
sobretudo ao comportamento e caráter humanos.

Os autores operam o riso catártico. Segundo Cleise Mendes:

A catarse operada pelo cômico depende também de uma semi-adesão


emocional à personagem [...] ao mesmo tempo em que sente o alívio de
projetar-se em alguém que é livre para agir de modo infantil ou insensato, o

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

espectador aguarda, à distância que esse alguém pague o preço por esse
privilégio. (MENDES, 2008, p.6).

Nas obras, a catarse aponta para o fim de uma história e a proposição de outra, escrita
pela caneta da memória, cujos dados foram arquivados por muito tempo, só para citar
Derrida, mas que agora, trazidos à lembrança por movimentos miméticos e de constantes
escritas e reescritas, tais concepções partem das classes subalternizadas, que tomam a autoria
da sua própria cultura e podem, enfim, registrar as suas identidades.

Pedro Archanjo e João Grilo são, portanto, o símbolo do homo brasilis, aquele que
consegue sobreviver em meio a condições adversas, lograr êxito em lugares onde só havia
aridez, adversidade. Isso se levando em conta o ambiente em que vivem, os sentimentos que
nutrem, as relações sociais.

5. DIÁLOGOS FINAIS ENTRE AMADO E JORGE

Amado e Suassuna defendem em suas obras a multiplicidade de estilos, de modos de


vida, de capacidade de pensar e agir. Os contrários não se opõem, mas se atraem. Eis aí a
beleza da formação do caráter identitário nacional: do heterogêneo eflui e subsiste a
existência de uma nação, o Brasil.

Por fim, habitando a casa da facécia, onde anedotas e chistes povoam livremente
aquele espaço e o riso ocupa toda a habitação, reproduzo, agora, aquele que seria um possível
diálogo pós-morte entre os dois autores. Ali, naquele sofá, lado a lado, Jorge Amado olha
ternamente para o escritor paraibano e questiona:

- Suassuna, seu João Grilo, viajante de todo o mundo, viera pousar no sertão. De Taperoá ao
céu e de volta a sua cidade-natal, será que ele, como meu Pedro Archanjo, passou por uma
verdadeira transformação, mas continuou defendendo a cultura popular?
- Meu caro Amado. Seu Archanjo é um anjo forte, uma rocha. O meu grilo, um inseto
aparentemente inofensivo, mas agraciado por Deus. Seu Archanjo perdera a fé, mas crescera
em argumentos em defesa da legítima cultura do povo. O meu grilo parece ter recobrado a
crença diante do altar divino.
- Meu Pedro viverá para sempre, ganhou vida própria, aprendeu a andar com seus próprios
pés e a falar com sua própria boca. Creio que o mesmo ocorre com seu João Grilo. São dois
malandros que transitam pelo litoral e pelo sertão e que, a seu modo, encarnam o que há de
bom e ruim no homem brasileiro.
- Não creio em perfeição, amado Jorge, mas em tentativas de melhorar o homem para
aprimorar a sociedade. Quem sabe um dia os dois não se encontram. Mesmo habitando locais
tão distintos, nada é impossível para um malandro andarilho como Grilo. Ele pode bater à

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porta da Tenda dos Milagres de Pedro Archanjo e Lídio Corró, fazerem amizade e saírem por
aí, travando conversas sem fim.
- Nesse dia, eu te perguntarei, Ariano, como isso pôde acontecer?
- E eu, vou responder-te, Jorge, “Não sei, só sei que foi assim”.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Mulheres em desalinho: (des)construções de gênero em As doze cores do


vermelho de Helena Parente Cunha

Lílian Almeida de Oliveira Lima


UNEB - Campus XIV
lirioalmeida@yahoo.com.br

Este trabalho propõe-se a discutir o livro As doze cores do vermelho, da escritora


brasileira Helena Parente Cunha, à luz das discussões de gênero. Sob o signo da polifonia
narrativa, o romance aponta o percurso de vida da protagonista pintora e suas amigas, desde a
infância até a vida adulta, revelando os enquadramentos de gênero a que são submetidas e os
caminhos que elas tomam em direção à submissão ou transgressão. Este trabalho objetiva
problematizar os modelos construídos socialmente para as mulheres, evidenciando
personagens femininas que os infiltram ou rompem, em convergência com a noção de
“tecnologia de gênero”, expressão cunhada por Teresa de Lauretis, ao estabelecer uma
(des)construção das imagens de mulher. Tomando a literatura como produto cultural, capaz
de problematizar e construir representações diversas, é que se considera oportuno analisar as
personagens parenteanas enquanto elementos de instabilização de paradigmas falocêntricos,
ao mesmo tempo que são também referentes para a assimilação de novos modos de ver e
pensar a mulher. De caráter qualitativa, a pesquisa pauta-se na pesquisa bibliográfica e na
análise literária, estabelecendo diálogo com estudiosos da literatura, sociologia e gênero, tais
como Pierre Bourdieu, Maria Lúcia Rocha-Coutinho, Teresa de Lauretis, entre outros.

Escritora contemporânea brasileira, nascida em Salvador, Helena Parente Cunha tem,


em sua trajetória, mais de trinta anos dedicados à produção literária, entre livros de contos,
romances e poemas. Se for acrescido a esse tempo seus textos, enquanto pesquisadora, em
livros de ensaios sobre a literatura, nota-se uma vida dedicada a escrever e pensar o texto
literário. Em pleno vigor criativo, Helena Parente Cunha tem três romances publicados, a
saber: Mulher no espelho (1983), As doze cores do vermelho (1989) e Claras Manhãs de
Barra Clara (2002). Interessa-me, nesse momento, pensar um pouco sobre as personagens
femininas presentes no segundo, a relação delas com os enquadramentos de gênero a que
estão submetidas, bem como as rupturas que elas empreendem, num universo simbólico
similar a realidades existentes na sociedade brasileira, tributária do patriarcalismo.

Na juventude e na maturidade, a sociedade exige posturas e atitudes convergentes


com os seus padrões sociais e culturais, e as inculcações disseminadas na infância reverberam
em frustrações femininas. As mulheres se veem enredadas na teia dos enquadramentos de
gênero, apreendidos na meninice, que lhes oferece um espaço sólido e seguro, apesar de
cerceador e misógino. Algumas, completamente complacentes, nem desconfiam do contexto

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paralisante em que se encontram. Ao contrário, reforçam e reproduzem os modelos em que


estão enquadradas. Outras, todavia, veem-se fissuradas nas verdades autoaniquiladoras que
aprenderam, e, desestabilizadas, vivem o conflito, o imperativo de precisar decidir em que
verdade se posicionar. Porém, há também mulheres que exibem altivez e segurança num
território diferente daquele difundido pelas instituições mantenedoras da dominação
masculina, da lógica falocêntrica. É essa diversidade de mulheres que domina a cena
narrativa parenteana, por meio de personagens jovens ou maduras, presentes em uma grande
quantidade de narrativas curtas, ou constituindo-se o cerne do conflito que motiva o
desenrolar dos enredos dos romances. As personagens trazem, na pele das palavras,
inquietações de gênero produzidas num terreno sócio-histórico-cultural assentado na
dominação e violência simbólicas.

Em livro que analisa as condições de permanência da dominação masculina e da


violência simbólica, a que as mulheres são submetidas ao longo da história, Pierre Bourdieu
põe em evidência as construções sócio-históricas e culturais que naturalizam a divisão e a
diferença entre os sexos e sustentam a lógica das relações entre dominadores e dominados.
Muito do comportamento presente nas personagens jovens e maduras de Helena Parente
Cunha decorre da assimilação de construtos oriundos dessa naturalização, tornados
inconscientes. A dominação masculina é decorrente da violência simbólica, uma “violência
suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias
puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do
desconhecimento, do reconhecimento, ou, em última instância, do sentimento” (BOURDIEU,
2011, p. 7-8).

As estruturas de dominação são resultantes de um trabalho contínuo de reprodução da


naturalização da dominação, cujos principais agentes são os homens e as instituições Família,
Igreja, Escola e Estado. O sociólogo francês afirma que

[...] a violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o


dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à
dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou
melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de
conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a
forma incorporada da relação de dominação, fazem esta relação ser vista
como natural; ou, em outros termos, quando os esquemas que ele põe em
ação para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes (elevado/
baixo, masculino/feminino, branco/negro etc.), resultam da incorporação de
classificações, assim naturalizadas, de que seu ser social é produto (ibidem,
p.47).

Desse modo, se a permanência da dominação depende da manutenção da lógica de


naturalização da diferença e divisão sexual, promovendo a hierarquização dos gêneros. A

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transformação necessita de um trabalho incessante de alteração dessa construção, mediante a


problematização, a conscientização, a construção e a incorporação de novas possibilidades
não hierarquizadas de relações entre os sexos. Dessa maneira, a literatura, enquanto
“tecnologia de gênero” (LAURETIS, 1994), pode contribuir como instrumento a favor do
corte na linha de propagação da dominação na medida em que atua na produção, promoção e
implantação de novas e diferentes representações de gênero, assim como a literatura feita por
mulheres pode também evidenciar um jogo de duas vozes, ao ser vista sob o viés do modelo
cultural da escrita das mulheres, proposto por Elaine Showalter: “uma implicação deste
modelo é que a ficção das mulheres pode ser lida como um discurso de duas vozes, contendo
uma estória ‘dominante’ e uma ‘silenciada’” (1994, p. 53). Essa mesma percepção de um
discurso com dupla voz foi evidenciada por Sandra Gilbert e Susan Gubar, ao pontuar o
caráter subversivo de textos de escritoras americanas e inglesas do século XIX e considerá-
los palimpsésticos:

[…] women from Jane Austen and Mary Shelley to Emily Brontë and Emily
Dickinson produced literary works that are in some sense palimpsestic,
works whose surface designs conceal or obscure deeper, less accessible (and
less socially acceptable) levels of meaning. Thus these authors managed the
difficult task of achieving true female literary authority by simultaneously
conforming to and subverting patriarchal literary standards (GILBERT;
GUBAR, 2000, p.73) 102.

Dentro dessa perspectiva, de tentativa de contribuição à transformação das estruturas de


dominação, é que me concentro nas mulheres jovens e maduras presentes no romance As
doze cores do vermelho e nos fios que as prendem naquela lógica apontada por Bourdieu.
Muitas delas tentam se enquadrar nos modelos impostos ou sofrem por estar fora deles,
outras estão inseridas e aparentemente felizes, algumas transgridem e são punidas e ainda há
aquelas que ultrapassam os esquemas e as sanções e encontram em si mesmas a razão para
reconduzir suas vidas. Os estágios de contato com a dominação masculina e a violência
simbólica promovem experiências de dor, paralisia, dependência, submissão, revolta,
transgressão, altivez, autonomia, entre tantas outras, que são evidenciadas pelas mulheres de
Helena Parente Cunha.

Na seara das inculcações repressoras, parece que a virgindade surge enquanto “o mais
alto bem desejável pela mulher” (CHAUÍ, s/d, p. 201), mesmo à época de publicação do
volume de contos (1985). A virgindade foi, durante muito tempo, símbolo de elevação
espiritual e de ruptura com a morte (CHAUÍ, s/d), visto que o corpo e as práticas sexuais

102
Tradução livre minha: “ [...] mulheres, de Jane Austen e Mary Shelley a Emily Brontë e Emily Dickinson
produziram obras literárias que são, em algum sentido, palimpsésticos, obras cujo projeto superficialmente ocul-
tam ou obscurecem os mais profundos, menos acessíveis (e menos socialmente aceitáveis) níveis de significado.
Assim, essas autoras conseguiram a difícil tarefa de alcançar a verdadeira autoridade literária feminina ao simul-
taneamente conformar-se e subverter os padrões literários patriarcais.”

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implicavam o decaimento humano. No fim do século XX, ela era não apenas um bem
simbólico exigido das moças, mas também o termômetro da confiança e do amor dedicado ao
parceiro. É a partir desse viés que a protagonista de As doze cores do vermelho, assumindo o
próprio desejo pulsando no corpo, permite-se ofertar os seios, sob a blusa aberta, ao
namorado:

[...] depois do almoço você vai com ele para a varanda. Você abre a blusa e
chega mais perto e se encosta no braço dele e mais se comprime e mais abre
a blusa e a mão dele se atinge em devagar penetração. Você fecha os olhos.
Seu corpo é um rio que se abre em fluidas fozes. [...] Surpreendida você se
levanta com a blusa aberta. Você treme desestremecida. Você é obrigada a ir
para o quarto. [...] É preciso casar virgem? (ADCV, p. 15).

Como ela está submetida às normas, a transgressão esboçada é interditada pelo controle
familiar, o que não impede o questionamento. Embora, no fragmento anterior, tenha sido a
personagem feminina quem toma a iniciativa do contato entre os corpos, era comum os
namorados convencerem suas namoradas a manter relações sexuais, a perder a virgindade
com eles como prova de amor.

Na conformação vivida pela personagem, atuam a Família e a Igreja, aliadas ao


Estado na função de vigiar e controlar os corpos, de reproduzir e perpetuar a visão
androcêntrica, por meio de uma retroalimentação constante, a partir de seus dogmas,
princípios civis e discursos (CHAUÍ, s/d; BOURDIEU, 2011). Como afirma Marilena Chauí,
“a união sacrossanta que estabelece entre família, nação, estado, tradição e moral torna sua
capacidade [da família pequeno-burguesa] sexualmente repressiva quase indestrutível” (s/d,
p. 131). Tal como se dá o controle do corpo, nota-se também a despreocupação com o desejo
feminino. Na relação de casal, vê-se uma postura masculina de total negligência às vontades
de sua companheira, interessando apenas a satisfação de seus desejos e vaidades de macho,
como ocorre com a protagonista, no início do casamento, quando ela deseja o marido e tem
vontade de carinhos e afagos, que, no entanto, são negados:

[...] você gosta que seu marido tire sua roupa devagar, peça por peça. Ele
olha sorrindo e pede que você tire a roupa depressa. Você gosta de sentir as
costas e as nádegas nuas nas fibras do lençol. Consistência de nervos. Você
quer se deitar em cima do corpo do seu marido e roçar sua pele nos pelos do
corpo dele. Ele deita em cima de você devagarmente depressa e não ouve
você pedir que passe a mão no seu seio. Você escuta o arfar do gozo e o sair
do corpo de dentro de você. Você fecha os olhos e vê ondas desvermelhas
em volta do seu corpo desredondo (ADCV, p. 19).

Na órbita de elementos em que gravita a vida das mulheres, o casamento é um dos


mais cobrados, uma vez que a lógica falocêntrica as vinculou à presença masculina,

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transformando o casamento na principal maneira de elas adquirirem status e aceitação social,


o que não significava que eram efetivamente valorizadas socialmente. Conforme Marilene
Guimarães (1997), quando as tribos passaram a ser sedentárias, as mulheres assumiram o
cultivo e a colheita de alimentos e o cuidado com os filhos, enquanto os homens guerreavam,
defendendo seus territórios, e caçavam. A sobra de alimentos levou ao comércio e ao
acúmulo de patrimônio. O desejo de transmitir esses bens a herdeiros gerou no homem a
vontade de assegurar a sua sucessão, levando-o a querer apropriar-se da mulher, depreciando-
a. Como Guimarães afirma,

[...] a família patriarcal, a partir do interesse econômico, desvalorizou a


mulher, confinando-a no espaço privado do lar, quase como uma
propriedade do marido, levando à construção de uma identidade psicológica
de submissão, atavicamente transmitida de geração em geração
(GUIMARÃES, 1997, p. 31).

O casamento é o meio de a mulher adquirir um valor descaracterizado anteriormente


pelo homem. Em nome desse atributo simbólico, muitas mulheres se sujeitam a rotinas
humilhantes, ou sofrem por expectativas frustradas. O certo é que muitas delas querem fazer
parte desse universo – qualificado pela condição civil de esposa – ou, pelo menos, ser
valorizadas pela presença masculina, mesmo sem “papel passado”.

A vinculação feminina ao homem é reforçada, também, ao longo dos anos, pelas


distintas legislações, evidenciando o quanto as construções socioculturais são orquestradas
por um conjunto de instâncias que, silenciosamente, “naturalizam” o que é sócio-
historicamente construído. O Código Civil Brasileiro de 1916, conforme Marilene
Guimarães, “considerou a mulher casada relativamente incapaz, determinando a
obrigatoriedade de autorização do marido para trabalhar ou gerir seus bens” (1997, p.32).
Outro expediente de vinculação referia-se à incorporação do sobrenome do marido após o
casamento. Ainda segundo Guimarães, essa prática passou a ser facultativa a partir de 1977,
com a Lei do Divórcio, no entanto, muitas mulheres continuaram e continuam alterando seus
nomes e agregando o sobrenome dos cônjuges até os dias de hoje. Recentemente, o Código
Civil Brasileiro de 2002 reforçou a possibilidade de a mulher adotar o apelido do esposo,
bem como possibilitou o mesmo ao marido, o que parece sinalizar uma mudança de
mentalidade acerca das relações entre homens e mulheres, embora a solicitação da presença
masculina junto à mulher continue existindo.

A união da mulher ao homem costuma ser vista como meio de adquirir segurança
moral e financeira, além de prestígio social, resultante de uma mentalidade corrente no século
XIX, como assinala Maria Lúcia Rocha-Coutinho: “o casamento [...] enobrecia a mulher e
abria-se como a única possibilidade de ascensão social, em um tempo em que não eram

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permitidas às mulheres atividades que possibilitassem sua promoção por esforço


próprio” (1994, p.83). Essa lógica costuma ser repassada às mulheres através da ideia do
casamento como uma necessidade, elemento praticamente obrigatório na vida delas, como
pode ser visto também nas percepções da protagonista de As doze cores do vermelho. Na
infância, a formação recebida a leva para o desejo de se casar e constituir família, logo
concretizado na vida adulta: “1960. Você faz vinte anos e vai se casar. [...] Futuro. Um
marido. Vozes repetindo. A mulher é a rainha do lar. [...] Você está preparada para o
casamento. Alumbramento” (ADCV, p. 15).

Dentro da lógica calcada na dominação masculina, existe a constante vinculação


feminina à inferioridade, sobretudo, no mundo do trabalho fora de casa, da vida profissional,
pois “qualquer que seja sua posição no espaço social, as mulheres têm em comum o fato de
estarem separadas dos homens por um coeficiente simbólico negativo que [...] afeta
negativamente tudo que elas são e fazem” (BOURDIEU, 2011, p. 111).

Jovem, a personagem se vê impelida a se dedicar exclusivamente à vida doméstica:


“A mulher é a rainha do lar. Você não vai mais entrar para a escola de belas artes. Você
prometeu a seu noivo que não vai mais pintar” (ADCV, p. 15). Ou ainda: “ela conversará com
a amiga loura sobre a possibilidade das duas entrarem para a escola de belas artes. [...] por
que não poderiam? O marido dizendo não aos novos contornos que se delineando e
defendendo o dever de toda mãe cuidar o mais tempo possível das filhas” (ADCV, p. 23). Se
o casamento era visto como a porta de entrada para o status de ter ao lado um homem, era, ao
mesmo tempo, a porta de saída da realização pessoal em outra esfera que não fosse a
doméstica.

Dividida entre os modelos sociais e a satisfação pessoal, ela oscila entre alavancar a
carreira de artista plástica e as solicitações familiares, sobretudo, do marido e da filha menor:

Você viaja e viaja. [...] Luzes e risos em novas exposições. [...] Você pede
uma ligação internacional. A voz de seu marido em recuadas margens. A
menina está viajando para cantar num festival de conjuntos de rock. A
menina não quer seguir a orientação do psiquiatra e recusa os medicamentos
e se nega a falar. Seu marido gagueja que você deve voltar. Limitações
distantemente próximas. Você está longe de seu corpo na cama. Você
cancela as duas últimas exposições (ADCV, p. 91).

A desqualificação da carreira profissional da artista plástica pelo marido, decorrente


do “coeficiente simbólico negativo” apontado por Bourdieu, permite aos homens arvorarem-
se numa suposta condição de superioridade. Desde o casamento, foi instalado o impasse entre
a pintura e a exaltação dos afazeres domésticos, sempre relembrados pelo marido. Diminuído

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em sua apatia e inércia, ele não dispensa qualquer oportunidade de rebaixar as telas e a artista
ao não compreensível:

[...] seu marido esbarra no cavalete e o quadro cai. As corres escorregam.


Seu marido diz que não faz mal porque ninguém iria comprar aquele quadro
horrível. Ele diz que você não deve fazer a exposição na galeria da praia
para não se arriscar ao ridículo e além do mais ninguém vai comprar aqueles
quadros estapafúrdios (ADCV, p. 77).

Indo contra os propósitos de seus companheiros, as personagens femininas optam pela


vida profissional, não deixando de lado a esfera familiar. A opção pela promoção da vida
artística, por meio das viagens, parece contrariar o “destino de mulher”, que a vincula
gradualmente: ao companheiro, ao casamento, às filhas, e à auto-realização apenas
circunscrita à atuação no espaço doméstico, como assinala Rocha-Coutinho acerca da
mentalidade brasileira na metade do século XX:

[...] uma carreira era praticamente inconcebível para a mulher nos anos 50 e
início dos anos 60 e sua educação, percebida como um luxo, visava
principalmente a criar mães melhores, companheiras agradáveis para seus
esposos e melhores companheiras para os maridos com carreiras. Embora
algumas mulheres tenham ido à universidade, a carreira ou o curso
universitário deveriam ser abandonados com o casamento (1994, p. 101).

O peso da Ordem do Falo pressiona as personagens, divididas entre se submeter ou


contrariá-la, entre escolher o modelo convencionado, representado pelo companheiro e pela
família, ou pela carreira artística, assumindo, uma postura transgressora ao negar o modelo.
Ela inquieta-se ante os dois lados: “sempre vozes de um lado e vozes de outro lado.
Bifurcação fragmentação. No lado de cá o elo e o nó e as cores certas. No lado de lá o repente
e as migrações e o livre desdobramento dos vermelhos. Entre lá e cá o meio cheio de sustos e
desejos” (ADCV, p. 81).

Para a pintora de As doze cores do vermelho, também existe um movimento


oscilatório, entre a decisão de morar no apartamento de quatro quartos e a de voltar a morar
no apartamento de dois quartos com o marido e a filha menor. As imprecações do marido,
exibindo a dependência da filha menor, mobilizam na personagem a culpa e a desempodera
na escolha pela realização pessoal através da arte:

[...] o lado de lá e o lado de cá em dilaceramento e ferida. As meninas serão


as meninas e ela se existirá sendo aquém e além um sopro e um choro. Seu
sangue nas veias das meninas. [...] Ela irá e virá de um lado para o outro.
Sairá de um lado e olhará o outro lado. Idas e vindas e risos e rasos e
comprimidos para dormir (ADCV, p. 87).

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A culpa ancestral por ultrapassar o limite, socioculturalmente estabelecido, na


suplantação do marido e na autorrealização, por reconhecer a ausência de êxito da filha
menor e a decadência do casamento, associada ao medo, que envolve a escolha por um dos
lados, asseguram a úlcera e as crises gástricas no ápice das tensões familiares. O medo é um
fator paralisante, que impacta sobremaneira o processo de conhecimento de si e de satisfação
pessoal, conforme evidencia Maximiliano Torres, citado por Angélica Soares:

Dividida entre a representação das normas e o espaço de liberdade, a


personalidade da mulher pode ser considerada, muitas vezes, inconstante.
Pois o medo, que habita o entre do lá e cá, controla suas atitudes,
impedindo-a, assim, de construir sua identidade. [...] Percebemos que, em
todos os módulos, o medo prevalece limitando a personagem; o que a leva a
priorizar os preceitos sociais em detrimento dos próprios desejos (TORRES
apud SOARES, 2012, p. 56)

A lógica de devotamento à família é perceptível na postura da amiga loura, presa


completamente aos valores difundidos pelo cristianismo e aos rastros da mentalidade
patriarcal: “a voz da mulher loura ressoando o eco de consistências antigas. Em primeiro
lugar, o lar e a família, a família e o lar. Uma mulher de respeito é fiel ao marido. A mulher
tem o dever de sacrificar seus interesses em benefício da família” (ADCV, p. 81). Como
afirma Angélica Soares, as palavras da mulher loura constituem “a fala da opressão e do
conservadorismo, aceitos sem questionamento, em decorrência da naturalização da
dominação, resultante de estratégias de violência simbólica” (2012, p. 57).

As condições de autonomia são, nos contos analisados, decorrentes não apenas da


independência financeira, mas também de uma consciência de si, de uma desvinculação da
noção de que a mulher precisa ser cuidada e sustentada por outrem, amplamente difundida
pelos discursos da Igreja, da Família e do Estado.

A autonomia econômica e emocional que costuma estar relacionada às personagens


que se desvincularam das teias invisíveis de dominação e violência deriva dessa
conscientização e de tomar para si o papel de condutora da própria vida. Mulheres
autônomas, liberadas e altivas, que conquistaram a si mesmas diante dos êxitos e declínios de
suas vidas e das relações em sociedade. Vale salientar que, embora o termo “liberada”, muito
utilizado durante a segunda metade do século XX, de forma estigmatizada, para assinalar o
desprendimento sexual de algumas moças da época, como assinala Carla B. Pinsky (2011),
assume aqui uma denotação mais ampla. O uso que faço do termo implica o despojamento
dos interditos sociais, não apenas aqueles referentes aos padrões e modelos definidos para a
vivência da sexualidade, mas também relacionados à superação de amarras que insistem em
marcar a mulher com um sinal de inferioridade.

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Alcançar uma condição de autonomia implica mudanças interiores e promove também


transformações externas, sobretudo nas relações sociais, como esclarece Maria Lúcia Rocha-
Coutinho:

[...] o foco da vida da mulher, antes voltado para o outro, para a satisfação
das necessidades daqueles à sua volta, desloca-se, então, para seu
crescimento e desenvolvimento integral como ser humano. Esta nova ênfase
no crescimento pessoal acarretou uma série de mudanças sociais que
levaram à necessidade de um planejamento de vida mais individualizado. O
questionamento de que o casamento traz a felicidade eterna como esposa e
mãe levou as mulheres não só a buscar novas formas de realização pessoal
numa profissão ou trabalho como também a formas alternativas de
relacionamento afetivo e sexual (1994, p. 117).

Sair do lugar de abnegada e voltar-se para si, para sua realização pessoal,
proporciona à mulher um caminho de escolhas próprias, nem sempre com garantias de pleno
êxito, mas, sem dúvida, com uma ampliação das possibilidades de ser feliz, outrora reduzidas
à maternidade e ao casamento.

Oscilando entre o lado de cá, da conformação aos modelos oriundos da mentalidade


patriarcal e o lado de lá, da liberação das amarras e incentivo à satisfação pessoal, a
personagem de As doze cores do vermelho vivencia momentos de ruptura e de plenitude
pessoal, chegando mesmo a se estabelecer num território pessoal de completude. A pintora
hesita a abnegação e a altivez. Mesmo cerceada pelas amarras do lado de cá, ela encontra
oportunidades de vivenciar a liberação e a autonomia, bem como os momentos de satisfação
pessoal, como acontece na experiência amorosa com o arquiteto – “Você está no carro de seu
amigo arquiteto. Ele leva você em direção à ultrapassagem. [...] Círculos se abrem para
escapar da forma. Você entra no quarto com seu amigo arquiteto. Ele tira sua roupa devagar e
olha os espelhamentos das incidências. Desejo e marés.” (ADCV, p. 85) –, ou através do
reconhecimento de seu trabalho artístico, evidenciado pelas medalhas e exposições
internacionais, consumada na conquista do veículo que a levará a novos territórios – “Quando
ela começar a ganhar dinheiro com a venda de seus quadros vai aprender a dirigir e comprará
um carro de quatro portas. [...] Ela sorrirá veloz e responderá que não precisa de seguro de
carro jamais nem nunca nem até. Ela irá percorrer o novo chão de subitaneidades e
asfalto” (ADCV, p. 55) – e do apartamento de quatro quartos – “Você está no seu apartamento
de quatro quartos e varandas para o mar. Cardumes e constelações capturam inefáveis
núcleos. [...] Você trabalha em seu ateliê e faz seu faz sua verdade.” (ADCV, p. 93).

Oscilando entre as realidades de cada um dos lados, ela, todavia, não se esquece do
desejo de ser livre, gritado nas cores vibrantes e formas informes da sua arte:

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[...] ela nunca esquecerá as vozes rebatendo que a mulher deve ser dócil.
Peso do pesadelo ele o elo. Laço. Nó cego nas pernas dela. Ela nunca
esquecerá as censuras do marido todas as vezes que se isolou no quarto para
pintar suas estrelas e seus peixes e os vermelhos roxos. Ela nunca esquecerá
a latência dos seus gritos e o ápice de seus quereres. Ela reporá por breve
espaço as asas quebradas e comporá o vôo de rapidíssimos sorrisos. E nunca
esquecerá que se esqueceu de esquecer as doze cores do vermelho (ADCV,
p. 61).

Embora o desejo de liberdade esteja latente nas atitudes da protagonista, vê-se o peso
do embate entre a busca da satisfação pessoal pela arte e a conformação ao modelo familiar.
Entre o padrão tradicional e o emancipatório, vigora o conflito, como esclarece Maria Lúcia
Rocha-Coutinho:

[...] as mulheres têm sido levadas, nos últimos anos, assim, a buscar
um novo entendimento de seu papel. Querem pensar e agir por conta
própria, mas seu planejamento de vida ainda inclui a antiga identidade
feminina, o que faz com que sua vida se realize no conflito de
expectativas contraditórias como ter uma formação profissional e uma
carreira ou adaptar-se ao ciclo familiar, ter ou não ter filhos, entre
outras. A estas divisões resta sempre a posição conciliatória, a de
dividir-se entre os dois interesses, solução que leva a mulher a uma
sobrecarga física e emocional que muitas vezes ela quase não pode
suportar (1994, p. 62).

Consciente dos elos e nós que a mantém a serviço da família, presa às convenções
estabelecidas para a mulher, no lado de cá, ela decide dar o salto, transpor a margem: “ela
pensará nas vozes que diziam o marido é o chefe da família e a esposa é a companheira dócil
e pudica. [...] Bifurcação não. Ela dirá não. Não voltará” (ADCV, p. 93). Mas, como o peso
dos enquadramentos de gênero disseminados ao longo de toda uma vida não são
tranquilamente suplantados pelo desejo de se libertar, ela volta ao lugar da bifurcação, atada
ao desviver da filha menor agarrada aos bichos de pelúcia e às acusações do marido de
negligência na criação das filhas e de egoísmo na dedicação à carreira artística. Para ela, resta
ultrapassar, passar além dos dois lados, transpondo em alta velocidade o vermelho do
semáforo e do sangue. Se, por um lado, o acidente e a morte da personagem remetem à ideia
de punição por transgredir a lógica androcêntrica, amplamente presente na literatura, por
outro lado, leva também à possibilidade redentora de não se limitar a um dos lados: “os dois
lados as duas metades os dois semicírculos fundidos no círculo dissolvido. Além dos dois
lados o ápice estrelado da cordilheira” (ADCV, p. 109).

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Mas, se a protagonista de As doze cores do vermelho apenas vivenciou momentos de


liberação, sua amiga dos olhos verdes é uma representante da experiência bem sucedida no
lado de lá. Ela apresenta traços de um comportamento transgressor desde menina,
vivenciando, em primeira mão, as descobertas da sexualidade e partilhando-as com as
colegas. Jornalista premiada, a amiga dos olhos verdes não só defende a emancipação sexual
das mulheres, mas vivencia e apregoa para as amigas o discurso que propaga em suas
matérias:

[...] os olhos verdes duas folhas de hortelã acesas. [...] Sua amiga fala nas
experiências da vida amorosa de desquitada e nas facilidades da vida
financeira. E fala de suas reportagens que questionam os mecanismos
responsáveis pela opressão das mulheres e denunciam as estruturas sociais-
políticas-econômicas geradoras das milhares de prostitutas das cidades
grandes (ADCV, p. 23).

A amiga dos olhos verdes assume o lugar de quem tem completa autonomia e
questiona os esquemas mantenedores da lógica androcêntrica, evidenciando lugares sociais
de segregação ou inferiorização da mulher e dos seus direitos. Entre os temas defendidos por
ela, estão as prostitutas, o direito ao aborto, o incentivo a uma ampla vivência sexual
feminina, enfim, sua defesa é pela emancipação das mulheres, com forte direcionamento para
a libertação sexual. Essa personagem reflete bem um perfil feminino que surgiu na segunda
metade do século XX e se mantém até os dias de hoje, a da mulher independente
economicamente e liberada sexualmente, fruto do acesso feminino às universidades e da
disseminação da pílula anticoncepcional (PINSKY, 2012).

O domínio e a liberdade de uso do próprio corpo são marcas presentes no discurso da


mulher dos olhos verdes, promovendo, muitas vezes, a inquietação da protagonista:

[...] sua amiga não quer mais compromissos amorosos. Você fica pensativa
quando sua amiga diz que sai com quem quer e trepa com quem gosta. Você
nada diz quando ela diz e dissesse que a mulher só se realiza no amor se
conhecer muitos homens e transar muitos paus. Você começa a chorar
quando ela diz dissera que você está perdendo mutações e cambiamentos e
cambiantes nuances (ADCV, p. 67).

A defesa do senhorio sobre o próprio corpo também está em convergência com o


contexto dos anos de 1970, com a presença de grupos feministas que abalavam os costumes
brasileiros herdados do patriarcalismo. Para esses grupos,

[...] fazer da mulher alguém ‘dona de seu próprio corpo’, com ‘direito ao
prazer’, ao orgasmo, e a ter filhos ‘se e quando’ quisesse era bandeira de
luta. [...] Eram projetos verdadeiramente revolucionários que, se não

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contemporâneas

obtiveram naquele momento o sucesso desejado, ajudaram a abalar os


tradicionais modelos de mulher (PINSKY, 2011, p. 520; grifos da autora).

Conhecedora dos fios invisíveis que amarram as mulheres nas esferas da dominação e
violência simbólica, a amiga dos olhos verdes acredita que é preciso desvencilhar, desde
cedo, as mulheres das teias da repressão sexual, que a construção da autonomia e do
empoderamento feminino deve ser empreendida a partir da meninice: “sua amiga dos olhos
verdes entra em seu apartamento com uma revista na mão. E lhe mostra o artigo que ela
escreveu sobre meninas que não são mais virgens. [...] Você se assusta porque ela defende a
emancipação da mulher desde os primeiros anos” (ADCV, p. 75). A amiga dos olhos verdes é
a figura que instabiliza as bases da pintora, que infiltra os modelos e que representa uma
experiência exitosa no lado de lá, o que não significa que não haja dores, ao contrário, a
superação das dificuldades amplia o valor de conduzir a própria vida.

As distintas situações e posicionamentos femininos evidenciam o quanto a estrutura


de dominação simbólica está vinculada à aquiescência daqueles que são dominados, ou,
como Pierre Bourdieu explicita, “o poder simbólico não pode se exercer sem a colaboração
dos que lhe são subordinados e que só se subordinam a ele porque o constroem como
poder” (2011, p.52). A narrativa de Helena Parente Cunha, enquanto “tecnologia de gênero”,
problematiza as relações ali desveladas e promove representações capazes de contribuir para
alterar a configuração das relações de gênero. Os textos evidenciam não apenas a superfície
visível da dinâmica entre homens, mulheres e familiares, mas, sobretudo, o discurso sub-
reptício, não dito explicitamente na letra do texto, mas perceptível e revelador das estruturas
e artimanhas que subjazem às tramas desenvolvidas. Neles, é possível perceber o jogo “entre
o espaço discursivo (representado) das posições proporcionadas pelos discursos hegemônicos
e o space-off, o outro lugar, desses discursos” (LAURETIS, 1994, p. 238), ou seja, perceber a
dinâmica entre o que está dentro e o que está fora dos discursos preponderantes. Expostas as
situações em que as personagens femininas encontram-se, um pouco de atenção na leitura
permite a retirada dos véus, bem como notar os andaimes da imponente dominação
simbólica, ali escondidos, que costumam contingenciá-las.

As personagens evidenciam que sair do lugar da abnegação não assegura o êxito, mas
lhes proporciona a satisfação pessoal decorrente de ter escolhido o caminho por onde ir. Se
nem sempre elas são ou estão plenamente felizes, sobra-lhes a consciência de que a felicidade
é uma escolha delas.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 10. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. São Paulo: Círculo do
Livro, s/d.
CUNHA, Helena Parente. As doze cores do vermelho. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1998.
GILBERT, Sandra M; GUBAR, Susan. The Madwoman in the Attic: The Woman Writer
and the Nineteenth-Century Literary Imagination. Columbia: University of Missouri Press,
2009.
GUIMARÃES, Marilene Silveira. A igualdade jurídica da mulher. In: STREY, Marlene
Neves (Org.). Mulher, estudos de gênero. São Leopoldo: Unisinos, 1997, p. 29-37.
LAURETIS, Teresa de. A tecnologia de gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de.
Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
PINSKY, Carla Bassanezi. A era dos modelos flexíveis. In: PINSKY, Carla Bassanezi;
PEDRO, Joana Maria (Orgs). Nova história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2012.
ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas
relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
SOARES, Angélica. (Ex)tensões: Adélia Prado, Helena Parente Cunha e Lya Luft em prosa e
verso. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.

A relação homem-terra na obra “Os magros” de Euclides Neto

Liz Maria Teles de Sá Almeida


Profª Mª. do IFBA e membro do NUPHEC/IFBA
E-mail: lizpitanga@gmail.com

Silvana Cristina Costa Correia


Profª Mª.do IFBA e membro do NUPHEC/IFBA
Doutoranda do PPGG/UFPB
E-mail: silvanageoufpb@yahoo.com.br

Resumo: Na iminência de um sistema político fechado tal qual foi a Ditadura Militar no
Brasil na década de 1960, poucas vozes ousaram ecoar proferindo denúncias de um sistema
opressor, expondo a luta de classes e consolidando a “tetralogia dos excluídos” (ELIESER
CESAR, 2014) das roças de cacau do sul da Bahia, como fez o romancista baiano Euclides
Neto ao publicar sua obra “Os magros” em 1961. Por meio de uma narrativa fundante para
entender o contexto do Sul da Bahia durante a Era do Cacau, Euclides Neto expunha todas as
mazelas de uma parcela da população brasileira que vivia à margem de quaisquer sinais de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

desenvolvimento e/ou benefício social. Em meio ao auge da cultura cacaueira, lhe interessará
as relações injustas de trabalho no campo. Sobre essas relações lançaremos um olhar
minucioso a fim de investigar como a relação homem-terra se desenvolve nesta narrativa
euclidiana, pondo em evidência o espaço e o tempo enquanto elementos integrantes e
insubstituíveis no texto narrativo. É, pois, objetivo primeiro deste trabalho investigar no livro
“Os magros” de que modo ocorre a relação que se estabelece entre o homem e a terra – tendo
em vista que o romance é divido em duas narrativas que por meio da técnica do contraponto
expõe modos díspares de relacionamento telúrico de dois representantes da sociedade
cacaueira, o fazendeiro Jorge e o trabalhador (das roças de cacau) rural João –, que, por isso,
conferem valores simbólicos distintos à relação homem-terra. Para compreender esta relação,
far-se-á necessário apreender alguns conceitos da área da Geografia, tais como os de espaço,
lugar, paisagem e território. A apropriação destes conceitos por meio do discurso narrativo da
obra “Os magros” busca uma articulação entre o real e o imaginário e entre o objetivo e o
subjetivo, os quais nos fornecem uma melhor compreensão do discurso narrativo como forma
de representação do espaço geográfico excludente da região cacaueira da Bahia. A narrativa
se passa em dois espaços, o agrário no qual está localizada a Fazenda Fartura na região
cacaueira, onde João trabalha na produção do cacau, e no espaço urbano, mas precisamente,
em Salvador, onde mora Jorge (patrão de João e proprietário da Fazenda Fartura). Numa
aparente contradição da realidade socioeconômica da região cacaueira, constata-se a partir da
narrativa euclidiana, que a produção de cacau não trouxe riqueza para aqueles que
trabalharam na terra e produziram o produto de ouro do Sul da Bahia. A riqueza da região
concentrou-se em Ilhéus, Itabuna e Salvador, onde os latifundiários (a exemplo da
personagem Jorge) e seus familiares moram e desfrutam da fortuna proveniente do cacau.
Enquanto que para os que vivem no espaço agrário, (a exemplo de João e sua família) fica a
escassez, a fome, a morte, a falta de moradia, a desnutrição, o analfabetismo e a
impossibilidade de alterar o curso dessa situação precária.

Palavras-chave: Literatura, Geografia, Bahia, relação Homem-terra, exploração do trabalho.

1. Considerações iniciais

Um sistema político ditatorial consegue silenciar violentamente vozes que se opõem


ao discurso opressor, entretanto, em meio ao silêncio, sempre escapam as denúncias daqueles
que travestem suas indignações sob forma de arte a fim de cravar na história as memórias dos
que (sobre)viveram num sistema desigual que alimentou e alimenta uma discrepância social
cada vez mais díspar. A Bahia da década de 1960, em plena ditadura militar, foi cenário para
a militância de um escritor em formação que não emudeceu diante da realidade que urgia no
contexto sul baiano das roças de cacau. Euclides Neto (1925-2000) ajuda a compor a Era
Cacaueira por meio de suas narrativas pungentes, com a propriedade de quem dissertava

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

acerca de uma realidade que conhecia de perto. O autor baiano que por vezes é tratado como
um “ilustre desconhecido” pela crítica atual – contíguo com os escritores Jorge Amado e
Adonias Filho – é responsável por grande parte da literatura produzida acerca do ciclo do
cacau.

O contexto cacaueiro de 1960, o espaço das roças de cacau, os arredores 103 e os


conflitos políticos não conseguiram passar despercebidos na produção literária euclidiana ao
compor o retrato do sul da Bahia. De tal modo é precisa e necessária sua composição que
Eliezer Cesar (2014) denominará o conjunto de sua obra de “Tetralogia dos excluídos”. Não
por acaso, tal qual o também baiano Castro Alves, Euclides enxerga como o condor e
consegue perceber por baixo da imensidão dos latifúndios que formavam as plantações de
cacau, homens e mulheres, imperceptíveis em seus grupos sociais, mas que se consolidam
como protagonistas daquela macro história e de sua própria narrativa. Não interessaram ao
olhar de Euclides Neto as poucas famílias que enriqueciam na fase áurea do cacau; mas sim,
a massa invisibilizada pela história oficial que mesmo numa relação desigual, sangrava para
garantir a opulência do pequeno grupo de famílias que detinham o poder.

São vários os caminhos para trilhar na literatura euclidiana, neste trabalho optou-se
por partir da investigação da relação entre o homem e a terra a fim de compreender na
narrativa ficcional “Os magros” de que modo os elementos telúricos presentes na obra
refletem a condição de um sujeito que sobrevive da mesma terra que o aniquila, num jogo
paradoxal que se torna perceptível no texto literário. Para tanto, fez-se necessário uma
imersão pela geografia para que algumas questões conceituais apoiassem o debate aqui
pretendido em torno das noções de “espaço”, “lugar”, “paisagem” e “território”; o referido
campo disciplinar também esclarece acerca dos aspectos políticos ligados à terra e aos
conflitos em decorrência da luta pela posse da terra no país.

O presente artigo foi construído a partir de pesquisa bibliográfica e os principais


autores que nos serviram de farol foram: Monteiro (2002); Castillo (2004), Fuentes (2007),
Santos (1978), Raffestin (1993), Moreira (2007) entre outros.

2. O regionalismo de Euclides Neto

A tendência regionalista iniciada no Brasil no século XIX encarregou-se de desvendar


o país num movimento que parte do interior para os centros urbanos, revelando a constituição
do povo brasileiro num projeto de construção da identidade nacional. No projeto nacionalista
da literatura romântica houve espaço para desvendar o homem do interior, o território e o
espaço geográfico brasileiro, assim como manifestar comportamentos e ações culturais.

103 Municípios adjacentes que compõem a narrativa no período cacaueiro.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Cronologicamente, é quando a literatura põe em evidência tipos sociais a fim de caracterizar


esta identificação. Entretanto, ao longo dos anos, a tendência regionalista destaca elementos
que ora iluminaram as questões do homem ao seu tempo; ora evidenciaram os dados que
compõem os tipos sociais mencionados.

Sobre esta tendência, Tristão de Ataíde (1996, p.1039) ponderou que “o regionalismo
é a predominância da terra sobre o homem; da nação sobre o continente; da aldeia sobre a
nação”, nesta perspectiva parece caminhar o romance “Os magros”. Euclides Neto,
advogado, político, militante das questões sociais, escolhe a escrita criativa para refletir
criticamente a situação do interior do país. Como advogado defendeu o povo pobre e os
camponeses; na condição de prefeito promoveu a primeira experiência de reforma agrária do
país; incansável na defesa da gente simples e mais necessitada das roças de cacau e arredores,
dono de uma bio/biblio/grafia coerente com suas preocupações ideológicas.

A atuação política de Euclides Neto não se limitou apenas ao período em que cursou
direito na Universidade Federal da Bahia. Advogado formado, assumiu como prefeito da
cidade de Ipiaú (Bahia) no interstício 1963-1967. Como advogado, orgulhava-se de nunca ter
defendido um fazendeiro, empenhava-se em amparar o homem pobre, o trabalhador rural.
Durante sua administração, promoveu a primeira experiência de reforma agrária no país, esse
feito lhe garantiu posteriormente um convite para assumir a Secretária de Reforma Agrária na
gestão do governador Waldir Pires, e durante o seu mandato como prefeito, rendeu-lhe a
interferência do governo militar durante sua gestão administrativa. Foi perseguido
politicamente pelo regime e precisou responder inquérito militar concluído no ano de 1964.

O empenho de Euclides Neto em promover a reforma agrária revelou-se pela


necessidade enquanto gestor público em praticar uma experiência socialista em que as
questões que costumava defender saíssem dos debates academicistas e passassem a ser
experimentadas na realidade do município que ora se encontrava como prefeito.Com relação
à posse de terras, até que a experiência de Euclides se concretizasse, sempre fora primazia de
poucas famílias detentoras de grandes latifúndios, muitos deles serviam à monocultura sob a
forma de cultivo de cacau. Por décadas, o sul da Bahia foi palco de uma ocupação desigual,
na qual as poucas famílias que detinham a maior parte das terras – também oscilavam nos
espaços de poder, ocupando principais cargos públicos nos municípios –, abrigavam em
regime de quase escravidão centenas de famílias de trabalhadores que sobreviviam em
condições indignas de trabalho em troca, muitas vezes, apenas de um abrigo ignóbil nas
terras daqueles. Ao lado desses últimos que Euclides neto escolheu estar, como advogado e
como político atento às questões sociais.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A história política de ocupação dos espaços urbanos no contexto do sul da Bahia


sempre foi marcada por episódios de muito conflito e violência. Diversos escritores já se
debruçaram a tratar destes assuntos e de temas relacionados ao conflito de terras, a
concentração latifundiária e a violência no campo em suas obras, haja vistas para Jorge
Amado e seus romances “Cacau” (1934), “Seara Vermelha” (1946), “Terras do sem-
fim” (1987); Adonias Filho e a obra “Corpo vivo” (1962). Na perspectiva de compreender de
que modo se desenvolve a dialógica relação entre o homem e a terra, Euclides Neto propõe a
emblemática obra “Os magros” que o coloca no mesmo patamar de relevância de escritores
como Graciliano Ramos, que influencia diretamente no texto que ora analisamos. Graciliano
canta o flagelado do sertão tal qual Euclides narra a degradação humana do homem sul
baiano.

3. Da narrativa “Os magros”

“Os magros” retrata a vida de duas famílias, a primeira é a de João, com sua esposa e
mais oito filhos, viviam em uma casa simples e apertada nas proximidades da propriedade em
que trabalhava no sul da Bahia. Era muito pobre. Apesar da árdua luta diária do patriarca nas
roças de cacau, a família mal tinha o que comer. João era funcionário de Dr. Jorge; todavia,
pouco o encontrava, pois, a história se passa no momento em que os donos da fazenda
residiam em Salvador e apenas administravam os lucros das roças de cacau que ficavam
sobre os cuidados de um gerente (capataz). A segunda família tratada por Euclides é a de Dr.
Jorge, advogado, proprietário da fazenda, que mora com a mulher D. Helena e alguns
empregados em uma luxuosa residência na capital baiana.

Por meio da técnica do contraponto, Euclides nos apresenta a história dessas duas
famílias, que tinham uma relação de subordinação necessária (João é funcionário de Jorge e
um dos responsáveis pela sua riqueza) e viviam realidades adversas. São duas histórias
paralelas em uma mesma narrativa. Ao utilizar essa técnica de separação da sua narrativa em
duas histórias que se alternam e se completam, Euclides deixa transparecer algo de sua
ideologia. Retira de sua formação marxista, que o influenciou para além da literatura, a ideia
de uma sociedade dividida em classes.

No espaço de divisão social criado pelo escritor grapiúna, Dr. Jorge, de família rica,
casa-se com D. Helena, essa por sua vez, descobre-se grávida, contudo o marido não aceita a
gravidez e providencia os mais variados métodos para interromper o processo. D. Helena
torna-se uma mulher infeliz. Alguns anos depois por causa da fortuna que acumulou, Jorge
percebe que é chegado o momento de ter um herdeiro; entretanto não é mais possível junto à
esposa obter o que queria; tenta diversas vezes e não consegue. D. Helena abate-se. Jorge
torna-se um homem cada vez mais distante da esposa e, envergonhado por não conseguir um

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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herdeiro para administrar suas riquezas, consegue uma amante, uma loira jovem, com quem
passa a dividir sua atividade preferida: comprar brilhantes. Enquanto isso, D. Helena se isola,
cada vez mais frustrada com a não-realização da maternidade. Do outro lado, temos a
narrativa da família de João, trabalhador do campo que luta para sobreviver no terreno da
exploração, o mesmo de onde advém a riqueza da já apresentada personagem, Jorge. É sobre
o núcleo familiar de João que concentraremos nossa análise neste trabalho. Para tanto, torna-
se imprescindível transitar por alguns conceitos no campo da geografia que trarão luz à
compreensão da relação entre o homem e a terra na narrativa “Os magros”.

4. Das categorias e conceitos da Geografia para elucidar noções conflitantes da relação


homem-terra

A Geografia desde a sua sistematização enquanto ciência, no final do século XIX, se


posicionou na interface das ciências biológicas, da terra e humanas. Por essa razão, desde o
seu princípio apresenta dificuldade em definir o seu objeto de estudo por reunir em suas
análises muitos conceitos e objetos (de investigação) que são comuns a outras ciências do
conhecimento, tais como: a sociologia, a biologia, a história, a economia, além de outras.
Assim, ela se consolidou como a ciência de síntese que estuda as relações entre o homem e o
meio através do estudo do espaço geográfico. Neste contexto, ela se diferenciou e se
contrapôs às ciências supracitadas, que diante de seus caminhos teóricos e metodológicos,
foram individualizadas em ciências naturais, sociais ou humanas. Então, compreendemos, em
conformidade com Suertegaray (2001), que este paradoxo do princípio constitui-se como um
privilégio de hoje, pois na medida em que a racionalidade das ciências modernas foi se
constituindo, houve a disjunção, a separação e a compartimentação do conhecimento entre as
ciências naturais, sociais e humanas. E, contudo, diante de toda dificuldade teórico-
metodológica, coube a Geografia se consolidar como uma ciência humana mesmo estando na
intersecção entre as ciências naturais e sociais. Portanto, isso para os geógrafos
contemporâneos ergueu-se como privilégio, pois para ser considerada como um campo
científico em 1890, a Geografia teve que construir e delimitar seus conceitos (e suas
categorias) próprios para formar um conhecimento científico que abrangesse os aspectos da
natureza e da sociedade em sua totalidade. Neste sentido, concordamos com Santos (1978)
quando ele afirma que o ato de definir o objeto de estudo de uma ciência é ao mesmo tempo o
ato de definir suas categorias analíticas as quais reproduzem a totalidade dos processos. O
espaço geográfico é o objeto de estudo da Geografia, ele não é algo dado e acabado, mas algo
dinâmico, determinado historicamente como um produto da ação do homem sobre a natureza
e das relações que se estabelecem entre os homens por meio do processo de trabalho ao longo
do tempo histórico (MOREIRA, 2007). Assim, concebemos o espaço, segundo Milton Santos
(2008), como “um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de
objetos e sistemas de ações, não consideradas isoladamente, mas como um quadro único onde

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

a história se dá” (p. 51). Então, o espaço se configura como uma totalidade, isto é, como um
conjunto absoluto das partes em relação mútua. Ele é a expressão da sociedade que o
organiza e que se configura através de um determinado modo de produção.

A partir do conceito de espaço geográfico, a Geografia teve que definir e conceituar as


suas categorias analíticas (operacionais), pois é por meio delas que são realizadas as
múltiplas leituras do espaço, a saber: paisagem, território, lugar e região. Santos (2008)
conceitua paisagem como o domínio do visível, ou seja, para ele “(...) tudo aquilo que nós
vemos, o que nossa visão alcança é a paisagem. Esta pode ser definida como aquilo que a
vista abarca. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores,
sons” (p.41). Para Suertegaray (2001), a paisagem é um conceito operacional da Geografia
que ajuda a analisar o espaço geográfico em suas múltiplas dimensões: sociais, culturais,
políticas e econômicas. Nessa concepção, o conceito de espaço privilegia a coexistência de
objetos e ações (sociais e políticas) na sua face econômica e cultural manifesta. O território
é caracterizado a partir de relações de poder, ou seja, é um espaço no qual se projetou um
trabalho, e, consequentemente, revela relações marcadas pelo poder. “O território se apoia no
espaço, mas não é o espaço. É uma produção a partir do espaço. Ora, a produção, por causa
de todas as relações que envolvem, se inscreve num campo de poder” (RAFFESTIN, 1993, p.
144). Neste sentido, em consonância com Santos (2008), compreendemos que territórios são,
no fundo, relações sociais projetadas no espaço. O conceito de território deve ser visto por
todas as ciências sociais como a expressão da ocupação do espaço pelo homem, considerando
a dimensão espacial. Porém, cada ciência social concebe o território sob diferentes prismas: a
Geografia dá ênfase à materialidade do território através da relação do homem com a
natureza, a Ciência Política enfatiza suas diferentes concepções de poder no plano político, a
Antropologia privilegia a sua dimensão simbólica no plano cultural. Apenas Rogério
Haesbaert (2004), geógrafo marxista (analisa o território com diferentes enfoques), agrupou
as concepções de território em três vertentes: a) a política que enfatiza as relações de poder
de forma geral, b) a cultural que prioriza a dimensão simbólica e subjetiva do fenômeno, c) a
econômica que enfatiza a relação capital/ trabalho, e d) a naturalista que concebe o território
como resultante da transposição da ordem animal para a organização espacial humana. O
conceito de lugar deve ser compreendido para além do significado de localização geográfica,
pois como assevera Santos (2008) o lugar constitui a dimensão da existência que se manifesta
por meio da vida cotidiana das pessoas, que por sua vez, se manifestam através da rotina de
trabalho, além de outros elementos que caracterizam a base da vida comum. O lugar pode ser
trabalhado também através da perspectiva de um mundo vivido, que leva em consideração
outras dimensões do espaço geográfico, como os objetos, as ações, a técnica e o tempo. O
conceito de região tem diferentes enfoques a depender da corrente do pensamento geográfico.
Na Geografia crítica, marxista, “o conceito de região tem sido largamente empregado para
fins de ação e controle. Mais precisamente, no decorrer da prática política e econômica de

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uma sociedade de classes” (CORREIA, 1987, p. 47). Em outras palavras, geralmente, utiliza-
se o conceito de região como a diferenciação de área com o objetivo de manter o controle
“(...) territórios militarmente conquistados ou sob a dependência político-administrativa e
econômica de uma classe dominante” (p. 47). Faz-se necessário a revisão desses conceitos
pelos quais se debruçaram geógrafos e pesquisadores ao longo da história, para
compreendermos as relações de poder que se estabelece na luta pela terra, assim como a
relação de pertencimento que se pretende evidenciar neste trabalho entre o homem e a terra a
partir da narrativa euclidiana em “Os magros”.

5. A relação homem-terra em “Os magros”

A despeito dos símbolos que o vocábulo “terra” pode significar na bio/grafia de


Euclides Neto, em sua obra, o sintagma contribui para percebermos que a sua significação
dependerá do contexto em que o mesmo estiver inserido, em razão desse termo expressar as
relações de poder vigentes. As duas famílias representadas consolidam uma mesma história,
ainda que suas narrativas sejam apresentadas alternadamente, a partir da técnica do
contraponto. Esta estratégia dialética encerra, como bem observou o escritor Vitor Hugo
Martins (2014) ao prefaciar a última edição da obra em questão, que o autor Euclides Neto

por aí soube, dialeticamente (e não maniqueisticamente), representar a


riqueza, o excesso dos magros – pelo caráter e pela ética, e ainda pela
fertilidade de Isabel -, assim como a pobreza, a escassez dos gordos – pelo
desamor, pela neurose/psicose do casal, Dr. Jorge/Dona Helena, e pela
infertilidade desta.

As duas histórias não se cruzam, embora saibamos que a terra, se constitui, pois, no
elemento que vincula estas duas famílias, seja pela posse, como é o caso do proprietário da
fazenda Fartura, Dr. Jorge; seja pela forma de apropriação e/ou sobrevivência deste recurso,
como é o caso da família de João. Entendamos, pois como se consolida esta relação.

5.1 Terra: da fixidez da acomodação ao alimento daninho

Nos primórdios da história da literatura brasileira, a ideia de celebração com exagero


da terra sob forma de cor local, na qual empenhavam-se os escritores regionalistas do século
XIX para apresentar a nação por meio do seu exuberante território e vegetação, encontrou no
movimento romântico o respaldo necessário para sintetizar o regionalismo de outrora num
propósito primeiro de valorização da pátria. De acordo com Antônio Cândido (2011, p.170),

“A ideia de pátria se vinculava estritamente à de natureza e em parte extraia


dela sua justificativa. Ambas conduziam a uma literatura que compensava o
atraso material e a debilidade das instituições por meio da supervalorização
dos aspectos regionais, fazendo do exotismo razão do otimismo social”.

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Cândido (2011) aponta que tal associação “terra bela – pátria grande” evidenciaria, hora
ou outra, a consciência de subdesenvolvimento, posto que, por conseguinte, se percebeu a
realidade de “solos pobres, técnicas arcaicas, da miséria pasmosa das populações, da sua
incultura paralisante”. E, se tais imagens conflitavam com o cenário idílico construído pelo
escritor romântico, e para esse não serviam, serão sobre as mesmas que se debruçarão outros
escritores regionalistas modernos e contemporâneos numa perspectiva denunciante dos
problemas sociais que incidiram na terra, sobre a terra e em função das lutas pela apropriação
da terra. Vejamos o modus operandi do escritor Euclides Neto com esta temática.

A cena inaugural da obra, “Os magros”, escolhe a família de magros e descreve a forma
desumana com que existem aquele homem, sua esposa e seus oito filhos. A família vive num
casebre inóspito erguido no território da fazenda que paradoxalmente a esta realidade recebe
o nome de Fartura, de propriedade do fazendeiro Jorge. Fixar acampamento na terra é
condição para conseguir trabalho na lavoura, mesmo porque a família de João, devido a sua
pobreza, não tinha propriedade.

A referida cena simula o fim da migração do homem do campo que costumava fixar-se
no local que conseguia trabalho. Não era possível, pois, para este sujeito desvincular esta
relação, que se estabelecia para ele como condição, entre terra – que representa moradia –, e
terra – que se configura como o lócus da prática laboral. A literatura produzida por Euclides
Neto na década de 1960 reflete, não obstante, a realidade do trabalhador que diante da
precariedade da existência nos centros urbanos no sul da Bahia, buscava existir sobre estas
condições impostas pelos grandes latifundiários ao homem do campo. Segundo Dardel
(1990), “a situação de um homem supõe um espaço de onde ele se move; um conjunto de
relações e de troca; direções e distâncias que fixam de algum modo o lugar de sua existência”
(DARDEL, 1990, pág. 19 apud HOLZER, 1998, p.68), isso explicaria o porquê de nos
voltarmos para pensar as relações que este homem estabelece ao se fixar nesta terra, com a
própria terra e o com entorno. Essa submersão no lugar de sobrevivência de uma família rural
que nos possibilitará compreender os conflitos iminentes do homem na sua relação com a
terra originada no espaço físico e na subjetividade conflitante daquelas personagens.

Com uma família numerosa composta por oito filhos, João resigna-se em esconder este
número do encarregado 104 para garantir a estadia e o início da relação de trabalho. A relação
servil, que se estabelecia a partir da fixação do trabalhador à terra, extrapolava a relação de
trabalho, uma vez que o administrador da fazenda sentia-se livre para interferir em questões
pessoais que acreditava atrapalhar o desempenho e a produção do trabalhador. Com relação a

104Também conhecido como capataz é uma espécie de gerente responsável por administrar a Fazenda, represen -
ta a voz e a força do dono na terra

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

esta migração em busca de terra para plantar e para morar que há muito aflige o trabalhador
brasileiro, o geógrafo Milton Santos (2007, p. 60) considera que há uma forma de
compreender este movimento sob um ponto de vista humano que seria o da ausência de
direito a um entorno permanente:

Cada vez mais no Brasil, as pessoas mudam de lugar ao longo da sua


existência; o número dos que vivem fora do lugar onde nasceram aumenta
de ano para ano, de um recenseamento para outro. Condenar os indivíduos à
imobilidade seria igualmente injusto. Mas as migrações brasileiras, vistas
pelo ângulo da sua causa, são verdadeiras migrações forçadas, provocadas
pelo fato de que o jogo do mercado encontra qualquer contrapeso nos
direitos do cidadão. São, frequentemente, também migrações ligadas ao
consumo e a inacessibilidade a bens e serviços essenciais.
(SANTOS, 2007, p.60)

Admitir que o trabalhador residisse nas terras próximo à propriedade criava um vínculo
servil que dificultava a administração das relações que ora se confundiam, tanto pelo capataz,
quanto pelo trabalhador. Por vezes, o trabalhador irrefletidamente acreditava que deveria
gratidão ao proprietário por passar (mesmo que temporariamente) a ter uma moradia, ainda
que nas condições descritas abaixo, de acordo com a narrativa:

Oito meninos, abaixo dos doze anos, amontoavam-se pelo chão forrado com
esteiras esfiapadas. Estavam quase nus. Encolhidos, tinham os joelhos perto
do queixo. As mãos procuravam quentura entre as pernas. Com o
movimento do pai, mexeram-se na semiescuridão. Os menores choravam ou
grunhiam. Dois batiam os dentes. Outro disse um palavrão. Havia cheiro de
terra molhada e urina.
(EUCLIDES NETO, 2014, p.17)

Dentre as diversas conotações que o elemento terra receberá ao longo da obra, no


excerto acima é possível caracterizar um modo culturalmente empregado por povos
interioranos de confirmar a ocorrência da chuva enquanto fenômeno da natureza que produz
tal efeito. A empiria é estabelecida a partir da relação entre o homem do campo e a natureza,
e na percepção do fenômeno se constituem certezas. No cheiro da terra molhada há a
evidência da chuva. Da observação da terra é possível depreender sobre fatores
climatológicos.

Outro fator importante de ser observado no fragmento, está relacionado às condições


sub-humanas que a família se submete naquele casebre. A condição de flagelo é de tal forma
evidenciada, que provoca a desumanização daqueles sujeitos. As crianças não choravam, mas
“grunhiam” como bichos naquele cômodo frio, úmido e escuro.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Ainda no mesmo capítulo, o mesmo pedaço de terra que exalava cheiros sugerindo
chuva serviu de palco para o castigo sofrido pelo caçula da família após ter chorado de forma
inconveniente e, por esta razão, foi punido sendo obrigado a ficar em pé no pedaço de chão
molhado. De tanto comer terra para enganar a fome, as crianças de João viviam moribundas,
suas feições eram frágeis e doentias. O caçula que fora penalizado por seu choro era descrito
da seguinte forma pelo narrador: “A cabeça pendia, ora para um, ora para outro lado como
boneco que perdeu a borracha. Era um meninozinho terroso, todo ossos, olhão de bicho
doente” (EUCLIDES NETO, 2014, p. 18). A terra aparece nesta passagem como adjetivo
sinônimo de insosso, pálido, insípido, doentio, que qualificam imediato sem necessidade de
maiores adjetivações para que o leitor compreenda o estado da criança diante do quadro de
fome, desnutrição e maus cuidados.

Se para João até então, “terra” era palavra de sentido aproximado a flagelo; para
Jorge, proprietário da Fazenda Fartura, “terra” era sinônimo de lucro, riqueza, fortuna,
sintetizadas no nome da sua propriedade e na quantidade de hectares que acumulou por meio
de herança familiar. Dr. Jorge gozava de uma riqueza hereditária que crescia a partir da mão
de obra escrava, do trabalho infantil dos filhos de trabalhadores e seus familiares fixados em
sua terra. Os centros urbanos não comportavam essas famílias, não haviam, escolas, trabalho,
condições mínimas para garantir uma alternativa diferente da condição imposta a que se
encontravam aqueles trabalhadores. O geógrafo Milton Santos refletindo, duas décadas
depois do tempo cronológico desenvolvido nesta narrativa, sobre cidadania do homem
urbano e do campo conclui que:

A cidadania que falta não é apenas urbana, mas também, e sobretudo, a


cidadania rural, para a qual contribuem conjuntamente o mercado e o
Estado. O homem do campo brasileiro, em sua grande maioria, está
desarmado diante de uma economia cada vez mais modernizada,
concentrada e desalmada, incapaz de se premunir contra as vacilações da
natureza, de se armar para acompanhar os progressos técnicos e se defender
contra oscilações dos preços externos e internos, e a ganância de
intermediários. Esse homem do campo é menos titular de direitos que a
maioria dos homens da cidade, já que os serviços públicos essenciais lhes
são negados, sob a desculpa da carência de recursos para lhe fazer chegar
saúde e educação, água e eletricidade, para não falar de tantos outros
serviços essenciais.
(SANTOS, 2007, p.41-42)

Ainda que tratemos de uma obra ficcional, não se pode perder de vista que seu autor
era uma homem atento às questões de seu tempo, a ponto de suas narrativas estarem
embrenhadas de realidade, dando a sua ficção um caráter de crônica. Em razão de sua
militância ter se dado também por meio da sua escrita, vida e obra se confundem, o que nos

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

possibilita analisar a condição do homem do campo e do homem urbano a partir da relação


que ambos possuem com a terra, utilizando como ponto de partida a ficção.

A ponderação de Milton Santos é ilustrada pelas condições de vida e trabalho


oferecidas ao trabalhador rural, João, na narrativa. Oprimido pelo desenvolvimento de novas
tecnologias que otimizavam o trabalho nas lavouras do cacau, quando o mesmo mal
conseguia juntar dinheiro para trocar seu instrumento, o facão, para melhor operar na
colheita. Diariamente, era pressionado pelo intermediário Antônio (gerente da fazenda),
responsável por apená-lo, desde que descobrira que o trabalhador mentiu sobre o número de
filhos que possuía. Segundo o gerente, as crianças por serem muito jovens e desnutridas não
serviam para ajudar no trabalho na roça e ainda roubavam cacau da plantação para se
alimentar ocasionalmente, gerando prejuízo para o fazendeiro. A esse, não interessa saber que
João havia perdido sete dos quinze filhos que teve, por doença possivelmente gerada por
subnutrição, e ainda contava com dois debilitados por falta de cuidados médicos, a saúde
pública na cidade era precária e a hostilidade dos médicos que atuavam com os pacientes
pobres também é objeto de denúncia na obra.

A dialética empregada na narração das duas histórias é gritante. Conforme já antecipou


o escritor Vitor Hugo Martins (2014), sobram-lhes estúrdia, à família de fazendeiros o fausto
da vida luxuosa na capital, empregando a fortuna em viagens, regalias, vaidades, falsos
filhos, empregados; à família de trabalhadores sobram-lhes vergonha, por não garantir a
alimentação diária; desmotivação, com as longas jornadas de trabalho com ferramentas
inapropriadas; desespero, com a falta de assistência médica para tratar os filhos doentes. A
terra e vegetação se apresentam mais salubres do que o homem que consumido naquele
aprisionamento se aniquilava, via suas forças serem sucumbidas, tal qual descreve o narrador
no fragmento: “A enxada cortava a terra fofa. O cacaueiro novo, de folhas viçosas, estava
indiferente ao cansaço do homem. Cresceria ali exuberante e frondoso” (EUCLIDES NETO,
2014, p.27). A descrição ganha repulsa a medida em que contrasta com a autodescrição feita
pela personagem João no mesmo capítulo, quando lamenta “–Vida dura, meu Deus. Vida de
cachorro. Estou mais magro. Parece que os meninos estão aniquilando. Tudo magro. Você,
Isabel, está uma cazumba. Esse menino termina virando assombração mesmo. Só tem osso”.
(EUCLIDES NETO, 2014, p.28)

A aniquilação prenunciada pela personagem ocorre, sobretudo, em função da pobreza


que aquela família estava submetida, o trabalho árduo nas roças de cacau garantia uma
sobrevivência precária. No capítulo nove da obra, o narrador descreve o processo de
adoecimento do filho caçula de João que fica moribundo após comer terra para preencher o
vazio incômodo da fome. A terra, ainda neste capítulo, serve, para este narrador, de adjetivo
na tentativa de caracterizar uma das crianças que ostentava um pedaço de tripa seca na “ração

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

diária”, durante uma janta, para os demais irmãos, “Em seus dedos sujos, de unhas terrosas e
afiadas, como garras, estava a prenda. Quatro centímetros de tripa torrada” (EUCLIDES
NETO, 2014, p.35). Vale observar que a comparação estabelecida com as garras provoca uma
espécie de zoomorfização da criança, que sem atendimento às necessidades básicas da
infância, sobrevive na condição de um bicho. Tal condição faz com que aos poucos a família
de João vá diminuindo, tão logo ele perderá este filho caçula, assim como já perdera outros
cinco do mesmo mal.

No meio dos cacauais foi aberta uma vala na qual o corpo morto ficou depositado,
corpo este que serviu de alimento para as plantas que sugiram frondosas, conforme relata o
narrador, afirmando que daquelas plantas brotaram “frutos enormes”, “cheios de caroços”,
que doutor Jorge venderia para aumentar sua já afortunada riqueza. Essa imagem se concebe
como uma das mais impactantes da narrativa, posto que descreve a tragédia do flagelo
humano que serve de adubo para a terra que gerará ainda mais riqueza para o explorador,
numa lógica cruel cíclica na qual a pobreza e exploração extrema da família numerosa
daqueles trabalhadores rurais cauciona a profusão dos pequenos grupos de latifundiários, ou
seja, um contexto social marcado pela distinção do valor da vida e pela dessemelhança entre
o corpo do pobre e do rico.

Nesta narrativa, o corpo do pobre é um corpo feito para o trabalho, para a fuga e para
os maus tratos, um corpo fincado obrigatoriamente à terra, por necessidade, inclusive, de
sobrevivência. Ao passo que o corpo do rico aparece na narrativa como um manequim do
luxo – montado a partir da exploração do corpo alheio–, não há vínculo afetivo, de ocupação
ou permanência , a única relação desse corpo com a terra é de exploração desta para usufruto
noutro lugar, tendo em vista que no tempo da narrativa era comum as famílias de fazendeiros
viverem e criarem seus filhos na capital do estado, fato este que também é denunciado por
Euclides Neto com as personagens que compõe o núcleo familiar do doutor Jorge.

O capítulo vinte e um da narrativa compõe um cenário dramático no qual o menino


Aprígio é repreendido pela mãe, Isabel, por ter sido descoberto com os mesmos hábitos dos
irmãos que faleceram, alimentando-se de terra, a única coisa que se tinha de abundância
naquele contexto, e ainda assim não pertencia àquela família. Surrado pela mãe que julgava
não ter outra forma de repreender e impedir que o menino comesse a terra, concomitante, a
personagem João resignava-se em responsabilizar a terra por aquela aniquilação, quando
refletia que a terra não tinha paciência, levaria todos os meninos para adubar o solo daquelas
plantações de cacau. E comenta “quando meu pai tinha um pedaço de terra, tomaram à força.
Agora, a sina triste dá terra, mas pra menino comer, ficar opado, fazendo
assombração” (EUCLIDES NETO, 2014, p. 82), denunciando uma prática comum no sul da
Bahia de expropriação da terra, que ocorria de forma violenta e injusta. Muito latifúndio fora

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

constituído assim, um trabalhador, amigo de João acrescenta, dizendo que “Da terra, pobre só
tem direito de trabalhar para os outros. Se trabalha, labuta até morrer. Deus só faz terra para
os ricos” (EUCLIDES NETO, 2014, p. 82)

O desfecho da narrativa ocorre após semanas de muito trabalho na roça, quando João
consegue o dinheiro para comprar o facão novo e se dirige ao local para fazer a nova
aquisição, tentar desempenhar o seu trabalho com mais velocidade e aumentar um pouco seu
rendimento diário. Qual não foi a surpresa da personagem ao chegar na loja e ver que o preço
do instrumento tinha subido, não bastasse a frustração, fora humilhado pelos vendedores
quando perceberam que não tinha dinheiro para a aquisição. Essa “existência pisada105” da
personagem João é pesada demais para ele, que ao retornar para casa com sua dignidade
ultrajada, decide passar numa fazenda que fora tomada do seu pai numa expropriação
violenta ocorrida no passado. Lá, inicia-se um processo de enlouquecimento da personagem
que tomada por lembranças do passado, constrói a fantasia que naquela terra em que foi feliz
estaria escondida uma riqueza que daria uma vida digna a sua família. A terra que foi palco
de uma infância amena começa a ser escavada obstinadamente por aquele homem com seu
facão velho e cego. Tamanho é cova aberta, na indubitabilidade de que a posse de uma terra
seria a única saída daquela sua condição. A narrativa se conclui permitindo ao leitor imaginar
que aquele sujeito é engolido pelo seu sonho telúrico.

6. Considerações finais

Espera-se tudo do escritor da literatura regionalista, menos a neutralidade. O olhar


lançado sobre um problema local sempre há de denunciar uma macro questão social. São
distintas as conotações dadas à terra, a partir da figura do autóctone e do colono
representados por meio da narrativa euclideana, entretanto a grande questão posta em
discussão em terreno contraditório e inóspito, tal qual foi a década de 1960 no Brasil, é a má
distribuição da terra denunciada através desta narração e da militância do autor.

Somente um olhar literário sobre a narrativa permite o trânsito pelas diferentes


significações que a terra ganha neste contexto. A terra é o espaço do conflito, é o objeto da
apropriação para acúmulo de capital, é o que fecunda o alimento, é o próprio alimento, é rota
de fuga, é lugar da fixidez, é o meio para ostentação do poder para o grande latifundiário é
também o lugar do sustento que engole o homem do campo que dela já não consegue viver,
para concordar com o fim da narrativa “Os magros”. E talvez, este fim seja o motivo pelo
qual esta narrativa passa pela censura. O aniquilamento do homem é feito pela própria terra, e

105Como tão bem caracterizou a escritora Clarice Lispector ao se referir, em entrevista, a sua emblemática Ma -
cabéia, de “A hora da estrela”.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

se em tempos mais insólitos a terra serviu de alimento aos filhos de João, no fim, João,
símbolo maior da exploração a qual o trabalhador rural fora por décadas submetido por
grandes latifundiários, transforma-se em alimento para a própria terra, na cova cavada num
momento que simula o enlouquecimento, João e a terra são uma coisa só. Tamanha é a sua
fixidez e fixação naquele buraco aberto sob o sol escaldante no qual se encerrará sua
trajetória.

A relação homem-terra ganha nesta narrativa euclidiana dimensões que extrapolam os


limites da sobrevivência, o homem sai da condição de usufrutuário da terra para fins
alimentares e à terra é conjugado tal qual alimento, como uma coisa só, num processo que
aniquilamento que põe em evidência a terra em detrimento do homem. É a natureza quem sai
vitoriosa no embate entre as classes pela posse da terra, numa espécie de confirmação,
naquele momento histórico, da impossibilidade do homem do campo ser-lhe superior e
vencer a luta pela terra.

Euclides Neto, ao utilizar como mote a luta de classes, se inscreve no rol dos escritores
que se tornam universais pelas defesas dos temas também universais. Para além na
monocultura do cacau, da pobreza e da miséria do trabalhador sul baiano, da opulência dos
grandes latifundiários das roças de cacau, está a denúncia da luta entre o opressor e o
oprimido.

Referências

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CANDIDO, Antônio. A educação pela noite. 6ª ed. Rio de janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.
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2010.
MONTEIRO, Carlos Augusto de Figueiredo. O mapa e a trama: ensaios sobre o conteúdo
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SUERTEGARAY, D. M. A. Espaço geográfico uno e múltiplo. In: Revista Scripta Nova, nº
93, 15 de Julio de 2001. Disponível (http://www.ub.es/geocrit/sn-93.htm). Acesso:
25/08/2016.

La traducción literaria como proyecto colaborativo. La propuesta de la


revista Pontis - Prácticas de Traducción 106

Mayte Gorrostorrazo
Universidad de la República
mayte.gorrostorrazo@fic.edu.uy

Introducción

En este trabajo presentamos la revista Pontis - Prácticas de Traducción, un proyecto


seleccionado en la categoría Revistas Especializadas en Cultura de los Fondos Concursables
para la Cultura por el Ministerio de Educación y Cultura de Uruguay en su convocatoria

106 El presente artículo es una versión modificada del texto titulado «La propuesta de Pontis», publicado en
Pontis - Prácticas de Traducción, n.º 1, febrero-marzo 2016. Disponible en <http://www.revistapontis.com/p/es/
1/7>.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

2015. Se trata de una revista digital bilingüe español-portugués para la divulgación de la


literatura uruguaya en Brasil y de la literatura brasileña en Uruguay, a partir de la traducción
de textos narrativos pertenecientes a autores seleccionados de ambos países. Pretende,
además, constituirse como un espacio de debate sobre el quehacer de la traducción literaria en
ámbitos no necesariamente académicos y de formación de jóvenes traductores uruguayos.

Orígenes

La idea de la revista Pontissurge de la inquietud de docentes, egresados y estudiantes


de la carrera de Traductorado Público de la Universidad de la República por incursionar en la
traducción literaria, ya que dicha carrera restringe su alcance al ámbito jurídico. Asimismo, el
proyecto responde a la necesidad de crear un espacio propicio para la formación de jóvenes
traductores uruguayos en el área de la traducción literaria y de generar intercambios con otros
estudiantes y profesores no solo de Uruguay, sino también de Brasil. Esto explica el nombre
de la revista Pontis, genitivo latino de pons ‘puente’, que precisamente expresa la idea
concreta de intercambio de prácticas y aprendizajes y de vinculación entre países diferentes.
Es importante destacar que las traducciones no son realizadas desde una perspectiva
profesional, menos aún definitiva. El equipo de traductores de Pontis tiene plena conciencia
de que la práctica de la traducción no es un proceso cerrado: diferentes lecturas, diferentes
contextos, ciertamente resultarán en distintas interpretaciones de los textos en cuestión.
Precisamente por ser un equipo que se encuentra en formación y por saber que la traducción
no es un producto acabado, sino un proceso cíclico y abierto, la revista cuenta con el apoyo y
la colaboración de docentes y estudiantes de la Universidad de la República (Uruguay), de la
Universidade de Brasília, de la Universidade Federal de Santa Catarina y de la Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (Brasil), siendo dicho intercambio uno de los aspectos más
innovadores de este proyecto.

Justificación teórica y objetivos

De acuerdo con Rocca (2012), a principios del siglo xx ocurre cierta floración de
traducciones de obras brasileñas en el Río de la Plata; fueron algunas obras de Machado de
Assis las que originaron las primeras traducciones. En 1902 surge la primera traducción
mundial de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1885), en el folletín del diario La Razón,
realizada por el periodista y traductor uruguayo Julio Piquet. Dos años más tarde, la
Biblioteca de La Nación publica la traducción de Esaú y Jacob (1904).

A pesar de ese primer gran paso, las traducciones uruguayas de textos literarios
brasileños no han mantenido el mismo florecimiento hasta nuestros días. Para observar este
fenómeno, basta con pasar por las librerías de la capital montevideana y observar los
principales títulos de las vitrinas (casi ninguno refiere a la traducción de una obra brasileña).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Siguiendo a Candido (1975-2000), concebimos la literatura como el conjunto de obras


literarias relacionadas por elementos en común en determinada cultura, que responde a una
organización que puede entenderse como un sistema en el que se vinculan productores
literarios, lectores y mecanismos de transmisión, conformando una tradición que impone
ciertos patrones de pensamiento y comportamiento que funcionan como marcos de
referencia. A su vez, no se trata de un sistema cerrado, sino de una estructura abierta que
mantiene vínculos con otros fenómenos, estructura a la que la teoría de los polisistemas
desarrollada por Even-Zohar denomina redes de relaciones (EVEN-ZOHAR, 1990). En este
sentido, el mercado editorial posee un papel crucial para la circulación de textos literarios y
sus traducciones, dado que es allí donde entra en juego la selección de cuáles obras serán
publicadas y cuáles traducidas.

Según Guedes (2013), en la actualidad, si bien el de habla española es uno de los


principales mercados en los que circulan las traducciones hechas del portugués, de acuerdo
con el índice de obras traducidas de la Unesco (IndexTranslationum), el portugués ocupa el
decimoctavo lugar dentro de las lenguas desde las cuales se traduce; por otra parte, en el
ranking de lenguas de destino, el portugués se ubica en el octavo lugar, lo cual indica que se
traduce mucho más desde otras lenguas al portugués que viceversa. En lo que respecta a las
lenguas fuentes, el portugués se encuentra en la octava posición de las diez principales
lenguas traducidas al español; de las traducciones para España baja al décimo lugar. Podemos
afirmar entonces que la poca circulación de traducciones de textos escritos en portugués no es
una particularidad del mercado editorial uruguayo, sino de todo el mercado hispanohablante.

Creemos que estas son algunas de las razones por las cuales el sistema literario
uruguayo ha tenido escasa penetración de traducciones de obras brasileñas. De acuerdo con
Guedes, lo mismo sucede en toda Hispanoamérica: no es posible afirmar que las obras
literarias brasileñas formen parte de ese sistema, pues no se comparten modelos o reglas de
repertorio y es poco frecuente que los lectores hispanoamericanos de obras brasileñas
reconozcan dichas obras como parte de su repertorio cultural (EVEN-ZOHAR, 2010, y
VILA, 2012, en GUEDES, 2013).

En las últimas décadas, a excepción de traducciones emprendidas por algunas


destacadas personalidades del escenario literario uruguayo —entre ellos Pablo Rocca, Heber
Raviolo, José María Obaldía, María Esther Gili— o encomendadas por algunas editoriales
locales —como Ediciones de la Banda Oriental—, las traducciones nacionales de obras
literarias brasileñas en el mercado editorial uruguayo han sido de escasa circulación, sobre
todo si se piensa en la inmensa producción literaria del país vecino. En contraparte, si bien no

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

contamos con datos específicos, es posible conjeturar que lo mismo ocurre para el caso de
traducciones al portugués de textos de autores uruguayos.

Al no existir una fuerte tradición de circulación de obras literarias brasileñas en


nuestro mercado editorial, es probable que este tampoco fomente las traducciones nacionales.
Este escenario, ejemplo de lo poco que se traduce del portugués como lengua fuente y de que,
según Guedes, de esas traducciones la mayoría se realiza en España (GUEDES, 2013),
constituye una de las razones que impulsaron la creación de Pontis.

Por lo mencionado anteriormente, la revista busca propiciar la circulación alternativa


de traducciones de obras literarias uruguayas y brasileñas, ya que no está regida por las
normas y restricciones que en general gobiernan la producción y recepción de las
traducciones en el mercado editorial. Además, ante la falta de espacios o publicaciones
nacionales destinados exclusivamente a la discusión sobre los estudios de la traducción
literaria y a la divulgación de traducciones inéditas de textos locales, Pontis puede instituirse
como un ámbito propicio para fomentar dicho debate y puede desempeñar un importante
papel en la ocupación de áreas vacantes respecto a autores, géneros y temas (WILSON,
2004), es decir, puede constituir una posibilidad de ampliación o modificación de las
relaciones existentes entre autores-obras-públicos propias de los distintos sistemas literarios
uruguayo y brasileño (CANDIDO, 1975-2000). Por todo ello, uno de los objetivos de este
proyecto es aumentar el caudal de traducciones, hechas por traductores locales, de textos
literarios brasileños y uruguayos, su alcance y circulación, así como incorporar al número de
traducciones ya hechas autores u obras inéditas en cuanto a su traducción. De esta forma,
Pontisno se restringe a la traducción de literatura canónica, sino que también busca contribuir
a la introducción de nuevos autores y obras en el repertorio literario.

Práctica de traducción: procedimiento colaborativo

A continuación, se detallan las etapas del proceso de traducción realizado para cada
número publicado de la revista.

Primeramente, el equipo de Pontis selecciona el autor y los textos de cada número


basado en criterios referentes a la inserción del autor en la comunidad de la lengua para la
cual las obras son traducidas: se privilegian autores no canónicos o contemporáneos de Brasil
y Uruguay, ya que creemos fuertemente que la selección de los textos que serán traducidos
incide no solo en la cultura a la que ingresan en lengua vernácula, sino también en la cultura
de la cual están siendo «exportados». Posteriormente, los originales, tanto en lengua española
como en lengua portuguesa, pasan por un proceso de revisión para adaptarlos a las
convenciones de estilo de cada una de las lenguas, considerando que algunos de los autores

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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escogidos pertenecen a épocas en las que las normas ortográficas actuales aún no estaban
vigentes.

Una vez revisados los textos originales a ser traducidos, el equipo de Pontis organiza
la distribución de las traducciones: en caso de que sean al español, lengua materna de la
mayoría de los integrantes, las traducciones son individuales; en caso de que sean al
portugués, las traducciones son hechas en pareja, con el objetivo de propiciar el intercambio
de ideas y aprendizajes desde la primera versión de cada una de estas traducciones.

Cuando la primera versión está pronta, los documentos son compartidos virtualmente
con el resto del grupo para discutir sobre los aspectos que causaron mayores dudas y sobre
otros puntos que, en una lectura más general, puedan haber pasado desapercibidos por los
propios traductores. Luego, el equipo se reúne presencialmente para analizar con mayor
detalle los aspectos señalados en la instancia anterior, lo cual, finalmente, permite el envío de
las traducciones a alguna de las siguientes universidades brasileñas: Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Universidade de Brasília y Universidade Federal de Santa Catarina.

En estas instituciones, se realizan fértiles contribuciones para la mejoría de las


traducciones por parte de estudiantes y docentes de disciplinas relacionadas con la traducción
español-portugués, las cuales son reenviadas al equipo de Pontis de forma virtual. Después de
esta instancia, las correcciones y comentarios hechos por los pares brasileños son discutidos
por todos los integrantes de la revista, y luego el traductor o la pareja de traductores de cada
texto se responsabiliza por tomar las decisiones finales referentes a la traducción en cuestión.
Por último, las traducciones pasan por los procesos finales de revisión y diagramación. Estas
son firmadas por los traductores responsables y, en el editorial de cada número, se hace
mención de todos aquellos que hayan contribuido en el proceso de traducción y revisión de
los textos.

Esta manera de proceder permite el intercambio recíproco de opciones y prácticas de


traducción entre estudiantes del área y recién graduados de ambos países, a la vez que
funciona como un ámbito de formación en traducción literaria para aquellos que no cuentan
con esta opción en su carrera universitaria de grado. Por otra parte, permite contar con la
mirada de hablantes nativos de cada una de las lenguas involucradas, lo cual redunda en un
enriquecimiento, además de lingüístico, cultural.

Descripción y estructura de la revista

La revista Pontis - Prácticas de Traducción es una publicación de carácter totalmente


digital, lo que da mayor celeridad a su divulgación, además de un evidente aprovechamiento
de recursos.

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contemporâneas

El equipo editorial se ha propuesto la publicación de seis números, de carácter


bimestral, en el transcurso de doce meses, específicamente en febrero/marzo, abril/mayo,
junio/julio, agosto/setiembre, octubre/noviembre y diciembre de 2016. Cada número está
dedicado a textos de un autor, uruguayo o brasileño. Las obras a ser traducidas cumplen con
la condición de ser de dominio público o cedidas explícitamente por sus autores. Dado el
interés del equipo en traducir exclusivamente narraciones literarias para este proyecto, y dada
la limitación de espacio impuesta por el propio tipo de publicación, los textos seleccionados,
dependiendo del autor, son de dos tipos: cuentos breves o crónicas.

Además de la sección destinada a la divulgación de los textos y sus correspondientes


traducciones, la revista cuenta con otras dos secciones: una dedicada al área literaria, titulada
«Presentación del autor», en la que se brindan datos de interés del autor tratado en el volumen
y características generales de su obra, y otra orientada a la reflexión sobre la actividad del
traductor, cuyo título es «El quehacer del traductor» y en la que se presentan artículos
referentes a la actividad traductora, específicamente a la literaria. Ambas secciones están a
cargo de prestigiosos investigadores y profesores universitarios de las áreas de literatura,
lingüística y traducción, tanto uruguayos como brasileños.

Como ya se ha señalado, la revista es bilingüe, por lo tanto, todas las secciones se


presentan en español y en portugués. Las traducciones de los textos no literarios también son
hechas por traductores del equipo de Pontis.

El índice de cada número está estructurado de la siguiente forma:


● Editorial.
● Sección «El quehacer del traductor».
● Sección «Presentación del autor». Para el caso de autores contemporáneos, el equipo
editorial realiza una entrevista al autor seleccionado en la cual intenta reflejar
opiniones del autor sobre su propia obra y la posibilidad de que esta sea traducida.
● Sección «Textos seleccionados». Las traducciones se publican al lado de los textos
originales correspondientes, con la intención de facilitar el análisis y el debate que el
equipo se propone.
Al estar alojada en un sitio web especialmente desarrollado para este proyecto,
www.revistapontis.com, la revista también cuenta con contenidos interactivos y multimedia:
● Comentarios: espacio abierto destinado a observaciones acerca de las traducciones
propuestas, tanto por parte de los traductores como de los lectores, lo cual estimula el
intercambio y propicia un mayor aprendizaje.
● Notas del traductor: contenido desplegable destinado a breves reflexiones sobre
algunos aspectos o pasajes de la traducción propuesta.

!240
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

● Notas biográficas: espacio destinado a dar a conocer el perfil académico y profesional


de los profesores colaboradores que escriben en cada número para las secciones «El
quehacer del traductor» y «Presentación del autor».
● Audios: en cada número, se dispone de archivos de audio que contienen la lectura de
los textos elegidos y de sus traducciones. Para ello, los integrantes del equipo, junto
con un invitado por cada número (traductores, artistas o personalidades destacadas del
ámbito cultural), realizan grabaciones de la lectura de los textos mencionados. Los
audios no solo enriquecen la revista con un nuevo medio, el sonoro, sino que también
permiten el acceso de personas de visión disminuida a los textos originales y a sus
correspondientes traducciones.

Además de estos contenidos alojados en el propio sitio electrónico, Pontisdispone de


un boletín de noticiasque es enviado a todos los contactos con cada nuevo número de la
revista. La difusión de cada número también se realiza mediante las cuentas de Pontis en las
redes sociales Facebook (/revistapontis) y Twitter (@revista_pontis), en las cuales además se
publican otros contenidos de interés vinculados a la traducción literaria, cuestiones culturales
de Brasil y Uruguay, así como el contenido titulado por Pontis«Palabra de la semana», en el
que se comparten curiosidades etimológicas de algunos términos de los textos seleccionados
o traducidos por el equipo. La revista también cuenta con un canal de Youtube, Revista
Pontis, en el que se encuentran disponibles los audios mencionados anteriormente.

En el sitio web, los usuarios pueden enviar su información de contacto, lo que


proporciona una base de datos para el envío del boletín. A su vez, pueden descargar y
compartir la publicación en formato .pdf, lo cual amplía el acceso a los textos y el impacto de
su difusión.

Por último, la revista también cuenta con un blog en el que se publica información
referente al proyecto en particular y a la traducción literaria en general.

Números publicados hasta la fecha


Pontis n.º 1, febrero-marzo 2016
● Autora seleccionada: JúliaLopes de Almeida (1862-1934, Brasil).
● Sección «El que hacer del traductor»: escrita por el Dr. Pablo Rocca, «Cruzar la
frontera: literatura uruguaya editada en Brasil / literatura brasileña editada en Uruguay
(una muestra: 1945-2008)».
● Sección «Presentación del autor»: escrita por la Dra. Anna Faedrich.
● Cuentos seleccionados traducidos (reproducido del editorial del mencionado número):
«¡Ah! ¡Los señores feministas!»: desahogos nerviosos de un hombre cuya
esposa no llegó a la hora de la cena. Traducido por Federico Sörensen.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

«¿Te das cuenta?»: diálogo entre amigos sobre las inconstancias femeninas.
Traducido por Mayte Gorrostorrazo.
«Si yo fuese otra…»: monólogo de una mujer ofendida por su marido.
Traducido por María Noel Melgar.
«Si, por un cataclismo…»: monólogo de un hombre acerca de las pretensas
habilidades manuales de las mujeres. Traducido por Carla Rapetti.
«¡Soñar es vivir!»: diálogo entre amigos sobre la importancia dada por las
mujeres a los sueños y sus interpretaciones. Traducido por SthefaniTechera.

Pontis n.º 2, abril-mayo 2016


● Autora seleccionada: ElaineMendina (1956, Uruguay).
● Sección «El quehacer del traductor»: escrita por la Dra. Alma Bolón, «AnneDacier: la
candente actualidad de una partidaria de los “antiguos”».
● Sección «Presentación del autor»: entrevista a la autora ElaineMendina, realizada por
el equipo editorial de Pontis.
● Cuentos seleccionados (reproducido del editorial del número mencionado):
«Caña de azúcar»: relato de la aventura de dos citadinos en la cosecha de
caña de azúcar al norte del Uruguay. Traducido por Leticia Lorier y Mayte
Gorrostorrazo.
«Final de cuento»: narrtiva sobre la amistad de dos escritores y de las
fantásticas consecuencias de su proceso creativo. Traducido por Amanda
Duarte Blanco y Manuela Pequera.
«Ginebra»: historia sobre la búsqueda de un amor posible. Traducido por
Federico Sörensen y Verónica Machado.
«Quileros»: relato sobre la iniciación de un muchacho en la actividad del
contrabando. Traducido por Carla Rapetti y María Noel Melgar.

Pontis n.º 3, junio-julio 2016


● Autor seleccionado: Rafael Bán Jacobsen (1981, Brasil).
● Sección «El quehacer del traductor»: escrita por el Dr. Walter Costa, «El texto
traducido como retextualización».
● Sección «Presentación del autor»: entrevista al autor Rafael Bán Jacobsen, realizada
por el equipo editorial de Pontis.
● Cuentos seleccionados traducidos (reproducido del editorial del número mencionado):
«Anotaciones del azar en una taza de café»: narrativa sobre un adivino y su
futuro próximo. Traducido por Carla Rapetti.
«Caligrafía del espanto»: historia sobre dos jóvenes y un árbol misterioso.
Traducido por Manuela Pequera y Leticia Lorier.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

«Korban»: narración, bajo una visión infantil, al respecto de una ofrenda


religiosa. Traducido por Verónica Machado.
«Cuando ellos llegaron»: relato sobre la condición humana a partir de la
llegada de extraterrestres.Traducido por Federico Sörensen.
«Sustancia»: cuento sobre un joven de familia judía y su lucha por la
supervivencia en la época nazi. Traducido por SthefaniTechera.

Pontis n.º 4, agosto-setiembre 2016


● Autor seleccionado: Hugo Burel (1951, Uruguay).
● Sección «El quehacer del traductor»: escrita por la traductora pública Beatriz Sosa
Martínez, «Traductología: proyecto, crítica y cultura».
● Sección «Presentación del autor»: entrevista al autor Hugo Burel, realizada por el
equipo editorial de Pontis.
● Cuentos seleccionados (reproducido del editorial del número mencionado):
«Contraluz»: relato que cuenta situaciones sucedidas el día en que el
protagonista de la historia decide pasearse desnudo por su pueblo.
Traducido por Verónica Machado y María Noel Melgar.
«El rock de la mujer perdida»: cuento que trata sobre una apasionada
relación entre dos personas, una desaparición inesperada y unos años
oscuros marcados por la duda y la incertidumbre. Traducido por Amanda
Duarte y Mayte Gorrostorrazo.
«Hombre en un zaguán»: insólito relato en que un hombre se encuentra en
la patética situación de quedar atrapado en el zaguán de su casa, metáfora,
quizás, de la prisión de su propia vida. Traducido por Leticia Lorier y
Manuela Pequera.
«Pincelada de azul sobre gris»: cuento que nos habla de un hombre sin una
identidad clara y sobre su paso, real o imaginario, por diferentes lugares
que le son familiares y ajenos al mismo tiempo. Traducido por Carla
Rapetti y Federico Sörensen.

Queremos aprovechar esta ocasión para agradecer el apoyo del Ministerio de


Educación y Cultura y de la Facultad de Información y Comunicación de la Universidad de la
República, las colaboraciones de la Universidade Federal do Rio Grande do Sul, la
Universidade Federal de Santa Catarina y la Universidade de Brasília, y el afecto recibido por
parte de nuestros lectores y de todos aquellos que hacen que este proyecto sea una realidad.

Bibliografía

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

CANDIDO, A. A formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte:


Editora Itatiaia Ltda, 1975-2000.
EVEN-ZOHAR, I. «PolysystemStudies», en PoeticsToday. 1990, 11; 1. Disponible en:
<http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/books/ez-pss1990.pdf>.
GUEDES, L. «Literatura brasileira emtradução: a trajetória de livros brasileiros
traduzidosaocastelhano». Disponible en: <http://www.gelbc.com.br/
pdf_anais_forum_estudantes/luciana_guedes_2013.pdf>.
ROCCA, P. Un experimento llamado Brasil y otros estudios. Montevideo: Ediciones de la
Banda Oriental, 2012.
WILSON, P. La constelación del sur. Traducciones en la literatura argentina del siglo XX.
Buenos Aires: Siglo XXI, 2004.

Um diálogo modernista entre as obras Azulejos (1963) e Primeiro Caderno do aluno de


poesia Oswald de Andrade (1928)

Natércia Moraes Garrido


Programa de Estudos de Pós-graduação em Literatura e Crítica Literária
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP
naterciagarr@hotmail.com

Resumo: este trabalho tem por objetivo revelar aproximações e distanciamentos entre duas
obras poéticas modernistas que se separam temporalmente entre si: Azulejos (1963), do poeta
maranhense Nascimento Morais Filho, e Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de
Andrade (1928), do poeta paulista Oswald de Andrade. Para fundamentar esse diálogo, nos
amparamos na teoria da Literatura Comparada pensada por Carvalhal (2003) e Perrone-
Moisés (1998).

Palavras-chaves: Poesia. Modernismo. Aproximações. Distanciamentos.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho direciona suas reflexões para alguns aspectos literários e linguísticos que
se destacam nas obras poéticas pertencentes ao Modernismo brasileiro Azulejos (1963) de
Nascimento Morais Filho e Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade
(1927) de Oswald de Andrade. Apontaremos, no decorrer da análise destas obras, como são

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

utilizados alguns procedimentos caracteristicamente modernistas, a fim de verificar


aproximações e distanciamentos na escrita empregada pelos autores.

Segundo Moisés (1998, p.91),


Qualquer estudo que incida sobre as relações entre duas ou mais
literaturas nacionais pertence ao âmbito da literatura comparada.
Essas relações podem ser estudadas sob vários enfoques: relações
entre obra e obra; entre autor e autor; entre movimento e movimento;
análise da fortuna crítica ou da fortuna de tradução de um autor em
outro país que não o seu; estudo de um tema ou de uma personagem
em várias literaturas etc.

Quando nos propomos a analisar duas obras literárias sob o viés comparatista,
buscamos fazer as relações entre os textos, observando além de seus aspectos externos–
época de produção, contexto social e estética literária – também seus aspectos internos, como
temática, técnicas de escrita e as peculiaridades e procedimentos de criação de cada um dos
autores escolhidos. Isto serve para conseguirmos estabelecer com sucesso as comparações e
proporcionar um olhar mais denso e pontual sobre essas obras.

Adotar como procedimento de estudo a verificação das relações nos textos literários
entre si ou destes com outras linguagens, é um dos objetivos dos estudos comparados como
um todo. Isto dá a amplidão de olhar que a arte literária busca. Os estudos comparados aqui
servirão para demonstrar o quão perto ou longe em sua arte poética Oswald de Andrade e
Nascimento Morais Filho se encontram e se afinam, apontando peculiaridades e eventuais
diferenças entre as obras, colocando-as em um patamar de interação.

2 NASCIMENTO MORAIS FILHO E OSWALD DE ANDRADE: UM OLHAR


SOBRE SUAS POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS

O poeta paulista Oswald de Andrade (1890-1954) é um dos catalisadores, se não o


principal autor que buscará a ruptura do que se conhecia até então como arte no Brasil, no
início do século XX. Esse é o período em que as vanguardas europeias difundiam-se
amplamente no continente europeu e chegam aqui por meio do contato de artistas brasileiros
que tiveram certa vivência na Europa, dentre eles, Andrade. Por ter viajado para o velho
continente ainda na década de 1910, ele teve contato com esses movimentos artísticos, em
especial com o Futurismo e com o Cubismo. Com uma escrita que agrega humor e crítica,
desde suas primeiras publicações, Andrade já demonstrava que pretendia abalar o cenário
literário brasileiro nas duas primeiras décadas do século XX, época em que predominava uma
produção poética influenciada ainda, e sobretudo, pela estética parnasiana.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Em um cenário cultural permeado por constantes indagações e desejos de mudança,


Andrade consegue reunir em torno de si não só escritores, mas intelectuais provenientes de
várias vertentes artísticas, para não só refletir, mas produzir e mostrar as novas ideias de
renovação nas artes. A intenção de mostrar à sociedade todas essas novas formas de pensar
artístico culmina na emblemática Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de
São Paulo, em 1922. Sobre este evento, Cândido (2010, p.125) diz que

foi realmente o catalisador da nova literatura, coordenando, graças ao seu


dinamismo e à ousadia de alguns protagonistas, as tendências mais vivas e
capazes de renovação, na poesia, no ensaio, na música, nas artes plásticas.
Integram o movimento alguns escritores intimistas como Manuel Bandeira,
Guilherme de Almeida; outros mais conservadores, como Ronald de
Carvalho, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo; e alguns novos que
estrearam com livre e por vezes desbragada fantasia: Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, na poesia e na ficção; Sérgio Milliet, Sérgio Buarque
de Holanda, Prudente de Moraes Neto, no ensaio. Dirigindo aparentemente
por um momento, e por muito tempo proclamando e divulgando, um escritor
famoso da geração passada: Graça Aranha.

A obra Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade nasce no


contexto pós-Semana de Arte Moderna e reflete uma escrita mais amadurecida e afinada com
a proposta literária modernista pensada por Andrade. A obra contém vinte e três poemas
divididos em dois poemas introdutórios, dezessete poemas na parte intitulada As Quatro
Gares e quatro poemas na parte intitulada Balas de Estalo. Segundo Cândido & Castello
(2001, p. 77), a obra é publicada em 1927 quando o autor retorna de uma viagem à Europa
iniciada em 1924. Ela também coincide com a publicação do Manifesto Antropófago, quando
Andrade funda a Revista de Antropofagia.

Para Cândido & Castello (2001, p. 77), Primeiro caderno busca uma interpretação
lírica do seu país, por meio de uma poesia reduzida ao essencial, despojada de artifício, cujo
efeito repousa na força sugestiva das palavras. O poder de uma linguagem sintética aliada a
um (re) descobrimento da pátria é uma característica que percebemos no poema anacronismo
(ANDRADE, 1974, p.158): “O português ficou comovido de achar/ Um mundo inesperado
nas águas/ E disse: Estados Unidos do Brasil.”

Em 1922, mesmo ano em que ocorreu a Semana de Arte Moderna e que a cidade de
São Paulo vivia a efervescência cultural ocasionada pelas ideias questionadoras dos
intelectuais modernistas, nascia em São Luís, capital do Maranhão, o autor Nascimento
Morais Filho. Filho de outro intelectual de renome, o escritor, professor e jornalista José do
Nascimento Moraes, Moraes Filho chega ao cenário intelectual maranhense sem ter tido as
mesmas condições financeiras de que desfrutou Andrade – este era burguês e rico; já o
maranhense vinha de família humilde porém bem projetada intelectualmente.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Morais Filho faz parte de uma geração de poetas maranhenses, a “geração Bandeira
Tribuzzi”, que conheceu tardiamente os ventos modernistas. Esses intelectuais começam a
escrever poesia em fins da década de 1940 apropriando-se mais de elementos modernistas do
que seus antecessores, buscando uma linguagem próxima da expressão popular e abordando
temas de maior engajamento social. Ainda nesta década, Morais Filho funda o Centro
Cultural Gonçalves Dias, uma agremiação que tinha o intuito de trazer discussões literárias e
culturais mais amplas para aquela geração ludovicense, que ainda escrevia poesia ao estilo
parnasiano.

Em depoimento dado à Correa (1989, p.66-67), Morais Filho diz o seguinte a respeito
desta época no Maranhão e do Centro Cultural Gonçalves Dias:

Faltava o importante, que era uma congregação, reunir, para um


determinado objetivo: daí surgiu o Centro Cultural Gonçalves Dias.
Teoricamente já estava fundado, pois nos reuníamos no Bar Paulista e à
noite, na Galeria do Carmo, para declamar poesias e discutir literatura. Não
era um movimento de escola literária: o movimento era cultural, portanto
global. Envolvia tudo – não houve nunca antes no Maranhão um movimento
nesse sentido.

Neste aspecto Morais Filho se assemelha à Andrade: no espírito rebelde e desejoso de


mudanças; e no ato de reunir grande parte da intelectualidade maranhense desta época, que
consistia antigos e novos nomes, a fim de promover debates literários mais consistentes. Para
acompanhar as ideias já estabelecidas nacionalmente, os jovens intelectuais maranhenses
tiveram que atualizar suas leituras não só com os textos do poeta português Fernando Pessoa,
como dos já consagrados pela crítica como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de
Andrade.

Azulejos, publicada em 1963, é a segunda obra poética de Morais Filho e tem como
tema predominante a infância e a relação do menino José com sua mãe e com outras pessoas
de seu convívio, além de trazer questionamentos sobre o mundo que o cerca. É uma obra que
contém 168 poemas e emprega uma linguagem popular, com expressões caracteristicamente
maranhenses. Logo no primeiro poema, por exemplo, percebemos a força da linguagem
sintética, bem ao gosto modernista, aliada à presença da figura feminina:
“mamãe!” (MORAIS FILHO, 2013, p.11). Neste verso interpretamos como o grito de todos
nós, não só enquanto crianças, mas ainda adultos com a essência da criança viva em nós.

Observamos que existe uma lacuna de 36 anos entre as duas obras analisadas, e que
muito aconteceu no movimento modernista da década de 1920 até a década de 1960. O
próprio Oswald de Andrade já havia falecido quando Morais Filho publica seu Azulejos, em

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

1963. Mesmo assim, encontramos aproximações entre elas, até mesmo no sentido da
maturidade de seus autores: Andrade tinha 37 anos quando publica Primeiro caderno do
aluno de poesia – mantinha na essência de sua escrita o humor e a crítica ao país para, em
seguida, delinear no Manifesto Antropófago sua proposta para uma literatura nacional. Já
Morais Filho tinha 41 anos quando publicou Azulejos em 1963, abordando a temática da
infância e tudo o que se remete a este universo – sem dúvida essencialmente diferente de sua
obra de estreia, Clamor da hora presente (1955), que continha uma poesia engajada
carregada de uma linguagem combativa e ferina.

Como já dissemos, Primeiro caderno contém vinte e três poemas abordando


predominantemente o tema da pátria; e Azulejos contém 168 poemas cuja temática
dominante é a infância e o olhar para o mundo que cerca a criança José. Ambas as obras
seguem as características do movimento modernista no tocante ao uso da linguagem. Os
poemas de Azulejos não tem título e são escritos sem utilizar letras maiúsculas. No caso de
Andrade, todos os títulos dos poemas de Primeiro caderno do aluno de poesia estão em
minúsculas, mas os poemas ainda fazem distinção entre maiúsculas e minúsculas. Em ambas
as obras, observamos o predomínio da linguagem oral e a valorização da cultura popular
brasileira.

A ironia está mais presente em Andrade do que em Morais Filho, como é bem
característico na primeira fase do Modernismo. O poema enjambement do cozinheiro preto
(ANDRADE, 1974, p.164), já contém ironia desde o título, ao mesmo tempo em que alia a
desconstrução da técnica do enjambement, termo francês usado para indicar um processo
poético que, segundo Goldstein (2008, p.92), é uma construção sintática especial que liga um
verso ao seguinte para completar seu sentido. O poema revela a profissão comum de José – a
de cozinheiro – e ainda destaca sua raça – a negra. O poema fala de forma engraçada sobre a
habilidade dele, cuja figura também está inserida no cotidiano comum da cidade:

Chamava-se José
José Prequeté
A sua habilidade consistia em matar de longe
Decepando com uma larga e certeira faca
Cabeças
De frangos, patos, marrecos, perus, enfim,
Da galinhada solta no quintal
Do Grande Hotel Melo

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Morais Filho também se vale do humor, não tão mordaz e irônico quanto Andrade,
para se referir a várias situações comuns na infância, como a do seu José e o que ele vende
em sua quitanda:

ah! se eu fosse seu josé!...


se eu fosse seu josé,
não vendia o camarão... e nem os bombons
que ele tem lá na quitanda dele!...
eu comia era tudinho!...
(MORAIS FILHO, 2013, p.65)

O humor consiste no pensamento da criança em não entender a razão de seu José não
cair em tentação: como é possível vender e não comer tantas coisas gostosas? Neste poema já
percebemos um elemento particular da cidade de São Luís, que é uma ilha: o camarão, muito
presente na culinária local.

Além do humor, encontramos uma referência ao Nordeste em um poema de Primeiro


Caderno, fazenda: “o mandacaru espiou a mijada da moça”. (ANDRADE, 1974, p.163).
Entendemos aqui uma referência e valorização duplas: não só ao cacto próprio da região
Nordeste quanto ao nome em si, que tem origem na língua tupi – mãdaka’ru. O resgate de
elementos tipicamente brasileiros, incluindo a valorização de vocábulos oriundos da língua
tupi guarani, faz parte desta primeira fase do Modernismo.

Outra questão presente nas duas obras é a referência ao poder aquisitivo das classes
sociais, a classe burguesa e a classe humilde, revelada em um tom de crítica. O ambiente
familiar em Azulejos é mais humilde, porém rico em afeto; em épocas de fartura como o
Natal, o menino José não ganha presentes, apesar de muito o desejar: “o céu está branquinho
de papai noel! /e eu não ganhei um brinquedo...”(MORAIS FILHO, 2013, p.49)

Ou ainda no dia a dia, em que falta o suficiente para dar uma refeição satisfatória a
todos da casa: “...e mamãe também não come?/ - coma meu filho, que passa a fome de sua
mãe...”(MORAIS FILHO, 2013, p.154)

Já em Primeiro caderno do aluno de poesia, encontramos em alguns poemas a


referência à imponência e aos costumes burgueses, como em maturidade; porém, percebemos
que a ironia e à crítica aos costumes sociais se revelam implicitamente no poema:

O Sr. e a Sra. Amadeu


Participam a V.Exa.
O feliz nascimento

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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De sua filha
Gilberta
(ANDRADE, 1974, p.161)

O tema da infância aparece de duas formas em Primeiro caderno: tanto na forma de


paródia, enquanto recurso intertextual, quanto de forma saudosa; porém ambas revelam
criticidade. Em Azulejos, o recurso da paródia para se referir à infância não existe. O poema
meus oito anos (ANDRADE, 1974, p.162-163) reflete de forma crítica a infância ingênua
exaltada no poema de origem, Meus oito anos, do poeta romântico Casimiro de Abreu. Aqui
temos um trecho da paródia e logo em seguida o texto original para exemplificar a intenção
de cada autor:

Oh que saudades que eu tenho


Da aurora da minha vida
Das horas
De minha infância
Que os anos não trazem mais
Naquele quintal de terra
Da Rua de Santo Antonio
Debaixo da bananeira
Sem nenhum laranjais [...]

Oh! Que saudades que tenho


da aurora da minha vida,
da minha infância querida
que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
naquelas tardes fagueiras,
à sombra das bananeiras,
debaixo dos laranjais! [...]
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Casimiro_de_Abreu)

No poema infância (ANDRADE, 1974, p.160), contido em Primeiro caderno, o eu


lírico é saudoso e revela um costume social – o da visita e como a criança se comporta neste
momento; para além deste contexto, encontramos a concisão e a economia da linguagem. Ao
expressar muito, utilizando poucas palavras, característica própria do Modernismo, Andrade
constrói toda a imagem da infância:

O camisolão

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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O jarro
O passarinho
O oceano
A visita na casa que a gente sentava no sofá

O retrato da infância presente em Azulejos é ricamente explorado, com referências


aos costumes locais e populares, revelando brincadeiras e relações sociais das mais variadas,
tanto com as pessoas que cercam a criança quanto com o espaço em que ela vive; para isso
Morais Filho (2013, p.121) se vale, como bom modernista, da oralidade, sem deixar de lado o
humor: “êta! que o vento me ouviu!!! / agora eu empino meu papagaio! / ....ichi! ichi! a linha
embrulhou!!!!

A chuva como imagem poética aparece com intenções diferentes nas duas obras. A
chuva do poema soidão de Andrade (1974, p.171) reflete a imagem do cotidiano da cidade de
São Paulo, porém crítica, e ainda homenageia o poeta Mário de Andrade:

[...] a magnólia abre o pára-chuva


Pára-sol da cidade
De Mário de Andrade
A chuva cai
Escorre das goteiras do domingo

Chove chuva choverando


Que a casa de meu bem
Está-se toda se molhando [...]

Já em Azulejos (2013, p.93), a imagem da chuva reflete o medo provocado pelo


desconhecimento científico do fenômeno natural, explicado aqui pelo senso comum –
valorizando as crendices e as estórias orais, permeadas de religiosidade:

mamãe,
massico disse (ouviu?) que o trovão
é a zoada das cadeiras e da mesa lá no céu,
quando nossa senhora está arrumando a casa dela...
e que a chuva é a água
que cai daquele bando de buraquinhos do chão,
quando nossa senhora está lavando a casa dela...[...]

Outra questão observada em ambas as obras é como a cidade é retratada, com as


pessoas que passam e que a habitam, com tudo o que reflete a imagem do progresso

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

característico do século XX, como as casas, os automóveis, o telefone, os registros da vida


moderna, enfim. No poema brinquedo, Andrade (1974, p.158) registra o frenesi da cidade de
São Paulo da década de 1920:

Os bondes da Light bateram


Telefones na ciranda
Os automóveis correram
Em redor da varanda

Roda roda São Paulo


Mando tiro tiro lá

Em Azulejos (2013, p.162), a vista da cidade da década de 1930 é reflexo do ponto de


vista de uma criança, que acredita que as casas é que estão correndo, e não o carro:

mamãe,
as casas estão correndo!
olhe, mamãe!
- não são as casas, meu filho, é o automóvel!

Por fim, porém sem esgotar a análise entre essas duas obras ricas em imagens,
elementos e interpretações, encontramos em Primeiro caderno do aluno de poesia uma
característica peculiar e exibida de forma explícita que em Azulejos não encontramos: o
nacionalismo. A abordagem desta temática distancia as duas obras.

Em vários poemas, percebemos a ideia de valor do povo brasileiro e da pátria,


representada pelos símbolos da bandeira, das cores verde, azul, amarela e branca, do céu, do
mar e das estrelas:

Eu quero fazer um poema


De flores de papel
Laranja azul encarnado
Branco e verde amarel!
(ANDRADE, 1974, p. 167)

Existem referências à Independência do Brasil e mais fortemente à Proclamação da


República, evento de mudança política mais recente para a sociedade vivenciada por
Andrade:

Ó Brasil

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Meu coração feito de pedaços


Se unifica
E proclama
A independência das lágrimas
(ANDRADE, 1974, p. 167)

Ainda em Primeiro Caderno, percebemos poemas que nos levam a (re) descobrir o
país, lembrando as três raças que formaram o povo brasileiro: o índio, o branco e o negro.
Além de trazer essa ideia, o poema brasil parodia um trecho do célebre poema I-Juca Pirama
do poeta romântico maranhense Gonçalves Dias:

O Zé Pereira chegou de caravela


E preguntou pro guarani da mata virgem
- Sois cristão?
- Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê tetê Quizá Quizá Quecê!
(ANDRADE, 1974, p. 169)

Enfim, a pátria está amplamente presente no Primeiro caderno do aluno de poesia,


até no desenho da própria capa, que revela a integração nacional entre os estados. Mas a
linguagem de amor à pátria vem junto com um tom de voz crítica do eu lírico: é preciso
exaltar, mas também é preciso destacar as falhas, ainda que sem perder a esperança, como
reflete um trecho do poema canção da esperança de 15 de novembro de 1926 (ANDRADE,
1974, p.173):

E o povo
Ansioso
Airoso
Sacode no ar
A palheta
Da esperança
Vendo o dia
Tropical
Que vai passar
Na carruagem
Dos destinos
Do Brasil

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

!253
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Este trabalho teve como objetivo comparar duas obras poéticas do movimento
modernista, Primeiro caderno do aluno de poesia de Oswald de Andrade (1927), de
Oswald de Andrade, e Azulejos (1963), de Nascimento Morais Filho, investigando como
essas duas obras e seus autores se aproximam e se distanciam.

Em relação ao distanciamento entre as obras, observamos que suas temáticas são


diferentes: enquanto Primeiro caderno do aluno de poesia se volta à pátria como elemento
de (re) descobrimento e valorização da identidade brasileira, Azulejos se preocupa com o
lirismo da infância refletido no olhar da criança sobre o mundo que a cerca. Outro destaque é
que as duas obras pertencem a épocas distintas do movimento modernista: a primeira
pertence ao primeiro momento – e por isso revela toda sua irreverência e ironia, aspectos
característicos dessa busca pela ruptura com o passado e ânsia por renovação, e a segunda
obra pertence já ao terceiro momento modernista, em que vários elementos modernistas já se
encontram consolidados no cenário literário brasileiro.

Apesar de Azulejos ter sido escrita em 1963, ela reflete os frutos iniciados pelo grupo
do Centro Cultural Gonçalves Dias que havia se consolidado como modernista apenas na
década de 1940, pois no Maranhão a efetiva ruptura com o academicismo dá-se tardiamente.
Morais Filho foi atuante neste período de ruptura: liderou o Centro, editou semanários e
conclamou a nova geração a participar de debates sobre os autores modernistas que até então
não eram amplamente lidos pela jovem intelectualidade. Entendemos que os dois autores,
tanto Andrade quanto Morais Filho, se afinam no tocante ao espírito combativo e ao desejo
por mudanças, qualidades que ambos possuíam.

Mas para além das diferenças, o que permanece são as aproximações entre as duas
obras, que refletem bem algumas propostas do Modernismo, tais como: o predomínio da
oralidade na linguagem empregada nos poemas; a valorização de elementos da cultura
brasileira; os olhares sobre a cidade e seu progresso, bem como as relações sociais que se
estabelecem no século XX; e o humor, com veia irônica em Andrade ou mais singela em
Morais Filho.

Ressaltamos que o resultado positivo deste estudo comparativo entre as obras poéticas
é que pudemos substituir a ideia de “influência” de uma obra sobre outra pela ideia do
diálogo, que ambas mantém de forma rica e ampla, abrindo espaço futuro para outros
exercícios de análise. Também propomos, por meio deste trabalho, repensar a ideia de que
existe no Brasil uma literatura regionalista que se enxerga “menor” em detrimento de uma
literatura “nacional”, considerada mais representativa de nossa cultura e costumes. Ao
repensarmos a literatura brasileira de forma mais ampla, poderemos quebrar esse paradigma e
promover novos diálogos literários.

!254
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

ABSTRACT

This essay aims to reveal approaches and distances between two Modernist poetical works
which are timelly separated: Azulejos (1963), by Maranhense poet Nascimento Morais Filho,
and Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (1928), by Paulista poet
Oswald de Andrade. As a basis for this dialogue, we were supported by Comparative
Literature theory and the thoughts of Carvalhal (2003) and Perrone-Moisés (1998).

Keywords: Poetry. Modernism. Approaches. Distances.

Referências

ANDRADE, Oswald de. “Primeiro caderno do aluno de poesia”. In: Obras completas. VII.
Poesias reunidas. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.
ÁVILA, Affonso. Do Barroco ao Modernismo: o desenvolvimento cíclico do projeto literário
brasileiro. In: O Modernismo. São Paulo: Perspectiva, 1975.
______________. O poeta e a consciência crítica. 2ªed. São Paulo: Summus, 1978.
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira:
Modernismo. História e Antologia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: Literatura e sociedade. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.
CARVALHAL, Tania Franco. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 2003.
CORRÊA, Rossini. O Modernismo no Maranhão. Brasília: Corrêa e Corrêa Editores, 1989.
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 2008.
MORAIS FILHO, Nascimento. Azulejos. São Luís: UNIGRAF, 2013.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Literatura comparada: intertexto e antropofagia. In: Flores da
escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Caminhos da lusofonia: a descrição histórico-cultural de Macau nos textos


de Henrique de Senna Fernandes

Prof. Me. Néstor Raúl González Gutiérrez


gonzalez2n@gmail.com

Resumo: o presente artigo objetiva analisar e indagar a construção histórico-cultural de


Macau no romance A trança feiticeira de Henrique de Senna Fernandes refletindo sobre a
literatura pós-colonial e o encontro entre o oriente e o ocidente como forma de
ressignificação social e cultural na península de Macau, ressaltando os processos de

!255
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

resistência, hibridismo e alteridade nas manifestações sociais e linguísticas. Discutem-se


questões religiosas, linguísticas e comportamentais dos nativos budistas e os colonizadores
católicos que dialogam em um espaço geográfico da China peninsular. Analisa as relações de
tensão e de convivência entre duas culturas diversas que convergem na construção identitária
do atual Macau. O trabalho foi dividido em três tópicos, começando pela contextualização
dos caminhos da lusofonia como resgate histórico da chegada dos portugueses em Macau,
seguida de uma breve biografia e contextualização do autor e da obra, finalizando com a
reflexão da consolidação de Macau, discutindo a produção literária em Macau como resgate
linguístico da literatura em língua portuguesa no oriente analisando acontecimentos históricos
e culturais exaltados no romance. A metodologia utilizada se deu a partir das perspectivas
dos estudos culturais e da literatura comparada e teve como fundamentação teórica autores
como Azevedo (1984), Brookshaw (2010), Caniato (2005), Fernandes (2009), Fleck (2006),
Pires (1998), Simas (2004), Vygotsky (2003).

Palavras-chaves: Direito cultural; Construção sócio-histórica; Literatura de Macau;


Henrique de Senna Fernandes.

Introdução.

Pensar na literatura de Macau como cenário geográfico de transformações sócio


culturais permite as reflexões históricas que transcrevem os processos de encontro entre duas
nações com línguas e costumes diferenciados que convergem no interesse econômico e
comercial entre China e Portugal.

Pensar-se-ia que a história de Macau começa a ser escrita na chegada dos portugueses
à península em 1513 (CANIATO, 2005), quando os navios da Coroa Portuguesa partiram da
Índia e chegaram na Ásia na busca de rotas de comércio entre as nações banhadas pelo mar
da China meridional, encontrando uma literatura de Ultramar nos relatórios enviados a
Portugal das expedições realizadas e das terras colonizadas. Uma narração descritiva e
testemunha das ações feitas pelos exploradores em prol de levar novos conhecimentos além
das fronteiras terrestres e marítimas.

Refletir sobre o conceito de navegação, como processo de descobrimento e de procura


pela mudança, permite construir novas rotas cognitivas que garantem a transformação de
saberes e conhecimentos que nutrem a construção de identidade dos colonizadores e
colonizados, fazendo dessa ação um processo de reciprocidade e alteridade transfigurada em
hibridismo e colonização. Como afirma Jackson:

!256
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

As viagens alternaram fronteiras físicas e geográficas, indo os viajantes


portugueses, literal e metaforicamente, para além de si mesmos, em direção
a um estado de alteridade: lá os códigos culturais a que deram corpo, tão
distantes de suas narrativas e origens simbólicas, adquiriram novos
significados, quer na África, na Ásia ou nas Américas. As viagens
portuguesas, tanto no plano interior como exterior, tanto na profundidade
como na superfície, resultaram numa reinvenção de ser português
(JACKSON, 1998 apud SIMAS 2007 p. 24).

Nesse processo de narração descritiva, encontra-se a monografia escrita entre 1630 e


1636 por Fr. Paulo da Trinidade, intitulada de Conquista Espiritual do Oriente, conservada
durante muito tempo manuscrita na Biblioteca Vaticana. Dela surgiram escritos como O
Vergel de plantas e de Flores da Província da Mãe de Deus dos Capuchos da Índia Oriental
(1690), escrita por Fr. Jacinto de Deus; Ásia Sínica e Japónica (1745), por Fr. José de Jesus
Maria na qual descreve as primeiras explorações dos portugueses nos mares da China
(AZEVEDO, 1984).

A história que antecede, parece ser simplificada na migração forçada produto das
guerras e colonizações ao interior do continente na mobilização de chineses em busca de
recursos marítimos para garantir a subsistência.

Seguindo esse raciocínio, a história de Macau é contada após o século XVI, quando
em 1520 surgiram hostilidades e ataques aos navios chineses por parte dos portugueses com o
objetivo de consolidar um porto mercantil estratégico capaz de oferecer facilidades de acesso
ao Japão, Singapura e Filipinas. Posteriormente os portugueses legitimaram seu poder nos
primeiros contatos comerciais com o Japão em 1540, estabelecendo “novas feitorias nas ilhas
de Sanchuang e Lampacau” (CANIATO, 2005, p. 112).

As intenções financeiras de Portugal garantiram a estabilidade comercial na Ásia,


fixando seu império lusitano em 1557. Momento transgressor nas tensões políticas entre
China e Japão, que os portugueses aproveitaram para transitar entre duas nações conflitantes,
passando algumas vezes como comerciantes e outras como fortes ameaças. Em palavras de
Caniato (2005, p. 114):

Nos anos 70 do século XVI como já existisse uma povoação, os chineses


temerosos de que os portugueses saqueassem o continente, construíram uma
muralha ao Norte, com acessão ao continente pela Porta do Cerco, aberta
duas vezes por mês, e posteriormente todos os dias para que fossem
fornecidos produtos alimentícios e outros bens. E o mercado acabou por
fixar-se entre as duas comunidades.

O território se consolidou como um próspero porto de fornecimento de produtos


comerciais às nações, sendo um ponto geográfico neutro entre as tensões asiáticas de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

colonização e conquista de territórios. Situação que originou o encontro entre Oriente e


Ocidente, entre costumes europeus com as tradições asiáticas.

Embora o espaço geográfico pertencesse até a chegada dos portugueses à China


Continental, o nome dado legitima as tradições do Oriente. Acredita-se que o nome Macau
deriva-se de A-má, o primeiro como prefixo utilizado pelos chineses antes dos nomes e Má
possivelmente correspondem à mãe (媽媽) em chinês - mandarim, relacionada “com a deusa
protetora dos marítimos venerada pelos chineses no tempo Má-kok-Miu, isto é o Pagode da
barra para os portugueses” (Idem, p 115). No dialeto cantonês falado em Macau é conhecida
dita deusa como A- Ma Gao. Imagem representativa que carrega consigo o hibridismo
cultural entre a fé cristã do oriente e a tradição Asiática, pois sabendo dos pensamentos
budistas, maoístas, confucionistas, entre outras que existem na China, a Deusa representa a
imagem de Maria, Mãe de Jesus (Madonna) com rasgos e vestimentas chinesas. Um símbolo
do poderio católico sobre a fé oriental.

As primeiras manifestações de literatura em português remetem ao início do século


XIX, na sequência da revolução liberal de 1820, quando a imprensa, como tradição
jornalística cumprira a função de defender e debater as diversas posições políticas no
território, concebendo uma tradição ensaística que se preserva até hoje. Muitos dos
precursores foram exploradores, professores, e estudiosos da cultura local que passaram por
Macau e contribuíram com a publicação de textos nos jornais impressos. Manuel da Silva
Mendes e José Silveira Machado são as figuras mais emblemáticas desta tendência no século
XX (BROOKSHAW, 2010, p. 20).

Em 1887, com a celebração do Tratado de Amizade e Comércio entre a China e


Portugal permitira a esse último a perpétua ocupação do território de Macau, deixando
dúvidas sobre a soberania da península. A razão foi esclarecida em 1987, quando se
determina que a China retomasse o exercício de soberania de Macau em 20 de dezembro de
1999. “Em conformidade com o princípio de um país, dois sistemas, pelo art. 31 da
Constituição da RPC, Macau foi erigido em Região Administrativa Especial da República
Popular da China” (CANIATO, 2005, p 115).

Com o intuito de preservar as tradições culturais, educativas, científicas e


tecnológicas, a Região Administrativa Especial direciona o processo de proteção ao
patrimônio histórico e cultural do Território. Em 1989, objetivando conservar a língua
portuguesa em detrimento do uso do Chinês- Mandarim6, falado na maioria das cidades da
China Continental, e do dialeto Cantonês e Patoá7, falado por alguns moradores da península
cria-se o Instituto Português do Oriente (IPOR) tendo como fundadores O território de
Macau; O Instituto Camões e a Fundação Oriente. (CANIATO, 2005, p 116).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Macau se converte em um espaço transitável, inicialmente por expedicionários


marinhos, militares portugueses, que na atualidade se estende a imigrantes asiáticos, europeus
e de outras nacionalidades que veem na Península um porto fronteiriço entre Hong – Kong,
Japão, Filipinas, Vietnam, Singapura ou como ingresso à China Continental, uma vez que, “se
aceitamos, portanto, que a literatura de Macau pode incluir toda a gama de escrita, temos
também de considerar [...] a questão fundamental da língua e da origem dos
autores” (BROOKSHAW, 2010, p. 20). O encontro entre duas tradições e culturas, europeia e
chinesa, comporta tensões sociais, mas que convergem na alteridade e enriquecimento mútuo.
Em palavras de Sampaio:

Macau é testemunho privilegiado da coexistência, nem sempre pacífica, de


duas comunidades que, neste lugar, foram deixando, ao longo dos séculos
marcas culturais próprias, produto e circunstâncias de passados distintos e
diferenciados. Ao desvendarmos o passado desta cidade, tomamos
consciência de que aqui se cumpriram pedaços de história de dois mundos
geograficamente afastados um do outro: o do povo português e do extremo
ocidental no extremo oriental da Ásia (SAMPAIO 1999 apud SIMAS 2007,
p.58).

Percebe-se que falar da literatura de Macau é, antes de todo, identificar processos de


poli-hibridismo (AMARO apud CANIATO, 2005) e transculturação (PIRES, 1998) que
consolidam narrativas de encontro entre várias culturas.

Direito cultural e construção histórico-ficcional de Macau.

“O mesmo pároco benzeu a casa, a pedido de Adozindo e rezou pela


felicidade daquela família. Ao mesmo tempo, no quintal, a Abelha-mestra,
budista convicta e desconfiada dos ritos estrangeiros, queimava incensos e
papéis votivos para a manutenção do bom “feng-shui”. Com o beneplácito
de duas religiões, auguravam-se a paz e prosperidade daquela
habitação” (FERNANDES, 2009).

Falar no romance produzido pelo escritor macaense, Henrique de Senna Fernandes,


como narração histórica, permite resgatar acontecimentos que influenciaram os aspectos
culturais e linguísticos de Macau, evidenciados na narrativa em prosa, como eixo norteador e
exaltante das vicissitudes e dos confrontos oriundos das guerras e das colonizações na
península.

A ficção, por sua vez, permite a consolidação de narrações que abrangem as


pretensões do autor, e os fatores e acontecimentos a serem apresentados e divulgados aos
leitores, fazendo do primeiro, um agente ativo no processo de investigação e compilação de
momentos marcantes na história para contemplá-los como eventualidades dialogantes entre o

!259
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

espaço literário e sua influência na consolidação e agir das personagens, atuando várias vezes
como um sujeito historiador. Fleck (2005, p. 225-226), usando essa aproximação entre o
romancista histórico e historiador, salienta que:

Há grande semelhança entre a tarefa do historiador e do romancista histórico


na recuperação dos fatos e personagens do passado, uma vez que a matéria
que utilizam – embora de maneiras diferenciadas –, são os feitos que aí se
produziram e que geraram consequências que se estendem até nossos dias.
Suas investigações podem levá-los a visões diferentes, mas ambos procuram
refletir sobre a natureza do homem, sobre o passado que o conduziu ao
nosso presente. Por mais distintas que sejam as suas interpretações, os dois
acabam produzindo a narração de uma história, uma reconstrução do
passado que não está alicerçada somente nas fontes históricas, mas também
no modo subjetivo de selecionar e ordenar as informações adotadas tanto
pelo historiador como pelo romancista.

Portanto, é importante identificar não somente a trajetória do fato histórico, mas as


particularidades discursivas na forma de retratar as experiências do escritor sobre o
acontecimento histórico que narra. Desse modo, o escritor, além do resgate memorialístico,
permite uma interpretação das ações do passado, que, no seu desejo de preservar eventos que
consolidam o presente, cria impasses acrônicos entre estes os dois com a intenção de tecer
um futuro mais reflexivo e crítico conhecedor da sua história e, consequentemente, da nação.
Fleck (2005, p 226) menciona que:

O historiador age com rigor científico: parte do fato, dos documentos e


registros que nos são apresentados através da leitura daquilo que já existia,
ou seja, ele constrói sua narrativa histórica sob a forma de “versão”. Embora
esta possa ser cientificamente comprovada, ela é uma “representação do
real”, ou seja, a reconfiguração histórica do passado é, em última instância,
a interpretação daquilo que o historiador entende que tenha ocorrido. O
romancista, ainda que utilize as mesmas fontes que o historiador, reproduz
este passado com liberdade e imaginação, pelo emprego da subjetividade,
tanto a sua quanto a dos personagens que recria, não tendo que ocultar tal
procedimento, pois seu discurso acena para aquilo que, nestas circunstâncias
e diante de evidências expostas nas fontes, poderia ter ocorrido.

O romance A trança Feiticeira (1993), daqui em diante identificado como (TF), narra
a história de Adozindo, um jovem descendente de família afortunada que se apaixona por A-
Leng, uma humilde aguadeira da cidade, que simbolizam a união da fé católica e budista e os
conflitos surgidos entre duas culturas dialogantes, demostrando “a contribuição de ambas as
culturas para Macau, tornando-o uma ponte entre Ocidente e Oriente” (BROOKSHAW, 2010,
p. 120).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Remetendo ao leitor num espaço ficcional de 1932, Henrique de Senna Fernandes


consegue plasmar na sua obra diversos pontos de exaltação de Macau, que, por meio da
narração permitem a identificação de fatores históricos relacionados com as tensões e
conflitos no porto, as rotas de navegação, o advento das guerras sino-japonesas, a posição
social dos nativos nesse período, os contatos entre povos linguísticos que consolidaram
relações interculturais, e finalmente, o contato entre os discursos religiosos vigentes em
Macau.

Usando a descrição como recurso narrativo, o narrador admite desvelar integralmente


uma fidelidade fotográfica que permite ao leitor visualizar espaços de interação entre a
realidade e ficção. Esta estratégia é evidenciada no romance como forma de exaltação das
características específicas de Macau quando menciona o seguinte:

Descobria-se um pedaço de mar da Praia Grande. O farol da Guia piscava,


volteando os seus raios de luz. O hospital de S. Rafael mergulhava em
silêncio, mas na rua soavam já os pregões dos vendedores ambulantes. As
palmeira da casa e as frondes dos quintais adjacentes rumorejavam, à brisa
suave de outono (...) A tarde límpida e dourada já ia alta, e o sol pairava em
cima da lomba da ilha da Lapa. O farolim da pedra de Areca já pestanejava.
A ilha de Taipa era uma mole verde, toda tristonha e sem vida. O ferry de
Hong Kong aproximava-se da curva da Barra. O mar lodoso reverberava de
palhetas purpurinas. (TF, 60 - 86).

Além de o recurso descritivo permitir um contato parcial com o espaço, no caso


anterior, a localização geográfica permite a situar o leitor em momentos históricos e
conflitantes da região, nomeando a Taipa e Hong Kong como proximidades da Península,
este pode inferir na relação da colonização britânica e as tensões comerciais entre Japão e
China, uma vez que, no decorrer na narração, são mencionadas as rotas de navegação.

Numa ponte-cais do Porto Interior, pertencente a uma companhia de


navegação chinesa, havia a necessidade de alguém para fiscalizar a entrada
e saída das mercadorias e que pudesse tratar com as autoridades portuárias,
falando a língua, sobreo embarque e desembarque das mesmas, removendo
as dificuldades e entraves burocráticos (...) Além de um provecto e diminuto
cargueiro que fazia viagens no triângulo de Macau – Hong Kong – Cantão
eram pertença da frota da companhia duas embarcações à vela, adstritas à
navegação para os portos ribeirinhos do delta do Rio das Pérolas. (TF, 119 –
133).

Lembrando o tempo ficcional do romance, a narrativa consolida imaginários


históricos e oportuniza a reflexão das experiências dos moradores de Macau em tempos de
guerra sino-japonesas, sendo Macau um território intermediário entre as nações conflitantes,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

que sofre com a escassez de alimentos e armamentos, deixando os habitantes da península em


êxtase e com especulações da repercussão política e econômica.

-Macau é uma terra sossegada. Ninguém fará mal a uma rapariga do povo
como ela
- Na china há uma guerra cada vez mais violenta. Muita gente adventícia
tem atravessado as Portas do Cerco.
-Boatos. A China é muito grande, e a guerra está muito longe. É no Norte e
em Xangai. Não chega tão depressa até nós, embora certamente iremos
sofrer com as consequências. O arroz já encareceu no mercado. Obras de
especuladores.
- Em Hong Kong, começaram distúrbios...
-É somente contra a comunidade japonesa. É natural, os ânimos estão
exaltados contra as barbaridades. Aqui em Macau não há japoneses. (TF, p.
137).

A aproximação ficcional à realidade faz do romance um texto denunciante dos


acontecimentos históricos, trazendo comparações e semelhanças através da narrativa da
explosão do Paiol militar no dia 13 de agosto de 1931, conforme o arquivo histórico de
Macau107 descreve:

Em 13 de Agosto de 1931, explodiu o paiol militar situado na Fonte de


Inveja, causando 41 mortos, nos quais 7 foram crianças, e danificando um
grande número de casas nos locais próximos, incluindo a casa que Sun Fo
tinha construído para a sua mãe. A explosão causou uma perda económica
no valor de 400,000.00 dólares de Hong Kong para os proprietários e
habitantes dos locais adjacentes.

O narrador elucida a explosão ocorrida com o protagonista, mas não apresenta


detalhes do ocorrido nos próximos capítulos. Um exemplo que coloca o leitor como
observador e partícipe do acontecimento a partir de uma focalização externa, desconhecendo
os antecedentes da explosão que capturam a atenção para, junto com o narrador, desvendar as
respostas e saber a origem e as consequências do infortúnio.

Às cinco e quarenta e cinco da manhã do fatídico dia 13 de Agosto de 1931,


no fim de uma aurorar radiosa, uma horrenda explosão abalou a cidade toda,
de lés a lés. Portas e janelas escancaram-se violentamente com a deslocação
do ar, acompanhada da estridência de vidros desfeitos em fanicos cortantes.
A população espavorida e tomada de pânico veio inteira para as ruas, em
trajes menores ou com aqueles que tinha à mão. Cruzavam-se gritos e
exclamações incoerentes. Ninguém sabia o que passava.

107 Arquivo Histórico de Macau. Disponível em http://www.archives.gov.mo/pt/featured/detail.aspx?id=106.


Acesso 24 Jul.2015

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Não tardou, porém, que a notícia se propagasse célere. O paiol da Guia, no


sopé da Colina, perto da Fonte da Solidão, fora pelos ares. Havia mortos e
feridos e o risco aterrorizante de novas explosões (...). Viveu-se um dia de
terror, a população aguardando por novas explosões, sob o calor de um sol
rechinante e odioso. Mortos, onze portugueses, contando com a sentinela
africana do paiol, completamente pulverizada, chineses, cinquenta e dois.
Feridos, oficialmente uma centena e tal, mas houve muitos mais que foram
tratados em casa e não deram notícia. Um desastre e um luto que a cidade
jamais conhecera. (TF, p. 47- 48).

Tratando-se de uma narração histórica, o escritor amalgama em forma de relatos as


eventualidades no continente asiático, as guerras no mar japonês e as fortes tensões entre
Japão e Estados Unidos, assim como os problemas políticos entre os países do continente
europeu, anunciantes das guerras mundiais.

A guerra europeia, a caminho de dois anos completos, alastrara-se para a


Rússia e para o Norte de África. No oriente, o Japão endurecia as suas
relações com os Estados Unidos da América e falava0se da inevitabilidade
de um conflito no Pacífico (...). O primeiro grande golpe nos rendimentos
da agência foi à segunda guerra sino-japonesa de 1937, uma guerra não
declarada a prolongar-se, sem fim nem solução. A conquista pelo Japão dos
principais portos da China atingira consideravelmente a navegação
mercantil nessa área geográfica. Tirando Hong Kong, o Mar da China era
praticamente japonês. Depois surgira a guerra na Europa, primeiro bem
localizada, mas logo a converter-se em um conflito mundial. (...) Nesse
verão de 1941, no Extremo – Oriente, nuvens bélicas acumulavam no
horizonte, cada vez mais ameaçadoras. O Japão reagira contra as sanções
impostas, falando de grosso com os Estados Unidos da América e com a
Inglaterra. AS relações entre esse países caminhavam para uma trágica
ruptura. O Pacífico prometia também embeber-se em sangue (TF, P 216
-218).

A reflexão da realidade permite uma evocação de acontecimentos históricos e


simbólicos que remetem à interpretação de espaços que evocam as consequências das guerras
e o desejo de destruição e colonização que ocasionaram várias mortes e tingiram os mares de
sangue.

A focalização não reside apenas nas personagens, mas também na descrição dos
cenários e dos fatos históricos, que consolidam uma configuração de nação híbrida,
intercultural e plurilinguística criando macro espaços que interagem com o leitor, fornecendo-
lhe informações detalhadas e descritivas da cidade de Macau.

A comunicabilidade e interação entre povos com costumes e hábitos culturais


divergentes permitira o contato entre línguas de origens distantes. Os encontros entre o
Oriente e Ocidente por meio da comunicação são percebidos na narrativa como pontos de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

articulação entre códigos linguísticos misturados e criolizados que consolodaram o Patoá


como língua de herança, transmitida e divulgada na Península como rasgos identitários que
consolidam traços étnicos e culturais dos grupos linguísticos que dialogam entre si.

Sobretudo, um grupo de chachas-velhas 108 que, por entre o boquizar de


orações, comentava:
-Sang obra di amuirona abusadera di Cheok Chai Um! Ferá chá di niu-
niong-pó. Eloutro ficâ ôlo torto, vangueado.
-Qui saião! Certo sang bagate... Coitado di Beba qui tanto lágri já chorâ
- Eu dizê bem fêto! Chubi chubi rabo-sarangong virá rabo capido! 109 (TF, p
150)

Nesse raciocínio, o Patoá como língua de herança evidencia uma construção


identitária dos grupos linguísticos que, no encontro entre o Chinês e o Português como
línguas em contato, produziu uma língua híbrida com características e rasgos linguísticos
dessa dicotomia entre Oriente e Ocidente. Um aprendizado da língua do outro para garantir a
integração de povos distantes como representação da alteridade e do trabalho concomitante
entre comunidades dialogantes da Península.

O processo de aprendizado da língua do outro é idealiza no contato linguístico e nas


estratégias de abstração cognitiva propostas por Vygostky (2003) como atividade social de
desenvolvimento de capacidades mentais através da interação com o outro, evidenciado em
A-Leng e seus filhos quando se menciona que:

Assumiu, então, a única atitude prática. Aprender as palavras da língua


estrangeira. Perguntava o que era isto e aquilo, pronunciava soletrando, em
seguida, as vezes sem conta. A memória prodigiosa ajudava-a imenso,
retinha com facilidade, pedia que a corrigissem se errasse, nunca se sentindo
embaraçada (...). Achinesava os sons portugueses, por incapacidade de
emiti-los sem sotaque, e, entre o marido e mulher, os vocábulos portugueses
misturavam-se com os chineses, sem esforço, inconscientemente. Mas
Adozindo dirigia-se aos filhos exclusivamente em português, para eles se
habituarem, desde pequeninos, a conhecer a língua do pai. A mãe, por u,a
vez, ia-lhes introduzindo naturalmente ao chinês, porque queria que eles
soubessem bem sua língua. Um dos divertimentos do casal era mostrar os
objetos aos garotos e obrigá-los a identificá-los em cada língua, Deste modo
os quatro aprendiam, ao mesmo tempo. (TF, p.173).

Desse modo, as personagens do romance evidenciam os contatos diretos produzidos


pelos moradores da Península no processo de mudanças e de enfrentamentos sociais que

108 Mulheres Idosas (FERNANDES, 2009)


109
-Isto é obra de menina descarada de Cheok Chai Um. Deu-lhe um chá de feitiçaria. E ele ficou vesgo, tonto.
- Que pena! Foi feitiço de certeza... Coitada de Beba que tanta lágrima chorou.
- Eu digo que foi bem feito. Tanto beliscou a amante que ficou com o rabo entalado. (FERNANDES, 2009)

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

consolidaram o hibridismo cultural e os possíveis pontos de intersecção entre os costumes


católicos e sino-budistas possibilitando processos de identificação e aproximação inerente e
inconsciente de aprendizagem e aquisição de hábitos do outro como resposta ao contato
natural de duas realidades miscigenadas por meio da junção afetiva entre Adozindo e A-Leng.

Adaptaram-se um ao outro, com cedências mutuas, única forma de


convivência e harmonia(...). Ao fim e ao cabo, havia uma plataforma de
entendimento de parte a parte, alcançada não por imposição ou por
brutalidade, mas por meio da paciência e da lenta persuasão que amolecia o
contendor. Por serem de origem e formação bem diferentes, surgiram
descobertas e desconsertos que tornavam o quotidiano amiúde
esplendidamente interessante (TF, p. 178).

A relação interpessoal garante a aquisição de novas percepções do mundo,


oportunizando reflexões sobre o encontro transnacional não conflitivas, que tecem
aproximações culturais e modificações silenciosas e descontraídas de costumes, capazes de
amortecer tensões e conflitos, diminuindo comportamentos de imposição e obrigação, e
também, permitindo uma modificabilidade social, cultural e cognitiva como mecanismo de
ressignificação das singularidades.

A unificação das culturas de oriente e ocidente simbolizadas por Adozindo e A-leng


apresentam-se numa narrativa ficcional que exterioriza uma consolidação de ações
vivenciadas pelas nações da península de Macau exaltando os conflitos e os acordos criados
pelos moradores para garantir um convívio menos conflitivo entre Portugal e China. Uma
exemplificação que perdura até os dias de hoje como resultado do aprendizado constante da
cultura do outro, da alteridade e do respeito do outro. Na narrativa pode-se observar esse
processo de identificação de si e do outro quando se menciona:

Imagina tu que já não posso arrotar depois da refeição. Que há de mal num
arroto? Ele significa que estamos repletos, satisfeitos, que a comida é boa. É
uma homenagem até ao anfitrião, ao cozinheiro. Mas para os “kuais”, é
malcriação. Não é uma gente muito peculiar? Aprendi a beber café um
bocado de vinho e comer pão com manteiga. Há uma coisa, no entanto, que
não admito. Beber chá com açúcar (...).
Com ela, por sua vez, abraçou Adozindo o hábito do banho, antes de se
deitar. Eram usos e costumes de duas culturas que se misturavam, sem
imposição, como se fossem a coisa mais natural deste mundo. (TF, P
156-168).

O romance ressalta fatores culturais na configuração de um Macau construído após a


invasão portuguesa. Uma obra que permite ao leitor identificar características culturais,
linguísticas e sociais no surgimento de um território lusitânico acentuado no oriente.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Considerações finais

A reivindicação de direitos culturais e históricos por meio das narrativas de Henrique


de Senna Fernandes consolida resgates literários que retratam uma ambientação ficcional de
Macau do século XX, permitindo a construção de identidades linguísticas, políticas e sociais
do espaço lusitânico na Oriente, pois o narrador descreve no romance cenários que dialogam
com os acontecimentos das guerras sino-japonesas.

As personagens simbolizam o processo de hibridismo que tecem reflexões linguísticas


e culturais na reivindicação de espaços e direitos culturais no encontro entre a cultura do
Oriente e do Ocidente, sendo fatores dialogantes até os tempos atuais, na procura de espaços
literários e políticos da manutenção da Língua Portuguesa no continente asiático.

Referências Bibliográficas

AZEVEDO, R. A influência da cultura portuguesa em Macau. Lisboa. Instituto de Cultura e


Língua Portuguesa. Amadora. 1984
BROOKSHAW, D. A escrita em Macau: uma literatura de circunstâncias ou a circunstâncias
de uma literatura. In: Macau na escrita, Escritas de Macau. Farmalicão. Editorial Húmus.
2010
CANIATO, B. Percursos pela África e por Macau. Cotía: Editora Ateliê, 2005.
FERNANDES, H. A trança feiticeira. 1. ed. Rio de Janeiro: Gryphus, Lisboa, 2009.
FLECK, F. O romance histórico: processo de leituras cruzadas. In: ANAIS DO VI
SEMINÁRIO DAS LINGUAGENS. UNIOESTE. Cascavel: Edunioeste, 2006
PIRES, B. Os extremos conciliam-se: Transculturação em Macau. Macau: Instituto Cultural
de Macau, 1998.
SIMAS, M. Identidades e memória no espaço literário de língua portuguesa em Macau. In:
Oriente, engenho e arte. São Paulo: Alameda, 2004 p. 137 – 189.
VYGOTSKY, L. Psicologia Pedagógica. Trad. Claudia Schilling. Porto Alegre: Artmed,
2003.

E se os trovadores medievais fossem repentistas...

Rafael Hofmeister de Aguiar


Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Universidade Feevale
rafaelaguiar@feevale.br / rafael.rhofmeister@gmail.com

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

O titulo, aparentemente, apresenta uma ideia fora de lugar: os trovadores medievais


como repentistas. Nesse sentido, quero esclarecer que compreendo o conceito “repentista” de
forma ampla, ou seja, como todo aquele que improvisa com a palavra poética. Nesse sentido,
afasto a hipótese que vislumbra o repentismo nordestino como herança trovadoresca, uma vez
que tal perspectiva alimenta percepções etnocêntricas e, há um bom tempo, Huizinga (2012)
já ensinou que o jogo poético faz parte do ser humano.

Divido o artigo em três seções. A primeira examina as proposições do tratado poético


“A arte de trovar”. A segunda seção volta-se para os dados formais como dados em que se
pode inferir elementos próprios da performance poética improvisada. Por fim, proponho, na
terceira parte, um a-se-pensar sobre as práticas poéticas orais.

1. O tratado poético Arte de trovar como índice inicial

A Arte de trovar abre o Cancioneiro da Biblioteca Nacional. Mesmo que, segundo


Mongelli (2009, p. XXXI), o tratado “não dá conta da complexidade da lírica trovadoresca
galego-portuguesa”, é importante lê-lo e abordá-lo com atenção, uma vez que Lopes (2015)
afirma que ele apresenta “um quadro que genericamente se adequa às cantigas que chegaram
até nós, nomeadamente quanto aos géneros maiores cultivados por trovadores e jograis”.

Fragmentário, o tratado poético trovadoresco inicia “pelo capítulo IV do título 3º,


relativo às cantigas de amor e de amigo” (MONGELLI, 2009, p. XXXI). O que diferencia os
dois gêneros é a voz que fala: na de amor, um homem; na de amigo, uma mulher. Sobre as
cantigas de amigo, é preciso registrar que elas devem ter sido compostas por mulheres e que,
seguindo a reflexão de Ria Lemaire (2015a, p. 2)110 , é ridícula, termo empregado pela autora,
a tese de que as cantigas de amigo eram “poesias escritas pelos trovadores, poetas homens,
que com uma intuição genial da alma feminina, as teriam posto na boca de mulheres”. Logo
em seguida, a pesquisadora afirma que “a triste verdade é que, não só na época de Dona
Carolina, como hoje em dia, o ensino nas faculdades de Letras e, por conseguinte, nas escolas
secundárias, divulga esse preconceito cegamente positivista, scripto e androcêntrico”.

Os capítulos V e VI do terceiro titulo abordam, por sua vez, as cantigas satíricas de


escárnio e maldizer. As de escárnio se caracterizariam como aquelas em que “os trobadores
fazen querendo dizer mal d algue[m] en elas, e dizen lho palavras cubertas, que aiam dous

110Trata-se do texto “Do Cancioneiro das Donas ao Livro Delas”, introdução teórica ao Catálogo de mulheres
cordelistas e repentistas. Essa introdução foi, gentilmente, enviada pela autora por e-mail em arquivo de texto;
versão que utilizo no momento.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

entendymentos pera lhe lo no entenderen111” (ARTE DE TROVAR, ANO, p. 15). Por sua vez,
as de maldizer são “aquela[s] que fazen os trobadores mais descobertamente; en elas que
entram palavras que queren dizer mal e non auer[an] outro entendimento senon aquel que
querem dizer chaãmen[te] e outrossy as todos fazen dizer mais112” (ARTE DE TROVAR,
ANO, pp. 16-17). Pela definição do tratadista, a diferença está na crítica direta (maldizer) ou
na indireta (escárnio). Assim, em uma simplificação didática, presente, inclusive, em algumas
obras educacionais, pode-se dizer que há uma identificação do satirizado nas cantigas de
maldizer, chegando, em algumas composições, à zombaria aberta, enquanto, nas de escárnio,
a identificação do satirizado não está clara, tendendo à ironização do sujeito que é tema do
discurso poético.

Os quatro gêneros, comumente, estudados são definidos nesses três capítulos da arte
poética em questão. Fora a inclusão das cantigas de Santa Maria, são esses tipos de cantigas
que se encontram nos Fremosos cantares de Mongelli (2009), obra subtitulada como
“Antologia da lírica medieval galego-portuguesa”. Aliás, considero necessário lembrar que,
conforme Fokkema e Ibsch (2006), as antologias funcionam como definidoras de cânones.
Nesse sentido, o ato de reduzir as cantigas galego-portuguesas aos quatro gêneros produz
uma marginalização das outras modalidades poéticas trovadorescas, como, por exemplo, as
tenções. Essas são tema do capítulo seguinte do tratadista. Ele as define da seguinte maneira:

[...] tençoens [...] son feytas per maneira de rrazon que hu[um] aia contra o
outro, em que diga aquelo que por ben teuer na prima cobra e o outro
rresponda lhe outra dizend o contrayro. Estas se poden fazer d amor, ou d
amigo, ou d escarnho, ou de mal dizer, pero que deuen seer de mee[stria]. E
destas poden fazer quantas cobras quiseren, fazendo cada hũu a sua par[te];
se hy ouer d auer fijnda, faze[n] ambos senhas, ou duas duas, ca nom
conuem de fazer cada huu a mays cobras nen mays fii[n]das que o outro113
(ARTE DE TROVAR, ANO, pp. 17-18).

Por sua natureza dialogal, como se percebe no excerto, a tenção se faz como
expressão performática. No entanto, antes de tratar da tenção como performance, considero
necessário esclarecer três conceitos referentes à poesia medieval galego-portuguesa: cobra,
maestria e fiinda. A cobra corresponde à estrofe, podendo ser classificada em singulares ou

111Adaptação para o português contemporâneo: “os trovadores fazem querendo dizer mal de alguém nelas, e
dizem palavras encobertas, que tenham dois entendimentos para não lhe entenderem”.

112 “aquelas que fazem os trovadores mais descobertamente; entram nelas palavras que querem dizer mal e não
terão outro entendimento senão aquele que querem dizer claramente e outrossim todos as entenderão”.
113
“tenções são feitas pela razão de um agir contra o outro, em que diga aquilo que bem quiser na primeira
cobra e o outro responda com outra dizendo o contrário. Estas podem ser de amor, de amigo, de escárnio ou de
mal dizer, porém devem ser de maestria. E destas podem fazer quantas cobras quiserem, fazendo cada um a sua
parte, se haver finda, ambos fazem uma para cada um ou duas para cada um, aqui não convém um fazer mais
cobras nem mais fiindas que o outro”.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

uníssonas (MOISÉS, 2013). Estas são as que mantêm a rima igual ao longo das estrofes e
aquelas apresentam rima diferente em cada uma das estrofes. Também podem ser cobras
doblas, em que se segue a mesma rima a cada duas estrofes, e alternadas, em que há dois
esquemas de rimas: um para as estrofes pares e outra para as ímpares. A maestria, por sua
vez, é definida como a “espécie de cantiga de amor passada como a mais perfeita, tinha em
geral três estrofes regulares e termina com uma fiinda em que o trovador resumia o que disse
anteriormente” (SILVA, 2009, p. 180). Nessa definição de maestria, já há uma conceituação
do que é a fiinda, ou seja, a estrofe final que sintetiza o conteúdo da composição, possuindo,
ademais, uma estrutura própria, mas mantendo relação através da rima com as demais cobras
(MOISÉS, 2013).

Na perspectiva de realização em performance, cada trovador canta uma estrofe,


perfazendo uma cantiga de maestria, ou seja, com uma finda cada um. Isso não quer dizer que
outras modalidades sem a fiinda não tenham existido. Todavia, é importante pensar a
performance como fundamental nas tenções (e talvez em toda a poética trovadoresca),
inclusive sendo a capacidade de um outro trovador não saber tocar e cantar tema de uma
tenção entre João Peres de Aboim e João Soares Coelho. Nela, o primeiro deles invoca o
segundo a falar sobre o poeta inapto no tocar e cantar.

- Joam Soares, comecei - João Soares, procurei


de fazer ora um cantar fazer agora um cantar
vedes por quê: porque achei vedes o porquê: porque achei
boa razom pera trobar – boa razão para trovar –
ca vej’aqui um jograrom pois vejo aqui um jogralão
que nunca pode dizer som que nunca pode dizer som
nen’o ar pode citolar. nem ainda pode tocar.

A essa acusação, Aboim justifica a inabilidade do dito trovador, afirmando que ele não
consegue cantar e tocar por efeito da bebida e por causa do excesso da prática sexual.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

- Joam Peres, eu vos direi - João Peres, eu vos direi


por que o faz, a meu julgar,
por que o faz, a meu cuidar:
porque bebe muito, isto eu
porque beve muit', [est'] eu sei;
sei; e como fode, pois falar
não pode; por essa razão
e come fode, pois falar canta mal; mas tal dom
bem ele deve ele possuir.
nom pode; por esta razom

canta el mal; mais atal dom

bem dev'el de vós a levar.

O debate sobre a inabilidade no tocar e cantar segue até as fiindas: defeito natural
(João Peres de Aboim) ou causado pelos excessos alcoólicos e sexuais (João Soares de
Coelho). Coelho é acusado de ser pago pelo satirizado e responde que dará a Aboim o que
recebeu e receberá como forma de invalidar a acusação de ter defendido o criticado em troca
de um pagamento.

O bem executar uma cantiga recobre-se, assim, de tal importância que é cogitada a
possibilidade de um trovador receber pagamento para defender outro que é acusado de não
conseguir realizar uma performance satisfatória. Infelizmente, a tenção de Aboim e Coelho
fica no plano do escárnio, pois, caso pendesse para o maldizer e nomeasse o poeta inapto,
poderia, ainda contando com a hipótese de que os textos tivessem sido preservados, ser
realizada uma avaliação estética das cantigas do trovador. Isso permitiria pensar como a
performance reflete na composição.

Ainda sobre a performance, é importante a observação presente no item “Sobre as


cantigas” presente na página do projeto Littera:

Cantiga ou cantar, implica que o texto poético se cantava. A forma como o


texto era publicamente apresentado, pressupondo uma emissão melódica e
uma audiência, tinha consequências quer na concepção do poema, quer na
sua recepção. A intermediação musical impõe que o texto se desvele e se
saboreie pouco a pouco, a sua continuação reservando uma e outra surpresa,
sugerindo uma ou outra associação; e simultaneamente carrega-o de sinais
retóricos e tonalidades afetivas, que preparam, enquadram e condicionam a
reação do ouvinte. A eficácia da atuação trovadoresca dependia, pois, quer

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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da bondade do casamento entre poesia e música, quer de uma recetividade


educada, socialmente diferenciada e diferenciadora (LOPES, 2015) 114.

A imbricação entre música e poesia é ressaltada no excerto de Lopes (2015), aspecto


que também perpassa as observações de Spina (1984) sobre a produção poética trovadoresca.
Mais do que a ligação música/poesia, o excerto ressalta a performance como constituidora do
próprio texto, ressaltando a influência do expectador sobre o trovador, enunciando uma
coautoria do público, tal qual concebe Zumthor (1993, 2000).

Como procurei ilustrar ao longo desta seção do artigo, o tratado A arte de trovar,
apesar de fragmentário, enuncia importantes aspectos da poética trovadoresca; por exemplo, a
definição dos gêneros de cantigas. Ainda, ele suscita inferências acerca de questões como a
autoria e a performance, perspectivas que, de certa forma, permeiam a abordagem que
pretendo fazer a das tenções do corpus da pesquisa.

2. As tenções: um exercício de leitura

Fora a dificuldade da leitura devido à língua, o leitor, até pouco tempo, se deparava
com a falta de acessibilidade aos textos. Se a barreira da língua pode ainda afetar o leitor
iniciante nos textos medievais, o mesmo não se pode dizer da acessibilidade às cantigas: o
projeto Littera, coordenado pela professora Graça Videira Lopes, da Universidade Nova de
Lisboa, disponibiliza a totalidade das cantigas trovadorescas galego-portuguesas na base de
dados Cantigas medievais galego-portuguesas (http://cantigas.fcsh.unl.pt/).
A base de dados apresenta, entre as ferramentas de busca, a possibilidade de filtrar por
gênero de cantiga. Procedi a filtragem das tenções, resultando em 31 cantigas desse gênero115.
Dessas, optei por fazer um recorte que obedeceu o seguinte critério: possuírem alguma
relação com outro texto apontada na “Nota geral” na base de dados consultada, resultando em
8 tenções como corpus da pesquisa. Tal procedimento permite pensar a possível repercussão
das tenções no período em que foram produzidas, entrecruzando não só as tenções entre si,
mas elas com outras cantigas de outros gêneros.

Aliás, a perspectiva de uma rede de tenções e de gêneros satíricos é abordada tanto


por Gadzekpo (2007) quanto por Barros (2005). Os dois autores trazem perspectivas bem
próximas, afirmando que não só as tenções como também outros gêneros trovadorescos – as
cantigas de escárnio e mal dizer – são utilizadas no combate lírico. Ademais, ambos

114 Disponível em http://www.cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp#6 .

115 Há outro filtro de busca em que é possível pesquisar as tenções de amor, em que são listadas mais duas can -
tigas (há uma terceira que aparece também na filtragem “tenção”), ampliando o corpus total das tenções nos
cancioneiros para 33 cantigas. Optei por considerar, neste trabalho, somente as 31 que aparecem na busca pelo
gênero amplo “tenção”.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

asseveram que, nessa rede de escárnios, gera-se uma tenção maior, como é perceptível no
excerto de Barros (2005, pp. 19-17):

Para além de a própria poesia satírica abrir espaços dentro de si para


diversas vozes internas que podiam representar toda uma diversificada gama
de tipos sociais, queremos chamar atenção neste momento para aqueles
escárnios e cantigas de mal dizer que geravam novas cantigas. Assim, por
vezes um destes escárnios que aparecem amiúde nos cancioneiros medievais
ibéricos podia gerar uma resposta do trovador atingido, que acabava
compondo a sua réplica para se defender das desfeitas e acusações que lhe
haviam sido imputadas. O mesmo trovador que antes o atacara, ou então um
outro, podia retomar a peleja compondo uma nova cantiga e assim se gerava
uma verdadeira cadeia de escárnios que se configurava em uma espécie de
“tenção mais ampla”. Só que, ao invés de estrofes que se alternavam, estas
“macrotenções” alternavam poemas inteiros, verdadeiras constelações de
poemas satíricos.

Nesse sentido, considerando as proposições do pesquisador sobre o engendrar de


escárnios, formando “macro-tenções”, é oportuna a escolha do corpus a partir das relações
identificadas por Lopes (2015) entre as tenções com outras cantigas desse e de outros
gêneros. No quadro 2, encontram-se as tenções do corpus bem como as outras cantigas com
que estabelecem relações.

Quadro 1: Tenções do corpus e cantigas relacionadas


Tenção do corpus Performan- Tenção relacionada Cantiga de outro
cers das te- gênero relacionada
nções do cor-
pus

(1) Joam Pero Garcia de (1.1) Joam Baveca e


Baveca, fé que Ambroa e --------------------- Pero d’Ambrõa, de
vós devedes João Baveca Pedro Amigo de Se-
vilha

(2) Joam Juião Bolseiro (2.1) Atal vej’eu ama


Soárez, de e João Soares --------------------- chamada, de João
pram as melho- Coelho Soares Coelho
res

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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(3) Loure- João Peres de (3.1) Joam Soares,


nço, soías tu Aboim e Lou- nom poss’eu estar,
guarecer renço de João Peres de
-------------------
Aboim e João Soa-
res Coelho

(4) Muito João Garcia de (4.1) Lourenço jo-


te vejo, Loure- Guilhade e grar, há mui gran
-------------------
nço, queixar Lourenço sabor, de João Gar-
cia de Guilhade e
Lourenço

(5) Pero da Afonso Anes (5.1) Vistes, madr’, o


Pont’, e[m] um do Cotom, escudeiro que
---------------------
vosso cantar Pero da Ponte m’houver’a levar
sigo?, de Pero da
Ponte

(6) Pero Vasco Gil, (6.1) Rei D. Afonso,


Martins, ora Pero Martins se Deus vos perdom,
-------------------
por caridade de Vasco Gil e
Afonso X

(7) Quem João Soares (7.1) Muito te vejo, (7.2) Por Deus, Lou-
ama Deus, Coelho e Lou- Lourenço, queixar, renço, mui desagui-
Lourenç’, am’a renço de João Garcia de sadas, de João Gar-
verdade Guilhade e Loure- cia Guilhade
nço
(8) Vós que Martim Moxa (8.1) Os privados,
soedes em cor- ou Anônimo --------------------- que d’el-rei ham, de
te morar Pedro, conde de Bar-
celos

Como se percebe no quadro acima, as tenções aqui enfocadas relacionam-se não só


com outras tenções, caso de (3), (4), (6) e (7), como com outros gêneros de cantigas, (1), (2),
(5), (7) e (8). Ainda, a tenção (7) possui uma dupla ligação: uma tenção e uma cantiga. Esses
dados, que serão mais explorados na leitura extensiva dos duelos poéticos, corroboram com a
perspectiva de uma cadeia de tenções, segundo o entendimento de Barros (2005).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Nesse momento, pretendo fazer a abordagem do corpus por meio da sua análise
formal. Isso pode contribuir para pensar sobre a forma de composição, inferindo sobre
possíveis regras que regeriam a disputa poética entre dois trovadores.

Apesar do número variado de versos que compõem os poemas (21 a 35 versos), há a


semelhança quanto à distribuição estrófica neles. Com exceção de (8) Vós que soedes em
corte morar, todos os poemas possuem quatro septilhas (estrofes de sete versos). No caso (8),
apesar de Lopes (2015) afirmar que a tenção não segue a regra de cada poeta compor o
mesmo número de estrofes, é possível que, por algum problema de transcrição, a tenção
esteja incompleta; Lopes (2015)116 considera a mesma possibilidade no caso da tenção Joam
Soárez, nom poss’eu estar, que é formada também por 3 septilhas. Ainda sobre a estrofação,
há quatro poemas sem nenhuma fiinda e quatro com duas fiindas em tercetos, possuindo a
tenção (4) uma terceira fiinda em monóstico, que, como procurarei abordar melhor no
decorrer deste item, pode ter sido um acréscimo posterior à composição.

No aspecto formal, considero importante a disposição das rimas nas tenções, uma vez
que, através do esquema rimático, se pode inferir possíveis regras da competição poética. Isso
se deve ao fato de que, como lembra Spina (2003, p. 211) ao abordar a poesia competitiva no
seu Manual de versificação românica medieval, “o que se impõe como regra é a fidelidade do
contendor em manter a forma estrófica e muitas vezes as próprias rimas utilizadas pelo
desafiante”. No entanto, é importante lembrar que as regras que proponho no quadro que
segue são hipotéticas, fruto de um recorte das tenções dos cancioneiros galego-portugueses e
da identificação de uniformidades entre as cantigas, o que permitiria pensar a composição
realizada em performance.

Quadro 2: Possíveis regras de rimas nas tenções a partir do corpus


Regras de rimas Disposição das rimas (es- Tenções do corpus da
quema rimático) pesquisa

Regra 1 ABBACCA (1) Joam Baveca, fé que


ABBADDA vós devedes
ABBAEEA
ABBAFFA

116 Disponível em http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1434&pv=sim.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Regra 2 ABABCCA
 (2) Joam Soárez, de pram


ABABCCA as melhores
DEDEFFD
 (8) Vós que soedes em cor-
DEDEFFD te morar (não apresenta as
FFD (fiinda) fiindas e falta uma estrofe)
FFD (fiinda)

Regra 3 ABBACCA
 (3) Lourenço, soías tu gua-


ABBACCA
 recer
DEEDFFD

DEEDFFD

Regra 4 ABBACCB (4) Muito te vejo, Loure-


ABBACCB
 nço, queixar
DBBDEEB

DBBDEEB
EEB (fiinda)
EEA (fiinda)
A (fiinda)

Regra 5 ABABCCA
 (5) Pero da Pont’, e[m] um


ABABCCA vosso cantar
DDDDEED
DDDDEED
EED
EED

Regra 6 ABBACCA
 (6) Pero Martiins, ora por


ADDAEEA
 caridade
FGGFHHF

FGGFIIF

JJF (fiinda)
JJF (fiinda)

Regra 7 ABBACCA
 (7) Quem ama Deus, Lou-


ABBACCA renç’, am’a verdade
DEEDFFD

DEEDGGD

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Fonte: elaborado pelo autor.

Das oito tenções do corpus da pesquisa, consegui delimitar sete regras. O número é
quase idêntico ao de cantigas, o que não chega a indicar uma uniformidade. Todavia, ao fazer
o levantamento da disposição das rimas no corpus total das tenções, pode-se perceber uma
persistência das regras 2 e 3, o que corresponde a um terço das tenções galego-portuguesas
que foram registradas nos cancioneiros e encontram-se preservadas.

Essa hipótese de regras de composição permite supor modalidades de tenções que


permitiriam uma maior ou menor liberdade de composição entre os contendores. Nas regras
1, 6 e 7, formadas por cobras singulares, o segundo trovador não seguiu o mesmo esquema
rimático nas estrofes pares, alterando a rima nos versos 5 e 6.

- Joam Baveca, fé que vós A


devedes, que me digades ora ũa B
rem B
que eu nom sei, e segundo meu A
sem, C
tenh'eu de pram de vós que o C
sabedes, A
e por aquesto vos vim
preguntar: cantar d'amor de A
quem nom sab'amar, que me digades B
porque lho dizedes. B
- Pero d'Ambroa, vós nom A
m'oiredes dizer cantar - esto D
creede bem - senom bem feit'e D
igual; e por em n o m A
dig'estes "bõos" que vós fazedes,
ante digo dos que faz trobador
que troba bem e há coita
d'amor; e vós, por esto,
nom me vos queixedes.

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contemporâneas

Pero Garcia de Ambroa iniciou a tenção com o esquema rimático ABBACCA e João
Baveca respondeu em ABBADDA, alterando as rimas dos versos 5 e 6, o que aconteceu
também na quarta estrofe, uma vez que Ambroa fez a terceira em ABBAEEA e Baveca
redarguiu em ABBAFFA. O mesmo não ocorre na tenção Joam Soáres, de pram as melhores.

- Joam Soárez, de pram A


asmelhoresterras andastes, que eu nunca vi: B
d'haverdes donas por A
entendedores mui fremosas, B
quaes sei que há i, fora razom; mais C
u fostes achar d'irdes por C
entendedores filhar sempre A
-
- quand'amas, quando tecedores? A
- Juião, outros mais sabedores B
quiserom já esto saber de mim, e A
em todo trobar mai[s] trobadores B
que tu nom és; mais direi-t'o que vi: vi boas C
donas tecer e lavrar cordas e cintas, e C
vi-lhes criar, per bõa fé, mui fremosas A
pastores.

Na cantiga acima, João Soares Coelho seguiu, na segunda estrofe, o mesmo esquema
rimático daquele que Juião Bolseiro utilizara na primeira, ou seja, rimas em ABABCCA. É o
processo que ocorre nas regras 2, 3, 4 e 5, em que ocorrem as cobras doblas, em que o
segundo trovador segue o modelo indicado pelo primeiro.

Há a probabilidade de que, assim como ocorre no repente nordestino, antes da tenção,


os poetas combinassem a modalidade a ser executada, atendendo ou não a uma solicitação do
público, ou, através do reconhecimento da toada musical e/ou da melodia vocal logo na
primeira estrofe, o segundo trovador identificasse qual modalidade estaria em execução e que
deveria seguir. É possível supor, também, pela associação com a música, que as modalidades
de tenções seriam muito mais numerosas que as regras que levantei como hipótese, uma vez
que, como afirma Gadzekpo (2007, p. 291), “as cantigas satíricas deveriam apresentar uma
grande variedade de ritmos e melodias parecida com o restante da produção trovadoresca”.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Na minha tese, faço um exame do conteúdo das tenções, no entanto, todavia, devido
aos limites deste artigo, opto em passar adiante e abordar a problemática da voz e da letra no
Trovadorismo galego-português. Na seção que conclui o artigo, pretendo lançar mão não só
de dados críticos e teóricos como também de elementos das tenções vistos até aqui.

3. No Velho Mundo: convivência (des) harmônica entre voz e letra

A equação oralidade-escrita foi tema de um difuso debate no corpo das ciências


humanas ao longo do século XX. Segundo Walter Ong (1998, p. 14), o debate sobre “o
contraste entre os modos orais e modos escritos de pensamento e expressão” foram “iniciados
inquestionavelmente com o estudo de Milman Parry (1902-1935) sobre o texto da Ilíada e da
Odisséia – concluído por Albert B. Lord depois da morte prematura de Parry”. No campo da
literatura medieval, as maiores contribuições quanto ao papel da voz e da letra couberam a
Paul Zumthor (1993, 2000), principalmente, com Introdução à poesia oral, de 1983, e A letra
e a voz, de 1984. A tais contribuições, seguiu-se um debate controverso e ainda vivo, e, neste
início do século XXI, talvez seja válido lembrar as palavras que Lemaire enuncia em sua tese
de doutoramento, publicada na Holanda em 1987:

Il y dans les sciences humaines un mythe que constitue probablement un


mythe central: la vraie littérature, l’unique tradition littéraire occidentale,
c’est la littérature écrite, et écrite par l’homo sapiens, qui dans une tradition
séculaire fondée par l’archipoète Homère, y a consigné les vérités
essentiales et les valeurs universelles de l’humanité. Essentialisme et
universalisme, voilà les deux epistèmes que l’homo sapiens ne cesse de se
répéter depuis des siècles. Ce n’est que tout récemment que les critiques
commencent à ébranler sérieusement ce mythe solidement enracine dans
notre culture et à démontrer que le point de départ de départ de notre
civilisation moderne, aussi bien que celui de la civilisation gréco-latine, a
été tout autre: ce sont les traditions orales qui, indéniablement, existaient
avant la venue de l’écriture (Havelock, Ong, Zumthor). Etroitement liée à
cette thèse, on en rencontre une seconde: ces traditions orales ne constituent
pas un stade antérieur, primitif, le préambule encore fruste et imparfait de
littérature écrite, mais bien au contraire un monde, une culture, des formes
de communication essentiellement différents que les convictions établies
des sciences humaines, fondée sur ‘scritocentrisme’ (Lemaire T. 1984)

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contemporâneas

irréfléchi, ne font que déformer et rendre incompréhensibles (LEMAIRE,


1987, pp. 20-21).117

Lemaire (1987), no excerto acima, identifica um mito nas ciências humanas, ou seja,
que a “única e verdadeira literatura” é a escrita. Isso revela um preconceito scriptocentrista
que repete “a antiga tendência de sacralizar a letra” (ZUMTHOR, 2010, p. 8). Ademais, a
pesquisadora aponta para um rompimento com essa perspectiva, o que vem a reconsiderar as
tradições orais não mais como primitivas e atrasadas. Para essa ruptura, é preciso outro olhar
sobre as relações entre oralidade e escrita, como alude Ong (1998). De acordo com esse
autor, a nova compreensãopassa não só por uma abordagem ampla sobre as tradições orais
como também por uma visada que relativize a nossa percepção como habitantes do mundo
das letras e nos permita ouvir as vozes que ecoam perdidas nas noites dos tempos. Nesse
sentido, a perspectiva da relativização da compreensão letrada deve excluir a prerrogativa de
uma “revolução” que substituiu a voz pela letra em um corte radical, pois, como afirma
Havelock (1996) ao explicar a “revolução da literacia” no mundo grego antigo, a “palavra
revolução, apesar de conveniente e na moda, pode enganar, se for usada para sugerir a
substituição, de um só golpe, de um meio de comunicação por outro. [...] Aprendeu a
escrever e a ler enquanto ainda continuava a cantar (HAVELOCK, 1996, p. 35).

A mesma abordagem realizada por Havelock de uma convivência entre oral e escrito
na Grécia Antiga serve para a Idade Média. Como ensina Lemaire (2013), houve um processo
lento de passagem da voz para a manuscritura e desta para a escrita tipográfica. Ademais, a
pesquisadora demonstra que houve uma coexistência dos meios de comunicação oral,
manuscrito e tipográfico e que, por muito tempo, “o verbo ler significará: declamar ou cantar
um texto ditado/escrito perante um público” (LEMAIRE, 2013, p. 9).

Lemaire (2013) ainda fala que assim como o verbo ler modifica seu sentido até ter o
sentido que tem hoje, o verbo escrever passará por transformação parecida. No período
medieval, escrever corresponderá a “transportar para o papel a palavra cantada/declamada/
ditada, manuscrever ou transcrevê-la como suporte da memória oral”, o que é diferente do
“ato da escrita moderna que é muito mais um compor-escrevendo” (LEMAIRE, 2013, p. 9).

117
Tradução livre do autor: Há nas ciências humanas um mito que se constitui provavelmente um mito central:
a verdadeira literatura, a única tradição literária ocidental, é a literatura escrita, e escrita pelo homo sapiens, em
que uma tradição secular fundada pelo arquipoeta Homero, consigna as verdades essenciais e valores universais
da humanidade. Essencialismo e universalismo são as duas epistemes que o homo sapiens não cessa de repetir
durante séculos. Só muito recentemente é que os críticos começam a abalar seriamente esse mito solidamente
enraizado na nossa cultura e a demonstrar que o ponto de partida da nossa civilização moderna, bem como a da
civilização greco-romana, era todo outro: estas são tradições orais que, indubitavelmente, existiram antes do
advento da escrita (Havelock, Ong, Zumthor). Intimamente ligada a essa tese, encontramos uma segunda: essas
tradições orais não constituem um estágio anterior, primitivo, um preâmbulo ainda bruto e imperfeito da literatu-
ra escrita, mas sim um mundo, uma cultura, com formas de comunicação essencialmente diferentes que as con-
vicções estabelecidas das ciências humanas, fundadas no 'scriptocentrismo' (Lemaire T. 1984) irrefletido, não
fazem mais que deformar e transformar em incompreensíveis (Lemaire, 1987, pp. 20-21).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Nessa transição da oralidade para a escrita, é preciso que se compreenda a existência


da escrita de acordo com o contexto sócio-histórico específico. Em outras palavras, segundo
as palavras de Zumthor (1993), é necessário levar em conta que “Doze ou quinze gerações de
intelectuais formados à européia, escravizados pelas técnicas escriturais e pela ideologia que
elas secretam, haviam perdido a faculdade de dissociar da idéia de poesia a de escritura”.
(ZUMTHOR, 1996, p. 8).

O pesquisador suíço alerta para a marginalização da produção oral medieval, rotulada


como infra ou paraliteratura. Ademais, Zumthor (1996) declara que o preconceito
scriptocentrista faz com que se negue a oralidade em um texto do século XII, por exemplo.
Tal perspectiva advém não só da concepção letrada da formação “à europeia” e da
escravização às “técnicas escriturais e pelas ideologias que a secretam” como também por
uma compreensão homogeneizadora do longo período a que se denominou “Idade Média”:

A partir do século XVII, denominou-se “Idade Média” o longo


período que se estende da queda do Império Romano do Ocidente à
descoberta da América. Essa expressão cristalizada interpõe-se entre o
historiador e a história, sendo melhor, portanto, afastá-la: estorva
principalmente o estudo da literatura francesa antiga, fazendo supor uma
unidade que ela não possui (ZUMTHOR, 1972, p. 9).

O excerto acima é o trecho inicial do capítulo “Do românico ao gótico” do primeiro


volume dedicado à literatura francesa pela Enciclopédia Larousse e recebe o sugestivo
subtítulo “Não existe ‘Idade Média’”. Nele, há a afirmação de que, consoante à literatura
francesa, não é possível se pressupor uma unidade quanto ao período medieval, o que pode se
estender às demais literaturas europeias, incluindo a literatura portuguesa. Acerca dessa,
depõe a transformação linguística do galego-português em duas línguas distintas.

Considerando o que foi abordado, pode-se pensar a transição da oralidade para a


escritura em uma perspectiva em que não se reduza os fatos a uma homogeneização que,
historicamente, não ocorreu. Por isso, a distinção de Zumthor (2010) em quatro formas de
oralidade118 auxiliam na medida em que se pode pensar em fases em que cada um das “quatro
espécies ideais” se manifesta de maneira predominante. Segundo o pesquisador, são:
primária, mista, secundária e mediatizada. Essas não são espécies que se manifestam de
forma pura em uma sociedade ou período histórico; é provável que, na realidade empírica,
elas se entremeiem em um mesmo contexto sócio-histórico. Dessa forma, é possível entendê-
las na perspectiva weberiana de tipos ideais, em que, segundo Quintaneiro, Barbosa e
Oliveira (1995), tipo ideal é “[...] um instrumento do qual o cientista se vale para guiar-se na
infinidade do real”, em que “[...] o tipo ideal só existe como utopia e não é, nem pretende ser,

118 A obra original é de 1983. Ademais, o autor retoma as quatro forma de oralidade no artigo “La permanencia
de la voz”, publicado no Correo da Unesco em agosto de 1985.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

um reflexo ou uma repetição da realidade [...]” (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA,


1995, p. 134).

O conceito de tipos ideais permite que se pense um objeto de estudo a partir de um


numero reduzidos de aspectos da realidade para construir um modelo que dê conta de
aspectos tangíveis de uma realidade complexa. Isso não significa que se está abrangendo toda
realidade empírica, mas operando um instrumento de análise dela. Nesse sentido, as
oralidades primária (inexistência do contato com a escrita), mista (influência diminuta da
escrita) e secundária (influência marcante da escrita)119 são instrumentos analíticos da
transição da oralidade para a escrita no período denominado como Idade Média.

Em um primeiro momento, há uma predominância de uma oralidade secundária, em


que a escrita funciona como registro do que é produzido através do trânsito vocal. Nas
palavras de Zumthor (1996),

[...] o conjunto dos textos legados a nós pelos séculos X, XI, XII e,
numa medida talvez menor, XIII e XIV passou pela voz não de modo
aleatório, mas em virtude de uma situação histórica que fazia desse trânsito
vocal o único modo possível de realização (de socialização) desses textos
(ZUMTHOR, 1996, p. 21).

Ao menos por três séculos, a voz, de acordo com o exposto acima, foi o meio de
comunicação privilegiado da palavra poética. O escrito existe durante o período, uma vez que
a “Idade Média” é “também – uma idade da escritura” (ZUMTHOR, 1996, p. 96), no entanto
ela está subordinada à oralidade, servindo de registro auxiliar da memória e fonte de renda
para os poetas.

Lemaire (2013), por sua vez, ensina que os poetas medievais da oralidade fazem uso
da tecnologia da escrita, subordinando-a à voz. Como forma de assistência ao processo
mnemônico, aquela tecnologia se manifesta através de cadernos manuscritos com poemas
mais longos, produzidos, muitas vezes, em execuções performáticas. Como fonte de renda,
surgem as folhas soltas, conhecidas também como folhas volantes, e os cadernos de jograis
em uma dimensão de 11x16 cm, 120 devido às condições de transporte na vida nômades dos
jograis.

Acerca da relação sobre a relação da letra com a voz, Zumthor alerta que a difusão da
escrita tenha se dado pela relação que mantém com a voz: “na medida em que a escrita servia

119 A oralidade mediatizada não é aplicável ao momento histórico tratado nesse ensaio, uma vez que ela provém
da utilização de meios técnicos constituídos a partir do século XIX, ou seja, é aquela que “hoy nos ofrecem la
radio, el disco y otros médio de comunicación” (“hoje nos oferecem a rádio, o disco e outros meios de comuni-
cação”) (ZUMTHOR, 1995, p. 5).

120 Dimensão muito próxima a do cordel nordestino.

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para fixar mensagens inicialmente orais; contudo[...] porque o modo de codificação das
grafias medievais fazia destas uma base de oralização” (ZUMTHOR, 1996, p. 97).

A asserção do medievalista confirma a existência de um período em que predomina


uma oralidade mista, sendo a escrita subsidiária da voz. No entanto, durante a “floração
trovadoresca” galega-portuguesa (SPINA, 1984), ou seja, do século XII ao XIV, inicia uma
transição para a oralidade secundária, que se diferencia da mista por “una infinidad de
matices, tanto como grados hay, según las sociedades y los niveles de cultura, em la difusión
y el uso de lo escrito” (ZUMTHOR, 1985, p. 5) 121.

Ao encontro da perspectiva acima enunciada, é importante a seguinte constatação de


Lemaire (1998) de que, na primeira fase da literatura “escrita”, já se percebe uma atitude
elistita. Segundo ela, os “trobadores fan cantigas de escarnio sobre os xograres, nas que
sosteñen que estes non saben escribir poesia e só fan versos malos” (LEMAIRE, 1998, p.
15)122.

A disputa oralidade e escrita é marcado no confronto entre trovadores e jograis, o que


perfaz a demarcação social já abordada na seção anterior deste trabalho. Segundo a
pesquisadora holandesa, os trovadores faziam cantigas de escárnio afirmando que os jogais
não sabiam escrever ou seus versos eram ruins. Isso é perceptível na primeira estrofe da
tenção Lourenço, soías tu guarecer, em que João Peres de Aboim declara:

- Lourenço, soías tu guarecer - Lourenço, costumava tu a


vida [ganhar
como podias, per teu citolom, como podias, por tua citolona,
ou bem ou mal, ou bem ou mal, não te digo eu
nom ti dig'eu de não,
[nom,
e vejo-te de trobar trameter; e vejo-te de trovar te
e quero-t'eu desto desenganar: intrometer;
bem tanto sabes tu que é trobar e quero disto te desenganar:
bem quanto sab'o asno de leer. tão bem sabes tu o que é trovar
quanto tão bem sabe o asno ler.

121 Tradução livre do autor: “uma infinidade de matizes, tanto como os graus que existem, segundo as socieda -
des e os níveis de cultura, na difusão e no uso da escrita”.

122 Traduçãolivre do autor: “trovadores fazem cantigas de escárnio sobre jograis, em que afirmam que estes não
sabem escrever poesia e só fazem versos ruins”.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Aqui, como já enunciado anteriormente quando abordei a cantiga, o trovador afirma


que o jogral não sabe fazer versos (“trobar”). A competência do jogral é comparada a do asno
em ler. Aliás, essa comparação já aparece na tenção do corpus Joam Baveca, fé que vós
devedes (“bem quanto sab’o asno ler”), podendo se tratar de um ditado em voga no período, o
que é passível de ser considerada uma marca de oralidade.

Ainda no campo de disputa entre trovador e jogral no campo da oralidade-escrita, é


fundamental que mencione Muito te vejo, Lourenço, queixar. Nela, retomando a seção
anterior, há uma segunda fiinda com um único verso atribuída a João Garcia de Guilhade.
Segundo Gadzekpo (2007, p. 313), essa teria sido acrescida no registro escrito por Guilhade,
transformando a “tenção a seu favor, programando na fase da escrita ‘erros’ um bobo o jogral
que sempre o desafiava”.

Com o que abordei acima, é perceptível a que, na transição da oralidade para a escrita,
cada vez mais esta procura se sobrepor àquela, passando-se de um período de oralidade mista
para secundária. Mesmo com o aparente crescimento da importância da escrita durante a
época trovadoresca galego-portuguesa, defendo a hipótese de que as tenções tenham sido
compostas no próprio ato performático. Para defender essa pressuposição, volto-me para
elementos que funcionam como índices de oralidade. Nesse sentido, inspiro-me na defesa que
Lemaire (1987) faz das cantigas de amigo como improvisadas.

Le caractere oral de la performance des cantigas se devine dèjà par


le nom de ‘cantiga’, par la présence d’un refrain et par le fait que pour sept
chansons la musique a été retrouvée. D’autres indices textuel sont les
nombreuses apostrophes et exclamations aussi bien que les impératifs de la
première persone du pluriel: vaiamos, bailemos et d’autres formes du verbe
suggérant une situation bien précise et la présence das personnages : rogo,
digo, cantades, perguntades. Ce sont là des arguments fondés sur des
critères textuel, internes. On pourrait y ajouter un argument plus general :
pendant tout le Moyen Age et encore longtemps après, la poésie n’était pas
lue, mais chantée (LEMAIRE, 1987, p. 73)123.

De acordo com a estudiosa, o próprio nome cantiga indica oralidade, uma vez que tem
seu trânsito através da música e da voz. Ademais, ela aponta para índices textuais como as
exclamações, as apóstrofes, os imperativos em primeira pessoa do plural e a presença de
personagens.

123
Tradução livre do autor: O caráter oral da performance das cantigas já se pressente com o nome de 'cantiga'
pela presença de um coro e que foi encontrada a música de sete canções. Outros índices textuais são as muitas
exclamações e as apóstrofes, bem como os imperativos na primeira pessoa do plural: vaiamos, bailemos e outras
formas do verbo sugerindo uma situação específica e a presença de personagens: rogo, digo, cantades, pergun-
tades. Esses são argumentos com base em critérios textuais, internos. Um argumento mais geral pode-se acres-
centar: durante toda a Idade Média e muito tempo depois, a poesia não foi lida, mas cantada.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Da mesma forma que nas cantigas de amigos, pode-se identificar índices de oralidade
e performance nas tenções. Primeiramente, procedi ao levantamento dos versos que fazem
referência ao cantar e ao tocar no corpus, o que pode ser sintetizado no quadro abaixo.

Quadro 7 – Versos com referências ao cantar e tocar


Tenção Versos com referência ao cantar e ao
tocar

6 cantar d’amor de quem nom sab’amar


(1) Joam Baveca, fé que vós 9 dizer cantar – esto crede bem
devedes 16 os meus cantares dizer ant’alguém
24 os cantares que eu digo fez quem

(3) Lourenço, soias tu guarecer 2 como podias, per teu citolom

5 pois que t’agora citolar oí


(4) Muito te vejo, Lourenço, 6 cantar, mando que to dem assi
queixar 33 algo, e mui bem vos citolarei

(5)Pero da Pont’, e[m] um vosso can- 1 Pero da Pont’, e[m] um vosso cantar
tar

Como é apontado no quadro, há onze versos em quatro tenções que mencionam cantar
ou tocar. Dessas, uma das mais significativas é a que aparece no verso 16 de Joam Baveca, fé
que vós devedes, em que Pero de Ambroa diz que fará os seus cantares diante de alguém.
Além da referência às suas composições musicais, o trovador diz que os executará diante de
alguém, pressupondo um público expectador, elemento de suma importância para que ocorra
a performance como “ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente,
aqui e agora, transmitida e percebida” (ZUMTHOR, 2010, p. 31).

Um segundo tipo de índice de oralidade nos textos são aquelas marcas que remetem a
dizer, falar, escutar, ouvir e perguntar. No corpus, são encontrados 43 versos em que se
identifica menções aos atos de dizer, falar, escutar, ouvir e perguntar. Esses registros são
importantes por se relacionarem com o ato performativo pelo diálogo entre dois poetas,
atestado pelos vocativos em sete tenções – outra marca da performance. A interpelação de um
pelo outro passa, muitas vezes, pela pergunta direta ou indireta. Em alguns casos, ela soa
como ordem e vem acompanhada do marcador temporal de presente, como quando Pero de
Ambroa pede para João Baveca: “me digades ora uma coisa” (digais agora uma coisa). No
jogo poético quodlibetico, é dever do poeta questionado responder a questão que lhe surge de
surpresa.

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Ainda, os índices temporais indicam, nas tenções, a presença não só de um trovador/


jogral diante do outro como também de uma plateia. Diante dessa, os dois se enfrentam em
uma batalha aberta em que declaram dizer a verdade e exigem isso do outro. Um exemplo
disso é quando Afonso Anes provoca Pero da Ponte, exigindo o motivo dele se
autodenominar como escudeiro: “E dized'ora tant', ai trobador:/ pois vos escudeiro chamastes
i,/ porque vos queixades ora de mi,/ por meus panos, que vos nom quero dar?124”.

Assim, temos, ao menos, quatro modos indiciais de oralidade nas tenções. Conforme
abordei acima, os elementos internos ao próprio texto permitem intuir a oralidade presente
nas tenções e podem ser marcas de improvisação performatizada.

Antes de encerrar o artigo, considero importante retomar a tenção Quem ama a Deus,
Lourenç’, ama a verdade. Essa gira em torno de um ataque direto a Lourenço e indireto a
João Garcia Guilhade proferido por João Soares Coelho. Ao mesmo tempo em que ataca
Lourenço por roubar tenções de Guilhade, o trovador ataca esse ao afirmar que as cantigas
roubadas e proferidas pelo jogral possuem defeitos de métrica e de rima. Dessa disputa,
advém o problema não só do litígio sobre a autoria como também a questão da possibilidade
da composição através do improviso.

Acerca do duplo problema evidenciado no final do parágrafo anterior, centro-me no


aspecto da improvisação. Ora, se as tenções cantadas por Lourenço são de Guilhade como
afirma Coelho, elas foram produzidas na performance oralizada, na memória ou na escrita?
No caminho de construção de uma hipótese sobre a pergunta, considero as fases de existência
do poema propostas por Zumthor (2010). Segundo ele, a performance “constitui o momento
crucial em uma série de operações logicamente (mas nem sempre de fato) distintas. Enumero
cinco delas, que são as fases, por assim dizer, da existência do poema: 1) produção, 2)
transmissão, 3) recepção, 4) conservação, 5) (em geral) repetição” (ZUMTHOR, 2010 p.
32).

Essas cinco fases propostas pelo pesquisador permitem operacionalizar a reflexão


acerca do poema. Quanto à produção, apresento duas possibilidades: a cantiga referida por
Coelho teria se dado na performance improvisada entre Lourenço e Guilhade e depois
repetida por aquele; a segunda considera que a composição poderia ter sido concebida por
Lourenço, Guilhade ou outro poeta e, só posteriormente, foram proferidas pelo jogral, o que
guarda semelhança com o que ocorre em alguns cordéis nordestinos que apresentam disputas

124“E dizeis agora com muita força, trovador:/ ainda que vos chamaste de escudeiro ali,/ porque vos queixais
agora a mim,/ pelas minhas roupas, que não quero vos dar?”

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contemporâneas

poéticas que nunca ocorreram 125. Em ambas conjecturas, entram em jogo as etapas de
produção, transmissão, recepção, conservação e repetição. Nesse sentido, enquanto a primeira
possibilidade concebe uma simultaneidade das fases 1, 2 e 3, a segunda desvencilha, só
aparentemente, 1 de 2 e 3, uma vez que ela tanto pode ter sido produzida no improviso
oralizado quando ser fruto de um ato de composição mnemônico ou manuscrito de Lourenço,
Guilhade ou outro poeta. Somando-se a esse aspecto contingente, há a incerteza sobre como
teria se dado a conservação do texto: através da memória ou de um manuscrito? Seja qual
fora o modo de conservação da cantiga, ela passou, eventualmente, pela repetição, gerando
outras transmissões e recepções através da performance de Lourenço. Em uma dessas,
Coelho ouviu a execução de Lourenço (“Pero, Lourenço, pero t’eu oia/ tençom desigual e que
nom rimava”126). Ainda, é provável que a repetição surgira de um pedido do público para que
Lourenço executasse a tenção, uma vez que a posição de jogral faz com que ele tenha que
agradar ao público; disso depende o seu sustento.

Apesar da acusação de Coelho de que Lourenço executa cantigas compostas por


Guilhade em um momento anterior à performance, a hipótese de que as tenções foram
produzidas na improvisação não deixa de ser plausível. Mais do que isso, a denúncia de
Coelho permite pensar a sociabilidade que permeou o ambiente trovadoresco, não só
composto por artífices e executores da palavra cantada, mas também por um auditório com
participação ativa, tornando-se, como atesta Zumthor (2010), co-autor do discurso poético.
Em outras palavras, essa sociabilidade medieval construída através das manifestações
poéticas abarca tanto o desafio e os cantares improvisados quanto a performatização de
cantigas que foram compostas e transmitidas em outro momento.

Referências:

ARTE DE TROVAR. In: CANCIONEIRO da biblioteca nacional: antigo Colocci-Brancuti.


Lisboa: Revista de Portugal, 1949.
BARROS, José D’Assunção. Uma cadeia de cantigas de escárnio: uma análise sobre a poesia
satírica ibérica do século XIII e suas tensões sociais. Terra roxa e outras terras. Volume 6,
2005. pp. 13-28.
FOKKEMA, Douwe, IBSCH, Elrud. Conhecimentos e compromisso: uma abordagem
voltada aos problemas dos estudos literários. Porto Alegre: UFRGS, 2006.

125 Roberto Benjamin (2007), ao abordar a mítica cantoria entre Romano Mãe d’Água e Inácio da Catingueira,
que teria durado sete dias e sete noites, considera a admissibilidade da ocorrência do evento “pelo fato dos regis-
tros terem fontes diferentes e apresentarem diferentes vencedores. Caso contrario, se houvesse uma única fonte,
poderia se atribuir a uma criação de poetas-de-bancada [...]” (BENJAMIN, 2007, p. 178).

126 “Porém, Lourenço, porém de ti eu ouvia/ tenção desigual e que não rimava”.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

GADZEKPO, John Rex Amazu. Do duelo poético-satírico na gestão de conflitos sociais: um


tríptico de gêneros africano, português e brasileiro. 528 fls. Tese de doutorado (Línguas
vivas) – Université Poitiers, Poitiers, França, 2007.
HAVELOCK, Eric A. A musa aprende a escrever. Lisboa: Gadiva, 1996.
HIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2012.
LAPA, Manuel Rodrigues. Cantigas d´escarnho e de maldizer dos cancioneiros medievais
galego-portugueses. 2. ed. Vigo: Editorial Galaxia, 1970.
LEMAIRE, Ria. Do Cancioneiro das Donas ao Livro Delas. Mimeo. 2015a.
______. Paisons et positions. Amsterdam: Rodopi, 1987
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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Desnacionalizar a memória: percursos identitários e desafios para uma


nova escrita127

Roberta Guimarães Franco


Universidade Federal de Lavras (MG-Brasil)
robertafranco@dch.ufla.br

Uma das obrigações do escritor africano é estar disponível para, em


certas circunstâncias, deixar de ser escritor e não se pensar
«africano».
Mia Couto

A proposta deste texto – que se apresenta mesmo como proposta, pois é ainda uma
tentativa inicial de problematizar a relação, que é mesmo uma necessidade, entre a Literatura
e História nos países africanos de língua portuguesa – parte do interesse diante de algumas
manifestações, ainda isoladas, de escritores angolanos e moçambicanos, mais
especificamente, de afastamento do paralelo Literatura/Identidade nacional.

O percurso das literaturas africanas de língua portuguesa, seja pela implementação do


prelo apenas no século XIX, seja pelo modelo de colonização adotado que, segundo alguns
historiadores, data, de fato do início do século XX, muitas vezes é considerado tardio,
especialmente se for levada em consideração as propostas metodológicas que dividem as
produções em literatura colonial e literaturas africanas, como a de Manuel Ferreira (1987).
Inegável é, no entanto, a intrínseca relação que os textos literários, principalmente a partir das
décadas de 30 e 40 do século XX, teceram com a História das então colônias.

Esse íntimo contato com a História se intensificou quando o texto literário passou a
expressar a tensão entre os dois espaços que constituem esses territórios, ou seja, a fronteira
entre o mundo africano e o mundo colonial, como podemos ver no conto "A fronteira de
asfalto", de Luandino Vieira, por exemplo. A necessidade de expressão de uma voz própria,
que combatesse – e aqui lembramos Manuel Rui com "Escrever então é viver. Escrever assim
é lutar" em O eu e o outro - o invasor (1987, p.310) – o discurso colonial, propagado também
através da literatura, faz com grupos se organizem em torno da questão identitária, da defesa
de uma cultura local, como é o caso do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, de
1948.

127 Este texto é parte do trabalho desenvolvido no projeto “Poder e silêncio(s): a pós-colonialidade entre o dis -
curso oficial e a criação ficcional”, financiado pela FAPEMIG.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

As guerras de independência e a concretização das descolonizações, em 1975, não


poriam fim a presença da História nos textos literários, ao contrário, seguindo a tendência
pós-colonial, de rever os acontecimentos, para questioná-los e não recontá-los, a literatura,
que, segundo Ana Paula Tavares, "consegue andar à frente. A história é muito mais
medrosa" (2008, p. 41), mergulharia não só no período recente de embate entre colonizador e
colonizado, mas buscaria em tempos longínquos marcas do que foi apagado, subjugado, pelo
sistema colonial. Nesse sentido, a memória tem funcionado como matéria privilegiada para a
construção de narrativas que dialogam com o passado colonial, evidenciando suas heranças
sociais, bem como problematizam a sua relação com o presente. Assim, a memória pode ser
lida como um rastro constante e persistente nessas literaturas.

Passados pouco mais de quarenta anos das independências, a questão identitária ainda
é ponto crucial para essas sociedades e, consequentemente, para a literatura. No entanto, o
que queremos questionar aqui, a partir de algumas manifestações que destoam desse
paradigma, literatura/identidade nacional, é o olhar de compromisso que se direciona aos
escritores africanos. Compromisso com a nação, com a história, com a resistência e o
combate.

No texto que dá continuidade a epígrafe, Mia Couto desenvolve o seu ponto de vista
sobre o papel do escritor:

Explico-me: o escritor é um ser que deve estar aberto a viajar por outras
experiências, outras culturas, outras vidas. Deve estar disponível para se
negar a si mesmo. Porque só assim ele viaja entre identidades, um
contrabandista de almas. Não há escritor que não partilhe dessa condição:
uma criatura de fronteira, alguém que vive junto à janela, essa janela que se
abre para os territórios da interioridade. (2005, p. 59)

Todavia, aquilo que parece ser a dádiva do escritor, essa possibilidade de trânsito
entre variadas experiências e fronteiras, pode ser questionada quando olhamos para as
literaturas africanas. Não é à toa que o texto de Mia Couto tenha como título uma pergunta:
“Que África escreve o escritor africano?”, pois o autor vai colocar em debate a relação entre
tradição e modernidade, paradigma com o qual os escritores africanos parecem se debater,
fadados que estão a serem identificados com a defesa da tradição e, consequentemente,
afastados de noções que os liguem à modernidade. O próprio lugar do continente diante do
restante do mundo está aqui em questão, já que a ideia de identidade africana (assim mesmo
no singular) está, no senso comum, mas não só, atrelada a imagem de “África profunda”,
“continente mítico”, que remete a uma “inabalável tradição”, que resiste heroicamente a um
mundo que caminha. Dessa forma, o colonialismo não finda com as independências, como
afirma Mia Couto em outro texto – “Uma grande parte da visão que temos do passado do
nosso país e do nosso continente é ditado pelos mesmos pressupostos que ergueram a história
colonial. Ou melhor, a história colonizada” (COUTO; 2005, p. 11) –, pois mantêm esses

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

territórios nesse lugar distanciado, no qual predomina o passado, a tradição, travestida de


uma imagem romântica que esconde os interesses econômicos que negam ao continente à
modernidade ou, ainda com Mia Couto, “O que se fez foi colocar um sinal de positivo onde o
sinal era negativo” (2005, p. 11)

Portanto, a proposta aqui é pensar essa tradição como obrigação, que leva a uma
obrigação da memória, especialmente da memória histórica, pensada aqui através das
reflexões de Maurice Halbwachs (1990). Entrelaçada aos pressupostos da teoria pós-colonial,
essa obrigação pode se transformar em uma armadilha redutora que aprisiona os escritores de
espaços que foram colonizados a uma escrita marcadamente identitária, ou ainda presa à uma
memória que se quer outra, distinta daquela produzida pelo Norte, pela lógica de subjugação
do Sul.

O Brasil, também marcado pela herança colonial, já vivenciou debates semelhantes,


quando a expressão “cor de local” dominava as análises, como a defender que a
“autenticidade brasílica” passasse pela representação dessa “coloração”. Silviano Santiago,
em “O entre-lugar do discurso latino-americano”, de 1971, pergunta: “Qual seria a atitude do
artista de um país em evidente inferioridade econômica com relação à cultura ocidental, à
cultura da metrópole, e finalmente à cultura de seu próprio país?” (2000, p. 17). Os
questionamentos de Silviano Santiago estão, obviamente, ligados às pesquisas que olham as
produções literárias de sociedades colonizadas com o intuito de buscar fontes ou influências
(marca inicial da Literatura Comparada) que remetam às metrópoles, criando a imagem de
"obra parasita". Diante disso, perguntamos, até quando a própria crítica fará o papel de agente
neocolonial, ao "impor" isso ou aquilo aos escritores latino-americanos e africanos, aos
escritores do Sul? Será que o mesmo ocorre nos espaços do Norte?

Luiz Costa Lima, em texto publicado na folha de São Paulo, em agosto de 2006,
problematiza a ideia da literatura como elemento de nacionalidade, e ressaltamos que é a
ideia travestida de obrigação. A literatura pode ser um elemento de nacionalidade, mas ela
deve ser, tem essa função? Costa Lima afirma, no caso do Brasil, que:

Para que a teoria da literatura se firmasse entre nós teria ela de contrariar um
modo de pensar que se fixou desde Gonçalves de Magalhães [1811-82]. Em
seu “Discurso sobre a História da Literatura no Brasil” (1836), a literatura
era apresentada como a quintessência do que haveria de melhor e mais
autêntico em um povo.
E, como o país se tornara independente sem um sentimento de
nacionalidade que integrasse as regiões, o serviço que ela, de imediato,
haveria de prestar seria de propagá-lo.

Em “Disputas e impasses no campo minado”, Rita Therezinha Schmidt problematiza


os caminhos da área de Literatura Comparada, suas tendências no Brasil e uma visível crise
de identidade, já na década de noventa, em torno das múltiplas possibilidades de análise e

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

recorte epistemológico da área em questão. Em dado momento, a autora chama a atenção


para uma espécie de movimento que se origina a partir da “indefinição de limites” ou do
“relativismo sem limites”, que parecia descaracterizar os estudos literários, e que culminará
em uma proposta de revisão do cânone literário, o que já estaria em vigência nos Estados
Unidos. Peço licença para citar o texto da profa. Rita Schimdt:

A partir de uma associação do processo de revisão canônica (diga-se,


reconhecimento de produções marginais) em países como os Estados
Unidos, com a vigência de uma retórica globalizada exportada pelos redutos
do poder cultural (leia-se, universidades norte- americanas), é feito um
alerta aos intelectuais brasileiros sobre a ameaça que paira sobre a
autonomia da literatura brasileira, no sentido de que qualquer tentativa de
democratizar nosso cânone não pode significar subserviência a juízos de
valor ditados pelo outro. O subtexto não deixa dúvidas de que interferir no
cânone da literatura brasileira significaria desnacionalizar nossa literatura.
Enquanto reforça as premissas de um sentido de nação e do nacional que se
acumplicia com uma determinada forma de conceber o nacional, isto é, o
nacional naturalizado via o canônico literário, contra um possível
colonialismo norte/suI, o texto silencia quanto a questão dos colonialismos
internos que se reproduzem em todos os níveis da vida nacional.
Frequentemente esquece-se de que o nosso cânone, do ponto de vista
político, foi uma peça eficiente do processo colonizador, como bem coloca
Antonio Candido em seu ensaio "literatura de dois gumes". (SCHMIDT,
1999, p. 161)

Portanto, como aponta Schmidt, o processo que ocorre nos Estados Unidos tem um
resultado bastante distinto no caso do Brasil. Diante da possibilidade de revisão do cânone, a
partir de uma proposta estadunidense, ou seja, lida como imposta do norte para o sul, os
pesquisadores brasileiros intensificam a relação entre a literatura e a ideia de nação ou de
identidade nacional, ignorando o quanto essa relação nos chega emprestada pela lógica
colonial.

Voltando a pensar a situação dos escritores africanos de língua portuguesa, e de


alguma forma ainda pensando o Brasil, vemos como o mercado editorial brasileiro também
tem responsabilidade sobre essa questão. Sobre a construção de uma ideia de África e de uma
literatura africana. Se tomarmos o exemplo do escritor angolano Ondjaki e observamos as
escolhas do mercado editorial que não apenas publicou, como fez grande divulgação de obras
como Bom dia camaradas (2001) e Os da minha rua (2007), que tornaram o então jovem
escritor bastante conhecido no país, encontramos a relação entre a literatura e a história
recente de Angola, especialmente o momento pós-independência.

No entanto, antes dessas obras Onjaki publicou, por exemplo, O Assobiador (2002),
em Portugal. Nesta novela, que narra a chegada de um forasteiro a uma pacata aldeia, não
temos localização espacial ou temporal, ou qualquer ligação com o espaço angolano e sua
história. Nas palavras do próprio Onjaki, em carta para Ana Paula Tavares que acompanha a

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

obra, O Assobiador é descrito como "um livro com um mar secreto no coração de uma
personagem lágrima, um comboio de doçura num caixeiro convidado, e tantos mistérios que
compõem a solidão na voz densa de um homem que assobia..."(ONDJAKI, 2002, p. 113). E o
livro é isso, a transformação das personagens a partir do assobio de um desconhecido, sem
nome, sem passado, sem destino:

A infinitude do alcance daquele assobio resultava, certamente, de um


também enorme conhecimento metafísico da arte de assobiar, que mexesse
não só com o ouvido das pessoas, mas alcançasse, de modo incisivo, a
profundidade das suas almas, o recôndito canto onde cada um escondia as
suas coisas – essa assustadora gruta a que muitos chamam âmago do
ser” (ONDJAKI, 2002, p. 44)

Uma produção mais recente, o livro de contos Sonhos azuis pelas esquinas, de 2014
(também em Portugal), surpreende o leitor que aguarda a relação entre escritor angolano e
narrativas sobre Angola. Já no índice, os títulos dos contos apontam caminhos diferentes:
Buenos Aires, Budapeste, Madrid, Giurgiu, Gorée, Macau, Praga, Oaxaca, Nairobi,
Zanzibar, Shangai, Ouagadougou, Dar es Salaam, Siena, Moçâmades, Laranjeiras, Tânger,
Santiago de Compostela, Massoxiangango, Mussulo. Vários lugares espalhados pelo globo
dão a exata noção daquilo que falava Mia Couto, sobre o escritor que pode atravessar
fronteiras. É possível vislumbrar o escritor (ou um escritor), como no conto Budapeste,
narrado por alguém que faz a viagem Lisboa-Budapeste para lançar um livro, mas o que
prevalece é uma narrativa misteriosa, sobre um alfarrabista húngaro que vive em Lisboa, um
anão, um ator morto, e mensagens anônimas que chegam ao escritor.

Em outro texto, ainda a ser publicado128, faço uma análise da obra Campo de trânsito,
do escritor moçambicano João Paulo Borges Coelho. Embora a minha análise naquele texto
aponte para a relação existente entre a obra e a história de Moçambique no pós-
independência e os campos de reeducação criados pela FRELIMO - hipótese que ainda
sustento -, é importante ressaltar a opção de Borges Coelho pela não localização espacial e
temporal da sua narrativa. O escritor, também professor de História, possui uma vasta obra
ligada ao espaço moçambicano, como As duas sombras do rio (2003), ou os dois livros de
contos Índicos Indícios I. Setentrião, e Índicos Indícios II. Meridião, ambos publicados em
2005. No entanto, em Campo de trânsito essa referência fica em aberto, como dizendo ao
leitor que as ações que fazem parte daquela narrativa são próprias de seres humanos, e que
aquilo que consideramos absurdo, no tratamento dos presos, por exemplo, não é uma
particularidade africana ou moçambicana, pode acontecer em qualquer lugar.

128 O texto "A ausência enquanto silêncio ou a invisível transformação: reflexões sobre Campo de trânsito, de
João Paulo Borges Coelho" faz parte de uma coletânea organizada pelos professores Silvio Renato Jorge e Re-
nata Flávia da Silva, a ser publicada pela EDUFF.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Voltando a Angola, outro exemplo interessante sobre essas criaturas de fronteiras,


para relembrar Mia Couto, é O Livro dos Camaleões, de José Eduardo Agualusa, publicado
em 2015. Nesta obra, o texto da quarta capa já indica a multiplicidade que permeará os
quatorze contos que compõem o livro:

Um ditador africano, muito respeitado em Portugal, escreve sua biografia.


Um famoso marinheiro maltês visita São Tomé, depois de passar por um
lugar onde o tempo não passar. Um antropólogo descobre-se nu e indefeso
diante de uma mulher. Uma zebra persegue um escritor. Uma virgem perde
a cabeça.
Neste O Livro dos Camaleões cruzam-se personagens em busca de uma
identidade, ou em trânsito de identidade, atravessando diversas épocas, do
século XIX aos nossos dias, e diversas geografia, das savanas do sul de
Angola as ruidosas ruas do Rio de Janeiro.
Algumas destas personagens são arrancadas à realidade ou inspiradas em
figuras reais. Não se trata de saber onde termina a realidade e começa a
ficção. Trata-se de questionar a própria natureza do real.

Considero a apresentação da obra de Agualusa muito significativa para as questões


que trouxe até aqui. De forma resumida, vemos que os contos caminharão por destinos
diversos, mesmo que ainda falando de Angola. E isso é também importante, pois ao falarmos
aqui em "desnacionalização da memória", não queremos livrar os escritores de uma
obrigação, como já dissemos acima, e criar outra, a de pensar sempre em espaços indefinidos
ou distantes da sua nacionalidade ou lugar de fala. Os contos de Agualusa mostram bem
isso.129

Os exemplos que cito neste texto, de formas bastante diversificadas, evidenciam a


pluralidade desejada quando olhamos para as literaturas africanas de língua portuguesa. Em
tempo de identidade fragmentadas, do sentido de fronteiras que ultrapassa a mera limitação
geográfica. Ondjaki, Agualusa e Borges Coelho transitam, os três possuem obras marcadas
pela história de seus países, mas também se permitiram o desafio da nova escrita, da
desnacionalização.

Podemos citar aqui alguns exemplos da Literatura portuguesa que percorreram


caminhos semelhantes, como José Saramago, que após uma fase inicial voltada a temas
relacionados à história de Portugal – embora vista a contrapelo, por baixo, como em
Levantados do chão (1980) ou Memorial do convento (1982) – partiu para a indefinição do
espaço, focando na brutalidade humana como em Ensaio sobre a cegueira (1995), ou ainda a
imprevisibilidade de uma vida sem a presença da morte, como em As intermitências da morte
(2005). Exemplo mais recente é Valter Hugo Mãe que publicou A máquina de fazer

129 No romance Rainha Ginga (2014), Agualusa, embora traga no título a grande personagem da história ango -
lana do século XVII, aponta em seu subtítulo - “e de como os africanos inventaram o mundo” -, esse olhar para
fora, tanto que é a personagem do padre pernambucano que assumirá o foco central da narrativa.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

espanhóis (2010), que traz o contexto do salazarismo, mas também é autor de


Desumanização (2013), que se passa na Islândia, e já anunciou que seu próximo romance
será sobre um artesão que vive perto de Kyoto, no Japão.

O que quero deixar aqui como reflexão - tanto para a escrita literária, como para o
trabalho da crítica - é tentarmos compreender os porquês que envolvem essa cobrança
identitária quando falamos das literaturas africanas. E volto as proposições de Mia Couto:

Pense-se, por exemplo, na produção cultural dos africanos. Em lugar de


valorizar a diversidade dessa produção e olhar o livro como produto cultural
substitui-se a apreciação literária por uma visão mais ou menos etnográfica.
A pergunta é – quanto este autor é «autenticamente africano»? Ninguém
sabe exactamente o que é ser «autenticamente africano». Mas o livro e autor
necessitam ainda de passar por essa prova de identidade. Ou de uma certa
ideia de identidade. (2005, p. 62)

Nessa visão caberia ao escritor africano provar o que é através das suas obras. provar
que não é um "parasita", para retomar Silviano Santiago, que está desligado do Ocidente, do
Norte, da Metrópole, ou seja, completamente independente. Ironia a parte, independência na
dependência de ser o modelo pensado e construído de uma ideia singular de África.

É interessante observar que em uma palestra intitulada "O perigo de uma história
única", a escritora nigeriana Chimamanda Adichie também fala nessa suposta “autenticidade
africana”, quando conta sobre a sua chegada nos Estados Unidos e a surpresa de sua colega
de quarto, quando descobre que ela fala inglês, sabe usar um fogão e tem como música
"tribal" um cd da Mariah Carey.

Portanto, evidenciar essas falas é chamar a atenção para o quanto o discurso sobre a
"autenticidade" do outro é nada mais do que o estereótipo travestido de lugar de fala que o
Ocidente “concede” à África. Nesse sentido, as formas de ruptura com os rastros das
memórias que construíram essas literaturas, configura-se como um salto importante para um
novo movimento de olhar para as produções africanas em língua portuguesa, pensando essa
desnacionalização, tanto da produção literária, como a da própria crítica, que parece ler a
História e a Memória nas literaturas africanas de língua portuguesa, antes mesmo de ler o
título da obra (e aqui faço, obviamente, a mea culpa).

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COELHO, João Paulo Borges. Campo de trânsito. Lisboa: Editorial Caminho, 2007..
COELHO, João Paulo Borges. Cidade dos Espelhos. Afragide: Editorial Caminho, 2011.
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SCHMIDT, Rita Therezinha. “Disputas e impasses no campo minado”. In: Travessia (UFSC),
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TAVARES, Ana Paula. "Contar Histórias". In: Lendo Angola. Porto: Edições Afrontamento,
2008, pp. 39-50.

Gestos do olhar, fronteiras da visão: imagem, memória e poesia

Rodrigo Garcia Barbosa


Universidade Federal de Lavras (UFLA)
rodrigobarbosa@dch.ufla.br

Neste trabalho propomos analisar as relações entre literatura e memória a partir de


figurações e configurações do olhar presentes em dois poemas da literatura brasileira
contemporânea, identificando neles um gesto constituinte que engloba diversos aspectos,
como uma subjetividade projetada e incorporada no visível, uma historicidade definida como
uma condição compartilhada tanto pelo que vê quanto pelo que é visto e uma poeticidade
construída a partir dessa dialética do olhar, de suas condições de visibilidade e invisibilidade,
de descobrimento e recobrimento. Tal gesto dá origem a estruturas poemáticas que se

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

desdobram em centros de tensões, ou pontos de convergências e divergências, formas que


tangenciam o informe, enfim – como a lembrança e o esquecimento, a luz e a sombra, o som
e o silêncio –, e a partir dele pretendemos refletir sobre as possíveis implicações entre sujeito,
mundo e poesia a partir daquilo que identificamos como um paradigma mútuo da imagem e
da memória; paradigma inquieto, fronteiriço, feito de rastros, restos, vestígios: ausências e
presenças entrelaçadas nos poemas.

Sendo assim, as questões que pretendemos abordar neste trabalho partem da condição
de que há um gesto do olhar, movimento dos olhos que constitui a visão, pois “Só se vê o que
se olha”, nos ensina Merleau-Ponty (2004, p. 16); mas também partem de uma outra
condição, desdobrável da anterior, que estabelece que tal gesto não se dá como um
movimento gratuito, uma ação aleatória, mas sim como uma antecipação da própria visão no
olhar, como uma possibilidade que se sugere ao olho antes mesmo que ele se fixe no seu
objeto. Dessa forma, olhar e visão se fundem como “partes totais do mesmo Ser” (Ibidem, p.
16), ser vidente que se incorpora no ser visível, imbricada dialética que recobre aquilo que é
visto com a descoberta daquele que vê. Daí a possibilidade de pensarmos em fronteiras,
margens, limites onde as condições se invertem, onde o que vê torna-se o que é visto e o que
é visto torna-se o que vê, frestas afiadas que, acreditamos, são também uma condição de
poesia, ou de alguma poesia, e através das quais se insinuam também algumas imagens e
algumas memórias, definindo assim certas perguntas a serem exploradas: Onde afinal se
situam tais frestas? O que escondem e o que deixam vislumbrar em suas múltiplas condições
de imagem, memória e poesia?

Uma primeira hipótese, que alimenta todas as outras, sugere que se busque tais frestas
em um poema, esse lugar fronteiriço, extremo, propício às condições das quais partimos e às
quais retornamos insistentemente. Nossa exploração começa, então, por um poema de Sérgio
Alcides, poeta, ensaísta e professor que tem se destacado no contexto da poesia e da crítica
literária brasileiras contemporânea. O poema intitulado “Está caindo” se aproxima das
questões inicialmente levantadas sobre a visão e o olhar e as lança adiante, em novos
desdobramentos que buscaremos indicar a partir dos versos transcritos a seguir:

Querer olhar para a lente,


verificar a ranhura
da lente, não a que arranha
do outro lado da vista
o mundo menos real
– mas real – da circunstância.

Sem poder deixar de ver

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– através – a poesia.

Poeira que está caindo,


cobrindo as mercadorias.

(ALCIDES, 2012, p. 11)

Já no primeiro verso nos deparamos com um olhar que se conjuga com um querer,
uma ação atrelada a uma vontade ou desejo que se antecipa nela, determinando-a e
moldando-a. A visão já conhece seu objeto, já o pressente antes mesmo dele se concretizar no
olhar, é capaz de medi-lo e especificá-lo entre as variáveis possíveis. E as variáveis se
apresentam, pois o objeto em questão é o que poderíamos chamar de um objeto complexo
para a visão, não algo que se coloca no mundo natural “da circunstância”; não algo que
“naturalmente” se coloca “do outro lado da vista”, reforça o poema; mas algo que constitui a
própria visão, ou se situa dentro dela, ou mesmo a precede: a lente, imagem que se abre a
figurações igualmente ricas em desdobramentos.

Uma delas, de natureza metonímica, nos faz pensar na parte de uma câmera, na lente
como ponto de convergência de um olhar e de um objeto, fronteira onde ambos se encontram
e implicam, submetidos a esse artefato que acentua suas delimitações: o olhar recortado pelo
enquadramento da imagem; o objeto também recortado nesse mesmo enquadramento. Tal
lente, fotográfica ou cinematográfica – e tal diferenciação não nos parece particularmente
relevante no momento, e nem pretendemos explorá-la aqui, apenas confessar desde já que o
olhar detido e concentrado que prevalece no poema e a atenção voltada à “circunstância”,
com sua natureza momentânea e particular, definem uma predileção pela fotografia –, tal
lente, concentração da câmera em sua máxima potência ótica, introduz novas questões dentre
as quais escolho uma: sua natureza técnica, instrumental, associada a uma ação consciente e
planejada; questão que, introduzida, nos faz pensar em Walter Benjamin e seus escritos sobre
o tema, sobre sua natureza técnica, mas também – e uma nova questão brota da anterior –
mágica; escritos dos quais destacamos o trecho a seguir, que se detém na imagem fotográfica
e no dispositivo que a produz:

[...] Depois de mergulharmos suficientemente fundo em imagens assim,


percebemos que também aqui os extremos se tocam: a técnica mais exata
pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá
para nós. Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de
planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade
irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e
agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar
imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há
muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

para trás. A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é
outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado
conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre
inconscientemente. [...] Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como
só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. (BENJAMIN, 1994, p. 94)

As questões levantadas por Benjamin sobre a câmera e a reprodução fotográficas


sugerem reflexões valiosas para a leitura desse primeiro verso. A começar pelo
reconhecimento de uma dimensão extrema, análoga ao que chamamos de fronteira, margem,
limite, e que se caracteriza pela convivência pouco pacífica entre dois elementos distintos,
condição dialética que percorre as imagens benjaminianas e reforça sua ligação com outra
dimensão também dialética – a da memória. Na verdade, podemos reconhecer na passagem
mais de uma dialética posta a funcionar: técnica e magia, consciente e inconsciente,
planejamento e acaso, olhar e câmera. E essa condição dinâmica nos permite perguntar então:
O que deseja este olhar do poema? Deseja ver a imagem que se forma duplamente, um pouco
a partir do seu mecanismo calculado e lúcido, um pouco a partir da circunstância imprevisível
e incontrolável? Deseja gozar esse espaço móvel, tenso e instável em que sua visão se atira e,
inevitavelmente, se perde, tornando-se tanto a visão da câmera quanto a visão do espectador?

As respostas a tais perguntas surgem a partir dos versos seguintes, quando


descobrimos que este olhar desejoso não se interessa exatamente por aquilo que a lente vê ou
permite visualizar, nem pela própria lente em sua totalidade, mas particularmente por sua
ranhura. E aqui cabe ressaltar: não as ranhuras do mundo que a lente reflete e reproduz, mas a
ranhura da própria lente, sua marca, sua imperfeição, sua cicatriz; ranhura real porque não
mimética, porque não a representação de outras, alheias, ainda que estas sejam reais em suas
condições específicas (“menos reais – mas reais”, diz o poema). Ranhura real porque em si
mesma, com suas próprias implicações de ser a ranhura da lente, artefato ou instrumento em
que visão e olhar se materializam. E se estamos decididos a pensar a lente como câmera,
somos levados a pensar no acaso de que fala o filósofo ao comentar as reproduções
fotográficas, também uma falha na ação consciente e planejada do fotógrafo; acaso que fere a
imagem, chamusca sua superfície, desfaz sua integridade para fazer emergir a magia que
conecta os afetos passados, presentes e futuros, movimento de memória que atravessa o texto
benjaminiano. E então já não é possível ignorar o poder dessa falha, dessa falta, desse
obstáculo à visão, poder de magia, nos diz Benjamin, e de poesia, nos dizem os versos
destacados; força centrípeta que produz um movimento auto-reflexivo que já se insinuava
como um metaolhar ou uma metavisão, dobras e desdobras das ações e objetos sobre si
mesmos, e que abre caminho para uma metapoesia, ou uma poesia que busca ver a si mesma,
se reconhecer em seu próprio olho ou em sua própria lente, atraída pelo poder irresistível do
seu abismo intrínseco.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Mas de onde vem essa inevitável poesia? De que fresta ela surge, sem poder ser
ignorada? De que fenda ou fissura? Afinal, como o verso destaca, a poesia não é a ranhura,
mas no entanto se deixa surpreender através dela; como a magia que se revela no
chamuscamento da foto, na sua falha, na sua falta, mais do que no detalhe imperceptível da
imagem. E é preciso insistir nessa negatividade, nesse caráter de perda que parece presidir as
ações e objetos desta leitura, e que sugere uma chave para uma compreensão profunda desses
fenômenos: a instituição de presenças incontornáveis a partir de ausências, positividades que
se impõem a partir de negatividades, o caráter falível de um instrumento que se afirma
justamente pela sua precariedade. E o poema em questão não se furta a essa reviravolta
dialética que lhe confere essa condição ambígua, paradoxal, de uma negatividade positiva.
Afinal, à impossível invisibilidade da poesia que se revela através da ranhura se soma a
poeira-poesia (feliz paronomásia) que cai e cobre, por fim, as mercadorias, sendo ao mesmo
tempo uma adição e um resto; índice da passagem do tempo, mas que se assenta sobre essa
lapso e assume seus contornos, destacando sua forma.

Nos deparamos assim com um objeto que revela, mais do que sua forma acabada, a
forma do instrumento que lhe deu acabamento, e que se desenha no vazio que resta após a
lapidação ou escavação. Pensamos aqui na leitura que Georges Didi-Huberman (2009) faz da
obra do escultor italiano Giuseppe Penone, cujas mãos se imprimem nos vazios que
provocam na matéria prima com que o artista trabalha, como um rio que se pode entrever nas
formas do leito lapidado pelo fluxo das águas, como a marca que resta após o contato, como a
cicatriz que denuncia o formato da lâmina. Ouçamos o que diz o próprio escultor:

Todo inquérito sobre os vazios pressupõe o cheio. Esse cheio é o próprio


escultor, porque com seu cinzel, com suas mãos, ele exerce a pressão que
cria os volumes. O vaso pode ser visto como um substituto das mãos do
oleiro, como uma soma de impressões, como uma matriz capaz de recriar
(quando se pega o vaso) a pele do oleiro. (PENONE apud CELANT apud
DIDI-HUBERMAN, 2009, p. 55)

A partir da lição de Penone podemos concluir, então, que, se o olhar deseja a ranhura,
encontra a poesia, o fantasma incontornável de uma presença que se manifesta como
ausência, de uma potência que se afirma como falha, de uma linguagem que se constitui
como um silêncio, um sacrifício. E daí talvez certa dimensão sagrada dessa poeira-poesia que
“cobre as mercadorias”, oriunda do sagrado que Georges Bataille (2003) associa às artes que
procuram formas verbais ou figurativas para traduzir as inquietudes do “espírito moderno”,
livres dos limites da representação; formas não substanciais que se caracterizam pela
impossibilidade de permanência, que fogem assim que aparecem, e que não se deixam
apreender totalmente; formas cujos objetos se revelam justamente ao revelarem a
incapacidade dessas mesmas formas para apreendê-los, ponto extremo ou “instante

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contemporâneas

privilegiado” em que, entre o objeto inapreensível e a forma precária, se desnuda um abismo.


Assim, imagem, memória e poesia se entrelaçam nessa fresta afiada – ranhura – em que mais
se apuram à medida que se impõem uma falta, um vazio, uma perda.

Mas as questões levantadas pelo escultor nos lançam outro problema: E se, no lugar
da imagem metonímica da lente que figura a câmera, nos deparássemos com a imagem
metafórica da lente que figura o olho? Um olho com suas ranhuras, como um corpo com suas
cicatrizes, imagens e memórias através das quais brotam outras imagens e outras memórias?
Algo como se a ranhura da lente, as frestas e imperfeições da linguagem, se reproduzissem ou
fossem a reprodução de uma falha prévia que se projetasse no olhar como a visão, e o
movimento metapoético se revirasse sobre si mesmo para encontrar um sujeito que vê e se
projeta no visível. Ou, se insistirmos no paradigma da precariedade, se aprofundarmos seu
corte, algo como se a ranhura do olho, sua falha ou fresta, marcasse justamente a exclusão
desse sujeito de uma linguagem que se quer autônoma, tal como a define Michel Foucault
(2009), para quem a literatura moderna, desde Sade e Hölderlin, se caracteriza pelo seu
trânsito em direção ao exterior, espaço instaurado pelo próprio discurso e que se configura
como um vazio, uma abertura ao infinito por onde se propaga a própria linguagem, ao mesmo
tempo em que o sujeito se fragmenta até o desaparecimento. Diz o pensador francês:

[...] em suma, não é mais discurso e comunicação de um sentido, mas


exposição da linguagem em seu ser bruto, pura exterioridade manifesta; e o
sujeito que fala não é mais a tal ponto o responsável pelo discurso (aquele
que o mantém, que através dele afirma e julga, nele se representa às vezes
sob uma forma gramatical preparada para esse efeito) [...] (FOUCAULT,
2009, p. 220)

Dessa maneira, se autodesenvolvendo, a linguagem literária escapa à representação,


não para identificar-se consigo mesma, mas para distanciar-se cada vez mais de si, colocando
em evidência seu próprio ser, revelado nesse distanciamento, nessa dispersão, nessa ausência.
E esse vazio em que a literatura se enuncia constitui seu próprio sujeito como a ausência de
um eu, uma “experiência nua da linguagem” (Ibidem, p. 221), nas palavras de Foucault, que
faz desaparecer o sujeito, experiência do exterior que faz apagar-se o interior. E assim, como
quer que tomemos a imagem da lente, imagem cujas possibilidades de abertura demarcam
também sua precariedade, o que resta é um vazio ou uma falta através da qual a poesia ainda
se manifesta como um vestígio, ou seja, uma memória.

Mas será mesmo tão estável essa condição do eu na linguagem? Afinal, não falamos
de uma dialética tensa, de uma ausência-presença? Por que não pensarmos então em um jogo
anadiômeno, como o que propõe Didi-Huberman (1998) a partir das dialéticas do olhar, de
avanços e recuos, de aparecimentos e desaparecimentos, de superfícies e profundezas? Por
que não pensarmos a partir de um outro poema, diferente do primeiro com o qual iniciamos

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

nossa leitura, mas no qual é possível identificarmos rastros das questões que percorreram
aquele e tantos outros? E por preferir pensar assim, a partir da materialidade paradoxal dos
versos, transcrevemos a seguir o poema “Reflexos”, do também poeta, ensaísta e professor
Alexandre Rodrigues da Costa, cuja produção se destaca por explorar as fronteiras entre a
literatura e outras artes:

Sem acontecimentos
que a dissimulem, sem

presença
que a obstrua,

apenas
eu,

esse pronome incerto


com o qual se nomeia

e me fere.

(COSTA, 2008, p. 53)

Aqui não temos o olhar nem a visão, pelo menos não explicitados no poema, mas
podemos dizer que sobrevive uma condição precária que hesita entra a presença e a ausência.
Afinal, não há acontecimentos nem presença que dissimulem e obstruam algo que, entretanto,
não está; algo que joga aquele jogo de avanços e recuos, aparecimentos e desaparecimentos
do qual falamos há pouco; algo que não aparece mas que, contudo, é inevitável, como a
poesia que “não se podia deixar de ver”. Algo que se mostra de viés, através da máscara
incerta com a qual se nomeia, a máscara da forma poética a que tantos poetas recorrem, “a
fim de fazer do homem só uma multidão, da identidade negativa a multiplicidade positiva ou
a universalidade do ser”, destaca Michael Hamburguer (2007, p. 107): esse eu que retorna
como uma cicatriz na linguagem, a marca de um corpo extirpado, o rastro de sua exclusão;
que retorna como memória, como sobrevivência. Talvez um corpo coletivo, um sujeito
universal que, a despeito de nossas idiossincrasias e de nossa historicidade, concretiza na
palavra nossa humanidade incerta, vacilante e precária, mas um corpo que mais uma vez se
abre a esse dilaceramento, a essa dissolução, reintroduzindo em nossa leitura a questão do
sacrifício, que consiste, segundo Marcel Mauss e Henri Hubert (2005), em um ato religioso
que modifica o estado de quem o efetua ou dos objetos a ele ligados. Aplicada à linguagem,
tal modificação faz nascer a poesia; aplicada ao homem, ou ao nome do homem, ou mesmo

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

ao seu pronome, não realizaria uma transformação análoga? Não consagraria sua
individualidade à universalidade de uma condição exemplar, registro de um tempo e um
espaço que devem ser preservados, de impressões que se somam a outras para fundar o
edifício de nossas memórias?

Não falamos aqui das personalidades conhecidas ou das massas anônimas que
pontuam os livros de história, mas daquilo que sobrevive ao mesmo tempo em nossa
individualidade e em nossa coletividade, a memória de vivências e experiências acumuladas
ao longo do tempo e a partir do tempo, da sua passagem e das marcas deixadas por ela, a
despeito da sobrevivência ou não das civilizações.

Falamos de uma transcendência que se realiza na imanência, de uma sagração do


concreto e material que transborda seus limites para gozar a vertigem do extremo, sem
abandonar, no entanto, a concretude e a materialidade, agarrando-se, no limite, ao que resta
no vestígio, ao que sobra na ruína, falha ao avesso, desdobrada em sua condição dialética,
que se contrapõe a toda metafísica, a toda espiritualidade, como técnica e magia convivem
nas diferentes leituras benjaminianas da arte e da cultura na modernidade.

Assim, desfeitas as máscaras, mais uma vez nos deparamos com uma poesia que se
mostra através: ela que não pode ser dissimulada; ela que não pode ser obstruída; ela que se
nomeia com o pronome para ferir. Mas ferir quem? Inútil responder: o jogo anadiômeno nos
conduzirá pela ferida aberta entre a visão e o olhar, entre eu e me, aberta entre a linguagem e
o corpo, entre o indivíduo que fere a página com a escrita e a humanidade que o atravessa em
direção ao texto; feridas que se sobrepõem umas às outras, que se penetram e implicam;
ranhuras nas lentes, nos olhos, nas peles; recordações por onde brota e resta, inelutável, a
poesia.

Referências

ALCIDES, Sérgio. Píer. São Paulo: Editora 34, 2012.


BATAILLE, Georges. La conjuración sagrada: ensayos 1929-1939. Selección, traducción y
prólogo de Silvio Mattoni. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2003.
BENJAMIM, Walter. Pequena história da fotografia. In: ______. Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 91-107.
COSTA, Alexandre Rodrigues da. Peso morto. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São
Paulo: Ed. 34, 1998.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ser crânio: lugar, contato, pensamento, escultura. Tradução de
Augustin de Tugny e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: C/Arte, 2009.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção


de Manoel Barros de Motta. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2009. (Ditos e escritos, III)
HAMBURGUER, Michael. A verdade da poesia: tensões na poesia modernista desde
Baudelaire. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Sobre o sacrifício. Tradução Paulo Neves. São Paulo:
Cosac Naify, 2005.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito: seguido de A linguagem indireta e as
vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne. Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina
Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

A escrita de transição em Júlia Lopes de Almeida

Romair Alves de Oliveira130


Unemat/UFG
romairoliveira@gmail.com

Resumo: a autoria feminina, em geral, reflete na personagem a experiência do ser mulher e


como ser mulher. As personagens vão se revelando não somente como elementos do enredo,
mas como seres femininos que têm vontades, desejos, anseios e são capazes de expor sua
humanidade faltosa e, ao mesmo tempo, inteira pela exposição que fazem de si. Tendo a
mulher como centro da narrativa, as escritoras levam suas personagens a transitarem em
cenas mais verossímeis e condizentes com a condição feminina junto à sociedade e ao seu
meio. Nessa perspectiva, temos, na obra Júlia Lopes de Almeida, em pleno século XIX, uma
ficção romanceada que tem a mulher como centro da narrativa. Através das personagens,

130Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (2008). Atualmente é professor adjunto da Universi -
dade do Estado de Mato Grosso e Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da
Faculdade de Letras, da Universidade Federal de Goiás sob orientação do Prof. Dr. Flávio Pereira Camargo.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Júlia Lopes irá desenvolver idéias inovadoras, incentivando estas mulheres ao trabalho e à
instrução, antevendo possibilidades de a mulher se libertar da sua condição subalterna.
Estrategicamente, Júlia Lopes buscou equilíbrio no contexto oitocentista desfavorável à
mulher; ela, através de uma escrita caracterizada por posições de avanços e recuos, usou
estratégias discursivas que contribuíram para uma maior consciência acerca da condição
feminina brasileira no apagar do século XIX. O jogo discursivo entre o avançar e o recuar foi
uma das estratégias encontradas por Júlia Lopes de Almeida para ser reconhecida e aceita
junto à hegemonia patriarcal na sociedade da época. Júlia Lopes, estrategicamente, aceita
mostrar para suas pares que as mudanças da condição feminina, primeiramente, deveriam
partir de suas atitudes de liberdade, da independência via trabalho profissional e da instrução.
À época, o discurso ambivalente de Júlia Lopes de Almeida, isto é, o discurso que se
apresentava como politicamente agradável à burguesia carioca, usa uma linguagem
construída na sutileza do dizer e do não-dizer, um discurso escondido nas malhas frágeis do
contar estórias e narrar fatos.

Palavras-chave: Literatura; Resistência; Autoria feminina; Júlia Lopes de Almeida.

INTRODUÇÃO

A mulher brasileira conhece que pode querer mais, do que até aqui tem
querido; que pode fazer mais, do que até aqui tem feito. Precisamos
compreender antes de tudo e afirmar aos outros, atados por preconceitos e
que julgam toda a liberdade de ação prejudicial à mulher na família,
principalmente dela, que necessitamos de desenvolvimento intelectual e do
apoio seguro de uma educação bem feita. (ALMEIDA, 1897, p. 3)

As escritoras brasileiras do século XIX, em geral, tratavam de temas cujos modelos


ficcionais eram capazes de conciliar os papéis de mãe, de esposa com uma vida doméstica
exemplar. Essas temáticas eram vistas pelos olhos do público como propostas inovadoras,
pois apresentavam a mulher no espaço a ela designado, num discurso aceito que reiterava o
ponto de vista patriarcal e, quiçá, modelos a serem seguidos pelas novas gerações que
aspiravam a uma inserção na nova República.

As mulheres escritoras oitocentistas divulgaram através de seus textos a importância


atribuída aos papéis de mãe e esposa. Entre elas, destacamos Júlia Lopes de Almeida
(1862-1934) e sua numerosa obra literária de cunho didático, como: Livro das Noivas (1896)
e Livro das Donas e Donzellas (1906). Nestas duas obras, a escritora constrói o universo da
classe burguesa feminina, carioca para, através destes cenários, problematizar os papéis
femininos numa sociedade que mantinha as mulheres como cidadãs de segunda classe.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Júlia Lopes de Almeida usava o tom didático para incentivar comportamentos


emancipatórios que fossem socialmente aceitos. Em outros livros, e até mesmo em alguns
textos didáticos, ela expressa sua consciência da injusta condição de inferioridade feminina e
revela, em sua escrita, que a mulher poderia contribuir, ativamente, para o desenvolvimento
da nação.
Escritora profícua, autora de contos, novelas, romances, peças teatrais e ainda uma
literatura dirigida para as noivas, donas e donzelas. Além de ter escrito regularmente para
vários jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas, não esqueceu, ainda, o público
infantil, para quem publicou, em parceria com sua irmã mais velha, Adelina Lopes de Vieira,
a coletânea Contos Infantis (1886), composta de sessenta narrativas destinadas à instrução da
infância, sendo trinta e três em verso (autoria de Adelina) e vinte e sete em prosa (autoria de
Júlia), tendo sido adotadas para uso em escolas públicas primárias do Rio de Janeiro por
décadas.

O texto almeidiano, ao associar educação e trabalho, mostra o quanto ambos podem


transformar realidades no universo feminino. Júlia Lopes de Almeida encarou a questão da
educação feminina e ajudou a promover a inserção da mulher no centro dos debates que
agitaram o apagar das luzes do século XIX. Essas observações são demonstradas no seguinte
excerto de A Mensageira:

Não é sem algum espanto que eu escrevo este artigo, para um jornal novo, e,
de mulheres! (...)
A mulher brasileira conhece que pode querer mais, do que até aqui tem
querido; que pode fazer mais, do que até aqui tem feito. Precisamos
compreender antes de tudo e afirmar aos outros, atados por preconceitos e
que julgam toda a liberdade de ação prejudicial à mulher na família,
principalmente dela, que necessitamos de desenvolvimento intelectual e do
apoio seguro de uma educação bem feita.
Os povos mais fortes, mais práticos, mais ativos, e mais felizes são aqueles
onde a mulher não figura como mero objeto de ornamento; em que são
guiadas para as vicissitudes da vida com uma profissão que as ampare num
dia de luta, e uma boa dose de noções e conhecimentos sólidos que lhe
aperfeiçoem as qualidades morais.
Uma mãe instruída, disciplinada, bem conhecedora dos seus deveres,
marcará, funda indestrutivelmente, no espírito do seu filho, o sentimento da
ordem, do estudo e do trabalho, de que tanto carecemos (ALMEIDA, 1987,
p. 03).

No Brasil do século XIX, assim como Júlia Lopes de Almeida, várias escritoras
tiveram importante papel na literatura oitocentista. Em seus escritos, elas deixaram reflexões
que indicam as dificuldades da trajetória do feminino. Ao valorizar a educação, elas
procuraram redimensionar o papel e a posição da mulher na sociedade e nas funções

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maternas delegadas à mãe oitocentista e foram peças fundamentais para a transitoriedade


social da época.

DESENVOLVIMENTO

O trajeto da narrativa e a criação da personagem feminina na literatura brasileira


foram delineados, definidos e construídos ao longo da história literária. Até o Romantismo,
os textos literários apresentavam-se majoritariamente em poesia; o triunfo do romance se
amparou na atenção ao meio e no espaço geográfico e social, em que a narrativa se
desenvolve e floresce.

A primeira narrativa brasileira, que ficou conhecida pelo público, tem como
personagem feminina Carolina, em A Moreninha (1944), de Joaquim Manoel de Macedo, e
dá origem ao mito sentimental; logo depois, a imaginação do escritor brasileiro vai se
espraiando na busca de narrativas que representem o tempo, o espaço e a personagem
feminina perfeita:

No Brasil, riqueza e variedade foram buscadas pelo deslocamento da


imaginação no espaço, procurando uma espécie de exotismo que estimula a
observação do escritor e a curiosidade do leitor. Exotismo do Ceará para o
homem do Sul; exotismo da própria Itaboraí para os leitores cariocas de
Macedo (CANDIDO, 1985, p. 122).

Nesse gênero literário, temos uma diversidade de escritores e críticos e, visivelmente,


a crítica feminista que, a partir de estudos desconstrucionistas da condição feminina ao longo
dos séculos, fundem os fatos e passam a dar uma nova interpretação à figura feminina, que
vai evoluindo de acordo com o tempo histórico, representando novas faces, fragmentadas ou
não, vencendo intervenções e transpondo limites.

Sob a ótica dessa nova interpretação literária, ou seja, a da crítica feminista, o sim de
Maria, tradicionalmente considerado submisso, pode transformar-se em ousadia, fortaleza e
independência, pois Maria, por vontade própria, enfrenta inúmeros problemas à época: o
preconceito social, o risco de ser apedrejada, de perder o marido, entre outros. E, ainda assim,
deu-se ao direito de dizer sim a novos e maiores problemas que viria a sofrer para fazer
cumprir as escrituras, ou seja: conceber Jesus e conduzi-lo por trinta e três anos.

A ação de Eva e Dalila também pode ser analisada por outro ângulo na visão literária
da crítica feminista. Elas podem tornar-se marco inicial de uma nova visão de mundo: a
mulher tida como submissa e recatada, além de indefesa, descobre-se parceira do homem,
pois, como parte dele, já que veio de sua costela, é também forte e capaz, igual a ele.

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contemporâneas

Os escritores podem nos passar essas ou outras concepções em seus diversos escritos,
pois, como diz Antonio Candido:

Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas
visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto
numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de
vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela
convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam
como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos ainda que,
o externo (no caso o social) importa, não como causa, como significado,
mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição do
escritor [a], tornando-se, portanto, interno (1985, p. 04).

Os textos literários situam-se, portanto, num espaço de confluência de outros


discursos literários e extraliterários, cujo significado não depende de um único código, mas
de diversos discursos que se cruzam e se fundem na criação literária. Foi assim que a obra
literária cresceu, amadureceu e se consolidou. E, com ela, a personagem feminina sai do
épico clássico para as páginas vivas do romance burguês, alcançando nele o seu lugar de
destaque:

Poderíamos dizer que do mesmo modo que podemos descrever o trajeto da


narrativa como uma trajetória de redução do espaço dos mares da epopéia
de Ulisses, passando pelos caminhos amplos de Amadis ou Dom Quixote,
pela sala de Jane Austen ou pelo quarto de Virgínia Woolf, até chegar ao
estado de paralisia da pena memorialista de Proust – podemos também
descrever a história da figuração da mulher como um trajeto de
materialização – da deusa das mitologias, passando pelas bruxas contadoras
de sábias narrativas, pelas damas de Villon, até chegar às muitas noivas,
esposas, criadas, bordadeiras, preceptoras e tantas virtuosas. Ou para ficar
na etiqueta cara à ascensão da burguesia, o caminho da mulher de bem vai
de “dame” a “madame” (MARCO, 1995, p, 115).

A partir dessas considerações de Valéria de Marco, não podemos negar, portanto, que
há uma estreita relação entre a consolidação do romance e a figuração da personagem
feminina, pois ambos percorreram muitos caminhos até chegarem a ocupar o lugar merecido
na literatura. Podemos dizer que a figura feminina dos escritos literários de hoje é a soma das
múltiplas interpretações e desconstruções da escrita literária ao longo dos tempos.

No Brasil, o processo de formação do romance e a figuração da personagem feminina


foram caminhando juntos na história literária. Antes de Carolina (A Moreninha), primeira
personagem feminina reconhecida do romance brasileiro, outras personagens figuraram nas
poesias e nos poemas épicos. Podemos citar, como exemplo, a personagem épica Lindóia da
obra Uraguai (1769), de Basílio da Gama, que prefere a morte a renegar o amor, antecipando
uma típica heroína romântica. Temos, também, a personagem Moema do texto arcádico

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Caramuru (1781), de Frei Santa Rita Durão, que ilustra a dor de não aceitar a perda do
homem amado e prefere morrer nadando; além de muitas outras personagens épicas e líricas
que marcaram a nossa literatura antes do romance.

Antes do advento do Romantismo, o público leitor no Brasil já se mostrava receptivo


ao gênero romanesco. As idéias do Romantismo sobre a busca de raízes nacionais marcam o
início de alguns projetos históricos que tiveram sucesso ao longo do século XIX,
particularmente a criação do romance e, com ele, a primeira personagem feminina da prosa
brasileira. A Moreninha (1844), de Joaquim Manoel de Macedo, trouxe ao mundo a
“demoiselle” Carolina, símbolo da ingenuidade infantil e do encanto adolescente.

Depois de Carolina, inúmeras personagens vão surgindo: Aurélia, Iracema, Cecília,


Capitu. Envolvida, despida, delicada, submissa, a figura feminina, enfim, vai tomando formas
e sendo construída no imaginário da cultura brasileira que buscava a brasilidade distanciada
dos paradigmas europeus.

Nas passagens ininterruptas dos discursos, ocupando espaços entre o passado e o


presente das narrativas, preenchendo lacunas entre o vivido e o recordado, vivendo o
acontecido e o desejado, o escritor brasileiro vai construindo o feminino e, com ele, a
representação da mulher na sociedade em que foi produzida.

Com a formação do romance, a literatura brasileira pôde, então, melhor revelar-nos


aspectos importantes da nossa sociedade. As formas de pensar e compreender o sentido da
vida, os significados e os valores da cultura brasileira são alguns aspectos enfocados nos
romances.

Através de algumas personagens, os(as) escritores(as) apresentam peculiaridades de


épocas, o seu pensamento e a sua liberdade. Em outras personagens, percebemos formas
atrevidas, punidas pela sociedade. São aquelas personagens que tentam ousar e são colocadas
à margem. Com a expansão do romance, o feminino na literatura vai ganhando espaço e
maior relevância.

A trajetória das personagens femininas, apresentada anteriormente, alicerça a nossa


fundamentação quanto à representação de personagens femininas oriundas da escrita de
punho masculino e patriarcal. Esse caminho traça características e modelos vinculados aos
preceitos falocêntricos. Já a personagem feminina, procedente da escrita de autoria feminina,
é construída a partir da experiência de sua criadora, ou seja, ela condiz com experiência,
mesmo ficcionalizada, que transcende e reflete a situação de outras mulheres. Ou seja, a
narração parte de um caso isolado, individual, mas, por uma experiência da condição
feminina redimensionada, ele, o fato enfocado, sai do pontual, isto é, do pessoal para o

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coletivo e torna-se político, universalizando a experiência feminina quando esta dialoga com
as estórias de mulheres escritoras.

As leitoras se identificam e se solidarizam com a história narrada, pois elas, as


leitoras, vêem, nas páginas da obra, suas vidas: rotina, conflitos, anseios, enfim, a condição
feminina em foco. São elementos estes que, através da análise literária, trazem um sentimento
de pertencimento, de partilha através do lugar, do papel e, sobretudo, da situação das
mulheres em suas trajetórias histórico-sociais e pessoais ao longo do tempo.

A autoria masculina, por sua vez, constrói o enredo atribuindo características do ser
mulher a partir da visão falocêntrica, ou seja, como o feminino deve ou não deve proceder no
universo imaginado pelo masculino.

De fato, se a mulher só existisse na ficção escrita pelos homens, poderíamos


imaginá-la como uma pessoa da maior importância: muito versátil; heróica e
mesquinha; admirável e sórdida; tão grande quanto o homem e até maior,
para alguns. Mas isso é a mulher na ficção. Na realidade (...) ela era
trancafiada, surrada e atirada no quarto (WOOLF, 1994, p. 55).

A autoria feminina, em geral, reflete na personagem a experiência do ser mulher e


como ser mulher. As personagens vão se revelando não somente como elementos do enredo,
mas como seres femininos que têm vontades, desejos, anseios e são capazes de expor sua
humanidade faltosa e, ao mesmo tempo, inteira pela exposição que fazem de si.

Tendo a mulher como centro da narrativa, as escritoras levam suas personagens a


transitarem em cenas mais verossímeis e condizentes com a condição feminina junto à
sociedade e ao seu meio.

Nessa perspectiva, temos, na obra Júlia Lopes de Almeida (1862 – 1934), em pleno
século XIX, uma ficção romanceada que tem a mulher como centro da narrativa. Através das
personagens, Júlia Lopes irá desenvolver idéias inovadoras, incentivando estas mulheres ao
trabalho e à instrução, antevendo possibilidades de a mulher se libertar da sua condição
subalterna.

Estrategicamente, Júlia Lopes buscou equilíbrio no contexto oitocentista desfavorável


à mulher; ela, através de uma escrita caracterizada por posições de avanços e recuos, usou
estratégias discursivas que contribuíram para uma maior consciência acerca da condição
feminina brasileira no apagar do século XIX.

O jogo discursivo entre o avançar e o recuar foi uma das estratégias encontradas por
Júlia Lopes de Almeida para ser reconhecida e aceita junto à hegemonia patriarcal na

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sociedade da época.

Júlia Lopes, estrategicamente, aceita mostrar para suas pares que as mudanças da
condição feminina, primeiramente, deveriam partir de suas atitudes de liberdade, da
independência via trabalho profissional e da instrução.

À época, o discurso ambivalente de Júlia Lopes de Almeida, isto é, o discurso que se


apresentava como politicamente agradável à burguesia carioca, usa uma linguagem
construída na sutileza do dizer e do não-dizer, um discurso escondido nas malhas frágeis do
contar estórias e narrar fatos.

Discurso referendado pelas mulheres cariocas burguesas que ansiavam pelo


deslocamento político social feminino, ou seja, mulheres que desejavam a emancipação
feminina como se fosse possível romper os ditames do privado, porém mantendo os valores
do patriarcado. Esta negociação, ainda hoje, resiste na bem comportada sociedade brasileira
de orientação patriarcal.

Enquanto a maioria das mulheres era somente instruída por preceptoras, ou nos
colégios particulares, nos quais elas recebiam uma formação escolar modelar, patriarcal, Júlia
Lopes, desde cedo, se interessou pela literatura. Devido a sua educação e a influência de seu
núcleo familiar; já mostrava sua inclinação para a escrita, embora não fosse de bom tom que
a mulher se dedicasse a esse ofício. Por isso, fazia versos escondidos, como revelou ao
escritor João do Rio, em entrevista reproduzida n’ O Momento Literário:

Pois eu em moça fazia versos. Ah! Não imagina com que encanto. Era como
um prazer proibido! Sentia ao mesmo tempo a delícia de os compor e o
medo de que acabassem por descobri-los. Fechava-me no quarto, bem
fechada, abria a secretária, estendia pela alvura do papel uma porção de
rimas... De repente, um susto. Alguém batia à porta. E eu, com a voz
embargada, dando voltas à chave da secretária: já vai! A mim sempre me
parecia que se viessem a saber desses versos, viria o mundo abaixo. Um dia,
porém, eu estava muito entretida na composição de uma história, uma
história em verso, com descrições e diálogo, quando ouvi por trás de mim
uma voz alegre: – Peguei-te menina! Estremeci, pus as duas mãos em cima
do papel, no arranco de defesa, mas não me foi possível. Minha irmã,
adejando triunfalmente a folha e rindo a perder, bradava: – Então a menina
faz versos? Vou mostrá-los ao papá! (RIO, 1994, p. 28).

O medo de que descobrissem seus escritos justifica-se em função da forma como o


território da escrita era concedido às mulheres de sua época. Nessa entrevista, Júlia Lopes
demonstra a realidade imposta pela sociedade oitocentista à criação literária de autoria
feminina; como podemos reafirmar:

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A conquista do território da escrita pelas mulheres foi longa e difícil, assim


como foi romper as paredes da casa/prisão e da prisão textual que as
confinava tendo por veículo um corpo definido como faltoso, fraco,
submetido sempre ao escrutínio dos olhares exteriores, e um cérebro tido
como não pensante e tendo como instrumento uma linguagem inadequada,
pois nela não encontra uma definição de si com a qual possa se identificar
(TELLES, 1987, p. 245).

Nesse contexto histórico, é interessante considerar que Júlia Lopes de Almeida tenha
estreado na imprensa por incentivo do próprio pai, que ela temera pudesse castigá-la pelo
possível crime de escrever versos. Foi em 1881, com um artigo sobre Gemma Cuniberti, atriz
italiana que fazia teatro infantil no Brasil, publicado na gazeta de Campinas, sua estréia nas
letras. Depois, foi convidada a escrever em outros periódicos, como A Semana, quando
conheceu Filinto de Almeida, com quem se casaria.

A revista A mensageira, de 15 de junho de 1899, traz comentário crítico da conhecida


escritora portuguesa Guiomar Torrezão, no qual declara que Júlia Lopes de Almeida é, sem
dúvida, “a primeira escritora brasileira” (p. 101) e descreve como uma rapariga modesta,
singela, discreta e sem o menor vislumbre de pedantismo.

Peggy Sharpe, no prefácio da reedição de A viúva Simões (1999), cita o quanto


Octávio Mendes ficou impressionado com Júlia Lopes quando a conheceu em Campinas, por
sua postura, presença e educação se diferenciarem nitidamente de suas contemporâneas:

Pois bem. Foi mais ou menos nesse meio que conheci Júlia Lopes; e mais
uma vez confesso que chamou-me a atenção aquela moça que sempre
respondia com um sorriso a todos que a cumprimentavam, ao passo que as
outras, ou não respondiam, ou faziam-no com um simples inclinar de
cabeça, severo, patriarcal; que sabia conversar tão bem com um homem
sobre artes ou literatura como, sobre costura e bordado, com uma mulher;
que distinguia-se, enfim, tanto de suas companheiras pelos modos gentis e
delicados, pela educação e modéstia, que forçoso era admirá-la (SHARPE,
1999, p. 15).

Como Peggy Sharpe, sabemos que essa facilidade de transitar “livremente” entre o
espaço masculino e o feminino não fora obra do acaso. Pois a educação esmerada e
diferenciada é uma característica marcante na formação da família do Visconde de S.
Valentim, uma vez que todos os membros de sua família eram envolvidos com atividades
artísticas como literatura e música.

Conseqüentemente, o contexto familiar de Júlia Lopes facilitou seu ingresso no


mundo das artes e, fundamentalmente, no contexto literário, propiciando-lhe conhecimento e
vivência da cultura de outros países, os quais visitou juntamente com sua família.

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Júlia Lopes casa-se em Lisboa no dia 28 de novembro de 1887 com o poeta português
Filinto de Almeida, naturalizado brasileiro. Coincidentemente, parece que a vocação de
escrever uniu Júlia Lopes a Filinto de Almeida com quem viveu, por quase cinqüenta anos,
até 30 de maio de 1934, data de falecimento da escritora.

Júlia assumiu, em sua vida particular e em toda sua obra, a idéia precípua de que a
mulher deve ser instruída para poder desempenhar sua função social, em especial no que se
refere à educação dos filhos. Sua escrita reflete a luta constante contra a idéia de que uma
mulher reclusa e ociosa, voltada somente para os afazeres domésticos, seria apenas sombra
do sujeito que poderia e deveria realmente ser.

Com outras mulheres escritoras, colaborou em A Mensageira: revista literária


dedicada à mulher brazileira (publicada entre 1897 e 1900), em que escreveu artigos
combatendo a postura veiculada, na época, da mulher “ornamento” e ou “rainha do lar”.
Propunha, em contrapartida, uma atitude feminina combativa, prestativa, que se prestasse
para a construção de um país desenvolvido e civilizado.

Conhecida no contexto literário como uma escritora amena, didática e subserviente


aos valores patriarcais da época, Júlia Lopes de Almeida não foi suficientemente entendida,
pois, em seu discurso, há provas cabais do quanto ela via os prejuízos causados às mulheres
pela educação acanhada e sem brilho, dada às mulheres oitocentistas. Exemplo disso é seu
artigo para a revista A Mensageira (1899), no qual exalta os ideais feministas, valendo-se, até
certo ponto, de um tom irônico para descrever a imagem imposta à mulher:

Dizem que somos débeis (e chegam a convencer-nos) porque somos


franzinas, ou porque somos pálidas, ou porque somos tristes! Não se
lembram de que tudo isso é efeito de educação mal feita – contra a qual
devemos reagir a bem de nossos filhos -, passada no interior da casa, sem
exercício, sem convivência, sem jogos, sem despreocupações de
preconceitos, sem estudo bem ordenado, sem viagens, sem variedade, sem
alegria enfim! (ALMEIDA, 1899, p. 213).

A trajetória de Júlia Lopes de Almeida esteve muito próxima às questões que


mobilizaram a sociedade brasileira na transição dos séculos XIX e XX, como, por exemplo, o
acesso das mulheres à escola e à profissionalização, assuntos explorados em seus romances,
como Memórias de Marta (1889), A Falência (1901), A Intrusa (1908) e Correio da Roça
(1913). Ela faz parte de uma reduzida elite de mulheres brasileiras letradas que tentaram,
através da educação, valorizar o papel da mulher. Embora não tenha sido fácil, o caminho
percorrido por Júlia Lopes foi representativo, levando-se em conta, principalmente, os
empecilhos enfrentados naquela época.

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A luta de Júlia Lopes de Almeida pela instrução feminina estava ligada ao


conhecimento prático, ao engajamento da mulher num universo produtivo e formador da
nacionalidade brasileira, descartando alguns comportamentos de caráter tradicionais que
revelavam a ociosidade, a inferioridade e, fundamentalmente, o despreparo para a vida social
efetiva.
Ao conhecer um pouco do percurso da mulher na luta pelos seus direitos, bem como o
processo de construção ideológica que rompe com a perspectiva que naturalizava a
subordinação e a inferioridade da mulher, pode-se avaliar melhor a contribuição de Júlia
Lopes de Almeida. Através de sua escrita, ela expôs a posição da mulher como o “Segundo
Sexo”, contribuindo, assim, para a elevação do seu status, representado no contexto social e
cultural pelo viés trabalho/educação.

Redescoberta pelas mulheres intelectuais comprometidas com uma memória literária


brasileira que vem sendo feita pela crítica feminista, ao longo das três últimas décadas, como
um dos grandes nomes da Literatura Brasileira, na transição dos séculos XIX e XX, Júlia
Lopes de Almeida foi bastante celebrada, embora não o suficiente para que seu nome fosse
destacado na história da literatura brasileira. Com a militância engajada de pesquisadoras
comprometidas com o resgate e a recuperação de uma memória literária brasileira e feminina,
Júlia Lopes de Almeida foi retirada do obscurantismo que se abateu sobre si e sua obra após
seu falecimento em 1934.

Júlia Lopes de Almeida, entre as várias atividades que desempenhou no Rio de


Janeiro, participou das reuniões para a fundação da Academia Brasileira de Letras, mas ficou
de fora, por ser mulher. Seu marido, Filinto de Almeida, foi eleito membro e, até hoje, pelos
cantos dos saguões, comenta-se que sua eleição foi uma homenagem a ela (TELLES, 1987, p.
440).

Certamente, o marido tinha consciência do valor literário de Júlia Lopes de Almeida,


o que fazia dela “uma mulher de sorte”, que pôde contar com o apoio do pai e do marido,
dois homens importantes na sua vida pessoal e profissional pelo lugar que ambos ocuparam,
então, na sociedade carioca.

Apesar do reconhecimento e da penetração junto ao público leitor, sobretudo o


feminino, Júlia Lopes não esteve livre, assim como outras escritoras, de sofrer do preconceito
oriundo do sexo masculino. Brito Broca afirma que, “quando Júlia Lopes de Almeida entrou
a escrever nos jornais por volta de 1885, encontrou ainda forte barreira de preconceito contra
as mulheres escritoras...” (1963, p. 240). Uma vez que o ato de escrever e publicar tinha
diferentes significados. Para o homem,

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A autoria era considerada como profissão rentável e respeitável (...) para as


mulheres, o ato de escrever era visto como rebeldia que expunha a escritora
ao ridículo, à mofa, e a dessexualizava. Caso fosse casada, expunha o
marido a situações constrangedoras, e tendo filhos era tida como negligente
na incansável missão de mãe (MOREIRA, 2003, p. 60).

CONCLUSÃO

A crítica, em se tratando da ficção almeidiana, redunda na superficialidade dos temas


por ela abordados, sem levar em conta a condição feminina naquela sociedade de fim de
século. Isso não significa dizer que Júlia Lopes ignorava as limitações impostas ao feminino.
Pela leitura de sua obra, compreendemos que ela discordou dessas limitações, uma vez que
em seus textos, considerados didáticos, apresentam posições contestadoras e indagam sobre a
condição feminina vigente.

O jogo discursivo e dissimulado apontava avanços e recuos, dizer e não-dizer, público


e privado, feminino e feminista, aspectos que à primeira vista podem ser contraditórios, mas,
no contexto histórico da inserção da mulher escritora, na sociedade brasileira oitocentista, fez
parte das estratégias de resistência na escrita de autoria feminina.

Sendo que a escrita de autoria feminina vai muito além do significante, ou seja, a
escrita feminina está posta como forma, primeiramente; mas que, para se chegar ao real
problemático do feminino na escrita, é preciso levar em conta a condição feminina e como se
possibilita tal escrita com as questões históricas e culturais do feminino.

Júlia Lopes de Almeida foi bastante política no sentido de conseguir manter-se, bem
aceita, numa sociedade onde o simples fato de uma mulher expor seu pensamento, fosse
escrevendo ou de qualquer outro modo, era considerado uma grande ousadia.

Sua aceitação também pela crítica da época é visível e a coloca entre os maiores
escritores de seu tempo, como o crítico José Veríssimo afirma: “com seu novo livro A
Falência a senhora D. Júlia Lopes de Almeida toma decididamente seu lugar (...) entre nossos
romancistas” (VERÍSSIMO, 1910, p.141). Será ele, José Veríssimo, quem a equipará a
Taunay, Aluísio de Azevedo, Machado de Assis e acima de Coelho Neto:

Depois da morte de Taunay, Machado de Assis e de Aluísio de Azevedo, o


romance no Brasil conta apenas com dois autores de obra considerável e de
nomeada nacional – D. Júlia Lopes de Almeida e o Sr. Coelho Neto, eu,
como romancista, lhe (sic) prefiro de muito D. Júlia Lopes (VERÌSSIMO,
1936, p.15).

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O jogo textual, estratégia de avanço e recuo, utilizado na ficção almeidiana sobre a


questão da maternidade está alicerçado no padrão positivista-burguês de construção dos tipos
femininos ideais, ou seja, as mulheres-mães deveriam ter a maternidade acima de qualquer
outro objetivo.

Também é importante antecipar os elementos sociais, políticos e culturais que


puseram em transição as mulheres brasileiras de classe média alta. Assim, destacamos o papel
da educação, do trabalho, a mudança nas relações de gênero, a crítica em relação à autoria
feminina. Esses elementos contribuíram significativamente para que as mulheres brancas,
escolarizadas e urbanas, pudessem transitar no espaço privado e público, como o demonstra a
escritura de resistência de Júlia Lopes de Almeida.

Júlia Lopes de Almeida, interagindo com seu contexto histórico e social, procurou
questionar, por meio de suas personagens, a condição feminina de sua época. O caminho
percorrido por ela não é só individual, mas pareceu sinalizar um novo percurso a ser trilhado
também por outras mulheres na busca de um lugar onde, juntamente com os homens,
pudessem usufruir uma melhor eqüidade entre os sexos. Nesse caminho, Júlia Lopes de
Almeida tem seu reconhecimento literário no fim do século XIX e início do século XX na
chamada Belle Époque carioca.

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MARCO, Valéria de. A perda das ilusões: o romance histórico de José de Alencar. Campinas:
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MENSAGEIRA, A. Revista literária dedicada à mulher brasileira (1897-1900). São Paulo:
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TELLES, Norma. Encantações. Escritoras e imaginação literária no Brasil, século XIX. São
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VERÍSSIMO, José. Um romance da vida fluminense. In: _____. Estudos de literatura
brasileira. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1910, p. 141-151.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Círculo do livro: 1994.

Poesia para crianças: só se for de brincadeira...

Dra. Rosana Rodrigues da Silva


Universidade do Estado de Mato Grosso- Campus de Sinop-MT
rosana.rodrigues@unemat-net.br

Resumo: os estudos voltados à poesia para crianças, na literatura brasileira, têm concordado
quanto ao aspecto lúdico do gênero que desenvolve a surpresa das imagens incomuns,
alertando para a aproximação do pensamento infantil à criação poética. Esta pesquisa discute
essa relação entre poesia e infância, partindo de uma retomada dos principais autores e obras
voltadas à poesia para crianças na crítica nacional, com o objetivo de compreender os
modelos de trabalho apontados e como se tem discutido a especificidade desse gênero

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literário, para na sequência apresentar proposta de letramento literário em que o jogo e a


brincadeira sejam formas atrativas de aproximar o leitor do texto poético. Com base em
teóricos como Vico, Paz, Antonio Candido, serão discutidos os traços característicos da
linguagem figurada que marca a criação poética para crianças de autores contemporâneos,
tais como Manoel de Barros, José Paulo Paes e Luís Camargo. Como proposta de trabalho,
incluem-se poemas que mobilizam as formas folclóricas (cantigas, trava-línguas, parlendas) e
recuperam o trabalho lúdico com a linguagem, convidando o leitor ao jogo da imaginação.

Introdução

As pesquisas voltadas à poesia para crianças, na crítica literária nacional, concordam,


em sua grande maioria, com a presença do aspecto lúdico enquanto característica marcante
do gênero. As imagens incomuns, divertidas ou simplesmente provocativas, causam surpresa
e convidam o leitor a jogar com o texto, a aceitar o desafio de decifrá-lo, de modificá-lo, de
respondê-lo, tornando o próprio poema um brinquedo em que se possa exercitar o ser infantil.

Além das inúmeras possibilidades de brincadeira com a palavra, a leitura do poema


pode despertar o desejo de criar, de interpretar, de interagir com o poeta. São possibilidades
que o professor poderá explorar de modo criativo com propostas de letramento que o
orientem no caminho a seguir. Tendo em vista, essa possibilidade, apresentamos neste artigo
uma proposta de atividade, envolvendo os poemas selecionados de autores contemporâneos
da literatura brasileira que trazem para o poema um trabalho incomum com a palavra poética,
recobrindo-a de sentidos a serem descobertos pelo leitor. Seguindo a sequência, apresentada
por Rildo Cosson, na obra Letramento literário: teoria e prática (2006), que inclui desde
uma etapa de motivação a um momento final em que se faz a concretização da leitura,
apresentamos uma proposta com poemas de Manoel de Barros, José Paulo Paes e Luís
Camargo.

No desenvolvimento dessa proposta, não perdemos de vista as características da


imagem poética, expostas pela crítica teórica de Antonio Candido que se fundamentou, por
sua vez, na filosofia de Vico. Por essa abordagem é possível pensar na relação entre poesia e
infância. A poesia não está apenas na infância do homem, como podemos imaginar através de
cantigas, trava-línguas, parlendas e todas as formas folclóricas cantadas em brincadeiras pelas
crianças na rua ou mais tarde na escola. A poesia também está, em sua primeira forma, na
infância da humanidade, ou seja, no momento inaugural em que o homem, diante da
necessidade de comunicação, sentiu-se motivado a criar uma linguagem.

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1 Imagem poética e infância

Os teóricos que se aventuraram pela poética partiram dos ensinamentos dos estudos
da poética clássica, dando sequência às primeiras formulações de Aristóteles. Segundo o
filósofo, “imitar é natural ao homem desde a infância” (1997, p. 21), por isso poiesis constitui
em sua essência uma imitação da ação humana, mas que varia conforme a seriedade ou não
das ações a serem imitadas. Ações nobres devem constituir em gêneros maiores, como a
tragédia e a epopeia, e ações ridículas, na comédia. Muito diferentemente do modo como
entendemos uma forma de poema na contemporaneidade, o filósofo chama de poema todas as
artes imitativas de ações, tais como a pintura, a escultura, a tragédia, a comédia, a epopeia, a
lírica, a dança e a música. A imitação, por meio das narrativas e dos gestos, é contemplada na
poesia e no teatro e a imitação somente de gestos é representada na dança, enquanto a de sons
e ritmos estão na música. Ao enfocar as ações nobres, o autor privilegia o estudo da tragédia,
deixando de lado a comédia e a lírica, essa última por vê-la essencialmente relacionada à
música.

Por sua natureza imitativa e ao mesmo tempo criativa, a poesia para crianças não
destoa das formas de composição da poesia não-infantil. O poeta para crianças, não se
pretendendo trágico, não irá imitar ações nobres, mas poderá ter preferência pelas ridículas, a
fim de alcançar o humor, ou ainda poderá fazer da musicalidade e do ritmo do poema uma
parte essencial de sua composição, buscando a harmonia imitativa no jogo da imagem poética
que aproxima poesia e infância.

A teoria de que a linguagem poética é a primeira linguagem do ser humano,


antecedendo a linguagem em prosa, é explorada a partir de Vico (1730). Segundo o filósofo, a
linguagem figurada é primitiva, os homens passaram dela à linguagem racional, em virtude
da necessidade de comunicação própria da natureza humana.

Antonio Candido (2006), ao analisar a imagem poética, questiona o senso comum


acerca da natureza da metáfora. Segundo ele, a linguagem figurada não é apenas produto de
uma criação estética e intencional. A expressão metafórica pode ocorrer na linguagem
corrente ou na linguagem literária, podendo ser usada tanto por um homem do campo quanto
por um escritor. Para fundamentar a discussão, Candido busca em Vico a explicação para a
espontaneidade e necessidade da estruturação metafórica, entendendo-a como a primeira
forma de linguagem, o primeiro modo de expressão pelo qual o homem conseguiu dar voz
aos seus pensamentos primitivos. Qualquer pessoa poderá valer-se da linguagem figurada
para se expressar, para realizar uma comparação de realidades diversas; dizer algo que não
consegue dizer com palavras comuns ou com expressões desgastadas. Candido nos explica
como as palavras podem estar dispostas no poema, colaborando para resultar em um sentido

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figurado, um sentido que não precisa ser especificamente metafórico, mas pode ser alegórico
ou simbólico.

A contribuição de Vico para os estudos de literatura está, conforme mostrou Candido,


nessa visão da linguagem poética enquanto uma linguagem primeira, que antecede o
pensamento prosaico e que não está subordinada a uma simples questão de retórica:

A poesia , neste sentido largo, é a criação a partir da fantasia, que é potente no


primitivo como na criança, e que vai diminuindo à medida que se desenvolve
a razão. Trata-se de um ajustamento ao mundo, um modo especial de ver as
coisas e o homem. A linguagem poética, eminentemente criadora, nasce da
necessidade de exprimir, mas não sucede a uma linguagem não poética; pelo
contrário, precede-a, tanto assim que o verso sempre surge antes da prosa”.
(CANDIDO, 2006,p. 146)

A teoria de Vico, ao mostrar que a mitologia deve ser entendida, não como retórica,
mas como expressão do pensamento dos homens primitivos, ou seja de modos singulares de
ver o mundo em tempos antigos, descortina uma nova ciência, um novo modo de
compreender o pensamento dos fundadores das nações. Nas narrativas míticas, o homem
primitivo expressa o seu modo de entender os fenômenos naturais e tudo aquilo que não lhe
era possível entender de outra forma que não fosse por meio da fantasia, por isso sentiram
necessidade de dar vida a deuses, assim como crianças dão vida a objetos de brinquedos.

Na criação da imagem poética, os autores dão vazão à imaginação criadora, criando


nova linguagem representante de um microcosmo do mundo poético. Contudo, na poesia
infantil a brincadeira com as palavras não se reserva ao fato de fantasiar o mundo, dar vida a
seres inanimados ou mergulhar no reino do fantástico. Nessa poesia, onde o ser criança deve
estar além do plano do conteúdo, a brincadeira também se apresenta no plano formal, por isso
poesia é brinquedo de criança, conforme já disse Maria da Glória Bordini, ao nomear um de
seus capítulos do livro Poesia infantil (1986).

O poema visto como um convite ao jogo traz palavras que são experimentos. O
vocabulário simples e usual poderá ganhar significações insólitas; a comparação e a metáfora
poderão unir o que logicamente é inconciliável. Desse modo, a poesia assume características
defendidas pela teoria dos formalistas que exaltam o estranhamento provocado por uma
linguagem autocentrada. Não somente o estranhamento, mas traços modernistas, como
irreverência, humor, poemas breves, poema em prosa, poemas piada, presentes na produção
atual, são também refletidos na poesia para crianças de modernos e contemporâneos como
Manoel de Barros, Elias José, José Paulo Paes, Luís Camargo, Roseana Murray, entre outros.

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As formas de transgressão de normas em poesia não são próprias de nossa época ou


da poesia infantil. Conforme mostra Octávio Paz (1990), toda poesia por si só é transgressora,
se pensarmos que o poema opera uma violência do pensamento linear racional, como também
se opõe ao pensamento imperialista. Toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas
diferentes ou distanciadas entre si, contrariando o pensamento lógico.

Paz explica a lógica da imagem poética do mesmo modo como percebe o pensamento
infantil, ou seja, um sentido que se faz sem racionalizações. Para as crianças é difícil alcançar
a abstração do pensamento matemático, por isso exemplifica que é com espanto que uma
criança recebe a informação da equivalência entre um quilo de pedras e um quilo de plumas.
No poema, o poeta também opera de modo similar, poderá igualar ou distinguir um quilo de
plumas e de pedras, mas não influenciado por uma lógica das ciências naturais ou
matemáticas que o fará comparar pesos, mas levado a pensar pela lógica do poema, pelo
sentido que a imagem possui para ele. Para o poeta, um quilo de plumas suaves, macias e
sonhadoras, não é igual a um quilo de pedras rudes, pesadas e concretas. Apenas poderiam
ser imagens identificadas se o simbolismo da pluma e da pedra fosse único, que fizesse
despertar no poeta sentimentos de mesma proporção.

A realidade poética da imagem não pode aspirar a dizer a verdade, mas sim o que é
verossímil, ainda que impossível, assim como se mostra a imaginação da criança (PAZ, 1990,
p. 421). Esse mesmo sentido da imagem poética é explicado nos versos de Manoel de Barros
em Livro sobre nada: “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá/ Mas não
pode medir seus encantos” (1996, p. 53).

O conhecimento pela poesia se dá de forma muito mais íntima do que o conhecimento


pela experiência científica, pois esse último não é capaz de nos revelar a experiência de
mundo do modo como poeta ou outros artistas revelam. Pela poesia, aprendemos que cada
um deve refazer por si mesmo o processo da verdade; buscá-la além dos livros. A imagem
poética é capaz de dizer aquilo que extrapola as palavras, por isso se revela por meio de uma
linguagem especial. Octávio Paz para explicitar esse sentido da imagem afirma que a poesia
se revela em uma linguagem que consegue dizer aquilo que em prosa não seria possível
expressar, por isso: “Há muitas maneiras de dizer a mesma coisa em prosa; só existe uma em
poesia” (1990, p. 48).

Mais do que arte da retórica, a poesia alcança para Paz um sentido mágico-religioso:

A poesia coloca o homem fora de si e, simultaneamente, o faz regressar ao


seu ser original: volta-o para si. O homem é sua imagem: ele mesmo e aquele
outro. Através da frase que é ritmo, que é imagem, o homem _ esse perpétuo
chega a ser _ é. A poesia é entrar no ser”. (1990, p. 50).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Nessa operação que consegue pôr o homem fora de si mesmo; fazê-lo enxergar e
enxergar-se em situações que não conhecia, a poesia pode despertar no leitor o
reconhecimento de sua humanidade e fazê-lo experimentar a vida em sua forma mais
completa e verdadeira. Por esse alcance, Paz afirma ser a poesia a forma natural de
convivência entre os homens; é ela que vai nos ajudar a descobrir quem realmente somos
(1990, p. 45). Daí a importância primordial do poeta para a construção da cultura, para a
inscrição do homem e seus símbolos e também a importância do envolvimento das crianças
com o poema. Assim, entendemos que a imagem poética não se explica, não pretende ser
explicada tão somente, mas sobretudo sentida, aprendida, experimentada, vivida como a
proposta de um convite à brincadeira.

A poesia como forma artística que se aproxima do pensamento infantil também foi
considerada por críticos da área que assim como Glória Maria Fialho Pondé observaram que
a poesia faz parte da infância do ser humano. Em seu estudo sobre o tema, a autora ressalta
que tanto a criança quanto o poeta se enveredam pela criação de novas linguagens, dando
vazão a uma lógica particular (1986, p. 126). A magia natural da poesia é vista como aliada
característica que revela a rejeição do universo autoritário do adulto. Assim, a autora
reconhece nos efeitos cômicos, lúdicos e absurdos da poesia infantil “a perplexidade do
jovem diante da lógica adulta, sugerindo mais uma contestação do que acomodação” (1986,
p. 131).

O poeta que compõe para crianças engendra, de modo intencional e interativo, um


universo de imagens, por meio da linguagem. Já a criança participa desse mundo da
linguagem de modo natural e espontâneo, antes mesmo das primeiras sílabas enunciadas.
Jacqueline Held (1980), discutindo as relações entre poesia e infância, observa que a infância
é a idade do jogo verbal, jogo com o refrão, com o trocadilho, com os sons e ritmos:

Ouçam as brincadeiras de seus filhos quando descobrem novas sonoridades.


Escutem em silêncio e não quebrem esse encanto, que reúne as mais velhas
canções da aventura humana (DUBOIS, Jacqueline e Raoul apud HELD,
1980, p. 197).

Segundo a pesquisadora, a criança irá gostar de determinada palavra independente de


seu significado, gostará apenas pelo seu encantamento sonoro, “por sua beleza intrínseca, por
seu ritmo, por suas sonoridades, por sua própria complexidade” (1980, p. 199). E completa
afirmando que não é apenas a palavra em si que encanta a criança, mas o conjunto da
linguagem, não a palavra isolada, mas as expressões que a compõe. A criança busca a
descoberta da palavra, por isso irá lidar com ela como se fosse um brinquedo, como no gosto

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

que possui pelos brinquedos de montar, pelos quebra-cabeças. O prazer experimentado no


jogo com a linguagem é explicado por Freud enquanto um prazer que é progressivamente
proibido à criança, até o dia em que são toleradas as associações de palavras segundo seu
sentido (apud HELD, 1980, p. 201). Na escola a criança aprende que o uso da linguagem
deve seguir uma estrutura linear para uma eficiente comunicação, obedecendo ao uso
racional, aquele uso que o professor e a família esperam que ela aprenda rapidamente.
Contudo, a poesia e o fantástico, conforme mostra Held, não nasceram para submeter-se ao
utilitarismo dominante. A poesia deve se situar no oposto desse uso social da linguagem,
assim como defendeu Paz (1990). A magia da palavra nasce do uso imprevisto, da palavra
totalmente nova ou da palavra saída de contexto e de significação rotineira (HELD, 1980, p.
203). Desse modo, a autora defende a poesia para criança não como poemas com uma
linguagem fácil, mas sim com textos elaborados, com uma linguem criadora, dinâmica, que
convide ao uso da imaginação e que estimule a criança a desvendar o mundo fantástico das
palavras.

2 No exercício de ser criança, a poesia toma forma em solo nacional:

Na busca dessa relação entre poesia e infância, recorremos aos principais autores que
trilharam o caminho da poesia em solo nacional. Os primeiros autores que se voltaram à
produção de poesia para crianças no Brasil acompanharam o clima de valorização da
instrução da escola e a tarefa patriótica que marcavam a literatura infantil do momento.
Zalina Rolim, que já em 1893 incluíra alguns poemas no seu livro Coração, em 1897 publica
o Livro das crianças em parceria com João Köpke. Em 1904, Olavo Bilac, publica Poesias
infantis e em 1912 Francisca Júlia e Júlio da Silva lançam Alma infantil. Ao lado desses
títulos, também estiveram presentes antologias folclóricas e temáticas produzidas com o
objetivo de constituírem material adequado para celebrações escolares. Ainda que nascida
sob a insígnia da doutrinação, atendendo às propostas de um projeto político e ideológico que
convocava escritores parnasianistas a esse propósito, essas obras possuem valor literário e
documental. Contudo, correm o risco de não proporcionar à criança o voo da imaginação,
devido às exigências dos autores que deveriam submeter-se aos ditames do contexto de
nacionalização da literatura.

Lajolo e Zilberman (1984) advertem acerca desse aspecto, exemplificando que os


textos recolhidos sofrem as adaptações que autores julgaram necessárias ao cumprimento da
função pedagógica a que se destinava a obra. Nesse sentido, no prefácio das Cantigas das
crianças e do povo, Alexina de Magalhães Pinto adverte que evitou os assuntos que lhe
pareceram impróprios, “bem como corrigiu os erros de linguagem que lhe parecem
incompatíveis com um projeto educacional. (apud LAJOLO; ZILBERMAN, 1984, p. 39).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Contudo, essa produção para crianças não é esquecida pela crítica, pois costuma ser lembrada
nas comparações em que se pretende destoar da produção contemporânea, como é o caso do
poema A pátria, de Olavo Bilac. Na ordem do imperativo reconhecemos o tom da poesia
ordenadora que se quer respeitada e seguida, como a voz do adulto: “Ama, com fé e orgulho,
a terra em que nasceste!/ Criança! Não verás nenhum país como este! (BILAC apud
LAJOLO; ZILBERMAN, 1984, p. 39).

Poemas como esse de Bilac devem ser lidos dentro do contexto de sua produção,
pensados como uma produção no estilo parnasiano e que atende a um projeto político e
pedagógico que corresponde a interesses governamentais. Contudo, para o envolvimento do
leitor é necessário que essa poesia passe por uma transcriação no ler e no criar, na recriação,
de modo que a criança possa reconstruir o poema como um espaço de descobertas
convidativo à interação. Essa recriação e rompimento com a poética tradicional se dá,
conforme Zilberman e Lajolo, aos poucos, desvencilhando-se do recorte didático e
pedagógico, seguindo o mesmo caminho da poesia não-infantil. Segundo as pesquisadoras, o
rompimento com o universo ideológico em que se movia a poesia de tradição bilaquiana
deflagra uma reviravolta formal que tem afinidades com a “poética da modernidade na qual
já se move a poesia não-infantil desde os anos 20” (1984, p. 146). Autores como Sidônio
Muralha, Cecília Meireles e Vinícius de Moraes são exemplos dessa nova poética que se
liberta das imposições ditáticas e ideológicas, deixando voar a imaginação da criança no jogo
da imagem poética. Contudo, a crítica de Vera Teixeira de Aguiar e João Luís Ceccantini
considera que muitos dos poetas infantis importantes e ainda ativos do século XXI iniciaram
sua produção nas últimas décadas do século XX, ou seja, “estão ainda influenciados por
temas e formas do século passado em um movimento que é muito mais de continuidade do
que de ruptura” (2012, p. 13). A continuidade pode ser vista na produção de poetas em que a
construção lúdica, o humor e a transgressão de formas tradicionais são a permanência desse
caminho trilhado a partir das inovações modernistas.

Acerca desse encaminhamento da produção nacional, Maria da Glória Bordini (1986)


reconheceu caminhos divergentes da poesia para crianças no Brasil. Temos nessa produção
desde a adaptação folclórica de origem camponesa, com quadras e rimas fáceis; a poesia
moralizadora que verseja sobre como deve ser a criança; até a adaptação dos clássicos. Sobre
a estética desse fazer poético, a autora propõe que o poeta precisa esquecer-se de que escreve
para crianças para fazer poesia infantil. Segundo ela, é preciso buscar a poeticidade dessa
poesia, assim como há na forma poética para o publico adulto, a fim que de que o poeta não
aprisione a criança em um vocabulário restrito, com imagens estereotipadas a um padrão de
comportamento, subestimando, desse modo, o pensamento infantil. Por isso a pesquisadora
percebe que o termo infantil que acompanha a poesia para crianças tende a abolir sua
natureza poética, na medida em que a transforma em “balbucio meloso de emoções ou na voz

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estrondejante que exalta deveres cívicos e familiares” (1986, p. 8). Sobre essa adjetivação
conclui,

a poesia infantil genuína é indistinguível da poesia não-adjetivada, salvo,


talvez, em termos temáticos, o que não é o caso do texto proposto, peça lírica
que não concede nada à pré-noção de infantilismos antes comentada
(BORDINI,1986, p. 13).

Embora devendo escapar das restrições que lhe impõe o adjetivo, a poesia infantil
constrói-se formando características próprias. Bordini descreve no nível fônico predomínio
de aliterações e assonâncias, a onipresença de rimas internas e finais, recursos
onomatopaicos, uso de refrão, esquema rítmico simples, marcado pela repetição de metros
regulares e breves, na poesia de origem folclórica, com ênfase nas redondilhas, irregulares ou
ausentes, na poesia culta moderna (1986, p. 63). Assim, embora haja a experimentação
formal, os artifícios de composição, segundo Bordini, se inclinam mais para as fórmulas
efetivas da tradição, em especial a poesia oralizante da tradição folclórica (1986, p. 65). No
que se refere à temática, o poema infantil contempla, de modo geral, temas da vida cotidiana,
os animais (dentre eles em primeiro lugar estão os passarinhos “provavelmente por evocarem
a pequeneza infantil” (1986, p. 65), as meninas e, em segundo plano, os meninos. Por fim, a
autora também defende que a poesia infantil brasileira está emancipada de seu passado
utilitarista e repressor e “ombreia com a grande arte na missão de conscientizar para as
possibilidades criadoras da palavra” (1986, p. 67). Nesse ponto reside o maior alcance dessa
literatura, possibilitar transformações dos elementos da realidade pela criação da palavra, sem
menosprezar o papel do lúdico e o prazer que ele desperta.

O prazer na leitura do poema é defendido como um caminho seguro para a conquista e


interação do leitor. Muitos críticos e também poetas se aventuraram para composição de
obras auxiliadoras dos trabalhos com poesia. Das inúmeras já editadas, destacamos a Poesia
na sala de aula, de Hélder Pinheiro. Com o objetivo de oferecer a professores do ensino
fundamental e médio experiências e sugestões que possam ajudar na prática cotidiana do
trabalho com o poema, o autor relata experiências de trabalho em que prevalecem sua
vivência com a poesia. Dentre as escolhas de poemas e atividades, Pinheiro faz crítica ao
jogo pelo jogo que deixa de lado o sentido. Segundo ele, o jogo pelo jogo corre o risco de cair
na pseudo-criatividade; o jogo sonoro deixa de ter um suporte significativo no cotidiano de
sala de aula, ficando enfadonho se o aluno não conseguir reconhecer sua experiência de vida
e de leitura (PINHEIRO, 2007, p. 20).

Em A poesia pede passagem: um guia para levar a poesia às escolas, Elias José parte
da afirmativa de que a poesia é um jogo de linguagem, um jogo cheio de fantasia que espera
ser jogado. Sem a intenção de tratar de teorias afirma que seu livro era para ser só um

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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depoimento sobre seu trabalho, “misturando fala de poesia com vivencias, linguagem de
explicar com linguagem literária, mas...” (JOSÉ, 2003, p. 11). O poeta e autor relaciona
poesia com a realidade com outras artes, com a poesia e o poema, tratando também de sua
função metalinguística, do significado e da fantasia que envolve a palavra poética. Sua
definição de poesia infantil está comprometida com o lúdico, com a descoberta prazerosa do
poema:

Poesia infantil é uma brincadeira com os várias sentidos das palavras, o


trocadilho, a ação dinâmica das palavras em movimento, a simbologia das
palavras, das imagens poéticas, das metáforas e outras figuras de linguagem.
A poesia procura dizer o que já foi dito em uma linguagem sempre nova,
imprevisível (JOSÉ, 2003, p. 85).

Quer o jogo envolva a sonoridade, quer envolva a imagem, a abertura do poema deve
iniciar pela porta do prazer. Conforme assinala Maria da Zilda Cunha, há vários modos de
abordarmos o poema (o modo lexical, o sintático, o fônico o semântico), mas a criança desde
muito cedo aprecia o reino do lúdico. Portanto, qualquer desses modos de adentrar no poema
deve permitir alcançar esse reino. Considerando a importância de despertar no aluno o prazer
no ler e no criar, Maria Lúcia Gonçalves Balestriero (1998), organiza e aplica em pesquisa de
doutorado diferentes atividades com alunos de 5ª série, pensadas de acordo com os níveis que
participam da estruturação do poema. Por exemplo, no trabalho com o nível fônico, a autora
inclui atividades com a rima, o ritmo, a sonoridade. Já com o nível semântico, inclui a
liberação do imaginário e no sintático traz propostas envolvendo a espacialização, com
caligramas, anagramas, desenhos, etc.

Nas diversas propostas pesquisadas, reconhecemos que a linguagem poética para


crianças deve suscitar a curiosidade do leitor, despertar nele o desejo de redescobrir as
palavras. Incluímos nesse despertar a experimentação do ritmo, momento em que a criança é
levada a descobrir um ritmo de leitura para o poema proposto. A investigação dos sentidos é
feita pela sondagem das formas, com atividade envolvendo a concretização visual da imagem
poética, e pela significação das cores, momento em propomos que sejam coloridas as
palavras do poema. Desse modo, as palavras se tornam brinquedos, pelo olhar da criança
orientada para uma nova percepção, sonora, plástica e sensorial, da imagem poética.

3- Exercitando o jogo da imagem poética

Para o exercício do jogo, buscamos a poesia para crianças de três poetas do contexto
nacional e atual da literatura brasileira e que trazem em comum o trabalho original e

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convidativo com a imagem poética: Manoel de Barros (1916-2014); José Paulo Paes
(1926-1998) e Luís Camargo (1954-).

A poesia para crianças de Manoel de Barros ganha destaque com Exercícios de ser
criança, obra em que presenciamos a criança tornar-se conteúdo dos dois poemas que seguem
na obra O Menino que carregava água na peneira e A menina avoada. A temática da infância
é mostrada como um exercício de liberdade, liberdade de agir e de falar, liberdade de
fantasiar a criação de um mundo em que é possível até carregar água na peneira. As
transformações sugeridas no poema permite ao leitor imaginar-se em transformação com o
personagem criança, capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo. As palavras
são as chaves para a porta da liberdade, por isso o menino aprendeu a usar as palavras para
exercer sua liberdade de ser criança. “Fazer peraltagem com as palavras” é o seu exercício,
exercício também proposto ao leitor.

O pensamento infantil faz o que parece ser em vão, aos olhos de uma sociedade
tecnicista e utilitarista. A poesia para crianças se atém ao supérfluo, ao despropósito, que
resiste ao consumismo da fala simplificada, prática e útil. Assim, “carregar água na peneira”
que também era o mesmo que “roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos
irmãos”, o mesmo que “catar espinhos na água”, o mesmo que “criar peixes no bolso” é,
sobretudo, libertar-se do mundo adulto. A poesia desse modo se mostra como o fazer
desnecessário, mágico que contraria a lei da gravidade, da razão, das ciências e do
racionalismo que marca a humanidade.

De modo diferente, mas também elucidativo do pensamento infantil, José Paulo Paes
trabalha a linguagem convidativa à brincadeira com as palavras, como presenciamos no
poema Convite, em Poemas para brincar. O autor “assume a bandeira de uma poesia
bastante lúdica e de exigente artesanato” (AGUIAR; CECCANTINI, 2012,p. 34). Conforme
ele próprio esclarece:

utilizo em minha poesia vários recursos de humor, como trocadilhos, falsas


etimologias, paradoxos, simetrias e ecos verbais, rimas estapafúrdias etc. Isso
fala de perto ao sentido lúdico da criança, a quem as brincadeiras verbais
podem divertir tanto quanto as físicas. (PAES apud AGUIAR; CECCANTINI,
2012, p.34).

Mobilizando formas folclóricas, como a parlenda, propondo adivinhas, criando rimas


e jogos sonoros, o poeta faz da palavra e da imagem poética uma brincadeira convidativa e
interativa com o leitor.

Não menos lúdica, a poesia de Luís Camargo volta-se à imaginação infantil, propondo
uma leitura de imagens, formas e cores em que o leitor deve reconhecer não somente a

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

mensagem das palavras, mas o significado de desenhos e pinturas que o poeta ilustrador
trabalha em coerência intersemiótica com sua proposta de poesia.

Sem intentar um trabalho comparativo desses três diferentes poetas, a proposta com
poesia infantil pretende focar a imagem como forma de apresentação de realidades contrárias
que são identificadas ou distanciadas, conforme o jogo metafórico proposto. Se aceitamos,
conforme exemplifica Paz (1990, p. 47), que o poeta não descreve a cadeira, mas coloca-a
diante de nós como no momento de sua percepção, com todas suas qualidades, reconciliando
nome e objeto, propomos um trabalho com o poema que ponha em evidência a percepção da
imagem poética que reconcilia signos e significantes, transcendendo significados usuais para
dar ao leitor a possibilidade da leitura além das palavras, a possibilidade do sonho e do jogo.
Ao propor atividades que não simplifiquem, não intencionem resumir o significado do
poema, mas sim dar margem para que a criança amplie o sentido que se descobre no texto e
se permita dar-lhe forma, contornos e voz.

Nesta proposta de letramento com poesia infantil, seguimos a sequência didática


sistematizada por Rildo Cosson (2006). Para o autor, a simples atividade da leitura não pode
ser considerada atividade escolar da leitura literária. Isso porque o professor deve pensar
estratégias que trabalhe diferentes momentos de organização da aprendizagem que envolvem
desde um momento motivador, em que são propostas situações que permitem antecipar a
leitura do texto literário, até momentos conclusivos em que se concretiza a leitura em
registros de interpretação.

No primeiro momento, como exercício de motivação, propomos um jogo de adivinhar


figuras. A partir de desenhos diferenciados e incompletos, cada aluno é convidado a descobrir
o formato de pessoas, animais, objetos, frutas, etc, assim como crianças e adultos costumam
fazer ao tentar adivinhar formato de nuvens. Depois dessa etapa, todos são convidados a
completar os desenhos e a colori-los, atribuindo-lhes significados ao explicar o motivo da cor
escolhida. Na introdução, em que são apresentados os autores, são respondidas curiosidades
acerca dos poetas e mostradas imagens da capa das obras a que pertencem os poemas
selecionados.

No momento de leitura, são lidos em voz alta os poemas selecionados, O menino que
carregava água na peneira, de Manoel de Barros, Uma flor e Uma estrela, de Luís Camargo,
e por fim o poema Cadê de José Paulo Paes. Os leitores crianças serão convidados a dar voz
ao poema, buscando diferentes formas e sonoridades no ato de ler. Após a leitura, é proposto
o jogo de investigar os sentidos pela significação das cores, momento em que se propõe
colorir as palavras do poema. Será entregue uma cópia dos poemas e lápis coloridos a cada
criança que será convidada a colorir as palavras que compõem o poema e explicar a escolha

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das cores. Nesse momento, todos serão estimulados a dizer o porquê cada signo trouxe uma
cor diferente e o que as diferentes cores representam para o aluno, de acordo com os
sentimentos que percebem envolvidos no significado das cores.

A criança será orientada a entender que as palavras trazem significados para nossas
vidas, assim como as cores, um significado que não é apenas cultural, mas tem a ver com
nossas emoções, com nossas vivências. Para finalizar, no momento exterior, na concretização
do sentido, cada aluno poderá criar um poema que seja uma resposta aos poemas
apresentados, um poema com despropósitos e imagens absurdas, sem sentido racional do
universo do adulto, ou um poema com imagens de adivinha como de Paes e/ou com imagens
comparativas, como de Luís Camargo.

Nesta proposta, estaremos propondo três nuances do trabalho com a imagem poética.
Essa poderá revelar-se metafórica, trazendo imagens contrárias que são igualadas, como em
Barros; poderá ser comparativa, com imagens aproximadas, como em Camargo e poderá ser
descritiva, voltada a um referente, como em Paes. Desse modo, a imagem poética se desenha
ao leitor em toda sua potencialidade e semantismo, exercitando sua capacidade de
interpretação. Assim, ainda que o professor não as nomeie e ainda que não as explique, elas
existem; ganham vida na leitura da criança. O leitor é estimulado a aprender “fazer
peraltagens com as palavras”, a se valer delas ao seu próprio sabor, sendo levada a entender
que há várias formas e caminhos para estudar um poema e um deles é pelo jogo, pelo lúdico,
porta de entrada para que se chegue a um prazer estético e um passo a mais na construção do
leitor.

Conclusão

Se as pesquisas voltadas à poesia para crianças concordam que o lúdico é um aspecto


marcante do gênero, consideramos que não é possível uma proposta de trabalho com poesia
ignorar essa característica. A provocação das imagens surpreendentes, o convite ao jogo com
o texto, constitui um desafio que não pode ser ignorado. Refletir acerca dessa concepção do
poema como um brinquedo, pelo qual se possa exercitar o ser infantil traz para as aulas de
literatura um novo sentido. Contudo, essa concepção não está muito distante, tampouco é
contrária, às concepções que vemos explicitadas nos estudos de poética.

Pensar na imitação como natural ao homem desde a infância, autoriza-nos a pensar no


modo como a criança descobre as ações e aprecia copiá-las para conhecer ou simplesmente se
entreter. A poesia para crianças imita sons, por meio de onomatopeias e ritmos que recuperam
gestos e emoções, dando ao leitor a possibilidade de vivenciar momentos prazerosos de
interação em que ele próprio desejará imitar a ação do poema, gesticulando, criando palavras

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ou simplesmente imaginando a cena. Compor metáforas, fazer comparações, descobrir


símbolos e transformar cenas em alegorias; são ações que a criança tenderá a fazer diante do
poema, mesmo que não saiba nomear os processos ou identificá-los. Conforme nos mostrou o
crítico Antonio Candido, a metáfora não se faz apenas de modo intencional e elaborado. As
expressões metafóricas existem na linguagem corrente e de modo espontâneo. A força
criadora da palavra dá vazão à imaginação criadora, tornando a fantasia algo bastante natural
e recorrente no universo infantil.

Fantasiar o mundo, mergulhar no reino do fantástico, inclui também para a criança o


plano formal, fantasiar com a palavra, torná-la um brinquedo de criança. Assim como ocorre
com toda linguagem poética, as palavras tornam-se experimentos, por isso a palavra simples
e usual poderá ganhar sentido incomum, enquanto a comparação e a metáfora poderão unir o
que é inconciliável, sem considerar inverossimilhanças, podendo causar estranhamento, tal
como a imagem de uma peneira em que se pode carregar água sem vazar. Contudo, esse
possível estranhamento dura tão somente a descoberta do humor, um estranhamento que não
é dissipado pela racionalização, mas é cultivado pelo riso e pelo desejo de aproximação do
leitor sedento de fantasia. A irreverência do poeta é paga pelo conhecimento proporcionado
de sua experiência do mundo, não somente a sua de poeta, mas aquela operada para o
reconhecimento de sua humanidade.

Diante da importância que observamos na imagem poética, seria um erro tentar


resumi-la ou buscar racionalizá-la. O que devemos incentivar são as formas dela ser
aprendida e experimentada. O primeiro sentido que fará a criança a interessar-se pelo poema
será seu encantamento sonoro, seu ritmo, sua repetição, os possíveis refrãos, mesmo que o
leitor ainda não tenha o conhecimento do significado das palavras. Contrariando as propostas
para o trabalho com o texto que impõem o uso do dicionário como primeira atividade, o
poema deve ser primeiramente lido, experimentado, apreciado em sua sonoridade, em sua
cadência rítmica, em um convite que estimule a criança a lançar sobre as palavras novo olhar.

A preocupação com o desenvolvimento de leituras, interpretações detidas no estudo


do texto e até em estudo gramatical da literatura infantil, advém não somente do despreparo
do professor, mas permanece como resquício do período formativo dessa literatura em um
momento em que autores estavam preocupados com a valorização da instrução da escola e
obedientes à tarefa patriótica. Diante de obras que cumpriam um projeto de nacionalização e
explícita função pedagógica, tonou-se comum roteiro de apreciação do texto literário
direcionado a crianças em que se não contemplava o estímulo à imaginação infantil.
Conforme lembra Bordini (1986), o poeta precisou esquecer-se de que escrevia para crianças
para fazer poesia infantil, podendo assim escapar das restrições que lhe impõe o adjetivo.

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Esse passado utilitarista e repressor parece superado quando observamos o quadro da


produção contemporânea.

O poema apreciado pelo prazer da leitura é defendido como um caminho seguro para
a conquista e interação da criança leitora. Manoel de Barros, José Paulo Paes e Luís Camargo
são nomes da poesia para crianças em que o trabalho com a imagem forma o convite à
liberdade de fantasiar e interação com o poema, contrariando a visão de uma sociedade
tecnicista e utilitarista. Sem pretender qualquer finalidade moralizante, a poesia desses
autores se atém ao lúdico, resistindo a qualquer forma de domesticação e submissão. Em
coerência às características estilísticas desses três poetas e também em coerência ao que
discutimos acerca da força criadora da imagem poética e sua relação com o pensamento
infantil apresentamos a proposta com poesia infantil, enfocando a percepção da imagem
poética reconciliadora de significados e convidativa ao jogo.

Em nossa proposta, as atividades com o poema incluem situações que permitem


antecipar a leitura do texto e outras que permitem interagir com o poeta. O jogo de adivinhar
figuras, desenhar e colorir palavras desperta o interesse da criança pelos sentidos possíveis
que um poema pode encobrir, sem com isso desvelá-lo por completo. Levado a experimentar
a palavra poética, o leitor espontaneamente faz associações, entre a figura, o som e as cores,
trazendo na criação do poema, proposta no momento de concretização, um semantismo
pessoal, que não se pretende explicativo, mas criativo e lúdico. Fazer do poema um
brinquedo de criança se torna, desse modo, mais do que um momento de ludismo e diversão
na escola ou fora dela, na verdade, torna-se um momento essencial de descoberta da
literatura, da força criadora da palavra poética e de seu alto grau de conhecimento,
transgressão e de libertação da imaginação humana. O jogo da imagem se torna essencial
para a descoberta que o leitor faz do texto e, consequentemente, a redescoberta de si mesmo.
Se pretendemos formar leitores críticos, devemos iniciar pelo trabalho com a sensibilidade e
com a criatividade, partes essências que integram nossa condição de sujeitos humanizados.

Referências bibliográficas:

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brasileira: uma ciranda sem fim. São Paulo: Cultura acadêmica, 2012.
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CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas, 2006.

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São Paulo: Ática, 1984.

“Quem sou eu?” Nao sou o negro do “Navio negreiro”: um olhar sobre o
negro nos poemas de Castrol Alvez e Luiz Gama

Rosely Vieira de Jesus


Universidade do Estado da Bahia
lylynegreiros@hotmail.com

Resumo: o presente trabalho visa discutir sobre a vida e obra de Luiz Gama, um dos autores
mais importantes do século XIX, que se destacou sublimemente na luta pelos direitos dos
africanos, povo do qual era descendente. Pretendemos analisar seu lugar no círculo canônico
brasileiro fazendo um comparativo entre a sua poesia resistente e sarcástica e a poesia do
negro-vítima de Castro Alves. Esse trabalho observa porque Luiz Gama tem seus escritos e
feitos ainda pouco discutidos em detrimento de outros autores como Castro Alves que é
considerado o “Poeta dos Escravos” e constantemente revisitado nos espaços acadêmicos e

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contemporâneas

escolares. Nas academias por muito tempo não se falava sobre autores negros e poesia negra
com amplitude. Com novos estudos, a Literatura Afrodescendente vem ocupando seu espaço.
Nesse trabalho faremos um breve passeio sobre a trajetória de vida de Luiz Gama, o espaço
que este ocupa e sobre a poesia-resistente que tinha como principal estilo o sarcasmo,
utilizado pelo autor com maestria. Assim, esperamos que esse autor que possui uma obra tão
rica, seja analisado e estudado com mais amplitude em nosso meio acadêmico e também nos
espaços escolares pela importância de seus escritos e pela contribuição que estes ainda podem
dar no que diz respeito a questões como resistência, poesia, consciência e identidade.

Palavras-chave: Luiz Gama; Poesia; Vitimização; Resistência; Castro Alves.


INTRODUÇÃO

Luiz Gama, célebre escritor negro, viveu na segunda metade do século XIX e dedicou
sua vida e sua história em defesa dos(as) negros(as) escravizados em terras brasileiras.
“Perante o Direito, é justificável o crime do escravo perpetrado na pessoa do Senhor”. Com
esta frase pronunciada num momento de indignação, esse poeta, advogado e político reagiu
ao linchamento de quatro escravos que foram condenados por matar um fazendeiro.

A maneira incisiva e peculiar com que este autor utilizava as palavras ajudou diversos
negros e negras a serem libertados(as) quando a aristocracia escravocrata queria manter, a
todo custo, o sistema de exploração desumana impetrada a população negra.

Contemporâneo de Castro Alves, Gama utilizou não só seus versos, mas também
ações práticas no combate a escravidão. Na maioria dos manuais literários a que temos
acesso, a vasta história de Luiz Gama aparece reduzida a um ou dois parágrafos deixando de
apresentar aos leitores uma das mais importantes vozes da Literatura Afro-brasileira.

A escolha de Luiz Gama como sujeito de estudo, se deu pelo fato de que nos círculos
acadêmicos somos acostumados sempre a revisitar os mesmos autores e poetas, muitas vezes,
deixando em segundo plano, diversas vozes e escritores que certamente contribuiriam e
podem contribuir para o enriquecimento de nossa Literatura Brasileira, como foi o caso do
autor de Luiz Gama.

Ao pensarmos num representante da luta contra a escravidão no século XIX, logo


surge o poeta Castro Alves cujo nome está associado, principalmente, a defesa dos escravos.
Com sua poesia “Navio Negreiro” relatou as agruras passadas pelos africanos até chegarem

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contemporâneas

às terras brasileiras. Autor de grande importância na Literatura Brasileira é enaltecido nos


círculos literários pela diversidade de sua obra.

Não menos importante temos os escritos de Luiz Gama que não aparece com tanta
frequência nos estudos sobre Literatura apesar de ter uma obra riquíssima que trazia o(a)
negro (a) como sujeito e não como aquele que necessitava de alguém que o defendesse.

Assim, a discussão sobre esse poeta negro que ocupa um lugar invisível no círculo
acadêmico é de suma importância para o enriquecimento da produção intelectual dando
destaque a quem lutou incessantemente pela liberdade.

1 OS DIVERSOS LUGARES NA LITERATURA – O CÂNONE REVISITADO E O


POETA ESQUECIDO

Durante muito tempo, os estudos em Literatura foram voltados para autores já


conhecidos e consagrados pela crítica literária. Estes são escolhidos pelos “grupos sociais
privilegiados e /ou especialistas – os críticos”. (SOUZA, 2006, p.12)

Novas abordagens sobre as diversas Literaturas que compõem a Literatura Brasileira


deram visibilidade a autores até então desconhecidos ou pouco estudados. Literatura
Regional, Literatura de Cordel, Literatura Afro-brasileira descortinaram uma gama de
produções tão importantes quanto as já consagradas, trazendo elementos expressivos que
marcam a cultura literária brasileira.

Entender a Literatura em sua diversidade é ainda hoje um desafio, pois alguns


estudiosos que postulam a existência de Literaturas e poetas “menores”. (BOSI, 1976). Sob
essa ideia classificatória camufla-se o preconceito e etnocentrismo e isso se torna perigoso na
medida em que afirmar a existência de uma escala dentro da Literatura é desconsiderar os
diversos espaços socioculturais e as construções literárias que neles ocorrem. Assim
considerar Literatura como um conjunto não hierárquico é dar visibilidade ao diverso no
mundo das palavras literárias.

Dentro de nossa Literatura, pouco espaço é dedicado a autores afrodescendentes.


Estes possuem produções poético-literárias riquíssimas, mas excluídas propositalmente do
círculo canônico quase intransponível criado pelos tradicionalistas.

SOUZA (2006) discorre que quando nos referimos à Literatura Brasileira, não
precisamos usar literatura branca, porém, é fácil perceber que, entre os textos consagrados

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contemporâneas

como cânone literário, o autor e autora negra, aparecem muito pouco, e, quando aparecem
são quase sempre caracterizados pelos modos inferiorizantes como a sociedade os percebe.

A voz negra autoral foi por muito tempo encoberta e/ou calada pelos modelos
etnocêntricos e excludentes da nossa sociedade que tinha seus propósitos e seus modelos a
serem seguidos sem dar o espaço devido a novas e pulsantes vozes literárias.

Assim temos uma produção que está dentro da literatura brasileira, porque
se utiliza da mesma língua e, praticamente, das mesmas formas, gêneros,
processos e procedimentos de expressão. Mas que está fora porque, entre
outros fatores não se enquadra na “missão” romântica, tão bem detectada
por Antônio Cândido, de instituir o advento do espírito nacional. Uma
literatura empenhada, sim, mas num projeto suplementar (no sentido
derridiano) ao da literatura brasileira canônica: o de edificar, no âmbito da
cultura letrada produzida pelos afro-descendentes, uma escritura que seja
não apenas a sua expressão enquanto sujeitos de cultura e arte, mas que
aponte o etnocentrismo que os exclui do mundo das letras e da própria
civilização. Daí seu caráter muitas vezes marginal, porque fundado na
diferença que questiona e abala a trajetória progressiva e linear da
historiografia literária canônica (DUARTE, 2007, p. 8).

Muitos escritores consagraram-se por discutirem as questões relativas à população


afrodescendente. Uma questão passível de análise é a forma como os negros(as) eram
retratados em alguns poemas na segunda metade do século XIX, pois estes apareciam como
selvagens, vítimas ou objetos.

Duarte (2007) considera que a conformação teórica da literatura “afro-brasileira” ou


afrodescendente passa necessariamente pelo abalo da noção de identidade nacional una e
coesa. E, também, pela descrença na infalibilidade dos critérios de consagração crítica
presente nos manuais que nos guiam pela história das letras aqui produzidas. Da mesma
forma como constatamos não viver no país da harmonia e da cordialidade construídas sob o
manto da “pátria amada mãe gentil”, percebemos, ao percorrer caminhos da nossa
historiografia literária, a existência de vazios e omissões que apontam para a recusa de muitas
vozes, hoje esquecidas ou desqualificadas, quase todas oriundas das margens do tecido social.

Nossa Literatura vista hoje por alguns como “um elemento importante para a
configuração identitária de setores das elites” (SOUZA, 2005, p. 64) determina quem deve
ser exaltado e quem deve ser esquecido dentro de nossas leituras e em nossa vivência
enquanto conhecedores e/ou estudiosos em literatura.

Tem-se a percepção de que embora as produções literárias afrodescendentes possuam


sua relevância no que se refere à discussão sobre problemas sociais, esta é esmaecida a partir

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contemporâneas

do momento em que esse negro literário aparece sempre à margem, ou nem aparece, no
processo da construção social e literária brasileira. Nesse sentido pode-se analisar a
construção da Literatura Negra ou Afrodescendente como uma forma de dar visibilidade e
discutir sobre temáticas a partir do olhar do sujeito participante do processo e não somente
daquele que leu, viu ou tem uma ideia do que foi a história do povo negro uma vez que este é
mantido insistentemente na posição de objeto.

Temos acesso a escritos literários que discutem de maneira bastante peculiar as


questões referentes ao povo negro. As lutas pré-abolicionistas no Brasil tiveram nomes
negros importantíssimos que não fazem parte dos estudos literários ou aparecem muito
levemente em alguma referência ou ainda em três ou quatro linhas de algum manual literário.
Participantes ativos de movimentos libertários ontem, sem visibilidade nenhuma hoje. Onde
estão esses negros (as)? Escondidos em bibliotecas especializadas ou trabalhos acadêmicos
que lutam e defendem propósitos comuns a fim de resgatar essa história literária negra.

Nesta perspectiva, dentro da Literatura Afro-brasileira surge um nome que a meu ver
representa a resistência e luta em prol da abolição da escravatura. Luiz Gama e sua poesia de
protesto que incomodavam a burguesia escravocrata e destacou-se como importante sujeito
de representação no cenário das lutas abolicionistas. Suas produções servem-nos hoje como
base para estudos que trazem os (as) negros (as) como sujeitos de sua história.

Paulino (2010) ao falar sobre a única obra literária impressa de Luiz Gama, afirma
que esta é uma referência cultural e literária desconsiderada pela história da Literatura
Brasileira durante décadas. Embora tenha ocupado lugar de destaque com sua originalidade
na cultura oitocentista, o poeta Luiz Gama negro pertenceu ao grupo de marginalizados dessa
época, tanto como agente econômico, quanto como agente social e cultural o que parece ter
provocado o “esquecimento” sofrido por sua obra pelo cânone da Literatura ao longo de
praticamente todo o século XX.

Ferreira (2000) discute uma ideia ainda permeada pelo preconceito de quem
reconhecia os escritos de Gama como pioneiros, mas apresentava uma perspectiva de
inferioridade.

Roger Bastide realizou um estudo pioneiro mapeando, em 1943, a poesia


afro-brasileira, ou seja, escrita por negros. Bastide trilharia pela vertente
determinista que marcava nossa crítica literária desde Romero e Veríssimo.
Acreditando nas influências do meio social e recorrendo a uma abordagem,
de cunho sociológico e psicanalítico, o crítico pretendia apontar as
manifestações de “raça na trama do escrito”. Atribui um papel fundamental
às Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, considerando-as como marco
fundador da poesia afro-brasileira, mas negou envergadura intelectual a seu

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autor, um “pobre escravo” cujas ambições culturais e literárias teriam


ficado aquém das suas próprias expectativas. (FERREIRA, 2000, p. LXV/
LXVI).

Oliveira (2004) em Gamacopeia mostra a diversidade de opiniões sobre esse ilustre


autor quando afirma que Gama foi considerado por alguns analistas o precursor do
Abolicionismo no Brasil (Sud Menucci), por pelo menos um crítico, a emergência do povo na
Literatura Romântica (José Paulo Paes), e hoje há quem discorde da particularização do poeta
em qualquer parâmetro redutor, pois Gama expressaria influências diversas, ideia defendida
por Ligia Ferreira.

Muitos escritores afro-brasileiros, dentre eles Luiz Gama, que ‘ao assumir sua
afrodescendência e invocar a “musa de azeviche” (DUARTE, p 14,2011) mostra a relação de
pertencimento com suas origens. A importante obra de Gama deveria ser estudada mais
profundamente nos espaços acadêmicos e apresentada como um valioso escrito literário na
discussão de cultura e identidade.

2 LUIZ GAMA – DE ESCRAVO A DOUTOR: TRAJETÓRIA DE UM DOS MAIORES


POETAS E DEFENSORES DO ABOLICIONISMO NO BRASIL DO SÉCULO XIX

O poeta abolicionista Luiz Gama nasceu na segunda metade do século XIX,


precisamente, no ano de 1830 onde ainda as imposições do sistema governamental vigente
barravam a chegada da República e o término da escravização de africanos e seus
descendentes. Figura atuante na luta contra o Império e contra a Escravidão, Gama fez
história como advogado, jornalista e poeta, numa trajetória sempre marcada por
acontecimentos fortes. “Foi um dos raros intelectuais do século XIX com formação
autodidata e, dentre os pouquíssimos negros, o único a ter passado pela
escravidão” (FERREIRA, 2000, p. XV).

Filho de negra africana de descendência muçulmana, Luiz Gama conviveu com ela até
os dez anos de idade e em seus escritos posteriores a descrevia como:

(...) negra, africana livre, da Costa de Mina, (Nagô) de nome Luiza Mahin,
pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã.
Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto
retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito
altiva, geniosa, insofrida e vingativa. Dava-se ao comercio - era
quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Baía, foi presa como

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suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não


tiveram efeito. (GAMA apud MENUCCI, 1938, p.20) 131.

Luiza Mahin participou de diversas insurreições e levantes contra o regime e, segundo


alguns autores, foi uma das principais organizadoras da revolta dos Malês. Desapareceu por
volta de1837 deixando seu filho aos cuidados do então companheiro e pai biológico de
Gama. Este estando em apuros financeiros por ser um esbanjador e apreciador de jogos,
vendeu o filho para pagar dívidas. A este, Luiz Gama refere-se em sua carta com mágoa
tocante:
Meu pae, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste
país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne á
melindrosa presunção das côres humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das
principais famílias da Baía, de origem portuguesa. Devo poupar á sua infeliz
memória uma injuria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome.
Ele foi rico; e, nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus
braços. Foi revolucionário em 1830. Era apaixonado pela diversão da pesca
e caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito
melhor o baralho, amava as súcias e os divertimentos: esbanjou uma boa
herança, obtida de uma tia em 1836; e, reduzido a pobreza extrema, a 10 de
Novembro de 1840, em companhia de Luiz Candido Quintela, seu amigo e
hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na cidade da
Baía, estabelecida em um sobrado de quina, ao largo da praça, vendeu-me,
como escravo, a bordo do patacho “Saraiva” (GAMA apud MENUCCI,
1938, p. 21).

Foi rejeitado por diversos compradores pelo fato de ser baiano, pois naquela época ser
baiano era sinônimo de baderna e revoltas. Qualquer senhor de escravos temia todos que
fossem procedentes da Bahia. Acabou ficando sob o julgo do alferes Antônio Pereira Cardoso
– negociante e contrabandista que tentou vender Gama sem sucesso.

Aos 17 anos aprendeu a ler e escrever com um hóspede do Sr. Cardoso. Em 1848,
sabendo ler e escrever e tendo obtido “ardilosa e secretamente provas
inconcussas” (MENUCCI, 1938, p.24) de sua liberdade, fugiu da casa do alferes Cardoso e
foi “assentar praça”. (MENUCCI, 1938, p.24).

Em 1856, depois de servir como escrivão, foi nomeado amanuense da Secretaria de


Polícia, onde serviu até 1868, quando foi demitido a “bem do serviço público” por ser
considerado turbulento e sedicioso pelos conservadores que haviam assumido o poder e
queriam manter o regime escravocrata e imperialista contra o qual Gama lutava de forma
incisiva. Em 1859 publicou sua única obra “Trovas Burlescas de Getulino.”.

131
Texto original da Carta de Luiz Gama à Lucio de Mendonça in: O precursor do Abolicionismo no Brasil
(Luiz Gama) de Sud Menucci.

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Esteve presente de forma ativa nas lutas em favor da república, participando do


Partido Liberal, tendo vários atritos com outros participantes que mantinham posições
contraditórias como a instalação da república e a manutenção do regime escravocrata. Em
1861 passou a dedicar-se exclusivamente à imprensa defendendo através de seus escritos os
ideais abolicionistas republicanos e liberais. Ao lado dos intelectuais ligados a maçonaria, a
qual fazia parte, envolveu-se em movimentos humanitários para o fim definitivo da
escravidão no Brasil.

No ano de 1869, Luiz Gama já se figurava como uma das pessoas mais importantes e
influentes da cidade de São Paulo nas questões referente à Abolição da Escravatura,
escrevendo sobre as arbitrariedades de advogados e juízes, advogando em favor dos negros e
criticando o sistema vigente com sua poesia sarcástica e ferina. No período de 1870 a 1881,
dedicou-se extremamente às questões políticas e lutas abolicionistas. No ano de 1882, falece
o grande poeta negro e defensor de ideais libertários, fato que parou a cidade de São Paulo e
que segundo
Foi o maior jamais visto na cidade de São Paulo. Nele acotovelavam-se
negros e brancos, cativos e doutores, gentalha e figurões, abolicionistas e
senhores de escravos, conservadores e republicanos, brasileiros e
imigrantes. Durante meses, os jornais paulistanos dão notícias das
incontáveis homenagens póstumas, por vezes festivas, que ocorrem por toda
a província e pelo país. (FERREIRA, 2000: LXXXVI).

Infelizmente, Gama não viu a sua luta se concretizar efetivamente, pois a abolição da
escravatura se deu seis anos depois de sua morte, mas este não deixou de ser um ícone da luta
pela libertação de um povo.

3 ENCRUZILHADAS POÉTICAS: UM BREVE PASSEIO POR LUIZ GAMA E


CASTRO ALVES.

Nos poemas de Castro Alves a vida e a história negra serviram de inspiração para
inúmeros escritos que até hoje são utilizados incansavelmente nas comemorações do dia 13
de maio ou 20 de novembro, algumas vezes, retratando a vida do negro (a) como naquela
época. A vitimização demonstrada em muitos desses poemas leva-nos a refletir qual o papel
foi reservado a estes na sociedade brasileira.

Convivendo contemporaneamente, Castro Alves e Luiz Gama não receberam destaque


similar apesar de discutirem temáticas tão próximas, cada autor a seu modo.
Tradicionalmente quando falamos em poesia abolicionista na Era Romântica lembramos logo
de Castro Alves com sua célebre poesia “Navio Negreiro” que mostra todo o sofrimento que

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foi imputado à população africana, retirada de suas terras e escravizada. Quem não leu ao
menos já ouviu falar dos versos que trazem uma visão romantizada e conformista do que foi a
maior barbárie contra um povo:

Era um sonho dantesco... o tombadilho 



Que das luzernas avermelha o brilho. 

Em sangue a se banhar. 

Tinir de ferros... estalar de açoite... 

Legiões de homens negros como a noite, 

Horrendos a dançar...( ALVES, 1997, p. 280)

No “estalar dos acoites” vemos a imagem do negro submisso e castigado comparado ao


negrume da noite, como se a escuridão fosse algo horripilante e que os negros fossem
somente corpos sem história, memória ou ancestralidade.

Negras mulheres, suspendendo às tetas 



Magras crianças, cujas bocas pretas 

Rega o sangue das mães: 

Outras moças, mas nuas e espantadas, 

No turbilhão de espectros arrastadas, 

Em ânsia e mágoa vãs!(ALVES, 1997, p. 280).

No trecho acima, percebe-se a animalização da mulher negra “suspendendo as tetas”


expressão geralmente utilizada para descrever animais e a imagem da criança com aspecto
flagelado, além das moças nuas espantadas demonstrando assim o medo do que estar por vir.
Não se vê a expressão do belo que é sempre retratado na era romântica quando se trata da
mulher branca.

A prisão imputada mostra somente a visão de aceitação da própria sorte, sem expressar
reação ou resistência, coisa que seria natural quando se é forçado a fazer algo que não se
deseja.
(...)
São mulheres desgraçadas, 

Como Agar o foi também. 

Que sedentas, alquebradas, 

De longe... bem longe vêm... 

Trazendo com tíbios passos, 


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Filhos e algemas nos braços, 



N'alma — lágrimas e fel... 

Como Agar sofrendo tanto, 

Que nem o leite de pranto 

Têm que dar para Ismael.(ALVES, 1997, p. 282).

Negros (as) conformados com a prisão, não esboçam nenhuma espécie de reação. O
desespero parece ser inerente a essas pessoas que são tratadas de forma que os afastam do
que seria humano, desfazendo-se da ideia de ancestralidade e memória, já que na alma destes
parece só estar presente a dor e angústia das “algemas nos braços”.

Castro Alves e sua poesia têm seus méritos ao abordar uma temática que ia de
encontro aos interesses econômicos e sociais da burguesia da época. Esta só queria a
manutenção do regime escravocrata e continuidade do modelo de sociedade que privilegiava
uma determinada etnia.

Mesmo dando importância a massa oprimida escrava, Castro Alves o fez muitas vezes
de forma excessivamente paternalista que não se vinculava a figura do negro como sujeito,
resistente e consciente, mas sim a de vítima que precisava ser defendido por alguém. Na
maioria de suas poesias acabava “reforçando no negro os estigmas de primitivo, desprovido
de intelectualidade, dócil ou agressivo, conforme os animais a que os escravos são
comparados” (SILVA, 2007, p2).

Apesar de discutir a temática, o fazia nos moldes que serviam à burguesia, utilizava a
Literatura para pressionar os aristocratas, mas reforçando de algum modo os valores da classe
dominante da qual fazia parte. O negro na poesia de Castro Alves quase sempre era um
“demônio”, o vingativo, o injustiçado e ressentido ou ainda o negro-vítima. Silva (2007)
evidencia essa ideia quando afirma que:

(...) ainda sendo projeto do autor a denuncia da escravidão e a defesa dos


escravos, os poemas oferecem a possibilidade de o leitor subverter o projeto
autoral e perceber lapsos discursivos, conservadores, senhoriais, que tendem
a recair em imagens negativas do negro (...) caracterizando uma das ciladas
pelas quais pode recair (...). (SILVA, 2007, p. 2).

Mas o que dizer da abordagem da mesma temática sob a visão de Luiz Gama? Este
poeta que por muitas vezes utilizou-se do sarcasmo e certa acidez em suas poesias para
denunciar o subjugo provocado pela escravatura no século XIX. Luiz Gama dedicou sua vida
em favor da contestação dos moldes repressores, além de ter se destacado, desde a juventude,
em lutar pela liberdade. Hostilizado pela elite branca, sofreu perseguições, mas nem por isso

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deixou-se abater, continuando sua luta pela abolição e utilizando para isso também a sua
poesia e seu conhecimento em defesa de um ideal.

Essas estrofes dão mostras de como esse autor utilizava-se das palavras em defesa
daquilo que acreditava. Comparou a mais alta aristocracia a “bodes” devolvendo-lhes assim a
expressão que utilizavam para menosprezar o povo negro. Assim em seus versos colocou no
mesmo patamar todas as pessoas independentemente de cor ou classe social. Assim Gama
expressava em sua poesia que ser branco ou negro não era uma questão de cor da pele e sim
de ascendência. Marca das poesias de Luiz Gama, o sarcasmo o acompanhou na maioria dos
seus escritos o que não o impediu de dedicar à mulher negra um lugar de destaque jamais
imaginado na poesia romântica que tinham como musa as mulheres brancas como a neve.
Luiz Gama “comparece na historia da Literatura como o primeiro poeta a cantar a beleza
palpitante da mulher negra e a paixão que ela inspira.” (FERREIRA, 2000XLVII).

Ó Musa de Guiné, cor de azeviche,


Estatua de granito denegrido,
Ante quem o leão se põe rendido
Despido do furor de atroz braveza (GAMA, 2000, p. 10-11)

Utiliza elementos próprios da poesia romântica, muitos icônicos e presentes em


diversas obras, mas, no caso de Luiz Gama, ressaltava as características da negra. Nessa
poesia pode-se notar uma comparação entre a Tethis negra e Vênus que sente inveja do seu
colo, privilegiando assim a beleza negra em detrimento do modelo adotado pelos poetas da
época. Desta forma, Gama inverte a ordem “natural” da poesia romântica que tinha como
sujeito idealizado a mulher branca, transgredindo valores estéticos engessados, questionando
os padrões seguidos, como podemos observar no poema “Meus Amores”.

(...)
Tão formosa crioula, ou Tethis negra,
Tem por olhos dois astros cintilantes
(...)
O colo de veludo Vênus bela
Trocara pelo seu, de inveja morta (GAMA, 2000, p. 243-244).

No poema “Lá vai verso” o termo “carapinha” chama-nos atenção por fazer referência
a uma característica física do povo negro que hoje é uma marca de resistência e
autoafirmação em que o(a) negro(a) assume-se naturalmente e considera o cabelo como
elemento referencial identitário.

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Quero que o mundo me encarando veja,


Um retumbante Orfeu da Carapinha
Que a Lira desprezando, por mesquinha,
Ao som decanta de Marimba augusta;
E,qual outro Arion entre os Delfins,
Os ávidos piratas embaindo (GAMA, 2000, p. 11).
(…)

A ancestralidade também se fazia presente nos escritos de Gama. Respeito,


referência à África e aos antepassados eram elementos constantes em suas poesias como
aparece em “Sortimento de gorras para gente do grande tom” e “Pacotilha”.

Em Guiné tem parentes enterrados


(...) A vovó que é preta-mina. (GAMA, 2000, p. 18).
............................................................
D’Angola oriundo. (GAMA, 2000, p. 78).

Em seus poemas Gama não se limitava a afirmar-se enquanto negro. Possuía


intencionalidades em seu discurso. Para Gama a liberdade do negro era o direito de
expressar-se, ter seu pensamento e ações livres. Para Ferreira (2000) em sua voz plural
ecoavam os valores disseminados pelas Luzes: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.

Mesmo que o termo “identidade”, relacionado às questões negras, tenha surgido


posteriormente a Gama, suas ações mostram a valorização do negro e da negra enquanto
sujeito ativo de sua construção enquanto sujeito.

Ser negro no século XIX era sinônimo de escravo, pois mesmo aqueles que se
destacavam na sociedade essencialmente elitista eram de algum modo, rechaçados e
desqualificados, como aconteceu com Luiz Gama, ou negavam sua ancestralidade e origem
como muitos mulatos. Gama apresentava seu orgulho em ser negro, na defesa e representação
de uma população resistente, emprestando sua voz e suas letras na busca de um ideal. Não se
deixou abater pela vida injusta que teve e partiu em busca do que acreditava. Percebe-se em
Gama que ao assumir-se negro e poder falar sobre tal, há uma referência de uma luta e
resistência explícita, muito diferente daquela que era veiculada por alguns escritos – a do
negro como vítima.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Esse esquecimento proposital de alguns escritores, está sendo analisado com novo
olhar e novo sentido, para assim situar histórico-literariamente a quem tem tanto conteúdo
quanto os autores já consagrados e tão insistentemente (re)discutidos em nossas Academias.

A intenção de consolidar uma Literatura Negra e Afrodescendente não objetiva fazer


um comparativo estético e sim demonstrar que a existência desta é necessária para o
preenchimento de lacunas seculares em nossa Literatura Brasileira. Devemos desmitificar a
ideia da existência de literatura e literaturas menores.

Pelas opiniões contrárias ou complementares que desperta Luiz Gama, percebe-se a


força dos ideais e da poesia desse enigmático poeta. Também, não há como observar a
Literatura só com romantismo ou ingenuidade, mas também com realismo e objetividade,
pois a cada análise percebemos a exclusão dos elementos afro-brasileiros restando-nos
assumir postura questionadora, analítica e resistente.

Assim, Gama merece nosso reconhecimento não só por ser negro, mas por preencher
lacunas e trazer a tona discussões importantes e enriquecedoras sobre o que é ser negro(a) e
aceitar-se como tal numa sociedade que prega a igualdade e a justiça em seu discurso, mas
peca nas ações reais relativas à desmistificação e quebra de preconceitos no que diz respeito a
padrões e conceitos estabelecidos. Luiz Gama expressava em sua poesia que ser branco ou
negro não era uma questão de cor da pele e sim de ascendência. Em seus poemas, não se
limitava a afirmar-se enquanto negro. Possuía intencionalidades em seu discurso. Para Gama
a liberdade do negro era o direito de expressar-se, ter seu pensamento e ações livres.

Gama foi realmente um “precursor” das ideias abolicionistas no Brasil como afirma
Menucci, não só por colocar em prática suas concepções, lutando por aquilo que acreditava,
mas por continuar, ainda hoje, despertando interesse por sua belíssima história de resistência.

Referências

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!343
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

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Signos, códigos e estratégias literárias da literatura negro-brasileira

Sally Inkpin
Universidade do Estado da Bahia
sally.inkpin@uol.com.br

!344
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Neste trabalho 132, discutimos as características e os posicionamentos da literatura


negro-brasileira através da análise de três poemas. O primeiro é de Cuti (A palavra negro), o
segundo de Oliveira Silveira (Outra nega fulo) e o terceiro de Ana Cruz (Coração tição). Em
meio à pluralidade da literatura brasileira contemporânea, a literatura negra se destaca como
o agente mais efetivo que se contrapõe à ideologia inerente aos meios de informação,
comunicação e à literatura canônica, que inferioriza o negro e sua cultura. Nosso esforço em
traçar os signos, códigos e estratégias literárias da literatura negra brasileira foi inspirado pelo
ensaio Playing in the dark. Whiteness and the Literary Imagination (Brincando no escuro.
Brancura e o imaginário literário), em que Toni Morrison (1993) se debruça sobre a
literatura de fundação 133 dos Estados Unidos para definir a blackness (negrura) que, através
de diversas técnicas retóricas, narrativas, imagéticas e simbólicas, inferioriza e desvaloriza as
pessoas negras e a sua cultura, enquanto as da whiteness (brancura) promovem e valorizam
beleza, cultura, religião, valores e costumes, forjados como sendo dos brancos. Analisamos
como os três poemas, exemplos potentes e icônicos da literatura negra, invertem, satirizam e
desconstroem os artifícios construídos e aplicados pela brancura e negrura brasileira.

Inspirado por Morrison (1993), Edward Said (1994) em Culture and imperialism
ressalta a importância da literatura da fundação europeia em criar e justificar a superioridade
do branco sobre o negro. O autor demonstra como a partir do século XVI, uma forte tradição
de obras de literatura, filosofia, história e pesquisas científicas, dos maiores poderes
econômicos da Europa fundamentou e nutriu a construção de um mundo de referências e uma
posição de autoridade acadêmica e moral sobre outros mundos. Até o final do século XIX, os
intelectuais, escritores, religiosos e cientistas europeus moldaram e foram moldados por um
senso de superioridade e missão que possibilitou a colonização e a subsequente repressão de
mais da metade das terras do globo.

Silvina Carrizo (2001) detecta as mesmas tendências na herança textual sobre o


Brasil, deixada pelos primeiros viajantes, missionários e naturalistas estrangeiros em seus
diários, cartas e crônicas que influenciaram os escritores brasileiros românticos. Esses
escritos apresentam um “olhar etnográfico” (CARRIZO, 2001, p. 25) em torno da visão do
Velho Mundo sobre o universo do Novo Mundo. Esse olhar examina a diversidade

132 Este trabalho, novo em sua forma presente, apresenta trechos de meu ensaio (2016) e tese (2014), ambos
intitulados, Signos, códigos e estratégias literárias da negrura e da brancura na literatura brasileira. Também
aproveitei de meu artigo, Batalhas da literatura negro-brasileira, apresentado no SINBAIANIDADE, em 2015
(UNEB). No presente artigo, quando faço uso do termo “ao estudo”, refiro-me à investigação de doutoramento,
que foi muito mais amplo do que este texto.

133 Morrison usa o termo “literatura de fundação” para designar obras literárias que contribuíram (e continuam a
contribuir) para definir a identidade nacional dos Estados Unidos. Eu também uso o termo e o da “literatura
fundadora” para me referir a obras que contribuíram para definir a identidade nacional (racial e étnica) do Bra-
sil.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

antropológica e cultural da nova realidade, tendo como parâmetros os padrões e as


expectativas de uma realidade europeia. Os intelectuais estrangeiros organizaram e
categorizaram suas percepções sobre o Novo Mundo e dos seres que o habitaram através de
sua cor, sua língua e seus costumes. Essas impressões foram registradas em um meio
condicionado pelo sistema mercantilista europeu, que procurava novos mercados e recursos
para suas economias crescentes, além de necessitar e submeter a mão de obra indígena e
negra (CARRIZO, 2001).

A autora dialoga com a discussão levantada por Raminelli (1996), demonstrando que,
a partir de século XVI, as imagens do homem do Novo Mundo foram apresentadas como
“selvagens bondosos e inocentes”, por um lado, e “agressivos e demonizados”, por outro. A
autora explica que o olhar etnográfico sobre o Brasil foi gerado por um olhar dicotômico
sobre o outro. O índio foi percebido como um ser diferente e automaticamente inferior. O
olhar dicotômico propulsionou ou a assimilação à cultura eurocêntrica ou a inferiorização dos
habitantes brasileiros, gerando estereótipos sobre as pessoas. As culturas milenares dos índios
e dos africanos não foram contempladas no imaginário emergente da nova colônia, cujas
imagens pendulavam entre extremos de negativo ou positivo. Entretanto, houve a idealização
do mameluco (o mestiço de branco com indígena) nas obras de Jean Fernando Denis
(1798-1890), que eram extremamente influentes entre os intelectuais brasileiros nos meados
do século XIX, fato que reforçava a onda do nativismo que reinava desde a época da
Independência. Desse modo, do lado das imagens extremas de “bom selvagem” e do “bárbaro
demonizado”, existia também a figura mestiça heróica no mameluco. O negro, por seu estado
escravizado, mal aparecia nos estudos etnográficos da época (CARRIZO, 2001).

Do mesmo modo, Toni Morrison (1993) afirma que um dos meios importantes para
manter a hegemonia sociocultural branca nos Estados Unidos é que desde a época de sua
Independência nas representações e discursos da literatura canônica, as cores preto e branco e
as tonalidades de pele entre elas têm sido contaminadas por diversos sentidos, relacionados
entre outros a comportamentos sexuais e socioculturais e atingindo práticas e crenças éticas,
políticas, econômicas e religiosas.

Sentidos amplos de positividade ou negatividade ligados a essas cores têm se


construído dentro dos meios de informação e comunicação, infiltrando no imaginário
coletivo, em parte pela representação de personagens literários negros estereotipados. Esses
sentidos e representações servem para apoiar e fortalecer as qualidades pessoais, as
potencialidades sociais e o poder da comunidade branca sobre a negra. A negrura absorve e
emula os preconceitos, suposições e análises dos estudos eurocêntricos sobre as pessoas
negras e vai se modificando, ampliando-se ou se podando com as mudanças e variações
filosóficas e sociopolíticas da sociedade conterrânea. Morrison entende as representações de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

negrura como uma exploração reflexiva sobre o que o autor sente em relação à presença do
negro na sociedade. Do mesmo modo, ela se interessa pelos meios literários inventados para
“explodir e se contrapor” (MORRISON, 1993, p.16) a essas construções.

Por seu lado, brancura e negrura brasileiras são extremamente complexas, devido ao
fato de o Brasil ter sido dominado, durante vários séculos, por uma pequena elite de
descendência branca, que usa a retórica ideológica da mestiçagem e da democracia racial, a
fim de incluir e/ou excluir outros, que formam a grande maioria da população. Os discursos e
imagens veiculados pelas ideologias de mestiçagem e democracia racial incluem todos,
entretanto os costumes e as tradições culturais e literárias de séculos, aliados à exclusão das
massas – sobretudo, negando-lhes o direito à educação de qualidade e as boas condições de
trabalho – têm criado uma hierarquização social que mantém uma pequena elite branca no
topo da pirâmide social.

A intercalação das conceituações da mestiçagem e da democracia racial servia muito


bem à elite branca. Acompanhada pelo discurso de harmonia racial, ela disfarça o passado
violento do processo colonizador e da formação da Nação brasileira. Além do mais, o
professor de sociologia da Universidade de Berlin, Sergio Costa (2001) considera a
mestiçagem e a democracia racial como concepções centrais da unificação do Brasil dos anos
de 1930 até os meados da década de 1970. Costa argumenta que um senso de brasilidade
mestiça foi construído, e este assimilava e apagava outras possibilidades étnicas. A ideia de
raça foi, então, censurada, mas as políticas públicas promoveram manifestações culturais e
sociais portuguesas acima de todas as outras. O mestiço se tornou representante do brasileiro,
mas ele era pressionado a se embranquecer e ascender socialmente através do trabalho, do
estudo e de outras iniciativas, a exemplo da sua atuação nas áreas de esporte e das artes.
Entretanto, ele teria de ascender sem o apoio do Estado, porque uma intensa marginalização
das periferias continuava, e, geralmente, essas áreas eram habitadas por negros.

Brookshaw (1983) afirma que as forças ideológicas da sociedade brasileira têm


incorporado o simbolismo tradicional da civilização ocidental das cores branco e preto. Essas
forças referem-se não só a qualidades que abrangem a beleza e a feiúra, a civilização e o
primitivo, mas também a moralidade e a imoralidade. O autor sugere que diversas qualidades
dessas entidades são ligadas à construção de estereótipos de negros e tipos idealizados
brancos, que se opõem dentro da literatura brasileira. A oposição desses representantes revela
um conflito central entre as culturas africana e europeia. Nesse sentido, a cultura e as pessoas
brancas são associadas à pureza, à beleza, à inteligência, ao progresso e civilização, à
espiritualidade e à moralidade. E a cultura e as pessoas negras, à impureza, à feiúra, à
ignorância, ao atraso, ao profano e à imoralidade. O autor afirma que o conflito entre as duas
culturas é demarcado por zonas divididas por uma linha de comportamento. A linha adere a

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

padrões que abrangeram áreas amplas, tais como: as de aparência física (o tipo de cabelo e a
cor de pele); crença religiosa; nível de educação; comportamentos culturais, sexuais, morais e
de lazer (culinários, musicais, de vestuário, o próprio jeito de andar, entre outros).

O crítico literário e poeta, Cuti (2010), observa que normas subjazem à representação
do negro e das relações inter-raciais dentro da tradição literária canônica do Brasil. Tais
normas refletem a concepção da inferioridade do negro, sua passividade e a predominância
de harmonia nas relações entre as raças. O autor também identifica um sistema representativo
da instrumentalização do negro dentro da literatura brasileira, que cria a impressão que sua
existência gira em torno do branco, como se só existisse para servir à comunidade branca e
nada mais. O crítico aponta que, muitas vezes, o negro é aniquilado ao longo da narrativa:

Na literatura, por razões fundamentadas em teorias racistas, a eliminação da


personagem negra passa a ser um velado código de princípios. Ou a
personagem morre ou sua descendência clareia. A evolução do negro no
plano ficcional só pode ocorrer no sentido de se tornar branco, pois a “afro-
brasilidade” pode sobreviver sem o negro, uma vez que um afro-brasileiro
pode ser um não negro, ou seja, não ser vítima da discriminação racial ou,
até, ser um discriminador (CUTI, 2010, p. 34-35).

Cuti sinaliza que o personagem negro morre ou sua descendência clareia ao longo da
trajetória de sua representação em muitas narrativas. Para sustentar suas palavras, o crítico
aponta uma série de romances em que o protagonista negro morre como O mulato, de Aluísio
Azevedo, de 1881; Bom crioulo, de Adolpho Caminha, de 1895; e Negro Leo, de Chico
Anísio, de 1980. Por outro lado, ele se refere a Os tambores de São Luís, de Josué Montello,
de 1965 e Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, de 1984, para apontar o
clareamento da linha dos antecedentes índios, negros e mestiços.

O universo de brancura e negrura brasileiro é intermediado pela existência da


ideologia da mestiçagem que vai se adaptando às circunstâncias sociopolíticas conterrâneas e
temporais. Segundo tal ideologia, há a possibilidade de o não branco ascender socialmente e
entrar no universo branco, atravessando a linha de comportamento, por um ato que demonstre
a apropriação de comportamentos ligados às tradições culturais e comportamentais dos
cristãos e europeus. O branco, “naturalmente”, vive acima da linha.

Nosso estudo sobre brancura e negrura aponta três vias principais de inferiorização do
negro. O primeiro é uma economia de estereótipos negros e tipos brancos (incluindo mestiços

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

claros) idealizados134; o segundo é o deslocamento metonímico em que as cores referentes à


pele se incorporam nas paisagens e entidades apresentadas, inspirando sentidos e julgamentos
por meio dessa técnica. Nas obras da literatura fundadora, em autores como José de Alencar,
Joaquim Manoel de Macedo, Jorge Amado e José Lins de Rego, é perceptível a idealização
de entidades e pessoas brancas, tais como: o Bom Senhor e sua família da aristocracia
agrícola; estrelas; pássaros; nuvens, praias alvas e mares leitosos, e, por outro lado, a
condenação e rebaixamento de pessoas, espaços e ambientes forjados como sendo dos
negros. Tal simbologia varia de autor para autor, que também pode resolver construir uma
imagem negra acolhedora e positiva, dependendo de seus propósitos.

A terceira área de investigação enfoca técnicas narrativas. Uma dessas é o uso


recorrente de um narrador onisciente didático, que conduz o pensar do leitor, prevalente em
obras do círculo romântico como as publicadas por Alencar e Macedo. Outra técnica
narrativa que identifiquei é a duplicidade textual em que o autor afirma conceitos
contraditórios. Por exemplo, Macedo, em Vítimas Algozes, de 1869, constantemente condena
a instituição da escravidão e suas práticas como a responsável pela perversão do escravo,
enquanto também pinta quadros da feiúra, brutalidade e amoralidade de personagens negros,
apresentando-os como responsáveis por sua própria desgraça. Encontro tal duplicidade
textual também em obras da historiografia e da literatura fundadora brasileira como em A
abolição, de Joaquim Nabuco, de 1881; Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, de 1933;
e, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, de 1936.

Ao longo da história da literatura brasileira, houve uma marginalização dos atos de


resistência dos negros e uma inferiorização de suas características físicas, intelectuais e
espirituais. Entretanto, vemos que as entidades de brancura e negrura vão se deslocando e se
adaptando ao clima das relações raciais nacionais e internacionais da época. Desse modo, a
brancura brasileira romântica encontra suas maiores representações na família senhorial,
descendente de português em sua maioria, que forma a aristocracia agrícola. Em termos de
negrura, apresentam-se dois estereótipos opostos: o negro135 criança e o negro monstro.
Ambas as representações desmoralizam o homem negro: a primeira o infantiliza e o
dessexualiza; a segunda, enquanto monstro apresenta-o com um apetite sexual exacerbado e

134 Na minha tese, lido também extensivamente com a figura do indígena na literatura. Ela recebe o mesmo tra -
tamento binário, recebido pelo negro sendo idealizada quando adere aos padrões europeus e cristãos e rebaixa-
da, se rebelar contra tais normas. As mulheres indígenas e negras recebem o mesmo tipo de tratamento, muitas
vezes, de modo ainda mais exagerado.

135 Quando falamos do negro, referimo-nos às pessoas que pertencem às categorias identitárias de preto e pardo,
como definidas pelos censos brasileiros. Pelo fato de lidar com a mestiçagem e os sentidos de que a pele de tons
variados representa, há a necessidade de nos referir, às vezes, ao preto ou ao mestiço, a fim de distinguir as pes-
soas que pertencem ao grupo que chamamos de negro. Tratamos também de outras descrições identitárias como
as do mulato, mameluco etc., mas explicamos essas denominações ao longo do texto. A necessidade de usar
essas conceituações surge em relação ao uso que diferentes autores fazem dessas palavras.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

pervertido. O índio e a índia também são representados, principalmente, em termos


dicotômicos: o homem indígena que adere à cultura e religião brancas surge como um ser
nobre, justo e fraterno, ou, por outro extremo, selvagem, traiçoeiro e violento. As qualidades
da mulher indígena também oscilam entre características como nobre, carinhosa e bondosa,
ou pelo outro extremo, ela se torna selvagem, psicologicamente instável e vingativa. Vemos
também a instrumentalização do não branco que vive apenas para servir o branco, ou,
frequentemente, sua não representação nas páginas literárias românticas.

Nessa época, a mulher negra se apresenta mais comumente pela figura da servidora
doméstica. Sua existência gira em torno de seus serviços à família branca. Ela não tem
família própria ou perde o direito de criar seu filho e tende também a ser representada de
forma dessexualizada. Há também a figura da mãe não branca, que se sacrifica para sua
progênie com o senhor. Essa ganhou a sua primeira configuração na peça de Alencar, A mãe,
de 1865. Mas essa representação reaparece ao longo da trajetória da literatura brasileira,
apresentando-se em personagens como Iracema, no romance homônimo, e Domingas, em O
mulato.

Entretanto, a personagem central da negrura brasileira que estrela em suas obras mais
antigas (e ainda se apresenta, até hoje, como na cerimônia do final das Olimpíadas de 2016) é
a da mulata. A representação da mulata, geralmente, libidinosa, infiel e irresponsável age
como pivô para manter a posição moral superior do senhor (do branco). Por sua
‘irresistibilidade e amoralidade’ (QUEIROZ JÚNIOR, 2010), ela se torna responsável por sua
própria violação. O senhor não consegue resistir a ela e, assim, não pode ser responsabilizado
pelo ato da violação sexual. A imagem altamente erótica dela também contribui para a
propagação e manutenção do mito das relações harmoniosas da escravidão brasileira, porque
implica ao menos sua cooperação sexual e senão sua deliberada provocação para ter relações
sexuais. As imagens dos milhões de mulheres negras e indígenas que foram estupradas e/ou
mortas ao longo dos séculos são afastadas do imaginário pela representação da mulata sempre
sexualmente disponível.

Os intelectuais românticos brasileiros que se sentiam outros, no plano internacional,


começaram a introduzir representações indígenas e mestiças como ideais nacionais. Na cena
brasileira, o não branco foi incluído no quadro nacional brasileiro se aderisse aos padrões
morais, comportamentais e físicos, forjados como sendo do meio branco. Na época
romântica, para passar para o mundo branco, a mulher não branca precisava de cabelo de uma
textura cacheada ou lisa e pele de tom mais claro como o rosado ou o de lírio. A religião
exigida era obviamente a cristã. As habilidades domésticas de costurar, cozinhar, dançar e
cantar eram valorizadas, como também comportamentos sociais modestos, passivos e
respeitosos. Essa mulher se definia como defensora de valores, costumes e pessoas brancas.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Crenças herdadas de pensadores das ciências raciais como o Conde Artur de Gobineau
e Louis Agassiz eram extremamente influentes na segunda metade do século XIX entre os
intelectuais brasileiros. Elas providenciavam uma estrutura de apoio que manteve o calibre
das relações entre os principais atores em cena. A crença na superioridade do branco em
relação a seus dotes físicos, intelectuais e espirituais era essencial para manter sua posição no
pico da hierarquia social, possibilitando a subordinação de seus servidores.

Na Belle Époque, a esfera da brancura literária, com sua idealização do branco, ganha
uma nova representação no personagem do imigrante europeu recém-chegado. Lembramos
que essa configuração coincide com a imigração massiva de europeus ao longo desse período
(de 1880 a 1920). A imigração europeia dificultou a possibilidade do negro recém-liberto se
inserir no mercado de trabalho pelo fato de que o trabalhador europeu foi preferido na
maioria dos casos, especialmente em áreas de trabalho que exigiam mais do que a força
braçal (FERNANDES, 2013). Representações masculinas e femininas dos imigrantes, como
nas pessoas de Olga, em O triste fim de Policarpo Quaresma, e Milkau, em Canaã,
apresentam-se como figuras salvadoras de um Brasil do futuro. Nas palavras de Joaquim
Nabuco, essas representações são emblemáticas da esperança da maioria dos intelectuais
brasileiros da época, de que o contato e miscigenação do brasileiro com “o novo sangue
caucasiano” (SKIDMORE, 1995, p. 24) poderiam renovar e melhorar o país.

Mesmo assim, a configuração literária que mais se diversificou e se ampliou ao longo


da Belle Époque é a do mestiço que incluía a valorização do sertanejo no lugar do índio. O
descendente do índio com o europeu recebe uma representação positiva nas mãos de Euclides
da Cunha, Graça Aranha e José de Alencar, por exemplo. Há também diversas
representações, ambas positivas e negativas, do descendente do negro com europeu: do
mulato e da mulata na linguagem da época. Brookshaw (1983) aponta que mulatos nobres,
bonitos, cultos e moralmente superiores são apresentados como seres brancos, com pele clara
e cabelos encaracolados. A construção desses personagens mestiços nobres, de cor branca
fortalece a positividade da estética branca que continua dominando muitas obras da literatura
brasileira até hoje. Mesmo com a enorme amplificação da representação do mestiço, as
mesmas estratégias continuam a ser utilizadas para rebaixá-lo. A sua suposta tendência à
instabilidade psicológica se apresenta frequentemente nas representações e pode ser detectada
na maioria das construções sobre o mesmo neste estudo.

Observamos que a conceituação de uma identidade nacional mestiça é empregada


como uma ideologia para unir e igualar os membros da Nação, entretanto, se um indivíduo
não tiver pele clara e comportamentos irrepreensíveis, torna se muito fácil ser devolvido ao

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

meio negro desregrado136. Nas configurações literárias analisadas aqui, o desvio do branco do
caminho certo é devido, normalmente, à sua contaminação moral pelos negros que o cercam,
como nos casos de Cândida, em As vítimas algozes, e Jerônimo e Pombinha, em O cortiço.
Na época modernista, vemos a mesma contaminação ocorrer através do contato dos senhores
com as mulatas, em Menino de engenho.

Por outro lado, na Belle Époque, o imigrante alemão Milkau e a descendente alemã,
Maria, em Canaã, também se tornam figuras mestiças devido a sua afinidade com a cultura e
a natureza brasileiras. Eles se juntam com as construções indígenas e mestiças
embranquecidas, moral-, cultural- e/ou fisicamente como Peri, Poti, Ubirajara, Araci, Iracema
(personagens alencarianos) ou Raimundo (O mulato) e Isaura (A escrava Isaura) e com os
personagens brancos enegrecidos, como Carolina, em A moreninha, e Jerônimo e Pombinha,
de O Cortiço, para se tornar ícones nacionais.

No ambiente urbano, a partir da virada do século XX, o quadro da brancura vai se


encolhendo e o quadro negro vai tomando mais e mais espaço. Há uma maior aceitação do
negro que também se reflete em obras da historiografia brasileira da época. A mulata continua
central. O malandro, já presente em personagens como Brás Cubas, na época da Belle
Époque, começa a dominar a cena e se tornar uma figura mestiça por seus comportamentos
não convencionais, senão propriamente por sua genética. Do mesmo modo, o senhor,
descendente de português - o homem cordial edificado por Sérgio Buarque de Holanda
(1936) -, emerge como uma figura mestiça em termos inatos e através de seus
comportamentos.

O crítico Antônio Cândido (1970) aponta o malandro como representativo de um


modelo de moralidade distintamente brasileiro, que ele contrasta com os padrões morais mais
rígidos e puritanos dos Estados Unidos. A configuração literária do malandro que se torna
mestiça ou preta até a década de 1930 promove a continuada proeminência do branco em
termos sociais, profissionais e morais no mundo real. O malandro literário não é materialista
e não quer trabalhar, ele se interessa puramente por suas necessidades imediatas. Ele prefere
namorar muito e se divertir a se casar. Por seus comportamentos e valores, é responsável por
sua situação instável e marginalizada na sociedade e não se apresenta como possível
concorrente para os empregos e as parceiras mais desejáveis. Desse modo, ele não ameaça a
supremacia do branco profissionalizado e/ou endinheirado, como progenitor da nação.
Observamos, aqui, que o malandro pode ser masculino ou feminino. Por exemplo, Maria

136 Aqui e em outras partes deste trabalho, observa-se que as referências à “vida negra desregrada” de Fernan -
des (2008) e ao “mundo negro”, de Zilá Bernd (1988) e David Brookshaw (1983) não são entendidas a partir de
sentidos “naturais” e/ou “essencialistas”, mas como aspectos da sociedade habitada, em sua maior parte, pela
população negra, que surgiu como resultado da exclusão do negro de meios econômicos e sociais para alcançar
uma sobrevivência mais digna.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Eneida Matos da Rosa (2009), em seu estudo de doutorado, define Rita Baiana, n’O cortiço,
de Aluísio de Azevedo, 1890, como malandra.

As ideologias de brancura e negrura conseguem marginalizar e rebaixar os valores,


culturas e religiões dos negros e indígenas, permitindo somente a celebração do negro/
indígena em suas formas embranquecidas, apenas em posições de servidão e passividade.
Quem sai desses lugares morre e/ou, geralmente, não deixa filhos. Seu destino é o
desaparecimento.

Por essas razões, ao se referir à construção de uma literatura negro-brasileira, Zilá


Bernd (1988) detecta o esforço para resgatar a participação do negro na História e, ainda, a
necessidade para aprofundar a definição de sua própria identidade. No seu olhar, é imperativo
para o escritor negro definir a imagem que ele possui de si mesmo, a fim de consolidar o
processo de conscientização de ser negro na América e, assim, possibilitar o desenvolvimento
de um discurso literário.

Simone Santos (2011), em seu ensaio, Recontar histórias e reinventar memórias:


breves considerações sobre a literatura negra e a história do Brasil, enfoca obras de
escritores/poetas negros que afirmam seu lugar na História. A autora discute o esforço dentro
da arena da literatura negra para agir contra as ações de apagamento e marginalização do
negro pelas instituições de consagração da História oficial e da literatura brasileira canônica.
Do mesmo modo, o poema intitulado A palavra negro, de Cuti, de 2007, sugere a existência
de histórias e segredos negros que contam versões alternativas às definidas pela hegemonia
cultural:

a palavra negro
Tem sua história e segredo
veias de são francisco
Prantos do amazonas
e um mistério atlântico

a palavra negro
Tem grito de estrelas ao longe
Sons sob as retinas
de tambores que embalam as meninas
dos olhos
[...]
a palavra negro
que muitos não gostam
tem gosto do sol que nasce

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

[...]

a palavra negro
tem sua história e segredo
e a cura do medo
do nosso país
(CUTI, 2007)

Além de evocar a possibilidade de retomar e reescrever histórias de uma perspectiva


negra, o poema de Cuti apresenta outras características, mencionadas por Bernd, típicas da
literatura negra como a reversão de valores, vista na afirmação da palavra “negro”. Ao invés
de expressar suas conotações negativas usuais, ela “tem gosto do sol que nasce”. Além do
mais, a linguagem do poema ressoa com o ritmo de tambores, e o poeta, cuidadosamente,
desvia do uso padrão de maiúsculas e minúsculas, apresentando o esforço do poeta negro de
criar ritmo, semântica e sintaxe próprios. Bernd fala da emergência de uma nova ordem
simbólica que desconstrói a simbologia de branco-bom/negro-ruim como parte de sua
definição. Desta, o elemento mais importante, segundo a autora, é a “manifestação de um eu
enunciador, ou de um sujeito da enunciação que se quer negro” (BERND, 1988, p. 12).

Também em um esforço para definir os parâmetros da literatura negra, o professor da


literatura brasileira Eduardo de Assis Duarte observa que:

[...] a linguagem é, sem dúvida, um dos fatores instituintes da diferença


cultural no texto literário. Assim, a afro-brasilidade tornar-se-á visível já a
partir de uma discursividade que ressalta ritmos, entonações, opções
vocabulares e, mesmo, toda uma semântica própria, empenhada muitas
vezes num trabalho de ressignificação que contraria sentidos hegemônicos
na língua (DUARTE, 2005, p. 108).

Nesse mundo de expressão afro-brasileira, Duarte vê uma nova abordagem cultural,


do mesmo modo de Bernd. Duarte entende os estereótipos negativos que habitam o mundo da
literatura canônica como construções ideológicas desenvolvidas ao longo do tempo, na
literatura e na historiografia brasileiras. Como Edward Said (1994), Duarte aponta para a
necessidade de inserir as construções da literatura dentro das relações do sistema imperialista
de que fazem parte.

Duarte (2005) faz o questionamento de como a literatura afro-brasileira difere das


letras nacionais brasileiras e responde em relação a cinco áreas principais: as temáticas; a
autoria; o ponto de vista; a linguagem (que acabamos de tratar); e o seu público. Em termos
temáticos, Duarte considera que a literatura negra, conscientemente, enfoca o negro e tenta
construir uma literatura de seus costumes, rituais, de suas crises existenciais e de seus

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

amores. Obviamente, a escravidão e sua herança são denunciadas. A cultura negro-brasileira é


transmitida nos textos da literatura negra, num esforço contra o movimento oposto das
agências oficiais de consagração.

Duarte reverencia os nomes de Mestre Didi 137 e Mãe Beata de Yemonjá 138, por sua
escritura da memória ancestral, e, nesse sentido, lembramos ainda que, recentemente, Mãe
Stella de Oxóssi139 tornou-se imortal, assumindo a cátedra 33 da ALB – Academia de Letras
da Bahia, também pela sua produção literária referente à memória ancestral, à cultura afro-
brasileira. Os dramas vividos pelo negro na modernidade brasileira são transmitidos nas
escritas de Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Oswaldo de Camargo e nas
“escrevivências” de Conceição Evaristo, entre muitos outros. Em 2007, houve o lançamento
da obra épica Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, que apresenta uma ampla rede de
histórias narradas a partir da perspectiva de uma mulher negra, de origem africana, que se
torna uma cidadã brasileira. Porém, Duarte observa que o negro não é tema obrigatório do
escritor negro, senão poderia se tornar uma camisa de força.

Os dramas vividos pelo negro na modernidade brasileira são transmitidos nas escritas
de Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Oswaldo de Camargo e nas “escrevivências” de
Conceição Evaristo, entre muitos outros. Em 2007, houve o lançamento da obra épica Um
defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, que apresenta uma ampla rede de histórias narradas
da perspectiva de uma mulher negra, de origem africana que se torna cidadã brasileira.

137 Mestre Didi, Deoscóredes Maximiliano dos Santos, foi consagrado artista plástico da arte sacra afro-brasi -
leira. Fundou a Sociedade Cultural e Religiosa Ilê Asipá do culto aos ancestrais Egun, em Salvador, em 1980.
Expôs suas obras em Gana, Senegal, Inglaterra, França e Nova York. No Brasil, ganhou reconhecimento após a
23ª Bienal de São Paulo, em 1996, quando recebeu uma sala exclusiva para expor suas obras. Desenvolveu pes-
quisas comparativas entre Brasil e África, com o apoio da UNESCO. Escreveu sobre cultura afro-brasileira. Em
1950, “os conhecimentos de Mestre Didi sobre a língua yorubá levaram-no a publicar um pequeno dicionário,
intitulado Yorubá tal qual se fala” (DOURADO, 2014, p. 54).

138 “Com inspiração e competência, Mãe Beata escreve contos, poemas e constrói histórias sedutoras sobre o
mundo místico dos orixás e a vivência dos nossos ancestrais” (COSTA, 2010, p. 15). “Alta sacerdotisa do can-
domblé, líder religiosa, militante das causas feminista e racial, sempre atenta para perfilar as demandas coleti-
vas” (ibidem, p. 18). “Mãe Beata ganhou o mundo, participando de conferências e seminários internacionais,
atuando em uma peça de teatro em Berlim, com enorme reconhecimento do povo e da mídia local. Já escreveu
um livro e está, neste momento, finalizando outro. Hoje, é uma referência para a comunidade negra” (VICTOR,
2010, p. 12).

139 Mãe Stella de Oxóssi “recebeu o título de doutora honoris causa outorgado por duas universidades públicas
baianas: a UFBA, em 2005, e a UNEB, em 2009” (DOURADO, 2014, p. 38). “O conjunto da sua produção lite-
rária é composto por cinco livros: E daí aconteceu o encanto (1988), escrito com a escritora Cléo Martins; Meu
tempo é agora (1993); Òsósi, o caçador de alegrias (2006), Owé, Provérbios (2007); e Epé Laiyé: terra viva
(2009), voltado para o público infanto-juvenil. [...] A partir de 02 março de 2011, passou a escrever regularmen-
te no jornal baiano A Tarde, de circulação no Norte-Nordeste brasileiro, assinando artigos quinzenais na seção
Opinião, publicados às quartas-feiras, dias consagrados a Xangô. Segundo o blog Mundo Afro, editado pela
jornalista Clediana Ramos, repórter do próprio jornal, ‘é a primeira vez, desde a fundação de A Tarde, em 1912,
que uma ocupante do mais alto posto da hierarquia do candomblé se torna articulista de forma regular no perió-
dico’” (ibidem, p. 47).

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contemporâneas

Porém, Duarte observa que o negro não é tema obrigatório do escritor negro, senão poderia se
tornar uma camisa de força.

Em relação à autoria, Duarte afirma que a interpretação do texto não deve ser mediada
por dados sobre a cor da pele e a posição social do autor, já que tais dados não são
determinantes sobre a postura do autor. Ele cita Zilá Bernd, para explicar que o autor dessa
literatura apresenta um sujeito de enunciação que se afirma como negro e sente orgulho de
sua negritude. Essa voz representa sua comunidade, e o lugar que assume é do subalterno.

Essas observações de Duarte e Zilá Bernd sobre a autoria ecoam com as preocupações
sobre autoria da “literatura menor”, termo cunhado por Deleuze e Guattari, em 1977, para
falar de literaturas como as de Franz Kafka e Samuel Beckett. Segundo sua definição, a
literatura menor é de escritores, cuja língua nativa e espaço geográfico são dominados por
uma cultura/língua alheia, e a única opção que eles têm para se expressar e serem ouvidos é
na língua dos dominadores. Bernd oferece o termo “contraliteratura” para a literatura negra,
como alternativo ao termo “literatura menor”, que poderia ser entendido de forma negativa. A
contraliteratura, um termo primeiro cunhado por Bernard Mouralis, nega-se a assumir os
discursos ufanistas e nacionalistas que encobrem a realidade e desmascaram os aspectos
deprimentes da sociedade. Tal literatura se expressa de forma única: seus recursos retóricos,
símbolos e estratégias literárias não podem ser usurpados por outro meio discursivo.

Bernd afirma que a posição político-cultural do escritor da literatura negra é parecida


com a do escritor da contraliteratura, no sentido que ele tenta reterritorializar um espaço que
é dominado por uma cultura alheia. Mesmo que a língua brasileira seja do poeta negro, não é
a língua de seus ancestrais, e a cultura desse poeta tem aspectos distintos e até segredos que
vão contra as correntes da cultura hegemônica. O fazer literário do escritor negro tende a ser
marcado por seu engajamento político e pelo fato de sua comunidade, geralmente, viver
numa situação precária e marginalizada, e, luta pelo reconhecimento de sua cidadania e por
seus direitos civis.

Duarte considera ser semelhante, na literatura negra, a questão de autoria e ponto de


vista textual afrodescendente. O ponto de vista da narrativa parte de valores morais e
ideológicos que favorecem as qualidades diversas do negro como também seu autor. O crítico
aponta o texto Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, de 1859, como exemplo de uma obra
escrita de um ponto de vista negro. Nesse romance, as sensibilidades e perspectivas de dois
escravizados são apresentadas como centrais, a partir delas, os atos e as qualidades dos outros
personagens são medidos. Os sentimentos do jovem senhor Tancredo são tão nobres e
generosos quanto os do negro Túlio, seu leal servidor. Por seu lado, a velha escrava, Suzana,
lamenta a perda de sua liberdade pelas mãos dos “bárbaros” europeus.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Além das áreas de temática, autoria, ponto de vista e linguagem, Duarte destaca a área
do público-alvo como distinta para a literatura negra. Ele explica que o público visado pela
literatura negra também é negro. Abdias do Nascimento, Solano Trindade, Oswaldo de
Camargo e diversos autores contemporâneos negros são citados como os primeiros que foram
buscar seu público nas ruas, em eventos alternativos, em saraus públicos, rodas de poesia e de
rap e manifestações políticas. Essa movimentação140 ainda está em evidencia hoje, em
eventos pelo país todo, ampliando-se para áreas digitais como sites, portais e blogs na
internet.

Zilá Bernd e Cuti concordam com as premissas de Duarte, entretanto, os dois


preferem a nomenclatura “literatura negra” ou “literatura negro-brasileira” à “literatura afro-
brasileira”, termo favorecido por Duarte. Cuti explica que, no seu entender, a palavra “afro”
coloca a literatura brasileira como um galho da literatura africana, continente de 54 países,
cujas populações e culturas não são sempre negras. Cuti, como Zilá Bernd, entende a
literatura negra como uma, em que o autor assume uma subjetividade negra. Ele escreve
obras de resistência contra os padrões estéticos dominantes – representados pela brancura,
negrura e a ideologia da mestiçagem – e outros elementos de discriminação da sociedade. As
obras da literatura negra lidam com situações racistas e descrevem os sentimentos das vítimas
daquela discriminação.

Além do mais, os personagens negros que se apresentam na literatura negra são


redondos e complexos. Para Cuti, o escritor da literatura negro-brasileira rebela-se em seus
conteúdos literários e em seus atos sociais contra o silêncio que nega se pronunciar contra o
mito da democracia racial. O crítico não se interessa na representação de negros em papéis
estereotipados que, na opinião dele, contribuem para a discriminação contra o negro,
ampliando as imagens inferiorizantes que habitam o imaginário coletivo.

Florentina da Silva Souza, em sua obra Afro-descendência em Cadernos Negros e o


Jornal do Movimento Negro Unificado, de 2006, enfatiza a simplicidade e a linguagem
abertamente política dos poemas e contos dos Cadernos Negros, revista literária que
começou a circular em 1978 e do Jornal do Movimento Negro Unificado, lançado em 1981. A

140 “Citamos os exemplos da COOPERIFA, idealizada pelo escritor e agitador cultural Sérgio Vaz e promovida
pela comunidade de uma periferia da zona sul paulistana. Lá, semanalmente, em um bar, realiza-se um sarau em
que se lêem textos literários produzidos por autores consagrados ou não. Além disso, ocorre a promoção de
eventos – como a Semana de Arte da Antropofagia Periférica – ações de distribuição de livros, divulgação de
autores da comunidade, saraus nas escolas, oficinas de escrita criativa etc. No cenário baiano, o Sarau Bem
Black, mobilizado pelo professor universitário de Literatura Brasileira, Nelson Maca, ocorre todas as quartas-
feiras, nas esquinas do Centro Histórico de Salvador, sustentado pela ideia de unir quem gosta de dizer e ouvir a
poesia – por eles designada de divergente e associada às vertentes negras e periféricas da Literatura Brasileira.
[...] O Sarau Bem Black iniciou suas atividades num espaço intitulado Sankofa African Bar. Todavia, após o
fechamento desse espaço, em dezembro de 2013, o sarau passou a ser realizado nas esquinas do
Pelourinho.” (GONÇALVES, 2014, p. 198).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

autora ainda comenta que o português brasileiro já contém muitos substantivos das línguas
africanas e indígenas e uma musicalidade distinta do português europeu, significando que o
poeta negro sente que essa língua também é dele. A autora enfatiza os esforços
sociodidáticos de conscientização política e autoafirmação do escritor e poeta negro dos CN
que usam uma linguagem simples e direta, visando um público negro e combatendo as
estratégias narrativas dualistas e ambíguas da brancura e negrura.

A pesquisadora aponta o forte diálogo com a tradição das primeiras edições como
exemplificado no poema Outra nega fulô da edição 11 dos CN de 1988:

O sinhô foi açoitar


a outra nega Fulô
– ou será que era a mesma?
A nega tirou a saia,
A blusa e se pelou
O sinhô ficou tarado,
largou o relho e se engraçou.
A nega em vez de deitar
pegou um pau e sampou
nas guampas do sinhô
– Esta nossa Fulô!,
dizia intimamente satisfeito
o velho pai João
pra escândalo do bom Jorge de Lima
seminegro e cristão.
E a mãe-preta chegou bem cretina
fingindo uma dor no coração.
– Fulô! Fulô! Ó Fulô!
A sinhá burra e besta perguntou
Onde é que tava sinhô
Que diabo lhe mandou.
– Ah, foi você que matou!
– É sim, fui eu que matou –
disse bem longe a Fulô
pro seu nego, que levou
ela pro mato, e com ele
e aí sim ela deitou.
Essa nega Fulô!
Essa nossa Fulô!

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(SILVEIRA, 2011, p. 133)

No poema, vemos que a mulata dissimulada e conivente com os desejos do senhor da


poesia original, Essa Nega Fulô, de Jorge de Lima em 1928, se transforma totalmente e mata
o senhor transgressor. Outras configurações tipicamente passivas e submissas da literatura
canônica como o velho pai João e a mãe preta também ganham novas formas. O pai João do
novo poema expressa sua imensa satisfação com o assassinato do senhor, enquanto a mãe
preta é chamada de hipócrita pelo fato de que ela finge tristeza com sua morte. A sinhá é
chamada de “burra e besta”, enquanto o homem negro é valorizado pelo fato de que é ele que
a Nega Fulô escolha para se deitar no mato e comemorar sua fuga. Além do mais, o autor
modernista do poema satirizado é descrito como “seminegro”, algo menos do que um negro,
já que os contribuintes dos CN, conscientemente, constroem a persona do negro como uma
pessoa politizada que age na proteção de sua comunidade.

Hoje em dia, CN é a revista literária mais vigorosa do país, comemorada por sua
construção de uma estética negra positiva e sua reconstrução da participação negra da história
do país com o resgate de heróis negros como Zumbi e Luíza Mahin, entre outros. Souza
comenta que:

Expressões como “negrice” e “negritude” e “negrura” passam a compor o


repertório vocabular de escritores e militantes, indicando o lugar de onde
falam, a contestação incisiva da representação inferiorizante e do
desprestígio da cultura, como signos de afirmação e do desprestígio da
cultura, como signos de afirmação de uma identidade digna (SOUZA, 2006,
p. 136).

Os aspectos da afirmação do negro, da reversão de valores estéticos, enfocando


especialmente a cor, cabelo, nariz e boca é uma característica importante desta literatura.
Entretanto, dialogando com Muniz Sodré, Souza ainda destaca a importância do “corpo
negro” nas configurações literárias apresentadas na revista pelo fato que o escravo era
excluído de outros meios de expressão, como a da escrita, por exemplo. Esse “corpo negro”
buscou meios de expressão e sobrevivência físicos, espirituais e culturais que se refletem nas
práticas de dança e ritmo; o seu modo de andar e falar; nos seus cantos e ritos de capoeira e
candomblé e na preparação de comidas sagradas que se inspiraram nas suas raízes africanas,
mas se reinventaram ao modo brasileiro.

Além de tudo mais, no XIV Seminário Nacional e V Seminário Internacional: Mulher


e Literatura, em Brasília, em dia 6 de agosto de 2011, em seu depoimento ao público, a
poetisa e contista, Miriam Alves, apontou os CN como o berço da literatura feminina, negro-
brasileira, contemporânea. Alves observou que as mulheres começaram seu envolvimento em
papéis organizatórios do periódico, mas foram tomando coragem e começaram a submeter

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contemporâneas

seus próprios contos e poesias e, hoje em dia, já há grandes romancistas entre elas, como
Conceição Evaristo.

Terminamos o presente artigo com a poesia de Ana Cruz (s/d), intitulada Coração
tição, em que se glorifica negritude e herança africana, firmemente negando os pressupostos
que dão apoio ao mito da mulata, já descritos aqui como pedra fundadora da ideologia da
negrura. A poetisa levanta o braço com punho cerrado e se declara dona de suas próprias
verdades:

Quero me lambuzar nos mares negros


para não me perder,
conseguir chegar ao meu destino.
Não quero ser parda, mulata
Sou afro-brasileira-mineira.
Bisneta
de uma princesa de Benguela.
Não serei refém de valores
que não me pertencem.
Quero sentir sempre meu coração
como um tição.
Não vou deixar que o mito
do fogo entre as pernas iluda e desvie
homens e mulheres
daqui por diante.
(CRUZ, s/d)

Neste curto ensaio, apresento as principais características da literatura negro-


brasileira, que se definem, em parte, por seu esforço em lutar contra os padrões estéticos
racistas endêmicos à literatura brasileira canônica e que expressam em as entidades da
brancura, negrura e a ideologia da mestiçagem. Na arena da literatura negro-brasileira,
comemoro os esforços dos poetas e autores negros, homens e mulheres valentes que afirmam
sua negritude e buscam que seu público também valorize tal identidade. Considero essa
conscientização de grande importância para os cidadãos brasileiros poderem aceitar e
respeitar a beleza, a religião, a cultura e os costumes de cada um em sua diversidade.

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(Des)Construção da arte e do ser nas obras Perto do coração selvagem e


Paixão segundo GH de Clarice Lispector

Sunny Gabriella dos Santos


Pontifícia Universidade Católica de Goiás
sunnygabriella@gmail.com

O objetivo deste trabalho é estudar o processo de desconstrução do ser e da Arte, nas


obras Perto do coração selvagem e Paixão segundo GH, de Clarice Lispector, sob a
perspectiva do fluxo da linguagem e da desreferencialização da Imagem-Signo. O estudo será
fundamentado nas teorias críticas contemporâneas, considerando a ruptura da noção de arte
como representação da realidade. O referencial teórico de análise das obras serão as
concepções de Martin Heidegger sobre a noção do ser em sua relação com o tempo e a
linguagem, focalizando os aspectos relativos à fragmentação do ser-tempo; a
desterritorialização do ato artístico em linguagem ao infinito, nas perspectivas de Michel
Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari e, interconectadas às noções de modernidade
líquida, de Zygmund Bauman e à desrealização da obra de arte. A análise das obras terá como
norte a busca da “essencialização” do ser das personagens pela linguagem (Perto do coração
selvagem) e a despersonalização do ser (Paixão segundo GH), no contexto de uma obra
marcada pelo princípio de desrealização e de desreferencialização da imagem-signo – um
processo de simulação, na visão de Jean Baudrillard (1991).

A vida humana tem sido profundamente afetada pelas mudanças científicas e


tecnológicas, desde a modernidade até os dias de hoje, o que culminou no processo de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

virtualização do modo de viver dos indivíduos. Essas transformações compõem, também, o


processo de desconstrução do Ser e da linguagem artística dos meados do século XX e, ainda
mais neste século, que, visivelmente, se lança no percurso da imagem do transitório e do
desterritorializado ou no vazio da virtualização/simulação.

Torna-se imperativo, nesse contexto, o estudo da obra de arte. O propósito é


compreender o percurso e a dinâmica da escritura de Clarice Lispector, notadamente, as
narrativas corpus, com ênfase na leitura crítica tanto do objeto-arte quanto das teorias críticas
contemporâneas. Segundo Heidegger,

A linguagem é a casa do Ser, edificada em sua propriedade pelo Ser e


disposta a partir do Ser. Por isso urge pensar a Essência da linguagem numa
correspondência ao Ser e como uma tal correspondência, isto é, como a
morada da Essência do homem.” (1946. p. 55).

A arte, para Heidegger, expressa a busca do humano pela linguagem. Na


contemporaneidade, no entanto, e segundo as palavras de Rodrigues:

Os traços que distinguem a figura da personagem que deseja,


veementemente, livrar-se da possibilidade do não-ser, em busca do paraíso
perdido, apagam-se restando apenas marcas de um escrita hierógrafa
entregues à convulsão interna de um corpo-imagem, que transfere as
paixões do real como representação artística para a arte-escritura em trânsito
ou em movimento. (RODRIGUES, 2016).

Diante disso, este trabalho contribuirá para a divulgação das concepções


contemporâneas da arte concorrendo diretamente para o desenvolvimento do Estado de
Goiás, na medida em que esta pesquisa buscará, também, a aplicação, nos ambientes
educacionais do estado, dos conceitos apreendidos.

Objetiva-se analisar o processo de desconstrução do Ser e da Arte nas obras Perto do


Coração Selvagem e Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector. A proposta visa à
apreensão dos conceitos críticos e a articulação deles à discussão sobre a criação, a
linguagem e a produção na modernidade, e também o reconhecimento das teorias nas análises
críticas de obra de arte contemporâneas e suas relações com as obras corpus. Além disso,
pretendemos compreender a arte sob o efeito da desestruturação do referencial; reconhecer,
no objeto artístico, a desnaturalização e a desrealização da subjetividade; identificar e analisar
os paradoxos, presente no objeto artístico estudado; identificar aspectos da filosofia da
linguagem, na perspectiva heideggeriana e as noções sobre a linguagem ao infinito, em
Michel Foucault, aplicáveis às obras corpus.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A Dissertação de Mestrado em andamento pretende relacionar os conceitos de


territorialização e a desterritorialização, a partir das teorias de Gilles Deleuze e Félix Gatarri,
possíveis nas obras em estudo, verificar o processo de fragmentação e despersonalização do
ser das personagens, resultantes das condições de existência do indivíduo contemporâneo em
uma sociedade dominada pela virtualização dos seres e das coisas.Verificar o modus operandi
de criação artística de Clarice Lispector, nas obras selecionadas, em aspectos relativos às
concepções entre arte e filosofia.

O referencial teórico de análise das obras serão as concepções de Martin Heidegger


sobre a noção do Ser em sua relação com o tempo e a linguagem; Michel Foucault em As
palavras e as coisas; a desterritorialização do ato artístico, nas perspectivas de Gilles Deleuze
e Félix Guattari (2012); a noção de modernidade líquida, de Zygmund Bauman; a
desrealização da obra de arte. A análise das obras terá como norte a busca da essencialização
do ser das personagens pela linguagem e a despersonalização do Ser no contexto de uma
sociedade de simulação, na visão de Jean Baudrillard (1991).

Propõe-se, como fundamentação metodológica, a pesquisa bibliográfica com vistas


numa abordagem fenomenológica das teorias do pensamento e da arte na contemporaneidade.
Será realizada, primeiramente, leitura cuidadosa da bibliografia teórica proposta, bem como,
leitura e análises das obras corpus a serem aplicadas às teorias.

A arte é um fenômeno que desperta o homem para suas apreensões espirituais e de sua
natureza dentro do contexto em que foi produzida, indo além disso para tempos e lugares
diversos. O objeto artístico é capaz de expressar um momento, sendo um espelho em que
vemos refletida a visão de mundo predominante de um autor ou de diferentes autores que
influenciaram uns aos outros, sendo uma experiência daquele que criou a arte, bem como
naquele que a aprecia.

Os artistas da Era Moderna não produziram obras que se vincularam com a


representação da realidade, sendo e fazendo-se em si para ultrapassar o momento imediatista,
provocando estranhamento no receptor.

Tal artístico renova a criação para que se manifeste uma arte subjetiva e influenciada
por certo irracionalismo ou esfera caótica. Justamente por isso, é uma arte
intelectualizada,cheia de estilo próprio com uma tendência de mudar o antigo e o novo. Essa
modernidade perdura em séculos com sua agressividade que invade tempos e lugares para se
fixar com tal. Nas palavras de Gilberto de Mendonça Teles:

Assim, mais do que simples tendência, a vanguarda representa a mudança


de crenças experimentadas no pensamento e na arte do mundo ocidental,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

desde o início do século XX. Toda vanguarda sempre se caracteriza pela


agressividade, manifestada no antilogismo, no culto a valores estranhos (o
negrismo dos cubistas), os poderes mágicos, a beleza caótica da anarquia, o
instantaneísmo, o dinamismo, a imaginação sem fio (TELES,2000, p. 102).

Essas tendências se afloraram em um momento histórico conturbado – antes, durante


e depois da Primeira Guerra Mundial – e o conjunto dessas tendências ficaram conhecidas
como vanguardas européias. A palavra vanguarda, do francês avant-garde, significa
que está ou procura estar à frente do seu tempo, ou seja, as correntes de vanguarda
anunciavam o futuro com suas técnicas artísticas inovadoras.Entre as principais vanguardas
estão o Cubismo, o Futurismo, o Expressionismo, o Dadaísmo e o Surrealismo.

A influência da arte que se desenvolveu no século XX exerceu sobre a sociedade foi


dimensão que não nos cabe neste trabalho enumerar pormenorizadamente cada um de seus
efeitos, apenas, nos cabe levantar aos olhos aquilo que mais nos chama atenção em nossa
pesquisa sobre arte moderna. Toda essa agitação cultural que ocorreu na Europa ecoou em
outras partes do mundo, nas Américas e também no Brasil, é claro, culminando no conhecido
Movimento Modernista Brasileiro

A denominação de Modernismo abrange, em nossa literatura três fatos


intimamente ligados: um movimento, uma estética e um período. O
movimento surgiu em São Paulo com a famosa Semana de Arte Moderna,
em 1922, e se ramificou depois pelo País, tendo como finalidade principal
superar a literatura vigente, formada pelos restos do Naturalismo, do
Parnasianismo e do Simbolismo. Correspondeu a ele uma teoria estética,
nem sempre claramente delineada, e muito menos unificada, mas que visava
sobretudo a orientar e definir uma renovação, formulando em novos termos
o conceito de literatura e escritor. Estes fatos tiveram o seu momento mais
dinâmico e agressivo até mais ou menos 1930”
(CÂNDIDO, 2006).

O modernismo foi um movimento artístico complexo. Quando os artistas


abandonaram as tendências aos poucos o movimento romântico para adentrarem uma nova
era, do século XIV, para o XX aconteceu uma revolução profunda, que agitou radicalmente o
curso de todas as formas de expressão, reconstruindoas concepções dearte, de forma e de
linguagem, até àcontemporaneidade, a cultura e os estilos. Falar mais sobre o
Modernismobrasileiro, romance de 30 e geração de 45.

A simbólica procura do ser na arte literária reflete uma estréia de Clarice no mundo
da literatura nacional. Sua narrativa foi recebida com entusiasmo pela crítica, pois
surpreendeu os leitores com seu estilo inovador ao romper com os padrões estéticos vigentes
que a linearidade e a técnica de narrativas cuja representação focava no real de modo mais
fiel possível.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Clarice Lispector é uma das autoras brasileiras mais míticas, celebradas e


reconhecidas, publicou seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, em 1943, e já no
ano seguinte foi premiado com o premio Graça Aranha. Clarice possui uma imensa fortuna
crítica, biografias e suas obras já foram largamente estudadas, lidas e traduzidas para diversas
línguas. Clarice desconstrói, portanto, o modelo de ficção cristalizado na literatura brasileira
que perdurara desde o período conhecido como o “romance de 30”, introduzindo o romance
moderno. Nas palavras de Benjamim Moser:

Clarice Lispector [...] era a mais rara personalidade literária no nosso mundo
das letras; algo de excepcional; dotada de uma estonteante riqueza verbal; o
livro em seu conjunto é um milagre de equilíbrio, perfeitamente construído,
combinando a lucidez intelectual dos personagens de Dostoiévski com a
pureza de uma criança. Em outubro de 1944 o livro ganhou o prestigioso
Prêmio Graça Aranha de melhor obra de estréia de 1943(MOSER, 2013, p.
223).

O romance é destacado como algo excepcional, com muitíssima riqueza em sua


técnica textual. Personagens são combinadas em um esquema que narra a trajetória de um ser
desde a infância à vida adulta.Entretanto, a autora surpreende o leitor com uma personagem
singela como principal protagonista, desfazendo qualquer pretensão de evidenciar uma
grande heroína ou herói, como era de praxi nos padrões clássicos.

A linearidade cede lugar às fragmentações de personagens com trajetórias de vida


complexa, já que é impossível reduzir a história de uma vida – da infância até a ida adulta –
como se fosse algo simples. É exatamente nesta aparente simplicidade que reside a
sofisticada inovação da arte clariceana, por tentar condensar algo grandioso dentro de poucas
linhas. O enredo traz como cenário a atuação do ser: o interior das personagens se torna
central, em oposição aos romances ocupados com a representação fiel da natureza ou com a
denúncia social, contadas em narrativas lineares.

Na narrativa não se restringem o espaço, o tempo e as demarcações ao lugar, ao


cronológico e a uma voz, específicos. As ações das personagens acontecem em lugar
inconstante e nunca detalhado, as relações com o tempo talvez sejam as mais importante do
romance já que, ao nunca se referir a uma data ou tempo-relógio e ser sempre pautado pelo
tempo interior das personagens, sugerindo que a narrativa será centrada nas questões de
ordem ontológicas.

Em relação às vozes, o romance é narrado em terceira pessoa, mas se confunde


constantemente com a personagem já que a autora fez uso constante de técnicas de fluxo de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

consciência, monologo interior, solilóquio, que são algumas técnicas usadas por escritores de
romances modernos para enfatizar ou analisar a natureza do ser interior das personagens.

Todo passado se esfumaçara. E também o presente eram névoas, as doces e


frescas névoas separando-a da realidade sólida, impedindo-a de tocá-la. Se
rezasse, se pensasse seria para agradecer ter um corpo perfeito para o amor.
A única verdade tornou-se aquela brandura onde mergulhara. Seu rosto era
leve e impreciso, boiando entre outros rostos opacos e seguros, como se ele
ainda não pudesse adquirir apoio em qualquer expressão. Todo o seu corpo e
sua alma perdiam os limites, misturavam-se, fundiam-se num só caos, suave
e amorfo, lento e de movimentos vagos como matéria simplesmente viva.
Era a renovação perfeita, a criação (Clarice Lispector)

Conforme o fragmento acima, pela voz da personagem a ficcionista deixa claro que
sua arte não se fundamente nos valores canônicos para sustentá-la, valores tais como a
personagem ter necessariamente atuar num ação, em um espaço geográfico, e num tempo
cronológico. Desaparecem aqui os limites entre passado, presente e futuro, o tempo mais
importante é o presente, a tudo se funde na tentativa de captura do instante e da expressão.

A estética de Perto do Coração Selvagem sugere que a linguagem vá além da


significação usual, ao fazer questionamentos a cerca do ser e da arte, sempre a procura da sua
essência em que parece ter sido segregada em favor da automação do ser e do utilitarismo.
Isso aparece refletindo também na existência em estado de procura de Joana, que parece
sugerir a vida fragmentada, o livro é todo fragmento, oscilando em imagens fluidas, os
momentos narrados não estão ligados ao tempo-relógio,mas relacionam-se com a
interioridade dos personagens.

No início do romance, Joana já nos parece entrar em estar do procura, de inquietação,


de questionamento e de embate com o estar-no-mundo e como seu Ser. O leitor mais atento,
logo percebe que não se trata de uma personagem trivial, nem de uma heroína padrão, mas de
um personagem desafiando a si mesma e a própria fazer artístico:

A máquina do papai batia TAC-tac... TAC-tac-tac... O relógio acordou em


tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzz. O guarda-roupa dizia o
que? Roupa-roupa-roupa. Não não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio
havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta. Os três sons estão
ligados pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da árvore que se
esfregavam umas nas outras radiantes(Clarice Lispector)

Neste primeiro parágrafo, vemos um prenúncio do comportamento da personagem


principal durante todo o romance, o modo como Joana se relaciona com o mundo, com as
coisas e com o outro, e como ela realiza um jogo de ser consigo mesma, e com a existência. A
primeira palavra que nos chama atenção e apalavra máquina, que nos remete a imagem do

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

fazer literário, do instrumento de escrever, acreditamos, entretanto que a referência ao pai na


maquina seguida da onomatopéia tac-tac-tac, sugere o uso técnico da máquina, em
detrimento do artístico.Na realidade um guarda-roupa é um objeto que não fala. Orelha é
humana, o ser está morto entre objetos e silêncios e no tempo. É sugestivo que Joana queira
saber onde e como está o ser.

Sugere um questionamento sobre se as coisas contêm essência, já que elas valiam.


Para o pai valia a máquina, o trabalho, o tempo-relógio, cronológico contado pela máquina
não parece ter importância, empoeirado, ali guardado há muito tempo o tempo, para a arte já
não interessa já que este não é mais um só, o tempo da modernidade agora pode ser muitos. O
guarda roupa não pode dizer mais nada além senão o que ele é, o ente, não tem
essencialidade.? Mas ainda havia a luz do dia, entre os sons e a orelha, e havia o som das
folhas, felizes sendo folhas.

Vemos, então, que Joana queria conhecer o mundo a partir do seu Ser, até mesmo
obter a compreensão do uso dos objetos mais simples até a compreensão mais sofisticada
sobre o tempo e sobre sensações provocadas em seus sentidos e sua relação coma natureza.
Joana queria apreender todos os fenômenos não a partir se sua aparência, mas a partir de sua
própria existência, a partir de seu Ser. Mas sabia que para isso, precisaria, a priori, questionar
o seu próprio ser. Quem fala, fala sempre sobre si, mesmo quando fala do ou para outro, por
isso as coisas não podem exatamente falar.

Partindo dessa reflexão fazendo um paralelo com os questionamentos ontológicos, o


que significa procurar a acepção geral entre vários sentidos de ser, Martin Heidegger, em sua
obra Ser e Tempo nos ensina que Ser significa presença. Presença significa ser aí, que reside
em sua existência, e se determinada a partir de uma relação com seu mundo e seu tempo. O
ser aí está jogado no mundo e suas relações de significações, como a relações que a obra de
arte evoca.

“A medida, porém, que a existência determina a presença, a analítica


ontológica desse ente sempre necessita de uma visualização prévia da
existencialidade. Entendemos a existencialidade como a constituição de
ser de um ente que existe. Na idéia dessa constituição de ser já se
encontra , pois a idéia de ser em geral. Desse modo, a possibilidade de
se realizar uma analítica da presença sempre depende de uma
elaboração prévia da questão sobre o sentido de ser em
geral” (Heidegger p. 49)

A existência tem precedência sobre a essência, ou seja, o Ser necessariamente


vivenciando, a partir de um questionamento sobre o Ser, só é possível chegar ao conceito do
Ser partindo da irredutível determinação da existência. “Mas sobretudo donde vem essa

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

certeza de estar vivendo? Não, não passo bem. Pois ninguém se faz essas perguntas e eu...
Mas é que basta silenciar para só enxergar, abaixo de todas as realidades, a única irredutível,
a da existência” (Clarice Lispector)

A existência do Ser e de sua subjetividade, Heidegger empregou a palavra desein


como ser-aí, que está inevitavelmente ligado ao tempo. Joana transita consciente de sua
existência intuindo o Ser do outro, revivendo o passado ao mesmo tempo que percebe
lucidamente o presente e vive à procura de suas possibilidades de ser no mundo. Tentar suprir
essa lacuna entre a palavra e as coisas, entre a linguagem e o mundo, esse processo é
apresentado na obra como os movimentos de Joana em seu constante sentimento de procura.
Questiona os limites de abertura do sujeito no mundo e, conseqüentemente, da Arte, já que
esta é essencialmente linguagem assim como o Ser, por isso, essa mesma trilha, funciona
como uma alegoria à crise do momento artístico. Ser e arte são indissociáveis, nos ensinou
Heidegger, entendemos que essa busca nesse romance metaforiza essa caça ao selvagem
animal desconhecido do Ser e da Arte.

Para Heidegger (2014) “um enigma já está sempre inserido a priori em todo ater-se e
ser para o ente como ente. Por vivermos sempre numa compreensão de ser e o sentido de ser
estar, ao mesmo tempo, envolto em obscuridade”. A estética clariceana nos provoca
estranhamento, quando nos deparamos com seu texto somos impelidos a caçar também, não
deciframos sentidos, somo desafiados pela indeterminação dos limites já que o parâmetro que
tínhamos foi reprogramado a arte aqui instaura um tempo novo: o tempo do espírito.
Pressentimos a perda dos valores cotidianos, adquirindo valores puramente artísticos,
procuramos o potencial de significações; sentido cotidiano da palavra.

“É necessário certo grau de cegueira para enxergar certas determinadas coisas. É essa
talvez a marca do artista. Qualquer homem pode saber mais que do que ele e raciocinar em
segurança, segundo a verdade. Mas exatamente aquelas coisas escapam à luz acesa. Na
escuridão tornam-se fosforescentes” (Clarice Lispector)

Heidegger nos ensina que é preciso desconstruir os paradigmas segmentados da


historia da ontologia e, nesse processo, o Ser se encontra em um patamar em que não se
encontra a si próprio, oser-aí solto no mundo quer encontrar sua própria essência, mas
encontra o outro e a si mesmo seus oponentes nessa batalha pela essencialização. Assim, a
personagem Joana trilha os trilhos da auto descoberta do Ser, o que sugere também a
descoberta do Ser da Arte, neste período obscuro da Modernidade tão afetada por mudanças e
crises. A desconstrução sugeriu da pelo filósofo da linguagem, aprofundou-se a tal ponto de
atingir a essência e de não sabermos mais até onde confiarmos : isso nos gera angústia nos
Ser.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Isso nos remete aos padrões desconstruídos pela arte moderna pelo romance de
Clarice Lispector. Vale ressaltar que essas características de rupturas de paradigmas tiveram
suas fontes no raiar da arte moderna, nas vanguardas européias e no Brasil, intensamente,
essa ânsia pelo novo e pela quebra do antigo, da negação na semana de 22.

“O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para


rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados,
inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? Não era no mal apenas
que alguém podia respirar sem medo, enchendo o ar e os pulmões?
Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela
surpreendida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de
inconseqüências, de egoísmo e vitalidade” (Clarice Lispector p18)

A arte é um estímulo criador violento, animalesco, selvagem : aquele que não se


conhece, inabitado, que se busca. Que se está a procura. O ser da personagem esta a procura
de si, de encher os seus pulmões de ar, de vida e de prazer de ser para si. Já que num grito
animalesco consegue lançar apenas um uivo anima que lhe tira o ar. Aqui Joana personifica a
arte. Como uma criança, selvagemmente inocente e desconhecida de si.Porque só se procura
aquilo que ainda não se encontrou.

O romance PCS quebra a linearidade desobedece as normas gramaticais força o leitor


a se questionar, questionar o texto e a própria arte a se questionar é a na desconstrução da
fundação do velho sentido que está a procura de Joana e essa busca de Joana a caça ao
selvagem coração que mimetiza a busca pela essencialização do Ser alegoriza o auto-
questionamento da arte.

Referências

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BAUMAM, ZygmundModernidade líquida - p
HEIDEGGER, M. O Ser o o Tempo I e II - m
DELEUZE, G. Mil Platôs 5 -p
BARTHES, Roland. A morte do autor.- m e p
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ROSENTHAL, Theodor. O universo fragmentário -m
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BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991._______. A
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_______. A arte da desaparição. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

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_______. Os sistemas dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2004.


BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DELEUZE, Gilles. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia/ Felix Guattari. Rio de Janeiro:
Ed. 34, 1995.
_______. Proust e os Signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
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_______. Sobre Nietzsche e a imagem do pensamento. In: A ilha deserta. São Paulo:
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DUFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia
FOUCAULT. Michel. As palavras e as coisas.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992.
KAPLAN, Ann (Org.). O mal-estar no pós-modernismo: teorias e práticas. Rio de Janeiro:
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KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
MELLO, H. A Cultura do Simulacro: Filosofia e Modernidade em Jean Baudrillard. São
Paulo: Loyola, 1998.
NIETZSCHE, E. Wilhelm. A origem da tragédia. Trad. Álvaro Ribeiro, Guimarães, 1953. m

A desconstrução na prática da tradução literária: uma análise de Paulo


Coelho e Isabel Allende
Victória Marcella Tuff
Faculdades Metropolitanas Unidas
victoria.tuff@gmail.com

Toda tradução é uma possibilidade interpretativa – possibilidade de uma


subjetividade (a do tradutor), possibilidade de um estágio da teoria,
possibilidade de uma época. A meu ver, uma boa tradução é aquela que
mantém aberta a possibilidade de outras traduções.

Claudia Berliner,
Conversas com tradutores (2003, p. 72)

Resumo: será tratado neste artigo uma análise sobre a tradução das obras “O Amante
Japonês” e “O Alquimista” fundamentando-se na desconstrução promovida por Jacque

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Derrida. O objetivo deste trabalho é analisar as escolhas do tradutor nos trechos das
traduções das obras sob o ponto de vista desconstrutivista. Os trechos das obras foram
selecionados e a análise foi feita comparando o trecho original com o texto traduzido,
analisando assim, as escolhas do tradutor. Foram coletados textos como referência para uma
breve definição do conceito “desconstrução”, para uma breve abordagem sobre tradução
literária e para um breve resumo da biografia dos autores Isabel Allende e Paulo Coelho.
Durante o trabalho, pôde-se notar que na tradução literária, como em outras áreas da
tradução, o “literal” não é algo mais tão relevante dentro da área, mas a interpretação, a
recriação, o contexto e a linguagem, dominam uma tradução tão fluente, quanto o texto de
partida.

Palavras-chave: Desconstrução. Tradução. Literatura. Cultura. Linguagem.

Resumen: serán tratados en este artículo un análisis de la traducción de las obras "El amante
japonés" y "El alquimista" con base de la deconstrucción promovida por Jacques Derrida. El
objetivo de este estudio es analizar las opciones del traductor en los extractos de la traducción
de las obras desde un punto de vista deconstructivista. Se seleccionaron los extractos de las
obras y fue hecha un análisis mediante la comparación del texto original con el texto
traducido, por tanto, el análisis de las opciones del traductor. Fueron colecionado textos como
referencia para una breve definición del término "deconstrucción", para un breve abordaje a
la traducción literaria y un breve resumen de la biografía de los autores Isabel Allende y
Paulo Coelho. Durante el trabajo, cabe señalar que en la traducción literaria, como en otros
ámbitos de la traducción, el "literal" no es algo más relevante dentro del área, pero la
interpretación, la recreación, el contexto y el lenguaje, dominan una traducción tan fluido
como el texto de origen.

Palabras-clave: Deconstrucción. Traducción. Literatura. Cultura. Lenguaje.

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como finalidade apresentar uma analise sobre tradução
literária da obra “Um amante japonês” da escritora peruana Isabel Allende e da obra “O
alquimista” do escritor brasileiro Paulo Coelho sob a ótica da desconstrução proposta por
Jacques Derrida.
Foram selecionados trechos dessas obras, comparando a obra original com a sua respectiva
tradução, analisando a desconstrução do tradutor. Será abordada a “desconstrução” como algo
livre de qualquer teoria e qualquer regra. Além disso, o trabalho tem uma breve abordagem
sobre o tema “tradução literária” a fim de explicar as tomadas de decisões do tradutor na hora
de traduzir determinados trechos das obras.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Os escritores “Paulo Coelho” e “Isabel Allende” conhecidos e renomados no mundo


inteiro, pelas obras publicadas e também pelos prêmios.

Isabel Allende, autora de Um Amante Japonês, é uma escritora peruana que nasceu em Lima,
em 2 de Agosto de 1942. Além de escritora, Isabel também é jornalista, trabalhou em
revistas, jornais e na televisão chilena. Ela é considerada a escritora contemporânea mais
famosa da América Latina. A autora recebeu o Prêmio Nacional de Literatura, em 2010, no
Chile e o Prêmio Hans Christian Andersen, em 2012. Além deste, ela recebeu outros diversos
prêmios devido a suas obras e honras devido a Fundação “Isabel Allende”.

Paulo Coelho é um escritor brasileiro, ele nasceu no Rio de Janeiro, em 24 de agosto


de 1947. Antes de dedicar-se à literatura, trabalhou como diretor, ator de teatro, compositor e
jornalista. Em 1998, Paulo Coelho foi o escritor mais vendido no mundo. O autor já entrou
duas vezes para o Guinness Book. Em uma delas como autor que mais assinou livros em
edições diferentes e a outra pelo livro “O Alquimista” como o livro mais traduzido do mundo.

Partindo do pressuposto de que a tradução se constitui um meio de união entre os


povos e culturas, este trabalho resulta no estudo da tradução literária baseando-se na
desconstrução, uma vez que o tradutor recria o texto da língua de partida.

2. A TRADUÇÃO LITERÁRIA

A tradução literária é algo tão complexo quanto as outras áreas existentes dentro da
tradução. Isto ocorre desde a sua definição até as técnicas utilizadas para a sua realização.
(ALFA, v.35, p.1,1991), Uma das condições para uma tradução literária é o tradutor sentir-se
motivado por aquilo que está traduzindo; é sentir-se atraído pelo assunto, pela cultura, pelo
conteúdo e pelo tipo de línguagem. Isto é semelhante ao processo de criação, pois o tradutor
sente-se “livre” quando trabalha com um texto que gostaria de ter escrito, uma vez que a
tradução literária é um processo de recriação. (ALFA, v.35, p.4,1991)

Assim como o autor, ser criativo na hora de traduzir o texto é tão importante quanto,
assim como todo texto a ser traduzido e todo autor, há escolhas a serem feitas.

Vários fatores são fundamentais na avaliação da tradução: conhecimento do enredo


(assunto da história, origem geográfica e classe social), conhecimento do estilo do autor e a
forma como ele se expressa, aspectos temporais no texto (tempo) e avaliação do tipo de
linguagem usada. (GONÇALVES,1999, p.42)

É necessário avaliar tanto com as palavras usadas quanto com o que ele quer dizer,
sendo assim, o tradutor tem a responsabilidade de fazer um novo texto na língua de chegada
tão fluente quanto o texto da língua de partida. Conhecido como “coesão emocional” quando
o autor insistir no fator dialético, sendo ele manifestado como positivo ou negativo, emotivo

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contemporâneas

ou neutro. É necessário que o tradutor coloque a sua própria emoção no texto, levando em
consideração que o tradutor está reproduzindo um texto novo.

Ao mesmo tempo em que há estudos sobre ser “fiel” à obra, há outros estudos que
mostram, que se deve “adaptar” a obra para um público diferente, com a intenção de
influenciar a forma como é lida a obra, preocupando-se assim com o papel da tradução na
cultura da língua de chegada, pois a tradução abre caminhos, colocando uma cultura-fonte
para uma cultura-alvo.

Levando em consideração todos estes aspectos, a fidelidade da tradução literária em


relação ao texto de partida deixa de ser um objetivo e algo relevante na tradução, partindo do
pressuposto que não toda nova tradução é uma recriação do texto de partida.

(...) ainda que um tradutor conseguisse chegar a uma repetição total de um


determinado texto, sua tradução não recuperaria nunca a totalidade do
"original"; revelaria, inevitavelmente, uma leitura, uma interpretação desse
texto que, por sua vez, será, sempre, apenas lido e interpretado, e nunca
totalmente decifrado ou controlado (ARROJO, cap.2, p. 22).

Rosemary Arrojo mostra que há interpretações intermináveis sobre o texto, por mais
que quisessemos “proteger” o significado do texto, nunca teremos o controle das
interpretções, das leituras, das visões que cada pessoa terá do texto.

Tendo em vista que para a realização de uma tradução literária, como já comentada
anteriormente e levando em consideração a reflexão do trecho acima, o conhecimento sobre
literatura, o conhecimento do assunto abordado, o conhecimento sobre o autor é de extrema
importância.

3. A DESCONSTRUÇÃO

Durante a expansão da literatura sobre a tradução, muitos estudos tiveram como base
o estruturalismo da linguagem, foram examinados os processos da tradução, tentando
estabelecer métodos e descrevendo dados, comparando a tradução com o texto original.

Com a abordagem pós-estruturalista, surgiu a vertente chamada desconstrução,


proposta por Jacques Derrida, que segundo Rosemary Arrojo:

A desconstrução se torna uma poderosa arma, um instrumento de


capacidade inesgotável, que serve para perfurar um texto até as suas
entranhas e explora-las a fim de desenterrar aquele “ponto cego” que o
autor nunca viu e nem quis ver, e que o texto procura, na medida do
possível, acobertar para que ninguém veja (2003, p.26)

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A desconstrução é livre de qualquer tipo de limitação, sendo assim ela é uma


interpretação e não um fato em si ou uma realidade. Ela não possui uma teoria, não define
regras e não tem um método. Não se pode denominar a desconstrução como uma teoria
construída. (SILVA, 2005, p.16)

Para a desconstrução, a verdade não existe, porém ela é criada pelo sujeito; o texto
não é estável e não guarda significados construídos pelo leitor. Baseando-se nas reflexões da
desconstrução, não é possível resgatar o significado do texto original e transporta-lo para uma
língua de chegada, partindo do principio que cada sujeito entenderá o texto de um jeito
diferente e nem sempre o entendimento é o mesmo que aquilo que se quer dizer. Sendo assim
o tradutor não precisa mais se preocupar em ser fiel ou correto a tradução. (SILVA, 2005, p.
17)

Na visão de Jacques Derrida, aquele significado que o autor do texto criou, deixa de
existir, a partir do momento que o texto expressa vários significados, sendo assim o texto
possui convenções variadas e seus próprios códigos.

Assim a desconstrução procura o sujeito para a produção do próprio sentido, não


causa a “morte” do autor, porém, desfaz, desmonta todo o significado, assim atribuído a ele.

O sujeito constrói e interpreta o sentido de acordo com contextos culturas,


ideológicos, sociais, etc., onde as experiências assim vividas pelo sujeito são
inconscientemente levadas ao seu conhecimento de mundo e às experiências, sendo ela uma
verdade absoluta para o sujeito, uma vez que tanto o autor como o tradutor não tem controle
absoluto daquilo que foi produzido, sendo assim, não são responsáveis nem pelo sentido e
nem pela verdade do texto.

De acordo com Paulo César Duque Estrada (Coordenador Central de Pós Graduação e
Pesquisa – PUC-Rio) “A desconstrução trata-se, antes, de um trabalho de pensamento que
procura investigar os limites de toda teorização e, portanto, de toda pretensão de totalização
que se encontra operante em um discurso.”

4. METODOLOGIA

O método utiliza neste estudo foi através da revisão bibliográfica. Os matérias


utilizados foram constituídos de artigos acadêmicos , livros e revista com textos sobre a área
trabalhada.

A proposta do trabalho inicialmente era somente aprofundar-se no tema


“desconstrução”, tendo em vista que é um assunto atual na área da tradução e muito
discutido. Porém, em seguida, surgiu a ideia de trabalhar com obras literário paralelo a
desconstrução, assim para ampliar as pesquisas tanto no tema abordado quanto na tradução

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literária. Com o tema decidido, o trabalho foi iniciado através de pesquisas sobre as obras a
serem utilizadas. Durante o processo, houve dificuldade para achar obras brasileiras
traduzidas para o espanhol, pois poucas obras brasileiras de autores brasileiros como Paulo
Coelho, são traduzidas para outros idiomas. Ao perceber algumas dificuldades para a escolha
das obras, foi decidido trabalhar com autores renomados, tanto no Brasil como em outros
países. Decidiu-se então, que trabalhar com “O Alquimista” de Paulo Coelho e “O Amante
Japonês” de Isabel Allende, levando em consideração que os autores trabalhados devem ser
contemporâneos.

Uma vez decidido quais obras utilizar, foram coletados criteriosamente alguns textos
como referência sobre o tema desconstrução, tradução literária e textos que abordavam a vida
dos autores escolhidos. O controle dos textos coletados foi feito através de uma planilha,
assim para não correr a coleta de textos repetidos.

Inicialmente, foram coletados artigos acadêmicos sobre o tema desconstrução e


tradução literária de diversas fontes confiáveis, além disso, foram escolhidas obras onde o
tema desconstrução e a tradução é abordado mais profundamente. Não foi definido um
período exato de publicação dos textos e das obras, pelo fato de a área da tradução em si ser
bem abrangente.

Após a coleta dos textos, o trabalho foi iniciado e as ideias foram surgindo no
decorrer do dos dias. Houve organização do tempo para a realização do trabalho, tendo em
vista que as pesquisas e as ideias colocadas aqui foram cuidadosamente selecionadas e
demandavam tempo. O trabalho foi finalizado de acordo com o propósito de mostrar a
desconstrução dentro da tradução literária.

5. AS OBRAS ANALISADAS

5.1. O Amante Japonês de Isabel Allende

A história desenvolve-se a partir da chegada de Irina, uma jovem que vai trabalhar
em uma casa de repouso. Nesta casa de repouso, Irina conhece a Alma, uma senhora de mais
de 70 anos que mora na casa de repouso e então elas viram grandes amigas.

Irina, então conhece o neto da Alma. Ambos percebem que Alma recebe várias cartas
e alguns presentes que indica que ela tem um romance com uma pessoa misteriosa. Após
Irina e o neto de Alma investigar, eles percebem que o romance de Alma não é algo recente,
mas é algo que vem estendendo-se já há anos, desde a infância de Alma. Então, vem a tona
para o presente a paixão secreta de Alma e Ichimei. Aos poucos, eles vão tentando entender o
que aconteceu na vida e no passado de Alma.

A história oscila, em vários momentos, entre o presente e o retorno ao passado.

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Quando a história volta ao passado, a autora retrata cenários da Segunda Guerra Mundial, da
ocupação nazista na Polônia, a autora narra sobre preconceitos, sobre acontecimentos
históricos. Neste período, no passado, foi uma fase decisiva na história, pois Alma quando era
criança conheceu Ichimei, o filho do jardineiro da família e por conta da Segunda Guerra e do
ataque de Pearl Harbor, eles tiveram que se separar.

Isabel traz aspectos positivos e negativos dos personagens, ela permitiu que o leitor
compreendesse o perfil de cada personagem. Ao mesmo tempo a autora mostra que na vida,
as pessoas também têm estes pontos positivos e negativos. A história aborda a identidade dos
personagens, o abandono, o amor, o destino das pessoas, aborda fatos históricos e mostra
como estes fatos podem mudar a vida e o destino de muitas pessoas.

5.2. O Alquimista de Paulo Coelho

O alquimista é uma das mais importantes obras literárias do século XX, publicada em
1988 chegou ao primeiro lugar na lista dos mais vendidos em 18 países. Foi traduzida para 80
idiomas, editada em mais de 170 países e teve 210 milhões de exemplares no mundo.

O Alquimista foi publicado em 1988 e até hoje é o livro brasileiro mais vendido. Foi
uma das obras literárias mais importantes do século XX. A obra teve sucesso no mercado
internacional e elogiado por pessoas do mundo inteiro.

Nesta obra, Paulo Coelho da liberdade para pensarmos em assuntos que são
abordados na obra e fazem parte da vida como a sorte, a coincidência, a fé, o destino, os
sinais de Deus, etc.

A obra trata-se sobre Santiago, um pastor de ovelhas que começa a ter o mesmo sonho
repetidamente, por várias noites. O sonho dizia que havia um tesouro escondido nas
pirâmides do Egito e ele precisava ir atrás deste tesouro. Santiago enxerga este sonho como
algo especial. Ele sente que há algum motivo para este sonho e ele sente que ele precisa saber
o motivo de estar sonhando a mesma coisa todas as noites. A partir daquele momento, e este
sonho “define” o que será a vida dele.

Santiago encontra uma cigana, porém ela não consegue ajuda-lo totalmente, como ele
queria, porém ela oferece uma pista de como ele pode começar a descobrir o que aquele
sonho significa. Santiago encontra um homem que diz-se ser “Rei de Salem” e ele tenta
provar para Santiago que ele é confiável e que ele está dizendo a verdade (e ele consegue de
certa forma provar isso). Este Rei diz que ele devia seguir os seus sonhos.

A partir disto, Santiago percebe que tudo isso é somente o começo de uma longa
jornada.

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Então, Santiago saiu da Espanha e foi para a África, onde ele precisava atravessar o
Deserto do Saara. Durante este trajeto, Santiago conheceu várias pessoas, fez amigos,
apaixonou-se, foi roubado e aprendeu sobre muitas coisas.

Santiago, em um momento da história, começou a trabalhar em uma loja de cristais e


o dono desta loja tem um sonho de ir à Meca, O dono explica que ele não vai atrás de seu
sonho, pois ele tem medo de alcança-lo e depois não ter outros para realizar durante a vida.
Por conta disso, Santiago pensa em desistir dos seus sonhos.

Depois de algum tempo, Santiago começa a ter o mesmo sonho outra vez e ele resolve
não desistir de ir atrás de seu sonho. Ele passa por várias situações, por emoções, guerras e
depois ele consegue chegar no lugar que ele precisava.

Quando Santiago chega ao local, ele percebe que o tesouro de seu sonho não era real e
o tesouro físico não estava ali, mas estava em outro lugar e ele vai atrás deste outro tesouro,
pois Santiago quer ficar rico.

O livro aborda vários assuntos envolvendo a sorte, a fé, o destino, os sinais de Deus, a
razão da vida, os sonhos. A obra mostra que não devemos desmerecer os sonhos das pessoas
e nem os nossos sonhos.

Santiago mostra na história que se sabemos o que queremos na vida, nós devemos ir
atrás, devemos ir além para alcançar aquele sonho ou aquilo que desejamos, seja naquele
momento ou no futuro.

6. A N Á L I S E D A S T R A D U Ç Õ E S D A S O B R A S A PA R T I R D A
DESCONSTRUÇÃO

6.1. Análise da tradução da obra “O Amante Japonês”

Texto de partida:

Al día siguiente a primera hora, Irina se presentó al empleo con sus


mejores vaqueros y una camiseta discreta. Comprobó que el ambiente
de Lark House era relajado sin caer en la negligencia; parecía un
colegio universitario más que un asilo de ancianos. La comida
equivalía a la de cualquier restaurante respetable de California:
orgánica dentro de lo posible. El servicio era eficiente y el de cuidado
y enfermería era todo lo amable que se puede esperar en estos casos.
En pocos días se aprendió los nombres y manías de sus colegas y de
los residentes a su cargo. Las frases en español y francés que pudo
memorizar le sirvieron para ganarse el aprecio del personal,

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proveniente casi exclusivamente de México, Guatemala y Haití. El


salario no era muy elevado para el duro trabajo que hacían, pero muy
pocos ponían mala cara. “A las abuelitas hay que mimarlas, pero sin
faltarles el respeto. Lo mismo a los abuelitos, pero a ellos no hay que
darles mucha confianza, porque se portan malucos”, le recomendó
Lupita Farías, una chaparrita con cara de escultura olmeca, jefa del
equipo de limpieza.

Texto de chegada:

No dia seguinte, na primeira hora, Irina se apresentou no emprego


com sua melhor calça jeans e uma camisa discreta. Comprovou que
o ambiente de Lark House era descontraído sem cair na negligência;
parecisa colégico universitátio, mais do que asilo de ansiãos. A
comida equivalia à de qualquer restaurante respeitável da Califórnia:
orgânica dentro do possível. O serviço doméstico era eficiente e o de
cuidados e enfermagem era tão amável quanto se pode esperar nesses
casos. Em poucos dias, ela aprendeu os nomes e as manias de seus
colegas e dos residentes a sey cargo. As frases em espanhol e francês
que conseguiu memorizar lhe foram úteis para ganhar o apreço do
pessoal de serviço, provveniente quase exclusivamente do México, da
Guatemala e do Haiti. O pagamento que recebiam não era muito para
o trabalho dduro que faziam, mas pouquíssimos andavam de cara
feia. “Temos que mimar as vovozinhas, mas sem lhes faltas com o
respeito. O mesmo com os vovozinhos, mas a eles não convém dar
muita trela, porque ficam abusados”, recomendou-lhe Lupita Farías,
uma gorducha baxinha com cara de estátua olmeca, chefe da equipe
de limpeza.

Observa-se que o trecho traduzido acima, pela Joana Angélica d’Avila Melo, em
primeiro lugar, chama atenção para as características descritas na história, então: “Irina se
apresentou no empego com a sua melhor calça jeans e uma camisa discreta”. Partindo do
príncipio, que cada leitor terá uma visão diferente da cena descrita, Irina seria interpretada ou
imaginada de formas diferentes (alta, baixa, magra, ruiva, morena). O ao ler o trecho,
incoscientement imagina a cena e as caracteristicas.

Quando no trecho é citado Lark House (casa de cotovia), como é representado na


história, pode-se ter várias interpretação, logo, quando é citado “Lark House”,
incoscientemente podemos imaginar a casa de maneiras diferentes.

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O resíduo, como foi visto, enfoca os fatores sociais que se relacionam


ao sujeito-tradutor, como o contexto, os valores predominantes na
sociedade em que o indivíduo se insere, sua situação econômica, sua
cultura, entre outros. Já a singularidade analisa a influência
determinante do inconsciente do tradutor na forma como ele interpreta
o texto original e nas escolhas que ele realiza ao escrever uma
tradução. (SILVA, 2005, p. 133/134)

Considerando o trecho acima, é analisado os residuos e a singularidade da tradução,


onde observa-se a singularidade do tradutor no texto da língua de chegada, devido aos fatores
sociais relacionados ao tradutor, nota-se as escolhas feitas e a interpretação do texto de
partida na hora da tradução.

Pôde-se notar semelhanças nas palavras do texto de partida para o texto de chegada,
porém mesmo com esta semelhanças podemos interpretar, ler e analisar o trecho de uma
forma diferente que a autora do texto de partida quis mostrar para o leitor.

6.2. Análise da tradução da obra “O Alquimista”

Analisando a tradução do trecho a seguir da obra de Paulo Coelho “El Alquimista” com o
texto original:

Texto de partida:

“Não sei como buscam Deus no seminário”, pensou, enquanto olhava


o sol que nascia. Sempre que possível, buscava um caminho diferente
para andar. Nunca havia estado naquela igreja antes, apesar de haver
passado tantas vezes por ali. O mundo era grande e inesgotável, e se
ele deixasse que as ovelhas o guiassem apenas um pouquinho, ia
terminar descobrindo mais coisas interessantes. “O problema é que
elas não se dão conta de que estão fazendo caminhos novos cada dia.
Não percebem que os pastos mudaram, que as estações são diferentes
– porque estão apenas ocupadas com água e comida.”

Texto de chegada:

“No entiendo cómo buscan a Dios en el seminario”, pensó mientras


miraba el sol que nacía. Siempre que le era posible buscaba un
caminho diferente para recorrer. Nunca había estado en aquella iglesia
antes, a pesar de haber pasado tantas veces por allí. El mundo era

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grande e inagotable, y si él dejara que las ovejas le guiaran apenas un


poquito, iba a terminar descubriendo más cosas interesantes. “El
problema es que ellas no se dan cuenta de que están haciendo caminos
nuevos cada día. No perciben que los pastos cambian, que las
estaciones son diferentes, porque sólo están preocupadas por el agua y
la comida.”

Pôde-se notar em um primeiro momento, que há somente um sentido nas palavras


usadas pela tradutora espanhola Montserrat Mira. Porém partindo do fato que dentro do texto
há um contexto cujas palavras conversam entre si, o trecho é interpretado como um todo.

Quando este trecho é levado para um leitor diferente, consequentemente, o texto e o


sentido são interpretados de uma maneira diferente.

No trecho citado, considerando-se que mesmo a religião (catolicismo) é universal,


“Deus” tem significados e importâncias diferentes para cada cultura, para cada país. Dentro
desta reflexão feita por Santiago na história “No entendo como buscan a Dios el seminário”,
a interpretação tanto do contexto do texto original quanto o contexto da tradução podem ser
diferentes, mesmo que as palavras sejam parecidas.

No trecho Montserrat traduziu a palavra “andar” por recorrer que no espanhol


significa “passear”, no entando dentro do contexto do texto e do trecho, a palavra encaixou-se
bem, levando em consideração que na história Santiago não está somente “andando”, porém
ele também está “correndo atrás em busca do seu sonho. Podemos interpretar de várias
maneiras, por exemplo que ele não está somente andando, porém ao mesmo tempo que está
atrás de algo, ele está “passeando”, conhecendo os lugares e as pessoas, uma vez também,
como mostra no trecho que ele nunca havia estado ali.

No trecho do texto original comparado com o texto traduzido pela Montserrat Mira,
não houve mudanças dos “significados das palavras”, interpretadas individualmente, porém ,
tanto dentro do trecho selecionado quanto na história toda, inconscientemente, o texto e a
história é interpretada de jeitos e maneiras diferente. A ovelha por exemplo, tem um
significado relioso grande para pessoas que “praticam e acreditam” no catolicismo, sendo
assim, dentro da história ela teria um significado e uma importancia maior e diferente para
este leitor.

Como citado anteriormente na resenha da história, os assuntos abordados na obra


(sorte, a fé, o destino, os sinais de Deus, a razão da vida, os sonhos) tem significados e
interpretações diferentes, fazendo com que o leitor tenha uma visão ou várias visões
diferentes do contexto da obra e o que a obra quer transmitir e/ou ensinar.

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7. CONCLUSÃO

A tradução, tanto literária quanto em outras áreas, ainda é vista como algo mecânico
e objetivo. No entanto, ela não é um processo mecânico de “transporte”, onde pegamos o
texto da língua de partida e transportamos para a língua de chegada exatamente como ele (o
texto) está. A tradução não é algo estático, ela está sempre em constante mudança, como foi
visto. Além de ser criativo, todo texto é recriado pelo tradutor; devido as diferentes leituras,
interpretações do texto, sendo assim, impossível manter o significado daquilo que foi dito e
escrito, pois cada pessoa carrega uma “bagagem de conhecimento” e experiência de vida
diferente. Vimos que a relevância das diferentes leituras torna-se mais importante do que o
texto original, sendo que toda nova tradução é um novo texto, um texto que foi recriado pelo
tradutor conforme o seu conhecimento de mundo, conforme sua “bagagem” cultural e de
vida, ideologias e sociais. Porém o conhecimento sobre o assunto abordado também é
relevante para a realização da tradução.

A desconstrução é algo livre de limitações e de teorias. Partindo do princípio que cada


sujeito tem um jeito diferente de entender, interpretar e ler o texto, o sujeito não entenderá a
mesma coisa que o texto de partida quis transmitir. Não é possível manter o texto preso em
uma determinada época, conforme as crenças, as culturas mudam, o texto automaticamente
passa a ser outro. Sendo assim, o tradutor não tem controle do que foi produzido no texto de
chegada, e assim não sendo responsáveis pelo sentido.

Analisando as obras, foi perceptível que cada sujeito tem uma interpretação diferente
do que está escrito. Foi relacionado a prática de tradução literária à desconstrução, mostrando
assim que a teoria e a prática estão ligadas e assim não podem ser separadas e nem pensadas
individualmente.

8. Referências

A HISTÓRIA e biografia de Paulo Coelho. Disponível em: < http://


biografia.ahistoria.com.br/paulo-coelho/>. Acesso em: 16 jul. 2016
ALLENDE, Isabel. O Amante Japonês. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2016. 289 p.
Joana Angélica d'Avila Melo.
______. El Amante Japonés. Plaza Janés, 2015. 320 p.
ANTUNES, Benedito. Notas sobre a tradução literária. 1991. Disponível em:
<seer.fclar.unesp.br/alfa/article/>. Acesso em: 30 mai. 2016
ARROJO, Rosemary (Org.). O Signo Desconstruído: Implicações para a tradução, a leitura e
o ensino. 2. ed. Campinas: Pontes, 2003. 121 p.
______. Oficina de tradução: A teoria e na prática. 5. ed. São Paulo: Ática, 2007.

!383
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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BENEDETTI, Ivone C.; SOBRAL, Adail (Org.). Conversas com tradutores: balanços e
perspectivas da tradução. São Paulo: Parábola, 2003. 214 p.
BIOGRAFIA. Disponível em: http://www.academia.org.br/academicos/paulo-coelho/
biografia Acesso em: 16 jul. 2016
CARVALHAL, Tania Franco. A tradução literária. Disponível em: http://www.seer.ufrgs.br/
%20organon/%20article/%20viewFile/%2039381/25174>. Acesso em: 30 mai. 2016
CARVALHO, Marcos Luz de. Disponível em: <http://dospalabras.com.br/vida-e-obra-de-
isabel-allende/>. Acesso em: 16 jul. 2016
COELHO, Paulo. El Alquimista. Barcelona: Editorial Planeta, 2007. 257 p. Montserrat Mira.
COELHO, Paulo. O Alquimista. Rio de Janeiro: Sextante, 2012. 171 p.
GONÇALVES, Lourdes Bernardes. Avaliando a tradução literária. 1999. Disponível em:
<http://www.revistadeletras.ufc.br/rl21Art06.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2016
ISABEL Allende. Disponível em: < http://www.isabelallende.com/>. Acesso em: 16 jul. 2016
LIMA, Erica; SISCAR,Marcos. O decálago de desconstrução: Tradução e desconstrução na
obra de Jacques Derrida. 2000. Disponível em: < http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/view/
4282/3871>. Acesso em: 15 mai. 2016
MENESES, Ramiro Délio Borges de. A desconstrução em Jacques Derrida: O que é e o que
não é pela estratégia. 2013. Disponível em: <http://www.scielo.org.co/pdf/unph/v30n60/
v30n60a09.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2016
PEDROSO JUNIOR, Neurivaldo Campos. Jacques Derrida e a Desconstrução: Uma
introdução. Disponível em: < http://www.encontrosdevista.com.br/Artigos/
Neurivaldo_Junior_Derrida_e_a_desconstrucao_uma_introducao_final.pdf> Acesso em: 15
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SILVA, Patrícia Mara da. O senhor dos anéis – A tradutora na obra traduzida. 2005.
Disponível em: < http://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/93908/
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VASCONCELOS, José Antonio. O que é a desconstrução? 2003. Disponível em: < http://
www2.pucpr.br/reol/index.php/RF?dd1=117&dd99=pdf>. Acesso em: 15 mai. 2016

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Português como Língua


Estrangeira

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A arte como instrumento no processo de ensino-aprendizagem do


Português do Brasil como Segunda Língua

Amandla Gandhi
Universidade de Brasília
amandlagandhi@gmail.com

O projeto tende a explorar as variadas vertentes artísticas através de atividades que


estimulem o processo de ensino-aprendizagem do Português do Brasil como Segunda Língua.
As oficinas e as atividades propostas visam aproximar os alunos ao contexto real de uso da
língua, dando-lhes um espaço acolhedor e descontraído para praticar a fala e a escrita,
servindo de suporte e complemento diversificado para atingir a fluência desejada na língua-
alvo.

Pensando no fato de que a maioria dos processos elaborados para o ensino de línguas
são pautados apenas sob o básico necessário e obrigatório para adquirir uma segunda língua
(ou uma língua adicional) e não são, muitas vezes, explorados para as diversas áreas que os
alunos já tiveram contato na escola ou na universidade e ao longo da vida. Sintaxe,
morfologia, acentuação, pontuação, semântica, fonética, fonologia e ortografia fazem parte
do pacote que serve como base para o aluno aprender como é estruturada a Língua
Portuguesa e assim, começar a adquirir elementos da fala e da escrita, desse modo, o Projeto
ingressa como mediador e complemento diferenciado para inserção dos aprendizes no
cotidiano e na cultura brasileira.

A proposta de ensinar e aprender através de diversas manifestações da Arte é uma


forma de expandir os conhecimentos, tanto do aprendiz quanto do educador, pois a Arte
também é uma forma de linguagem e comunicação. Através da literatura, música, teatro,
dança, moda, pintura, circo, fotografia, cinema, design, audiovisual, entre outros; ensinando o
Português do Brasil e ao mesmo tempo apresentando e fazendo os alunos vivenciarem os
aspectos culturais/históricos/políticos/sociais presentes no país, e assim, introduzir as
atividades artísticas pretendidas, como por exemplo: oficinas teatrais e de artes plásticas,
confecção de curtas; música popular brasileira; literatura brasileira; fotografia; danças e
manifestações culturais típicas de cada região do país, o Brasil e as mídias sociais, entre
outros, que possam agregar e enriquecer a aquisição do Português do Brasil como Segunda
Língua e inserir o aluno de maneira mais fidedigna ao contexto do nosso país.

Referências

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

PACHECO, José. PACHECO, Maria de Fátima. Escola da Ponte: Uma escola pública em
d e b a t e . 2 0 0 4 . D i s p o n í v e l e m : h t t p : / / u r a n t i a g a i a . o rg / e d u c a c i o n a l / e s c o l a /
escola_ponte_sob_multiplos_olhares.pdf Acesso em: 15 de setembro de 2014.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade [recurso eletrônico] / Paulo Freire. 1.
ed. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos/Paulo Freire. 14. ed. rev.
atual - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

Multiletramentos nos livros didáticos de Português Língua Adicional:


análise da página de abertura das unidades

Ana Paula Andrade Duarte


Universidade Federal de Minas Gerais141

Resumo: no presente estudo, reconhece-se a influência do livro didático (doravante LD) no


processo de ensino/aprendizagem de línguas (DINIZ et al 2009) e faz-se uma análise crítica,
nos livros didáticos de Português Língua Adicional, dos multiletramentos, envolvendo suas
duas dimensões: a multiculturalidade e a multimodalidade. Orientada por questões como 1) a
existência ou não da multimodalidade nas páginas de abertura das unidades do livro Viva!
Volume 1 e 2) qual é a relação entre o visual e o verbal; objetiva-se uma classificação dos
elementos multimodais, de acordo com a proposta de Barros (2009). Acredita-se que a
presença de textos multimodais contribui para que o aluno atue efetivamente como designer,
como propõe a teoria de Kress (2006), fazendo leituras de textos inovadores que, de acordo
com a teoria de Mattos (2011), possivelmente, antes teriam sido escritos de forma tradicional.

1 CONTEXTUALIZAÇÃO

Desde a década de 80, tem-se falado no Brasil, na França, em Portugal e em outros


países sobre letramento, termo utilizado para referir-se a, como destaca Soares (1998), há
práticas que são resultados de aprender o sistema escrita, mas há práticas que, sendo sociais,
ultrapassam as práticas do ler e do escrever, inclusive em complexidade.

141
Mestranda em Línguística Aplicada ao Ensino de Línguas Estrangeiras pela UFMG.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Estudos mais recentes, como o de Cope and Kalantzis (2013) propõem a evolução
para o termo multiletramentos, que envolvem tanto a multiculturalidade como a
multimodalidade:

The term multiliteracies refers to two major aspects of communication and


representation today. The first is the variability of conventions of meaning in
different cultural, social or domain-specific situations. (…) The second
aspect of language use highlighted by the idea of multiliteracies is
multimodality. Multimodality arises as a significant issue today in part as a
result of the characteristics of the new information and communications
media. (…) In today’s learning environments, we need to supplement
traditional reading and writing with these multimodal representations, and
particularly those typical of the new, digital media. (p.1)

É com foco neste último segmento, a multimodalidade, que se dará o


desenvolvimento desse trabalho. A questão da multiculturalidade será levada em
consideração no momento de analisar o objeto deste estudo.

Em uma busca no banco de teses da CAPES 142, com a palavra-chave


multimodalidade, é possível encontrar 64 trabalhos. Ao usar a palavra-chave língua
adicional, são identificadas 19 produções divididas em diferentes línguas. Ao pesquisar por
livro didático são encontradas 390 pesquisas. Ao buscar livro didático de língua estrangeira,
aparecem 39 trabalhos. Ao buscar multimodalidade em livros didáticos de língua estrangeira,
identifica-se apenas uma pesquisa, sendo esta desenvolvida com livros didáticos de língua
inglesa e não em língua portuguesa. Esses dados evidenciam que a pesquisa de elementos
multimodais nos livros didáticos de português como língua adicional é ainda inédita e,
portanto, um campo a ser explorado.

O português brasileiro passou a ser uma língua muito estudada por estrangeiros
oriundos de todas as partes do mundo, devido à expansão da visibilidade que o Brasil possui
e graças às motivações das políticas linguísticas, como a oficialização e a internacionalização
do Exame Celpe-Bras143. Isso faz com que a variante brasileira da Língua Portuguesa seja
alvo de estudo também de pesquisadores e linguistas.

142 O banco de teses da CAPES disponibiliza trabalhos apresentados a partir de 2010. O acesso pode ser feito
pelo endereço eletrônico <http://bancodeteses.capes.gov.br/>. A consulta foi realizada em 2/7/2015.

143 No site do INEP, órgão responsável pela aplicação do Celpe-Bras, encontra-se a seguinte descrição: “O Cel -
pe-Bras é um Exame que possibilita a Certificação de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros.
Desenvolvido e outorgado pelo Ministério da Educação (MEC), aplicado no Brasil e em outros países com o
apoio do Ministério das Relações Exteriores (MRE) é o único certificado de proficiência em português como
língua estrangeira reconhecido oficialmente pelo governo do Brasil. Internacionalmente, é aceito em empresas e
instituições de ensino como comprovação de competência na língua portuguesa e no Brasil é exigido pelas uni-
versidades para ingresso em cursos de graduação e em programas de pós-graduação, bem como para validação
de diplomas de profissionais estrangeiros que pretendem trabalhar no país.”

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Nessa perspectiva, voltou-se o olhar para o Português como Língua


Adicional. De acordo com Dell’Isola,

Língua adicional refere-se ao idioma que está sendo aprendido e vivenciado,


de maneira positiva, pelo aprendiz que é agente de linguagem. Essa língua
não se situa hierarquicamente como primeira ou segunda língua estrangeira
que está sendo alvo de aprendizagem. A língua adicional é a de uso a serviço
de um grupo de indivíduos que têm interesse em interagir e, para isso,
constroem práticas de interação já constituídas em uma sociedade. (2012, p.
61)

Boa parte dos estudos de Português Língua Adicional recai sobre o processo de ensino
e aprendizagem e, consequentemente, sobre o livro didático, já que esse é um grande aliado
do professor e do aluno. De acordo com Diniz et al (2009),

O processo de ensino/aprendizagem de línguas – materna e estrangeira – tem


sido, de uma maneira ou de outra, fortemente influenciado pelo livro
didático (doravante LD). Em alguns casos - para não se dizer na maioria –
ele é o elemento central do curso (p.265).

Na experiência como professora e utilização dos livros didáticos de PLA, percebemos


que são apresentados muitos textos multimodais nestes livros. Dessa maneira, o objetivo
deste estudo é analisar quais elementos multimodais são apresentados e como são explorados,
propondo novas maneiras de se utilizar textos e recursos multimodais, o que levaria o aluno
ao desenvolvimento das competências - produção e compreensão orais e escritas - necessárias
ao bom desempenho de um indivíduo em uma língua e à sua atuação em práticas sociais.

A multimodalidade, segundo Kress e van Leeuwen (2006) e Dias (2012), é uma


qualidade de todos os gêneros textuais, uma vez que eles sempre reúnem, como mínimo, dois
modos de representação, como imagens e palavras ou palavras e tipografias. Corrobora essa
definição, a afirmação de Dionísio (2006, p. 161-162), segundo a qual “na sociedade
contemporânea, a prática de letramento da escrita, do signo verbal, deve ser incorporada à
prática de letramento da imagem, do signo visual”. Segundo esta autora, a multimodalidade é
característica tanto do discurso oral, quanto do escrito, que tem, cada vez mais, apresentado
“arranjos não-padrões”, graças ao desenvolvimento tecnológico, que exige dos leitores
adaptações em seus modos habituais de ler.

Constata-se que ainda não foi investigada a relação entre os elementos multimodais
presentes nos livros didáticos de português como língua adicional e, sobretudo, que esse é um
tema pertinente de pesquisa, uma vez que traz grande contribuição ao professor e também ao
aluno.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

2 METODOLOGIA

Após delimitação da multimodalidade como tema de pesquisa, selecionamos um livro


didático de Português Língua Adicional circulante no mercado atual: Viva! - Língua
Portuguesa para estrangeiros, de Claudio Romanichen. O critério de seleção foi a pouca
utilização desse livro pelos professores com os quais trabalhamos e, diante disso, a
possibilidade de apresentá-lo a mais profissionais do meio. O livro em questão é
comercializado em quatro volumes, sendo possível sua compra de forma individual.

Optamos por analisar a página de abertura das oito unidades do volume 1 (em anexo).
Na análise, consideramos tanto os elementos visuais quanto os verbais, procurando
estabelecer uma relação entre eles. Primeiro, analisamos as imagens, procurando extrair
significado delas. Em seguida, analisamos o texto verbal. Por fim, fizemos a relação entre os
dois.

Para auxiliar, utilizamos as estratégias de observação da multimodalidade, propostas


por Barros (2009), e observamos de que maneira esses elementos colaboram para a
participação do aluno como designer, de acordo com Kress (2006).
Além disso, foram consideradas as observações feitas por um aluno japonês, de nível
intermediário, cuja identidade, por questões éticas, será preservada. Ao referimo-nos a ele,
utilizaremos a sigla SI, que representam as iniciais de seu nome.

3 O SUJEITO

O trabalho com a página de abertura das oito unidades do volume 1 do livro

Viva! Língua Portuguesa para Estrangeiros foi feito em aulas particulares com um
sujeito. Destinamos esta seção à explicação de quem é esse aluno e de em que condições
aconteceram a análise proposta.

Como destacado anteriormente, sempre que nos referirmos a ele, utilizaremos a sigla
SI, visando à preservação de sua identidade. SI é japonês e tem 26 anos. Ele está no Brasil a
trabalho e durante dois meses não terá atividades profissionais, somente estudará português.
Ainda que SI vá trabalhar no Brasil, não se pode enquadrar seu curso no grupo “português
para negócios”, pois no desempenho de suas funções, sempre que necessitar, terá um tradutor
à sua disposição. O objetivo das aulas, então, é fazer com que ele consiga comunicar-se no
dia-a-dia com as pessoas nos mais variados lugares e, assim, viver no país de forma
independente, sem precisar do auxílio de um tradutor ou de um nativo.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Nosso sujeito, diferentemente de muitos japoneses, é extrovertido, gosta muito de


conversar. Ele se interessa pela cultura brasileira de forma geral e, nas aulas, sempre nos dá
espaço para discutir sobre esses aspectos, relacionando-os aos da cultura japonesa, dos quais
gosta muito falar. Além disso, SI já morou nos Estados Unidos da América, quando ainda era
muito novo; na Espanha, fazendo intercâmbio de um ano durante a universidade; e na África
do Sul, também a trabalho. As mudanças ao longo de sua vida exigiram que ele convivesse
com outras culturas, obrigando-o a superar muitas barreiras culturais e talvez a língua tenha
sido a maior delas. Sua experiência com diversas culturas foi um fator determinante para que
fosse escolhido como sujeito desta pesquisa.

SI é considerado por nós como um aluno de nível intermediário. Sabemos que a


denominação “nível intermediário” ou “de proficiência intermediária” pode gerar confusões,
devido à sua amplitude. Por isso, explicamos. Scaramucci (2000) defende que não existe uma
proficiência absoluta. Segundo a autora, nem mesmo
os falantes nativos são capazes de realizar todas as ações possíveis em sua língua. Nesse
sentido, Scaramucci propõe que seja feita a seguinte pergunta: “proficiente para quê?”,
considerando a finalidade da situação de uso da língua em que o aprendiz está inserido. O
aluno tem ótima compreensão da língua portuguesa, que pode ser considerada avançada,
ainda que sofra uma influência positiva do seu domínio da língua espanhola. Vale destacar
que o sujeito está no Brasil há aproximadamente um mês e faz aproximadamente seis horas
de aula por dia, o que contribui para seu desenvolvimento acelerado na língua-alvo,
favorecido sobretudo por sua dedicação ao estudo.

A produção oral do aluno, por sua vez, pode ser considerada intermediária, visto que
ele ainda não consegue expressar em português tudo o que deseja. É importante destacar,
então, que muitas vezes o sujeito, para transmitir a mensagem que gostaria, fez uso de
dicionários, gesticulou ou recorreu a outra língua. Como nosso objetivo não era avaliar a sua
produção na língua portuguesa, e sim, captar qual é a interpretação que faz da página de
abertura das unidades apresentadas a ele, permitimos que ele se apoiasse nesses outros modos
de transmissão para transmitir sua mensagem e fizemos o máximo esforço para compreender
o que o aluno queria dizer.

4 ANÁLISE DA PÁGINA DE ABERTURA DE CADA UNIDADE

A análise da página de abertura de cada unidade do livro Viva! Língua Portuguesa


para Estrangeiros será desenvolvida na seguinte ordem: título, imagens, palavras e
perguntas. Salientamos que essa não foi uma decisão tomada por nós de forma arbitrária.
Kress (2015) salienta que a ordem em que a leitura é feita é uma convenção cultural e que,
assim, algumas culturas a fazem da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, em

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

linhas ou em colunas, de maneiras circulares ou lineares. Para o autor, o texto multimodal


tem questionado esses padrões culturais pré-estabelecidos, em termos de direcionalidade e
dos elementos que formam os pontos pelos quais traçamos o caminho de leitura (p.156 e
157). Sendo assim, por questões culturais, faremos a descrição dessa página de cima para
baixo, da esquerda para a direita.

Ainda que as páginas multimodais permitam ao aluno traçar o seu caminho de leitura,
optamos por permitir que o aluno visse o segundo elemento somente após analisar o
primeiro; o terceiro, após analisar o segundo; o quarto, após o terceiro, a fim de que o sentido
de um não se sobrepusesse a outro. Sabemos que isso pôde influenciar na construção de
sentido, mas foi uma escolha metodológica que objetivou a análise inicialmente individual
dos elementos e somente posteriormente coletiva.

A escolha do termo página de abertura foi feita com base no nome que Claudio
Romanichen, o autor da coleção, dá a cada seção do livro. Além disso, optamos pelo seu uso
no singular justamente para deixar claro que cada unidade possui somente uma página
introdutória. Nas primeiras páginas do livro, Romanichen explica a que se destina cada uma
das sete seções das unidades e o apêndice. O autor traz a seguinte definição para a página de
abertura: “Todas as unidades têm uma página de abertura que introduz o tema a ser
trabalhado. Ali são apresentadas informações para discutir diferenças e semelhanças entre o
Brasil e outros países”.

Percebe-se, na definição do autor, que ele não destaca o uso de elementos


multimodais, mas não deixa de lado os multiletramentos, uma vez que se refere a uma de
suas vertentes: o multiculturalismo. Como propõe Mendes (2004; 2011), no que diz respeito à
interculturalidade, língua e cultura são dimensões indissociáveis. Sendo assim, sempre que
utilizamos a língua, estamos praticando a cultura. E, consequentemente, para nos
expressarmos em uma cultura ou para refletir e falar sobre ela, usamos a língua.

Na análise de cada página de abertura, serão consideradas as duas perspectivas dos


multiletramentos: a multiculturalidade e a multimodalidade, dando-se mais ênfase a esta,
visto que é o foco dessa pesquisa. Serão apresentadas nossas observações de cada página e,
também, comentários feitos pelo sujeito, esclarecido no tópico 3.

Para iniciar a discussão da página de abertura com o sujeito, sempre perguntávamos


ao aluno o que o título sugeria. Por apresentar títulos breves, normalmente essa parte era bem
rápida e passávamos, então, para a conversa motivada pelas imagens, apresentando questões
como: o que cada uma sugere?, existe alguma relação entre elas?, e entre elas e o título?,
você acha que a escolha dessas imagens foi proposital?, qual possivelmente era o objetivo do
autor ao selecionar essas imagens e não outras?, existe algum tipo de preconceito veiculado?,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

etc. Quando percebíamos que o sujeito já não tinha mais o que falar e quando já não havia
mais perguntas a fazer sobre as imagens, indicávamos a leitura do texto verbal, normalmente
curto. Na explicação das páginas de forma individual, daremos mais informações sobre o
texto verbal apresentada em cada uma delas. Em seguida, discutíamos novas questões
propostas pelo texto verbal e pedíamos que o aluno estabelecesse uma relação entre os três
elementos - título, texto visual e texto verbal. Em algumas situações, após a análise do aluno,
fizemos algumas perguntas visando ao aprofundamento da discussão sobre temas em pauta na
atualidade, direcionando o pensamento do sujeito, mas sem limitar sua possibilidade de
resposta. Esses casos serão ressaltados na análise das páginas de forma individual.

Há na página de abertura, ainda, média de quatro perguntas referentes ao tema


proposto. Algumas vezes, essas perguntas aproveitam as imagens ou o texto verbal
apresentado. Outras, apenas direcionam uma discussão com o aluno, incentivando-o a falar
de si, de suas opiniões e vontades.

O título de cada seção terá o mesmo título dado à unidade, respeitando-se sua
sequência de apresentação. As cores dominantes na página de abertura e na unidade como um
todo são verde, alaranjada e azul. Ou seja, a unidade 1 é verde, a unidade 2 é alaranjada, a
unidade 3 é azul, e assim sucessivamente. Esse é um recurso que facilita, ao olhar o livro de
lado e ao folheá-lo, a identificação de a que unidade pertence cada página. Em todas as
páginas do livro, é colocado o número da página em algarismo e por extenso, o que
indiretamente faz com que o aluno trabalhe esse vocabulário

É importante destacar que a análise de todas as páginas de abertura não foi feita no
mesmo dia, visto que a aula não consistia apenas nisso. Em um dia, analisamos a unidade 1.
Em outro, as unidades 2, 3 e 4. Em mais uma aula, a unidade 5. Por fim, analisamos as
unidades 6, 7 e 8. Essa divisão foi feita de acordo com o rendimento do assunto proposto em
cada unidade e também do interesse que o sujeito demonstrava no dia por cada tema.

4.1 Brasil: primeiros contatos

A capa de abertura da unidade 1 apresenta cinco fotos que abrangem, da esquerda


para a direita, a bandeira nacional, a vegetação, uma índia, o carnaval e a seleção brasileira.

Em seguida, há uma apresentação do Brasil, em forma de um texto verbal intitulado


“Você Sabia?”, que envolve questões físicas - tamanho, fronteiras, climáticas e populacionais
- quantidade e formação.

Por fim, as perguntas apresentadas são: “O que mais você sabe sobre o

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Brasil?”; “Você já visitou o país alguma vez? Quais lugares?”; “Você conhece algum
brasileiro? Como são os brasileiros que você conhece?”; “Entre as coisas que você conhece,
do que você gosta no Brasil e nos brasileiros?”; “Por que você quer estudar português?”.

A análise feita pelo aluno em relação ao título foi proveitosa, visto que ele já
mencionou, sem ver as fotos, algumas das situações apresentadas nelas. Ele disse:

“festa, futebol, diversidade e floresta”. Como ele predisse o que as imagens trariam,
passamos logo para a análise das imagens.

Em relação às cinco imagens, o primeiro aspecto que chamou a atenção foi a ordem
em que SI começou a analisar as imagens: ele começou pela imagem da seleção brasileira.
Segundo ele, a seleção representa não somente o time de futebol, mas toda a nação.
Deixamos que ele fizesse todas as observações de todas as imagens e, então, perguntamos o
porquê de ter começado pela imagem do futebol, pensando que ele fosse responder que esse é
o aspecto mais representativo do Brasil. SI disse que começou pela foto do futebol, porque
esse é o assunto mais fácil para ele e porque é a maior foto, e, por isso, está em destaque.

A segunda foto analisada pelo sujeito foi a do carnaval. Ele, ao final das contas, fez
uma leitura das imagens da direita para a esquerda. A foto apresenta um sambódromo em
noite de desfile de carnaval. SI destacou que outro detalhe que chamou a atenção dele foi que
tanto a foto sobre o futebol quanto a foto do carnaval estão “em movimento”.

A terceira foto mostra uma índia, diante da qual SI falou da origem do povo brasileiro.
O sujeito também comentou que, em seus primeiros contatos ou ainda em seus
prejulgamentos do Brasil, ele pensava que aqui tinha mais índios e que nós podíamos vê-los
na rua. Depois de pouco tempo morando aqui ele já pôde perceber que não é bem assim.
Sobre a quarta foto, ele disse que, ainda que não mostrasse a floresta que ele estava
imaginando, é uma paisagem e, justamente por não ser o que a maioria das pessoas pensa,
representa a diversidade da qual ele havia falado logo no início, quando questionado pelo
significado do título.

Da quinta e última foto, a da bandeira, SI primeiro falou que a bandeira nacional é


claramente uma representação do país e que, para ele, também significa um “primeiro
contato”. O que ele questionou, nesse sentido, foi por que não foi apresentada a bandeira
completa, mas somente a parte em que aparece a palavra “progresso”. Segundo ele, o autor
poderia simplesmente ter reduzido a foto para que a bandeira aparecesse de maneira integral.
Diante de uma solução tão simples, questionamos, então, se o aparecimento de apenas
metade da frase não seria proposital e ele disse que talvez sim, talvez isso queira indicar que

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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no Brasil não há ordem. Quando perguntamos se há ordem, SI respondeu que “pouco a


pouco”.

De forma geral, no que se refere às imagens, o sujeito disse que as cores são
parecidas, especialmente o amarelo.

Em relação ao texto verbal, SI não demonstrou muito interesse, visto que da maioria
das informações ele já tinha conhecimento. Segundo ele, elas serviram apenas para “explicar”
as imagens.

As perguntas dessa página de abertura não foram tão aplicáveis ao sujeito, visto que
ele já mora no Brasil e já tem contato com muitos brasileiros. Inclusive, mora na casa de uma
família em que é tratado como um integrante verdadeiro, participando das refeições, das
festas e do dia-a-dia dela. Ele disse que quer conhecer ainda muitos lugares do Brasil e que o
que mais lhe impressiona nos brasileiros é a alegria com que levam a vida.

4.2 A hora é essa!

Antes de passar à análise da página de abertura em si, gostaríamos de abrir um


parênteses e mencionar que o título desta unidade nos remonta às recentes considerações de
Duboc (2014) sobre o lugar de valorização que o ensino de línguas ocupa atualmente no
Brasil e em outros países.

Uma análise das propostas curriculares em curso (nas diferentes esferas


federal, estadual e municipal) nos mostra essa valorização; outra evidência
constitui a recente inclusão das línguas estrangeiras nas políticas públicas do
livro didático, em particular, o Plano Nacional do Livro Didático” (p.210).

A autora nos lembra ainda que outro bom motivo para essa valorização do ensino de línguas
estrangeiras é o debate da inclusão da diversidade - social, étnico-racial, etária, de gênero e
orientação sexual, física - no currículo escolar.

Em outras palavras, um mundo tão globalizado em que temos agora acesso


às diferentes formas de ser, agir e pensar, a língua estrangeira passa a ser
uma das disciplinas mais relevantes na formação crítica e ética do aluno,
pois no processo de aprendizagem de uma língua, aprendemos junto com ela
aspectos identitários, culturais, sociais e ideológicos. (p.210)

SI não conhecia a expressão “a hora é essa!”. Para não induzir uma interpretação,
optamos por mostrar, logo, as imagens. Na página de abertura da unidade 2 há também cinco
fotos: o MASP - Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand; uma pessoa votando;
algumas pessoas brindando; uma mulher sozinha olhando para algum lugar; uma mulher

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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sorrindo e olhando em direção ao leitor, mas aparentemente para outra pessoa que aparece na
foto, de costas.

Após ver as imagens, o sujeito disse continuar sem entender o que significava a
expressão “A hora é essa!”. Então, explicamos que está relacionada a momentos importantes
na vida de uma pessoa, sendo ou não importantes coletivamente. Usamos também exemplos,
como o primeiro emprego ou a chance de conseguir um grande emprego. SI falou: “Agora
entendo as imagens”. Com essa simples frase, acreditamos que ele não sabia que estava
“explicando” a multimodalidade: diferentes modos semióticos para construir o sentido geral.

O sujeito passou a analisar cada imagem e a relacioná-la com o título. A primeira de


qual ele falou foi a foto que mostra a urna eletrônica. Segundo SI, esse é um momento
decisivo, que individualmente não faz diferença, mas que coletivamente “pode mudar uma
vida”, em suas palavras.

A segunda imagem analisada foi a do brinde. É possível perceber que são quatro
pessoas, pois há quatro copos, mas de duas só se vê as mãos. Os rostos mostrados são de duas
mulheres que estão bem felizes. SI disse que elas estão comemorando algum momento
importante.

A terceira foto sobre a qual o sujeito se debruçou foi a do Museu. Como o nome do
efifício está pouco legível, SI comentou que poderia ser uma Prefeitura ou até mesmo uma
Universidade, que têm a ver com o título. Quando solicitamos que ele tentasse ler o que
estava escrito na placa, ele descobriu que era um Museu e disse que também faz sentido se
relacionado ao título, pois, em suas palavras, “o Museu é a imagem da história”.

A penúltima foto analisada por SI foi a da mulher que está olhando para o horizonte,
com a cabeça um pouco mais empinada. Ele disse que ela provavelmente está pensando em
algo ou decidindo algo importante. Talvez ela vá fazer uma prova e e está em frente à
universidade (lembrando que não é possível ver para onde ela está olhando).

A última foto foi a da mulher sorrindo. SI disse que talvez ele seja o “homem da vida
dela” e eles ainda estão se conhecendo ou ela ainda não se deu conta disso. Aparentemente, a
mulher não está olhando para o homem. Segundo o sujeito, intencionalmente, na foto, há
duas pessoas e elas estão na mesma “roda”, no mesmo grupo, o que sugere que há uma
relação entre elas, ainda que não seja direta.

Pedimos que ele relacionasse a imagem da mulher olhando para não sabemos onde
com a do Museu e ele disse que talvez ela queira trabalhar lá e está lá em frente para fazer
uma entrevista.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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De forma geral, SI afirmou: “Possivelmente, todos os momentos da vida são


importantes. Tem momentos mais importantes e menos importantes, mas todos são
importantes. Por exemplo, você pode conhecer o amor da sua vida em qualquer lugar.
Questionamos a ele se as pessoas têm o costume de ver todos os momentos de sua vida como
a “hora H”. A resposta foi: “Normalmente, não, mas é melhor ver assim.

Perguntamos, para finalizar a análise das imagens, quais fotos representariam melhor
o título e, segundo SI, ainda que ele não tenha achado algumas imagens claras, sobretudo a
do Museu e a da mulher olhando para algum lugar, é um tema um pouco difícil de ser
ilustrado, pois geralmente “a hora H” tem muitos detalhes não passíveis de serem
fotografados.

Nessa página de abertura, não há, de fato, um texto verbal. O que se apresenta é a
imagem da folha de uma agenda, de um sábado, 13 de setembro, em que os compromissos da
pessoa são: 7h Café da manhã; 10h Reunião do departamento; 12h Almoço com Célia;
13:30h Terminar o relatório; 16h Apresentação do relatório; 18h Pegar a Cris no colégio; 19h
Jantar na casa do Tio Chico. Conversando, chegamos à conclusão de que essa agenda é de
uma pessoa muito atarefada, porque, inclusive no sábado, tem muitos compromissos laborais.
Pensamos também que talvez a escolha da página do sábado não tenha sido a mais adequada,
pois, à noite, a pessoa tem que buscar alguém no colégio.

Analisando a página em si e considerando que a escolha do dia da semana foi


proposital, tentamos pensar como seriam os outros dias da semana dessa pessoa e concluímos
que devem ser ainda mais ocupados.

Em relação às perguntas - “Como o seu dia costuma ser? Quais são seus
compromissos diários?”; “O seu dia é parecido com o que está descrito na agenda?”; “Qual é
o melhor dia da semana para você? Por quê? E qual é o pior?”; “E qual é a melhor hora do
seu dia? O que você faz?” - SI lembrou que, por enquanto, dedica-se somente ao estudo da
língua portuguesa durante todo o dia, mas que no Japão e na África do Sul, países nos quais
já trabalhou, sua rotina não era muito diferente da descrita na agenda.

4.3 Bom apetite!

SI mostrou compreender bem o sentido do título, inclusive por ter semelhança com a
mesma expressão em outras línguas. Ele disse que é sempre bom falar de comida e,
sobretudo, experimentar as comidas dos diferentes lugares.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A página de abertura da unidade 3 apresenta quatro fotos do buffet de restaurantes


parecidos: em três delas há saladas, em uma dessas é possível ver também feijão e batata
cozida. Na outra, são mostradas sobremesas.

Em relação a essas fotos, SI fez basicamente a mesma descrição breve que apresentei
acima. Ele falou que há uma variedade grande de saladas, muitos vegetais, mas que a
variedade poderia ser de tipos de comidas. O sujeito destacou que nem todos os pratos que
ele vê na imagem são de origem brasileira e que essa é uma tendência atual. Aqui, ele
afirmou que há uma predominância das cores verde e vermelho. Passamos logo à análise do
texto verbal e, ainda, de um cardápio, apresentado na página.

O texto apresenta os restaurantes “por quilo” e apresenta seu esquema: “você se serve
de todos os tipos de comida que desejar e paga pelo pelo do seu prato”. SI contou-nos que no
Japão não é comum esse tipo de restaurante. Ele afirmou que o tipo de restaurante mais
comum lá é a la carte. São assim, inclusive, os restaurante do dia-a-dia, a que as pessoas vão
no rápido horário de almoço das empresas. Ele ressaltou que, logicamente, existem diferenças
de preço, variedade e qualidade entre os restaurantes do dia-a-dia e os a que as pessoas vão
como lazer ou em um jantar especial. Explicamos a ele que no Brasil há uma variedade muito
grande inclusive dos tipos de restaurante - a la carte, “por quilo”, “por pessoa”,
buffet, rodízio - e que as pessoas frequentam quase todos, respeitando alguma relação
econômica social.

Em seguida, há na página de abertura a imagem de um quadro verde como os de


escola, em que está escrito “Quarta-feira” e as comidas servidas naquele dia.

SI falou que é comum ter cardápios escritos de giz em quadros no Japão também,
devido à praticidade de escrever e apagar, facilitando a troca de um dia para o outro: “normal,
menu muda todo dia. É fácil de apagar e escrever no outro dia”, ele afirmou. Ele fez uma
ressalva em relação ao espaço “carnes”, presente no cardápio, fazendo que não entendeu por
que o título é “carne” e peixe é o primeiro nome citado. Explicamos, então, que muitas vezes
peixe é considerado carne, sobretudo em restaurantes em que só se pode escolher um tipo de
carne e que, em outras vezes, por exemplo, em questões religiosas, carne e peixe são
diferentes.

Em relação às perguntas - “Quais desses pratos você nunca encontra em seu país?”;
“A que tipo de restaurante você prefere ir?; “O que você costuma pedir quando vai ao
restaurante?”; “Qual a sua comida favorita?” -, SI não as respondeu diretamente, visto que a
discussão anterior já dava alguma ideia.

4.4 Terra à vista

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A expressão que dá título à unidade 4 faz intertextualidade com a declaração que, de


acordo com a literatura, foi proferida no descobrimento do Brasil pelos portugueses. SI não
conhecia a expressão e também não a compreendeu muito bem. Depois dessa explicação, ele
disse que entendia o sentido que queria ser veiculado.

Ao observar as imagens, SI falou sobre o Brasil não só no início, antes de o homem


“estragar” a natureza. Para ele, o Brasil, na visão de muitos estrangeiros, ainda represente um
lugar com muita natureza. Ao olhar as imagens, ele falou de rochas, lagoa, montanhas e
“Vitória”, para se referir à foto da Vitória-Régia. Apesar disso, ele considera as imagens
muito genéricas, que poderiam ser de qualquer lugar: “Como está em um livro de português
do Brasil, as imagens são do Brasil. Mas poderiam ser de qualquer país”, declarou. Segundo
ele, a melhor palavra neste contexto é “diversidade” e a cor predominante, claro, o verde.

O texto verbal apresentado nessa unidade é um texto de apresentação de uma agência


de viagem: “Três lugares bem diferentes em um mesmo país” e trata da Serra Gaúcha, da
Amazônia e de Fernando de Noronha. O texto de introdução ao texto autêntico deixa claro
que esse é um gênero de divulgação dos lugares. SI também conseguiu perceber isso ao ler o
texto, uma vez que aborda apenas as vantagens de cada um dos lugares, dos pontos turísticos.

As perguntas apresentadas são “Você gosta de viajar?”, “Qual desses destinos você
prefere? Por quê?”; “Você já visitou o Brasil?”; “Qual foi a melhor viagem da sua vida?”;
“Qual vai ser a sua próxima viagem?”. Nem todas se aplicam a SI, pois ele já mora no Brasil.
Ele disse que tem vontade de conhecer todos os lugares apresentados na página de abertura e
que sua próxima viagem seria para

São Paulo. A melhor viagem da vida de SI o “Caminho de Santiago”, na Espanha.

4.5 Álbum de família

SI compreende bem o que significa álbum de família e disse que no Japão a maioria
das famílias faz álbum de fotos, assim como aqui no Brasil. A família com que ele mora,
além de ter álbuns tradicionais, tem muitas fotos espalhadas pela casa.

Ao analisar as imagens, as palavras que SI falou foram “família, diversidade,


variedade”. Ele disse que há diversidade de raça - faltou o índio; de número de pessoas; de
lugares - estúdio e ar livre; de formação. Individualmente, em uma foto são apresentados o
pai negro, a mãe branca e a filha mulata; em outra, mãe e filha; em outra, pais orientais e um
neném; em outra, um homem moreno, uma mulher negra e uma filha também morena; uma
casal de orientais, um pouco mais velhos, com duas filhas.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Perguntamos por que na única foto que não há o casal, tem-se a mãe com a filha, e
não o pai. Ele respondeu que provavelmente é porque é mais comum as mães criarem filhos
sozinhos do que os pais. Perguntamos, ainda, se ele achava que os grupos que não foram
representados ali - índios, homossexuais - poderiam sentir-se excluídos, por isso. Ele disse
que talvez sim, mas fez a seguinte declaração: “Eu não pensaria tão profundo olhando essa
página. As imagens servem só para ilustrar”. Diante deste depoimento, refletimos sobre o
papel que as imagens ocupam nos livros didáticos e no ensino de línguas adicionais. Essa
questão será retomada no tópico 5.

O texto verbal apresentado nessa página de abertura consiste em dados estatísticos e é


intitulado “A família brasileira”. São apresentadas informações sobre a composição das
famílias, quantidade de pessoas, número de filhos, tempo de união, renda, hábito de
conversar durante as refeições. SI disse que alguns dados não são muito claros.

As perguntas dessa página de abertura são “Como era a família dos seus pais?”, “O
que mudou de uma época para a outra?”, “Quem mora na sua casa?”, “Em seu país, é comum
haver casais sem filhos?”, “Na sua casa, as pessoas conversam durante as refeições?”. SI
disse que já mora sozinho há algum tempo e que tem quatro irmãos. Sua mãe tem três irmão,
ou seja, são quatro filhos. Bem parecido com a sua casa. Seu pai é filho único, então há uma
diferença entre as gerações, mas que é mais particular do que coletiva. No Japão,
normalmente as pessoas fazem apenas a refeição da noite juntos, e que sim, conversam
durante ela.

4.6 Bate bola

Nosso sujeito tem uma compreensão literal da expressão que dá título à unidade. De
acordo com SI, “bate bola” pode significar “bater com o pé” - chutar - ou “com a mão” -
mandar, arremessar.

Ao deixarmos que ele visse as imagens, SI se surpreendeu por “bate bola” também
poder ser usado para se referir a esportes nos quais não se usa bola. As fotos mostram pessoas
praticando esportes variados, como surf, natação, skateboard, karatê, basquete. O sujeito
disse ainda que sobretudo na imagem que mostra uma luta, não é possível afirmar com
precisão qual é essa luta e que, no karatê “original”, a roupa utilizada não é a mostrada na
foto. O que mais chamou a atenção de SI no que se refere às imagens, não somente nessa
unidade, foram as fotos que “mostram movimento”. Além disso, ele afirmou que a foto da
piscina e a do basquete chamam mais atenção, porque são maiores e, além disso, a da piscina
está no centro da página.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

O trecho de uma reportagem, apresentado nessa capa de abertura, está totalmente


relacionado ao tema e também às imagens. SI considerou suas informações úteis e as
expressões que traz bastantes interessantes. Logo no início, aparecem as expressões “chutar”,
no sentido de tentar acertar, tentar adivinhar e “fazer gol”, indicando o acerto. O sujeito
afirmou que, mesmo não as conhecendo, o emprego delas em um contexto de esportes ajudou
a compreender seu significado, visto que as expressões literais referem-se ao futebol e, direta
ou indiretamente, possuem o mesmo significado nesse âmbito. A outra expressão presente
nesse texto foi “fazer bonito”, na frase “O futebol faz bonito também fora do Brasil, mas não
há nenhuma pesquisa sobre o esporte mais popular do planeta”. Esta, ele não entendeu. Após
explicarmos o sentido da expressão, SI disse compreender sua aplicabilidade ao contexto.

A página de abertura da unidade 6 também apresenta uma tabela intitulada “Pátria de


chuteiras”. O sujeito não sabia o significado nem de “pátria”, nem de “chuteiras”. Portanto,
foi necessário que explicássemos antes de começar a análise dos dados da tabela: “Lista dos
sete esportes mais populares no país tem de futebol a capoeira”. São contemplados futebol,
vôlei, tênis de mesa, skate, natação, futsal, capoeira e a informação de praticantes no Brasil e,
em seguida, no mundo. Ao analisarmos a tabela, nos surpreendemos com o fato de que há
mais praticantes de vôlei no mundo do que de futebol. SI se mostrou surpreso também
quando viu o número de praticantes de futebol no Brasil: 30,4 milhões. Ele achou que fosse
ser um número bem maior. Analisamos a proporção de aproximadamente um jogador para
cada sete pessoas e chegamos à conclusão de que realmente parece ser esse o número,
embora a primeira impressão seja diferente. Além disso, somente percebemos que o número
de praticantes no mundo não inclui o de praticantes no Brasil quando vivos os dados do
futsal: 10,7 milhões no Brasil e apenas 1,1 milhão no mundo.

As perguntas dessa página de abertura são: “Você pratica algum esporte? Qual?”; “O
que é necessário para praticar esse esporte?”; “Qual é o esporte mais popular de seu país?”,
“Há algum esporte que não seja praticado em seu país?”. SI gostou de saber que há um nome
que caracteriza a forma como ele pratica futebol: “atleta de fim de semana”, trazido pelo
texto. Ele disse que no Japão não há a supremacia de um esporte, como no Brasil há o
futebol, pois lá as pessoas, de forma geral, praticam muitos esportes, como tênis, golfe. Sobre
a pergunta de qual esporte não é praticado no Japão, SI disse que a capoeira e que não sabe
muito sobre esse esporte.

Na análise dessa página de abertura foi possível perceber, mais uma vez, que os
diferentes recursos semióticos - fotos, palavras, tabelas, números - foram relacionados para a
construção de um sentido geral.

4.7 Vida moderna

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

O título da unidade 7 é bem direto. Como que filosofando, SI fez uma relação de
“vida” com as seguintes palavras: tecnologia, transporte, segurança, democracia, liberdade,
cultura, moda. Questionamos se “igualdade” não poderia ser incluída nessa lista e ele disse
que sim e que pensou nisso quando disse “liberdade”.

Essa página de abertura, curiosamente, é a única que utiliza desenhos, ao invés de


fotos. Esse é um fato curioso sobretudo por ser um dos temas mais simples de se fotografar,
pensando nas palavras com que o sujeito relacionou o tema e, inclusive, observando os
desenhos apresentados nela.

As imagens, segundo SI, revelam a vida moderna brasileira: trânsito muito ruim;
ônibus cheios; falta de dinheiro; barulho; filas em “lugares oficiais” públicos e privados -
Correios, locais para tirar documentos como carteira de trabalho e CPF, aeroportos; um chefe
brigando com seu subordinado. Nesta último, foi possível identificar qual era a situação e
quem eram as pessoas envolvidas graças a recursos possíveis somente em imagens: o chefe
está desenhado maior, em destaque; está gesticulando, com o braço levantado; e sua boca
aberta com “voltinhas” nela, sinalizando que está gritando. O subordinado, por sua vez, está
desenhado pequeno, encolhido, estressado, o que se pode notar por seus olhos fechados em
consequência do mal-estar que provocam os gritos de seu chefe.

O pequeno texto verbal apresentado aqui é uma citação das diferentes situações da
vida cotidiana moderna que causam estresse e funcionaria, talvez, como legenda das imagens.
Portanto, não foi para SI nenhuma surpresa.

As perguntas são “Qual dessas imagens chama mais sua atenção? Por quê?”; “O que
você faz numa situação como essa?”; “Você sabe o que é estresse?”, “Além dos elementos
mostrados nas fotos, o que mais deixa você estressado(a) ou irritado(a)?”; “O que você faz
quando está estressado(a) para aliviar a tensão?”.

A imagem que mais chamou a atenção de SI foi a do homem puxando os bolsos


indicando que está sem dinheiro, porque está no centro da página e porque mostra a situação
econômica atual do Brasil. Em uma situação semelhante, o sujeito disse que pegaria dinheiro
emprestado. Os elementos mostrados na página, segundo SI, já representam bastante a vida
moderna e, se fosse um material para alertar contra o estresse, essas imagens já seriam
suficientes. Depois de pensar muito, ele disse que talvez acrescentaria um desenho que
mostrasse a poluição.

Para aliviar o estresse, o sujeito afirma praticar esportes, ir a locais em que se pode ter
contato direto com a natureza, conversar com os amigos, viajar.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

4.8 Com que roupa?

A unidade 8, por fim, trabalha os diferentes “tipos de pessoa”. Para SI, o título sugere
o tema “moda”, “mundo fashion”, cores, tipos de roupa. Ele disse que a frase “Com que
roupa?” normalmente é utilizada quando temos que ir a alguma festa ou a algum lugar ou
evento especial. Além disso, o sujeito afirmou se tratar de uma prática individual com
preocupação social: “as pessoas se preocupam com o que os outros prensam”.

São apresentadas seis fotos com pessoas vestidas de maneiras bastante diversificadas.
Chamou mais a atenção de SI a foto da mulher de óculos, porque está no centro e porque ela
está muito arrumada, como para ir a uma festa. O sujeito deu a entender que a considera
“perua” e ressaltou que esse termo podeser empregado em um sentido bom ou em um ruim. A
segunda foto comentada foi a do homem que está na parte mais baixa da página, o qual SI
descreveu como: pank, do rock. O sujeito pensa que atualmente esse tipo de pessoa não muito
bem visto na sociedade. Em seguida, a foto analisada foi a da mulher mais da direita, que é
hippie. SI disse que acha que agora os hippies estão “extintos”. A quarta foto sobre a qual SI
se debruçou foi a que apresenta meninos skatistas, para ele, normalmente os skatistas são
pessoas mais jovens e que são respeitados pela sociedade tanto quanto o homem da quinta
foto, que está vestindo uma roupa caracterizada pelo sujeito como “muito simples”, quer
dizer, uma roupa do dia-a-dia, sem ser social: calça jeans e camisa de malha. A última foto
mostra uma senhora com roupa de própria para fazer atividade física: tênis, calça mais larga e
uma blusa de malha.

As perguntas propostas nessa página de abertura são: “Você segue algum estilo?
Qual?”; “O que as suas roupas dizem sobre você?”; “O que é mais importante para você:
estilo ou conforto?”; “Você acha importante se vestir na moda?”. Para todas as perguntas, SI
deu a seguinte resposta: “Agora não sigo nenhum estilo, mas quando eu tinha treze ou quinze
anos, eu era skatista, no Japão. Era tratado igualmente pelas pessoas na rua e usava o mesmo
estilo de roupa representado na foto. Agora, minhas roupas indicam que não sou punk, nem
hippie, nem hippie hop. Minhas roupas dependem da situação em que estou, porque para
trabalhar vou de camisa e de gravata, para mostrar seriedade; no dia-a-dia, uso calça jeans e
camisa polo. Acessórios como anel, cordão, pulseira e bolsas também podem ‘falar quem a
pessoa é’. Para mim, conforto é mais importante, mas nas festa e no trabalho, o estilo é mais
importante. Na minha opinião, a moda não é tão importante. Acho que as mulheres se
preocupam mais com isso, independentemente da cultura, porque gostam de comprar e vestir
roupas novas”.

5 A MULTIMODALIDADE E A MULTICULTURALIDADE

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

O uso de diferentes modos semióticos obriga o leitor a pensar diferente, a ler de forma
inovadora, visto que, ao longo de sua vida escolar, foi habituado a ler o texto escrito, devido à
supremacia que o verbal alcançou sobre o visual. É pensando nisso que o presente artigo
destina-se ao trabalho com textos multimodais, observando qual é o impacto da integração de
formas verbais e visuais na leitura e, consequentemente, na interpretação dos alunos. A partir
da descrição da análise da página de abertura de cada unidade, foi possível perceber que SI,
sujeito de nossa pesquisa, nem sempre “respeitou” a ordem proposta na página. Quase
sempre ele começou a interpretação pela imagem da direita ou pela que estava no centro ou
pela que mais chamava sua atenção pelo jogo de cores ou pelos movimentos. Isso nos mostra
que ele atuou efetivamente como designer, de acordo com a teoria de Kress (2006), traçando
seu próprio percurso de leitura e atribuindo seus pensamentos e cultura à interpretação dos
textos multimodais. Como lembra-nos Mattos (2011), “a multimodalidade acaba por
influenciar também a produção e a leitura de textos que anteriormente teriam sido produzidos
e lidos de forma tradicional” (p. 36).

Os estudos dos multiletramentos propõem esse olhar crítico para as salas de aula e
para os materiais didáticos. Paes de Barros (2009 apud Barros e Costa, 2012, p.45) propõe
quatro estratégias de observação da multimodalidade, baseadas em alguns pressupostos da
Semiótica Social e em pressupostos teóricos enunciativo-discursivos:

1. Seleção e verificação das informações verbais – refere-


se à ativação das capacidades de compreensão e apreciação da
leitura dos textos verbais, como parte do processo de
compreender a significação do texto como um todo.

2. Organização das informações da sintaxe visual – trata-


se da observação dos elementos pictográficos de modo a
selecionar e organizar as informações relevantes à construção da
significação.

3. Integração das informações verbais e não verbais –


trata-se da capacidade de observar e conjugar as informações da
materialidade verbal à pictográfica, relacionando-as no ato de
construção dos sentidos dos texto.

4. Percepção do todo unificado de sentido que se compõe


através da integração dos materiais verbais e não verbais – trata-
se da ativação de diversas capacidades linguístico-discursivas e
de leitura aliadas à organização e observação das informações,
através das quais o leitor constrói um todo de significação.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A partir da análise que fizemos no tópico 4, podemos perceber que à página de


abertura de cada unidade a estratégia que mais se encaixa é a de número 4, segundo a qual a
imagem não tem o mero objetivo de ilustrar, senão de, juntamente com os elementos verbais,
compor o todo unificado.

Percebe-se que, além dessa grande função que multimodalidade tem de fazer o leitor
ativar “diversas capacidades linguístico-discursivas e de leitura aliadas à organização e
observação das informações”, as imagens e os textos verbais da página de abertura de cada
uma das oito unidades do livro Viva! Língua Portuguesa para estrangeiros - volume 1
reforçam a teoria de Mendes (2004; 2011) de que língua e cultura são indissociáveis:
“conhecer a língua e conhecer através da língua” (MENDES, 2011, p. 148). A cada novo
elemento que o aluno tem para analisar, ele conhece um pouco mais da cultura brasileira e
tem a oportunidade de compartilhar, ainda que somente com o professor, como no caso de SI,
sua cultura.

6 CONCLUSÃO

Na análise da página de abertura das oito unidades do livro Viva! Língua Portuguesa
para estrangeiros - volume 1, de Claudio Romanichen, percebemos que o autor absorveu a
perspectiva dos multiletramentos, uma vez que uniu de forma bastante satisfatória as
dimensões da multimodalidade e da multiculturalidade.

O trabalho com a multiculturalidade fica mais evidente em umas páginas de abertura


do que em outras, especialmente as que tratam dos estereótipos ou “primeiros
contatos” (unidade 1), das características da família (unidade 5) e da população (unidade 8).
Essas páginas são mais representativas da cultura do que quando se fala de música ou de
cultura, como nos ensina Mendes (2004;2011), uma vez que cultura não deve ser tratada
como um pacote de costumes.

Os elementos visuais, como vimos, foram essenciais em algumas páginas, inclusive,


para que SI compreendesse o significado dos verbais, sobretudo do título escolhidos para
cada unidade. E aqueles, por sua vez, foram complementados pelo texto verbal. Ou seja,
veler-se da multimodalidade foi essencial e permitiu um excelente trabalho com o sujeito, que
se sentiu, por vezes, motivado a falar de sua cultura.

Concluímos que o livro Viva! é o sinal de que os autores de livros didáticos estão
atentando-se às teorias discutidas na área da linguística aplicada e estão buscando incluí-las
em sua coleção, dando espaço a elementos visuais não só com a função de ilustração, mas
integrando-os aos elementos verbais para a construção de todo significativo, como propõe a

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

quarta estratégia de observação da multimodalidade, de Barros (2009). Na construção desse


significado que integra os elementos verbais e visuais, o aluno tem espaço para agir
efetivamente, como designer, assim como propõe a teoria de Kress (2006).

Referências

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Universitária, 2012.
DINIZ, L. R. A.; SCARAMUCCI, M. V. R.; STRADIOTTI, L. M. Uma análise panorâmica
de livros didáticos de português do Brasil para falantes de outras línguas. In: CRISTÓVÃO,
V. L. L.; DIAS, R. (Orgs.). O livro didático de língua estrangeira: múltiplas perspectivas.
Campinas: Mercado de Letras, 2009, p. 265-304.
DIONISIO, A. P. Gêneros multimodais e multiletramento. In: KARWOSKI, A. M.;
GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (Orgs.) Gêneros textuais reflexões e ensino. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2006.
DUBOC, A. P. M. Letramento crítico nas brechas da sala de aula de línguas estrangeiras. In:
TAKAKI, N. H.; MACIEL, R. F. (Orgs.).Letramentos em terra de Paulo Freire. Campinas:
Pontes, 2014. p. 209-229.
KRESS, G. Literacy in the New Media Age. Londres: University College London, 2015.
KREES, G. R. e van LEEUWEN, T. Reading Images: a Grammar of Visual Design. Londres:
Routledge, 2006 [1996].
MATTOS, A. M. A. Novos letramentos, ensino de língua estrangeira e o papel da escola
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Línguas e Literaturas. Revista X, vol.1, 2011.
MENDES, E. Abordagem comunicativa intercultural (ACIN): uma proposta para ensinar
e aprender língua no dialogo de culturas. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada).
Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2004.
MENDES, E. O português como língua de mediação cultural: por uma formação intercultural
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formação em português língua estrangeira. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
p. 63-82.
Second Language Acquisition: Reconciling Theories in Open Journal of Applied Science
(OJAppS), Vol.3 No.7 2013.p. 393-403. November 5, 2013.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A multiculturalidade na aprendizagem de PLE:


uma investigação discursiva na avaliação do Celpe-Bras

É verdade que não se pode entrar no “mesmo” rio dias vezes, mas também é verdade que “a
mesma” ideia não pode entrar duas vezes no rio dos pensamentos.
Zygmunt Bauman

André Luiz Gaspari Madureira (Autor)


Professor Doutor de Letras/Linguística da Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
andreluizmadureira@hotmail.com

Erivelton Nonato de Santana (Coautor)


Professor Doutor de Língua Portuguesa da Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
esantana3@hotmail.com

Eixo Temático: Ensino e pesquisa do PLE em contextos multiculturais

Resumo: este trabalho visa fazer uma investigação inicial do exame para a Certificação de
Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros no Brasil (Celpe-Bras), considerando-
se a multiculturalidade como elemento-chave no processo de aprendizagem do Português
como Língua Estrangeira (PLE). A motivação para tal abordagem está centrada na
possibilidade de abordar o resultado do processo de ensino/aprendizagem de PLE, a partir do
contexto de uso da Língua Portuguesa por falantes estrangeiros, no contexto do exame que
tem por objetivo avaliar o grau de proficiência em Língua Portuguesa dos aludidos
candidatos, de modo a lhes conferir a certificação. Para isso, como aporte teórico que toma o
discurso por objeto de estudo, mobiliza-se a Análise do Discurso de linha francesa,
fundamentada, principalmente, por Michel Pêcheux. A metodologia utilizada para o
desenvolvimento da pesquisa se volta à abordagem qualitativa, a partir da qual a perspectiva
teórica é aplicada a materiais coletados nas aplicações do processo avaliativo no Celpe-Bras.
Por esse viés, aspectos relativos ao exame passam a receber um olhar do ponto de vista sócio-
histórico e ideológico, em detrimento de uma visão subjetivista dos fenômenos de
(re)produção de efeitos de sentido na linguagem, conferindo maior objetividade à
investigação científica. A multiculturalidade surge como materialidade discursiva, cuja
propriedade é de proporcionar a instauração de sentidos, constituindo-se como parte de uma
relação interdiscursiva regida pela tensão entre o dizer e o pré-construído, entre a paráfrase e
a polissemia. Mediante a análise de dados referentes ao Celpe-Bras, passa a ser possível
identificar como o aspecto multicultural se faz presente no universo do candidato e de que
modo se materializa no processo avaliativo em tela, proporcionando uma melhor
compreensão do papel da multiculturalidade no contexto de aprendizagem do PLE.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Palavras-chave: Análise do discurso; Celpe-Bras; Multicultutalidade; PLE

Introdução

Abordar questões sociais, multiculturais e ideológicas demanda a certeza da não


perenidade, da constante mudança que se ilustra na epígrafe deste trabalho. Assim como os
pensamentos retomados são outros, outras também são as relações entre os homens, as quais
reclamam a reinscrição do passado no presente e, nesse contexto de movência e pluralidade,
apontam para novas perspectivas.

Essas condições de retorno e reinscrição vão ao encontro dos pressupostos teóricos da


Análise do Discurso de linha francesa (AD), proposta por Pêcheux, já que toma a
interdiscursividade como uma propriedade inerente à linguagem, espaço de materialização do
discurso. Por esse viés, o discurso passa a ser visto não como a reprodução psicofisiológica
da fala, mas como efeito de sentido(s) entre interlocutores. Para todo discurso há um anterior
no qual se fundamenta e aponta para outros, instituindo um ambiente de (re)produção de
novas perspectivas, novas relações de sentido.

Nesse contexto, o presente trabalho faz parte do projeto de pesquisa intitulado


“Gestos de leitura sobre processos argumentativos e discursivos em gêneros textuais”, em
desenvolvimento no Colegiado de Letras do Departamento de Educação (DEDC) do Campus
II da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). A pesquisa visa analisar como se dá a
presença do aspecto da multiculturalidade no exame para a Certificação de Proficiência em
Língua Portuguesa para Estrangeiros no Brasil (Celpe-Bras), utilizando-se, como arcabouço
teórico, alguns fundamentos da AD.

Essa abordagem tende a propiciar a percepção de como certos elementos


multiculturais se tornam presentes no exame do Celpe-Bras, de modo a proporcionar ao
candidato uma comunicação, em língua portuguesa, não apenas no contexto de compreensão
de uma determinada cultura. Mais que isso, a proposta é perceber como, no exame, a
multiculturalidade se faz presente, em prol da mobilização da linguagem, levando-se em
conta o ambiente de estabilidade/instabilidade, de heterogeneidade cuja existência está na
própria realidade dos diversos contatos culturais.

Com isso, espera-se apresentar uma reflexão que leve a identificar algumas
perspectivas da multiculturalidade que estão (ou poderiam estar) não silenciadas,
materializadas no texto do exame. O resultado do estudo visa à identificação de elemento
presentes (ou ausentes) cuja propriedade seja a de direcionar o candidato à utilização da
linguagem de modo a não somente reproduzir informações sobre a cultura brasileira, mas a

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

relacionar redes discursivas para a constituição de textos nos quais se cristalize esse ambiente
de pluralidade que caracterizam o ambiente social e, consequentemente, a realidade
multicultural.

1 Efeitos de sentido de (multi)cultura(lidade)

Há quem diga que o mundo está cada vez mais pluralizado. Verdade ou não, o fato é
que, desde a metade do século XX, o pós-modernismo vem promovendo mudanças de
diferentes naturezas, as quais vão desde as artes até as ciências. Diante da presença dos
media, juntamente com o surgimento e o avanço das novas tecnologias, tais mudanças têm se
tornado, se não mais constantes, ao menos mais perceptíveis.

O reflexo disso se vê, dentre outras questões, na própria linguagem, a partir da


existência de novas expressões, ou mesmo na acepção de novos sentidos a um só termo, dado
o aspecto polissêmico que recobre a palavra. Nesse contexto plurissignificativo, chama
atenção o constante deslizamento de efeitos de sentido, marcado pelo dinâmico processo de
profusão de vozes que recobre uma palavra em especial: trata-se da cultura, termo que
constantemente tem sido utilizado tanto em contextos mais usuais, quanto no âmbito da
ciência, da história, da filosofia.

Em certas circunstâncias, cultura serve para demarcar um nível de conhecimento, de


compreensão do mundo e, mesmo, de escolarização. Nesse sentido, concebe-se aquele que
dela é provido como uma pessoa culta, letrada, cujo grau de percepção vai além do de alguém
que não tem/teve possibilidade de acesso a instituições de ensino, nem ao processo de
alfabetização. Com efeito, tal concepção encontra-se enraizada na ideia pré-concebida de que
determinados conhecimentos são mais relevantes que outros, têm mais valor que outros.

A atribuição desse valor, por sua vez, não se fundamenta em estudos científicos, nem
em fatos comprobatórios, por isso que surge como uma concepção prévia. O efeito que essa
posição causa é o de valorizar mais a cultura escrita do que a oralidade, em uma polarização
que vai de encontro à perspectiva de Marcuschi (2005, p. 19): “Até mesmo os analfabetos,
em sociedades com escrita, estão sob a influência do que contemporaneamente se
convencionou chamar de práticas de letramento”. A supervalorização da escrita pela
sociedade passa a conceber o letrado em detrimento do analfabeto, a privilegiar certos
lugares sociais e não outros, remetendo à realidade da luta e da divisão de classes.

É possível também compreender cultura em sua pluralidade dentro de um território,


de um país. No Brasil, por exemplo, existe uma diversidade de costumes e tradições que
marca a singularidade de diferentes regiões, instituindo, assim, uma identidade cultural cuja
heterogeneidade comumente é definida pelo termo “brasis”. A diversidade cultural é um fato

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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social indispensável para a compreensão das peculiaridades das sociedades, como explica
Santos (2006, p. 19):

É importante considerar a diversidade cultural interna à nossa sociedade;


isto é de fato essencial para compreendermos melhor o país em que
vivemos. Mesmo porque essa diversidade não é só feita de ideias; ela está
também relacionada com as maneiras de atuar na vida social, é um elemento
que faz parte das relações sociais do país.

Diante do pensamento de Santos (2006), a partir do estudo e da compreensão interna


de uma sociedade, surge a possibilidade de lidar com as diferenças que lhe são inerentes,
considerando-as como parte da realidade concreta de uma nação. Essa forma de percepção
favorece não somente o entendimento de que a diversidade compõe a identidade de um país,
mas também o combate ao preconceito instituído pela rejeição às diferenças.

Ampliando um pouco mais o campo de apreciação da cultura, percebe-se que seus


efeitos de sentido também vão ao alcance da diferenciação de nações, quando comparadas
umas às outras. Esse posicionamento, que já não é tão recente, chegou a ser apresentado por
Jaeger (1989, p. 6) durante seu projeto de descritivo e reflexivo acerca da formação do
homem grego:

Hoje estamos habituados a usar a palavra cultura não no sentido de um ideal


próprio da humanidade herdeira da Grécia, mas antes numa acepção bem
mais comum, que a estende a todos os povos da Terra, incluindo os
primitivos. Entendemos assim por cultura a totalidade das manifestações e
formas de vida que caracterizam um povo. A palavra converteu-se num
simples conceito antropológico descritivo. Já não significa um alto conceito
de valor, um ideal consciente. Com este vago sentimento analógico, nos é
permitido falar de uma cultura chinesa, hindu, babilônica, hebraica ou
egípcia, embora nenhum desses povos tenha uma palavra ou conceito que a
designe de modo consciente.

Apesar de servir para caracterizar variadas manifestações sociais, tal acepção ligada à
cultura é concebida como proveniente do “conceito antropológico descritivo”, o que a torna
simples e vaga. Por esse viés, utilizar a cultura para caracterizar as variadas manifestações
que singularizam e distinguem nações, além de anular a perspectiva de valor (considerando-
se a equidade entre tais manifestações), torna a noção vaga, na medida em que é tomada em
sua pluralidade. Na Paidéia o que se procura evidenciar é o processo de constituição do
homem grego e, com isso, o contexto de desenvolvimento dos princípios formativos dos
povos do ocidente. É a partir daí que a Grécia é tida como o berço cultural das civilizações
ocidentais, retomando-se, pois, a ideia de relevância ao conceito de cultura.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Apesar de serem demarcados vários conceitos de modo aleatório, há quem se lance ao


desafio de refletir acerca do conceito de cultura mediante o estabelecimento de uma ordem
cronológica de aparecimento do referido termo e de recondução conceitual. È por esse
caminho que Bauman (2012, p. 12) propõe iniciar suas reflexões acerca dessa questão:

Originalmente, na segunda metade do século XVIII, a ideia de cultura foi


cunhada para distinguir as realizações humanas dos fatos “duros” da
natureza. “Cultura” significava aquilo que os seres humanos podem fazer;
“natureza”, aquilo a que devem obedecer. Porém, a tendência geral do
pensamento social durante o século XIX [...] foi “naturalizar” a cultura: os
fatos sociais podem ser produtos humanos; contudo, uma vez produzidos,
passam a confrontar seus antigos autores com toda a inflexível e indomável
obstinação da natureza [...]. Só na segunda metade do século XX, de modo
gradual, porém contínuo, essa tendência começou a se inverter: havia
chegado à era da “culturalização” da natureza.

A passagem da era da separação entre cultura e natureza deu lugar à naturalização da


cultura cuja desconstrução culminou no surgimento da culturalização da natureza. Esse
complexo movimento interdiscursivo proporcionou um deslizamento de efeitos de sentido
motivado pelo contexto de constituição dessa nova perspectiva. Para Bauman, um dos pontos
principais que contribuiu para isso foi justamente o pós-modernismo.

Com esse breve apanhado acerca das noções de cultura, pode-se perceber o quão
complexo e diversificado é o espaço de (re)significação desse conceito, evidenciando a
heterogeneidade que o recobre. Para este trabalho, a cultura vai ser refletida a partir de um
campo um pouco diferente, o qual se torna necessário para a abordagem analítica que se
propõe realizar. Sendo assim, este termo receberá uma reflexão por meio da ideia de
(multi)cultura(lidade), de forma a tornar possível a utilização de um conceito viável à
percepção das condições multiculturais que se estabelecem na rede interdiscursiva de
constituição dos dizeres materializados em uma avaliação do Celpe-Bras, como forma de
contribuir para o estudo de PLE no Brasil.

Nesse sentido, a multiculturalidade é aqui considerada diante da perspectiva de


Candau (2013), cuja proposta se centra no âmbito do processo de ensino e aprendizagem.
Apesar de não remeter especificamente ao ensino de PLE, com a análise do corpus se
evidenciam os ganhos na utilização de tal concepção que a autora situa como “um
multiculturalismo aberto e interativo”, o qual se encontra no terreno da multiculturalidade
propositiva (2013, p. 22). Antes, porém, procura caracterizar a posição que utiliza,
diferenciando-a de outras existentes.

Em seus estudos, Candau (2013, p. 19) identifica pelo menos dois caminhos para a
abordagem da questão multicultural: o descritivo e o propositivo. O primeiro, como o próprio

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

termo já sinaliza, descreve, como um dado, a presença da multiculturalidade como sendo


“uma característica das sociedades atuais”, cuja dependência se estabelece a partir “de cada
contexto histórico, político e sociocultural”. Já o segundo tem como característica a de não
ser meramente descritivo, situando apenas os dados; mas o de refletir para propor ações de
transformação no espaço social. O multiculturalismo descritivo pode ser subdividido em
outras posições. Candau (2013, p. 20) destaca três: “o multiculturalismo assimilacionista, o
multiculturalismo diferencialista [...] e o multiculturalismo interativo”.

Na primeira perspectiva, constata-se que há desigualdade social e que diferentes


grupos não possuem os mesmos direitos. Para resolver essa questão, são propostas ações de
integração dos indivíduos marginalizados à estrutura vigente, de modo que possam se adaptar
à organização social para que haja possibilidade de usufruir de certos direitos. Nesse caso,
não há uma proposta de modificação do ambiente social, e sim de adaptação a ele, por parte
dos grupos discriminados.

A segunda perspectiva apresenta uma multiculturalidade centrada em estabelecer


lugares próprios para a instauração das diferentes manifestações, como forma de manutenção
das diversas identidades multiculturais. Sobre essa iniciativa, Candau (2013) adverte: “Na
prática, em muitas sociedades atuais terminou-se por favorecer a criação de verdadeiros
apartheid socioculturais”. Desse modo se percebe a probabilidade de, ao buscar lugares
específicos de manifestação cultural, proporcionar uma verdadeira segregação desses grupos
sociais.

Já a terceira posição, a do multiculturalismo interativo, propõe a interculturalidade


mediante uma política de articulação instituída pela inter-relação entre grupos culturais no
ambiente social. Por meio desse posicionamento, percebe-se o não fechamento das culturas, a
abertura que lhes é inerente, o que demarca a perspectiva de que nenhuma delas é estanque,
encontrando-se sempre em processo de (re)construção. Ao dar destaque às condições de
diferença e desigualdade, é demarcado um espaço de relações de poder motivador de
processos de hierarquização mantenedores das representações de preconceito, desigualdade e
exclusão.

A proposta do multiculturalismo interativo é a de vislumbrar um espaço de


compreensão e reconhecimento de diferentes grupos culturais que, ao mesmo tempo em que
reconhece as relações de conflito, propõe o enfrentamento:

A perspectiva intercultural que defendo quer promover uma educação para o


reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais
e culturais. Uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os
conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a construção de


um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente incluídas.

Com a (re)significação dessa perspectiva no plano discursivo, é proposta a análise de


um processo avaliativo de PLE. No entanto, antes faz-se necessário apresentar parte das
condições de existência do corpus, como forma de apresentá-lo no contexto do qual emerge.

2 Condições de produção do corpus

A prova do Celpe-Bras está estruturada em dois momentos distintos: uma parte oral e
outra parte escrita, nas quais o estrangeiro deverá demonstrar algum grau de proficiência no
processo de comunicação e interação em Língua Portuguesa. De acordo com o seu
desempenho e com as notas obtidas, cada candidato será classificado em um dos cinco níveis
de proficiência adotados pelo Celpe-Bras. São eles: Básico, Intermediário, Intermediário
Superior, Avançado e Avançado Superior. Aqueles que não obtiverem um desempenho
minimamente satisfatório, tendo alcançado média abaixo de 1 ponto, são classificados como
candidatos sem certificação.

A parte escrita do exame é realizada ao mesmo tempo, em momento relativamente


simultâneo, em todos os postos aplicadores devidamente credenciados pelo MEC, através do
Inep, considerando-se as diferenças de fuso horário existentes em cada localidade
(continente, país, estado, cidade). Já a parte oral é realizada com cada candidato,
individualmente, por dois avaliadores locais (um entrevistador e um observador), que farão
uma primeira análise do desempenho dos candidatos em relação à proficiência dos
examinandos no que se refere à interação e comunicação a partir da oralidade.

Aplicada em cada posto para todos os candidatos neles inscritos, a parte escrita da
prova é composta de quatro questões diferentes (denominadas de tarefas 1, 2, 3 e 4) nas quais
se exige a elaboração de um texto/resposta, de acordo com as exigências e expectativas
contidas em cada uma delas. Tais exigências e expectativas estão voltadas para aspectos
lingüísticos e comunicativos, como o gênero textual adequado para o contexto sócio-
comunicativo em evidência na proposição da tarefa, além de propósitos e interlocutores
inseridos nesses contextos. Os aspectos relativos à adequação gramatical e lexical devem
estar a serviço da construção do texto que se pede, visando concretizar, de modo efetivo, a
interação e comunicação entre os interlocutores envolvidos.

Para cada tarefa é fornecido um texto diferente, extraído de veículos de comunicação


brasileiros, obtidos em sites, blogs, jornais e revistas de circulação geral entre o grande
público. Esses textos contêm dados e informações úteis para a reflexão sobre o contexto
situacional delineado neles, e funcionam como “pretextos” para desencadear a produção do

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

texto/resposta, elaborado individualmente por cada candidato, que deverá se projetar como
um “sujeito” distinto em cada tarefa da prova. Assim, pode-se afirmar, em certa instância de
análise discursiva, que não é necessariamente o próprio estrangeiro que elabora o seu texto,
mas sim um outro sujeito (um “personagem”) distinto, que se apresenta no processo
linguístico-discursivo para dar respostas e interagir no contexto sugerido por cada tarefa
proposta pelo exame Celpe-Bras.

Ainda falando sobre os textos presentes nas provas do Celpe-Bras, vale salientar que
seus conteúdos versam sobre aspectos diversos do cotidiano dos brasileiros, bem como sobre
elementos culturais, artísticos, sociais, históricos, geográficos... Além disso, tais textos
abordam aspectos relativos ao comportamento, à moda, gastronomia, vida na cidade e no
campo, agricultura, curiosidades, dentre outros temas diversos. De certo modo, isto contribui
para fazer com que os candidatos sintam-se mais inseridos na cultura brasileira e possam,
assim, demonstrar, através da realização das tarefas contidas na prova, seu nível de
proficiência no idioma brasileiro.

De acordo com as informações contidas no Manual do Aplicador, a tarefa 1 é também


chamada de tarefa de vídeo, pois o texto fornecido ao candidato para a produção do texto/
resposta vem em formato de um vídeo curto, com duração de dois a quatro minutos
aproximadamente. Esse vídeo é transmitido para todos os candidatos por duas vezes
consecutivas, com o objetivo de oportunizar a eles a possibilidade de visualizar o contexto
geral da situação de comunicação contida na referida mídia. Nesse momento, recomenda-se
que os candidatos façam anotações sobre o conteúdo do que assistem, com o objetivo de
utilizar as informações captadas na produção do texto exigido na tarefa em questão.

Em situação semelhante ocorre a tarefa 2, também conhecida como tarefa de áudio,


pois nela o texto utilizado como pretexto é em formato de áudio, tornando maior o grau de
dificuldade da prova. Isto porque, com a ausência das imagens, os candidatos são instados a
utilizar sua imaginação e criatividade para reconstruir mentalmente o contexto sócio-
comunicativo no qual tal “pretexto” fora produzido. Contudo vale ressaltar que são
relativamente semelhantes as condições de produção do texto/resposta para segunda tarefa.

Já as tarefas 3 e 4 da prova escrita do Exame Celpe-Bras são conhecidas como tarefas


de texto, por fornecerem textos escritos para auxiliarem na redação das respostas de cada
candidato. Aqui a diferença reside, dentre outros aspectos, no fato de cada texto apresentar
graus de dificuldades distintos, sendo o da tarefa 3 um gênero menos complexo, de caráter
predominantemente informativo, com extensão relativamente menor em muitos casos. Por
sua vez, a tarefa 4 apresenta textos com maior grau de complexidade, podendo ser, inclusive,
dois textos em que há confronto de ideias, posicionamentos e opiniões de sujeitos distintos, o

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

que exigirá do candidato uma tomada de posição diante de determinada situação, devendo
esta ser evidenciada em seu texto/resposta.

O Exame Celpe-Bras ocorre em todos os postos credenciados no Brasil e em vários


países no mundo duas vezes por ano, uma a cada semestre, nos meses de abril (primeira
edição) e Outubro (segunda edição). Cada posto é responsável pela organização local,
estruturação e aplicação das provas oral e escrita, de acordo com os procedimentos e
instruções preconizados pela Comissão Técnica e Inep, ambos vinculados ao Ministério da
Educação brasileiro. Tais procedimentos e instruções estão reunidos no Manual do Aplicador,
fornecido a cada edição das provas a todos os postos credenciados.

Tanto no primeiro como no segundo semestre, a realização das provas geralmente


ocorre no período de três dias (sendo a parte escrita feita no turno matutino do primeiro dia
de trabalho, e a parte oral nos dias e turnos subsequentes) a depender do número de
candidatos inscritos em cada posto aplicador. Os candidatos fazem as provas no posto onde
realizou sua inscrição, sendo essa opção feita por livre escolha do próprio candidato.
Normalmente cada estrangeiro optará por realizar o exame na cidade em que está residindo
ou mesmo em uma região próxima, caso na haja um posto aplicador onde fixou moradia.

Esses fatores podem ser reveladores do fato de os estrangeiros já possuírem traços da


localidade em que vivem (seja no Brasil ou mesmo no exterior), sendo estes revelados em seu
repertório linguístico e cultural, demonstrados tanto na prova oral como na prova escrita
desses candidatos. E isso pode ser igualmente revelador de uma inter-relação cultural
promovida pelo contato da cultura do estrangeiro, com a cultura em que ele vive naquele
momento, podendo, inclusive, haver, por parte dos residentes no Brasil, um processo de
secundarização dos seus traços culturais em função da priorização dos traços culturais
brasileiros. Essa estratégia seria mobilizada pelo candidato, visando alcançar melhores
resultados no exame, mediante a produção de textos mais próximos de uma produção
identificada com a língua e a cultura alvo.

3 Análise do corpus

Para o processo de análise, selecionou-se como corpus a avaliação escrita do Celpe-


Bras, correspondente ao semestre de 2015.2. Serão analisados os enunciados da tarefa três
que compõe a prova escrita, levando-se em consideração o texto que a complementa. O
recorte imprimido se justifica uma vez que a referida tarefa é acompanhada por um texto
complementar, o que tende a propiciar uma reflexão mais precisa acerca das relações sócio-
históricas materializadas na linguagem. A escolha de apenas uma tarefa se deu também por
conta do espaço reduzido pelo limite de páginas proposto.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A identificação de aspectos da multiculturalidade no corpus parte da definição


apresentada por Candau (2013) acerca do multiculturalismo interativo, cujo princípio está no
processo de alteridade, com o reconhecimento do outro na construção da realidade cultural.
Nesse sentido, leva em consideração a hibridização cultural, a partir da qual nenhuma cultura
está fechada, mas em constante processo de constituição. Também sinaliza a necessidade de
reconhecimento das condições de exclusão e de diferença provenientes das relações de poder
que se materializam na sociedade, como forma de enxergá-las para enfrentar essas condições,
considerando-se as possibilidades de modificação de cenários como este.

Essa perspectiva de multiculturalidade, marcada pelo hibridismo, pela propriedade de


se refazer, remete ao primado do interdiscurso na AD, caracterizado, como sinaliza Maldidier
(2003, p. 51), por designar “o espaço discursivo e ideológico no qual se desdobram as
formações discursivas em função de relações de dominação, subordinação, contradição”.
Nesse espaço, nenhum discurso existe sem que haja uma ancoragem em discursos anteriores;
e nenhum discurso deixa de remeter a discursos outros, em um processo contínuo de
(re)construção. Também se reclama a presença das formações discursivas (FD’s), as quais
determinam “o que pode e deve ser dito (...) a partir de uma posição dada numa
conjuntura” (PÊCHEUX e FUCHS, 1997, p. 166). Por esse conceito, diferentes expressões
podem ter o mesmo sentido, quando instauradas em uma determinada FD; mas, ao se
deslocar de uma FD a outra, a palavra pode mudar de sentido, diante desse contexto dinâmico
de reinscrição no processo discursivo. Assim como se vê na descrição do multiculturalismo
interativo, as relações de mudança, de dominação, de contradição também compreendem a
realidade interdiscursiva e devem ser consideradas como parte das condições de existência do
dizer.

As aproximações concebidas entre fundamentos da AD e do multiculturalismo


interativo favorecem a articulação desses campos de conhecimento. Nesse sentido, certos
princípios que singularizam a posição multicultural descrita serão concebidos enquanto
perspectivas discursivas que atravessam o conceito em questão, mediante o processo
interdiscursivo que o constitui. Tais perspectivas passam a ser sistematizadas em diferentes
FD’s, de modo a possibilitar a verificação de sua presença na materialidade linguística que
compõe as tarefas da prova escrita do Celpe-Bras, como se ilustra na tabela que se segue:

FD1 FD2 FD3

Reconhecimento das Identificação das con- Mobilização das represen-


possíveis influências dições de dominação e tações culturais do lugar de
interculturais no pro- desigualdade na consti- onde se fala para o reconhe-
cesso de hibridização. tuição de posições multi- cimento do “outro”.
culturais.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Com a FD1, busca-se visualizar o encontro entre aspectos de um determinado grupo


social com os de outro, para a constituição de um espaço de hibridização cultural. Esse é o
primeiro plano de reflexão acerca da presença do multiculturalismo na prova do Celpe-Bras,
a partir da busca pela identificação de indícios da inter-relação entre diferentes culturas na
materialidade linguística que compõe o corpus.

A percepção das relações de poder que fundamentam a dominação e a exclusão social


faz parte da compreensão da realidade multicultural que se constitui mediante relações de
assimetria. Apreciar tais condições passa a ser uma forma de compreender como certos
problemas sociais influenciam na manutenção desse contexto de aviltamento e, assim, de
identificar formas de intervenção em favor do respeito às diferenças. A busca pela
materialidade dessas relações é uma forma de permear a FD2, no decorrer do processo de
análise.
Ao considerar a AD como aporte teórico, é preciso também identificar o
deslocamento subjetivo proposto, a partir do qual o sujeito não mais é concebido em sua
propriedade psicofisiológica, mas como lugar social de onde emerge o dizer. Sob esse ponto
de vista, a análise da multiculturalidade na avaliação do Celpe-Bras não deve prescindir da
observação do diálogo entre elementos culturais que se estabelecem na prova escrita e
também na posição-sujeito que compreende o lugar social do candidato, cuja posição está
marcada na FD3. É nesse sentido que as marcas linguísticas que proporcionem esse diálogo
intercultural são buscadas em meio à abordagem analítica do corpus.

3.1 O discurso na materialidade linguística

Na tarefa três da prova em observação, o enunciado direciona o candidato à produção


de um texto com o objetivo de solicitar um patrocínio para o projeto Favela Orgânica, com o
qual se busca aproveitar os alimentos que normalmente são descartados, evitando, assim, o
desperdício. Para tanto, é necessário um deslocamento da forma-sujeito, na medida em que o
candidato deve simular ser “membro da Associação de Moradores da Comunidade da
Babilônia” (CELPE-BRAS, 2015, p. 6), do Rio de Janeiro.

No material complementar é mobilizada uma reportagem que descreve este projeto,


criado por uma paraibana, ex-empregada doméstica, que sofreu um choque cultural ao ver a
quantidade de desperdício que ocorria nas feiras livres do Rio de Janeiro. No texto assim é
retratado o ambiente de aproveitamento dos alimentos: “Na Paraíba, ela cresceu vendo a mãe

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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aproveitar integralmente tudo o que ia para a cozinha” (CELPE-BRAS, 2015, p. 6). O contato
do indivíduo com este ambiente sócio-histórico faz com que, ao se subjetivar (ou seja, ao se
tornar sujeito do discurso), se insira, na dispersão da forma-sujeito, em um lugar social que
concebe a relevância do aproveitamento integral dos alimentos, diante de um contexto de
necessidade, de sobrevivência. Essa citação remete a condições sócio-históricas relacionadas
a um dos estados nordestinos marcados pela pobreza e pela exclusão, o que remete à
realidade cultural cuja construção se inscreve nas relações de poder:

As relações culturais não são relações idílicas, não são relações românticas,
elas estão construídas na história e, portanto, estão atravessadas por
questões de poder, por relações fortemente hierarquizadas, marcadas pelo
preconceito e discriminação de determinados grupos. (CANDAU, 2013, p.
23)

Essas relações de poder se vinculam ao que Althusser (2003, p. 70) vai denominar de
os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) e Aparelhos Repressores de Estado (ARE), os
quais têm seus modos de funcionamento definidos da seguinte maneira:

O aparelho (repressivo) do Estado funciona predominantemente através da


repressão (inclusive a física) e secundariamente através da ideologia. (Não
existe aparelho unicamente repressivo). Exemplos: o Exército e a Polícia
funcionam também através da ideologia, tanto para garantir sua própria
coesão e reprodução, como para divulgar os “valores” por eles propostos.
Da mesma forma, mas inversamente, devemos dizer que os Aparelhos
Ideológicos do Estado funcionam principalmente através da ideologia, e
secundariamente através da repressão seja ela bastante atenuada, dissimulada,
ou mesmo simbólica. (Não existe aparelho puramente ideológico). Desta
forma, Escola, as Igrejas “moldam” por métodos próprios de sanções,
exclusões, seleção etc... não apenas seus funcionários mas também suas
ovelhas. E assim a Família... Assim o Aparelho IE cultural (a censura, para
mencionar apenas ela) etc.

Desse modo, vê-se, nas políticas públicas, como Aparelhos de Estado, um processo
marcado pela assimetria na distribuição de recursos, propiciando a desigualdade entre
distintos grupos sociais e, com isso, o impacto nesse cenário multicultural: “Já no Rio, a
partir de 2001, revoltou-se ao se deparar com o desperdício em feiras livres”.

No entanto, o reconhecimento do contexto de exclusão pelas condições de hierarquia


é silenciado, na medida em que as relações de poder e a realidade da pobreza e de
desigualdade que marcam a existência de favelas são obliteradas pela passagem de uma FD a
outra. Segundo Orlandi (2007, p. 74), o silêncio constitutivo é “o mecanismo que põe em
funcionamento o conjunto do que é preciso dizer para poder dizer”. Como forma de ilustrar
esse posicionamento, segue com a seguinte exemplificação: “Um exemplo dessa forma de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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silêncio é a denominação ‘Nova República’, no Brasil, atribuída ao regime que seguiu a


ditadura militar. Ao nomear-se assim esse período, apagava-se o fato de que o que tínhamos
tido antes era uma ditadura”.

Assim como o exemplo de Orlandi, no texto complementar também se dá um


deslizamento de efeitos de sentido pelo silenciamento. A própria noção de favela passa a ser
ressignificada na expressão “Favela Orgânica”, na qual o léxico “Orgânica” diante de um
efeito de sentido marcado pelo discurso de sustentabilidade, passa a dissimular os efeitos de
sentido de pobreza e exclusão que historicamente marcam o termo “favela”.

Assim também ocorre com a mudança da denominação Favela da Babilônia por


“Comunidade da Babilônia”. Nesse deslizamento de efeitos de sentido, mais uma vez se dá o
silenciamento dos efeitos de sentido que substituem o contexto de desigualdade, de exclusão,
pelo de união (comunidade).

Com isso, apesar de no texto se abordar o desperdício, em nenhum momento se


remete a um contexto de pobreza, de necessidade, mas de aproveitamento de tudo aquilo que
se pode (e não necessariamente se precisa) consumir dos alimentos. Desse modo, a FD2 fica
marcada não propriamente pela materialidade linguística, mas pelo silenciamento das
relações de poder e de desigualdade.

Esses aspectos da materialidade linguística apresentam o diálogo multicultural que


favorece a emergência do discurso de não desperdício, o qual perpassa por ambas as
realidades culturais, assim como a interferência de grupos sociais como forma de evitar o
desperdício de alimentos. Por meio do diálogo entre as realidades descritas, dá-se o processo
de reconhecimento da influência multicultural que atesta a possibilidade de mudança na
percepção do comportamento social, cuja perspectiva discursiva se instaura na FD1.

Com o deslocamento da forma-sujeito, é propiciado um afastamento da FD3, na


medida em que o candidato não é interpelado enquanto forma-sujeito voltada ao contexto
sócio-histórico e ideológico do qual realmente emerge. Na atividade se propõe a presença de
um simulacro de forma-sujeito morador da Comunidade da Babilônia, sem que, de fato, o
candidato tenha um contato direto com as condições sócio-históricas e ideológicas de
assujeitamento da forma-sujeito proposta. Desse modo, não é instaurado o diálogo
multicultural do lugar social de onde o candidato se apresenta, estabelecendo-se um
procedimento de interdição que restringe as marcas da função-autor.

Na análise discursiva da multiculturalidade, percebem-se, então, três movimentos


diferentes de FD’s. A FD1 está representada na materialidade linguística, diante do processo
de hibridização que propicia o discurso que demarca a existência do projeto Favela Orgânica

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no âmbito da prática social. Apesar de se poder resgatar as relações de assimetria e de


desigualdade através do contexto sócio-histórico, estas se apresentam por meio do não dito, o
que marca o silenciamento da FD2. Já na FD3, percebe-se o apagamento da forma-sujeito
vinculada ao lugar social de onde o candidato se apresenta, constituído por meio da proposta
de deslocamento da função-autor no texto.

Essas relações interdiscursivas evidenciam o complexo ambiente da


multiculturalidade, mas, ao mesmo tempo, possibilitam a percepção dos rumos da tarefa
analisada. Esse pode ser o primeiro passo para se refletir sobre a construção das questões da
avaliação por um viés interdiscursivo e, assim, buscar alternativas para direcionar a proposta
avaliativa a um contexto cada vez mais apropriado de aproveitamento da percepção do
candidato na mobilização da Língua Portuguesa, sem desconsiderar as condições
multiculturais para seu uso.

Conclusão

A reflexão discursiva acerca da multiculturalidade na avaliação escrita do Celpe-Bras


se apresentou como uma proposta de abordagem de aproximação da própria perspectiva
multicultural do espaço em que é proposta. Com a mobilização de elementos do arcabouço da
AD, favoreceu-se a apreciação das relações sócio-históricas, ideológicas e discursivas
presentes como parte da constituição dos dizeres materializados na atividade avaliativa
analisada.

Diante do estabelecimento de uma relação entre aspectos multiculturais e a avaliação


em tela, tornou-se possível identificar parte das FD’s presentes no espaço interdiscursivo e
que perpassam pelos dizeres apreciados. O reconhecimento dessas FD’s propiciou a
percepção das formas a partir das quais se instituem: quer seja pela impressão de evidência
das marcas linguísticas; quer seja pelo silenciamento; quer seja pelo processo de apagamento.

Esse estudo passou a sinalizar, ainda de maneira preliminar, a necessidade de se


pensar nas formas de construção dessas avaliações escritas, em prol do favorecimento mais
substancial de instauração de aspectos multiculturais. Seguindo-se por esse caminho de
retorno, de (re) análise das práticas de elaboração dessas atividades, será possível vislumbrar
novos caminhos para identificar, como na epígrafe deste trabalho, novas ideias no rio do
pensamento e amadurecer, cada vez mais, a percepção sobre a presença da multiculturalidade
na avaliação do Celpe-Bras.

Referências

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. 9. ed. Trad. Walter José Evangelista
e Maria Laura Viveiros de Castro: Introdução crítica de José Augusto Guilhon Albuquerque.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Trad. Carlos Alberto Medeiros.
Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In:
_____; MOREIRA, Antonio Flávio (orgs.). Multiculturalismo: Diferenças Culturais e
Práticas Pedagógicas. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p. 13-37.
CELPE-BRAS. Parte Escrita: Caderno de Questões 2015/2. São Paulo, 2015, p. 9.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1989.
MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux hoje. Trad. Eni P.
Orlandi. Campinas: Pontes, 2003.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 6. ed.
São Paulo: Cortez, 2005.
ORLANDI, Eni. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP, 2007.
PÊCHEUX. M & FUCHS C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e
perspectivas (1975). In: GADET. F & HAK T. (Orgs.) Por uma análise automática do
discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradutores Bethania S. Mariani... [et al.]
3. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006.

Os monumentos materiais: recursos didáticos em aulas de PLE/PL2

Aparecida Regina Borges Sellan


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC/SP
borges@uol.com.br

Muitas discussões têm sido travadas sobre o tema ensino de português para
estrangeiros (PLE) ou português língua 2 (PL2) ou, ainda, português para falantes de outras
línguas (PFOL). Independente de como nomeamos esta prática, o que se observa é que tais
discussões remetem-se, com frequência, a questões voltadas aos conteúdos gramaticais a
serem ensinados, ao desenvolvimento de pronúncias consideradas grau ótimo, ao domínio de
determinadas situações comunicativas e alguns gêneros mais correntes nas práticas em que
alunos estrangeiros se inserem dentro e fora da sala de aula. Este trabalho objetiva tratar de
atividades exteriores à sala de aula e se insere numa pedagogia de ensino de língua na
modalidade estrangeira por uma visão que relaciona língua e cultura. Assim, apresenta uma

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

das diversas práticas desenvolvidas pelos professores do Núcleo de Pesquisa Português


Língua Estrangeira – NUPPLE - referente a aulas externas a que denominamos
visitas guiadas. Por uma perspectiva interculturalista, as visitas guiadas possibilitam
apresentar ao aprendiz estrangeiro espaços exteriores representativos da história, da ideologia
e da cultura dos falantes cuja língua busca aprender. Considera-se que a realização e a
validade das aulas guiadas levam o aluno a conhecer/reconhecer monumentos materiais
históricos e/ou culturais brasileiros como forma de aprender e assimilar a história, os valores,
a cultura, ideologia dos falantes nativos brasileiros. Essas considerações remetem-se,
também, a questões acerca dos materiais didáticos que orientam atividades complementares
do aprendizado do aluno de forma que ele possa identificar e expressar, em língua e no seu
comportamento, a apropriação da nova língua e, consequentemente, a interação com valores e
ideologias da identidade e cultura do grupo social brasileiro.

Nessa linha, faz-se necessário repensar, ainda, o papel e a formação do professor de


PLE/PL2 como um especialista, uma vez que sua formação deverá oferecer-lhe outros
domínios além daqueles próprios do professor de língua materna.

Pontos de Partida

Partimos do princípio que ensinar língua materna exige saberes diversos. A começar
por saber que língua é essa que se pretende ensinar, a quem e como se deseja ensinar. Exige
também o conhecimento do que se constrói fora da língua e a partir dela, em um contínuo
exercício de integrar os saberes da língua e os construídos na experiência da vida que se vive.
Língua heterogênea, sujeitos diversos, múltiplos saberes, de acordo com Mendes e
Castro (2008). Do mesmo modo, para ensinar língua estrangeira – o português na modalidade
estrangeira – as exigências se multiplicam, pois não se trata de um aluno que cresceu e se
formou ouvindo, assistindo, participando, partilhando fatos, histórias, saberes vividos e
vivenciados próprios de seu contexto, como é o caso dos alunos nativos, fator que,
possivelmente, facilita o aprendizado deles. Ao aluno estrangeiro deve ser oferecida a
oportunidade de conhecimento e de vivência da história do país da língua que está
aprendendo. Nesse sentido, acreditamos que conhecer os monumentos materiais e imateriais
do brasileiro amplia as possibilidades de aprendizado da língua bem como favorece a
inserção do aprendiz numa parcela do universo cultural brasileiro.

O posicionamento de Mendes e Castro confirma nossa posição, pois diante desse


contexto, o professor de PLE, por um lado, é levado a ampliar seus conhecimentos para além
daqueles relativos à língua em si, já que outros saberes, por exemplo, sobre história,
geografia, artes, arquitetura, antropologia, música, entre outros, são continuamente
requisitados desse professor. Por outro lado, lidar com tais saberes pressupõe uma
abordagem interculturalista, considerando que essa abordagem propicia planejar instrumentos
e materiais didáticos voltados para a dimensão cultural, de modo a inserir os sujeitos
envolvidos numa interação produtiva e construtora de um diálogo intercultural.

Há importantes considerações sobre a abordagem interculturalista. De modo geral, a


abordagem intercultural surge como um modo de valorizar as diferenças; por essa razão, as
práticas pedagógicas devem favorecer a uma comunicação mais global, sem fronteiras

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

restritivas, de modo a realçar o diálogo entre culturas. Nesse sentido, Silveira, desde 1998,
vem propondo um tratamento intercultural à prática pedagógica do ensino de português
língua estrangeira como forma de contribuir para o sucesso desse aluno, pois surge a
possibilidade de ele refletir, compreender, avaliar e aceitar sua própria cultura pela
compreensão da cultura do outro, percebida pela língua nova. Isso significa dar-lhe
consciência de sua própria cultura. Já Mendes ( 2008, p. 61) atribui ao que chama
qualificação intercultural ( do ensino de PLE)

como um esforço, uma ação integradora, capaz de suscitar comportamentos


e atitudes comprometidas com princípios orientados para o respeito ao
outro, às diferenças, à diversidade cultural que caracteriza todo o processo
de ensino/aprendizagem, seja ele de línguas ou de qualquer outro conteúdo
escolar. É o esforço para a promoção da interação, da integração e
cooperação entre os indivíduos de diferentes mundos culturais.

Por esse pressuposto, deve-se entender que ensinar/aprender outra língua não é
sobrepor a cultura da língua alvo à cultura de origem do aluno, mas o aluno, na medida em
que é levado a assimilar a cultura da nova língua, enriquece-se, modifica-se, cresce, pois é, ao
mesmo tempo, levado a tomar consciência de suas próprias identidades. Desse modo, deve-se
compreender que ensinar língua para estrangeiro não é ensinar apenas uma outra língua, mas
também a cultura de seus falantes.

Dar um tratamento intercultural à prática pedagógica do ensino de português língua


estrangeira não deve significar aculturamento, mas crescimento do aluno, assim que perceba
parâmetros para compreender e avaliar sua própria cultura na medida em que é levado a
perceber, assimilar e respeitar a cultura do outro – o da língua nova. Tem-se, nesse momento,
oportunidade de lidar de modo positivo com as diferenças.

Esse postulado está fundamentado no pressuposto da língua como código social de


uma comunidade que, como tal, implica visões políticas, ideológicas e culturais; e no
pressuposto do discurso como prática social interacional que traz representada a identidade
cultural dos diferentes grupos que, interdiscursivamente, constroem o marco das cognições
sociais.

O curso Português Brasileiro: Língua e Cultura, no qual a atividade é desenvolvida, é


ministrado na PUC-SP, desde 2010, a alunos estrangeiros das mais variadas procedências e
com interesses muito diversificados. Além das práticas de língua oral e escrita, aspectos
culturais manifestos nos monumentos imateriais são tratados na explicitação da língua em
uso, nas manifestações populares e intelectuais representadas pela música, pelo cinema, pela
literatura e pela produção das diferentes mídias. Já os monumentos materiais, esses são
apresentados aos alunos a partir de uma análise prévia dos interesses dos grupos.

As aulas guiadas

Com base nas discussões teóricas e metodológicas ocorrentes no grupo de pesquisa


NUPPLE e nas orientações ali surgidas, foram identificados locais representativos da história,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

da cultura, dos valores e da ideologia do brasileiro. Naturalmente, em razão de o curso ser


ministrado na cidade de São Paulo, este se torna o espaço geográfico delimitado.

Para a realização da atividade, em um primeiro momento, os alunos dos níveis


básico, intermediário e avançado são preparados pela apresentação de textos, imagens,
músicas, relatos sobre o local a ser visitado, a fim de construir para o aluno um conhecimento
prévio sobre o local. Este primeiro passo possibilita que ele crie uma expectativa sobre a
experiência, antecipe curiosidades, formule hipóteses, e até pesquise com o objetivo de
adquirir condições de mais bem explorar e interagir na atividade. Para completar este
primeiro momento, cabe ao professor preparar-se, planejar o quê e como explorar a atividade.
Assim, é extremamente importante que ele conheça o espaço, o monumento, de modo a
dominar saberes referentes a sua história, ao papel representativo do valor que lhe é atribuído
no contexto brasileiro, suas características, seu estilo, em síntese, tudo que for relevante sobre
o ambiente visitado para “fazer o outro saber” a fim de torná-lo – o aluno - capaz de interagir
e integrar-se plenamente na atividade.

Para este trabalho, selecionamos, a título de exemplificação, uma situação: uma aula
possível no Memorial da América Latina no Mercado Municipal de São Paulo. Para a
realização da atividade, faz-se necessário recuperar e apresentar informações sobre o espaço a
ser visitado, a fim de que professor e alunos estejam preparados para interagirem na
construção positiva de conhecimento pela experiência.

1-Memorial da América Latina

Fonte: https://binged.it/2bXwQj8

O Memorial da América Latina foi concebido como um monumento à integração


cultural, politica, econômica e socal da América Latina. É uma Fundação de Direito Público
Estadual, com autonomia financeira e adminitrativa, vinculada à Secretaria de Estado de
Relações Istitucionais. O conjunto arquitetônico é de autoria de Oscar Niemeyer. O conjunto
cultual é inspiração de Darcy Ribeiro e Caribé. De acordo com o site do memorial:

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

De acordo com site de apreentação do Memorial:

O Memorial da América Latina é um centro cultural, político e de lazer,


inaugurado em 18 de março de 1989, na cidade de São Paulo, Brasil. O
conjunto arquitetônico, projetado por Oscar Niemeyer é um monumento à
integração cultural, política, econômica e social da América Latina, situado
em um terreno de 84.482 metros quadrados no barro da Barra Funda. Seu
projeto cultural foi desenvolvido pelo antropólogo Darcy Ribeiro. O
complexo é constituído por vários edifícios dispostos ao longo de duas áreas
unidas por uma passarela, que somam ao todo 25.210 metros quadrados de
área construída: o Salão de Atos, a Biblioteca Latino-Americana, o Centro
de Estudos, a Galeria Marta Traba, o Pavilhão da Criatividade, o Auditório
Simón Bolívar, o Anexo dos Congressistas e o edifício do Parlamento
Latino-Americano. Na Praça Cívica, encontra-se a escultura em concreto,
também de Niemeyer, representando uma mão aberta, em posição vertical,
com o mapa da América Latina pintado em vermelho na palma.

Como o propósito da aula com a visita guiada é construir conhecimento para o aluno
aliando lingua e cultura, o segundo momento é o da visita em si, quando o professor deve
saber explorar todos os espaços disponíveis, neste caso, no Memorial. É nesta etapa que
conhecimentos mais amplos e diversificados são exigidos do professor, pois, o aluno
estimulado, tem oportunidade de questionar sobre diversos assuntos relacionados ao que já
conhece de outras experiências e ao que neste instante vivencia. Desse modo, destacamos
alguns pontos obrigatórios a serem tratados durante a visita, por exemplo:

-O que representa a criação e a existência do Memorial para o Brasil? Com que


objetivo ele foi idealizado?
-De quem é a responsabilidade pelo projeto de seu conjunto arquitetônico e o que
representa essa arquitetura de Oscar Niemeyer?
-De quem a responsabilidade pela criação do conjunto cultural presente no Memorial,
o papel antropológico de seu criador – Darcy Ribeiro – e dos artistas que dele
participaram, cujas obras são um marco identitário dos mais valiosos para a história e
a cultura latino-americana – Cândido Portinari e Carybé.

Ao professor compete explicitar o propósito que levou seus idealizadores a buscar


uma manifestação da integração cultural, econômica e social da América Latina, pelos países
que se encontram no Memorial representados. Do mesmo modo, deve saber expor as
questões históricas e ideológicas que provocaram e provocam essa busca de integração entre
esses países. Deve, ainda, dominar aspectos da vida e do trabalho de Niemeyer para explicar
o valor de seu trabalho na arquitetura vista, sentida, tocada nos espaços do Memorial. Se o
arquiteto é reconhecido e respeitado mundialmente por seu trabalho, faz-se necessário
enfatizar seu importante papel na criação desse complexo arquitetônico e cultural, como uma
síntese dos marcos da identidade do povo latino-americano, tendo como ponto de intersecção
o Brasil.

Cabe explicitar que os alunos para os quais esta atividade tem sido aplicada
apresentam, em sua maioria, formação acadêmica e cultural ampla, pois são graduados em
áreas diversificadas, têm profissão definida ou desenvolvem pesquisas acadêmicas, o que
estimula muito o interesse em saber sobre o Brasil e o brasileiro.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Desse modo, compete também ao professor saber e tratar com os alunos aspectos
sobre a concepção antropológica de Darcy Ribeiro que o orientou na projeção artística que
ilustra e figurativiza os diferentes ambientes do Memorial, especialmente, o Salão dos Atos,
com trabalhos de dois importantes artistas – Portinari, brasileiro, e Carybé, argentino, que
viveu no Brasil a maior parte de sua vida – cujas obras compõem, por um processo
metonímico, um painel integrador, histórico e cultural, da América Latina, com valor
inestimável. Por esse painel, é possível recuperar, para o aluno, a história do Brasil - e dos
países vizinhos – pelos quadros que representam, por exemplo, os processos de colonização,
de produção econômica ao longo dos tempos, pela extração mineral e vegetal, as lutas pela
dominação ou defesa dos territórios, entre outros de igual importância.

Ainda em relação ao MAL, explorar a Praça Cívica é procedimento obrigatório. Nela


encontramos uma mão aberta, em cujo centro está o mapa da América Latina, colorido em
vermelho, buscando significar o sangue do povo latinoamericano derramado nas lutas
empreendidas ao longo dos séculos em busa de liberdade. Fatores históricos e ideológicos
podem ser discutidos com base nessa representação; é um momento importante para buscar
trazer à tona uma reflexão sobre os marcos fisicos históricos nos países de origem dos alunos
e sobre o modo como tais marcos são compreendidos por eles e em que medida são
representativos de suas cultura, ideologia e história nacional.

Considerando que o Memorial disponibiliza espaços diversificados em razão de


objetivos e representatividade também diversificados, cada espaço aberto para visitação deve
ser explorado. Nesse sentido, o preparo do professor deve ser amplo, abrangendo outras áreas
do conhecimento, tais como geografia, história, política, arquitetura, antropologia, bem como
a cultura e as ideologias que perpassam por todo o processo que originou e mantém o
monumento material.

2- Mercado Municipal de São Paulo

O Mercado Municipal de São Paulo esta situado no Centro Histórico da capital, na


Rua da Cantareira. Popularmente chamado de Mercadão é uma importante referência da
cidade. Além das opções de comércio, o lazer ligado à gastronomia nacional é um dos
atrativos. Sua cosntrução data do nicio do século XX. Foi inaugurado em 1933, em
substituição ao antigo Mercado Central, que funcionava a céu aaberto na Rua 25 Maço. O
Mercadão reune e comercializa produtos de todos as regiões do Estado e fora dele.
Disponilbiliza desde hotifrutigranjeiros até especiarias importadas. Oferece refeições típicas
nao só do Brasil, mas também algumas influências da imigração estrangeira, de lanche – o
tradicional sanduiche de mortadela e o pastel de bacalhau, até a típica feijoada e as carnes
grelhadas.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

!
Fonte: http://bit.ly/2bQrDJj

Do mesmo modo que a atividade realizada no Memorial da América latina, a visita ao


Mercado propicia a construção de comhecientos variados, de modo geral, sobre os hábitos e
costumes do grupo social brasileiro, sobre os valores arquitetônicos, sobre a influência do
periodo da economia cafeeira, a produção artistica presente nos vitrais, na exposição dos
alimentos representando a agricultura, a agropecuária, a pesca.

Ao professor cabe prepara o aluno para a vivencia in loco com uma variedade
indescritível de produtos. Algumas questões tornam-se obrigatórias para a observação dos
alunos e o professor debe explorar, por exemplo:

-A representação do edifício como marco da imponente da Metrópole do café.


-A importância da arquitetura criada por Francisco Ramos de Azevedo, semeslante á
construções européias.
-A beleza dos vistrais produzidos por um artista russo – Conrado Sorgenicht filho,
famoso pelo trabalho realizado na Catedral da Sé e outras mais de 300 igrejas
brasileiras.
- a variedade de produtos da natureza brasileira- legumes, frutas, verduras – e
produtos manufaturados, de forma artezanal ou industriasl, como queijos, embutidos,
especiarias, etc.

Não há duvidas sobre a riqueza a ser explorada num aula ambientada no espaço como
o do Mercado Municipal de São Paulo. Por essa razão, o professor deve estar preparado
para analisar junto com os alunos a expressividade dos 32 painéis, subdivididos em 72
vitrais onde se pode identificar o trabalho manual do produtor rural no lavor da terra, no
cultivo e na colheita de produtos típicos, a tração animal para o arado e o transporte, a
criação do gado e de aves, a paisagem brasileira. Todo esse universo de modo a representar
toda a produção alimentícia, todo o valor da produção e do trabalho humano e dos hábitos
do povo brasileiro.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Como orientação da atividade, é possivel propor aos alunos estabelecerem relações


com suas histórias de origem, com suas formas avaliar seus monumentos. Qual a
importância de seus monumentos e como eles refletem a história de seu povo. É possivel,
ainda, verificar as formas de produção e comercialização dos produtos em seus países, bem
como os hábitos alimentares, as combinaçõe de produtos, a forma de consumo, se cozidos,
crus, assados. Por exemplo, ocorre um grande estranhameto dos alunos provenientes de
países latinos, quando explicamos o uso do abacate como base para sobremesa, isto é,
preparado com açúcar ou outro equivalente, como o doce de leite, pois a grande maioria dos
nossos vizinhos da América Latina usam essa fruta como base para pratos salgado,
adicionando sal, limão e até pimenta. Prática essa que, para nós, a princípio, soa estranha,
mas muitos brasileiros já assimilaram.

!
Fonte: http://bit.ly/2bAnaHd

A aula guiada no Mercado ainda possibilita ao aluno vivenciar o modo como o


brasileiro seduz o público para adquirir seu produto. As formas de apresentar o produto, de
‘convidar” o freguês para a compra, os enunciados chichês e o vocabúlário específico.
Nesse tipo de mercado, de comercio, é posivel apalpar as frutas e os legumes, degustá-los
para verificar o sabor e a qualidade, escolher aquele que mais agrada os olhos, negociar o
preço e a quantidade e, ainda, desistir da compra a qualquer momento. Tal comportamento
difere muito das práticas habituais descritas pelos alunos em suas realidades. Normalmente
adquirem os podutos em pequenas quantidades, já embalados, sem a possibilidade de tocá-
los e experimentá-los. De algum modo, passado o estranhameto, os alunos geralmente
apreciam muito a novidade.

Muitos outros pontos podem ser trazidos para a discussão em aula, a fim de conduzir
uma reflexão e uma consientização, por exemplo, a arquitetura que coloca em foco a
modernidade brasileira versus a antiguidade europeia; o valor das raízes históricas

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

brasileiras na formação do povo impressas nos vitrais e na aquitetura, o valor atribuido à


terra e aos produtos dela extraídos e/ou plantados.

Todos esses procedimentos possibilitam ao aluno fazer uso da língua que está
aprendendo, verbalizar suas impressões, interagir de modo a resolver sua necessidade de
compra, avaliar seu preparo para colocar a nova lingua em situação real de uso.

É importante, ainda, considerar que, no início, poderia parecer tratar-se apenas de


uma visita no modelo turístico. No entanto, no desenvolvimento da atividade, antes,
durante e após, os alunos começam a perceber que há um planejamento com objetivos
claros, organizados, sequenciados, com resposta muita positiva, uma vez que desencadeia
discussões nas quais é possivel confirmar o aprendizado do aluno.

À guisa de conclusão

Após avaliar a repercussão da atividade, devemos destacar que os resultados apontam,


por um lado, uma produtividade mais eficaz dos alunos, pois eles se tornam mais
entusiasmados para as aulas, após serem inseridos em práticas que materializam conceitos,
informações, saberes oferecidos, antes, de forma abstrata e distante. Por outro lado, conforme
afirmamos anteriormente, apontam que o ensino de PLE, por uma perspectiva intercultural
não significa aculturação do outro, mas dar a ele oprtunidade de refletir sobre sua própria
cultura. Foi manifesto nas falas desses alunos que as reflexões e comparacões surgidas após
essas atividades permitiram a eles repensarem suas histórias, rever valores e ideologias
subjacentes a suas formações, de modo que (re)conheçam suas próprias identidades.

Referências

MENDES, E. Língua, cultura e formação de professores: por uma abordagem de ensino


intercultural. In MENDES e CASTRO, M. L. (Orgs.) Saberes em Português: ensino e
formação docente. Campinas: Pontes, 2008.
MENDES e CASTRO, M. L. (Orgs.) Saberes em Português: ensino e formação docente.
Campinas: Pontes, 2008.
SELLAN, A. R. B. Ensino de Português Língua Estrangeira e a formação do professor
especialistas. In BASTOS, N. M. Língua Portuguesa: reflexões lusófonas. São Paulo: EDUC,
2006.
SILVEIRA, R. C. P. Aspectos da identidade cultural brasileira para uma perspectiva
interculturalista no ensino/aprendizagem de Português Língua Estrangeira. In: SILVEIRA,
R.C.P. (Org.) Português Língua estrangeira: Perspectivas. São Paulo: Cortez, 1998.
______________ Identidade cultural do brasileiro e crônicas nacionais. In JÚDICE, N.
(Org.). Português língua estrangeira: leitura, produção e avaliação de textos. Niterói:
Intertexto, 2000.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Desenvolvimento de material didáctico para o ensino de Português Brasileiro como


língua de acolhimento no projeto PBMIH-UFPR

Carla Alessandra Cursino, Pós-Graduação em Letras-UFPR.


cursino.carla@gmail.com
Jovania Perin Santos, Celin-UFPR
jovaniaperinsantos@gmail.com

1- Introdução

Através deste artigo pretendemos compartilhar uma experiência de ensino realizada


com alunos migrantes do projeto PBMIH - Português Brasileiro para Migração Humanitária,
projeto de extensão universitária da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em 2013, o
aumento significativo do fluxo migratório na cidade de Curitiba impôs à comunidade
acadêmica a necessidade de criar cursos do português brasileiro para migrantes e refugiados.
Tal realidade motivou os integrantes do PBMIH a pensar em estratégias de ensino que
pudessem atender essa nova demanda.

O primeiro passo para cumprir este novo desafio foi buscar um aporte teórico no qual
o projeto pudesse se embasar. Chegou-se ao conceito de língua de acolhimento, proposto por
Grosso (2010), o qual será explorado posteriormente neste trabalho. E, embora o Centro de
Línguas e Interculturalidade (Celin-UFPR) da universidade tenha mais de 20 anos de
experiência no ensino de português como língua estrangeira (PLE), verificou-se que seus
materiais didáticos não eram adequados às necessidades do público atendido pelo PBMIH.
Tampouco existiam no mercado editorial livros voltados à população refugiada no Brasil.
Decidiu-se, então, que o PBMIH produziria seu próprio material didático, voltado à realidade
de seus alunos.

O presente artigo tem como objetivo apresentar as experiências de produção de


material didático no projeto PBMIH. Para tal, explicaremos as particularidades do projeto,
bem como os conceitos teóricos e metodológicos que orientam as práticas de ensino do
PBMIH. Assim, as etapas de confecção dos materiais didáticos – organizados em Unidades
Temáticas, bem como sua importância na inserção social de migrantes e refugiados na cidade
de Curitiba, são o foco deste trabalho.

2- Desenvolvimento

2.1. O PBMIH: Português Brasileiro para Migração Humanitária

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

O relatório “Tendências Globais”, publicado anualmente pela ACNUR - Agência da


ONU para Refugiados, revela que existem atualmente 65,3 milhões de pessoas em situação
de refúgio no mundo144. Nos últimos anos, o Brasil tornou-se destino de milhares de
indivíduos que, por diversas razões, buscam um novo recomeço para suas vidas. Desde 2010,
após o terremoto que assolou o Haiti, o governo brasileiro concedeu mais de 50 mil vistos
humanitários a haitianos. Destes, mais de 5000 vivem na cidade de Curitiba, localizada no
Sul do país145. Já os diversos conflitos armados que ocorrem no mundo, com destaque para a
guerra da Síria, são o motivo para o aumento em mais de 2.868% o número de solicitação de
refúgio em território brasileiro entre 2010 e 2015. Segundo o mais recente relatório da
ACNUR, 35% dos refugiados estabeleceram-se na região Sul do país e muitos desses
indivíduos escolheram Curitiba e região metropolitana para tentarem uma nova vida.

Neste contexto, atendendo ao pedido de duas instituições locais – a Prefeitura


Municipal de Curitiba e a organização não governamental Casa Latino-Americana (Casla),
foi criado em setembro de 2013 o PBMIH - Português Brasileiro para Migração Humanitária.
Trata-se de um projeto de extensão universitária do Curso de Letras da Universidade Federal
do Paraná (UFPR) e do Centro de Línguas e Interculturalidade da mesma instituição (Celin-
UFPR) cuja iniciativa consiste na concepção de um programa de ensino, pesquisa e extensão
de português brasileiro voltado a migrantes na condição de refugiados e/ou em situação de
vulnerabilidade social.

Atualmente, o PBMIH é um dos pilares de um Programa de Extensão e Pesquisa que


integra diversos cursos da UFPR, o Política Migratória e a Universidade Brasileira (PMUB).
Tal programa, criado a partir das necessidades e demandas do público atendido, está voltado
às reflexões e ações em prol dos fluxos migratórios contemporâneos e na permanência de
migrantes, refugiados e apátridas no Brasil. A iniciativa é parte do quadro institucional da
UFPR e cumpre o estabelecido no Termo de Parceria firmado em 2013 entre a instituição e a
ACNUR, com vistas à implementação da Cátedra Sérgio Vieira de Mello146 .

O Programa conta com seis projetos de extensão, coordenados por seis cursos de
graduação da UFPR: Letras (aulas de português brasileiro); Direito (assessoria jurídica);
Informática (ensino de informática e letramento digital); Psicologia (assistência psicológica);

144 A informação pode ser conferida em http://www.acnur.org/portugues/recursos/estatisticas/. Acesso em 25 de


julho de 2016.

145Dados retirados deste link: http://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/sine-curitiba-e-porta-de-entrada-para-haiti -


anos-no-mercado-de-trabalho/34671. Acesso em 25 de julho de 2016.

146 A Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM), criada em 2003 pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR) tem como o objetivo o incentivo à pesquisa e a produção acadêmica relacionada ao Direi-
to Internacional dos Refugiados.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Sociologia (pesquisas para o Observatório de Migrações); História (aulas de história do


Brasil).

No PBMIH, objeto deste trabalho, o foco está no ensino da língua portuguesa e na


consequente inserção do migrante e refugiado na cidade de Curitiba e região. Com base em
Grosso (2010), entendemos que o domínio do idioma é o primeiro passo para que esses
sujeitos sejam capazes de integrar-se com autonomia, adquirindo, assim, competências
linguísticas e sociais para participar de todas as esferas da sociedade: mercado de trabalho,
sistema de educação e de saúde, opções de lazer, etc. Este modo de pensar rege, assim, a
metodologia, a produção de materiais didáticos e as ações para além da sala de aula do
projeto.

2.1.1. Perfil dos alunos e metodologia

De setembro de 2013 a junho de 2016, o projeto atendeu a 1138 alunos. Destes, 992
são haitianos e 146 são de outros países – Síria, Tunísia, República Democrática do Congo,
Nigéria, Egito, Marrocos, Paquistão, Bangladesh, Colômbia, Peru e Venezuela.

O projeto divide-se, atualmente, em duas frentes de trabalho. A primeira é o PBMIH-


Haiti. São nove grupos semestrais de ensino de língua e cultura brasileira exclusivamente
para haitianos, divididos nos seguintes níveis: Letramento (para alunos que chegam com
pouco ou nenhum conhecimento de sua língua materna escrita); Básico I; Básico II; Pré-
Intermediário; Intermediário I e Intermediário II. As aulas acontecem semanalmente aos
sábados à tarde, com carga horária de três horas/aula. A segunda frente é o PBMIH-
Acolhimento, voltado para estudantes de outras nacionalidades. São três grupos semestrais,
um do nível Básico I e dois do Básico II, dedicados a esses aprendizes. Os encontros
acontecem duas vezes por semana, com três horas-aula147. Cada um deles tem capacidade
para atender 20 alunos.

Todas as ações do PBMIH possuem como base o ensino de português brasileiro como
língua de acolhimento. Cabete (2010) apoia-se em Soto Aranda e El-Madkouri (2006) para
definir esta língua como um idioma adquirido em contexto migratório, como a situação em
que se encontram os alunos do PBMIH. Grosso (2010) vai além e afirma que a língua de
acolhimento é aquela orientada para a ação e, sobretudo, para um saber fazer voltado à
interação social e às condições de vida que o migrante encontrará na nova sociedade
acolhedora.

147 Mais informações sobre o perfil dos alunos, como idade, sexo, classe social e distribuição em Curitiba e re -
gião podem ser acessadas em Ruano e Cursino (2015).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A partir deste conceito proposto por Grosso (2010), percebemos a relação entre a
aprendizagem do idioma do país de acolhimento e a inserção do migrante na sociedade
acolhedora. O desenvolvimento de políticas linguísticas voltadas a este público recém-
chegado faz-se necessário, uma vez que “quem chega precisa de agir linguisticamente de
forma autônoma, num contexto que não lhe é familiar”, (GROSSO, 2010, p.66) e não tê-las
significa deixar migrantes e refugiados às margens da guetização, uma vez que, conforme
ressalta Amado (2013), esses sujeitos chegam ao país de acolhimento em situação de miséria,
seja ela econômica, social ou moral.

Deste modo, todas as práticas pedagógicas do PBMIH visam à inserção e à integração


dessa nova parcela da população de Curitiba na cidade. O domínio da língua é o primeiro
passo para que tal integração, de fato, ocorra, pois “quanto mais os migrantes sentirem que
fazem parte do país de acolhimento e da sua sociedade, mais depressa estarão prontos para
adquirirem as necessárias competências linguísticas (e outras) para se tornarem membros de
pleno sucesso” (OLIVEIRA, 2010, p.11).

Além das barreiras linguísticas, a inserção de migrantes e refugiados ainda possui


uma dificuldade a mais. Os migrantes, sobretudo os haitianos, estão em fluxo migratório, ou
seja, estão sempre deslocando-se para outras cidades ou outros países em busca de melhores
condições de vida e trabalho. Diante deste cenário, o PBMIH desenvolveu uma metodologia
própria chamada “Porta-Giratória” / Ensino em Trânsito148, a qual acontece de forma muito
diferente em comparação aos cursos de língua estrangeira em geral. Embora os grupos sejam
semestrais, a proposta do projeto é atender o aluno no momento em que ele chega, pois,
conforme salienta Oliveira (2010), quanto mais rápido o indivíduo dominar o idioma do país
de acolhimento, mais rápido ele irá se integrar na sociedade acolhedora. Primeiramente, ele
passa por um teste de nivelamento para que se possa avaliar seu conhecimento de língua
portuguesa. Caso haja vaga na turma de seu nível, o novo aluno é prontamente encaminhado
para a sala de aula e inicia o curso no mesmo dia. Caso não haja vagas, ele entra em uma lista
de espera e é chamado para ingressar no projeto assim que surgir uma nova vaga.

Para que o formato “Porta Giratória” possa funcionar, cada grupo conta com dois ou
três professores - em geral, alunos do curso de graduação e pós-graduação em Letras da
UFPR, além de professores da mesma instituição. Deste modo, sempre há um professor
pronto para receber o novo aprendiz e auxiliá-lo em sua adaptação na sala de aula e nos
conteúdos já trabalhados. Há, ainda, uma grande preocupação com a formação dos docentes,
principalmente por que abordagens teóricas sobre as práticas de português como língua
estrangeira e língua de acolhimento são muito recentes na UFPR e no Brasil de maneira
geral. Deste modo, todos os professores do projeto passam por um curso de formação

148 O conceito de Ensino em Trânsito é melhor explorado por Ruano e Grahl (2015).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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continuada cujos objetivos vão ao encontro das demandas do PBMIH. São encontros
semanais com o intuito de discutir aspectos relevantes sobre o português brasileiro e de
refletir sobre práticas didáticas e sobre a produção de material didático voltado para
migrantes e refugiados, de acordo com as particularidades deste grupo de estudantes.

O público atendido pelo PBMIH e a metodologia adotada pelo projeto impõem a


produção própria de material didático. Segundo Ramos e Marchesan (2013), os materiais
didáticos devem atender às necessidades e particularidades de um público específico para que
se atinja a interação necessária para o aprendizado da língua. No entanto, propostas voltadas
para o ensino de português brasileiro para migrantes e refugiados são praticamente
inexistentes no mercado editorial. Deste modo, buscamos embasamentos teóricos nos quais
podemos nos apoiar para produzir nossos próprios materiais e chegamos à abordagem
comunicativa e ao ensino de língua por tarefas. Tais conceitos, bem como as etapas da
construção de nossos materiais e exemplos de unidades temáticas, serão mostrados e
explicados na sequência.

2.2. Produção de material didático

2.2.1. A abordagem comunicativa e o ensino de língua por tarefa

No início do projeto PBMIH uma necessidade urgente foi o material didático a ser
utilizado nas aulas. Primeiramente foram utilizadas as atividades aplicadas pelos cursos
regulares do Português como Língua Estrangeira (PLE) no Celin-UFPR, porém tais propostas
logo se demonstraram ineficientes e insuficientes para os desafios que se apresentavam.
Embora o empenho em preparar material didático próprio tenha sido considerado complexo,
optou-se por dar início a esse empreendimento. As razões por essa opção foram a busca por
adequar-se ao perfil dos alunos, suas necessidades e interesses. Foi então que, nas reuniões
semanais do grupo, discussões foram feitas para buscar embasamentos teóricos e didático-
metodológicos que auxiliassem os professores a produzirem seus materiais.

A experiência de 20 anos acumulada no ensino de PLE no Celin-UFPR e de


professores do curso de Letras da UFPR que participavam, e ainda participam, do projeto
forneceu conceitos e proporcionou reflexões fundamentais para o desenvolvimento das
propostas de ensino. Assim, contribuições em diferentes áreas deram ao projeto maior
consistência teórica, por exemplo: estudos sobre multiletramentos, letramento crítico, leitura,
fonética e fonologia, variação linguística, metodologia de ensino, gêneros discursivos, ensino
de línguas por tarefas e literatura.

Acreditamos que a produção de materiais didáticos necessita da contribuição de


diversos campos do saber e que o seu maior desafio é aliar a teoria à prática, conforme

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contemporâneas

explica Mendes (2011): “A busca pelo equilíbrio entre teoria e prática, entre desejo e
realização, entre o ideal e o factível tem sido a principal meta daqueles imbuídos na tarefa de
ensinar língua” (MENDES, 2011, p.145).

Além dessa complexidade, podemos citar ainda o processo contínuo de elaboração e


reelaboração que são vitais para as propostas de ensino. Só assim haverá atualização quanto
às temáticas e adequação às necessidades dos estudantes que mudam com o passar do tempo
e à realidade sociocultural em que estejam inseridos.

Neste trabalho iremos nos concentrar em descrever o processo de confecção de


Unidades Temáticas (UTs) com base no ensino de línguas por tarefas (ELT) por ser este um
conjunto de procedimentos teórico-metodológicos que mais nos parece adequado à realidade
de ensino do português brasileiro como língua de acolhimento.

O ensino de línguas por tarefas ganha corpo dentro do enfoque comunicativo pela
necessidade de envolver os aprendizes de línguas na produção de tarefas contextualizadas,
com um propósito e situações semelhantes as do mundo real. Como enfoque comunicativo
consideramos orientações metodológicas no campo do ensino de línguas que evidenciam o
caráter funcional da língua como instrumento de comunicação. O conhecimento
sociocultural, discursivo, estratégico e gramatical faz parte do uso funcional da língua.

De acordo com Paiva (2005) foi Dell Hymes (1972) quem forneceu um dos conceitos
estruturantes do enfoque comunicativo. De acordo com a autora, “para Hymes, um falante
para ser comunicativamente competente não deve apenas dominar as estruturas linguísticas,
mas saber, também, como a língua é usada pelos membros de uma comunidade de fala”.
(PAIVA, 2005, p. 158).

Além disso, Paiva (2005) cita como fundamentais para o enfoque comunicativo as
ideias de Wilkins (1976) e Widdowson (1978). A autora enfatiza que Wilkins contribui com
um novo olhar para o ensino de línguas quando propõe que a organização do material
didático seja feito pelas noções, ou seja, pelos significados (lugar, espaço, tempo,
movimento) e pelas funções da linguagem ou atos comunicativos, por exemplo: pedir e dar
informações, fazer um pedido em um restaurante; etc.

No final dos anos 1980 um estudo realizado por Prabhu (1987) dá início à concepção
do ELT - Ensino de Línguas por Tarefas. Nesse estudo o linguista indiano descreve um
projeto de ensino de língua no sul da Índia em que foram utilizadas tarefas. Segundo Santos
(2014), nesse projeto o direcionamento era para o significado e procurava-se evitar a pré-
seleção da linguagem e atividades focalizadas na forma. Acreditava-se que a forma seria
melhor aprendida quando a atenção dos alunos estivesse voltada para o significado.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Na mesma época o linguista David Nunan (1989) publica uma edição voltada à
descrição e orientação quanto ao ELT. O objetivo do livro – Designing tasks for the
communicative classroom – é fornecer aos professores uma introdução prática para o design e
desenvolvimento de tarefas para o ensino de línguas. O autor apresenta cinco variáveis que
devem ser levadas em conta para a análise de uma tarefa: objetivos, insumo, atividades, papel
do professor, papel do aluno e contexto.

Mais tarde outros pesquisadores na área de ensino de línguas também publicam


relevantes estudos com foco em tarefas, como Rod Ellis (2003): Task-based language
learning and teaching. Sheila Estaire publica em 2009 El aprendizaje de lenguas mediante
tareas. Neste livro ela descreve a aprendizagem de línguas através de tarefas como um
modelo didático orientado pela construção da competência comunicativa em todas as suas
dimensões e centrado na ação e no desenvolvimento da capacidade dos alunos de realizar
coisas através da língua.

Esses autores e seus estudos foram essenciais para a mudança de direcionamento


quanto ao ensino de línguas. Incentivaram práticas de ensino voltadas à realidade
sociocultural dos alunos, ou seja, às suas vivências, e à prática de atos comunicativos que
pudessem dar condições de se expressar e interagir socialmente.

No Brasil um dos primeiros estudos na área do ELT foi de Barbirato (1999). Segundo
a autora “o uso de tarefas no ensino de línguas não é algo novo, nem uma descoberta inédita
do enfoque comunicativo. O que é novo e diferente é a maneira como o uso delas é
tratado” (BARBIRATO, 1999, p.60). Segundo Santos (2014), houve uma mudança em
relação à valorização das tarefas enquanto estratégia de ensino, à organização de programa de
curso e à sua inclusão em estudos acadêmicos.

A versatilidade do ELT permitiu sua utilização em diversos campos de ensino. Essa


versatilidade refere-se à possibilidade de agregar diferentes práticas pedagógicas e a sua
adaptação a diferentes propósitos educacionais. Um exemplo disso é a organização de uma
unidade temática, que embora tenha por objetivo a realização de uma atividade ou tarefa
comunicativa, permite ou aceita a prática de atividades linguísticas, leitura e interpretação de
textos (sejam orais ou escritos). É possível, então, agregar propostas que julgamos
necessárias para o cumprimento das tarefas. Dessa forma, não se trata de um modelo rígido,
mas de um conjunto de procedimentos voltados ao cumprimento de uma tarefa de produção
de textos integrados à prática de conteúdos linguísticos e discursivos.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Embasamo-nos em Andriguetti (2009) para definir tarefa como “oportunidades de


convidar o aluno a participar em situações de uso da linguagem com propósitos definidos e
em contextos específicos” (ANDRIGUETTI, (2009, p. 16).

São exemplos de tarefas:

FIGURA 1 - Unidade temática - Despesas mensais


Fonte: PBMIH - Celin-UFPR

O exemplo acima está mostrando uma tarefa oral e outra escrita que fazem parte de
uma unidade temática cujo objetivo é praticar situações de comunicação relacionadas a
despesas mensais. Os enunciados das tarefas apresentam um locutor, que é alguém que
precisa cumprir um objetivo, um interlocutor (Sanepar149 e a Prefeitura), o propósito a ser
cumprido (fazer uma reclamação), o gênero do texto a ser realizado. A condição dos
interlocutores pressupõe um registro linguístico formal e por isso o ideal é que esses alunos
sejam orientados a produzi-los, e ainda, terem lido ou ouvido um texto semelhante.

149 A Sanepar é a Companhia de Saneamento do Paraná.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Como produzir uma tarefa significa produzir um texto (oral ou escrito),


conhecimentos relacionados aos gêneros discursivos irão contribuir de forma significativa
para orientarmos nossos alunos a cumprir tais tarefas.

A definição de qual proposta de texto solicitar aos alunos deve seguir um rígido
processo de observação dos gêneros de partida (para leitura e análise) que já foram estudados
pelos alunos e o que eles ainda necessitam praticar ou aprender.

Na sequência vamos descrever o processo de desenvolvimento de uma UT.

2.2.2. As unidades temáticas do PBMIH

As Unidades Temáticas (UTs) são um conjunto de atividades que têm um tema em


comum e apresenta várias etapas que visam à prática de diferentes competências. Segundo
Santos (2014), uma UT é “uma unidade de ensino permeada por um mesmo tema e com
objetivos determinados que culminam na produção de diferentes tarefas.” (SANTOS, 2010,
p.14). Essas UTs constituem o planejamento do que os professores irão praticar com os
alunos durante a aula. Elas são guias que apoiam, direcionam e orientam. No livro Portos de
Passagem, de João Wanderley Geraldi (1997, p. 87), encontramos a seguinte citação:

... Com efeito, assim como qualquer organismo executa qualquer sinfonia,
olhando para a partitura a qual talvez ele não fosse capaz de compor nem de
executar de cor só com a voz ou com o órgão, assim também por que é que
não há o professor de ensinar na escola todas as coisas, se tudo aquilo que
deverá ensinar e, bem assim, os modos como o há de ensinar, o tem escrito
como que em partituras? (Comenius, 1627: XXXII-4).

A citação foi escrita por Comenius em sua Didacta Magna e ressaltava a importância
do planejamento das aulas e a sua execução como uma sinfonia. O cuidado ao qual o autor se
refere em relação às práticas de ensino são uma preocupação antiga e a harmonia entre as
atividades, a escolha dos textos que farão parte dela e os objetivos de ensino são elementos
que precisam ser cuidadosamente pensados.

Deste modo, o ponto de partida para a elaboração das UTs deve ser o programa de
curso elaborado a partir de estudo ou pesquisa sobre o perfil, as necessidades e os interesses
dos alunos. O programa de curso é como um mapa que permite visualizar os propósitos do
curso, os gêneros discursivos a serem lidos e praticados, as tarefas a serem cumpridas pelos
alunos, os temas a serem abordados, os principais tópicos culturais e os tópicos linguísticos a
serem explorados.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Conforme descrito anteriomente, no projeto PBMIH existem duas frentes de trabalho:


PBMIH-Haiti e PBMIH-Acolhimento. Para a primeira, a aula deve ter começo, meio e fim
em cada encontro de 3 horas-aula. Para o PBMIH-Acolhimento como há maior regularidade
da frequência dos alunos as aulas e as UTs são organizadas para cada dois encontros que
juntos somam 6 horas-aula. Para estes projetos sugerimos que as UTs tenham os seguintes
objetivos:

● introdução ao tema (questões para conversação, atividades de prática de


vocabulário, textos curtos como charges, imagens, folhetos e etc);
● compreensão de áudio e/ou vídeo;
● leitura, compreensão e interpretação de textos escritos que no decorrer das unidades
devem abranger diferentes gêneros discursivos.
● prática de diferentes atos de fala como interrogar, convidar, fazer solicitações,
reclamações, pedidos e etc.;
● ampliação de vocabulário;
● prática de pronúncia e entonação;
● prática e reflexão de estruturas linguísticas;
● produção de textos orais e escritos.

Seguindo estes objetivos, a confecção das UTs segue algumas etapas que são:
garimpagem de textos (orais e escritos); didatização destes textos com propostas de pré e pós-
leitura; elaboração de tarefas de produção de textos; elaboração de atividades de reflexão
sobre as estruturas linguísticas e exercícios de pronúncia e prosódia, assim como exercícios
de prática gramatical.

A etapa garimpagem de textos é assim chamada porque efetivamente o professor se


transforma em um garimpeiro à procura de textos (orais ou escritos) que possam atender a
especificidades diversas como ter qualidade e um grau de dificuldade que atenda o nível de
proficiência dos alunos. Além disso, atualmente, no projeto PBMIH estamos produzindo
materiais didáticos apenas com textos, vídeos e áudios livres de direitos autorais, os
chamados textos CC (Creative Commons). Essa preocupação dobra o tempo de procura de
textos autênticos para serem usados nos materiais impressos e compilados em apostilas.

Após a definição dos textos inicia-se o processo de didatização dos textos. Essa etapa
implica em propor perguntas de interpretação, compreensão e discussão que constituem dois
momentos, pré-leitura e pós-leitura.

A seguir são elaboradas as tarefas e para concluir o trabalho seguem as etapas de


elaboração de atividades de reflexão linguística e exercícios de pronúncia, prosódia e
exercícios de prática gramatical.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

As etapas aqui citadas devem seguir de guia para a confecção das UTs, porém não
devem ser vistas como uma camisa de força que limita a criatividade do professor elaborador
de materiais. A criação das propostas de ensino deve acontecer de modo a surpreender os
alunos e instigá-los a envolver-se com a proposta e a produzir as tarefas e as discussões. Os
anexos 1 e 2 mostram o resultado de todas essas etapas. O primeiro é uma UT para alunos do
PBMIH-Haiti. O segundo é voltado para um dos grupos do PBMIH-Acolhimento.

3. Considerações Finais

O PBMIH é uma iniciativa com diversos desafios: alunos com diferentes níveis de
proficiência da língua-alvo em uma mesma turma, déficit de letramento em língua materna, a
realidade colocada pelo formato “Porta-Giratória” (uma vez que o aluno não segue todas as
aulas do semestre) além da própria condição de vida em que muitos dos estudantes se
encontram. Todos esses fatores impõem uma complexidade ao processo de ensino-
aprendizagem e, consequentemente, à produção de material didático do projeto.

Embora o projeto esteja diante de constantes desafios, o PBMIH coloca-se em uma


posição bastante flexível e está sempre voltado às demandas dos migrantes, pois este público
encontra em situação de vulnerabilidade social. Assim, a produção de material didático deve
seguir a mesma proposta do projeto. Por isso, os materiais vão ao encontro das necessidades
dos nossos alunos, de acordo com o nível de proficiência da língua-alvo e do tempo de
permanência na cidade – o que desperta neles novas ambições. Independente do nível para o
qual são produzidos, todos os materiais visam auxiliar o aprendiz a ganhar, cada vez mais, o
domínio do idioma dentro de todas as competências (produção e compreensão oral e escrita)
por meio de um saber fazer relacionado às diversas práticas cotidianas. Este é o pressuposto
da língua de acolhimento, que orienta todas as orientações metodológicas do projeto.

Entendemos que dominar a língua é sinônimo de maior autonomia e, por sua vez, de
maior inserção social. Deste modo, as Unidades Temáticas criadas pela equipe de professores
do PBMIH trazem assuntos relacionados ao dia a dia (vida profissional, como ir ao médico,
como funciona o sistema de educação do Brasil, entre outros), à inserção sociocultural
(opções de lazer em Curitiba, etc.) e reflexões sobre a realidade brasileira atual (questões
políticas, preconceito racial, questões de gênero). Acreditamos, assim, que a sala de aula não
é espaço apenas de sistematização do idioma, mas sim de aprendizagem e reflexão das
diversas facetas da sociedade acolhedora.

Sabemos também que um dos maiores desafios da migração é a aceitação deste outro
que chega a uma nova sociedade. O primeiro passo para que o migrante seja, de fato, aceito é
a criação de espaços de trocas de experiências culturais. Ao longo de sua existência, o projeto

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

tem promovido diversas atividades culturais em Curitiba organizadas pelo Núcleo de


Integração PBMIH, cujo intuito, conforme explicam Ruano e Cursino (2015), é promover um
intercâmbio de saberes entre curitibanos e migrantes para que todos entendam a nova
configuração social curitibana. A sala de aula também deve ser um destes locais de
construção de um terceiro espaço, como propõe Bhabha (1998). Assim, os materiais didáticos
proporcionam oportunidades para que o migrante possa apresentar sua história e sua cultura.

Vale ressaltar, por fim, que no decorrer dos últimos quatro anos, os professores do
projeto PBMIH vêm se dedicando a pensar a produção dos materiais didáticos e também as
práticas de ensino. Conseguimos elaborar várias UTs que agora estão sendo compiladas em
uma apostila e em breve serão disponibilizadas para os alunos. Essa é uma importante
conquista se pensamos no curso tempo do projeto e que os professores são voluntários. No
entanto, sabe-se que há muito por fazer, principalmente no aprimoramento dos materiais
disponíveis atualmente, sempre tendo em mente que as UTs e a sala de aula são etapas
importantes para que migrantes possam recomeçar suas vidas em uma sociedade que deve
acolher e transformar plenamente sua configuração social.

Referências

ANDRIGHETTI, G. H. A elaboração de tarefas de compreensão oral para o ensino de


português como língua adicional em níveis iniciais. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre:
UFRGS, 2009.
AMADO, Roseane de Sá. O ensino de português como língua de acolhimento para
refugiados. Brasília: Revista Siple, ano 4, nº 2, outubro/2013.
BARBIRATO, R. de C. A tarefa como ambiente para aprender LE. Dissertação de Mestrado.
Campinas: Unicamp, 1999.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
ELLIS, R. Task-based language learning and teaching.Oxford: OUP, 2003a.
__________. Designing a task-based syllabus. RELC Journal,v. 34, n. 1, p. 64-81, 2003b.
ESTAIRE, S. El aprendizage de línguas mediante tareas: de la programação al aula. Madrid:
Edinumen, 2009.
GERALDI, J. W. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo : Martins Fontes, 1997.
GROSSO, Maria José dos Reis. Língua de acolhimento, língua de integração. Lisboa:
Horizontes de Linguística Aplicada, v.9, nº 2, p. 61-77, 2010.
MENDES, E. O português como língua de mediação cultural: por uma formação intercultural
de professores e alunos de PLE. In: MENDES, E. (Org.) Diálogos interculturais: ensino e
formação em português língua estrangeira. - Campinas: Pontes, 2011.
NUNAN, D. Designing tasks for the communicative classrooms. Cambridge: Cambridge
University Press. 1989.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

OLIVEIRA, Ana Paula. Processamento da Informação num Contexto Migratório e de


Integração. In Grosso, Maria José. Lisboa: Educação em Português e Migrações, 2010.
PAIVA, V.L.M.O. Como se aprende uma língua estrangeira? In: ANASTÁCIO, E.B.A.;
MALHEIROS, M.R.T.L.; FIGLIOLINI, M.C.R. (Orgs). Tendências contemporâneas em
Letras. Campo Grande: Editora da UNIDERP, 2005. p. 127-140

RAMOS, A. G.; MARCHESAN, M. T. N. O ensino de PLE para fins específicos e a


produção de livros didáticos. Horizontes de Linguística Aplicada, ano 12, n. 2, 2013.
RUANO, Bruna P.; CURSINO, Carla A. Português Brasileiro como Língua de Acolhimento.
Projeto PBMIH - um estudo de caso. Ponta Grossa: Anais do I Congresso Internacional de
Estudos em Linguagem, 2015.
RUANO, Bruna P.; GRAHL, João A. Portuguese as a welcoming language – teaching
experiencies with Haitian and Syrian students from PBMIH-UFPR project. San Juan: Anais
Latin American Studies Association (LASA), 2015. Disponível em http://
lasa.international.pitt.edu/auth/prot/congresspapers/Past/lasa2015/files/45600.pdf. Acesso em
30 de julho de 2015.
SANTOS, J. M. P. Propostas de critérios para elaboração de unidades temáticas e de
enunciados de tarefas em contexto de ensino de PLE no Celin-UFPR. 149 p. Dissertação
(Mestrado em Estudos Linguísticos) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014.

ANEXO 1: Unidade Temática voltada para alunos do nível Básico I do PBMIH-


Haiti. Autoras: Carla Cursino e Rebeca Queluz.

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ANEXO 2: Unidade Temática produzida para o nível Básico II do PBMIH-


Acolhimento. Autores: Ivan Eidt Colling, Jovania Perin dos Santos, Mariana
Paiva e Nicolas Batista.

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O professor-reflexivo no ensino de PLE


Eliana Soares
Universidade Estadual do Norte do Paraná
esoares@uenp.edu.br

Os professores envolvidos no processo de ensino de Língua Estrangeira (LE) e


Português como Língua Estrangeira (PLE) tem como finalidade máxima preparar o aluno
para interagir com competência na língua-alvo diante de uma tecnologia globalizada e capaz
de proporcionar infinitas possibilidades de relações sociais.

Mediante tal desafio, a linguagem representa o elemento principal da inserção do


indivíduo no mundo atual. Tendo diversas formas de se fazer isso, os professores de PLE têm
a opção de se apoiar nas características que expõem o percurso pedagógico do professor de
português apontado pela Associação de Professores de Português, visto como reflexões de
uma organização conceptual geral, de princípios de categorização e de mecanismos de
processamento. E a partir desses pressupostos refletir acerca do uso da linguística aplicada na
formulação de recursos didáticos e na criação de formas de inserção do componente cultural
na prática de sala de aula de PLE.

O documento Quadro de Referência para o Ensino Português no Estrangeiro


(QuaREPE) esclarece as responsabilidades que determinam o papel do professor e a
importância de seu aperfeiçoamento contínuo. Correspondendo a esse cenário, o professor
reflexivo encontra seu espaço quando transforma sua reflexão em ação e, em acordo com
percurso pedagógico que escolher, enfrenta as dificuldades de ensinar uma LE.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Como foco da análise estão as competências comunicativas, socioculturais,


interculturais e discursivas que por sua vez representam a riqueza dos recursos linguísticos e
favorecem o desenvolvimento das etapas do conhecimento da língua meta. Sob proposta de
um dos muitos recursos utilizados pela Linguística Aplicada, as expressões idiomáticas,
destacadas por Alvarez e Santos, retratam um dos elementos que descrevem a cultura e que,
por sua vez, podem espelhar a riqueza de um idioma.

1.QUADRO DE REFERÊNCIA PARA O ENSINO PORTUGUÊS NO ESTRANGEIRO


(quaREPE)

Juntamente com o advento da globalização assistimos ao desenvolvimento do ensino


de Português como língua estrangeira. Neste cenário a educação e a cultura ocupam um lugar
preeminente. Sob esse contexto de integração sociopolítica está implícita a necessidade de
uma integração linguística.

Como resultado desta integração advém a necessidade da padronização do ensino de


línguas nos países que integram o Conselho da Europa. O projeto sobre “Políticas
Linguísticas para uma Europa Multilíngue e Multicultural”, o QECR Em 2001, uma
resolução da União Europeia, com a intenção de minimizar as fronteiras entre os países que a
constituem, propõe a adesão de alguns descritores por seus sistemas de ensino. Sendo este
adotado em uma versão definitiva em português no ano seguinte.

Desde então, todo ensino de língua estrangeira no estado lusófono e também as


variedades de ensino de PLE em outros países, bem como dois importantes instrumentos da
política linguística portuguesa: o Quadro de Referência para o Ensino Português no
Estrangeiro (QuaREPE) e o Centro de Avaliação de Português Língua Estrangeira (CAPLE),
encontram-se abarcados no QECR.

O Quadro de Referência para o Ensino Português no Estrangeiro (QuaREPE),


documento orientador para o ensino de PLE, foi adotado em 2011 pelo Ministério da
Educação em todo ensino básico e secundário. Sua versão definitiva de 2012 está constituída
de três capítulos, bibliografia e descritores que abrangem as competências linguísticas
interacionais, sociolinguísticas, variações linguísticas, gramaticais e lexicais com recursos
avaliativos e materiais didáticos. Os capítulos tratam respectivamente da metodologia,
fundamentos, conceitos, finalidades, utilizadores, formação dos profissionais e avaliação do
Ensino Português no Estrangeiro (EPE), comtemplando cada faixa etária e suas
especificidades.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Como linha de desenvolvimento de competências gerais agregam atitudes e saberes


de carácter transversal que possibilitam a interação entre os conhecimentos formal e informal
no contexto entre indivíduos e culturas.

Esse conceito de consciência intercultural apresenta-se totalmente possível nos dias


de hoje, uma vez que a globalização aliada a tecnologia favorece a interação com outras
culturas e amplia as competências linguísticas (lexical, gramatical, semântica, fonológica,
ortográfica e ortoépica), competências sociolinguísticas e competências pragmáticas
(competência discursiva e competência funcional) e competência estratégica (QECR, 2001:
156-184), incentivando a aprendizagem de outras línguas.

Em resumo, o documento como um todo expõe expressivamente a importância de se


conciliar conhecimento padrão da língua-alvo com competências em função das necessidades
e características dos diferentes públicos e contextos gerando uma consciência intercultural. A
diversidade cultural que compõe cada país agrega valores e a convivência social favorece o
desenvolvimento da aprendizagem através da troca de experiências e formas de estar e ser em
um contexto mais legitimo possível.

2. A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA

A inserção da tecnologia em nossas vidas, projetos políticos econômicos e sociais que


visam uma redefinição das fronteiras mundiais entre os país juntamente com a constante
evolução de saberes, tem privilegiado o ensino da competência comunicativa na
aprendizagem de uma língua estrangeira ou adicional. Situação que encontra-se, como já
visto, expressa como princípio imprescindível para a aprendizagem de uma nova língua.
Segundo Hymes (1971/1995:34) uma criança é capaz de adquirir a competência
comunicativa quando a fala se relaciona com quando falar ou não e de que, com quem, onde
e de que forma falar, ou seja, em formas contextualizadas de atos de fala em língua materna
ou estrangeiras.

O conceito descrito por D. Hymes é reformulado por M. Canale (1983) e reapresenta


a competência comunicativa subdividida em gramatical, sociolinguística, discursiva e
estratégica. Cada subcompetência atua na construção da competência comunicativa.

A aprendizagem de uma língua encontra-se intrinsicamente conectada com a


interculturalidade pois a “cultura é uma lente através da qual o homem vê o
mundo” (Benedict 1997:12). Reflete a história, tradições, lendas e condição humana de um
povo, representa sua identidade.

Tendo em vista tais colocações, a aprendizagem da língua-alvo pressupõe um espaço


para desenvolver práticas reflexivas para relacionar os mundos e conhecimentos através de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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observações, comparações, interpretações e análises.


3. O PAPEL DO PROFESSOR NO PERCURSO DA APRENDIZAGEM


COMUNICATIVA

A variedade linguística presente na Língua Portuguesa falada no Brasil pode


apresentar grandes desafios aos aprendizes da mesma. Daí a importância de se ter um
profissional capacitado no ensino de PLE. Ensinar uma língua para um não nativo pode ser
uma experiência muito rica ou um fracasso dependendo do nível de preparação do professor.
Tal tarefa vai além do ensino convencional da língua e para instituições universitárias
faz-se imprescindível que iniciativas governamentais macroestruturais apõem e instituam o
ensino de Português como Língua Estrangeira para reforçar o cenário de formação do
profissional de PLE no Brasil e no Exterior. Visto que, ainda é consideravelmente pequeno o
número de acadêmicos que tem contato com a forma de ensino da língua portuguesa para
Estrangeiros, deixando uma lacuna entre o desenvolvimento de sua competência teórica e não
só implícita para a prática de ensino e aprendizagem de PLE.

Abrahão (1992:49), defende que a consciência teórica de Linguística, em especial a


Linguística Aplicada, Pedagogia e Psicologia alicerçam o trabalho e fazem parte de uma das
muitas qualidades de um professor de línguas estrangeira. As dificuldades com a limitação de
matérias didáticos específicos disponíveis dificulta a escolha da abordagem e metodologia
adotadas pelo professor, sublinhando a necessidade de um novo olhar sobre os princípios
postulados de sua prática de ensino.

Em razão de compreender a língua como fator de interação social que se encontra em


atividade no espaço da língua real e na percepção e registros cognitivos do estudante,
ressaltaremos neste trabalho, sobre todos os aspectos que constroem o perfil do profissional
de PLE, a abordagem reflexiva.

Pois para Ghedin, a experiência docente é um espaço de produção de conhecimentos,


que decorre da postura crítica do/a professor/a sobre a sua própria prática profissional.

é na prática refletida (ação/reflexão) que o conhecimento se produz,


na inseparabilidade entre teoria e prática” (2002, p. 135).

Libâneo propõe que a atitude reflexiva ultrapasse a vivência da sala de aula para a
busca de soluções que vão além das soluções imediatas.

[...] a necessidade de reflexão sobre a prática a partir da


apropriação de teorias como marco para as melhorias da prática
de ensino, em que o professor é ajudado a compreender seu
próprio pensamento e a refletir de modo crítico sobre sua prática

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

e, também, a aprimorar seu modo de agir, seu saber-fazer,


internalizando também novos instrumentos de ação.
(Libâneo, 2002, p. 70).

A formação do professor por meio da prática reflexiva tem como propósito essencial
levar o acadêmico a alcançar uma autonomia profissional através da pesquisa na ação.

Desta forma, objetiva-se que o professor reflexivo possa ser capaz de agir de uma
forma mais autônoma, inteligente, flexível, sendo um construtor e reconstrutor de seu próprio
conhecimento. Neste prisma, o professor reflexivo passa a agir como um ser humano criativo,
capaz de repensar, analisar, indagar a sua prática a fim de agir sobre ela e não somente
reproduzir ideias e práticas que lhes são incumbidas.

Schön propõe três conceitos que valorizam a prática do profissional reflexivo na


construção de seus saberes realizados por meio da reflexão, análise e problematização.
Segundo o pesquisador:

O processo de reflexão-na-ação [...] pode ser desenvolvido numa série


de “momentos”. [...] primeiramente um momento de surpresa: um
professor reflexivo permite-se ser surpreendido pelo aluno [...]
segundo momento [...] pensa sobre aquilo que o aluno disse ou fez, e,
simultaneamente, procura compreender a razão por que foi
surpreendido. [...] num terceiro momento, reformula o problema
suscitado pela situação [...] num quarto momento, efetua uma
experiência para testar a sua nova hipótese (1995, p. 83).

Sendo assim, entendemos os conceitos conhecimento na ação, saber-fazer como


componente inteligente que orienta a prática; a reflexão-na-ação como o próprio processo
didático de aprendizagem em contato com a situação prática e reflexão-sobre-a ação e
sobre a reflexão-na-ação como a análise realizada “a posteriori” da própria ação, sendo ésta
um componente essencial do processo de aprendizagem permanente e continuada que
constitui a formação no sentido mais amplo do profissional.

Todas essas ações se inter-relacionam para assegurar uma intervenção mais eficiente e
corroboram para uma prática docente mais flexível e coerente com a dinâmica de ensino da
língua, observando o contexto comunicativo, psicológico e sociocultural de ensino.

Neste sentido, compreende-se que o foco sobre a ação do professor é instrumento


indispensável para gerar a reflexão no processo de construção do conhecimento e dissipar a
crença de que uma formação prescritiva seja o suficiente para uma atuação como professor de
Língua Materna (LM) ou de Língua não materna.

!448
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Isto posto, discorremos a seguir sobre a prática do professor reflexivo aliada a


Linguística Aplicada (LA), campo de fértil colaboração e investigação para todos os
profissionais que trabalham com a língua em contextos específicos.


4. A LINGUÍSTICA APLICADA PARA A FORMULAÇÃO DE RECURSOS


DIDÁTICOS

O documento QuaREPE (2012, pág. 15) disserta sobre o uso do discurso oral como
uma competência comunicativa que deve realizar-se sob o contexto de desempenho “das
atividades linguísticas de recepção, produção, interação e mediação, oralmente e por escrito”,
segundo cada nível de aprendizagem.
Neste entrecho a Linguística Aplicada surge como uma atividade que busca em outras
áreas de saberes o suporte para identificar problemas metodológicos e organizar a
aprendizagem, apoiando-se nos conhecimentos oferecidos pela linguística teórica.

A Linguística Aplicada tem como áreas de interesse de estudo a sociolinguística que


visa o estudo da língua em uso; a etnolinguística que prioriza o estudo da cultura e uma
comunidade ou grupo social e a psicolinguística na qual encontram-se relacionados a
memória, a motivação e a forma de aprendizagem do indivíduo.

Infelizmente não há muitas produções brasileiras que comtemplem as necessidades do


ensino de PLE disponíveis no mercado e como sabemos, está nas mãos do profissional de
PLE planejar, despertar e atender as expectativas de seus alunos. Cada sala de aula apresenta
um contexto diferente e o docente depende da lógica, bom –senso e conhecimentos
linguísticos-pedagógicos para desenvolver o ensino/aprendizagem.

Ao concebermos a língua como atividade social onde todo o encontro interacional é


crucialmente marcado pelo mundo social que o envolve construímos um significado social de
interação. A partir desse significado entendemos que aprender uma língua implica usá-la nas
mais variadas situações de comunicação.

A proposta de um trabalho que integre as habilidades de falar, ler, escrever e ouvir


desde muito, tem sido apresentada em matérias didáticos. Produções orais através de atos de
fala, leituras de textos autênticos, tarefas dirigidas, etc.

Posto isso, como uma das possibilidades de ações a serem realizadas para o
desenvolvimento da competência linguístico-comunicativa nos aprendentes, sugerimos o
trabalho com as expressões idiomáticas (EI), observado por Zuluaga (apud FERNÁNDEZ et
al., 2004, p. 6-7). Uma vez que EI sempre sofrem com possíveis desvios e por isso tendem a
ser evitadas pelo falantes não maternos da língua, caracterizando sua fala como estrangeira.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

O estudo das EI engloba todo o uso das habilidades teóricas e pedagógicas do


professor e de situações que vão além da natureza do conhecimento pois refletem a crença,
atitude e visão de mundo de um povo ou comunidade, sendo utilizadas em todas as
configurações de tempo e espaço sociais em razão de representar a memória e idiossincrasias
da língua.

Segundo SANTOS (2004) as EI normalmente configuram os movimentos internos de


uma língua em contato com outras culturas o que justifica seu estudo através de uma
Abordagem Comunicativa Intercultural (ACI).

No que cerne a estrutura Linguística, envolve todas as áreas de interesse de estudos já


mencionadas. Uma vez que é possível depreender sobre sua morfologia, contexto social e
étnico, diferenças de significação entre comunidades e motivação para seu uso.

Certamente a carência de obras bilíngues que tratem deste tema nos materiais
didáticos para o ensino de PLE, colaboram com o trabalho do professor reflexivo que deverá
buscar atividades significativas que apresentem situações/problemas aos quais os alunos
serão motivados a buscar soluções.

Para organização e planejamento deste trabalho, Ortiz Alvarez (2000) caracteriza as


expressões idiomáticas em idênticas, semelhantes, totalmente diferente e não possível
encontrar equivalente em outra língua.

Além disso, o autor Zuluaga (apud FERNÁNDEZ et al., 2004, p. 6-7), também
caracteriza as EI como estruturas que:

● Constituem um saber linguístico popular;


● Estão cristalizadas em um contexto social;
● São consolidadas pelo uso contínuo de uma comunidade;
● Expressa o conteúdo desejado de maneira compacta;
● Possuem uma característica semântica singular;
● Resultam em significados peculiares ao serem utilizadas no discurso;
● Sofrem variações/desautomatização;
● São unidades de expressão em construções escritas;
● Apresentam um sentido literal ou metafórico

Tais fatores por si só configuram uma motivação positiva para a aprendizagem da


língua adicional por possuírem tantos elementos combinatórios, representam grande desafio
ao professor e ao aluno. Contudo esses desafios podem ser minimizados com planejamento e
incurso correto, considerando o contexto de cada sala de aula e abordagem usada em relação
ao esquema institucional.


!450
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

CONCLUSÃO

Está claro que os professores de PLE devem buscar ideias teóricas renovadoras para
viabilizar o esforço da aprendizagem mostrando uma postura mais amadurecida por
oportunidades propiciadas pela formação contínua, garantindo experiências tanto na grandeza
da dimensão social, bem como na singularidade de cada eu.

Cada passo tomado em direção a formação de um profissional reflexivo favorece a


tradução da sua ação com excelência, tornando-o um indivíduo capaz de se encaixar aos mais
diferentes perfis exigidos pela sua formação, pois permite que visualize competências que
devem ser desenvolvidas através de uma formação continua sendo capaz de criar uma série
de procedimentos que culminarão em seu objetivo principal, o ensino.

Assim, será capaz de desenvolver novas ações que possam lidar de forma aberta,
construtiva e tolerante com outras identidades sociais, valorizando seus comportamentos
culturais e relacionando atividades que propiciem aos alunos uma troca de informações
inerentes a cultura em presença através do incentivo da comparação das vários hábitos e
vivências culturais.

Referências

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contexto de ensino.
_____________________ Fundamentos de Abordagem e Formação no Ensino de PLE e
Outras Línguas. Campinas: Pontes Editores, 2011.
CARVALHO BATISTA, M. & LASCAR ALARCON, Y. Especificidades do Ensino de PLE.
GIMENEZ, Telma; FURTOSO, Viviane Bagio. Formação de professores de português para
falantes de outras línguas: alguns apontamentos. In: CUNHA, Maria Jandyra
SANTOS GARGALLO, I. (1999): Lingüística aplicada a la enseñanza/aprendizaje del
español como lengua extranjera. Madrid, Arco/Libros.
SANTOS, E.M.O. Abordagem comunicativa intercultural (ACIN). Uma proposta para
ensinar e aprender língua no diálogo entre culturas. Campinas, 2004. 440f. Tese (doutorado
em Linguística Aplicada) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.
SANTOS, Percilia & ALVAREZ, Maria Luisa Ortíz. Língua e Cultura no Contexto de
Português Língua Estrangeira. Percilia Santos e Maria Luisa Alvarez (Orgs.). Campinas, SP:
Pontes Editores, 2010, 239p. ISBN: 978-85-7113-321-1.

Bibliografia
ABRAHÃO, MH. “A prática de Ensino e o Estágio Supervisionado como Foco de Pesquisa
na Formação do Professor de LE”. Contexturas – Ensino Critico de Língua Inglesa, nº1, São
Paulo: APLIESP. 1992.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

CANALE, M.,1983/1995, “De la competência comunicativa a la pedagogia comunicativa


dellenguaje”em VVAA, Competencia comunicativa. Documentos básicos en la enseñanza de
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FERNANDEZ, Gretel Eres et al.. (Coord. ) Expresiones idiomáticas: valores y usos. São
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GHEDIN, Evandro. Professor reflexivo: da alienação da técnica à autonomia crítica,
in Pimenta, S. G.e Ghedin,E. Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um
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HYMES, D.,1971/1995, “Acerca de la competência comunicativa”, em VVAA, Competencia
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ORTÍZ ÁLVAREZ, María Luisa.Ensino de Línguas próximas, isso são outros quinhentos: a
questão das expressões idiomáticas nas aulas de ELE. In PARAQUETT, Márcia; TROUCHE,
André. Formas e linguagens: tecendo o hispanismo no Brasil. Rio de Janeiro: CCLS
Publishing House, 2004. P. 71-82,

A abordagem de textos literários brasileiros no livro didático Fala Brasil –


Português para estrangeiros, de Pierre Coudry e Elizabeth Fontão

Dr. Evaldo Balbino


UFMG/Brasil
valdobalbino@yahoo.com.br

Resumo: este trabalho busca discutir os modos como o livro didático Fala Brasil –
Português para estrangeiros (1ª edição de 1989 e 16ª edição de 2007), da autoria de Pierre
Coudry e Elizabeth Fontão, aborda textos literários no ensino de Português do Brasil para
Estrangeiros (PBE). Tal discussão pauta-se numa necessária preocupação com as
textualidades literárias, considerando-as como formas de representação e reinterpretação do

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

mundo e dos mundos possíveis nas sociedades humanas. Num livro didático, no que diz
respeito a um texto literário, leituras culturais e estéticas devem ser feitas, ampliando-se as
discussões que retomam os meandros culturais/interculturais e estéticos da literatura. Ao
propor textos literários para os alunos/leitores, um livro didático de PBE deve considerar o
que Cyana Leahy chama de “triangularidade epistemológica da educação literária”. Para a
autora, o trabalho com a literatura em sala de aula deve assentar-se metodologicamente nos
princípios teóricos linguísticos, gramaticais e literários (LEAHY, 2004, p. 59). Na abordagem
de textos literários, além do manuseio com as interfaces entre os conhecimentos linguísticos,
gramaticais e literários, os autores de LD de PBE também não devem se esquecer dos
horizontes de expectativas dos alunos (LAJOLO, 1999, p. 94), mormente em se tratando estes
de sujeitos cujas identidades e visões de mundo reportam a diferentes culturas que não as
brasileiras. Em suma, se os textos literários são gêneros textuais específicos, o trabalho com
esses textos, proposto por um LD, deve levar em conta tal especificidade. A análise aqui
proposta detém-se nos textos literários utilizados pelo LD em questão e nas atividades que
são formuladas pelo mesmo livro a partir desses textos. Tais reflexões pretendem colaborar
com a produção de LDs de PBE de qualidade no que diz respeito ao letramento literário de
estrangeiros em língua portuguesa.

Palavras-chave: Literatura – Ensino – Português do Brasil para Estrangeiros

Ensinar uma língua para estrangeiros, ou seja, fazer com que falantes de uma língua
que não lhes seja materna a aprendam, é tarefa complexa que não se resume, obviamente, em
um processo de alfabetização. Os alunos de português em país que lhes é estrangeiro são em
sua maioria adultos. No mínimo, são falantes de sua(s) própria(s) língua(s) e, em grande parte
dos casos, já passaram pela alfabetização.

Aprender uma língua é se apropriar dela, usá-la, manuseá-la. E no bojo desse


manuseio está o pressuposto de que as culturas construídas por/nessa língua também sejam
compreendidas e apropriadas. Serão sempre língua e cultura estrangeiras, mas não se negam,
apesar desse ar estrangeiro, dois fatores fundamentais: 1. Língua e cultura estão imbricadas;
2. A apreensão da língua é também a apreensão de culturas.

Nesse sentido, muito se discute sobre como ensinar, no âmbito do trabalho com uma
língua, as culturas que lhe são próprias. Muito se discute; no entanto pouco se resolve. Em
termos gerais, o ensino da língua, e aqui no caso de uma língua estrangeira, prende-se mais
em análises linguístico-gramaticais sem um devido tratamento dos aspectos literários de um
texto artístico quando se utilizam, por exemplo, letras de músicas, poemas, crônicas literárias,
contos, romances, contos, cantigas de roda etc. Tem havido nas últimas décadas grande

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

preocupação com esse estado de coisas quanto ao ensino extremamente linguístico ou


gramatical 150 e quase nada literário nos livros didáticos de língua portuguesa.

Um argumento contrário ao que venho afirmando pode ser este: os textos literários
também não são discursos dentro de uma língua e, portanto, não são também estruturas
linguísticas que podem e devem ser analisadas linguisticamente? O que chamo aqui de
análise linguística é aquela leitura que se perfaz em reflexões sobre os diferentes usos de uma
língua, os seus funcionamentos fonéticos, fonológicos, sintáticos, semânticos e pragmáticos.

A esse argumento aventado, respondo que textos literários podem e devem ser
analisados linguisticamente. Não se faz literatura sem um trabalho com a língua. Nesse
sentido, nada impede que um professor utilize um texto da literatura para trabalhar reflexões
linguísticas. Vejo tantos teóricos e professores horrorizados com isso, defendendo que o texto
literário é sui generis, que ele não se presta a uma aula de gramática, ortografia, produção de
texto ou, como queiram, de reflexões linguísticas. Tal cogitação coloca, mesmo que de modo
inconsciente, a arte da palavra num pedestal, como se lá em cima tivéssemos textos artísticos
e cá embaixo, no cotidiano comunicativo das pessoas, tivéssemos a língua com sua função
comunicativa, pragmática. Essa postura é perigosa e errônea, pois não vê a literatura como
parte da língua e também não enxerga as funções comunicativas e também pragmáticas do
trabalho estético com a linguagem. Não quero dizer com isso que um poema, por exemplo,
sendo manifestação/construção discursiva dentro de uma língua, não deva ser tratado em sua
especificidade estética. Coloco simplesmente que um poema também se presta ao estudo de
uma língua, já que dela ele é uma estrutura. No entanto, ao se utilizá-lo apenas nesse viés, o
que teremos é aula de reflexão linguística e não aula de literatura. Em outros termos, o que
temos nesse caso é aula de letramento linguístico no âmbito da língua em seu funcionamento,
mas não de letramento literário no âmbito da construção estética da linguagem.

Como chegar então, no ensino de uma língua, ao trabalho de fato com o letramento
literário? E, mais especificamente no ensino de Português do Brasil para Estrangeiros (PBE),
como propor em sala um letramento literário dentro das reflexões linguísticas sobre essa
língua?

Num livro didático, no que diz respeito a um texto literário, leituras culturais e
estéticas devem ser feitas, ampliando-se as discussões que retomam os meandros culturais/
interculturais e estéticos da literatura. Ao propor textos literários para os alunos/leitores, um
livro didático de PBE deve considerar o que Cyana Leahy chama de “triangularidade
epistemológica da educação literária”. Para a autora, o trabalho com a literatura em sala de

150 Doravante, farei referências a “aspectos linguísticos” querendo dizer “aspectos linguístico-gramaticais”.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

aula deve assentar-se metodologicamente nos princípios teóricos linguísticos, gramaticais e


literários (LEAHY, 2004, p. 59).

Não se faz literatura sem um manuseio com a língua, com as suas múltiplas
possibilidades fonéticas, fonológicas, morfológicas, semânticas e pragmáticas. Um texto real
tem contexto(s) de produção e de leitura. Poetas e escritores manuseiam a língua buscando
efeitos de sentido para além da comunicabilidade direta. A atividade literária coloca em
suspensão o caráter meramente referencial da linguagem, chamando direta ou indiretamente a
atenção do leitor para a opacidade da linguagem. Não é necessário haver metalinguagem
explícita para que isso se revele. Fazer romance não é simplesmente contar uma história, mas
mostrar os meandros dessa construção, fazendo o leitor perceber as diversas possibilidades do
dizer de modo poético e enviesado. Fazer um poema ou letra de música, de modo artístico,
não é fazer desabafo simplesmente. Pode até haver desabafo num poema. Mas este será
trabalho de arte se houver nele um agrupamento de palavras que permita um caráter inusitado
do texto, um jogo de palavras que construam imagens não corriqueiras na linguagem do dia-
a-dia, cujo principal objetivo é a comunicação do referente. Os leitores também podem fazer
vários usos do texto literário. Mas, sem perceberem e vivenciarem o trabalho estético com a
linguagem, não desenvolverão a possibilidade de fruição daquilo que há de específico nesse
texto.

Na abordagem de textos literários, além do manuseio com as interfaces entre os


conhecimentos linguísticos, gramaticais e literários, os autores de LD de PBE também não
devem se esquecer dos horizontes de expectativas dos alunos (LAJOLO, 1999, p. 94),
mormente em se tratando estes de sujeitos cujas identidades e visões de mundo reportam a
diferentes culturas que não as brasileiras. O jogo de palavras que se opera em textos literários
da língua portuguesa do Brasil, as metáforas que nela se constroem, as referências culturais
que nesse país se tecem – nada disso tem necessariamente correspondências com os
repertórios de alunos cujas culturas são outras que não as brasileiras.

Em suma, se os textos literários são gêneros textuais específicos, o trabalho com esses
textos, proposto por um LD, deve levar em conta tal especificidade. Como todo domínio
discursivo, o literário também se constitui historicamente, tanto no nível da produção quanto
no da recepção. E isso porque, como qualquer outro discurso, ele traz em si motivações,
objetivos, valores sociais, visões de mundo. Nesse sentido, cabe ao professor, em sala de aula
de PBE, sondar seus alunos, buscando saber se eles já compartilham ou não competências e
habilidades de, por exemplo, leitura de poemas em suas próprias línguas. E caso
compartilhem, deve verificar se tais experiências de leitura são esporádicas ou corriqueiras.
Obviamente, quanto mais afastado estiver o discente da prática de leitura literária, mais
complexo se torna o trabalho do docente de aproximá-lo da leitura de obras literárias.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira, documento do


ministério da Educação que traça diretrizes para a educação básica:

É fundamental encarar o livro didático como um ponto de referência para o


trabalho docente, como um recurso, não o único, facilitador do processo de
ensinar e aprender, como um guia orientador geral, que auxilia na seleção e
organização dos objetivos e conteúdos. Visto a partir dessa concepção, o
livro didático é – ou deve ser – um recurso a mais, entre tantos, de que o
professor dispõe para estruturar e desenvolver seu curso e suas aulas,
mesmo quando ele é o responsável por sua elaboração/organização, o que
pode constituir em alguns casos uma vantagem e em outros, uma
desvantagem. (BRASIL, 2006, p. 154).

Sendo assim, deve-se compreender que o livro didático não é necessariamente o curso
a ser dado pelo professor. Qualquer realidade concreta de sala de aula demonstra isso.
Simplesmente adotar um livro e segui-lo ipses litteris, sem nada mais, é desconsiderar as
reais necessidades e os interesses concretos do alunado. Como ponto de apoio, o livro
didático é a possibilidade de o professor ter uma referência, e não é um guia a ser seguido
linear e inquestionavelmente.

Ponderando sobre a importância do livro didático em sala de aula, este trabalho busca
discutir os modos como o livro didático Fala Brasil – Português para estrangeiros (1ª edição
de 1989 e 16ª edição de 2007), da autoria de Pierre Coudry e Elizabeth Fontão, aborda textos
literários no ensino de Português do Brasil para Estrangeiros (PBE). Tal discussão pauta-se
numa necessária preocupação com as textualidades literárias, considerando-as como formas
de representação e reinterpretação do mundo e dos mundos possíveis nas sociedades
humanas. E considerando-as, principalmente, como discursos em que a linguagem é atriz
primeira, em que o como se diz é mais importante do que o que se diz. Um poeta, um
cronista, um autor de letra de música – enfim, um artista da palavra – podem abordar
quaisquer temas. No entanto, as formas que esses artistas constroem é que devem chamar
mais a atenção do leitor. O que se revela na literatura, principalmente nos discursos que nela
primam pela poesia – como em poemas, letras de música, prosa poética etc. –, são os
mecanismos da linguagem a serviço de uma opacidade que faz dilatar mais a duração, o
prazo mesmo, do processo comunicativo. Daí a necessária entrega do leitor para os ditames
do texto literário, pois este nos informa, porém faz isso com mais vagar, com mais minúcia
de um debruçar-se sobre a linguagem. Nesse sentido, a apreciação de um texto artístico
demanda mais tempo: tempo para mirar a linguagem; para apreciar os mecanismos de
construção nela possíveis; para entender, pouco a pouco, os mundos e vozes criados pelos
textos. Mundos e vozes esses não necessariamente factuais, mas sem dúvida alguma
representativos de nossas vidas, de nossas realidades em suas complexidades.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

O livro didático em foco é de confecção dos anos de 1980. No entanto, vem passando
por várias outras edições, infelizmente sem revisões e atualizações metodológicas. É
importante analisá-lo, pois se trata de material muito usado por professores de PBE em sala.
As suas diversas edições demonstram isso.

Dividido em 15 unidades, o livro Fala Brasil (Livro de textos, teoria e exercícios)


propõe, em sua “Apresentação”, trabalhar com a língua e com a cultura brasileira:

O destaque de Fala Brasil é a sistematização feita com base no uso efetivo


da língua [...] Outro ponto a destacar é a apresentação da cultura brasileira
em situações da vida cotidiana de modo a evitar os aborrecidos textos
informativos – informações mais objetivas (fatos históricos, políticos)
encontram-se num quadro cronológico ao final do livro. (COUDRY;
FONTÃO, 2007)

Já no caderno de exercícios, em sua apresentação, diz-se que “as últimas cinco


unidades do livro-texto [...] apresentam vários originais de autores brasileiros, diferentemente
das demais unidades que contêm, em sua maioria, textos elaborados com fins
pedagógicos” (COUDRY; FONTÃO, 2007 – Caderno de exercícios – apresentação). Se a
proposição de atividades, referentes a esses textos, busca estimular nos alunos reflexões sobre
os usos e estruturas da língua portuguesa no Brasil, os aspectos culturais e principalmente
estéticos (trabalhos com a forma da linguagem de modo a produzir sentido esteticamente) não
são explorados. As “situações da vida cotidiana” brasileira são até simuladas pelos textos
artificiais ou pelos poucos textos informativos utilizados. No entanto, na abordagem de letras
de música e de crônicas, silencia-se toda a riqueza do trabalho estético com a linguagem e
dos processos culturais brasileiros reconstruídos por esse fazer estético. Dez músicas
brasileiras e cinco crônicas comparecem no livro em foco.

“Sinal fechado” – de Paulino da Viola com voz de Chico Buarque e Maria Bethânia
(COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 59) – e “Você só mente” – de Noel Rosa e Hélio Rosa com
interpretação do Grupo Rumo (COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 151) – são letras de música
utilizadas para que o aluno somente as veja, ouça e leia, caso o professor assim proponha.
Isso porque nenhuma atividade se coloca para o estudante.

“Trem do Pantanal”, de Paulo Simões / Geraldo Roca com voz de Almir Sater
(COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 221), também se oferece apenas para a audição151. Não se
discute o contexto da ditadura militar no Brasil (essa música foi composta em 1975). Não se

151 Na apresentação do livro didático em análise, os autores dizem acompanhar a obra um “conjunto de fitas
K7”, para a audição de diálogos (textos artificiais escritos para o livro, com fins pedagógicos) e de letras de mú-
sica. Na aquisição que fiz da 16ª edição da obra, porém, tal conjunto de fitas não estava à venda. Vale ressaltar
que comprei o livro novo e não usado.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

leva o aluno a analisar as imagens poéticas da voz que enuncia, do sujeito poético que fala de
sua fuga para Santa Cruz de La Sierra na Bolívia, sujeito que leva consigo o medo – um
medo personificado e portanto mais forte – e que cuja família aguarda um postal em que ele
diga que ainda vive. Vejam-se os versos que falam poeticamente disso:

Enquanto este velho trem atravessa o Pantanal


O povo lá em casa espera que eu mande um postal
Dizendo que eu estou muito bem vivo
Rumo a Santa Cruz de La Sierra.

Enquanto este velho trem atravessa o Pantanal


Só meu coração está batendo desigual
Ele agora sabe que o medo viaja também
Sobre todos os trilhos da terra.

(SIMÕES; ROCA apud COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 221)

O medo também viaja. Eis a personificação do terror. Terror que transforma em fuga
aquilo que poderia ser viagem turística, alegre, de desbravamento do mundo pelo doce prazer
de conhecer outros lugares. “Pantanal” rima com “postal”, o que apela para a beleza do lugar.
No entanto, o postal de que fala o texto é uma mensagem de um fugitivo, de um sujeito em
fuga; mensagem de alguém que, se mandar uma correspondência, é para dizer que ainda está
“muito bem vivo”. Questões como essas (estéticas, culturais e políticas) não são propostas em
nenhum momento pelo LD. Questões estéticas antes de tudo, como se percebe na
personificação referenciada, na rima que produz um sentido outro, por exemplo, para a
palavra “postal”.

“Samba de uma nota só”, de Tom Jobim e Newton Mendonça, com voz de Tom Jobim
(COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 84), serve-se ao trabalho com pronomes indefinidos. Em
nenhum momento os autores do LD procuram estimular a percepção do tom monocórdico do
discurso da letra, com repetições de palavras e estruturas sintáticas, sempre no intuito do
sujeito poético de demonstrar seu apego inevitável ao ser amado. Em “Samba de uma nota
só”, tem-se um sentimento amoroso que se diz o tempo todo, que não sai do lugar, do ponto
de vista discursivo e, portanto, temático.

“O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco / Aldir Blanc com a interpretação de Elis


Regina (COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 232), também é letra de música dada apenas para
leitura oral e audição, sem nenhuma outra análise. Além do erro sério na grafia do título
(registra-se “o equilibrista” e não “a equilibrista”), também temos um completo
silenciamento do diálogo que a canção, de modo metafórico e alegórico, mantém com a
ditadura militar no Brasil. A imagem do bêbado e suas irreverências mil (uma alusão a

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Charles Chaplin) soma-se à imagem da esperança equilibrando-se em corda bamba, para falar
da arte como resistência: a arte de Carlitos, a arte da própria letra em questão.

“Hora da razão”, de Batatinha / J. Luna na voz de Caetano Veloso, é pretexto para o


trabalho com a expressão “deixar de” e com os tempos verbais futuro e pretérito imperfeito
do subjuntivo (COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 181). “Canção da América”, de Milton
Nascimento / Fernando Brant e com o canto de Milton Nascimento (COUDRY; FONTÃO,
2007, p. 225), é usada somente para se trabalhar o uso do presente e do futuro do subjuntivo.
Com “Valsinha”, de Vinícius de Morais e Chico Buarque (COUDRY; FONTÃO, 2007, p.
123), trabalha-se o uso dos pretéritos perfeito e imperfeito do modo indicativo, perdendo-se a
possibilidade de também analisar todo o constructo narrativo que se faz no poema e as
imagens poéticas que falam de um reencontro pelo viés do amor e da beleza da dança.
Desperdiça-se, por exemplo, a chance de se trabalhar com os alunos sobre a beleza como
ousadia, na rica construção do texto que mostra o verbo “ousar” num sentido forte e numa
relação inusitada com o seu objeto regido: “Então ela se fez bonita / Como há muito tempo /
Não queria ousar” (MOARAIS; BUARQUE apud COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 123). As
atividades propostas prendem-se aos verbos “fez” e “queria” para trabalhar tempos verbais,
quando a riqueza estética aqui se encontra é no ato da mulher de “ousar beleza”.

“Tomara”, de Vinícius de Morais com interpretação do próprio Vinícius e de Marília


Medalha (COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 197), comparece para o estudo do presente do
subjuntivo, não se explorando aí o trabalho poético com a linguagem. Imagens poéticas,
como “E o verdadeiro amor de quem se ama / Tece a mesma antiga trama / Que não se
desfaz” (MOARAIS apud COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 197), não são analisadas através de
questões que levariam os alunos a perceberem, por exemplo, as assonâncias de vogais nasais
(em, am, an, am, ã) e as aliterações dos sons do “T” que, alternando-se nos versos, dão a ideia
do próprio entrelaçamento feito pelo sentimento amoroso. Fala-se aqui da tessitura
promovida pelo amor, e essa tessitura também ocorre no entrelaçamento de fonemas
pertencentes a palavras bem escolhidas. É essa construção de linguagem, intencionalmente
estética, que torna literário o texto. Não se trata aqui de simplesmente jogar sobre o aluno
uma série de conceitos difíceis (assonâncias e aliterações) até mesmo, muitas vezes, para um
falante nativo do português. Trata-se, antes, de fazê-lo ter uma sensibilidade para os
processos fônicos que aqui dão poeticidade, plasticidade, para o discurso.

“Chuva, suor e cerveja”, de Caetano Veloso (COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 104), é


transcrita para se trabalhar o modo imperativo, e apenas isso. Não se discute hora nenhuma
através de atividades que, na música, o imperativo negativo, usado com reiterações, está a
serviço de um desejo do sujeito de ficar junto da sua amada. Não se explora a imagem do
Pierrô molhado, figura carnavalesca associada ao sentimento, à dor da perda de Colombina.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Um grave problema do livro é colocar na ilustração um Arlequim, ao invés do rival Pierrô. O


viés sentimental do embalo carnavalesco, o seu lado a la Pierrô, mostra-se no verso “só para
na porta da igreja”, o que reforça o desejo de união que o sujeito poético tem em relação ao
ser amado que está junto de si no bloco carnavalesco.

A disposição dos versos, com quebras de palavras e aliterações, reproduz sonora e


visualmente a queda da água da chuva, que se mistura com o suor e a cerveja dos dançarinos
amantes num bloco de Carnaval. Isso aproxima o texto das propostas concretistas, que têm
pontos de contato com o movimento tropicalista liderado por Caetano Veloso. Veja-se
graficamente a música. E que ela seja lida, cantada, ouvida – para que o visual, o sonoro e
também o semântico demonstrem a análise feita; análise essa que poderia ter sido explorada
através de atividades a serem propostas a alunos leitores do LD em discussão:

não se perca de mim


não se esqueça de mim
não desapareça
a chuva tá caindo
e quando a chuva começa
eu acabo perdendo a cabeça
não saia do meu lado
segure o meu pierrô molhado
e vamos embora ladeira abaixo
acho
que a chu-
va aju-
da a gente a se ver
venha
veja
deixa
beija
seja
o que deus quiser
a gente se embala
se embora
se embola
só para na porta da igreja
a gente se olha
se beija se molha
de chuva suor e cerveja
(VELOSO apud COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 104)

A crônica “O pessoal”, de Rubem Braga (COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 138),


comparece para estudo dos usos do pretérito perfeito do indicativo e para análise da
similaridade entre o pretérito imperfeito e o passado contínuo, também do modo indicativo. O
constructo narrativo, dentro do gênero “crônica”, não comparece como questão a ser

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

explorada em atividades. Além disso, o texto é fragmentado, com algumas partes excluídas
da transcrição. Isso impossibilita ao aluno de entender, por exemplo, uma afirmação do
narrador-personagem como esta: “Fiquei na janela, olhando a rua à-toa numa tristeza
indefinível” (BRAGA apud COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 138). Qual o porquê dessa
tristeza? E por que ela é indefinida? São questões que não se colocam e que, se colocadas,
não teriam resposta, pois na transcrição fragmentada não há pistas textuais para uma
elucidação.

A crônica narrativa “O homem nu”, de Fernando Sabino, é transcrita na íntegra,


porém dividida em duas partes em momentos diferentes do livro. A parte I (COUDRY;
FONTÃO, 2007, p. 161) é seguida por uma proposta de atividade interessante: “E agora? O
que vai acontecer com o homem nu? Imagine qual seria o final e continue você mesmo como
escritor!” (COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 161). A interrupção do texto dividido em duas
partes cria um suspense no leitor-aluno, que é estimulado agora a fazer parte do processo
criativo, ao ter de fazer conjecturas e construir um possível final para o texto, perante o
impasse criado pela narrativa. Entretanto, essa proposta rica em termos estéticos e também
linguísticos é a única. Os autores não exploram as expressões coloquiais ricas para a
construção do texto de Fernando Sabino, não estimulam a discussão sobre costumes não mais
usuais (antigamente deixava-se o pão à porta dos clientes; hoje isso não acontece mais), não
discutem a função do narrar numa crônica (que é diferente do narrar num conto) e não
elaboram atividades que explorem a linguagem poética, como no trecho em que o pânico da
personagem é comparado a um ballet grotesco: “Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo
uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal
ensaiado” (SABINO apud COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 161).

Na segunda parte da mesma crônica, “O homem nu” (COUDRY; FONTÃO, 2007, p.


174), comparece uma abordagem comunicativa que visa à conversação através da proposta de
uma paráfrase: “Expressão oral: conte a história toda com suas próprias palavras” (COUDRY;
FONTÃO, 2007, p. 174). Tal atividade trabalha o entendimento geral do texto e estimula a
oralidade do aluno. Porém, antes dessa proposta, o livro deveria ter discutido com o aluno,
através de outras questões, alguns sentidos pontuais que comparecem no texto e que são
importantes para a compreensão de toda a crônica. Não se exploram os mecanismos /
processos que produzem literariedade152 no texto, tais como a referência (intertextualidade)
ao universo absurdo de Kafka (“começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka,
instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime de Terror.”) e o humor
ao final, quando, ao atender a porta, o senhor, que fugia de pagar o homem da televisão,

152 Define-se “literariedade” como sendo o conjunto de elementos que tornam literária a linguagem. Tais ele -
mentos são produtos num processo de manuseio com a língua realizado pelo escritor e pelo leitor de um texto
literário. O conceito de literariedade foi desenvolvido por estudiosos da literatura, do chamado Formalismo Rus-
so, no início da primeira metade do século XX.

!461
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

pensa que é a polícia que está chamando, mas não é: trata-se justamente do homem a quem
ele deve.

“O robô”, de Luís Fernando Veríssimo (COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 205-206), é


utilizado para um trabalho de conversação: “O que você faria (ou teria feito) se fosse a
mulher do homem do robô?” (COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 206). Tal pergunta induz o
aluno a usar o futuro do pretérito do modo indicativo juntamente com o imperfeito do
subjuntivo. Para além disso, nada mais se pede em relação ao texto. Não se propõe análise da
introspecção do narrador na mente da personagem feminina. Essa introspecção ocorre em
momentos nos quais os fatos se ausentam da narração para comentários do narrador sobre os
pensamentos e sentimentos da mulher em relação ao seu marido. Não se discute em nenhuma
questão sobre o salto narrativo do penúltimo ao último parágrafo, quando o leitor deve supor
todo um trecho do enredo, que o narrador omitiu com humor e domínio narrativo. Na página
205, diz-se no texto verbal que o robô é redondo, mas a ilustração no LD apresenta um Robô
quadrado. Isso aponta para um descuido do ilustrador.

“No restaurante”, de Carlos Drummond de Andrade (COUDRY; FONTÃO, 2007, p.


213-214), é uma crônica leve, cheia de humor, em que pai e filha (uma criança) dialogam. O
narrador nos mostra uma garotinha cheia de inciativa, que com graça mantém indestrutível
sua vontade de comer lasanha, perante a insistência do pai em lhe determinar o cardápio.
Com trechos em que os fatos cedem lugar a uma introspecção do narrador na mente da
menininha, o texto denuncia o fato de adultos determinarem as vidas das crianças:

A coisa amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por
que é proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu
rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os
pratos e o serviço, ela atacou...” (DRUMMOND DE ANDRADE apud
COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 213).

A expressão “queriam querer”, coloquial e graciosamente construída, aproxima a fala


do narrador do pensamento (e, portanto, da linguagem) da criança. As perguntas sucessivas
mostram a vontade insistente da infância diante das determinações adultas.

Poeticamente chamada pelo narrador de “anteprojeto de mulher – quatro anos, no


máximo, desabrochando na ultraminissaia”, a garota mostra o poder ultrajovem ante a
teimosia dos adultos em lhe imputarem destinos. A crônica, aliás, termina numa referência a
esse poder ultrajovem:

O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um casal, na


mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia
onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem

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cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultrajovem (DRUMMOND DE


ANDRADE apud COUDRY; FONTÃO, 2007, p. 214)

Essas leituras da crônica “No restaurante” que aqui se propõem não são contempladas
pelo LD. Nem mesmo a referência ao livro em que tal crônica foi publicada comparece.153 É
fundamental discutir que esse livro de Drummond, intitulado justamente O poder ultrajovem,
é um conjunto de textos escritos em fins da década de 1960 e início da seguinte. Deve-se
frisar, também, que há nesse livro diversas histórias protagonizadas por crianças e
adolescentes dobrando os adultos. Isso é bem apontado por Haron Gamal:

O livro começa com histórias protagonizadas por crianças ou


adolescentes, que, na sua vontade férrea, como o ferro das calçadas de
Itabira, conseguem dobrar os adultos: a menina a convencer o pai, no
restaurante, de que tem o direito de escolher o próprio prato; o caso das
crianças desconfiadas, que, muito a contragosto, deixam o autor segurar
suas pastas escolares, ele que vai sentado no banco de um ônibus lotado; a
mãe que acompanha o filho até uma casa abandonada para que ele recolha
algo dali, caso contrário será objeto de escárnio entre os colegas da escola; a
professora que tenta fazer um plebiscito na sala de aula para saber se deve
lecionar usando calça comprida, mas chega à conclusão de que ser
democrática dá muito trabalho; a história da adolescente que recorre ao
poeta porque seu cãozinho comeu a capa e as primeiras páginas de um livro
de Fernando Pessoa emprestado a ela pelo namorado. Ela quer o autógrafo
de Drummond, não importa que não seja ele o autor do livro, o que vale é
não desagradar o namorado (GAMAL, 2011).

O que o LD faz com essa crônica é simplesmente transcrevê-la, propondo a seguinte


atividade: “O que você achou do comportamento do pai? E da filha? Use o roteiro de
narração do Unidade X enriquecendo-o com expressões que pedem Subjuntivo” (COUDRY;
FONTÃO, 2007, p. 214). Como se percebe, temos ainda o foco em atividades somente de
reflexão linguística. Num primeiro momento, temos a sequência textual narrativa juntamente
com o uso do modo subjuntivo. Depois, dá-se uma transcrição dialogada (não literária,
imaginada pelos autores do LD) em que uma moça e sua avó, observando a cena narrada na
crônica como se fossem duas das personagens espectadoras no restaurante, comentam-na. A
partir daí, sugere-se aos alunos a montagem de um “teatrinho”. Depois disso, explora-se o
uso de conjunções que aparecem no diálogo criado.

“Chatear e encher”, crônica de Paulo Mendes Campos (COUDRY; FONTÃO, 2007,


p. 228), não é analisada. Não se explora nesse texto a gradação humorística entre os atos de
chatear e de encher e tampouco se propõem questões para reflexão linguística.

153Nenhuma das crônicas transcritas em Fala Brasil (bem como nenhuma das letras de música) apresenta refe -
rências. Isso reforça o trabalho de fragmentação com o texto literário, não possibilitando ao aluno um entendi-
mento mais amplo do texto, o que seria possível na percepção do contexto das obras como um todo.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A partir dos comentários acima, referentes aos quinze textos literários que
comparecem no livro Fala Brasil – Português para estrangeiros, podem-se agora tecer, à
guisa de conclusão, alguns comentários que recapitulem questões já apontadas.

Observa-se que quarenta por cento das letras de música selecionadas por Fala Brasil
dialogam predominantemente com temas políticos caros ao Brasil dos anos de 1980. A
primeira edição desse LD, reitero, ocorreu em 1989. Das dez canções, quatro (“Sinal
fechado”, “Trem do Pantanal”, “O bêbado e a equilibrista”, “Canção da América”) discutem
os processos político-culturais do Brasil e da América ainda latentes à época, considerando-se
que a ditadura militar brasileira se iniciou em 31 de março de 1964 (com o Golpe Militar que
derrubou João Goulart) e encerrou-se a 15 de janeiro de 1985 (com a eleição de Tancredo
Neves). Ainda assim, no caso dessas quatro músicas, nem mesmo as questões políticas
esteticamente trabalhadas são objeto de análise em propostas de leituras a ser feitas pelos
alunos. Mesmo nas outras canções, faltam análises que se detenham sobre as construções
estéticas no seio da linguagem.

No caso das crônicas, os textos comparecem sem referências bibliográficas (esse


também é o caso das letras de música), são transcritos às vezes fragmentariamente, são
basicamente usados para estudo de aspectos linguísticos (sem que se explore como esses
aspectos estão a serviço de construções estéticas). Há ilustrações que não dialogam
satisfatoriamente com os textos verbais. Não se observa também, nas questões colocadas pelo
LD, atenção a mecanismos importantíssimos de tais textos, tais como: os constructos
narrativos dentro do gênero “crônica”; as expressões coloquiais ricas para a construção dos
textos; a discussão sobre costumes não mais usuais no Brasil dos anos de 1980 e hodierno; e
a manifestação da linguagem poética, através dos mecanismos / processos discursivos que
produzem literariedade nos textos.

As análises aqui propostas detêm-se nos textos literários utilizados pelo LD em


questão e nas atividades que são formuladas pelo mesmo livro a partir desses textos.
Verificando que essas atividades estão muito aquém de um letramento literário entendido
como compreensão e apropriação do discurso artístico na leitura de textos literários
(COSSON, 2007), proponho aqui possibilidades de leituras para sanar essa falha. As
interpretações aqui propostas podem servir para que se pensem possíveis atividades que de
fato se atenham aos aspectos literários das letras de música e das crônicas que comparecem
no LD em foco. Em termo gerais, minhas reflexões – aqui pontuadas e nunca esgotáveis –
pretendem colaborar com a produção de LDs de PBE de qualidade, no que diz respeito ao
letramento literário de estrangeiros em língua portuguesa.

Referências Bibliográficas

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

BRASIL. Orientações curriculares para o ensino médio. Linguagens, códigos e suas


tecnologias. Conhecimentos de Espanhol. Brasília: MEC, Secretaria de Educação Básica,
2006.
COSSON, Rildo. Letramento literário – teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2007.
COUDRY, Pierre; FONTÃO, Elizabeth. Fala Brasil – Português para Estrangeiros. 16 ed.
Campinas/SP: Pontes Editores, 2007
COUDRY, Pierre; FONTÃO, Elizabeth. Fala Brasil – Português para Estrangeiros (Caderno
de exercícios). 16 ed. Campinas/SP: Pontes Editores, 2007
GAMAL, Haron. Contos e outras histórias. 11 de mar., 2011. Disponível em http://
harongamal.blogspot.com.br/2011/03/o-poder-ultrajovem-reedicao-de-cronicas.html. Acesso
em 05 nov., 2016.
LAJOLO, Marisa. In: SILVA, Ezequiel T. da et. al. (Orgs.) Leitura – perspectivas
interdisciplinares. 5 ed. São Paulo: Ática, 1999, p. 87-99.
LEAHY, Cyana. In: PAULINO, Graça; COSSON, Rildo (Orgs.) Leitura literária – a
mediação escolar. Belo Horizonte: FALE / UFMG, 2004, p. 53-62.

A criança brasileira residente no Japão e a aprendizagem da língua japone-


sa
Izumi Nozaki
Universidade Federal de Mato Grosso
izumi.nozaki@gmail.com

Introdução

A partir do fim da década de 1980, em paralelo ao paulatino aumento do movimento


migratório de trabalhadores brasileiros em direção ao Japão, verificou-se um crescimento
gradativo no número de matrículas de crianças brasileiras em idade escolar nas escolas públi-
cas japonesas. Entretanto, ao longo dos anos, o movimento de inserção de crianças brasileiras
nas escolas japonesas foi acompanhado pelos altos índices de abandono escolar. Assim, em
razão do elevado número de crianças brasileiras de famílias trabalhadoras migrantes no Japão
fora da escola, foi elaborado o Projeto de Pesquisa Divisão Social do Trabalho, Migração e
Educação: O fracasso escolar das crianças brasileiras residentes no Japão, o qual foi de-
senvolvido no Japão, no período entre 2008 e 2012, com o apoio do CNPq do Brasil. O pre-
sente trabalho, desse modo, visa apresentar os resultados parciais do estudo, especificamente

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

sobre a aprendizagem da língua japonesa pelas crianças de famílias brasileiras migrantes no


Japão.

O movimento migratório de brasileiros para o Japão


A interdependência da economia desestatizada e a mundialização dos mercados têm
situado os países do mundo de modo assimétrico entre dois blocos: o bloco dos países eco-
nomicamene desenvolvidos e o bloco dos países em desenvolvimento. Segundo Berquó
(2001), esses dois blocos se organizam da seguinte forma:

O descompasso temporal com que se deu a transição demográfica no bloco


dos países com economias desenvolvidas e vem se dando no das economias
em desenvolvimento coloca no mundo contemporâneo uma situação pelo
menos paradoxal. O primeiro bloco, que concentra os maiores PIBs do
mundo, enfrenta sérias dificuldades quando ao declínio populacional e ao
envelhecimento de sua população – fenômeno decorrente, de um lado, de
continuadas taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição e, de outro,
do aumento da longevidade. Com isso, necessita de uma verdadeira “trans-
fusão populacional”, vinda de fora, para rejuvenescer suas populações e
evitar o crescimento negativo. Já o segundo bloco, com grandes contingen-
tes de população em idade produtiva, em consequência de altas taxas de
fecundidade no passado e do progressivo declínio da mortalidade, enfren-
tam sérias dificuldades de trabalho e emprego (BERQUÓ, 2001, p. 11).

Neste cenário, apesar dos países em princípio buscarem o agrupamento conforme


maior ou menor grau de desenvolvimento econômico sabe-se que esses também buscam a
aproximação com os países do bloco oposto com a finalidade de assegurar sua sobrevivência
e manutenção. Assim, no mundo globalizado, quando de um lado há a "necessidade de popu-
lação" devido à falta de força humana produtiva, e de outro, há a "necessidade de trabalho"
devido à superpopulação, esta combinação de carências inspira, de acordo com Berquó
(2001, p. 11), os fluxos migratórios de reposição populacional.

Neste contexto, o Brasil, por ser um país com uma superpopulação urbana, má distri-
buição de renda, altos índices de desemprego, e uma Previdência Social que conduz a um
quadro em que "o trabalhador aposentado continua trabalhando" (FREITAS, 2001, p. 528),
posiciona-se no bloco dos países em desenvolvimento. E nesta posição, participa do processo
de reposição populacional por meio da migração de brasileiros, em sua grande maioria para
países do primeiro bloco e para o trabalho com baixa exigência de escolarização e qualifica-
ção.

Como um país de emigração, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil (2001, p.


95), na virada do milênio, identificou mais de um milhão e meio de brasileiros vivendo no

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

exterior, sendo que as maiores concentrações se encontravam nos Estados Unidos, com 750
mil; 350 mil no Paraguai, e 220 mil no Japão. Atualmente, apesar da crise econômica de 2008
e do grande terremoto de 2011, segundo a Embaixada do Brasil em Tokyo (2016), encon-
tram-se ainda mais de 230 mil brasileiros residentes no Japão.

Neste contexto histórico de reposição populacional, conforme Miyajima e Oota (2005,


p. 6), em 2004, se encontravam, em todo o Japão, 274.700 brasileiros registrados, sendo
27.613 crianças na faixa de 5 a 14 anos. No ano de 2006, a cidade de Hamamatsu era consi-
derada o maior município do distrito de Shizuoka com mais de 800 mil habitantes e era um
dos maiores centros industriais de peças automotivas e instrumentos musicais. Após a Refor-
ma da Lei de Controle de Entradas e Saídas e de Reconhecimento de Refugiados homologada
em 1º junho de 1990154, a qual concedeu aos descendentes de japonês e aos seus cônjuges e
filhos com ou sem ascendência japonesa, o direito à entrada e permanência no país por três
anos ao nissei (2ª geração), e por um ano ao sansei (3ª geração), com possibilidade ilimitada
de prorrogação, ocorreu em Hamamatsu um enorme crescimento populacional de migrantes
estrangeiros, representando, no período de 1991 a 2006, um aumento de 8.346 para 30.977
estrangeiros, e de 4.407 para 18.457 brasileiros (ver Quadro 1).

Quadro 1 Quadro evolutivo do número de estrangeiros na cidade de Hamamatsu (30 Junho 2006)

Data Total Brasil China Filipinas Perú Coréia Vietnã Outros

30.04.1991 8.346 4.407 374 513 369 2.075 171 437

30.04.1992 11.541 6.240 503 805 812 2.150 206 825

30.04.1993 11.749 6.504 630 639 737 2.174 226 839

30.04.1994 10.824 5.893 602 778 632 1.984 223 712

30.04.1995 11.851 6.595 942 800 691 1.842 266 715

30.04.1996 12.604 7.370 890 678 715 1.924 317 710

30.04.1997 13.650 8.297 854 793 720 1.824 351 793

30.04.1998 16.049 10.070 1.059 900 826 1.707 399 1.088

30.04.1999 16.516 10.032 966 1.171 962 1.668 459 1.258

30.04.2000 17.827 10.759 977 1.291 1.099 1.637 528 1.536

154 Desde julho de 2012, entraram em vigor as novas leis da imigração japonesa. De acordo com o novo sistema,
com exceção do residente permanente especial, os estrangeiros que forem admitidos com status de permanência
superior a três meses serão denominados como "residentes de médio e longo período". A finalidade do novo
sistema de gestão de residência é a de possibilitar ao Ministério da Justiça dispor constantemente da informação
necessária para gerenciar a residência dos cidadãos estrangeiros que residem no Japão durante períodos de mé-
dio a largo prazo com status de residente e poder oferecer maior conveniência aos ditos cidadãos estrangeiros,
tais como período máximo de estadia de cinco anos, em vez dos correntes três anos, e um novo sistema de per-
missão para reentrada que abre mão das formalidades para a obtenção da permissão para reentrada aos cidadãos
estrangeiros que saem e entram no Japão dentro de um ano da data de saída original (IMMIGRATION BURE-
AU OF JAPAN, 2016).

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contemporâneas

30.04.2001 19.413 11.821 1.230 1.509 1.268 1.603 580 1.402

30.04.2002 20.443 12.138 1.321 1.758 1.381 1.587 612 1.646

30.04.2003 22.320 13.384 1.537 1.995 1.489 1.573 658 1.684

30.04.2004 23.447 13.408 1.720 2.442 1.585 1.652 755 1.885

30.04.2005 25.412 14.476 1.944 2.921 1.775 1.523 816 1.957

30.04.2006 30.903 18.572 2.550 2.468 2.247 1.707 922 2.437

30.05.2006 31.231 18.715 2.621 2.512 2.258 1.704 947 2.474

30.06.2006 30.977 18.457 2.579 2.556 2.241 1.692 938 2.514

Fonte: Kikoku-Gaikokujin Jidou Seito Toukeihyou (Quadros Estatísticos das Crianças-Alunos Estrangeiros e
Japoneses que Retornaram do Estrangeiro), Prefeitura da Cidade de Hamamatsu, Hamamatsu-shi Kyouiku An
Inkai Shidouka (Comitê de Educação da Cidade de Hamamatsu – Setor de Orientação), e Kyouiku Soudan Gu-
rupu (Grupo de Aconselhamento Educacional) e Gaikokujin Kodomo Kyouiku Shienshitsu (Repartição de Ajuda
à Educação da Criança Estrangeira), 30 de junho de 2006.

Particularmente no tocante às crianças migrantes, a BBC Brasil, em 2005, noticiou


que havia no Japão 40 mil crianças estrangeiras em idade escolar, sendo que 17 mil delas fora
da escola. Sobre o assunto, em 2007, o governo japonês, com base em um levantamento em
nível nacional, afirmou que havia cerca de 1% de crianças estrangeiras cadastradas no país
que se encontrava fora da escola, e 17% de crianças com “paradeiro desconhecido” (JOR-
NAL YOMIURA SHINBUN, 2007).

Na cidade de Hamamatsu, em 2007, a Prefeitura local divulgou os resultados de um


extenso levantamento realizado acerca da situação escolar das crianças migrantes, e seus da-
dos mostraram um aumento de 265,71% no total de crianças estrangeiras em idade escolar no
espaço de cinco anos, e uma taxa em torno de 20% de crianças fora da escola (ver Quadro 2).
Quadro 2 Sobre a situação escolar das crianças estrangeiras (Cidade de Hamamatsu, 1o maio 2007)

N° de crianças es- N° de crianças com N° de crianças N° de crianças % de crianças


Nível Ano trangeiras em idade frequência regular com frequência fora da escola fora da escola
escolar cadastradas nas escolas públicas regular em escolas
étnicas

Idade 2002 1.088 616 247 225 20,7%

escolar 2003 1.228 661 --- --- ---

nível 2004 1.392 765 350 277 19,9%

primário 2005 1.581 842 433 306 19,4%

2006 2.019 1.022 543 454 22,5%

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2007 2.140 1.172 --- --- ---

Idade 2002 468 252 111 105 22,4%

escolar 2003 500 251 --- --- ---

nível 2004 494 266 102 126 25,5%

ginasial 2005 502 261 128 113 22,5%

2006 634 337 145 152 24,0%

2007 751 410 --- --- ---

2002 1.556 868 358 330 21,2%

2003 1.728 912 530 286 16,6%

Total 2004 1.886 1.031 452 403 21,4%

2005 2.083 1.103 561 419 20,1%

2006 2.653 1.359 688 606 22,8%

2007 2.891 1.582 745 564 19,5%

Fonte: Impresso para divulgação, Prefeitura da Cidade de Hamamatsu, 1º de maio de 2007.

Ao se observar outro documento publicado pelo governo local sobre as crianças es-
trangeiras matriculadas em escolas públicas japonesas, notou-se que ao longo dos 17 anos,
entre 1989 e 2006, houve um aumento anual de matrículas tanto no nível primário como no
ginasial. Notou-se também que o número de matrículas no nível primário era substancialmen-
te maior em comparação ao número de matrículas no nível ginasial, e este fato nos levou a
suspeitar de possíveis obstáculos que impediam que crianças estrangeiras matriculadas em
escolas públicas japonesas ascendessem naturalmente de um nível a outro (ver Quadro 3).

Quadro 3 Número de crianças estrangeiras matriculadas nas escolas públicas japonesas de nível primário
e ginasial da cidade de Hamamatsu – 1989 a 2006

Data Nível Subtotal Total Brasil Peru Vietnam China Filipinas Outros

1.5.1989 Primário 31 3 14 6 1 7

Ginásio 1 32 1

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

1.5.1990 Primário 72 37 11 8 3 13

Ginásio 14 86 3 8 1 1 1

1.5.1991 Primário 175 123 6 24 16 2 4

Ginásio 35 210 14 15 2 1 3

1.5.1992 Primário 311 230 23 33 13 4 8

Ginásio 84 395 54 2 17 4 2 5

1.5.1993 Primário 338 246 33 34 13 3 9

Ginásio 114 452 79 5 17 6 2 5

1.5.1994 Primário 304 210 32 30 17 3 12

Ginásio 124 428 86 10 14 8 2 4

1.5.1995 Primário 276 175 32 31 22 6 10

Ginásio 140 416 94 14 19 7 2 4

1.5.1996 Primário 346 230 41 26 29 8 12

Ginásio 150 496 99 19 19 10 1 2

1.5.1997 Primário 442 316 39 32 29 12 14

Ginásio 168 610 112 19 18 13 3 3

30.4.1998 Primário 545 407 50 34 33 12 9

Ginásio 190 735 130 20 16 17 4 3

30.4.1999 Primário 556 403 54 33 37 15 14

Ginásio 195 751 133 19 21 13 5 4

30.4.2000 Primário 521 359 61 35 35 20 11

Ginásio 203 724 135 21 24 14 5 4

30.4.2001 Primário 548 374 55 40 35 24 20

Ginásio 193 741 125 29 15 20 3 1

30.4.2002 Primário 584 372 97 33 25 36 11

Ginásio 231 815 142 31 17 20 8 12

30.4.2003 Primário 619 394 80 57 23 40 25

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Ginásio 231 850 132 33 23 26 11 6

30.4.2004 Primário 737 450 128 68 25 40 25

Ginásio 242 979 137 35 23 16 21 10

30.4.2005 Primário 825 515 133 72 32 42 31

Ginásio 247 1.072 144 32 17 21 20 13

30.4.2006 Primário 1.003 641 151 76 40 60 35

Ginásio 318 1.321 202 46 19 23 17 11

Fonte: Kikoku-Gaikokujin Jidou Seito Toukeihyou (Quadros Estatísticos das Crianças-Alunos Estrangeiros e
Japoneses que Retornaram do Estrangeiro), Prefeitura da Cidade de Hamamatsu, Hamamatsu-shi Kyouiku An
Inkai Shidouka (Comitê de Educação da Cidade de Hamamatsu – Setor de Orientação), e Kyouiku Soudan Gu-
rupu (Grupo de Aconselhamento Educacional) e Gaikokujin Kodomo Kyouiku Shienshitsu (Repartição de Aju-
da à Educação da Criança Estrangeira), 30 de junho de 2006.

À parte, ao compararmos os dados dos meses de abril (N = 202) e de outubro de 2006


(N = 184) referentes ao número de alunos brasileiros matriculados no curso ginasial nas esco-
las públicas japonesas da cidade de Hamamatsu, observamos além de uma leve redução no
seu quantitativo total e uma diminuição na passagem de uma série a outra, chamou-nos a
atenção, a presença de um número reduzido de apenas 43 alunos brasileiros ao final do ensi-
no obrigatório em todo o município (ver Quadro 4).

Quadro 4 Número de crianças brasileiras matriculadas em escolas públicas japonesas de ensino ginasial
na cidade de Hamamatsu

1a série 2a série 3a série Total

73 68 43 184

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contemporâneas

Fonte: Quadro organizado com base em informações obtidas nas escolas públicas japonesas de ensino ginasial
da cidade de Hamamatsu, pelo Hamamatsu Shiritsu Koutou Gakkou (Colégio Municipal de Ensino Secundário
de Hamamatsu), em 17 de outubro de 2006.

Os dados obtidos este momento haviam nos permitido concluir que muitas crianças
brasileiras buscavam a escola pública japonesa, mas, uma vez dentro do sistema educacional
japonês, nem todas percorriam o processo de escolarização até a sua conclusão. Os fatos con-
duziram-nos à certeza de que existia entre as crianças brasileiras migrantes um fator gerador
do fracasso escolar expresso pela evasão escolar, com maior ocorrência durante a passagem
de um nível para outro e após o ingresso no curso ginasial.

Diante deste cenário contraditório representado pela expansão do número de matrícu-


las versus evasão escolar de crianças estrangeiras em situação de migração no Japão, levan-
tamos três questões fundamentais: a) por que as crianças brasileiras migrantes se inserem nas
escolas públicas japonesas?, b) de que forma elas são inseridas nas escolas públicas japone-
sas? e c) por que elas abandonam a escola pública japonesa?

A escola pública japonesa: o direito constitucional e o direito por concessão

Ao buscarmos a resposta à questão sobre os motivos da inserção das crianças brasilei-


ras nas escolas públicas japonesas, verificamos que a princípio, no caso específico do Japão,
conforme sua Constituição, a educação primária e ginasial com nove anos de duração é com-
pulsória a todas as crianças japonesas, porém, esta não é claramente garantida às crianças mi-
grantes (OOTA e TSUBOYA, 2005, p. 18), mesmo tendo elas comprovadamente alguma as-
cendência japonesa. Desse modo, em razão da falta de uma legislação clara destinada à edu-
cação de crianças estrangeiras, Oota e Tsuboya (2005, p. 19) explicam que, no início do mo-
vimento migratório, as famílias brasileiras solicitavam a autorização junto aos Comitês Mu-
nicipais de Educação para procederem à matrícula dos filhos em escolas públicas japonesas.
Entretanto, as solicitações eram indeferidas com base no fato das crianças não dominarem o
idioma japonês.

Diante do grande contingente de crianças brasileiras em idade escolar em situação de


migração e sem direito constitucional à educação básica, na metade da década de 1990, o go-
verno brasileiro, por meio do Ministério da Educação e Cultura – MEC concedeu, em caráter
especial, autorização para a criação de escolas brasileiras, de natureza privada, no Japão
(HAINO, 2006), e em 2004, por meio da Resolução CNE/CEB Nº 2, de 17 de fevereiro de

!472
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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2004155, definiu as normas para as escolas de educação básica que atendem a cidadãos brasi-
leiros residentes no País. Em 2005, graças à referida medida do governo brasileiro, havia em
todo o Japão, oito mil crianças estudando nas 50 escolas brasileiras homologadas pelo
MEC156 (BBC BRASIL, 2005).

Com o passar do tempo, diante do silêncio do governo japonês quanto à obrigatorie-


dade escolar das crianças estrangeiras residentes no País, segundo Oota e Tsuboya (2005),
cada Comitê Municipal de Educação começou a agir de modo diferenciado, e em algumas
cidades com grande concentração de estrangeiros, autorizações passaram a ser fornecidas
para crianças de todas as nacionalidades. Tal medida, particularmente na cidade de Hamamat-
su, repercutiu com uma expansão, entre 1990 e 2006, de 25 para 1.311 em termos de crianças
estrangeiras, e de 4 para 877 crianças brasileiras (ver Quadro 5).
Quadro 5 Número de alunos estrangeiros matriculados nas escolas públicas japonesas da cidade
de Hamamatsu – 1990, 1998, 2006 (30 Junho 2006)

Data Total Brasil Peru Vietnã Filipinas China

04.1990 25 4 0 14 1 6

04.1998 723 537 70 50 16 50

06.2006 1.311 877 199 95 77 63

Fonte: Kikoku-Gaikokujin Jidou Seito Toukeihyou (Quadros Estatísticos das Crianças-Alunos Estrangeiros e
Japoneses que Retornaram do Estrangeiro), Prefeitura da Cidade de Hamamatsu, Hamamatsu-shi Kyouiku An
Inkai Shidouka (Comitê de Educação da Cidade de Hamamatsu – Setor de Orientação), e Kyouiku Soudan Gu-
rupu (Grupo de Aconselhamento Educacional) e Gaikokujin Kodomo Kyouiku Shienshitsu (Repartição de Aju-
da à Educação da Criança Estrangeira), 30 de junho de 2006.

Analisando o estudo de Watanabe e sua equipe (1995) sobre o movimento migratório


de trabalhadores estrangeiros do Japão, em particular, sobre as questões educacionais das cri-
anças brasileiras da cidade de Hamamatsu, observamos que, em Hamamatsu, as medidas
emergenciais não se resumiram às políticas de inserção escolar. No estudo de Watanabe po-
dem ser encontrados relatos diversos de ações sociais implantadas no seio das escolas japone-
sas e da comunidade local desde o ano de 1990, ano da homologação da Reforma da Lei. Por
exemplo, neste ano, foi elaborada uma coletânea sobre conversação simples em japonês-por-

155 Reformulada pela Resolução MEC/CNE/CEB Nº 1, de 3 de dezembro de 2013.


156Na atualidade, segundo a Embaixada do Brasil em Tokyo, são 39 escolas brasileiras homologadas pelo MEC
do Brasil em funcionamento no Japão (EMBAIXADA DO BRASIL EM TOKYO, 2016).

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tuguês, implantado pelo Comitê de Educação de Hamamatsu, um programa especial de aten-


dimento e entrosamento de crianças estrangeiras com crianças japonesas retornadas ao Japão
após vivência no exterior, e criadas algumas salas de ensino de japonês e de português para
crianças brasileiras. Dando continuidade, em 1991, foram encaminhados às escolas japone-
sas, atendentes falantes da língua portuguesa para atuarem como intérpretes; em fevereiro de
1992, foi distribuído para todas as escolas japonesas da cidade, um manual contendo os reca-
dos escolares traduzidos para o português destinado aos pais dos alunos brasileiros; e em fe-
vereiro de 1993, 14 escolas públicas japonesas desenvolviam um trabalho de orientação de
crianças estrangeiras realizado por professores destinados para tal fim contratados pela Pre-
feitura da cidade.

O estudo de Watanabe mostrou, assim, que na cidade de Hamamatsu, desde o início


do movimento migratório, as crianças brasileiras migrantes foram acolhidas nas escolas pú-
blicas japonesas, de nível primário e ginasial, ainda que o seu acolhimento não fosse consti-
tucionalmente obrigatório; além do mais, desde a chegada das primeiras crianças brasileiras
eram desenvolvidas ações sociais coordenadas tanto por setores públicos como por órgãos
não governamentais, tendo como alvo as famílias migrantes e os problemas de aprendizagem
escolar das crianças, assim como a sua adaptação ao Japão e a sua readaptação após o retorno
ao Brasil.

Em pesquisa de campo realizado em quatro escolas públicas de Hamamatsu e em dois


projetos comunitários desenvolvidos por voluntários, constatamos, de um lado, que o traba-
lho social iniciado em 1990 se perpetuava em 2012, e de outro, que embora não houvesse
trâmites legais em direção à determinação da obrigatoriedade escolar para as crianças estran-
geiras, na prática, a problemática da adaptação das crianças brasileiras inseridas nas escolas
japonesas continuava sendo motivo de grande preocupação da sociedade local.

Dando continuidade ao trabalho de campo, foi realizada no ano de 2006, uma visita ao
Comitê de Educação da cidade de Hamamatsu, e na ocasião, observamos que este, na época,
não somente incentivava como também orientava as famílias brasileiras residentes na locali-
dade quanto aos procedimentos de matrícula nas escolas públicas japonesas, com ênfase no
ensino primário. Para tanto, era mantida uma funcionária brasileira que desempenhava, den-
tre outras funções, a de fornecer, em português, orientações específicas aos pais e às crianças
sobre o sistema público de educação local. Seguramente, ao longo dos anos, a política de in-
serção na escola pública japonesa exibia os seus efeitos nos índices de matrícula, os quais,
entre 1989 e 2006, revelavam um aumento de 41,28 vezes (23 para 1.321) em termos de cri-
anças estrangeiras, e de 210,75 vezes (4 para 843), em termos de crianças brasileiras (ver
Quadro 3).

!474
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Ainda dentro dos esforços da administração local, a Prefeitura de Hamamatsu partici-


pou do movimento em prol da aprovação do pedido de determinação do direito à obrigatorie-
dade escolar para as crianças estrangeiras de famílias trabalhadoras em contexto de migração
no Japão. Conforme consta do Relatório da Assembleia das Cidades com Concentração de
Estrangeiros (2006), evento do qual a Prefeitura da cidade de Hamamatsu participara, nela foi
aprovada a "Petição de Controle da Reforma Resultante das Assembleias das Cidades com
Concentração de Estrangeiros", por meio da qual solicitava ao governo central a determina-
ção do direito e da obrigação da criança estrangeira que permanecer no país por mais de 90
dias de receber educação e da providência de ambientes apropriados necessários à implanta-
ção da obrigatoriedade da educação à criança estrangeira. A respeito do assunto, no dia 11 de
janeiro de 2007, o governo japonês declarou ao Jornal Nihon Keizai que medidas estavam
sendo tomadas no sentido de tornar obrigatório o acesso à escola aos filhos de estrangeiros
com visto de longa permanência, devido principalmente ao interesse em estimular a convi-
vência das famílias estrangeiras com a comunidade local, evitar abusos e prevenir a crimina-
lidade (JORNAL INTERNATIONAL PRESS, 2007); porém, tais medidas continuam em dis-
cussão até os dias atuais, sem uma deliberação definitiva.

Desse modo, as famílias brasileiras inserem seus filhos na escola pública japonesa, de
um lado, pelo fato da escola brasileira ser privada e, de outro, em atendimento aos intensos
apelos da sociedade e dos setores do governo local à matrícula das crianças no sistema edu-
cacional japonês.

A criança brasileira na escola pública japonesa: inserção e permanência

Após receberem as orientações sobre os procedimentos de matrícula fornecidos pelos


funcionários do Comitê de Educação da Prefeitura da Cidade, as famílias brasileiras matricu-
lam seus filhos nas escolas previamente determinadas pelo setor, geralmente próximas às
suas residências, e as crianças são encaminhadas para as séries correspondentes à sua idade e,
desse modo, estas iniciam sua vida escolar igualmente às demais crianças de nacionalidade
japonesa. Visto que não existe reprovação por aproveitamento no sistema educacional japo-
nês, em princípio, todas as crianças migrantes inseridas nas escolas japonesas seguem gradu-
almente de uma série a outra até concluírem o ensino fundamental juntamente com seus cole-
gas de classe. Neste sentido, pode-se dizer que ao serem inseridas na escola pública, as crian-
ças estrangeiras adquirem os mesmos direitos das crianças de nacionalidade japonesa.

Considerando que existe uma política de inserção da criança estrangeira na escola pú-
blica japonesa e uma política de não reprovação da criança dentro do sistema educacional

!475
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

japonês, supõe-se que os filhos dos migrantes se encontram protegidos pelos princípios da
inclusão e da permanência na escola.

Na escola japonesa, em princípio, em obediência ao sentido de igualdade, todas as


crianças devem permanecer em classe junto com seus colegas para estudar as matérias do
currículo comum. Contudo, devido às dificuldades de aprendizagem resultantes do não domí-
nio da língua local, excepcionalmente, a criança brasileira é autorizada a assistir somente as
aulas nas quais o conhecimento do idioma não é essencial, como as de Matemática, Artes,
Inglês, Música, Fundamentos Domésticos, Educação Física. Assim, enquanto os alunos japo-
neses da classe assistem às aulas de Redação, Caligrafia, História, Geografia, Ciências, etc.,
as quais requerem um domínio mais avançado da língua local, a criança migrante desloca-se
para as salas especiais para participar individualmente ou em pequenos grupos das aulas de
língua japonesa em nível de alfabetização. Desse modo, nas escolas públicas de ensino pri-
mário e ginasial, a prática do ensino da língua japonesa para as crianças estrangeiras tem no-
tadamente prioridade sobre o ensino das matérias, e nas salas especiais, os professores dão
prioridade ao desenvolvimento das habilidades de compreensão, comunicação, leitura e escri-
ta do idioma japonês.

Dessa forma, por meio das visitas às escolas, verificamos que a criança migrante é
retirada da sala de aula e encaminhada para as salas especiais. Nas escolas de nível primário,
de um modo geral, as crianças estrangeiras são agrupadas para serem alfabetizadas, e nas es-
colas de nível ginasial, enquanto algumas se alfabetizam, outras recebem atendimento quanto
aos conteúdos escolares. Desse modo, em um contexto concretamente complexo, na escola
pública japonesa onde se inserem crianças migrantes brasileiras, o currículo comum se de-
senvolve em paralelo a um currículo plural.

Desse modo, a criança brasileira ao ser inserida na escola pública japonesa, segue os
mesmos trâmites das crianças de nacionalidade japonesa. No entanto, conforme o seu grau de
domínio da língua local, a criança brasileira é isenta de assistir às aulas de disciplinas que re-
querem maior competência linguística, e levada a uma sala especial para receber apoio volta-
do ao aprendizado da língua local e à realização das tarefas escolares.

O abandono da escola pública japonesa: uma escuta sensível das crianças brasileiras

Embora as crianças brasileiras recebam apoio por parte da escola pública japonesa,
muitas delas abandonam os estudos. Por quê?

Para responder à questão crucial do estudo sobre as causas do abandono da escola pú-
blica japonesa, foi realizado um trabalho de escuta junto a 18 crianças, adolescentes e jovens

!476
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brasileiros do curso primário, ginasial, secundário e universitário de instituições educacionais


japonesas. Dentre elas, havia 12 crianças que iniciaram seu processo de escolarização no Bra-
sil e que, na época da pesquisa, frequentavam a escola japonesa e o Projeto Hamakko de en-
sino da língua local. As crianças revelaram que ao chegarem ao Japão, inicialmente, frequen-
taram uma das escolas brasileiras tendo em vista a adaptação ao país; mas, algum tempo de-
pois, por vontade própria ou a de seus pais, transferiram-se para a escola japonesa por consi-
derá-la o local apropriado para a aprendizagem da língua local, cuja importância apoia-se em
aspectos utilitários como a “sobrevivência (comunicação)”, a “relação social (fazer amigos)”
e “o desvio do trabalho operário”.

Nas entrevistas, todas as crianças contam que logo após terem sido inseridas na escola
japonesa, pelo fato de desconhecerem por completo a língua local, foram encaminhadas para
as classes especiais para o desenvolvimento da oralidade, leitura e escrita do japonês. Dentro
do processo de aquisição da língua japonesa, todos relatam suas difíceis experiências por
consequência da não compreensão do que lhes era dito e da falta de dispositivos linguísticos
para expressarem seus pensamentos e sentimentos no idioma japonês, ou pelo menos, em in-
glês. A despeito das dificuldades, todas elas informaram que contaram com a intermediação
de colegas japoneses, principalmente das meninas, e também da família, especialmente dos
pais.

Na investigação acerca das condições de aprendizagem dos conteúdos escolares em


nível primário e ginasial, as 12 crianças entrevistadas informaram que seu desempenho esco-
lar no Brasil, até antes de sua migração, não era ruim: "as minhas notas no Brasil eram boas"
(C1-BN); "até que eu era bom aluno. Lá, eu não tirava nota abaixo da média [...] Eu sempre
tirava 8, daí pra cima" (C3-LN). Mas, agora, na escola japonesa, todas elas comentam sobre
seu rendimento insatisfatório. Elas explicam que “eu consigo me comunicar um pouco bem
com eles, mas a única coisa que eu não consigo é nas atividades” (C2-SC); “nas primeiras
provas, eu consegui 2” (C1-BN). C12-RY conta o quanto é complicado o estudo dos conteú-
dos na escola japonesa mesmo para quem “sabe falar japonês”, e acrescenta:

“Sei, é claro que eu sei falar japonês, sei me virar quando é preciso, só que
quando o professor está falando, eu não entendo o que que ele fala, não sei
do que ele está falando, que matéria [...] A melhor nota que eu tirei ? Acho
que é Inglês [...] Acho que vai assim, de Inglês, foi até 14. Acho que no
resto, eu tiro tudo zero !”. (C12-RY)

C6-MR sintetiza a situação dos estudantes brasileiros da seguinte forma:

“Eu acho que o que a gente mais aprende da escola japonesa é realmente
o idioma, porque as matérias, a gente não consegue acompanhar realmen-
te muito. A gente entende, que nem Inglês, e Matemática, dá até pra você

!477
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

acompanhar. Daí, mais por a gente fazer amizade, com os japoneses, [...],
conhecer a cultura. Essas coisas assim”. (C6-MR)

UB1-FL, na ocasião do estudo era uma estudante brasileira do ensino superior que
chegara ao Japão com nove anos de idade, quando cursava a 3a série do ensino fundamental
em uma escola privada no Brasil. Ela lembra que ao ser inserida na escola japonesa,

“não sabia falar um A em japonês. [...] Eu ficava só sentada na classe,


ouvindo, só que não sabia nada. Escreviam no quadro, eu não sabia nada.
Tinha um caderno, assim, na minha frente, mas como que eu ia escrever se
eu não sei o que está escrito, nem nada, assim, o que o professor está fa-
lando? No começo foi bem difícil pra mim, porque como minha mãe é pro-
fessora, eu sempre tive que tirar nota boa. Aí, eu estudava bastante, né. Aí,
quando cheguei aqui no Japão, como que eu vou estudar ? Fiquei com
medo, né. Se eu tirar nota baixa, eu não vou passar de série, nem nada. Eu
estava pensando isso, no começo”. (UB1-FL)

Ao iniciar os estudos da língua japonesa, contudo, conta UB1-FL que o aprendizado


primeiro do alfabeto silábico japonês (hiragana) não a ajudava no acompanhamento imediato
das aulas das matérias, e que naquele momento, aprender rapidamente a língua acadêmica era
vital. Em pouco tempo, descobriu que o ensino era obrigatório, "por isso, não precisa passar
ou não passar nas aulas”. Aliás, quando tirava boas notas, seus amigos brasileiros pergunta-
vam: “Ah, você sempre tira nota boa, hein, por quê? Aqui, a gente não precisa disso, dá pra
passar de ano”. Mais tarde, quando concluiu o ensino fundamental e seus pais decidiram que
deveria prestar os exames para cursar o ensino secundário, argumentava que não queria se-
guir os estudos porque “eu vou trabalhar na fábrica. Eu não quero, todo mundo vai trabalhar
na fábrica, por que eu vou pro colegial?” Do mesmo modo, seus amigos a questionavam:
“você vai pro colegial fazer o que lá? A gente veio aqui no Japão pra trabalhar na fábrica,
trabalhar. Ué, o que você quer fazer lá? Ou vai sair do colegial e não vai fazer mais nada?,
né, e depois, a gente vai trabalhar na fábrica mesmo. Fazer o quê?”

Desse modo, o estudo mostrou que no campo da educação, há dois aspectos que se
destacam no processo de escolarização das crianças brasileiras migrantes no Japão, os quais
são cruciais à análise da problemática da inserção escolar versus evasão escolar. Estes aspec-
tos são: a relação entre obrigatoriedade escolar e aprovação automática, e a relação entre edu-
cação e trabalho. Ambos os aspectos vinculam-se diretamente às causas da evasão escolar e,
por isso, merecem especial atenção nas discussões que tratam das políticas educacionais dire-
cionadas às crianças brasileiras de famílias trabalhadoras residentes no Japão.

Considerações finais

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O trabalhador brasileiro (não qualquer trabalhador, mas aquele favorecido direta ou


indiretamente pela ascendência japonesa), interposto entre um país com "carência de traba-
lho" e outro com "carência de mão-de-obra não qualificada", insere-se no movimento migra-
tório de reposição populacional, juntamente com sua família, incluindo-se os filhos. No Ja-
pão, independentemente de sua qualificação e grau de escolaridade, de um modo geral, o mi-
grante brasileiro é enquadrado na categoria de trabalhador de empreitada, cujo sistema de
trabalho é temporário, instável, e com elevado risco de desemprego. Quando de volta ao seu
país de origem, ocorre que, sem registros em sua carteira de trabalho, concorre a vagas de
emprego com jovens inexperientes, e o salário percebido logo se revela desproporcional
àquele recebido no Japão e insuficiente para a reestruturação da vida no Brasil. Assim, na ter-
ceira fase do movimento migratório, o trabalhador brasileiro, perante as dificuldades de sua
(re)inserção no mercado de trabalho em seu país de origem, reintegra-se no movimento de
volta ao Japão, e aí inicia um processo de fixação definitiva. E neste contexto, os filhos, com
ou sem ascendência japonesa, com ou sem vivência de escolarização no Brasil, grosso modo,
rotulam-se como crianças migrantes e, na escola ou fora dela, situam-se em um contexto de
diversidade cultural e linguística.

Os resultados do presente estudo mostraram, em síntese, que as crianças brasileiras


com vivência escolar no Brasil antes da migração, iniciam sua vida escolar no Japão em uma
escola brasileira visando a sua imediata adaptação ao país de migração em um contexto cuja
língua é aquela de seu domínio. Em seguida, solicitam ao Comitê de Educação seu ingresso
na escola japonesa com o objetivo principal de aprender a língua do país onde agora residem,
e respaldados por um desejo de inserção na sociedade. Porém, logo se tornam cientes do grau
de dificuldade de sua apreensão; ainda assim, em pouco tempo, desenvolvem o uso da lin-
guagem oral, mas este domínio, de certo, não é suficiente para a relação social com os profes-
sores do mesmo modo que com os saberes escolares. Assim, por longos anos, as crianças so-
brevivem sem conexão com o universo da sala de aula e dos saberes por causa do não domí-
nio suficiente da língua local; neste contexto, por mais que se desenvolvam, este desenvolvi-
mento sempre se encontra em um estágio de atraso irrecuperável para o acompanhamento dos
estudos escolares.

Conforme afirma Sacristán (2002), em uma sociedade capitalista, "saber ler e escre-
ver, ou ser incapaz de fazê-lo, introduziu uma das divisões sociais mais determinantes nas
sociedades modernas quanto a essa capacidade de acesso: a que se produz entre os alfabeti-
zados e os analfabetos. Uma divisão que estabelece a fronteira entre a inclusão e a exclusão
social" (p. 61-2).

E saber ler e escrever em japonês significa, no mínimo, dominar os cinco sistemas


diferentes, ou seja, o hiragana, katakana e kanji, e as letras romanas e os algarismos indo-

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

arábicos, todos eles aprendidos ao longo do ensino primário. Especificamente quanto aos
kanji, o Ministério da Educação do Japão, em 1947, oficializou a lista contendo 1.900 kanji
essenciais ao uso em documentos, jornais e revistas, dos quais 996 são ensinados durante os
seis anos do curso primário, assim distribuídos: 76 no 1° ano, 145 no 2° ano, 195 no 3° ano,
195 no 4° ano, 195 no 5° ano e 190 no 6° ano. O restante é ensinado gradativamente até o
término do ensino secundário, e aqueles que prosseguem os estudos de nível superior, de três
anos, aprendem mais outros kanji principalmente aqueles utilizados na literatura técnica ou
científica. Desse modo, a criança que é inserida na série conforme sua idade sempre apresen-
ta uma considerável desvantagem em comparação com seus colegas de classe, desvantagem
esta de difícil superação em pouco tempo.

Tendo já vivenciado a escola no Brasil, as crianças sabem que lá, a não apreensão dos
conteúdos resulta em uma reprovação, mas sua experiência na escola japonesa leva-as à
compreensão de que a progressão depende meramente da presença escolar. Com isso, mesmo
assistindo às aulas de algumas matérias, as crianças brasileiras logo percebem que os princí-
pios de estruturação do currículo especialmente pensado para elas subordinam objetivos pe-
dagógicos que não privilegiam o conhecimento dos conteúdos escolares. Mais adiante, dedu-
zem o quanto a escola japonesa é ligada à função de controle (disciplina, frequência, etc.) e
desligada da função instrumental, de formação do sujeito cultural e cognitivamente escolari-
zado. Aqui, podemos dizer, está a razão principal para o seu afastamento da escola. Assim,
parte delas se evade, e outra, resiste permanecendo na escola alheia a tudo até a sua conclu-
são, à espera de sua inserção no mundo do trabalho.

Ainda, quando as crianças brasileiras mostram o entendimento de que seu futuro está
previamente programado para o trabalho na fábrica, e que para a sua inserção no mercado
laboral, o aprendizado escolar não é um requisito importante, revelam a sua compreensão so-
bre a relação entre educação e trabalho no Japão. No trabalho, visto que a aprendizagem dos
conteúdos escolares e da língua local é irrelevante, ou pelo menos, secundária, as crianças
intuem que a educação escolar não tem utilidade prática e funcional para a sua vida profissio-
nal, portanto, o vínculo entre educação e trabalho é fraco, e evidentemente dispensável. Aqui,
notadamente, se encontra o segundo fator motriz da evasão.

Assim, os dois aspectos, de aprovação automática do sistema educacional japonês e


de fraca vinculação entre educação e trabalho, regulam, na criança brasileira migrante no Ja-
pão, a sua “relação com o saber” e, por conseguinte, a sua relação com o aprender e com o
seu desejo de saber, conforme conceitos desenvolvidos por Charlot (2000, p. 80).

Em uma sociedade moderna, cuja língua é indubitavelmente de difícil aquisição, a


criança brasileira migrante no Japão flutua entre ser “letrado” e ser “analfabeto”, e nos limites

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

dessa fronteira, sobrevive sem expectativas entre a sua caótica inserção escolar e a predesti-
nada exclusão social.

Respeitando, portanto, a complexidade da situação, ao final, cabe-nos ressaltar que o


estudo buscou responder às três questões fundamentais, a saber a) por que as crianças brasi-
leiras migrantes se inserem nas escolas públicas japonesas?, b) como elas são inseridas na
escola pública japonesa? e 2) por que elas abandonam a escola pública japonesa?, as quais
orientaram a discussão para uma direção que ultrapassa os limites do ensino da língua local.
Certamente, ainda há muito que ser compreendido sobre a educação das crianças brasileiras
migrantes no Japão, e que a hipercomplexidade do problema não conduz a soluções simples.
Todavia, é claro que a falta de uma legislação específica que trate da obrigatoriedade escolar
voltada para as crianças estrangeiras residentes no Japão, na atualidade, ainda causa certo es-
tranhamento. Não obstante, caso a obrigatoriedade venha a ser democratizada nos próximos
meses ou anos em resposta às exigências dos direitos universais, necessariamente ela deverá
vir acompanhada de uma reflexão aprofundada e séria sobre “qual é a finalidade da escola”
para a criança migrante no Japão. Isto porque, paradoxalmente, ela irá destinar-se a crianças e
jovens, filhos de trabalhadores migrantes, que no contexto do mundo globalizado, foram
"importados" para o trabalho fabril, para o suprimento de mão-de-obra não qualificada em
falta no país. No contexto da migração, lamentavelmente a garantia, em lei, dos direitos à
educação não é por si suficiente, pois que, na prática, existe um conflito em torno do sentido
da escola e, exatamente por isso, os filhos dos imigrantes, com ou sem ela, continuam nos
corredores do trabalho laboral nas fábricas. E só por este motivo, este assunto merece conti-
nuar sendo pensado e com muita seriedade.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Ensino de Português como segunda língua em comunidades indígenas em


Mato Grosso/Brasil

Juliana Freitag Schweikart


Professora da Universidade do Estado de Mato Groso (UNEMAT) e doutoranda do PPGEL
UNESP/IBILCE
juliana@unemat-net.br

Graci Leite Moraes da Luz


Professora da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT)
luzgraci@yahoo.com.br

Introdução

Sabemos que os primeiros moradores do Brasil, no período de sua descoberta são os


índios, e que estes, segundo a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) contavam com uma
população de aproximadamente três milhões e, lamentavelmente, foram decrescendo
acentuadamente no decorrer dos anos, chegando à década de 1950 a contar com apenas
70.000 índios, ou seja, 0,10% da população total. Atualmente, ainda segundo a FUNAI
(2010), a população indígena é de 817.963 indígenas, e em um Censo Demográfico realizado
em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em todos os estados
brasileiros há populações indígenas, ainda existindo registro de povos não contatados,
totalizando a representação de aproximadamente 305 diferentes etnias. Entre os povos, foram
também registradas 274 línguas indígenas, e entre estes, cerca de 17,5% dos índios não falam
a língua portuguesa, mas há uma porcentagem, ainda não totalmente registrada, de índios que
têm como língua materna o português devido a terem perdido contato com suas línguas de
origem.

No Mato Grosso, estado localizado na região centro-oeste do país, e abrangendo


geograficamente terras Amazônicas, de Cerrado e do Pantanal, vivem em torno de 33
comunidades indígenas de diferentes etnias, totalizando aproximadamente 22 línguas
pertencentes aos dois troncos linguísticos Indígenas, o Macro-Jê e o Tupi e ainda algumas
isoladas (FUNAI, 2010) que serão explanadas no decorrer do texto. O estado do Mato Grosso
faz divisa com Rondônia, um dos estados com maior quantidade e diversidade de indígenas,
bem como Amazônia e Pará, e ressalto ainda que há povos indígenas por todo o território
brasileiro e em países vizinhos, dessa forma não falaremos índios do Brasil, mas sim índios
no Brasil (OLIVEIRA, 2014).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

O Brasil é um país de rica diversidade cultural e linguística que vem se


desenvolvendo por centenas de anos por meio do contato de povos indígenas com os
colonizadores, e estes entre si, permitindo emergir o nosso povo brasileiro da atualidade. Um
povo que é monolíngue, bilíngue e multilíngue, e os povos indígenas que já foram
classificados como sendo um único povo com apenas dois grupos linguísticos, os Tapuya, do
interior, e os Tupi, do litoral (SILVA, 2003), são a maior demonstração de diversidade
linguística do país. As sociedades indígenas são diversificadas com uma variedade de
costumes, tradições, experiência, que torna difícil enumerá-los, pois cada etnia tem sua
cultura. Dessa forma, a língua portuguesa por vezes passa a ser a língua franca de contato
entre os povos, entre eles e a sociedade dos não-índios. Assim, a língua portuguesa tem papel
importante para o índio, a de socializá-lo com o mundo externo às aldeias, todavia seu ensino
ao indígena ainda necessita de pesquisas que auxiliem nesse processo sem ferir/macular a
língua de origem destes povos, bem como sua cultura.

Na sequência do texto, são apresentados alguns aspectos culturais, sociais e


linguísticos de algumas comunidades indígenas do estado de Mato Grosso, a Educação
Escolar Indígena e a língua portuguesa em meio a esse povo.

1 Aspectos culturais, sociais e linguísticos de comunidades indígenas localizadas


na região centro-oeste do país

Os povos indígenas são diferentes uns dos outros, possuindo uma lógica própria de
relações entre seus membros e histórias específicas. Habitam áreas ecológicas, seus costumes
e práticas culturais estão estreitamente ligados à preservação da natureza e com princípios de
conservar o meio ambiente, pois é seu habitat, é de onde vieram. Possuem diferenças
ideológicas com o não índio sobre territorialidade, onde a natureza não tem demarcação, é de
uso comum, e ainda hoje existem lutas judiciais para se identificar e delimitar algumas terras
indígenas.

Segundo Silva (2003), há uma realidade sobre esses povos que não aparece em livros,
tampouco em livros didáticos, mas ao contrário, o que há são estereótipos tais como: “- os
índios vivem exclusivamente da caça e pesca; - os índios são preguiçosos, só as mulheres
trabalham; - os índios falam a língua Tupi; - todos os índios dormem em rede, etc.” (SILVA,
2003, p. 110). Conforme o autor, o índio dedica-se a seus afazeres e faz com satisfação as
tarefas que cabem a ele na organização de sua sociedade e ainda, os povos indígenas têm seus
próprios processos de socialização, que acontece durante todas as fazes de sua vida.

Sendo assim, para que a educação escolar indígena aconteça, há a necessidade de que
os próprios índios sejam preparados para atuarem nas aldeias ou comunidades indígenas, ou

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

mesmo ainda, o não índio necessita entender o modo de vida dos povos indígenas e se
adequar a sua cultura e princípios, uma vez que o índio precisa reconhecer no não índio
alguém que gosta dele como ele é.

Atualmente a demanda por escolas está presente em quase todas as comunidades


indígenas que mantêm relacionamentos com segmentos da sociedade não indígena. Porém
essa demanda não é por qualquer tipo de escola, mas uma inserida em um paradigma
emancipatório, construído sob princípios de um modelo de enriquecimento cultural e
linguístico, no qual os processos escolares devem ser conduzidos pelos próprios índios.

Como já mencionado acima, cada povo ou etnia pode possuir uma língua própria,
dessa forma uma cultura própria e que “pede” para ser entendida e respeitada.

No estado de Mato Grosso podemos encontrar uma parcela expressiva dessa


diversidade étnica e linguística brasileira. É possível localizar aqui, 384 povos indígenas,
falando 34 línguas distintas. Ao todo, estima-se aproximadamente 30.000 indivíduos, um
pouco mais de 2% da população do estado. Esses povos se diferem tanto na pluralidade
cultural quanto nos diversos estágios de aculturação e de contato com a sociedade não
indígena. Há sociedades que mantêm contato há cerca de 300 anos, como é o caso dos
Bororos, e outras com contato bem recente como os Enauenê-nawê, por exemplo,
(SANTANA & DUNCK-CINTRA, 2009).

A situação sociolinguística em Mato Grosso também é múltipla e diversa, enquanto há


grupos que só se comunicam na sua língua étnica, há outros em que a língua portuguesa é a
língua materna do grupo, como no caso dos Arara, Umutina, Guató e Chiquitano, que
infelizmente já não possuem mais falantes nativos entre eles.

Com o objetivo de dimensionar essa diversidade, trago abaixo uma relação dos nomes
dos povos indígenas existentes no estado de Mato Grosso, as grafias na língua indígena e na
língua portuguesa, a língua falada, e os estados que fazem fronteira indicando a existência de
membros do mesmo povo em outra localidade, e uma estimativa de população considerando
os estados vizinhos. Algumas grafias do nome do povo na língua indígena não foram
localizadas.

Tabela 1: Povos Indígenas no Mato Grosso e região

UF (Brasil) População

Nome em Portu-
guês Outros nomes e Família / língua países senso /

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grafias limítrofes estimativa

Apiacás Apiaká Apiacá, Tupi- MT, PA 844

guarani

Apurinã Ipurina, Pupukare Aruak-maipure AM, MT, RO 8300

Araras-do-aripuanã,

Arara-do-rio-bran-
co, Tupi-arara MT 391

Arara-do-beiradão

Auetis, Aweti, Awityza, Aueti MT 195

Enumaniá, Auetö

Bacairis Bakairi, Kurã Caribe MT 950

Coxiponé,

Bororos Araripoconé, Araés, Bororo MT 1686

Coroados, Porrudos,

Boe

Cintas-largas Tupi-mondé MT e RO 1300

Txicão, Ikpeng, Txi-


Icpengues kão Caribe MT 319

Iranxes Iranxe MT 326

Caiabis Kaiabis Tupi-guarani MT e PA 1000

Calapalos Kalapalo Caribe MT 417

Camaiurás Kamaiura Tupi-guarani MT 355

Carajás Karajá Carajá MT, TO, PA 2500

Kayapó (subgrupos:

Gorotire, A’ucre,

Caiapós Quicretun, Mecrãnoti, Caiapó (Jê) MT e PA 7096

Cuben-cran-quen,

Cocraimoro,

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Mentuctire, Xicrin,

Cararaô)

Cuicuros Kuikuro Caribe MT 450

Matipus Caribe MT 119

Meinacos Mehinako Aruaque MT 199

Menquis Menki Iranxe MT 78

Nauquás Nahukuá Caribe MT 105

Nambikwara

Nambiquaras (subgrupos: Nambiquara MT e RO 1145

Nambiquara-do-cam-
po,

Nambiquara-do-norte,

Nambiquara-do-sul)

Noruvotos Caribe MT 78

Kehnakarore, kreen

Panarás Acarore, Krenacarore, Crenhacarore MT e PA 202

Índios gigantes da

Amazônia

Parecis Paresi Aruaque / Aruak MT 1293

Ricbactas Rikbactsas Ricbacsa MT 909

Suiás Suyá Jê MT 334

Tapaiúnas Tapayuna Jê MT 58

Tapirapés Tupi-guarani MT 438

Trumais Trumai MT 120

Umutinas Bororo MT 124

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contemporâneas

Wau
Uaurás ja Aruaque MT 321

Xa- 960
vantes (Jê) Akwen MT 2

Yawalapi-
Iaualapitis ti Aruaque MT 208

Juru- Yud-
nas já Juruna PA e MT 278

Fonte: Povos Indígenas no Brasil http://pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral, e Funai

http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao

Na tabela acima é possível perceber com mais clareza visual a rica variedade de
línguas e povos indígenas, algumas com uma população bastante significativa e outras com
poucos representantes ainda vivos. Faz-se urgente dessa forma que pesquisas que envolvam
estudos e descrição dessas línguas, sejam feitas para que não percamos os registros e os
povos que primeiro habitaram estas terras.

2 Educação escolar e Educação escolar indígena

As primeiras escolas para índios foram as mesmas e nos mesmos padrões dos não
índios, o que causou bastante conflito, pois segundo Cupudunepá (2005), ao se ensinar a ler e
escrever em português, o objetivo era integrar o indígena à sociedade do não indígena sem
respeitar seu modo de vida, e ainda, na década de 50 e 60, por vezes era até proibido que o
aluno índio se comunicasse em sua própria língua.

Dessa forma a Educação escolar é a educação formal existente na sociedade em geral,


e Educação escolar indígena desenvolve formas educacionais para esse público específico.

Com o passar dos anos, surge a demanda pela formação de professores indígenas para
atuarem nas escolas de suas comunidades. E atendendo a essa necessidade, diferentes
programas de formação foram iniciados pioneiramente por organizações da sociedade civil de
apoio aos índios e assumidos, hoje, por Secretarias Estaduais e Municipais de Educação e por
Instituições de Ensino Superior, apoiadas, principalmente, pelo MEC e pela Funai. Muitas
dessas experiências de formação de professores indígenas estão em diferentes regiões do

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contemporâneas

Brasil e são referências de atitudes afirmativas em prol da educação intercultural (BAMPI e


DIEL, 2015).

Outras experiências com resultados muito positivos é a da produção de materiais


didáticos, elaborados em contexto de formação dos professores indígenas para serem
utilizados com seus alunos, em sala de aula. São cartilhas, livros em diferentes áreas do
conhecimento, coletâneas de mitos e de histórias, dicionários, mapas e Atlas, cartazes, jogos
etc.

A verdade é que já se alcançou muito com o passar dos anos, mas vale ressaltar ainda
que a presença de jovens indígenas nas escolas urbanas como, por exemplo, os Paresi, que
frequentam escolas na cidade de Tangará da Serra, Campo Novo dos Pareci, entre outras no
estado do Mato Grosso, são jovens que têm a língua Paresi como língua materna e a língua
portuguesa como segunda língua (SANTANA, 2010). Diante disso, como um professor de
língua portuguesa poderá lidar com tal situação se não viu no curso de Letras questões
básicas relacionadas ao estudo de uma língua indígena? Mas não é tarefa fácil a formação dos
próprios índios como professores ou mesmo comunidade em geral, devido a heterogeneidade
e diversidade de situações sociolinguísticas, culturais e históricas dos grupos indígenas.

Ainda outro aspecto sobre a educação escolar, é que esta também deveria levar em
conta a presença de possíveis alunos índios, e para tanto, os cursos de Letras também
deveriam encontrar meios para que a formação de professores fosse incluído conhecimentos
sobre esses povos e sua situação cultural e linguística.

3 A Língua portuguesa e a língua nativa/materna no universo de dois professores


indígenas de etnias diferentes

A partir de resultados de trabalhos advindos de ações de professores e alunos do 3º


Grau Indígena da UNEMAT foram selecionados dois artigos de integrantes de dois povos
indígenas para a discussão de aspectos de bilinguismo e multilinguismo, e também de
sociolinguísticos, a partir de entrevistas publicadas no periódico Cadernos de Educação
Escolar Indígena, publicado pela Editora da UNEMAT. As publicações desta revista,
impressa e com versão digital, surgem de resultados de pesquisas e estudos realizados no
curso 3º Grau Indígena na UNEMAT/ Barra do Bugres, projeto existente também em outras
universidades pelo Brasil para formar professores indígenas. Nos artigos foram observadas as
características culturais dos povos relatados pelos entrevistados bem como informações

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

relacionadas à língua de uso das tribos, indicada aqui como Língua Materna157 e o
aprendizado da língua portuguesa como segunda língua. As entrevistas foram realizadas com
alunos que atualmente já encerraram a graduação pelo projeto 3º Grau Indígena e passaram a
atuar como professores em suas aldeias, relatando aspectos culturais e linguísticos desse
processo de formação e posterior trabalho na educação de seus povos.

Inicio a análise com um dos artigos, relacionado ao índio Paresi, Rony Walter
Azoinayce158, tecendo considerações e sequencio com o outro entrevistado o índio Ikpeng
Korotowi Taffarel159, observando as semelhanças e diferenças de cultura e de conduta com a
língua materna e o português de ambos os povos.

As duas comunidades indígenas citadas nos artigos (entrevistas) não pertencem a


nenhum dos dois grandes Troncos Linguísticos 160, pertencem a Outras Famílias, o povo
Ikpeng, cuja língua recebe o mesmo nome, pertence à família de línguas Karib, e o povo
Paresi, nome dado também a língua falada pelos mesmos, pertence à família Arúak (Arawak,
Maipure - Segundo site Socioambiental).

O primeiro entrevistado é do povo Paresi, também denominado de Haliti, falantes da


família linguística Aruak e que ocupam o território do Chapadão dos Paresi, no médio norte
do estado de Mato Grosso. No passado ocupavam uma extensão de terra maior, porém com a
chegada dos colonizadores foi reduzida, bem como seu povo, que na década de 1960 contava
apenas com 186 índios, porém atualmente somam cerca de 1.500 pessoas.

O índio Rony, após concluir sua graduação, foi morar e trabalhar na aldeia indígena
Seringal, uma das mais tradicionais, localizada no município de Campo Novo dos Parecis a
22 km da cidade, no estado de Mato Grosso, recebendo esse nome pelo fato de haver muitas
árvores Seringueiras nativas na região. Segundo o entrevistado as casas da aldeia ainda são
tradicionais, chamadas de hati, e são feitas “de palha de indaiá, madeira de kwari-kwari, ripas
de palmeiras e cipó para amarrar a madeira com as ripas e palhas” (AZOINAYCE e

157 Há algumas ressalvas para o uso deste termo, pois a língua materna de alguns povos indígenas é a língua
portuguesa, não podendo ser ela então a segunda língua destes. Porém, como abordo povos que o português é
realmente sua segunda ou terceira língua, opto por permanecer com o uso de Língua Materna para línguas indí-
genas e Segunda Língua para o português.

158 Para maiores informações ver: AZOINAYCE, R. W.; JANUÁRIO, E. Entrevista com o professor Rony Pare -
si. In.: Cadernos de Educação Escolar Indígena – 3º Grau Indígena. Barra do Bugres: Unemat, v. 3, n. 1, 2004

159 Para maiores informações ver: TAFFAREL, K.; JANUÁRIO, E. Entrevista com o professor Ikpeng Koroto -
wi Taffarel. In.: Cadernos de Educação Escolar Indígena – 3º Grau Indígena. Barra do Bugres: Unemat, v. 4, n.
1, 2005.

160 Para maiores informações sobre Troncos e Famílias linguísticas, consultar: http://pib.socioambiental.org/pt/
c/no-brasil-atual/linguas/troncos-e-familias

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

JANUÁRIO, 2004, p. 158), a disposição das casas é paralela uma a outra e as portas tem
sentido leste-oeste e a aldeia ainda fica rodeada por mata, cerrados e campos. Rony também
indica que a localidade possui cerca de 70 pessoas e ainda possui uma escola com turmas de
1ª a 4ª série “com estudo específico, diferenciado e bilíngue, conforme assegura a
Constituição brasileira de l988” (AZOINAYCE e JANUÁRIO, 2004, p. 158), onde estudam
22 alunos. Embora tenham contato com não indígenas, todos os moradores da aldeia tem
como primeira língua o Paresi e estes mantêm as tradições como “as danças, os rituais e os
esportes tradicionais como: jikunahati, tidimore, jakatiye, kolídiho e matoyo.” (AZOINAYCE
e JANUÁRIO, 2004, p. 158).

Nem todas as aldeias possuem atualmente o formato tradicional e alguns ainda


possuem casas de alvenaria, resultado do contato com o não índio, introduzindo a cultura do
outro à cultura indígena. Segundo Gutierres e Januário (2014), em uma análise sobre a
situação ambiental das terras e aldeias indígenas, apresentam algumas mudanças no formato
de aldeias e casas, porém relatam que “apesar de parecer uma situação comum e até esperada,
percebeu-se durante as entrevistas certa frustração de alguns estudantes ao fazer tal
declaração, como se sentissem a perda de algo importante” (p. 60). A perda dessa
característica física que representa uma cultura, pode explicar também a possível perda de
algumas línguas indígenas, segundo Hinton (2001) apud Isidoro (2006, p. 58) “a perda das
línguas indígenas está intrinsecamente ligada à usurpação das suas terras, à destruição do seu
habitat e à assimilação involuntária dos costumes da sociedade não-indígena”, outro motivo
pode ser por algumas etnias terem que viver juntas compartilhando das mesmas terras, o que
pode ser uma fator negativo para a continuidade de algumas línguas, uma vez que a língua
com maior número de falantes tende a prevalecer nesse meio. Como nos apresenta
Albuquerque (2008, p. 76),

[...] são observadas duas tendências que interferem no conflito linguístico:


por um lado a crescente extensão da língua majoritária e o desaparecimento
da língua minoritária como tendência principal, e por outro, certos
elementos de resistência lingüística e cultural da comunidade como
tendência subordinada. Esta tendência se expressa na resistência do sistema
tradicional de comunicação e organização interna dos povos indígenas em
conservar a interação verbal cotidiana e as atividades culturais da
comunidade.

Podemos inferir que ainda há muito que se fazer em relação às pesquisas no âmbito da
valorização à preservação da língua e cultura indígena. E para tal, o projeto 3º Grau Indígena
tem sido muito valioso em todo o território nacional.

Rony iniciou seus estudos quando criança em uma aldeia indígena, mas segundo ele
não compreendia os objetivos de ir para a escola, mas foi quando seus pais se mudaram para

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

a cidade de Cuiabá161 onde, a partir de um exame para verificar seu grau de escolaridade,
começou cursando a 3ª série em uma escola estadual. Segundo ele encontrou sérias
dificuldades por conta da língua e das diferenças culturais, porém relata que encontrou apoio
e esclarecimentos junto a seu pai quando lembra “[...] o meu pai foi um grande companheiro
e amigo nos momentos de dificuldade da minha vida.” (AZOINAYCE e JANUÁRIO, 2004,
p. 160). Nos relatos do segundo entrevistado, mais abaixo, também encontramos a figura do
pai, ou pais, bastante significativa, ou seja, é através deles que as crianças e jovens
descobrem e conhecem o mundo. Como os conhecimentos nos povos indígenas são
transmitidos dos mais velhos para os mais novos, estes estão em companhia dos mais velhos
o tempo todo e todos são responsáveis pelas crianças da aldeia (ALBUQUERQUE, 2008).

O entrevistado indica ter sido a língua sua maior dificuldade no contato com a cidade,
pois ao sair da aldeia falava e compreendia cerca de 10% apenas da língua portuguesa. Relata
também que ao tentar se expressar em português se atrapalhava e as pessoas zombavam, por
isso chegando até a pensar em desistir dos estudos, porém, concluiu a 3ª série com
dificuldades, mas contando sempre com o apoio dos pais. No ano seguinte, 1990, seu pai foi
transferido para a FUNAI e se mudaram para Tangará da Serra, cidade localizada mais ao sul
do estado de Mato Grosso é o quinto município mais populoso, onde concluiu seu ensino
fundamental e médio. Rony relata uma passagem que o marcou muito ainda no ensino
fundamental, quando em uma aula de história, entre as atividades de uma prova, havia
algumas perguntas sobre a moradia dos índios, o que comiam, o que mais gostavam de fazer,
e segundo ele, isso foi um choque,

[...] porque os outros colegas responderam a prova eu não consegui


responder essas questões. Afinal eu era índio e as respostas que estavam no
livro didático, e que deveriam ser escritas na prova, não eram a minha
realidade. Fui para casa arrasado e, se não fosse meu pai conversar muito
comigo, eu não teria voltado mais para a escola. (AZOINAYCE e
JANUÁRIO, 2004, p. 160)

Com esse relato é possível perceber como nossas escolas brasileiras, escolas do não
índio, e nossos educadores, educadores não índios, não estão preparadas para receber o aluno
índio, necessitando esse realmente de um ambiente escolar com as especificidades de sua
cultura e que trate de assuntos relacionados à sociedade em geral, bem como ao aprendizado
do português como segunda língua, para que possam se comunicar livremente em território
nacional, e ainda nos dizeres de Bampi e Diel (2015, p. 112) “não pode mais a educação não
indígena ensinar o indígena, não pode ela mais contar do indígena, mas possibilitar e
oportunizar a presença da manifestação indígena para que ela forneça sua visão de história e
educação”. A exemplo, também, do relato de Rony sobre sua dificuldade com a segunda

161 Capital do estado de Mato Grosso.

!492
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

língua ao se mudar para a cidade, destaca-se que o número de pesquisas sobre esse assunto
tem aumentado (MAIA, 2005; FRANCHETTO, 2002 e 2004; ALBUQUERQUE, 2008;
SILVA, 2005; para citar alguns), o que possibilitou e possibilita ações para que as crianças
não necessitem passar por essa dificuldade na atualidade, e as escolas indígenas nas aldeias
tem minimizado possíveis impactos com a língua portuguesa. Atualmente, segundo Bampi e
Diel (2015, p. 110) “no Parque Nacional do Xingu, a questão do bilinguismo e
multilinguismo é um fato real e presente no cotidiano de diversos povos.”, ainda ressaltam
que o português é utilizado como língua de contato entre os diversos povos do Parque, bem
como diversos membros de diferentes etnias demonstram domínio, além das línguas nativas,
de várias outras línguas.

Em relação ao seu trabalho junto à educação indígena, o entrevistado relata que após
encerrar o ensino médio tentou entrar para a universidade, mas sem sucesso inicialmente,
logo ficou sabendo do 3º Grau Indígena, fez o vestibular e passou. Recebeu um convite de
seu tio, para trabalhar na sua aldeia de origem, com receio de não se adaptar novamente com
a cultura da aldeia, depois de muitos anos vivendo na cidade, juntamente com sua esposa,
aceitou o convite. Rony indicou que seu primeiro dia de aula (ainda lembrava a data, 10 de
setembro de 2001) foi muito bom e que tem sido muito bom trabalhar como professor, fazer
algo pelo seu povo. Segundo ele há uma grande diferença entre a escola da cidade e a escola
indígena,

[...] primeiro porque a escola da cidade é padronizada, ela pouco valoriza os


saberes dos alunos, os conhecimentos das pessoas, tudo está pronto, tem que
ser daquele jeito, tem que aprender o que está no livro. Na escola indígena
não é assim, a gente valoriza os diferentes conhecimentos, os saberes
tradicionais dos anciãos, as práticas cotidianas. “Ensinamos e aprendemos o
que é importante para o nosso povo. (AZOINAYCE e JANUÁRIO, 2004, p.
161)

Uma escola indígena, diferentemente de escolas em cidades com 100.000 habitantes,


por exemplo, que atendem muitas vezes cerca de 2.000 alunos, recebem cerca de 12 a 30
crianças, característica que faz com que se possa “cuidar” destas com mais individualidade,
observá-las por uma quantidade maior de adultos e pela própria característica da cultura
indígena em que as crianças devem acompanhar os adultos, suas individualidades podem ser
melhor verificadas e atendidas com mais especificidade. Porém é necessário se atentar para
um crescente uso da língua portuguesa nas escolas indígenas, segundo Franchetto (2002) em
um levantamento do Ministério da Educação e Cultura (MEC) sobre a situação das escolas
indígenas e brasileiras foi constatado uma redução do uso das línguas nativas, ou ainda,
segundo a autora, “perigosamente excluídos”. A autora ainda ressalta que é na relação
professor-aluno que se dá a valorização da diversidade e que a dignificação do saber

!493
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

tradicional deve ser estimulada, pois o que acontece por vezes é o índio se “encantar” pela
cultura do não índio e possivelmente desvalorizar a sua.

A esse respeito Rony apresenta algo importante sobre como o curso na universidade,
o 3º Grau Indígena, tem auxiliado seu trabalho na aldeia, por estimular a pesquisa e o estudo
das tradições como “[...] (cantos, danças, esporte tradicional, na ortografia da língua materna,
ervas medicinais, pajelança, rituais sagrados, e principalmente na revitalização das pinturas
corporais Paresi-Haliti).” (AZOINAYCE e JANUÁRIO, 2004, p. 162). Também acrescenta
que está aprendendo mais sobre a parte pedagógica do trabalho do professor, bem como
outros assuntos relacionados à política,à economia, à saúde, ressaltando que “preciso estar
atualizado para poder enfrentar as mudanças que estão ocorrendo no mundo e assim ajudar
meu povo nesse processo e também outros povos quando solicitado.” (AZOINAYCE e
JANUÁRIO, 2004, p. 161).

É possível perceber a preocupação com a valorização da própria cultura, de defesa de


seu povo, ou seja, conhecer o que acontece na sociedade do não índio para poder orientar o
índio em um processo de autopreservação da cultura, da língua, e de sua história.

O segundo entrevistado é um índio pertencente ao povo Ikpeng e mora na aldeia


Moygu, que fica próximo ao Posto Indígena Pavuru,localizado no Parque Indígena do Xingu,
às margens do rio Xingu. É no Posto Pavuru que fica a escola e a Unidade Básica de Saúde
(UBS) e ainda uma pista de pouso para aviões. A aldeia é formada por doze casas dispostas
em formato circular e três delas são grandes e alojam mais de trinta pessoas. Há ainda a casa
dos homens, onde acontecem reuniões e é um lugar muito sagrado, pois alguns rituais ali
acontecem. O mesmo ainda indicou que sua língua é pertencente ao “tronco linguístico
Karib” (JANUÁRIO e TAFFAREL, 2005, p. 165).

Na mesma aldeia do índio Korotowi moram outros povos como os Kayabi, Suyá,
Trumai, Kamaiurá que casaram-se com mulheres Ikpeng, e a língua da aldeia permanece
sendo Ikpeng. O povo Ikpeng foi o penúltimo povoado indígena a ser contactado pelos
irmãos Villas Boas162 e o contato com os não índios, a exemplo do primeiro entrevistado, os
reduziu a 53 pessoas que foram levadas para o Xingu, e atualmente são aproximadamente
1.400 índios.

Korotowi Taffarel é filho de um índio Kayabi e uma índia Ikpeng e morou no Posto
Leonardo até seus sete anos, depois foram moram em uma aldeia Kayabi onde viveu parte de
sua infância, e em 1978 é que foram moram na aldeia em que reside atualmente, e assim que

162 Ver mais informações em: https://pib.socioambiental.org/pt/c/politicas-indigenistas/orgao-indigenista-oficial/


o-servico-de-protecao-aos-indios-(spi)

!494
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

abriu uma escola indígena no Pavuru, em 1984, e seu pai pediu que fosse estudar. Falante de
duas línguas, Ikpeng e Kayabi ; começou a aprender o português com doze anos. Segundo
ele, a exemplo do primeiro entrevistado Rony, com bastante dificuldade. Quando começou a
trabalhar foi como atendente na área da saúde e como tinha uma madrinha parteira
acompanhava-a quando era chamado, aprendeu a fazer partos.

Segundo o entrevistado, a cultura de seu povo permanece bem viva, fazem seus rituais
anualmente e em convívio com outras aldeias que vivem no Parque do Xingu aprenderam
novas culturas como danças e a festa mais importante para eles é a Festa Moyngo, com a qual
comemoram a iniciação dos meninos com furação de orelhas e tatuagens. Mas ainda estão
resgatando outras festam culturais que a maioria dos jovens não chegou a conhecer, pois
deixou de ser realizada a muitos anos, como por exemplo a Festa da Guerra.

O entrevistado indicou nunca ter parado de estudar, pois:

[...] os meus pais me incentivavam sempre, falando que tinha que estudar.
Meu pai falava que os brancos estavam chegando, ele sabia, por isso ele
falava que tinha que aprender as coisas dos brancos, para poder estar
vivendo o mundo dos brancos, e para poder ensinar meus irmãos também,
então nunca parei de estudar. (JANUÁRIO e TAFFAREL, 2005, p. 167)

Durante seu trabalho na saúde aprendeu mais duas línguas, o Aruak e o Kamaiurá
para poder se comunicar com os pacientes, pois havia muitos índios idosos que não falavam o
português. Em 1989 foi indicado para lecionar na escola indígena, não aceitou no momento,
porém em uma nova indicação no ano seguinte acabou aceitando, onde começa sua vida na
educação lecionando português. Korotowi acrescentou que o mais difícil no seu trabalho na
educação era a língua, pois não tinha material para ensino, dificuldade existente até aquele
momento, segundo o mesmo, para ele e para os demais professores. Ele comenta que “é
importante a produção de matérias específicos para as escolas indígenas, principalmente
materiais de alfabetização, de matemática, de geografia, entre outros.” (JANUÁRIO e
TAFFAREL, 2005, p. 170).

Um aspecto interessante, indicado pelo índio, sobre sua formação com graduação é
que após a conclusão do 3º grau indígena ele ganhou mais respeito, que já tinha, porém
agora, “[...] consigo discutir, não só na minha comunidade, mas em geral no Xingu [...] como
um informante nas reuniões, tudo que aprendo aqui levo para a minha comunidade para
ajudar meu povo.” (JANUÁRIO e TAFFAREL, 2005, p. 171).

Outra característica da convivência na universidade é que o Curso trata da realidade


das aldeias, e proporciona a reflexão entre os professores indígenas e um dos temas é sobre a
educação diferenciada e específica para povos indígenas, que segundo o entrevistado, a

!495
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

reflexão sobre esse assunto era difícil até para os próprios professores que atuam na área, pois
há falta de conhecimento sobre seus direitos relacionados à educação. A educação
diferenciada dos indígenas é importante ser ressaltada, pois os adultos repassam
conhecimentos e saberes indispensáveis às suas crianças sobre a vida na aldeia e na floresta,
manejando um conjunto de metodologias, técnicas e tecnologias que são importantes para a
vida na comunidade indígena, bem como sua sobrevivência individual, caso seja necessário,
tudo isso cercado “por um conjunto de valores de respeito, solidariedade, amizade,
compartilhamento, determinação, coragem e persistência.” (BAMPI e DIEL, 2015, p. 109).
Percebo que é por esses aspectos culturais que a figura do pai como amigo que orienta é
citada por Rony e por Korotowi nas duas entrevistas.

Korotowi acrescenta que eles têm conseguido construir seu próprio Projeto Político
Pedagógico das escolas, amparado com as leis que conhecem eles trabalham com as
realidades específicas das comunidades, como por exemplo, “se um aluno foi pescar, nós não
damos falta porque ele foi pescar, é uma educação que ele está aprendendo, e essa educação
veio de muito tempo, porque a nossa educação é feita na prática, trabalhando, vendo o pai
fazer, acompanhando o pai.” (JANUÁRIO e TAFFAREL, 2005, p. 171). É assim que eles
educam os filhos, eles têm que acompanhar os pais nas atividades da comunidade “então não
estamos colocando os alunos só dentro da sala de aula” (JANUÁRIO e TAFFAREL, 2005, p.
172), e é isso que faz com que calendários de escolas indígenas sejam diferenciados de
escolas urbanas. Faz-se importante ressaltar ainda que a ação de pescar para o não índio
remete a ideia de uma ação de lazer, porém para o indígena “tal atividade tem sentido de
trabalho para a comunidade indígena, pois é por ela que ocorre a busca da
sobrevivência” (BAMPI e DIEL, 2015, p. 109). Assim, pode-se perceber que sobre uma
mesma ideia, ação, é possível haver diferentes interpretações de povos indígenas e do não
índio, diferentes valores nos demonstrando o quão importante se faz conhecer a realidade
cultural e linguística desse povo, também brasileiro.

Considerações finais

De caráter incompleto, este artigo ainda não contempla muitas questões relacionadas
à língua portuguesa e a relação de povos indígenas com a mesma, pois compreendemos que
muitas pesquisas ainda necessitam ser feitas inserindo-se nas aldeias e no cotidiano dos
índios para coleta de dados mais aprofundada e reflexões baseadas em suas culturas únicas.

Entretanto, por meio dessas entrevistas utilizadas aqui, é possível identificar os


aspectos indicados por vários autores, também trazidos no texto, que tratam das
particularidades de cada povo indígena que as diferenciam tornando-as únicas, porém, ao
mesmo tempo possuem algo em comum, o desejo de perpetuar sua cultura e/ou de resgatar

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

aspectos perdidos da cultura. Outra preocupação, um pouco mais recente, de professores


formados pelo 3º Grau Indígena e de pesquisadores é o resgate e manutenção das línguas
indígenas e do ensino e aprendizagem da língua portuguesa como língua como segunda ou
terceira língua no sentido de atuar como língua franca.

Nesse sentido, os programas do governo para formar professores indígenas


preparados para atuarem em sua própria realidade têm sido de fundamental importância, uma
vez que os primeiros contatos, historicamente identificados e expressados, novamente aqui,
pelos entrevistados com a educação escolar do não índio, não obteve sucesso para o índio,
por este não compreender ou se não adequar às questões culturais e sociais do outro que não
possui os mesmos princípios de vida que os povos indígenas.

Referências

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BAMPI, A. C.; DIEL, J. O. Quando o índio educa o(a) pedagogo(a): relatos de pesquisa-ação
nos seminários de antropologia junto ao curso de pedagogia. In.: JANUÁRIO, E.; SILVA, F.
S. (Orgs.). Cadernos de Educação Escolar Indígena. Cuiabá: Editora Merireu, v.12, n.1,
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FRANCHETTO, B., et al.A construção do conhecimento linguístico: do saber do falante à
pesquisa. In.: Cadernos de Educação Escolar Indígena – 3º Grau Indígena. Barra do Bugres:
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FRANCHETTO, B. Línguas indígenas e comprometimento linguístico no Brasil: situação,


necessidades e soluções. In.: Cadernos de Educação Escolar Indígena – 3º Grau Indígena.
Barra do Bugres: Unemat, v. 3, n. 1, 2004.
FUNAI, Etnias Indígenas do Brasil. Disponível em http://www.funai.gov.br/indios/
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ambiental e educação escolar. Cuiabá: Instituto Merireu Editora, 2014.
ISIDORO, Edinéia Aparecida. Situação Sociolingüística do Povo Arara: uma história de luta
e resistência. Goiás, 2006. 130 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós –
Graduação em Letras, Universidade Federal de Goiás, 2006.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

MAIA, M. Uma mente, duas línguas: reflexões sobre a transferência de padrões de ordem
vocabular em textos de falantes indígenas bilíngues. In.: Cadernos de Educação Escolar
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OLIVEIRA, L. R., et al. A pesquisa sociolinguística nas línguas indígenas brasileiras. Web-
Revista Sociodialeto. Campo Grande: UEMS, v. 4, n. 12, 2014.
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Lingüísticas: uma experiência com os Chiquitano do Brasil. Cuiabá (MT): Edufmt, 2009.
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pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral acesso em 10 de dezembro de 2015.
JANUÁRIO, E.; TAFFAREL, K. Entrevista com o professor Ikpeng Korotowi Taffarel. In.:
Cadernos de Educação Escolar Indígena – 3º Grau Indígena. Barra do Bugres: Unemat, v. 4,
n. 1, 2005.

Los hipermedios en la construcción de material didáctio para abordar la


interculturalidad en la enseñanza del Português LCE

Lucía Muñoz
Universidad Nacional Del Nordeste
mu_lucia@yahoo.com.ar

Marcela Redchuk
Universidad Nacional Del Nordeste
marcela_redchuk@yahoo.com.ar

ÁREAS TEMÁTICAS: Produção cultural da lusofonia: identidade, diversidade e fronteiras


dialógicas. / Produção e difusão de materiais e recursos didáticos de PLE/PL2

Resumen: esta ponencia tiene como objetivo compartir una propuesta de producción/
construcción de Material Didáctico hipertextual e hipermedial (HTML) para Portugués LCE
(Lengua Cultura Extranjera), nivel superior, abordando algunos aspectos socioculturales de
Bahía -Brasil.

El mismo se basa en una investigación que se realizó sobre algunas características que
hacen al uso de Internet. Estas son: la Interactividad y la Hipertextualidad.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

El potencial de Internet aplicado a la enseñanza ha sido y es objeto de numerosos


debates y un buen número de profesores ven en él actualmente una herramienta de acceso a la
información y a un material lingüístico auténtico. Pero también consideramos que ello exige
de los profesores competencia y formación en el manejo para explotar los recursos
disponibles en el ámbito de sus actividades de clase. La utilización de Internet crea
igualmente, como factor de tratamiento de la información, de materiales audiovisuales, de
textos académicos y producciones artísticas; necesidades que requieren la adquisición de
nuevas competencias y estrategias.

Interesadas en la construcción intercultural de representaciones socioculturales,


utilizamos como texto de anclaje (del hipertexto) la letra de la canción “Reconvexo” de
Caetano Veloso. A partir del texto de la canción, se desarrolló un hipertexto –por medio de
diferentes links- abarcando todas las categorías de signos (imagen, sonido y escritura) con el
propósito de abrir el abanico a varias posibilidades de construcción de representaciones
socioculturales que los alumnos pueden hacer respecto al concepto de “Negritude”, ya que
Argentina –nuestro caso- es un país que no posee en su conformación cultural el aporte de
herencias afrodescendientes, tan considerable como le es en el caso de Brasil.

Palabras claves: interculturalidad, hipertexto, Negritud


Introducción

Un gran conjunto de profesores de lenguas culturas extranjeras (LCE) tienen


conciencia de la importancia de los aspectos socioculturales en la comunicación entre
personas pertenecientes a diferentes comunidades lingüísticas, y por lo tanto, el aprendizaje
de una lengua no puede ser reducido a la adquisición de vocabulario y/o de estructuras
gramaticales. El aprendizaje de una lengua es un proceso global, en donde el alumno entra en
contacto con una forma determinada de interpretar, entender el mundo y actuar en una
determinada sociedad, como parte de la misma. Esto es así porque las lenguas no son
sistemas abstractos desvinculados de la realidad, sino instrumentos de comunicación social
que no pueden ser separados del contexto social en que funcionan.

El saber sociocultural –entendido como el conocimiento de la sociedad y de la cultura


de la comunidad o comunidades que hablan una lengua dada– es también un aspecto del
conocimiento del mundo, pero merece una atención especial, dado que frecuentemente no
forma parte de las experiencias previas del alumnado y está deformado por estereotipos.

La toma de conciencia intercultural, por su parte, se identifica con el conocimiento y


la comprensión de las similitudes y diferencias existentes entre el propio universo cultural y

!499
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

el de la comunidad o comunidades objeto de estudio, incluyendo la toma de conciencia de la


diversidad regional y social de ambos universos. Además del conocimiento objetivo, la
conciencia intercultural engloba la toma de conciencia del modo en que cada comunidad es
contemplada desde la óptica de los demás, frecuentemente caracterizada por los estereotipos;
y éstos, comúnmente brindan la noción de un modelo monolítico de cultura. Si bien existen
los trazos culturales llamados universales, como hábitos, creencias y valores, no se trata aquí
de reemplazar piezas cual estructura desmontable.

Viéndolo de esta forma, la educación lingüística contemporánea debe construir


caminos en búsqueda de la interdisciplinariedad en la selección de contenidos, recursos y
materiales didácticos que privilegien el respeto a las diferencias, la toma de conciencia de que
los puntos de vista son relativos y resaltar la visibilidad de los trazos de identidad y alteridad
como constructores de una política ciudadana multicultural.

Por todo lo expuesto anteriormente, este trabajo se inserta en un proyecto de prácticas


pedagógicas con material didáctico hipertextual desde un enfoque intercultural de la
enseñanza de LCE. Nuestro objetivo principal fue observar y analizar las construcciones de
representaciones socioculturales que los alumnos podían realizar respecto al concepto de
“Negritude”, dado que en Argentina –nuestro caso- no se dio en su conformación cultural -
salvo en comunidades muy pequeñas y específicas, la presencia de la matriz negra con el
aporte de herencias afrodescendientes tan considerable como se produjo en Brasil.

Metodología

Para constituir el laboratorio se procedió a la creación del material didáctico


hipertextual, utilizando como texto base o de anclaje, la letra de la canción Reconvexo de
Caetano Veloso. En este texto se fueron colocando enlaces (links) que representaban –a
nuestro criterio- de algún modo, las diferentes expresiones culturales que existen en Bahía,
como eje de la cultura negra en Brasil.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Maria Bethânia

Composição: Caetano Veloso

1      Eu sou a chuva que lança a areia do Saara

       Sobre os automóveis de Roma

       Eu sou a sereia que dança, a destemida Iara

       Água e folha da Amazônia

5      Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma


Negra

       Você não me pega, você nem chega a me ver


       Meu som te cega, careta, quem é você?

       Que não sentiu o suingue de Henri Salvador

       Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô

10    E que não riu com a risada de Andy Warhol

       Que não, que não, e nem disse que não

       Eu sou o preto norte-americano forte 

       com um brinco de ouro na orelha 

       Eu sou a flor da primeira música , a mais velha


15   A mais nova espada e seu corte

       Eu sou o cheiro dos livros desesperados, sou Gitá

gogoya

       Seu olho me olha, mas não me pode alcançar

       Não tenho escolha, careta, vou descartar

       Quem não rezou a novena de Dona Canô

20    Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-


Flor  1   

       Quem não amou a elegância sutil de Bobô 


       Quem não é recôncavo e nem pode ser reconve-

xo.

https://sites.google.com/site/materialdidacticoportugues/reconvexo

Para la construcción del hipertexto se utilizaron hipermedios, quiere decir, los


diferentes tipos de signos (escritura, imagen y sonido) generando de este modo una amplitud
de la lectura que podían realizar del universo cultural objeto de estudio. En este sentido es
importante aclarar, que los materiales hipermediales brindados al alumno deben ser acotados
según criterios establecidos por el docente de acuerdo a los objetivos de aprendizaje. En
nuestro caso los objetivos generales que nortearon la selección de links fueron: que sean
textos (ya sea escrito, audio o video) auténticos, del ámbito académico, que brindasen
información pertinente y específica.

El universo o población de nuestra muestra está representada por un grupo de 25


alumnos de la Facultad de Humanidades de la Universidad Nacional del Nordeste, situada

!501
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

geográficamente en la capital de la provincia del Chaco, al norte de Argentina y a 409 km de


la frontera más cercana con Brasil. Los alumnos pertenecen a diferentes carreras, estas son
Licenciatura en Letras, Profesorado en Letras, Bibliotecología, Archivología y Licenciatura
en Ciencias de la Información. Su edad varía en una franja de 20 a 50 años. Por ser una
Universidad pública, los alumnos provienen de todos los estratos socioculturales y
socioeconómicos.

Los instrumentos confeccionados y utilizados para el relevamiento de los datos fueron


Foros de Debate creados para tal fin en la plataforma virtual institucional de la Universidad,
las monografías realizadas por ellos –como producto de sus investigaciones-, y la instancia
expositiva y socializadora de los grupos de investigación.

Cabe resaltar que los alumnos tenían total libertad para seleccionar el tema de
pesquisa, dentro de las posibilidades que ofrecían tanto los links, como la propia
interpretación global de la letra de la canción.

Presentación de los Resultados

Los resultados mostraron un mayor interés de los alumnos por cuestiones referentes a
la religión afrobrasileña (Candomblé, Umbanda, Terreiro de Gantois, os Orixás), el Pelô
(como foco de la cultura esclavista y cuna brasileña de la Raza Negra), los ritmos y danzas
(Samba de Roda y otras), la música y percusión (descripción y origen de los instrumentos),
Olodum (la escola y actividades que desarrolla esta ONG), carnaval (aportes de la
africanidad), futbol (historia e inclusión del negro en los clubes del Brasil).

La evidencia, verificada en los temas investigados, gana cuerpo y sentido más preciso
cuando apuntamos en las cuestiones que tocan las manifestaciones culturales163 y hechos
históricos. Queremos decir, fue notoriamente observable una sensibilización e interés de los
alumnos por los temas que entrañaban un enraizamiento con el origen esclavista de la
presencia negra en la cultura brasileña, y los indicios de la discriminación y de la lucha por la
inclusión que atravesó y atraviesa la comunidad afrodescendiente en Brasil.

Con respecto al material didáctico utilizado, podemos decir que los diferentes medios
de significación semiótica –escrita, auditiva y audiovisual- fueron trabajados
simultáneamente, conformando una amalgama de signos, una complementación de diferentes
formas de información, proporcionadas por las características y propiedades que ofrece el
lenguaje HTML de Internet.

163En este punto, es importante aclarar que las manifestaciones culturales que fueron tratadas aquí no se con -
fundan con la idea ligada a la producción de la industria cultural (videoclips, TV, filmes, shows, etc.)

!502
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Conclusiones

El valor, la relevancia, los aspectos y el peso de la cultura en la identificación de


Bahía como centro y cuna de la Negritud son reforzados por la imagen del “Otro”, por la
figura de lo extremadamente “ajeno”, como significantes de las representaciones
socioculturales en este grupo de alumnos.

También debemos tener en cuenta que, aunque esa mirada transversal y


transdisciplinar sobre la cuestión Negra estuvo demarcada por los links y materiales allí
dispuestos, la selección de las temáticas tiene que ver con las características del grupo y sus
subjetividades (criterios culturales, afectos, valores, contexto social, experiencias, etc.) y
también por la fascinación del exotismo que presenta -y representa- el universo cultural
Negro en nosotros, los argentinos.

Bibliografía

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Desconstrução e Psicanálise. Rio de janeiro: Imago editora Ltda. 1993

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O ensino do Português Língua Estrangeira para imigrantes haitianos na


Missão Paz em São Paulo

Lucília Souza Lima


Teixeira Universidade de São Paulo – FFLCH-USP
luccilia@yahoo.fr

O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
João Guimarães Rosa

Esse artigo busca apresentar o ensino da língua portuguesa para os haitianos nos
cursos da Missão Paz, centro de acolhida de imigrantes recém-chegados na cidade de São
Paulo. As aulas de português se iniciaram em 2013, em carácter emergencial, e a partir de
2014 se estruturaram no curso que hoje é oferecido. Para tanto, buscamos retratar um breve
panorama da imigração em São Paulo e nos situarmos nas questões que contribuíram para a
vinda de tantos haitianos para a capital paulista.

Antes de tudo, é necessário considerar que os movimentos migratórios começaram


com a própria evolução humana. Assim, pode-se dizer que a primeira migração aconteceu
quando o homo sapiens começou a se deslocar no continente africano em direção à Eurásia,
entre 60 e 70 mil anos atrás 164. Em seguida, diversos momentos que marcaram a história
continuaram a dar impulso às migrações, tais como: as grandes navegações, que fizeram o
homem passar além do bojador e da dor (como nos diz o poeta Fernando Pessoa165); a

164 https://arqueologiaupf.wordpress.com/2011/12/05/migracoes-na-peninsula-arabica/ acesso em julho de 2016

165 Referência ao poema Mensagem de Fernando Pessoa de 1934

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

conquista da América (narrada por Todorov166, a partir de reflexões sobre a alteridade); a


revolução industrial; o neocolonialismo; o socialismo; o comunismo; as guerras e a
globalização.

Deslocar-se leva a sentimentos de estranheza, mas também é o momento propício


para reflexões sobre a alteridade e identidade. Nesse contexto, encontra-se o conceito de
pensamento complexo, elaborado por Edgard Morin (2002), sobre o qual falaremos mais
adiante.

Geralmente, as migrações são impulsionadas pela busca de melhores condições de


vida, fuga de guerras, conflitos ou catástrofes naturais. Atualmente, a questão dos refugiados
chama a atenção em todo o mundo. Em 2016, segundo dados do ACNUR (Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados), existem cerca de 20 milhões de refugiados no
mundo. De acordo com o CONARE167 (Comitê Nacional para os Refugiados), vivem hoje no
Brasil 8800 refugiados de 79 nacionalidades, dentre elas: sírios, angolanos, congoleses e
palestinos.

O Brasil fez parte da Convenção Internacional sobre o Estatuto dos Refugiados de


1951 e integra o Comitê Executivo da ACNUR desde 1958. A lei 9474 de 1997 estabeleceu o
estatuto do refugiado e, no mesmo ano, a criação do CONARE, presidido pelo Ministério da
Justiça em integração com o Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores), os ministérios da
Saúde, Educação, Trabalho e Emprego, a Policia Federal e organizações não-governamentais,
representou um avanço ao regulamentar a acolhida dos refugiados.

Ainda de acordo com o CONARE, a lei brasileira é mais abrangente que a Convenção
de 1951, pois “prevê também a concessão de refúgio em casos de grave e generalizada
violação dos direitos humanos”. Muitos dos que estão no Brasil são provenientes de países
em conflitos e turbulências internas, onde seus direitos primordiais são violados.

A cidade de São Paulo, que conta com mais de 20 milhões de habitantes em sua
região metropolitana, tem sua história fortemente marcada pela presença de migrantes e
imigrantes. Em 21 de junho de 2016, um projeto de lei para a população imigrante foi
aprovado por unanimidade de votos na plenária da Câmara Municipal de São Paulo168 e
acaba de ser sancionado pelo prefeito Fernando Haddad. O projeto de lei institui uma política
que estabelece garantias de direitos fundamentais aos imigrantes, acesso aos direitos sociais,

166 Tzevan Todorov. A conquista da América a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1982

167 Dados obtidos no site do CONARE: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/paz-e-seguranca-


internacionais/153-refugiados-e-o-conare acesso em julho de 2016

168 http://migramundo.com/politica-municipal-para-a-populacao-imigrante-e-aprovada-em-sao-paulo-e-vai-
para-sancao-do-executivo/ acesso em julho de 2016

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

aos serviços públicos, estabelece como metas o combate à xenofobia, ao racismo e a previsão
da formação de um Conselho Municipal de Migrante, com a função de fiscalizar o
cumprimento das políticas públicas e sensibilizar dos agentes públicos para um atendimento
humanizado em relação à temática migratória.

Para a compreensão desse complexo cenário, apresentamos um breve histórico da


imigração na cidade de São Paulo.

Breve histórico das imigrações em São Paulo

No estado de São Paulo, diferentes povos já se encontravam em contato, desde os


primeiros momentos da colonização portuguesa, o que fez com que indígenas locais
convivessem com os colonos europeus e os africanos, vindos de diferentes tribos e regiões do
continente africano como escravos para o Brasil colônia. Mas foi a partir do século XIX, com
o destaque do cultivo das lavouras de café, que o estado e, consequentemente, a capital
paulista atraíram imigrantes vindos da Europa, Japão e países do Oriente Médio169.

A conjuntura da Restauração Meiji, ocorrida em 1868, no Japão, fez com que muitos
de seus habitantes partissem para várias partes do mundo. Em 1908, chegava ao Brasil o
primeiro grupo de japoneses, o que se repetiu de forma mais acentuada a partir dos anos
1930. A maioria veio trabalhar da agricultura, principalmente no plantio do café e na
produção de hortifrutigranjeiros. Na cidade de São Paulo, os japoneses se fixaram
primeiramente no bairro da Liberdade, ainda hoje conhecido como o bairro oriental da
capital.

A partir do final do século XIX, os conflitos acontecidos dentro dos Impérios Turco-
Otomano e Britânicos desencadearam os deslocamentos de milhares de pessoas da região do
Oriente Médio. Imigrantes vindos do Líbano, Síria, Palestina, entre outros, fixaram-se em
São Paulo onde começaram a desenvolver atividades comerciais. Até hoje são conhecidos por
serem proprietários de lojas no centro da cidade, notadamente na região da rua 25 de março,
o mais importante centro de comércio popular.

A maior colônia de imigrantes do Brasil é composta por italianos, muitos advindos


durante o período de conflitos armados que culminou na unificação italiana, entre 1860 e
1870. A maioria dos italianos chegou ao estado de São Paulo com a intenção de encontrar
trabalho nas lavouras de café. Nas cidades, os italianos trabalharam também como operários
da construção e indústria têxtil. Na capital do estado, os imigrantes italianos se concentraram
em bairros como o Bixiga, Brás e Mooca. É curioso notar a influência das línguas desses
diferentes imigrantes no falar típico da cidade de São Paulo, presente em nossos sotaques e

169 Os dados a seguir foram coletados no site do Museu da Imigração de São Paulo http://museudaimigra -
cao.org.br/ acesso em 12 de julho de 2016

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

expressões linguísticas. Além da imigração de diferentes nacionalidades, o estado também


contou com uma grande migração de trabalhadores vindos do Nordeste do país.

Hoje o contexto da imigração apresenta-se de forma diferente da do fim do século


XIX e dos primeiros anos do século XX. Devido à maior circulação de pessoas ocasionada
pelos avanços tecnológicos e pela globalização, a cidade de São Paulo possui imigrantes dos
mais variados países e de diferentes condições sociais. De funcionários de empresas
multinacionais, estudantes intercambistas, comerciantes chineses, coreanos, bolivianos,
peruanos, entre outros, a refugiados palestinos, sírios, congoleses, angolanos, etc. Segundo
dados da Polícia Federal170 até 20 de abril de 2016, 3,4% da população da cidade de São
Paulo é composta por imigrantes, num total de 381.903 pessoas, sendo: 71.429 portugueses,
64.482 bolivianos, 33.656 japoneses, 24.398 chineses, 23.420 italianos, 18.998 espanhóis,
15.966 sul-coreanos, 13.911 argentinos, 9.937 haitianos. Esse último grupo, desde 2014, é o
mais numeroso dos que chegam à cidade e como vimos, estão entre as dez maiores colônias
de estrangeiros em São Paulo.

Estrangeiros

Ademais, é importante constatar que utilizamos diferentes palavras para nos


referirmos ao estrangeiro que está no Brasil. É curioso conhecermos e notarmos as diferentes
acepções dessas palavras conforme disposto no dicionário Houaiss171 de língua portuguesa:

● Imigrante: s.m. e s.f. Pessoa que habita e possui residência fixa (legal ou ilegal) num
país estrangeiro. adj. Diz-se da pessoa que se estabelece ou se encontra estabelecida
num país estrangeiro; que imigra ou imigrou.

● Refugiado: s.m. Indivíduo que se mudou para um lugar seguro, buscando proteção.
Aquele que foi obrigado a sair de sua terra natal por qualquer tipo de perseguição;
quem se refugiou; pessoa que busca escapar de um perigo. Refugiado político. Quem
foi obrigado a deixar sua pátria por sofrer perseguição política. adj. Que se encontra
em refúgio, em local seguro e protegido.

● Expatriado é s.m. Indivíduo que foi alvo de expatriação; quem se expatriou; pessoa
que foi obrigada ou não a viver fora de seu país. adj. Que foi alvo de expatriação; que
se conseguiu expatriar.

● Apátrida adj. e s.m. e s.f. Quem ou aquele(a) que perdeu a nacionalidade de origem e
não adquiriu outra; sem pátria.

170 http://www.pf.gov.br/servicos-pf/estrangeiro

171 Versão online disponível em http://houaiss.uol.com.br/ acesso em julho de 2016

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Dentre tantas denominações, o imigrante haitiano é muitas vezes retratado por parte
da mídia brasileira como refugiado, no entanto, a lei 9474/97172 traz em seu primeiro artigo a
seguinte definição:

Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:

I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça,


religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-
se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira
acolher-se à proteção de tal país;

II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve


sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em
função das circunstâncias descritas no inciso anterior;

III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é


obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em
outro país.

Levando em conta toda a calamidade que ainda hoje assola o Haiti, como poderíamos
chamar o imigrante haitiano? Como vimos acima, a lei brasileira não considera as catástrofes
ambientais, o que ocorre é que o governo federal concede aos haitianos vistos humanitários,
como nos diz Amado:

Um número também crescente desde 2010 é o de haitianos e bengalis.


Os primeiros advêm de um país devastado por um terremoto e os
últimos por uma crise político-econômica em Bangladesh que envolve
veladamente perseguições a seguidores dos partidos políticos
existentes. Em nenhum dos casos o governo brasileiro reconhece a
situação de refúgio visto não se tratarem de países em guerra.
Entretanto, a situação dos haitianos se tornou tão emergencial (tendo
sido apresentado até em texto de apoio ao tema da redação do
ENEM173 em 2012), que o Ministério da Justiça passou a conceder
visto humanitário para esses cidadãos. (AMADO, 2013:5)

Diante das diferentes denominações empregadas para os migrantes, cabe refletirmos


sobre a própria identidade do homem pós-moderno. De acordo com Stuart Hall (1992), essa
identidade é uma construção ininterrupta, não é fixa, nem homogênea, é contraditória e

172 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9474.htm

173 Disponível em http://educacao.uol.com.br/noticias/2012/11/04/tema-da-redacao-do-enem-2012-e-movimen -


to-imigratorio-para-o-brasil-no-seculo-21.htm Acesso em 15 de julho de 2016.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

constituída pela linguagem, contrapondo-se às velhas identidades que se pensava serem


estáveis. A pós-modernidade expôs essa fragmentação do homem em paisagens culturais, de
classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que representavam outrora sólidas
estruturas.

As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo


social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e
fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como unificado. A
chamada “crise de identidade” é vista como uma parte de um processo
mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e
processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de
referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no
mundo social. (HALL, 1992:9)

O Haiti também é aqui

De colonização espanhola e posteriormente francesa, o Haiti se tornou um grande


produtor de açúcar com a vinda de escravos africanos, rivalizando com a produção brasileira
durante o século XVIII. A então colônia francesa foi um dos primeiros países das Américas a
se tornar independente em 1804, com a luta de líderes negros e ex-escravos como Toussaint
L’Ouverture e Jean-Jacques Dessalines. Também foi um dos primeiros a abolir a escravidão
de suas terras, no ano de 1794. Tal “ousadia” custou ao Haiti um severo embargo econômico
imposto por países europeus.

Depois de períodos de conturbação política, um dos piores momentos da história do


país veio com a eleição em 1957 de François Duvalier, o “Papa Doc”, que daria início a um
regime ditatorial marcado pela repressão militar e por massacres aos opositores do governo.
Em 1971, com o assassinato de Papa Doc, seu filho Baby Doc assume o governo do país até
1986, quando foge para a França. Novamente, a vulnerabilidade toma conta do país. Em
1990, Jean-Bertrand Aristide foi eleito presidente e no mesmo ano houve um golpe militar.
Perseguido, Aristide foge do país em 2004.

Devido à instabilidade política, a ONU começou a intervir no Haiti em 2004, com a


operação MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti), também
conhecida como Operação Capacete Azul, e conta com a participação de 15 países, dentre
eles o Brasil que comanda as forças de paz.

No dia 12 de janeiro de 2010, um terremoto com a magnitude de 7,3 graus na escala


Richter, atingiu o país, principalmente a região da capital, Porto Príncipe. Posteriormente,
outros dois tremores de magnitudes 5,9 e 5,5 promoveram ainda mais a destruição na região
da capital haitiana, deixando mais de 300 mil mortos e 1,5 milhão de pessoas desabrigadas. O

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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escritor haitiano Dany Lafferière descreve o exato momento do terremoto, às 16h53, em uma
série de pequenos contos em Tout bouge autor de moi (2011), relatando o caos que se instalou
na vida das pessoas a partir desse instante. Dentre esses, reproduzo abaixo:

O lugar174:

No momento em que aconteceu, as pessoas estavam espalhadas um


pouco por todo lugar: nas casas (os avós e os doentes), nas escolas
(os que estavam a toa, pois as aulas já tinham terminado há quase
uma hora), nos escritórios (os melhores empregados são
frequentemente os últimos a saírem), nos supermercados (os que
possuem um salário regular), nos mercados públicos que são em
geral ao ar livre (estes não corriam nenhum risco), nas ruas (quase a
metade da população). Muitas pessoas estavam ainda presas nos
monstruosos engarrafamentos que paralisam Porto Príncipe nos
horários de pico. Toda essa agitação parou bruscamente às 16h53. O
momento fatal que cortou o tempo haitiano em dois. Nós olhamos
Porto Príncipe com um ar estupefato de uma criança cujo brinquedo
acaba de ser, por distração, pisoteado por um adulto.
(LAFFERIERE, 2011:34)

As tentativas de reconstrução pós-terremoto foram assoladas em 24 de outubro de


2012 pela passagem do furacão Sandy que provocou inundações em áreas com esgoto a céu
aberto, facilitando a transmissão de doenças, como o cólera. (ALVES, 2014). Apesar da
situação de extrema pobreza da população, o país mais pobre das Américas é considerado um
berço da efervescência cultural, sobretudo literária, como nos mostra o artigo Haïti soigne ses
mots175 publicado no jornal francês Libération em 2014. Jovens escritores no Haiti são cada
vez mais lançados por editoras francesas como Actes Sud, Vents d’ailleurs, Zulma, Gallimard
e Grasset. Muitos escritores haitianos são reconhecidos internacionalmente e vencedores de
importantes prêmios, como é o caso de Gary Victor, Yanick Lahens, Lyonel Trouillot, Kettly
Mars e Dany Laferrière. Esse último, eleito membro da Academia Francesa de Letras em
2013, escreveu em seu livro l’Enigme du retour, uma carta a um jovem leitor, na qual diz:

174 Tradução minha. Texto original: Le lieu. Au moment où c’est arrivé, les gens étaient éparpillés un peu par -
tout: dans les maisons (les grands-parents et les malades), dans les écoles (ceux qui traînaient car les classes
étaient terminées depuis près d’une heure), dans les bureaux (les meilleurs employés sont solvente les derniers à
partir), dans les supermarchés (ceux qui ont un salaire régulier), dans les marchés publics qui sont générale-
ment en plein air (ceux-là ne risquaient rien), dans les rues (plus de la moitié de la population). Un grand nom-
bre de gens étaient encore pris dans les embouteillages monstres qui paralysent Port-au-Prince aux heures de
pointe. Toute cette agitation s’est brusquement arrêtée à 16h53 Le moment fatal qui a coupé le temps haïtien en
deux. Nous regardons Port-au-Prince avec l’aire hébété d’un enfant dont le jouet vient d’être, par mégarde,
piétiné par un adulte.

175 Disponível em http://next.liberation.fr/culture/2014/08/29/haiti-soigne-ses-mots_1089683 acesso julho 2016

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“Diga às pessoas que, cada vez que enviarem um saco de arroz, que enviem também um saco
de livros, pois no Haiti, não comemos para viver, comemos para ler”176.

Ademais, parte considerável da rica produção haitiana se desenvolve fora do país


antilhano, com muitos escritores exilados na França e na América do Norte. Da mesma
forma, em busca de melhores condições de vida, muitos grupos de haitianos deixam o país
rumo a outras direções. Segundo Tomaz (2013), apesar da ajuda humanitária recebida pelo
Haiti advinda de diferentes nacionalidades, após o terremoto de 2010, países como os Estados
Unidos e França (território da Guiana Francesa) negaram receber haitianos como refugiados e
fecharam suas fronteiras, fazendo com que buscassem novos rumos, como Equador,
Colômbia, Peru, Argentina, Chile e Brasil.

Desfortunadamente, muitas vezes, os imigrantes acabam sendo vítimas de coiotes,


atravessadores que cobram altas quantias em dinheiro para facilitar a entrada ilegal em outros
países, com viagens de avião até o Panamá ou Equador, para depois se dirigirem aos outros
países da América do Sul.

De acordo com o relatório final de dezembro de 2014 sobre um abrigo emergencial


criado pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania 177, os haitianos já eram o
maior grupo de imigrantes que chegavam à cidade de São Paulo. Num total de 1235
imigrantes entrevistados, 1045 eram haitianos.

A pequena cidade de Brasileia, cuja população é de aproximadamente 20 mil


habitantes, está localizada no estado do Acre e recebeu, em um primeiro momento, esses
numerosos grupos de haitianos que tiveram como destino final a capital paulista, depois de
um acordo firmado entre os estados do Acre e de São Paulo. A partir de então, esses
imigrantes começaram a chegar massivamente na capital paulista. O infográfico178 a seguir
(realizado em maio de 2015) mostra a principal rota de migração realizada pelos haitianos até
chegarem a São Paulo:

A resolução 97/2012 do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), que estabelece visto


humanitário para os haitianos, mudou a forma como estes chegam ao Brasil e,
principalmente, diminuiu a exploração até então realizada pelos atravessadores. Em
entrevista, dois alunos haitianos, vindos a menos de três meses ao Brasil, relatam que vieram

176 Tradução minha. Texto original: Dites aux gens que, chaque fois qu’ils envoient un sac de riz, qu’ils en -
voient en même temps un sac de livres, car en Haïti, nous ne mangeons pas pour vivre, nous mangeons pour
lire.

177Relatório disponível em http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/Relato -


rio%20Final%20Abrig o%20Emergencial.pdf acesso em julho de 2016

178http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/06/sp-recebe-novo-grupo-de-haitianos-vindo-do-acre.html acesso
em julho 2016

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do Haiti diretamente para São Paulo em voos comerciais, com escala no Panamá, já portando
o visto humanitário desde a saída de seu país.

É necessário observar que nem todos os imigrantes são acolhidos da mesma forma no
Brasil. Sylvain Souchaud (2010) revela que, assim como os imigrantes bolivianos, os
haitianos são por muitas vezes discriminados. No caso dos haitianos, essa discriminação se dá
devido, principalmente, à cor da pele negra, o que evidencia o racismo velado existente na
sociedade brasileira. Santos e Cecchetti (2016) relatam que alguns habitantes da cidade de
Curitiba, diante do alerta de casos de ebola na África e por desconhecerem a posição
geográfica do Haiti, revelaram o preconceito diante dos haitianos.

Por mais que se difunda a ideia de que o povo brasileiro é acolhedor,


o tratamento dado aos imigrantes, principalmente tratando-se de
negros, pobres e não falantes do português, revela o preconceito e a
xenofobia camuflada na sociedade. Os comentários encontrados em
diversas matérias jornalísticas expressam o quanto se precisa avançar
na perspectiva do respeito e reconhecimento da alteridade. (SANTOS
e CECCHETTI, 2016:12)

De forma cada vez mais frequente, os imigrantes haitianos são vítimas de violentas
agressões, chegando até mesmo à morte, como ocorrido na cidade de Navegantes, no estado
de Santa Catarina, região Sul do país179. Muito provavelmente ainda por conta desse
preconceito, mesmo os haitianos que chegam com maior qualificação e que se esforçam nos
cursos de português, não encontram empregos. O preconceito linguístico no país é algo
latente e desestrutura as pessoas na sociedade que passam a ser qualificadas como falantes do
“bom” português ou do português “errado”.

Não só os imigrantes, mas também a população mais pobre, com menos acesso à
escolaridade, sofre com esse preconceito. O sociolinguista Marcos Bagno (1999) alega que:

O domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não
tenha seus direitos de cidadão reconhecidos plenamente, a uma pessoa
que viva numa zona rural onde um punhado de senhores feudais
controlam extensões gigantescas de terra fértil, enquanto milhões de
famílias de lavradores sem-terra não têm o que comer. (...) É preciso
garantir, sim, a todos os brasileiros o reconhecimento (sem o
tradicional julgamento de valor) da variação linguística, porque o
mero domínio da norma culta não é uma fórmula mágica que, de um
momento para outro, vai resolver todos os problemas de um indivíduo

179http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1696121-haitiano-e-agredido-ate-a-morte-em-santa-catari -
na.shtml

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carente. É preciso favorecer esse reconhecimento, mas também


garantir o acesso à educação em seu sentido mais amplo, aos bens
culturais, à saúde e à habitação, ao transporte de boa qualidade, à vida
digna de cidadão merecedor de todo respeito. (BAGNO, 1999:70)

Ao exposto acima por Bagno, acrescentaria que precisamos garantir também ao


estrangeiro o reconhecimento de seu modo de falar a língua portuguesa, o direito de ser
compreendido ainda que sua pronuncia não corresponda àquela falada por brasileiros em
diferentes contextos no cotidiano.

Nesse sentido, a realidade do imigrante no Brasil não é tão distante da realidade do


pobre brasileiro, os problemas enfrentados pelos imigrantes também são nossos problemas. A
célebre canção O Haiti é aqui composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil em 1993, nos traz
uma crítica à sociedade brasileira, que se espanta com as mazelas de outras nações, ao mesmo
tempo em que fecha os olhos para os grandes problemas que atravessa, como a pobreza, o
preconceito, a violência e a intolerância.

Quando você for convidado pra subir no adro


Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados (...)
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for a festa do pelô, e se você não for
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

Dentro de todo esse contexto, que envolve questões tão importantes e delicadas, cabe
recorrer à teoria sobre o pensamento complexo de Edgar Morin exposta em Ethique (2002),
sexto volume de sua obra La Méthode. Para o autor, o mal pensar ignora os contextos, vê
somente a unidade na diversidade, vê apenas o imediato, esquece o passado, vê apenas um
futuro próximo, elimina o que escapa à racionalidade e obedece ao paradigma da
simplificação, o que impede de conceber laços de um conhecimento com seu contexto,
mutilando a compreensão.

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Por outro lado, ao se trabalhar o bem pensar, o ser humano abre e religa os
conhecimentos, abandona o ponto de vista mutilado (de disciplinas separadas), reconhece a
multiplicidade na unidade e a unidade na multiplicidade; tem método para tratar as
complexidades; concebe uma racionalidade aberta; opera diagnósticos levando em
consideração contextos e as relações global-local; reconhece os poderes da cegueira e da
ilusão; conduz a lutar contra deformações da memória ou esquecimentos seletivos,
reconhecendo a complexidade humana.

Segundo Morin (2002), todo conhecimento pode ser colocado a serviço da


manipulação, mas o pensamento complexo conduz à ética da solidariedade e da não coerção.
Apontando para sociedades que separam mais do que religam, o filósofo francês adverte
sobre a necessidade de compreensão dessa complexidade, de uma ética altruísta que tonifica
a compreensão do outro e abertura sobre o outro, a tolerância.

Com efeito, devido à complexidade do contexto no qual se insere a imigração haitiana


em São Paulo, faz-se necessário um ensino diferencial de PLE, tratando a língua portuguesa
também como uma língua de acolhimento. Evidentemente, os objetivos são diferentes, por
exemplo, das aulas de português para executivos estrangeiros que vêm ao Brasil trabalhar em
uma grande empresa multinacional (geralmente chamados de expatriados) ou estudantes
intercambistas que necessitam, primordialmente, se comunicar no contexto da universidade.
A maior parte dos professores que atuam no ensino de PLE (Português Língua Estrangeira),
na qual me incluo, trabalham com esses dois tipos de público.

Para os refugiados, imigrantes de países em situação de extrema pobreza, o ensino do


PLE deve ressaltar situações que possam evitar ou retirá-los de situações degradantes, como
as do trabalho por baixos salários e péssimas condições e até mesmo do trabalho análogo ao
escravo. Assim, além do ensino da língua portuguesa, o curso deve conter elementos que
ajudem os alunos em questões da vida prática, como na saúde (expor quais os métodos
anticoncepcionais que possuem distribuição gratuita no SUS, vacinas, atendimento na rede
pública, a farmácia popular, o cartão do SUS) ou no trabalho (entrevista de emprego,
curriculum vitae, direitos trabalhistas). Amado (2013) alerta para que as faculdades de Letras
atentem para o ensino de PLE para esses novos imigrantes.

Fatores linguísticos e extralinguísticos devem ser considerados no


ensino do português como língua de acolhimento para refugiados. E
isso se aprende (ou deveria se aprender) nos cursos de Letras. Se os
governos ainda não atentaram para a necessidade de promover o
ensino do português para esses imigrantes, é premente que as
universidades, principalmente as públicas, que ministram cursos de
Letras, criem programas de extensão universitária e incentivem seus

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

alunos a fazerem estágios nesses programas. Às instituições que já


têm especialidades em nível de graduação em PLE, é mais do que
urgente que voltem os olhos, na pesquisa e no ensino, a esse público
que, arrancado de sua terra natal, de sua família, de sua língua, busca
neste país uma oportunidade de refazimento, de integração, de paz.
(AMADO, 2013:7)

A Missão Paz

Fruto de uma comunidade internacional de religiosos (a Congregação dos


Missionários de São Carlos, os Scalabrianos, fundada em 1887 na Itália e presente em 34
países onde acompanha migrantes das mais diversas culturas e crenças), a Missão Paz está
presente em São Paulo, na Igreja Nossa Senhora da Paz, situada no bairro do Glicério, centro
da cidade. A igreja foi construída em 1940 com o objetivo de resgatar a identidade dos
italianos habitantes da cidade. Em 1969, a criação do Centro de Estudos Migratórios, com
uma biblioteca especializada no tema das migrações e a publicação da revista Travessia180.
Em 1978, com a fundação da Casa do Migrante, começou-se a oferecer serviços de acolhida
das pessoas que migravam do campo para a cidade e de perseguidos durante os regimes das
ditaduras militares na América Latina.181 Apesar de fazer parte de uma instituição católica, a
Missão Paz atua de forma independente de doutrinas religiosas.

É importante destacar que a assistência social da Missão Paz não atende apenas
haitianos, ainda que estes componham o grupo maioritário, recebe imigrantes provenientes de
diversos países, tais como: Nigéria, Senegal, Costa do Marfim, Camarões, Ruanda, Angola,
República Democrática do Congo, África do Sul, Marrocos, Palestina, Iraque, Síria, Bolívia,
Peru, Colômbia, entre outros, incluindo não apenas adultos, mas também adolescentes e
crianças.

Segundo Josicleide Barbosa, assistente social da Missão Paz, o curso de português se


iniciou em 2013, sempre gratuito, diante do boom de haitianos vindos do Acre para São
Paulo. Nesse primeiro momento, de forma emergencial, o curso chamava-se SOS Português e
era dado em seis horas. Todos os dias novos alunos, todos os dias recomeçando do zero. Em
2014, a professora Rosane de Sá Amado, do departamento de Letras Vernáculas da
Universidade de São Paulo, se reuniu com os diretores da instituição e responsáveis pelo
setor de cursos, hoje chamado Capacitação e Cidadania, para realizarem juntos um trabalho
de ensino da língua portuguesa que atingisse o público imigrante em geral, não sendo voltado
exclusivamente para os haitianos. Foi então que o curso, em seu módulo básico, passou a
contar com 12 aulas

180 http://www.missaonspaz.org/#!revista-travessia/cfz9 acesso em agosto de 2016

181 Dados disponíveis no site da Missão Paz http://www.missaonspaz.org/ acesso em julho de 2016.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

de 2 horas e 40 minutos, realizadas na parte da manhã, das 9h às 11h40 e passou a ter um


material de referência para os professores.

Um grupo de alunos da Faculdade de Letras da USP, orientados pela professora


Rosane, iniciou a elaboração do material didático para o curso de PLE da Missão Paz. Muitas
foram as dificuldades de se elaborar o material didático, tais como a preocupação com
direitos de imagem e som. A conduta seguida foi, então, utilizar fotos e desenhos feitos pela
própria equipe ou buscar imagens de domínio público dispostas na Internet. Ainda que hoje
se tenha um material didático organizado, este se encontra em permanente (trans)formação,
dependendo das necessidades dos alunos e outras mudanças julgadas necessárias que vão
sendo incorporadas a ele.

Considerando a complexidade do ensino para o público de imigrantes, nos


perguntamos: qual português ensinar? Certamente não o que prioriza a mesóclise ou a língua
culta calcada exclusivamente na gramática. Se por um lado, o aluno encontrará o português
padrão em diversas situações formais (como na Polícia Federal em relação a questões de
visto, por exemplo), por outro lado, deve conhecer o português coloquial, que o ajudará nas
questões do dia a dia.

Fica assim evidente que, se a língua alvo é variada e mesclada,


multifacetada também é a cultura dos povos que habitam uma
metrópole como São Paulo. O ensino do português, como o de
qualquer outra língua segunda ou estrangeira, deverá considerar as
culturas do povo que o tem como língua materna. Assim, também
como necessitará promover e divulgar, junto aos brasileiros, as
culturas desses povos imigrantes. (AMADO, 2011: 2)

Atualmente, o curso de português da Missão Paz é oferecido em dois módulos: básico


e intermediário, com carga horária de 32 horas cada. O critério para o ingresso no curso de
português é apenas a inscrição e a documentação do imigrante. Para receber o atestado de
conclusão do curso, o aluno deve ter a frequência igual ou superior a de 75%. A média é de
30 alunos no básico e 15 no intermediário. Ao final de cada módulo, os alunos recebem um
certificado de conclusão de curso em uma confraternização com os professores voluntários.

No módulo básico, as aulas são dadas de acordo com a seguinte ordem de temas, funcionando
também como um manual de sobrevivência:

Aula 1 – Alfabeto e saudações


Aula 2 – Números e símbolos
Aula 3 – Tempo e clima
Aula 4 – Dia a dia

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Aula 5 – Como chegar?


Aula 6 – Alimentação
Aula 7 – Família e relacionamentos
Aula 8 – Corpo humano
Aula 9 – Saúde e doenças
Aula 10 – Vestuário
Aula 11 – Compras
Aula 12 – Mercado de trabalho

No módulo intermediário, o curso vai se reinventado, se moldando às necessidades


dos alunos, como, por exemplo, conhecer os aspectos geográficos do Brasil182 , e mesmo
assuntos já abordados no básico, seguindo os temas abaixo:

Aulas 1 e 2 – Entretenimento e cultura na cidade de São Paulo


Aulas 3 e 4 – Conhecendo o Brasil e suas regiões (clima, distâncias, vegetação,
relevo, população, etc.).
Aulas 5 e 6 – Compras e o valor do dinheiro
Aulas 7 e 8 – Modos de organização pessoal (por exemplo: preenchimento de
formulários, como os da Polícia Federal)
Aulas 9 e 10 – Idas e vindas (como se movimentar na cidade)
Aulas 11 e 12 – Cuidados com a saúde.

Somente há pouco tempo a Missão conseguiu angariar uma verba para cópias das
apostilas. Até então, os alunos deveriam copiar tudo da lousa, sem ajuda de um material
como suporte. A questão da verba também impossibilita que recursos audiovisuais sejam
utilizados. Em entrevista, o aluno do intermediário Etienne Sainmeliers, haitiano, agrônomo,
32 anos, há dois meses no Brasil, aponta para a importância de haver livros e outros materiais
extras que possam ajudar a avançar no aprendizado da língua, que segundo ele se dá pouco a
pouco, pelo fato de não apenas a língua, mas a cultura ser outra. Etienne relata que as aulas
de português já o ajudaram em algumas situações como: recarregar o Bilhete Único (cartão
de ônibus de São Paulo), na solicitação da carteira de trabalho e na hora de fazer compras ou
conversar com outras pessoas.

Os professores voluntários possuem um perfil diversificado, alguns são alunos da


graduação e pós-graduação em Letras da Universidade de São Paulo, mas há também
professores de outras universidades e de outras áreas como Direito, Ciências Sociais e
profissionais aposentados. Meu interesse em prestar esse serviço voluntário foi ter uma

182 Poriniciativa do professor Luis Antonio Bittar Venturi, e coordenador do projeto vinculado à Pró-Reitoria de
Cultura e Extensão Universitária (PRCEU) da USP, que conta com a parceria da Cáritas Arquidiocesana de São
Paulo. A faculdade de Geografia da USP oferece o ensino de geografia para refugiados e imigrantes, contando
com a presença de haitianos, apoiando a adaptação destes ao país.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

experiência diferente das aulas de PLE que preparam alunos para atuarem em empresas
multinacionais ou para o CELPE-BRAS, ter contato com os haitianos, falantes de francês,
língua na qual também possuo formação pela Faculdade de Letras da USP e, principalmente,
contribuir para a integração dos imigrantes.

A motivação de outros voluntários também é a de se aproximar da realidade dos


imigrantes e colaborar com o projeto da Missão Paz. Frequentemente, as aulas contam
também com a presença de assistentes que auxiliam individualmente alunos com mais
dificuldade, tirando dúvidas, explicando novamente ou traduzindo. É importante, que o
professor e/ou o assistente tenha conhecimentos de francês, para que uma primeira
comunicação com os alunos seja facilitada. Nas aulas, como já dissemos, a maioria dos
alunos são haitianos, geralmente bilíngues, falantes do par de línguas crioulo haitiano (kreyòl
ayisyen ou créole haïtien) e francês. Muitos deles aprenderam outras línguas, como o
espanhol, ao passarem por outros países da América Latina antes de chegarem ao Brasil,
outros alunos são falantes da língua espanhola, inglesa e árabe.

A diversidade de nacionalidades pode, por um lado, aparentar que as aulas sejam uma
Babel ou, por outro, que os imigrantes da América Latina, falantes de espanhol, tenham mais
facilidades diante da proximidade dos pares linguísticos, o que não deixa de ser verdade. No
entanto, o que se nota é que essa diversidade linguística e cultural enriquece as aulas e
produzem momentos de cooperação e solidariedade entre os alunos, que se ajudam e
traduzem palavras, frases ou expressões para os colegas que não compreendem. Em
entrevista, a professora voluntária Helena Camargo, doutoranda em Linguística Aplicada na
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) diz:

ter nacionalidades diferentes é algo muito positivo, principalmente


para o professor que tem uma ótima oportunidade para aprender
sobre outros lugares, sobre outras perspectivas de vida, de
entendimento de mundo e temos um dever de tentar integrar essas
pessoas. É um exercício prático de interculturalidade, de tolerância.

Em relação à diversidade dos alunos, o professor voluntário Diego Lopez, aluno de


mestrado em Sociologia na Faculdade de Letras Filosofia e Ciências Sociais da USP afirma
que:

Do ponto de vista das relações sociais, das classes, do ponto de vista


das relações raciais, não necessariamente é um público tão
diversificado assim. Talvez eles sejam mais próximos entre si, do que
uma classe de colégio público, por exemplo. A maioria dos meus
alunos são imigrantes negros, todos eles com um salário muito
reduzido quando tem um emprego que normalmente não é um

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

emprego fixo, muito difícil ter carteira assinada, então tem uma certa
relação de semelhança constatável do ponto de vista social, que eles
não são tão diversificados em relação à realidade em que vivem, mas
são diversificados em relação à língua. Alguns falam francês, outros
falam espanhol. A maioria é haitiana e muitos deles compreendem
francês, assim como os imigrantes de origem africana que vêm para a
aula falam francês, um ou outro imigrante fala inglês e alguns falam
espanhol. Em geral, estão numa realidade bastante parecida, com
dificuldades e modos de pensar parecidos.

Para a professora voluntária Winnie Ângela Pinheiro de Oliveira, advogada, a diversidade do


público representa um ponto de cautela, ao mesmo tempo, relata as aulas de português como
um momento de rica experiência:

Ter pessoas de nacionalidade e faixa etária diferentes requer atenção


quase que individualizada. Além do compromisso de ensinar o
idioma, temos que nos atentar à cultura, à familiaridade ou não com
o nosso idioma, enfim. Porém todos têm uma força de vontade
incrível que é o maior ponto de convergência e que nos propicia
desenvolver um ótimo trabalho em conjunto. É enriquecedor demais.
O que tenho para oferecer é um pouco do nosso idioma, um pouco
dos nossos costumes. Enquanto trocam experiências entre eles e com
nós educadores. São aspectos que envolvem além da língua materna,
seus costumes, muita força de vontade, resiliência, garra e esperança.

Há também outros desafios para o professor, alunos com diferentes níveis de


escolaridade em suas línguas maternas e de aprendizagem da língua portuguesa. Para o aluno,
alguns moram longe do centro da cidade, onde se localiza a Missão Paz, ou até mesmo em
outras cidades da grande São Paulo, o custo com o transporte para se locomoverem até a
Missão Paz ou a busca por um trabalho, que pode coincidir com o horário das aulas são
dificuldades recorrentes.

Diante da complexidade desse contexto, considero que o ensino PLE para esses
imigrantes se abre também como uma nova área de pesquisa que deve abordar as
especificidades e as circunstâncias desse tipo de ensino e a importância de uma abordagem
intercultural, promovendo o diálogo e a tolerância como nos mostra Edgar Morin (2002) com
suas reflexões sobre o pensamento complexo.

Considerações Finais

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Relatos dos alunos imigrantes mostram que uma de suas maiores dificuldades ao
chegarem ao país é o fato de não conhecerem a língua portuguesa. Diante do contato com
culturas diferentes, os choques culturais são frequentes e nos interrogamos em como ajudar a
integração do imigrante na sociedade brasileira e como o professor pode ajudar e oferecer
meios para que alguns desses obstáculos sejam superados.

É necessário que reflitamos sobre os fenômenos migratórios e a presença do


imigrante, conscientizarmos que valores universais e preconcebidos não funcionam nas
sociedades mosaicos, que possuem cada vez mais um maior numero de cidadãos bi-tri-
nacionais, bilíngues, trilíngues, casamentos mistos, etc. Do meeting pot ao vegetable soup,
encontramo-nos na direção de uma pedagogia intercultural, com olhares cada vez mais
capazes e integrar a complexidade, como exposto por Edgar Morin (2002).

Na cidade de São Paulo, há outros núcleos de assistência aos imigrantes que oferecem
cursos de português, como a ADUS (SP) - Instituto de Reintegração do Refugiado. Há até
mesmo inclusão dos imigrantes como professores de suas línguas maternas em cursos para
alunos brasileiros, como acontece na BibliAspa.

É urgente que se concretize políticas voltadas para as questões da migração. De


qualquer modo, os primeiros passos estão sendo dados, como por exemplo, a UNILA
(Universidade Federal da Integração Latino-Americana), localizada em Foz do Iguaçu, estado
do Paraná, que começou a abrir processos seletivos183 para estudantes haitianos e a UFPR
(Universidade Federal do Paraná) que reserva vagas para refugiados.

Em relação ao curso de PLE oferecido pela Missão Paz, agradeço a oportunidade de


poder ensinar e, principalmente, aprender muito diante desse contexto cultural e humano tão
rico. É muito satisfatório constatar a inclusão linguística dos haitianos, e dos imigrantes em
geral, e saber que novos projetos estão sendo elaborados, considerando sempre o respeito às
diferenças e a necessidade de auxiliá-los nessa busca por melhores condições de vida, pois
estamos juntos nas travessias, nas veredas da vida. Como os alunos haitianos me ensinaram:
Mèsi Zanmim184

Referências Bibliográficas

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Revista do SIPLE, Brasília, ano 4, n.2, out 2013. http://www.siple.org.br/index.php?
option=com_content&view=article&id=309:o-ensino-de-portugues-como-lingua-de-
acolhimento-para-refugiados&catid=70:edicao-7&Itemid=113 (acesso em agosto de 2016)

183 https://cursos.unila.edu.br/selecao-haiti

184 “Obrigada amigos”, em crioulo haitiano.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

_____________________. Português como segunda língua para comunidades de


trabalhadores transplantados. Revista do SIPLE, Brasília, ano 2, n.1, maio de 2011. http://
www.siple.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=173:7-portugues-como-
segunda-lingua-para-comunidades-de-trabalhadores-
transplantados&catid=57:edicao-2&Itemid=92 (acesso em agosto de 2016)

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midias/por-que-o-haiti-esta-aqui/ Outras Mídias - 26 DE MAIO DE 2014 BAGNO, Marcos.
Preconceito Linguístico: o que é, Como se faz. São Paulo: Edições

Loyola, 1999

DOS SANTOS, Sandra; CECCHETTI, Elcio. Imigrantes haitianos no Brasil: entre


processos de (des)(re)territorialização e exclusão social; Inmigrantes haitianos en
Brasil: entre procesos de (des)(re)territorialización y exclusión social; Immigrants
Haitians in Brazil: between processes of (de)(re)territorialization and social exclusion.
In: Revista de Estudios Brasileños; v. 3, n. 4 (2016) Universidade de São Paulo,
Universidade de Salamanca e Universia: 2016-02-12

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,1992

LAFERRIÈRE, Dany. Tout bouge autor de moi. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 2011.

__________________. L’Enigme du retour. Paris: Éditions Grasset, 2009. MORIN, Edgar.


La Méthode: Éthique. Paris: Seuil, 2002.

SOUCHAUD, S. A imigração boliviana em São Paulo. In: FERREIRA, A.P. et al (ed)

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THOMAZ, Diana Zacca. Migração haitiana para o Brasil pós-terremoto: indefinição


normativa e implicações políticas. 2013. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/
primeirosestudos/article/view/56732/PDF - Acesso em 12 de maio de 2014.

RABATÉ, Emile. Haïti soigne ses mots. Libération - 29 août 2014. Disponível em http://
next.liberation.fr/culture/2014/08/29/haiti-soigne-ses-mots_1089683 (acesso em agosto de
2016).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Impacto social dos testes de proficiência: o Celpe-Bras como espaço para


formação do cidadão e aquisição de conhecimentos

Mahulikplimi Obed Brice AGOSSA


Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
(CEFET-MG)
brismag@hotmail.fr

Resumo: o objetivo deste trabalho é pesquisar o impacto que podem exercer matérias
utilizadas em exames ou testes de proficiência, como o Certificado de Proficiência em Língua
Portuguesa para Estrangeiros (Celpe-Bras), sobre candidatos, no que se refere à formação do
cidadão e à aquisição/ampliação de conhecimento sobre o Brasil e sua cultura. Para tal são
discutidos os conceitos de efeito retroativo, impacto e validade consequencial para, em
seguida, tentar-se entender como se dá o fenômeno do impacto no exame Celpe-Bras. Parte-
se da hipótese de que matérias (vídeos, áudios, textos escritos e imagéticos) utilizadas como
instrumentos para avaliar os examinandos podem influenciá-los, desde o aprimoramento de
conhecimentos linguísticos e não linguísticos, até causar impacto no seu dia a dia. A
metodologia adotada é a pesquisa qualitativa, com entrevistas realizadas com sete (07)
participantes. Os resultados preliminares da análise das entrevistas apontam indícios de
impacto do exame nos candidatos.

Palavras-chave: Celpe-Bras; Impacto; Aquisição de conhecimento cultural; Formação do


cidadão.

Introdução

Desde os anos 80 do século passado os estudos sobre testes de línguas estrangeiras/


segundas línguas (LEs/L2s) vêm crescendo consideravelmente na área da Linguística
Aplicada. Da mesma forma vêm sendo criados cada vez mais novos testes de proficiência de
larga escala em todas as línguas de grande difusão, sobretudo em inglês, como o Test of
English as Foreign Language (TOEFEL), o Michigan English Language Assessment Battery
(MELAB), o International English Testing System (IELTS), o Test of English for
International Communication (TOEIC). Muitos estudos realizados sobre testes (HUGHES,
1989; ALDERSON e WALL, 1993; MESSICK, 1996; BACHMAN e PALMER, 1996;
MCNAMARA, 2000; etc.) têm abordado vários aspectos do processo de avaliação, entre
eles, relações entre ensino/aprendizagem e avaliação, tipos de avaliação, os princípios de uma
boa avaliação ou teste em LE, tais como os de validade, praticidade, confiabilidade,
autenticidade, impacto, efeito retroativo, etc. Neste estudo centramos nossa atenção no

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

princípio de impacto dos testes. Para tal são discutidos os conceitos de impacto/efeito
retroativo e validade consequencial, para em seguida, tentar-se entender como esse tipo de
impacto ocorre dentro do Celpe-Bras.

Os conceitos de impacto e efeito retroativo

O termo “efeito retroativo”, conhecido em inglês como backwash ou washback,


refere-se ao impacto de testes ou avaliações no ensino e aprendizagem de línguas
(ALDERSON e WALL, 1993; CHENG, WATANABE & CURTIS, 2008. p xiii;
PRODROMOU, 1995: 13; McNAMARA, 2000). Um destacado trabalho de Alderson e Wall
(1993) merece atenção particular. Os dois estudiosos, com a publicação do artigo Does
washback exist?, considerado como artigo seminal, abrem o caminho para muitas pesquisas
sobre efeito retroativo. Eles levantam algumas hipóteses que, segundo eles, devem guiar as
pesquisas posteriores. Essas hipóteses são listadas no quadro a seguir:

modalidades Implicações

no ensino

na forma como os

professores ensinam

Um teste exerce no que os professores

Ensino

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

ensinam

influência
na gradação e sequên-
cia

do ensino

no gradação e

profundidade de en-
sino

Adaptado de Alderson e Wall (1993: 8-9)

Na época em que essas hipóteses foram levantas, não exitiam estudos empíricos que
confirmassem a existência do tal efeito retroativo. Hoje em dia a questão não é mais se existe
efeito retroativo, mas como trabalhar para garantir um efeito retroativo positivo nas salas de
aula (MESSICK, 1996: 244-245).


Há estudiosos, como Cheng (2004) e Scaramucci (1999, 2000/2001 e 2002 apus


SILVA, 2005), que consideram que efeito retroativo e impacto refererem-se ao mesmo
fenômeno, enquanto outros como Alderson e Wall (1993 apud SILVA. Op. Cit.) pensam que
efeito retroativo:

Restringe-[se] [...] ao efeito que ocorre dentro da sala de aula por


influência de avaliações, e impacto, ao que ocorre nas pessoas,
políticas e práticas, dentro ou fora da sala de aula, no sistema
educacional ou na sociedade. (SCARAMUCCI, 2005. apud SILVA.
2006. p. 24).

O próprio Silva (op cit) também considera os dois conceitos como sinônimos. Outros
estudiosos como Bachman e Palmer (1996: p 30) e Brown e Abeywickrama (2010)
classificam o efeito retroativo dentro do impacto, considerado como mais amplo. O intuito
em tratar brevemente de efeito retroativo, aqui, é distingui-lo de impacto. Desta forma, filio-
me à tradição que separa os dois conceitos, sendo que efeito retroativo se limita àquilo que
acontece em sala de aula no que diz respeito ao conteúdo e à forma como os professores
ensinam e como os aprendizes aprendem, e que impacto representa aquilo que pode acontecer
na própria vida das pessoas, na sociedade e nas políticas educacionais, dentro ou fora da sala
de aula.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

O impacto de um teste verifica-se, de acordo com Bachman e Palmer (1996: 29), em


dois níveis: micro e macro. O nível micro diz respeito aos indivíduos influenciados pelo teste,
e o macro, aos efeitos causados no sistema educacional e na sociedade. Eles representam o
fenômeno da seguinte maneira.

Adaptado de Bachman e Palmer (1996: 30)

Os testes têm consequências nos indivíduos e na sociedade em função dos usos que
são feitos dos resultados. Isso pode determinar, por exemplo, se um candidato a naturalização
pode ser aprovado ou não, ou ainda se um estudante pode ser aceito em determinado curos ou
universidade. Eles são criados e apliacados sempre com o intuito de atender a demandas do
sistema educacional e da sociedade a longo prazo (BACHMAN, 1990 apud BACHMAN e
PALMER, ibid.).

Ainda segundo os autores Bachman e Palmer (ibidem), cada escolha feita no processo
de preparação de um teste ou exame determina o(s) impacto(s) nos indivíduos ou no sistema
educaticional ou na sociedade a longo prazo. Isso pode ser direto, no caso dos indivíduos
diretamente envolvidos como os candidatos e professores, ou indireto, no caso do sistema
educacional ou da sociedade a longo prazo.

Impacto e validade consequencial

Brown e Abeywickrama (2010: 34), ao referirem-se ao impacto, empregam o termo


“validade consequencial”, ressaltando que esse deve ser considerado antes e depois da
aplicação do teste. Bachman e Palmer (1996: 31), por sua parte, distingem três aspectos em
que o teste pode influenciar os candidato ou examinandos: (i) a própria experiência de prestar
o exame e, em alguns casos, a fase de preparação; (ii) o feedback que recebem após o teste
sobre o seu desempenho; (iii) as decisões que seriam tomadas com base nos resultados do seu
desempenho. Mas em momento algum os autores especificam o aspecto da influência do
exame no sentido de aquisição/ampliação de conhecimento de mundo e aspectos culturais ou
em termos de formação do cidadão.

Falando em validade consequencial, cabe mencionar o trabalho de Tim McNamara


(2000: 72) em que trata dos lados ético e social dos testes. Primeiramente, ele apresenta duas

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

posições sobre a questão da ética em testes de língua, de um lado os que tomam a questão
num sentido amplo (visão da responsabilidade social) e do outro lado os que a tomam num
sentido restrito (visão tradicional). A seguinte afirmação do estudioso merece atenção
particular:

Aqueles que defendem a responsabilidade social dos testes de língua


rejeitam o ponto de vista segundo o qual um teste de língua seja uma
mera atividade científica e técnica. Eles recorrem a novos
desenvolvimentos sobre o conceito de validade, precisamente à noção
de validade consequencial. Isso significa, geralmente, que a avaliação
da validade de um teste deve levar em conta as consequências
desejáveis e indesejáveis, a partir da concepção do teste. Alguns
alegam que essa validade consequencial, da mesma maneira que
outros tipos de validade, [...] é responsabilidade dos criadores de
testes e deve ser levada em conta, não só prevendo possíveis
consequências desde a concepção do teste, mas também monitorando
os seus efeitos durante a implementação. (Ibid. p. 72). (grifo meu)185

Isso mostra o quanto a validade de um teste está ligada ao impacto que ele pode ter nos
indivíduos envolvidos e na sociedade. Essa atenção e monitoramento dos efeitos positivos e
negativos do teste deve ser uma preocupação real e contínua dos diferentes atores dos testes.
Ou seja, a atenção dada ao impacto do teste promove a sua validade consequencial. Cabe
ressaltar que o tipo de impacto neste trabalho comtemplado difere do tipo de impacto descrito
por McNamara. É apenas um novo aspecto do que é o impacto. Mesmo assim cabe interessar-
se pelo fenômeno.

Apresentação da pesquisa

Este trabalho representa a fase inicial de minha pesquisa de mestrado. Ele se origina
de uma experiência pessoal em relação ao Celpe-Bras. Em outubro de 2015 eu prestei o
exame Celpe-Bras, edição de 2015/2. Sendo a parte escrita dividida em quatro tarefas, o
vídeo da tarefa I dessa edição, foi uma reportagem sobre o uso do cinto de segurança dentro
dos carros. Precisamente, era uma reportagem em que foram dadas informações sobre a
legislação com respeito ao uso do cinto no Brasil, os riscos em não usá-lo, nos bancos de trás

185 No texto original: “Those who advocate the position of socially responsible language testing reject the view
that language testing is merely a scientific and technical activity. They appeal to recent developments in thinking
about validity, especially to the notion of consequential validity. In general, this means that the evaluation of a
test’s validity needs to take into account the wanted and unwanted consequences that follow from the introduc-
tion of the test. Some take the view that consequential validity, like validity of other kinds […], is the responsi-
bility of the test developer and needs to be taken into account, not only by anticipating possible consequences in
test design, but also by monitoring its effects in implementation.”

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

como da frente, com relatos de experiências vividas por pessoas que sobreviveram a batidas,
graças ao cinto. Na reportagem, especial atenção foi dada ao não-uso do cinto no banco
traseiro e suas consequências. Desta forma os candidatos foram convidados a produzir, com
base nas informações da matéria, um panfleto a ser distribuido para taxistas, com o objetivo
de incentivá-los a exigir que os passageiros usem o cinto no banco traseiro.

Obviamente, a própria matéria utilizada na tarefa veio da constatação de que os


passageiros costumam negligenciar o uso do cinto nos bancos de trás, muitas vezes por falta
de informação sobre os riscos que correm em não usá-lo, por ignorar que, numa batida, seu
corpo pode ser projetado, podendo causar lesões ás pessoas da frente. E, sinceramente, eu
tampouco tinha ciência desses riscos. Até então eu me sentava no banco traseiro, muitas
vezes, sem usar o cinto, sentindo-me amparado pelos encostos dos bancos da frente.

Alguns dias depois da prova, eu já estava usando o cinto de segurança no banco


traseiro. Em meio a essa situação, fiz-me algumas perguntas: há uma relação entre minha
mudança de comportameto e a matéria daquela tarefa do Celpe-Bras? Como aconteceu isso?
Foram essas indagações que me levaram a querer investigar esse tipo de impacto que podem
exercer algumas matérias usadas no exame de proficiência sobre candidatos. No intuito de
avaliar a viabilidade de um estudo como este, resolvi realizar um estudo parecido como
trabalho de final de uma disciplina. Foram entrevistados sete informantes, todos oriundos da
República Dominicana, mestrandos em Engenharia Civil numa instituição federal de Minas
Gerais. Os informantes prestaram o exame em seu país de origem, porém alguns deles em
diferentes edições.

De acordo com o objetivo desta pesquisa o método adotado é a pesquisa qualitativa.


Cabe lembrar que se parte do pressuposto de que o exame Celpe-Bras pode causar impacto
nos examinandos; isso vai além de aspectos linguísticos – isto é, eles podem extrair sentidos
de novas palavras ou expressões dos textos multimodais – pois estes também podem ampliar
seu conhecimento cultural, entre outros. Para tal, procurei ex-candidatos ao exame, a fim de
recolher os seus depoimentos. Para preservar suas identidades codificamos os informantes da
seguinte forma: S1 (2012/1), S2 (2013/2), S3 (2013/2), S4 (2013/1), S5 (2013/2), S6
(2014/1), S7 (2014/1) (todos os quatro de sexo masculino)186. As entrevistas com S1, S2, S3 e
S7 foram via Internet usando o Skype e foram gravadas com o programa Free Video Call
Recorder for Skype. Os demais passaram por entrevistas presenciais gravadas com celular.

Antes das entrevistas propriamente ditas procurei os materiais dos editais passados
disponíveis no site da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no endereço
eletrônico <http://www.ufrgs.br/acervocelpebras/acervo>. O intuito era usar os mesmos

186 Entre parênteses estão os anos e edições do exame Celpe-Bras que eles prestaram.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

textos multimodais da prova que cada um deles prestou, para estimular a sua memória. As
entrevistas foram realizadas etapa por etapa, seguindo a ordem das quatro tarefas da Parte
Escrita do exame e, depois, eles foram convidados a olhar os vinte Elementos Provocadores
(EPs) e, dentre eles, indicar os três utilizados na Parte Oral. Cabe notificar que nem todos
conseguiram reconhecer todas as tarefas e/ou EPs. Visto que não temos um espaço maior, não
serão anexas as tarefas e EPs, nem as transcrições das entrevistas. As provas aqui
mencionadas podem ser encontradas no site da UFRGS.

Resultados

Nesta seção são apresentados de forma suscinta os resultados obtidos da análise


prévia das entrevistas. Aqui são mencionadas somente as tarefas e EPs que os informantes
reconheceram como relevantes para eles.

S1 reconhece a tarefa 1 (um), intitulada Pescando letras, que é uma reportagem sobre
uma campanha de alfabetização de pescadores de várias cidades do Brasil. Ela admitiu que a
própria iniciativa a fez refletir sobre a situação de seu país, quanto ao analfabetismo. A tarefa
2 intitula-se Ecomoda e é uma reportagem de rádio sobre roupas e acessórios feitos com
materiais reciclados como garrafas PET, bambu, etc. Ela admitiu que a matéria foi
informativa para ela, pois ignorava que podiam-se fazer roupas com materiais reciclados,
com o objetivo de preservar o meio ambiente. Quanto à parte oral, ela reconheceu dois EPs
dos três. O primeiro é o n°7, intitulado Doe sangue. A informante afirma que, por ter passado
por uma situação de saúde, em que ela precisou de sangue, o que foi difícil de conseguir, o
EP lhe chamou a atenção. Ainda a respeito do mesmo EP, S1 diz o seguinte:

“Esse elemento me fez refletir muito com relação à doação de sangue,


por exemplo, no meu país [...] no tempo que eu fiz o Celpe-Bras a
doação de sangue não era muito comum”.

Mais interessante ainda é saber que ela afirma ter ido a um centro de doação de
sangue para se tornar doadora, mas ela foi declarada inapta para doar sangue. E ao ser
questionada se houve uma relação entre sua decisão de começar a doar sangue e o EP em
questão, ela afirma:

“[...] foi [...] como uma conexão, eu diria” e acrescenta: “[...] pode ser
que ele [o EP] tenha talvez mudado um pouco minha percepção, mas
influenciar [hesitação] ele me fez refletir, na verdade; mas não sei se
seria mesmo uma influência [...]”.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Ou seja, o EP despertou nela um sentimento inabitual e suscitou uma atividade


reflexiva a respeito de assunto. No que diz respeito ao EP n°11, intitulado O primeiro galã
negro, S1 revela que ficou surpresa ao se deparar com o elemento. Ela afirma o seguinte:

“Eu não tinha percebido, por assim dizer, a diferença tão marcada
que tem no Brasil com relação às raças.” Em seu depoimento, ela vai
além e diz: “Me impactou muito [...] eu não tinha percebido que,
digamos, [Lá zaro Ramos] seria o primeiro galã [negro] de novelas
brasileiras [...] aí, me impactou mesmo”.

A fala da própria informante diz muito sobre o sentimento que a animou quando ela
viu a imagem do EP e como isso mudou a sua percepção em relação ao lugar que ocupam os
negros no cinema brasileiro, situação que quem está fora do Brasil pode não perceber.

S2 (2013/2) afirma que o vídeo da tarefa 1, intitulado O céu de Brasília, foi


informativo e despertou muita curiosidade sobre a cidade de Brasília. Quanto ao texto da
tarefa 3 sobre Turismo de inclusão ela afirma:

“eu acho que me impactou de um jeito”.

Apesar de ser arquiteta S2 não sabia que existiam estruturas adaptadas para pessoas
com capacidade reduzida para o turismo. O feito de ter-se deparado com uma matéria sobre
turismo adaptado a esse tipo de pessoas suscitou nela interesse sobre o assunto.

S3, que é arqueteta, afirma que o seu interesse em conhecer a capital federal brasileira
é antigo, por ser uma cidade inteiramente planejada. A informação sobre a beleza do céu da
cidade e o fato de ele poder se tornar Partrimônio Natural da Humanidade só veio reforçar
esse desejo nela. E ela afirma:

“Quando eu tive a oportunidade de viajar a Brasília, eu experimentei


essa beleza que tem o céu, já que os prédios têm uma altura que
permite olhar o céu [...] na sua totalidade”.

Já em S5, que prestou a mesma prova que S2 e S3, o impacto da tarefa 1 (um) foi
mais explícito. Ele afirma :

“depois disso eu sempre fiquei com vontade de conhecer Brasília. E


foi o que me levou para eu, finalmente, conhecer Brasília”. A respeito
da tarefa 3, S5 confessa que a matéria o fez pensar na situação de seu

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

país: “ A gente não tem tido até agora muita facilidade para
deficiente físico”.

E, sendo ele engenheiro, ele já tem perspectivas:

“é um negócio que quero também voltar aplicar, né, nas minhas obras
[...] que eu trabalhe”.

O conteúdo da matéria despertou nele o desejo de agir, um sonho de trazer melhoras


para facilitar a vida dos deficientes físicos.

Quanto a A6 (2014/1), a matéria da tarefa 1 (um), intitulada Café, lhe trouxe uma
informação nova de conhecimento geral. Ele próprio afirma:

“O Brasil é o melhor [querendo dizer “maior”] produtor de café do


mundo; esso eu não sabia”.

Quanto aos EPs, ele afirma que o n°17, intitulado Prêmio à inovação, despertou,
interesse nele. Ele afirma que o EP o impactou no sentido de incentivá-lo à inovação nas
pesquisas, daí, o interesse em concorrer ao prêmio. S4 e S7 não se lembraram das tarefas e
EPs que foram utilizados em suas edições respectivas. Isso pode ser a causa da ausência de
impactos neles.

Discussão

Os resultados acima expostos parecem apontar certo impacto em alguns dos


participantes ao Celpe-Bras. S1, pelo contato com o EP sobre doação de sangue e, também
com base em uma experiência própria, tentou se tornar doadora de sangue, o que é um ato de
cidadania. Isso foi possível, provavelmente, pelo aparente incentivo que o próprio EP traz .
Vê-se, também ,que um simples EP causou impacto na informante, no sentido de torná-la
consciente de uma situação que talvez não perceba se não fosse pelo contato com o EP.

Um aspecto que me parece bastante surpreendente é o fato de que, por um teste de


proficiência de larga escala como o Celpe-Bras, é possível exportar as riquezas turísticas de
um país, no caso, do Brasil. Foi isso que confirmaram os depoimentos dos informantes S2, S3
e S5 sobre O céu de Brasília, o que levou o útimo a visitar a capital brasileira. Outra coisa
também interessante é que as informações das tarefas e EPs do teste podem trazer para o
examinando novos conhecimentos gerais sobre o país de interesse e sua cultura. É isso que
apontam os resultados da análise das entrevistas com alguns dos participantes. S1, por

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

exemplo, ganha novas informações sobre reciclagem de materiais para fazer roupas e
acessórios; e S6 aprende que o Brasil é o maior produtor de café do mundo.

Sobre a hipótese de que o Celpe-Bras pode se revelar um instrumento para formação


do cidadão – lembrando, sem ser isso o objetivo do exame – os depoimentos de alguns
participantes deram sinais. O fato de algumas tarefas ou EPs terem impactado alguns dos
participantes, fazendo-os refletir sobre a situação do próprio país, é positivo. A tarefa 3
(2013/2), por exemplo, fez os participantes S2 e S5 pensarem na situação das pessoas com
deficiência física, o que, mais tarde, eles poderiam transformar em atos concretos, quando
forem planejar ou realizar obras de construção. Isso também serve como complemento para
sua formação.

Considerações finais

Estas não são conclusões definitivas. A pesquisa ainda está em andamento. Mas os
resultados preliminares aqui apresentados apontam indícios de impacto em alguns dos
participantes desta pesquisa. A continuação será considerado um número maior de
participantes. Os depoimentos dos participantes revelam elementos que indicam um tipo de
impacto que ainda se deve investigar. Esse tipo de impacto não aparece ainda na literatura
sobre testes de proficiência. Na continuação deste trabalho, tratar-se-á de reponder à
pergunta: qual relação existe entre este tipo de impacto e as matérias do Celpe-Bras?

Referências bibliográficas

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Vol. 14, N° 2. Oxford University Press, 1993.

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Research Contexts and Methods. LAWRENCE ERLBAUM ASSOCIATES,
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10/11/2015.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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MCNAMARA, T. The social character of language tests. In: WIDDOWSON, H. G. (Ed.)

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PRODROMOU, Luke. The backwash effect: from testing to teaching. ELT Journals 49/1:
Oxford University Press, p. 13/25, 1995.

SCARAMUCCI, Matilde V. R. Efeito retroativo da avaliação no ensino/aprendizagem de


línguas: o estado da arte. Trab. Ling. Aplic., Campinas, 43 (2): 203-226, Jul./Dez. 2004.

SILVA, R.M.R. O efeito retroativo do celpe-bras na cultura de aprender de candidatos


ao exame. Universidade Federal de São Carlos, 2006. Dissertação de Mestrado. Versão PDF
disponível em <http://www.ufscar.br/~ppgl/defesas/002.pdf> Acesso em 02/11/2015.

Uma experiência triangular de diferentes geografias e gramáticas de língua

Maria Aida Costa Batista


Aposentada, ex-leitora do Camões

E as línguas já passadas estão na língua renovada


são o ritmo do ritmo do meu canto (...)
Praça da Canção, 1965, Manuel Alegre

1- Introdução

Foi com a maior satisfação e agrado que recebi a vossa Carta de Aceite da minha
proposta para participar neste I Congresso Internacional de Língua Portuguesa:
experiências culturais e linguístico-literárias contemporâneas.

Assim, quero em primeiro lugar endereçar os meus mais sinceros agradecimentos à


comissão organizadora, por me ter facultado a oportunidade de estar nesta prestigiada
Universidade de Santiago do Chile, rodeada das mais destacadas personalidades a trabalhar
na área da Língua e da Literatura.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Tendo este um congresso, entre as suas organizadoras, a leitora de Português Prof.


Doutora Vera Fonseca, e sendo patrocinado pelo Camões - Instituto da Cooperação e da
Língua, faz sentido que inclua no seu vasto programa o testemunho de um leitor (no caso
concreto de uma leitora), porque muito do que na última década se fez, em prol da língua e
cultura portuguesas, se ficou a dever a uma preocupação de Portugal em criar o primeiro
Leitorado de Português nesta universidade e, no âmbito do Congresso, inaugurar um Centro
de Língua Portuguesa.

Comecemos, então, por colocar a seguinte questão: «O que é um leitor?». Segundo o


Grande Dicionário de Língua Portuguesa, «Leitor; Professor que, comissionado ou não pelo
seu governo, ensina a sua língua em universidade estrangeira». Esta é a definição mais
simples e dirigida ao público em geral, porque há um outro conjunto de competências e
valências que não cabe a esta apresentação enumerar187. Contudo, é importante sublinhar que,
independentemente de quaisquer estatutos e/ou regulamentos internos que possam regular a
função, cabe ao leitor, através de uma enorme intuição aliada a uma grande dose de sensatez ,
trabalhar dentro de uma corrente, cujos elos incluem as duas tutelas do MNE - Embaixada e
Consulado Geral de Portugal -, chefias, colegas, funcionários da administração, e estabelecer
pontes com a comunidade portuguesa, representada através das suas mais variadas
instituições - clubes, associações, grémios e órgãos de comunicação social.

Serve isto para concluir que nenhum compêndio, nem curso de formação nos diz
como desempenhar a função, naquilo que ela tem a ver com as características de cada espaço
físico e tecido social onde o leitorado está implantado.

É verdade que a instituição responsável pelo nosso recrutamento - cuja designação


vem mudando ao longo dos anos - tem a preocupação de nos preparar através de cursos
teórico-práticos que definem princípios gerais de atuação. Porém, por mais variadas e
eficazes que sejam as estratégias simuladas em sala de aula, elas são isso mesmo: uma
simulação. Só no terreno, e com um olhar muito atento, o leitor consegue tomar o pulso à
realidade com que tem de lidar.

Feita esta introdução, passemos então ao âmago da minha intervenção que pretende,
de uma forma muito sumária, partilhar convosco vivências de quem teve o privilégio de, ao
serviço do seu país, cumprir missões em 3 continentes: Europa, América e África. Por isso
lhe chamei: «Uma experiência triangular de diferentes geografias e gramáticas de língua»,
considerando aqui o termo gramática na sua mais livre aceção, ou seja, não só o estudo dos

187
Leia-se Ciência, Cultura e Língua em Portugal no séc. XX – Da Junta de Educação Nacional ao Instituto
Camões, Maria Fernanda Rolo, Maria Inês Queiroz, Tiago Brandão, Ângelo Salgueiro, Fevereiro de 2012, IC/
INCM

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

elementos de uma língua e as mais variadas combinações, mas acrescentar-lhe a geografia


das emoções e dos afetos.

Antes de viajar até à minha primeira missão, penso que devo começar por vos
confessar as razões que me motivaram a ser leitora, já que qualquer percurso profissional
remete sempre para questões ligadas à esfera da nossa vida privada e familiar, em que «o Eu
ganha importância relativamente ao Nós, mas não exige o desaparecimento do grupo
familiar»188.

Tinha 40 anos, e aproximava-se a idade de os filhos saírem de casa para iniciarem as


suas carreiras académicas. Esta seria a primeira sensação de vazio que eu iria experimentar,
mas havia um outro, natural em quem trabalhava desde os 17 anos - o vazio provocado pela
rotina e a necessidade de o preencher, sabendo que, profissionalmente, poderia partir para
algo de diferente. Foi nesta encruzilhada de decisões que um dia vi um anúncio de
candidatura a leitor. A minha oportunidade poderia estar mesmo ali, no preenchimento de um
formulário. Assim aconteceu e fui selecionada para frequentar um curso dividido em 2
módulos, com a duração de um mês cada (didática de língua e cultura geral), seguidos de
exames escritos. Orgulhosa da aprovação, candidatei-me.

Foram-me dados a escolher três postos, nos seguintes países: Finlândia, Gabão e
Índia. Na prática, eram apenas dois, porque a Índia estabelecia como condição que fosse um
homem a ocupar o cargo. Apesar de ter vivido em África até aos 27 anos, e aí ter iniciado a
minha carreira docente, a verdade é que a minha opção recaiu sobre a Finlândia. Por um lado,
sentia uma enorme curiosidade em perceber por que é que jovens habitantes da península
escandinava se interessavam por estudar português189, por outro, vivera uma infância
fascinada pelos postais de natal que representavam mantos de neve salpicados de casas
vermelhas fumegantes. Teria agora a oportunidade de realizar um sonho, há anos a povoar o
meu imaginário - entrar num postal de natal!

2- Finlândia - o meu postal de Natal!

Corria o ano de 1989. Não foi assim há tanto tempo, mas o suficiente para que
possamos falar das assimetrias de um Portugal antes e depois. Vejamos: os telemóveis eram
escassos, tinham o formato de um rádio e estavam ligados ao sistema elétrico dos carros; as
zonas urbanas apresentavam-se dotadas de muito poucas caixas multibanco, e os cartões de

188 Singly, François de (1993), Sociologie da la Famille Contemporaine, Paris, Nathan.


189
Aida Baptista, crónica NÉ-MÉ-Si-Ô, enjoy your football!, p. 115, in Passaporte Inconformado, 2004, Miner -
vaCoimbra

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crédito levavam um mês a serem emitidos; a internet não existia e o faxe era o meio de
comunicação mais rápido para remeter documentos urgentes; a televisão funcionava com
programação confinada a dois canais públicos190 e os portugueses ainda não passavam férias
nas Caraíbas.

Não tenho vergonha de dizer que o meu universo europeu se limitava a umas
incursões por Espanha, e o mais longe, até onde me aventurara, fora Paris. Imaginem, por
isso, o meu deslumbramento perante tanta limpeza, ordem e sentido de organização de uma
sociedade que me oferecia novidades a cada esquina e não regateava ajuda a um estrangeiro.

O fascínio tornou-se ainda maior quando, no primeiro contacto com os alunos e


depois de preenchida a ficha de identificação, percebi que cada um deles falava, no mínimo,
cinco línguas estrangeiras. Aprendi a primeira lição: os povos falantes de línguas
minoritárias191, pela necessidade de contacto com os outros, sentem-se mais predispostos para
aprender outras línguas.

Como parece que tem sido sina minha (na altura não o sabia ainda), substituir colegas
cuja saída estava associada a episódios socialmente menos recomendáveis, deparei-me com
um gabinete vazio de passado, ou seja, onde não existiam registos dos protagonistas de
missões anteriores. Inexperiente e sem referências a trabalho já desenvolvido, vi-me obrigada
a partir do nada e a elaborar programas e materiais para oito cadeiras. Repito oito!192 Não fez
de mim uma heroína, mas admito que trabalhei imenso porque, além das aulas, me matriculei
em cursos de finlandês.

Não era de todo necessário para poder comunicar, mas para mim era importante
descodificar a toponímia, as mensagens escritas da publicidade envolvente, sob pena de viver
num rico arquipélago linguístico, mas isolada numa ilha sem palavra-passe de acesso.
Descobri, depois, que os alunos apreciam e valorizam o facto de estudarmos a sua língua e o
interesse deles pela nossa cresce de forma diretamente proporcional ao que manifestamos
pela deles.193 Além disso, podemos trocar pequenos gestos de cortesia na língua do anfitrião,
que gera maior proximidade e uma química de empatia que facilita as relações. Registe-se
ainda a facilidade de tradução de certas expressões, que nos permitem estar a um outro nível
de compreensão que, de outro modo, não seria possível.

190 A SIC generalista inicia a sua programação em 1992 e a TVI em 1993


191
País bilingue de 5 milhões de habitantes, em que 94% falam finlandês e 6% sueco.
192 Curso Intensivo, Gramática I e II, Fonética, Pronúncia, História, Literatura, Conversação.
193
Vim a saber que o leitor anterior, à pergunta «Não vai aprender Finlandês?», respondeu:« Para quê? Só 5
milhões a falam!». Os alunos sentiram-se diminuídos e magoados com a resposta.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Foi a minha primeira experiência no ensino de PLE (Português Língua Estrangeira),


que, segundo Isabel Leiria e por oposição à definição de PLS, «deve ser usada para classificar
a aprendizagem e o uso em espaços onde essa língua não tem qualquer estatuto
sociopolítico»194, e todos os meus alunos eram finlandeses, exceto uma filha de refugiados
chilenos e uma estudante grega de intercâmbio.

Agradava-me de sobremaneira o elevado nível de educação e sentido de


responsabilidade das turmas. Nenhum aluno se atrevia a entrar numa sala de exames se não
estivesse devidamente preparado e munido apenas do material necessário: lápis, borracha e
afia195. Considero que a minha experiência foi inolvidável e tremendamente enriquecedora do
ponto de vista das relações humanas que desenvolvi a nível profissional (chefias, colegas e
funcionários), das pontes que estabeleci com a criação de um grupo de estudantes
autodesignado Lusomaníacos196, da receção anualmente oferecida pelo Embaixador de
Portugal aos alunos de português, no início de cada ano letivo, das distintas personalidades
académicas que nos visitaram, da viagem que fiz a Portugal com uma turma e, acima de tudo,
do quanto aprendi sobre a forma de olhar o outro e de o entender.

Dizer que somos todos europeus, é uma verdade inquestionável, mas não corresponde
nem pouco mais ou menos a dizer que somos todos iguais. E só quando vivemos por dentro
de uma outra cultura percebemos essa diferença.

Fiz duas missões (8 anos) e saí com pena, mas com a certeza do dever cumprido.
Depois de um aumento substancial do número de alunos, consegui que este se mantivesse ao
nível da centena, na totalidade das disciplinas.

3- Canadá - o meu little Portugal!

Em 1997, regressei à minha escola de origem. Constava da política do Instituto


Camões que o leitor trabalhasse um ano em Portugal, antes de concorrer a um novo posto.
Em 1998 voltei a candidatar-me. Nesse concurso, a avaliação foi feita através de entrevista,
cujo júri era constituído por professores universitários e um elemento do Instituto. Não me
correu nada bem, admito! Por isso, numa primeira fase, não me foi atribuído nenhum posto,

194
Texto apresentado ao 1º Congresso do Português Língua Não-Materna, 21 a 23 de Outubro de 1999, Forum
Telecom-Picoas, Lisboa
195 Nas universidades finlandesa os exames são feitos a lápis.
196
Referido na p. 116 da crónica, op. cit.

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contemporâneas

mas também não fora excluída. Em bom português: fazia parte de um refugo de artigos com
defeito, mas que ainda podia ser aproveitado.

Nesse ano, a Prof. Manuela Marujo, do Departamento de Espanhol e Português da


Universidade de Toronto, tendo em conta uma sucessão de episódios ocorridos e reveladores
de comportamentos pouco condizentes com o estatuto e o papel do leitor, solicitou ao
Instituto que lhe fosse permitido entrevistar potenciais candidatos à vaga ainda por preencher
daquela universidade.

Manuela Marujo apostou em mim e, terminada a minha missão, ainda hoje, apesar
deste mar imenso que nos separa, há um universo de projetos que nos une, e que continuamos
a partilhar.

Chegar a Toronto, por oposição a Helsínquia onde os portugueses se contam pelos


dedos das mãos, foi configurar pela primeira vez o conceito de diáspora e ter a certeza de que
o Little Portugal não é apenas placa toponímica, mas uma realidade que nos faz entrar no
país recriado pela memória dos que o deixaram. Sendo este o quadro de fundo, o mesmo teria
necessariamente de se refletir, ao contrário da experiência anterior, na heterogeneidade dos
alunos matriculados nas aulas de língua portuguesa.

Tendo em conta que o Canadá é um país que inscreve na sua matriz identitária a
política do multiculturalismo, resultado do fluxo de correntes migratórias das mais diversas
proveniências, o tecido humano da cidade de Toronto espelha bem essa variedade étnica.
Assim, os nossos alunos são maioritariamente hifenizados, ou seja, provenientes de vários
cruzamentos étnicos, a que se acrescenta um grupo representativo de lusodescendentes.

Se, na Finlândia, a homogeneidade era o ponto de partida para o ensino do PLE, em


Toronto, eu estava perante a mesma designação, mas com matizes que me obrigavam a
repensar as estratégias a utilizar. Penso que é claro - salvo as raras exceções em que nunca
houve, em contexto familiar, qualquer contato com a língua
portuguesa -, que estes alunos raramente se inscrevem no primeiro nível, mas escolhem outro
que consideram mais ajustado à sua situação. Ou seja, eles conseguem fazer-se entender por
via da comunicação oral, o que não é o mesmo que dizer que dominem as competências da
oralidade. Não cabe no âmbito desta exposição, enumerar todas as razões que estão por trás
deste facto, pelo que me fico apenas por estas:

a) fraco nível de escolaridade da maioria dos progenitores


b) limitada variedade lexical, considerando as restritas áreas temáticas que fazem
parte da conversação diária

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

c) automatismos praticados e dados como adquiridos


d) interferência da língua de prestígio que redunda no aportuguesamento de palavras
inglesas.

Quer dizer que, em termos de prática didática e pedagógica, estamos perante PLE
mas, face à existência deste grupo específico de alunos, as estratégias mudam e têm de ser
ajustadas a uma nova realidade. Situando-nos em níveis mais avançados, em que podemos ter
alunos com anos de escolaridade concluídos em Portugal, diria mesmo que nos deparamos
com a situação invertida, ou seja, apesar de ter sido o Português a língua materna e o Inglês a
língua segunda, torna-se imperativo alterar a estratégia de atuação, ou seja, trabalhar o
Português como língua segunda (PL2), sem esquecer os outros alunos para quem esta é
sempre PLE.

Destaque-se ainda o facto de que o leitor, ao trabalhar numa universidade implantada


numa cidade com uma forte comunidade portuguesa, é convocado permanentemente para um
conjunto de atividades que extravasam em muito a sua função docente e que decorrem das
celebrações de efemérides das associações e clubes, semanas culturais, clubes de leitura,
exposições, lançamento de livros e tantas outras. Também neste campo, não posso deixar
de frisar que deixei uma marca de cooperação com todos, incluindo a imprensa comunitária
com que mantenho colaboração até hoje e me fez descobrir a minha faceta de cronista197 .

Em 2003, e sem que nada o fizesse prever, a minha missão de seis anos (como fora
determinado pelo então presidente Jorge Couto) terminou ao fim de cinco anos, sem que
alguma vez soubesse porquê. Nestas guerras de gabinetes, não é o leitor quem sai perdedor,
mas sempre, e repito, sempre, a língua portuguesa e o prestígio do país que a representa,
provocando-se, muitas vezes, danos irreparáveis.

Perde-se ainda o respeito pelo parceiro com quem se negoceia que o mesmo será
dizer, desperdiça-se todo um capital que o leitor, com o seu esforçado trabalho, levou tempo a
acumular. Regressei a Portugal, magoada e ferida198, mas, como é meu timbre, não desisti.
Descobrira que ensinar a minha língua a estrangeiros era aquilo que eu gostava de fazer e que
me realizava profissionalmente.

No ano seguinte, deparei-me com uma vaga em Benguela.

197 Passaporte Inconformado, Chão da Renúncia, Entre Margens de Afectos e Abraço de Mar entre Ilhas e Con -
tinentes, são livros que reúnem muitas das crónicas escritas enquanto leitora.
198
Aida Baptista, crónica O Perfume das Cerejeiras, p. 189, in Passaporte Inconformado, 2004, MinervaCoim -
bra.

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4- Benguela - o meu regresso às origens

Toda a tradição literária diz que não devemos voltar aos lugares onde fomos felizes,
mas eu quis desfazer esse mito e candidatei-me. As provas de candidatura desse ano, 2004,
constituídas por um exame escrito (com uma componente de didática de língua e outra de
cultura geral) testes psicotécnicos e entrevista aberta, foram das mais rigorosas. Tinha 55
anos e vi-me a entrar para uma sala de exames rodeada de jovens acabadinhos de sair das
universidades.

Num primeiro momento, confesso, invadiu-me o impulso de desistir. Com provas


dadas em dois leitorados, senti tudo aquilo como uma humilhação por ter de me sentar em pé
de igualdade (neste caso de inferioridade), e me sujeitar às mesmíssimas provas. Claro que a
minha genética falou mais alto e enfrentei o desafio, na certeza de que a experiência, nestas
circunstâncias, tem sempre um valor acrescentado. E a minha razão teve razão, se me é
permitida a redundância!

Como devem calcular, a realidade que me esperava nada tinha a ver com as
experiências anteriores. Tivera o privilégio de trabalhar em países com níveis de excelência
máxima e vi-me, de repente, privada das mínimas condições de trabalho que me obrigavam a
um gasto redobrado de energias, sem que os resultados correspondessem aos esforços
despendidos199, como o provam muitos dos episódios relatados em Chão da Renúncia,
crónicas da minha experiência em Angola.

Em Benguela, capital da segunda maior província de Angola, e pertencendo este país


ao grupo dos PALOP, a língua oficial é o Português. Mas, como a própria sigla indica, trata-
se de língua oficialmente adotada o que quer dizer que as línguas maternas são outras - as
línguas bantu. No caso concreto de Benguela, é o umbundo. Assim sendo, nestes países, o
leitor passa a ter uma designação e um papel diferentes, ou seja, é considerado formador200 , e
a língua portuguesa deixa de ser PLE e passa a PL2 (português língua segunda), cuja
designação, e recorrendo novamente a Isabel Leiria, é diferente da do PLE. É «uma língua
não-nativa dentro de fronteiras territoriais em que tem uma função reconhecida201» .

199Aida Baptista, crónica PRÓBLÉMA QU'ISTAMOS COM ELE!, pág. 61, Chão da Renúncia, 2008, Miner -
vaCoimbra.
200Professor contratado ou requisitado pelo Instituto Camões com a finalidade de lecionar Língua Portuguesa
em universidades dos PALOP. São designados formadores pois formam professores de língua portuguesa (nº 2 e
4 do Artº 20 do Decreto-Lei 170/97 de 5 de Julho).
201
Texto apresentado ao 1º Congresso do Português Língua Não-Materna, 21 a 23 de Outubro de 1999, Forum
Telecom-Picoas, Lisboa

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Face a esta nova realidade, multipliquei-me em funções: fui docente no Pólo


Universitário da Universidade Agostinho Neto, dei apoio à formação de professores da
Escola do Magistério Primário, dirigi o Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões
(onde dei cursos de jornalismo, promovi ciclos de cinema português, exposições e prestei
apoio a todas as atividades para as quais a minha colaboração era solicitada) e fui ainda
intermediária entre a Universidade Aberta e os alunos inscritos nos cursos que esta facultava.

Logo após a descolonização202 , iniciou-se uma abrangente e louvável política de


educação centrada num plano de alfabetização com a maior cobertura possível. Apostou-se,
como nunca até então havia sido feito, na construção de escolas de modo a permitir uma
verdadeira democratização do ensino, permitindo que franjas da população que
tradicionalmente haviam ficado fora do sistema pudessem ter acesso ao mesmo. Pese o
meritório esforço feito, não nego que, devido à rapidez com que tudo aconteceu, os níveis de
expressão oral e escrita, por razões derivadas de fatores geográficos-culturais, se revelavam
bastante deficitários à luz da norma europeia.

Ora, não foi por acaso que ressalvei «à luz da norma europeia». Como refere Bordieu
(1992)203, «No que diz respeito ao que é transmitido, a língua e a cultura, devemos ter em
mente que se trata de representações construídas e legitimadas pela cultura dominante».
Assim, no caso dos PALOP, estamos perante línguas em transformação, cujas mudanças são
por um lado resultado de empréstimos e por outro de interferências de substrato, que se vão
traduzir em novas construções fonéticas, morfológicas e lexicais de que autores como
Luandino Vieira, Mia Couto e mais recentemente Ondjaki (só para citar alguns) se revelam
lídimos representantes.

Deste modo, a atitude do formador, sem descurar o rigor e os níveis de exigência, e


sem assumir nunca uma postura paternalista, deve dar prioridade ao entendimento de
fenómenos específicos, que, por muito terem a ver com o perfil sócio-linguístico dos falantes,
pesam na formulação dos conceitos de competências linguísticas. Uns já existiam durante o
período colonial204 (ao nível da sintaxe, léxico e fonética), outras são fruto de novas
realidades emergentes após a independência. A nível lexical, por exemplo, palavras como
kupapata, quinguila, gasosa, candongueiro, chegaram por via de uma alteração da estrutura
económica existente; outras, como boamada, cuiar, cuanhada e muitas mais assentam num
substrato bantu e fazem já parte do linguajar comum.

202
Angola torna-se independente em 11 de Novembro de 1975.
203 Bordieu, Pierre, O Poder Simbólico, 1992, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
204
Registe-se que todas as obras de autores provenientes dos PALOP vinham, desde há muito, acompanhadas de
um glossário final.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

No que se refere a regiões colonizadas, diz-nos Perpétua Gonçalves e Bento Sitoe205


que, «não se tem tomado em consideração os diferentes papéis que as línguas locais e as
línguas coloniais não têm o mesmo impacto mútuo, exatamente porque ocupam lugares muito
distintos nas sociedades em que coexistem» (p. 74).

Villaverde Cabral206 , acrescenta que para ultrapassar a retórica da Lusofonia é


necessário que «o idioma português deixe de ser apenas, (…) uma língua de cultura no
sentido tradicional do termo, em suma, uma língua literária num universo profundamente
marcado pela iliteracia, para se tornar numa língua de trabalho e de comunicação científica e
técnica» (p. 17).

Nestas circunstâncias, o papel do leitor/formador deverá ser o de trabalhar a língua


tirando partido de todas estas interferências, novidades lexicais e construções sintáticas, que
enriquecem a língua e lhe conferem uma outra plasticidade, em vez de insistir na norma
escrita e falada por uma elite ainda muito restrita.

A missão, programada para quatro anos, acabou por ficar reduzida a dois, por razões
de natureza estritamente pessoais. Apesar de curta, permitiu-me viver a minha primeira
experiência de docente de Português Língua Segunda (PL2), bastante diferente das anteriores,
mas igualmente enriquecedora.

5- Conclusão

Ser mandatado para ensinar a língua portuguesa no estrangeiro, em qualquer das


categorias referidas (Leitor, Formador, Responsável de Centros de Língua) e ainda outras,
não é nem uma carreira nem uma categoria profissional. No entanto, desde os anos vinte do
século passado, temos sido nós os agentes responsáveis pela política cultural do país e o rosto
da instituição que representamos. Somos, como muito bem o definiu Fernando Cristóvão207,
«os embaixadores da língua» e, como embaixadores (apesar de no caso constituir apenas
mais uma figura de retórica), somos sujeitos à mesma itinerância e mobilidade geográfica,
mas sem outra qualquer contrapartida que não seja o grande amor àquilo que fazemos.

205In Revista Travessias, 1/1999, Mudança Linguística em Situação de Contacto de Línguas: o caso do Changa -
na e do Português, Conferência proferida na abertura do V Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais
(Maputo, setembro de 1998)
206 In op. cit., 1/1999, Forças Centrífugas e Forças Centrípetas nas Relações entre os Países de Língua Portu -
guesa, Conferência proferida na abertura do V Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais (Maputo,
setembro de 1998)
207
Era presidente do Instituto Camões em 1989, quando iniciei a minha primeira missão em Helsínquia.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Acreditando no futuro da língua, e na certeza de que há sempre um tempo para nascer e outro
para renascer, deixo-vos com este simbólico excerto do poema, de David Mourão Ferreira208:

(...) É bom lançar ao fogo um velho dicionário


É bom o crepitar das palavras antigas
Adivinhar quais são as que por fim renascem
E que sabem voar ao saírem das cinzas (…).

Santiago do Chile, 13 de outubro de 2016

Aspectos histórico-culturais das designações da culinária no ensino de PLE/


PL2

Maria José Nélo


Universidade Estadual do Maranhão – UEMA
marianelo@uol.com.br

Este estudo focaliza a designação lexical da culinária maranhense no ensino de


Português Língua Estrangeira e Português Língua 2 – PLE/PL2; tem como fundamentos
teóricos a Análise Crítica do Discurso, com vertente sócio-cognitiva; e trata, também, de
aspectos recorrentes na formação da culinária, ou seja, em cada contemporaneidade histórica-
situacional o léxico designa, identifica e diferencia os grupos socioculturais por meio da
culinária.

Os procedimentos convencionais voltados para este estudo constituem-se de teoria


Análise Crítica do Discurso, de vertente sócio-cognitivas e sociais, designação lexical
histórico-cultural de diferentes grupos sociais que, por um lado, representa as interações no
encontro da culinária e, por outra, a complexidade das relações dos povos em diferentes
contextos.

Tem-se por objetivo geral contribuir com o ensino de língua portuguesa para
estrangeiros, de modo a tratar a partir das designações lexicais, a culinária maranhenses e os

208
Do tempo ao coração, 1962-66.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

implícitos histórico-culturais; e, por objetivos específicos, examinar, no uso efetivo do léxico,


os implícitos culturais que identificam e diferenciam os grupos socioculturais maranhenses;
analisar, por meio de expressões e neologismos, as designações lexicais da culinária; e
considerar, na dialética entre o novo e o velho, as instituições de crenças e marco de
cognições sociais do Velho e do Novo Mundo. Nesse sentido, apresentam-se como foco
situacional raízes históricas da formação do povo maranhense, considerando-se a história
contada e observada por meio do que seus habitantes põem à mesa.

Ao considerar as convenções de hábitos e costumes de um povo como cultura,


entende-se, assim, que o termo cultura está situada na intersecção das categorias analíticas
sociedade, cognição e discurso (SIVEIRA e NÉLO, 2002). Nesse sentido, pressupõe-se que o
discurso é tanto uma cultura quanto interação social, pois estão numa constante dialética
entre o social e o individual, de modo a instaurar marcos de cognições sociais e a memória
social de um povo.

O discurso, visto como uma estrutura, revela o sistema da língua manifestado em suas
regras gramaticais e em seu léxico. No que se refere ao léxico, as designações contêm
implícitos culturais relativos às raízes históricas da miscigenação no Maranhão, e o léxico da
culinária é um ponto para estudar a representação histórica pelas expressões e pelos
neologismos que passam a instituir as crenças presentes nos marcos de cognições sociais de
cada grupo. O discurso visto como interação social implica a dialética entre o novo e o velho
(cf. SILVEIRA, 2004). No que se refere à culinária, as designações léxicas articulam hábitos
alimentares do Velho e do Novo Mundo.

No que se refere às categorias analíticas, há uma intersecção entre sociedade,


cognição e discurso. De acordo com van Dijk (1997, 2001, 2008), a sociedade é definida por
um conjunto muito amplo de grupos sociais que são definidos como agrupamento de pessoas
que têm os mesmos objetivos, interesses e propósitos. São estes que determinam o ponto de
vista com o qual as pessoas observam e representam para si o que acontece no mundo.

A cognição é entendida como conhecimentos e são formas memoriais de como se


representa o mundo. Tais conhecimentos decorrem do ponto de vista projetado para se
representar o referente. Todas as formas de conhecimentos são decorrentes de objetivos e
propósitos que são conhecimentos avaliativos do mundo resultantes da projeção de uma
escala de valores que vai do melhor ao pior e suas respectivas gradações intermediárias.
Dessa forma, havendo mudança no ponto de vista haverá mudança na forma de
conhecimento. Como cada grupo social tem um ponto de vista específico, seus marcos de
cognição social são definidos por um conjunto de crença sociais que propicia uma
diversidade de crença grupais, de forma que produz conflitos inter grupais. Nesse sentido,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

pode-se mencionar o Maranhão como um estado de extensão territorial, e apresenta


diversidade de crenças que são representativas da cultura de cada grupo, de forma a guiar as
atitudes dos membros grupais, a partir de seus hábitos.

O discurso visto como estrutura compreende o momento de produção dos


conhecimentos representados em língua, ao mesmo tempo é visto como uma interação
simbólica com característica social, em que os conhecimentos sociais transmitido pelo
discurso guia os conhecimentos individuais e estes a cada instante reformulam os sociais.

Ressalte-se, ainda, que a cultura decorre de um conjunto de crenças que define quem
nós somos, quem pensamos que somos e quem queremos ser (cf. SILVEIRA, 2004). A esse
ponto de vista, DaMatta (1998, 17) complementa que “cultura exprime precisamente um
estilo, um modo e jeito, repito, de fazer coisas”. Nesse sentido, tem-se por hipótese que na
diversidade cultural dos grupos sociais há possibilidade de encontrar-se uma unidade extra
grupal que define a culinária maranhense no âmbito brasileiro (SILVEIRA e NELO, 2002).
Essa diferenciação da culinária maranhense pode ser distinguida pela designação lexical e
pelo modo de transformar os produtos in natura.

Apesar de haver diferentes designações lexicais da culinária, é fundamental


considerar-se as similaridades que constituem uma dimensão do que se entende por
“culinária”. Numa visão abrangente, neste estudo, o termo, antes entendido como arte,
amplia-se para outras áreas de interesse, cultivo, transformação, cozimento, química, sabor,
aparência, necessidade e crença. Nesse sentido, a culinária é mais que um fazer de um grupo
social, é também vida e forma de cultivar saberes e sabores. Tal como se confirmam as
designações relativas à culinária em dois dicionários, um no sítio da internet e outro em livro
de Ferreira (2009), os quais identificam o vocábulo da seguinte maneira:

Culinária 1 s.f. Arte e a ciência do preparo de alimentos para a mesa, em


geral pelo aquecimento, até modificar seu sabor, consistência, aparência e
composição química. O cozimento acentua o sabor dos alimentos e torna sua
aparência mais atraente. Torna também os alimentos mais fáceis de serem
digeridos. Devido à importância da alimentação para a saúde, a culinária
transformou-se numa ciência, e é ensinada em escolas e faculdades. http://
www.dicio.com.br/culinaria/

No sítio, o conceito de culinária ultrapassa o significado de transformação de arte para


ciência. Trata-se da obtenção de resultados mais elaborados quimicamente, ultrapassando do
sabor à aparência, ou seja, da gustação, visão, digestão à prevenção e provisão de saúde,
estudos sobre a ciência gastronômica etc.. Nesse percurso, a culinária vai das trocas de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

receitas domésticas para o meio acadêmico.


No dicionário impresso, de Aurélio B. Ferreira, culinária é definido apenas com arte


de cozinhar. A ausência de expansão sobre a temática parece resumir ao que é esperado da
culinária tradicional, uma arte fácil e necessária. A culinária é representada como “(f. subst.
De culinário) S. f. A arte de cozinhar.” (FERREIRA, 2009: 586).

A ampliação da arte de cozinhar contempla e exige outros conhecimentos. Os saberes


sobre a arte de transformar os alimentos em recursos comestíveis adquirem orientação de
dieta controlada e avaliações medicinais, esportivas, qualidade de vida dentre outros fatores
que restringem o dito popular “você se representa por aquilo come e põe à mesa”. Nessa
discussão, observam-se as recorrências de implícitos histórico-culturais na designações da
culinária maranhense que recebe influências da culinária “arte” indígena em junção com
sabores e modos de transformar e de condimentar afros e portugueses. Para tanto, destacam-
se a seguir as discussões mais relevantes deste estudo.

• Implícitos histórico-culturais e designações da culinária

A cidade de São Luís do Maranhão situa-se numa “ilha de maré e oceano”, condição
favorável para receber e acolher povos de diferentes lugares e continentes. Esses povos, ao
chegarem aqui, encontraram os nativos indígenas de hábitos alimentares simples, que
obtinham da natureza a pesca e a caça. Esses alimentos eram armazenados após o
processamento do moquém, feito em fogão de tacuruba - fogo de chão feito entre três pedra
(LIMA: 1998, 2). Os nativos consumiam, também, vegetais, legumes, frutas, que por serem
sazonais, eram consumidas de acordo com a época de produção, para esses produtos não
havia técnica de armazenamento nem o clima favorecia durabilidade para consumo a
posteriori.

As discussões sobre o consumo dos alimentos, as designações e a ingestão no


cotidiano dos maranhenses surgiu durante as aulas de PLE. Os alunos solicitaram aulas que
trouxessem desse teor, pois tinham encontrado dificuldades de obterem mais informações
além dos fatos linguísticos. Para atendê-los, foi tratado com os alunos a crônica “Quitutes da
cidade”, publicada em meados do século XX e que continua atual no que se refere à culinária.

Os alunos destacaram na crônica as designações da culinária de pratos quentes e


salgados, sucos, doces e amêndoas. Eles comprovaram, pelo levantamento do léxico, que a

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

arte culinária, predominante em São Luís, tem origem indígena e é pouco elaborada, quase in
natura e sem temperos.

Das palavras selecionadas pelos alunos, destacam-se aquelas que passam por processo
de transformação antes de servir à mesa. São em geral pratos quentes, salgados, consistentes,
de sabores exóticos, possivelmente, contêm influências portuguesa e africana. Verificam-se
nas designações dos verbetes do Novo dicionário de Aurélio (2009), que as palavras têm
origem indígena, africana e intervenção portuguesa:

angu [De or. Afro.] s.m. 1 Massa espessa, geralmente de farinha mandioca
ou de milho, frequente na cozinha brasileira. 2 Massa feita de banana cozida.
3. Barulho, complicação, confusão.
arroz de cuxá s.m. Bras. Cul. Arroz cozido em água e sal, que se come
acompanhado de cuxá. [Pl.: arrozes de cuxá]. Cuxá [Tupi = ‘o que
conserva’, + o tupi = ‘azedo’.]. s.m 1. Bras. Guin. Bot. V. caruru-azedo. 2.
Bras. Cul. Molho feito com folhas de caruru-azedo (q. v.), gengibre e outros
temperos.
Panelada [De panela + -ada] s.f. 1. Panela cheia. 2. Grande porção de
panelas. 3. Ruídos de ar na mucosidade da laringe e dos brônquios. 4. Bras.
N.E. Prato semelhante ao cozido, e que se faz com mocotó, intestinos e
alguns miúdos de boi, toucinho e verduras; bambiá.
xambari [escrita chambaril]. Trata-se da carne mais dura do boi, mas que
com fogo ela amolece; 2. Ossobuco ou chambaril.
jurará [Do tupi.] s.m. Bras. MA Zool. V. tartaruga-do-amazonas (muçuã ou
pequenos quelônios), ... jurarás doirados... (Aluísio Azevedo, O Mulato, p.
96).
peixadas de escabeche [De peixe + -ada]. S.f. Bras. 1. Cul. Prato de peixe
cozido ou guisado. “Vão obrigar uma criatura assim a deglutir uma peixada
de escabeche e meio centro de laranjas”! (Graciliano Ramos, Linhas Tortas,
p. 75). 2. Grande porção de peixe cozido.

A maioria das palavras, que os alunos desconheciam, é de origem “tupi”. O preparo e


a transformação dos alimentos, em outros modos de aquecer e de tornar mais atraente o sabor
e as aparências, sem dúvida, objetivaram, tornar os alimentos mais fáceis de ser digeridos e
comercializados. Os alunos, talvez, pela origem latina, reconheceram nessas práticas
intervenções da cultura “europeia” e africanas.

Outros pratos, frutas/sucos, doces foram destacados como alimentos de rotina e


sazonais: tortas de camarão, azeite de gergelim, leitões de forno, caranguejos de forno,
jaçanãs, caldos (salgados); sucos de murici, buriti, cupuaçu, maracujá do mato, juçara,
cajazinho; e doces de murici, buriti, cupuaçu, cajus-secos, caju em calda. Os frutos transformam-
se em suco, em doces pastosos, compactos e caldas (doces). Essas modificações também têm
influências culturais afro-portuguesas na culinária maranhense. Verificam-se as designações dos

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

verbetes, selecionados pelos alunos, que as palavras têm origem indígena, e intervenção afro-
portuguesa, de acordo com o Novo dicionário de Aurélio (2009).

bacuri [Do tupi] s.m. Bras. Amaz. 1. Bot. Árvore da família das gutiferácea
(Platonia insignis), de fruto grande e carnoso, com polpa amarela, muito
apreciado como alimento (...).
buriti [Do tupi] s.m. Bras. PA SP 1. Bot. Palmácea (...) dotada de fruto
amarelo do qual se extrai óleo; e broto terminal comestível, e como espique
e espádices se fabrica o vinho de buriti; os pecíolos das folhas fornecem
material us. em artesanato.
caju [Do tupi] s.m. 1. Pedicelo tuberizado, comestível, do fruto cajueiro (q.
v.) 2. Moç. Bebida fermentada feita de caju espremido: “Nunca mais beber
caju/ Na minha sombra do Chibuto” (Orlando Mendes, Véspera Confiada, p.
62). 3. Bras. Ano de existência.
cupuaçu [Do tupi = ‘cupu grande’] s.m. Bras. N. N. E. L. Bot. 1. Árvore
(Theobroma grandidiflorum), grande ou pequena, da família das
esterculiáceas, cujo fruto, cápsula oblonga, tem polpa aromática, doce,
comestível, usada em compotas e refrescos, e cujas sementes lembram, no
sabor, o cacau-verdadeiro, sendo as flores vermelho-purpúreas com as
margens alvas, e dispostas em panículas: “Cupuaçu, o veludo perfumado da
casca do estojo ovalado onde se abrigam os bagos carnudos” (Tiago de
Melo, Mormaço na Floresta, p. 77). 2. O fruto dessa árvore. 3. V. cacau-do-
peru.
murici [Do tupi] s.m. Bot. 1. Bras. Designação comum a várias espécies do
gênero Byrsonima (v. birsônima), da família das malpighiáceas, árvores e
arbustos que produzem um tipo de fruto drupáceo, do mesmo nome, de
polpa edula, e que habitam maciçamente os cerrados; muricizeiro. 2. Esse
fruto.
jussara (escrita juçara) [Do tupi] s.m. Bras. Bot. 1. Palmeira delgada, alta
e elegante (Euterpe edulis), própria da floresta atlântica, de folhas longas e
segmentadas, flores em espigas, frutos pequeninos, drupáceos, e cujo gomo
terminal, longo e macio, constitui o chamado palmito; palmito-juçara, açaí.
2. açaí. [Var.: jiçara.]

Uma vez mais a contribuição da cozinha indígena constitui o léxico da culinária


maranhense, apresentando característica natural sem artifícios do seu cultivo e até a ingestão.
Um ou outro fruto, pela crença popular, não pode e nem deve ser misturado com outro
produto, como juçara com leite, manga com leite, melancia com leite; carnes cozidas com
frutas; carnes com peixes, porque causam indigestão, derrame cerebral, deformidade física.
Não se descartam nessas transmissões de crenças as intervenções dos colonizadores
portugueses no controle da produção de alimentos para efeito de comercialização. De acordo
com Câmara Cascudo, o brasileiro recebeu influências de culturas externas, mas que
realizava a transformações e mudanças dos sabores e fazeres da culinária eram as mulheres,
em especial.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

• Expressões e neologismos, as designações lexicais da culinária

Além da variedade de peixes, caças, angus, frutas, a mandioca continua presente em


proporção maior que qualquer outro alimento na culinária maranhense. É consumida em
forma de subproduto: beijus-sicas, beijus, pés de moleques, bolos de tapioca, caldos, farinha seca,
farinha d’água .

Mesmo sem conhecerem esses subprodutos da mandioca, ficou compreensível para os


alunos que a culinária exerceu e exerce função significativa nas trocas de bens alimentares
entre grupos sociais diferentes. Ao serem solicitados que classificassem as palavras
desconhecidas como expressão e neologismos, os alunos consideraram como expressões a
junção de duas ou mais palavras e neologismos, como usos de palavra ou expressões novas,
ou na atribuição de um novo sentido a uma palavra já existente, (cf. MACEDO, 2012), por
exemplo: [...] quitutes seculares, beijus-sicas, beijus, pés de moleques, bolos de tapioca,
sorvetes especiais de Jussara (açaí), maracujá do mato […].

Outras palavras e expressões ocorrentes na crônica, relacionadas ou não à culinária,


foram destacadas pelos alunos e estão apresentadas por ordem alfabética, não na ordem de
ocorrência no texto:

apregoado [Part. de apregoar] Adj. 1. Publicado ou anunciado por pregão.


2. Proclamado, notório.
Bocas alegres de jovens. Bras. fig. Metonímia, refere-se a parte pelo todo.
desbanque [De des- + banca + que] V.t.d. 1. Ganhar o dinheiro da banca. 2.
Levar vantagem a, vencer; exceder, suplantar...
frigideiras de barro [De frigir + deira] s.f. Utensílio de barro ou de metal,
para frigir, e tb. us. no Brasil, em festas populares, como instrumento de
percussão...
cuia do pobre [Do tupi] s.f. 1. Fruto da cuieira. [...] conteúdo dessa medida
de capacidade para secos;
quitutes regionais [Do quimb. kitutu,] s.m. 1. Angol. Bras. petisco. Bras.
Fig. Meiguices, carinhos, quindins.
pregões de rua [Do lat. Praecone]. s.f. Voz ou pequena melodia, de ritmo
livre, bastante próxima do recitativo musical, e com o qual os vendedores
ambulantes anunciam suas mercadorias.
terra das palmeiras. Bras. A que possui grande quantidade de palmeiras
(...) ou Pindorama.
tortas de camarão [Do lat. tard. Torta, ‘pão redondo’.] s.f. Cul. Espécie de
pastelão doce ou salgado, recheado, com a tampa de massa ou sem ela. Cul.
Bolo (2) de camadas, recheado e em geral com cobertura...

Nesse contexto, foram enfatizadas expressões e neologismos recorrentes da culinária

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

e dos costumes alimentares de alguns sabores maranhenses. Por sua vez, esses sabores são
formas memoriais de como os maranhenses com suas peculiaridades gastronômicas
representam o mundo. Todas as formas e conhecimentos da culinária recebem influências e
transformações em cada contemporaneidade histórica. Dessa forma, Silveira (2004) confirma
que se houver mudança no ponto de vista, haverá mudança na forma de representar os
mesmos fatos.

• Dialética entre o novo e o velho, as instituições de crenças

A sabedoria e a mão de obra feminina, no que diz respeito ao aproveitamento do


açúcar e das frutas nativas, propiciou o surgimento de doces em calda e secos, por exemplo,
caju, mamão, banana, coco, limão, laranjas, manga, bacuri, murici, abricó, fruta-pão, ou seja,
das frutas nativas às oriundas do Velho Mundo. As frutas tropicais passam a ser a base da
culinária da região do açúcar. Na culinária maranhense, as compotas de bananas, mamão
verde, abacaxi, abóbora, goiaba, batata-doce somam-se aos doces da rapadura, pé-de-
moleque, bolo de milho. Surgiram também os doces feitos de massa de frutas que,
inicialmente, eram chamados de marmeladas, depois foram feitos de outras frutas além do
marmelo, de modo que a consistência adquirida pelo doce ficou designado de “marmelada”;
para seduzir (cf. CAMARA, 2004). O consumo de alimentos doces surge o dito popular
“quem nunca comeu melado, quando come se lambuza”, devido ao excesso de consumo do
melado de açúcar.

Resguardados pelos princípios católicos, os portugueses instituíram para os


brasileiros, aqui, em destaque os maranhenses, datas comemorativas, formas de festejos e
culinária especifica para cada evento, como batizado, primeira comunhão, casamento, dia de
reis, Quaresma, Aleluia, Divino Espírito Santo, Santo Antônio, São João e São Pedro, São
Cosme e Damião, Natal, Ano Novo, ritos fúnebres, almoço de São Lázaro. Muitas vezes, os
indígenas seguiam as correntes comemorativas visto serem festivos, mas os africanos
camuflavam suas práticas, abriam picadas na floresta para cumprirem seus cultos, ritos e
devoções para com suas entendidas, santos da terra, d’água, do fogo, do ar, das matas.
Realizavam suas oferendas de comidas, sacrifícios, obrigações; quando possível uniam os
rituais católicos com os africanos.

Não se deve desconsiderar as comidas dos orixás impregnadas de influências


supersticiosas para os observadores, e ritualísticas entre devotos, fieis e seguidores daqueles
preceitos sagrados. Os seguidores de cada orixá têm obrigações com seus protetores
sobrenaturais e, se desobedecem, são ameaçados de castigos, passíveis até de enfermidades
físicas e espirituais.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Apesar de os indígenas se reservarem em suas comunidades, eles são festivos,


festeiros e, para cada tipo de evento comemorativo, há comidas especiais. Sobressaem
pescas, raízes, tubérculos, frutas e frutos. Entre outros fatos, os indígenas festejam
nascimento, mudança corporal dos adolescentes, acasalamento, vida, morte; fenômenos
naturais e sobrenaturais; em época de plantio, cultivo, colheita, armazenamento dançam e
cantam. Vivem coletivamente e têm objetivos, interesses e propósitos comuns e, assim, olham
e observam o que acontece no mundo.

Preceitos da culinária do feijão, farinha e arroz; do intercâmbio de sabores,


condimentos e transformação dos alimentos aos cerimoniais de festas, festejos,
comemorações constroem a culinária maranhense. Além dos comeres, há várias bebidas, a
título de informação, tiquira, refrigerantes – Jesus, Jeneve -, cauim, cajuína, entre outras.

Das festas instituídas pelos portugueses, destacam-se as festas e festejos de Santos e


Santas; dos indígenas, pajelanças, festas comemorativas de toda sorte e viveres; dos
africanos, obrigações com orixás e devoção dos “santos” constituídos ou não no sincretismo,
podendo-se “acender uma vela para Deus e outra para o diabo”.

Conclui-se que a culinária, por estar interligada à natureza e por transformar-se do


sabor ao saber, constitui o aparato para tratar de preferência e de aptidão como instância de
diferença, apreciação de alimentos, história e cultura em sala de aula. Assim sendo, a
culinária rege “gostos”, comportamentos, junção e disjunção de grupos sociais, ou seja, faz
parte diariamente dos acontecimentos sociais dos alunos e requer do professor intermédio de
saberes, conhecimentos que ultrapassam fenômenos linguísticos. Além de que, há inúmeros
materiais para se trabalhar o assuntos em forma de textos, mercados, comércio formal e
informal, composições musicais, DVDs, publicidades entre outros.

Observamos que o tratamento dado ao conteúdo sobre culinária nas aulas PLE
permitiu aos alunos falarem sobre situações do cotidiano deles, de acontecimentos e de
eventos, que, para eles não faziam sentido por falta de conhecimentos histórico-culturais. Em
suma, foram realizadas múltiplas leituras, análises e trocas de saberes sobre pratos quentes,
salgados, doces, bebidas, frutas, raízes, amêndoas, formas de transformar, acompanhar, servir
alimentos desde a natureza às oferendas festivas ou não, de indígenas, africanos e europeus.
Um outro aspecto abordado nas aulas foi relacionado às crenças, manifestações de identidade
cultural dos segredos domésticos imprescindíveis às suas peculiaridades históricas
institucionais, “[...] a nota mais popular da terra das palmeiras; casas ricas da terra, dos nobres da
cidade, como existia, também, na cuia do pobre e era até apregoado nas ruas por negras
respeitáveis” (SERRA, 1965).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

REFERÊNCIAS

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história). Rio de Janeiro. Revan, 2000.
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Soares. Unesco/ISSC/EDUCAM, 1996.
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. 3 ed. São Paulo: Global,
2004.
CASTRO E LIMA, Zelinda Machado. Pecados da gula: comeres e beberes das gentes do
Maranhão. São Luís. CBPC, 1998.
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? 9 ed. Rio de janeiro: Rocco, 1998.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário de Aurélio da língua
portuguesa. 4 ed. Curitiba, Positivo: 2009.
FRIEIRO, Eduardo. Feijão, angu e couve: ensaios sobre a comida dos mineiros. Belo
Horizonte. Atalaia; São Paulo. Ed. da Universidade de São Paulo, 1982.
LANDOWSKI, Eric e FIORIN, José Luiz (eds.). O gosto da gente, o gosto das coisas,
abordagem semiótica. São Paulo: EDUC, 1997.
MACEDO, Walmírio. O livro de semântica: estudo dos signos linguísticos. Rio de Janeiro:
Lexikon, 2012.
NÉLO, Maria José. Marco de cognições sociais e aspectos da identidade cultural do brasileiro
em expressões linguística. São Paulo: Programa de Língua Portuguesa - Dissertação, 2001.
SERRA, Astolfo. Guia histórico e sentimental de São Luís do Maranhão. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira S.A: 1965, p. 187-9.
SILVEIRA, Regina C. Pagliuchi da e NELO, Maria José. Discurso e expressões linguísticas
do português brasileiro: aspectos histórico-culturais nas designações da culinária
brasileira. Taubaté-SP, GEL, 2002.
SILVEIRA, Regina C. Pagliuchi da. Implícitos culturais: ideologia e cultura em expressões
linguísticas do Português brasileiro. In: BASTOS, Neusa Barbosa (Org.). Língua
portuguesa em calidoscópio. São Paulo: EDUC, 2004. (Série Eventos).
VAN DIJK, T. Discourse como Social Interacion, Discourse Studies: a multidiciplinary
introduction. London: Sage Publications, 1997 b. Vol. 2.
______ El discurso como interación en la sociedad. In: El discurso como estrutura y
proceso, estudios sobre o discurso I una introducción multidisciplanaria. VAN DIJK
(comp.) Barcelona, Espanha: Gedisa, 2001. Vol. 2.
______ El discurso como interación en la sociedad. In: El discurso como estrutura y
proceso, estudios sobre o discurso I una introducción multidisciplanaria. VAN DIJK
(comp.) Barcelona, Espanha: Gedisa, 2008. Vol. 1.
______ Discurso e contexto, uma abordagem sociocognitiva. ILARI, Rodolfo (trad.). São
Paulo: Contexto, 2012.

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contemporâneas

http://www.dicio.com.br/culinaria/

ANEXO

Quitutes da cidade

A cozinha da cidade não oferece grandes pratos, nem é rica de variedades. Predomina geralmente a
fartura de pratos à portuguesa. Mas nem por isso, desapareceram de todo os quitutes regionais.
É certo que, nestes tempos, quase ninguém conhece, ali, o decantado “arroz de cuxá”, espécie de angu
feito com especial cuidado e que foi, outrora, o prato mais afamado de S. Luís; arroz de cuxá
imprescindível em todas as mesas; e que era, como o vatapá baiano, a nota mais popular da terra das
palmeiras; casas ricas da terra, dos nobres da cidade, como existia, também, na cuia do pobre e era até
apregoado nas ruas por negras respeitáveis.
Esse arroz, de que Aluísio de Azevedo se serviu para uma nota regionalista no seu “O Mulato”, já não
existe mais! É outra tradição que desapareceu da cidade histórica. Que pena!
De pratos típicos ainda há as “tortas” de camarão feitas em azeite de gergelim, em frigideiras de barro,
com os deliciosos camarões de Alcântara ou Guimarães.
As paneladas são brutalmente indigestas, mas deliciosas a valer; os xambaris, cozidos típicos; as
peixadas de escabeche quente; os leitões de forno. Existem pratos regionais como “casquinhos de
jurarás” (muçuã ou pequenos quelônios), caranguejos de forno, jaçanãs, com arroz.
Em matéria de doces variados é o cardápio. Doces de “bacuri” de “murici”, de “buriti”, de “cupuaçu”.
Cajus-secos, caju em calda.
Quitutes secularmente vencedores como beijus-sicas, beijus, pés-de-moleques, bolos de tapioca.
Sorvetes especiais de Jussara (açaí), de maracujá do mato, de cajazinho. Não é abundante o uso de
doces importados.
Toda casa fabrica seus doces para sobremesa e para as visitas.
E que fartura!
As frutas regionais são variadíssimas. Bananas ótimas, de qualidade e comuns; ananás, abacates,
mamão, araçás, jambos, cajus maduros deliciosos. Mangas admiráveis e jacas tão enormes que dariam
sobremesa para três famílias.
Atas (frutas de conde ou pinha) bem crescidas e doces. Nada há que desbanque o cardápio de frutas,
os saborosíssimos sapotis da cidade, ou as sapotas! São tão perfumadas, tão delicadas ao paladar, que
até parecem um pudim, que Deus miraculosamente fabricasse naquelas terras árvores pejadas de
frutos maduros. O coco de praia é abundante e barato.
Os pregões de rua passam anunciando a fartura da cidade. É tanta fruta regional que não há como
escolher, tal a variedade e a gostosura das mesmas.
Uma fruta é tipicamente solidarista em S. Luís: a melancia. Tempo de melancia é tempo de agradáveis
reuniões em certos bairros.
Numerosas famílias vão, por exemplo, à praia do Caju, somente para comer melancia madura, tão
maduras quanto maravilhosamente doces. Bocas alegres de jovens felizes mergulham nas polpas
vermelhas das melancias na mais popular das gulodices da terra! (SERRA, Astolfo. Guia histórico
e sentimental de São Luís do Maranhão. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira).

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contemporâneas

Com o pé na sala de aula de PLE


Mônica Baêta Neves Pereira Diniz209

Resumo: Este artigo tem por fito falar sobre a importância da prática para uma aula de
português como língua estrangeira, ou seja, o quão significante é que o professor esteja com o
pé na sala de aula de PLE, indo além do ser meramente teórico. O objetivo principal se
mostra nos diversos relatos de experiências docentes em PLE, aclarando-se, de maneira
inconteste, a relevância da experiência em sala de aula de PLE (física ou virtual) para que os
professores em formação possam ser críticos e ter uma visão ampla dos porquês que advêm
de alguns assuntos em sala de aula; para que possam contrapor teorias, possam testá-las e (re/
a)prová-las. A metodologia adotada para a feitura deste trabalho assemelha-se àquela
apresentada por Dell’Isola (1995), tendo-se como sujeitos os professores entrevistados, sendo
o material utilizado um questionário formulado e enviado previamente aos docentes, cuja
tarefa era a leitura e assimilação das perguntas para a entrevista propriamente, a qual se
efetivou por meio eletrônico ou presencial. Procedeu-se à análise e aos comentários do
conjunto de entrevistas, sendo realizada uma discussão ao final. Em Almeida Filho &
Lombello (Orgs.), 1997, surgem os primeiros destaques para os pressupostos do PLE e, mais
recente, em Silva et al, são realçados novos olhares em direção à formação de professores de
línguas, sempre com a preocupação na qualidade do profissional em constante aprendizado.
Resultou da análise de todas as entrevistas concedidas, ratificar a importância do
acompanhamento de alguém mais experiente, logo no início da atuação; o peso positivo da
formação continuada, bem como o quão relevante é o conhecer a cultura do outro, inclusive
para que o docente possa preparar o cotejo entre todas as culturas envolvidas no ensino de
PLE.

Introdução

Seu aluno estrangeiro deixou você numa saia justa? Dê a volta por cima e transforme
a sua dificuldade numa grande oportunidade. Diga: “Você me deixou numa saia justa!”

209
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa INFORTEC-CEFET/MG. Professora Leitora de Português na Pontifícia
Universidade Católica de Santiago-Chile. Contato: c96157089@gmail.com

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Explique o que é saia justa, ou seja, que é uma expressão idiomática e que significa “em uma
situação difícil, complicada, embaraçosa” e que foi o que acabou de lhe acontecer. Aproveite
para falar sobre o vestuário se ainda não deu uma aula sobre o assunto e vá emendando as
informações que julgar pertinentes! Por exemplo, se o seu grupo de alunos é uma turma
homogênea de falantes de espanhol, faça a associação, imediatamente de “embaraço” com
embarazo210 e vá levando, “de boa”, a sua aula. Faça valer o termo “tempestade cerebral 211” e
vá tocando o seu barco, mesmo que em águas turbulentas. Mas ainda tem a pergunta ou
situação que levou você a ficar “numa saia justa”. Se você não sabe, naquele momento, a
resposta, assuma a pesquisa sobre o tema ou assunto e se comprometa a levar a resposta na
próxima aula, mandar por e-mail ou da forma que lhe aprouver. Mas não se sinta
constrangido por não saber responder algo. Jamais.

Sim, é isso mesmo! É assim que acontece dentro de uma sala de aula de PLE. Você
pode até não ter tido esta experiência ainda, mas se está lendo este artigo, pode ser que venha
a passar por ela em breve. Se já teve uma experiência desse naipe está sorrindo e se
lembrando de vários episódios semelhantes. Pois é. O cotidiano em uma sala de aula de PLE
não é fácil, não é simples, mas é extremamente enriquecedor e constrói um professor crítico e
inovador, ademais de possibilitar um testar constante de nossa própria cultura e, às vezes, um
gostinho bom da cultura alheia, como ocorre de forma mais acentuada, nos casos de
leitorado.

Este singelo artigo tem por fito falar sobre a importância da prática real e verdadeira
em sala de aula para que o professor de PLE seja prático, além de teórico. Não basta discutir
temas de relevância na área de docência de PLE, como por exemplo, saber que é também
designado PLA desde o expresso por Schlatter & Garcez (2009, pág. 128)212, conforme vem
citado na apresentação do livro Português como Língua Adicional: reflexões para a prática
docente, organizado por Schoffen, Kunrath, Andrighetti e Santos (2012), terminologia
questionada diretamente por expert da área de PLE em palestra virtual, proferida em
novembro de 2014 aos estudantes de pós-graduação na área de Letras do CEFET-MG, mas

210 Gravidez.

211Do inglês brainstorming , a tempestade cerebral é um método criado nos Estados Unidos, pelo
publicitário Alex Osborn, usado para testar e explorar a capacidade criativa de indivíduos ou grupos, principal-
mente nas áreas de relações humanas, dinâmicas de grupo, publicidade e propaganda. Disponível em: <http://
www.significados.com.br/brainstorming/>. Acesso em: mar. 2016.
212Apresentação do livro: Português como Língua Adicional: reflexões para a prática docente, organizado por
SCHOFFEN, KUNRATH, ANDRIGHETTI e SANTOS (2012) “...o reconhecimento de que no Brasil se falam
outras línguas, como nas comunidades surdas, indígenas, de imigrantes e descendentes de imigrantes, possibilita
entender o português como um acréscimo à(s) língua(s) que esses indivíduos já falam. Em todas essas situações,
o português não será necessariamente ‘língua estrangeira’, mas sim estará entre as “línguas adicionais, úteis e
necessárias” para a cidadania contemporânea (SCHLATTER e GARCEZ, 2009, p. 128). Respondendo a esse
redimensionamento do status da língua portuguesa na atualidade, referimo-nos aqui ao ensino de Português
como Língua Adicional (PLA), e não mais Português como Língua Estrangeira.”

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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saber que um grupo heterogêneo tem que ter uma mirada diferente do professor quando em
sala de aula e que mesmo sabendo inglês, espanhol ou francês escorreitos, se tiver alunos que
não dominam tais idiomas, não deverá privilegiar o uso de nenhum deles, pois estará
excluindo seu aluno não anglófono, não hispano-falante, não francófono etc.

Mas voltando lá ao início, quando daquela pergunta que deixou você numa saia justa.
Foi uma pergunta constrangedora? Algo que tenha peias culturais, sociais ou algo que o
valha? Nada melhor que ser diret@ nesse tipo de situação. Exemplifico: alun@ lhe perguntou
o significado de algum palavrão (palavra de baixo calão), daquelas bem “cabeludas”? Você
pode, de acordo com sua vontade, disposição, conhecimento do termo, dentre outras
possibilidades, responder diretamente seu/sua alun@; indicar-lhe o dicionário do palavrão213
ou, se não lhe ocorrer, de imediato essa preciosa dica, dizer ao discente que vá ao estádio de
futebol e participe, efetivamente, de uma torcida de algum time bem relevante naquela cidade
e, claro, que faça amizade com brasileiros, que eles poderão ensinar, rapidinho, não apenas
esse palavrão que ele/ela deseja saber o significado, mas vários outros. Que você,
professor@, por questões religiosas, por pudor, por vergonha, por constrangimento, por
desconhecimento (ou qualquer motivo que não esteja explicitado), irá deixar por conta d@
discente, pesquisar a respeito e, inclusive, deixe-@ à vontade para repassar a informação para
os colegas de classe, colocando seu aprendiz na posição de alguém que ensina. Dê-lhe
autonomia e faça-@ sentir na pele o que é ser professor, permitindo-lhe assumir esse papel
em algumas classes. Com isso, estará possibilitando a esse/a aprendiz da língua-cultura do
outro, a oportunidade de assumir o seu papel de docente e, quem sabe, isso possa despertá-l@
para algo que ainda não valorizou?

Seguindo com o objetivo maior nestas palavras que se pautam em diversos relatos de
experiências docentes em PLE, desejo aclarar de maneira inconteste, a importância da
experiência em sala de aula de PLE para que os professores em formação possam ser críticos/
reflexivos e que tenham uma visão ampla dos porquês que advêm de alguns assuntos em sala
de aula, para que tais professores, mesmo que inexperientes, possam contrapor teorias,
possam testá-las e (re/a)prová-las.

É interessante ouvir alguns pesquisadores dizendo que têm pânico de sala de aula. Por
quê? Alun@ já lhe mordeu? Alun@ já o expulsou da sala de aula? Alun@ já jogou ovo podre
em você? Alun@ já o criticou? Mesmo que uma ou várias dessas situações já tenham lhe
ocorrido, nada é mais fortalecedor do que a superação dos obstáculos e a certeza de que os
alunos que mais contestam, são por vezes os mais interessados e, quiçá, a forma de

213 MAIOR, Mário Souto. Dicionário do palavrão e termos afins. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2010.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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participação eleita tenha sido exatamente a que menos lhe convém como professor@. São os
percalços ou desafios de uma profissão árdua e, infelizmente, mal remunerada.

Mas não é para falar da precariedade salarial que me propus a escrever este artigo. O
escopo deste trabalho é destacar o quão relevante é a presença do docente de PLE(PLA) na
sala de aula afim, não apenas como teórico das realidades cotidianas, mas como um ser que
põe seus pés na sala de aula, que dá a sua cara a tapa, que assume seu papel.

Exatamente por isso, busquei dentre os pares, tanto nacionais quanto estrangeiros, ora
em contexto de imersão e ora em contexto de não imersão, por meio de entrevistas
espontâneas a partir de um questionário por todos respondido, formar um corpus significativo
e por meio do qual eu pudesse ter um perfil do quão importante é o início dessa tão
dignificante quanto árdua carreira: a de professor de PLE(PLA).

O corpus que compõe este trabalho nasceu do convite feito a 24 professores


(registrando-se uma recusa), de (e em) diferentes lugares (país e ou instituição), faixa etária a
partir de 22 anos, indo até acima de 50 anos, de ambos os sexos, sendo 4 do sexo masculino,
cada docente estando numa determinada fase de atuação na área afim, no Brasil ou no
exterior.

Metodologia

A metodologia adotada neste trabalho assemelha-se àquela apresentada por Dell’Isola


(1995), tendo-se como sujeitos 23 professores entrevistados, dos quais 4 do sexo masculino,
conforme citado anteriormente. Para o conjunto de entrevistados adoto a seguinte
terminologia: docente falante nativo (DFN), docente estrangeiro (DE), em contexto de
imersão (CI) e em contexto de não imersão (CNI), de acordo com os respectivos
enquadramentos; o roteiro da entrevista foi um questionário formulado e enviado
previamente aos docentes, que tiveram como tarefa a leitura e assimilação das perguntas para
a entrevista propriamente, a qual se efetivou por meio eletrônico – WhatsApp (15) ou
presencial (8), estes últimos em Santiago-Chile, local onde me encontro como leitora na
Pontifícia Universidade Católica, para o biênio 2015-2016.

Citado questionário (ANEXO 1), foi composto por uma típica estrutura de inserção no
contexto do ensino, com o quando, como e onde; ademais, pautou-se na preocupação com a
formação precípua para a docência em apreço: se ela se efetivou academicamente, em curso
específico, na graduação ou não; enfim, como ela se deu. Foram buscadas informações acerca
da experiência primeira e como ela se concretizou e o quão importante foi para cada
entrevistad@.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Questionário

Composto de uma abertura, os “Cumprimentos”, 11 (onze) perguntas e um


fechamento “Agradecimentos”, o roteiro norteador da entrevista realizada com os 23
docentes foi composto da forma como se vê no ANEXO 1.

A entrega do questionário foi efetivada tão logo recebido o aceite do convite à


entrevista, visando, principalmente, que aquel@ que fosse ser submetid@ à entrevista, tivesse
a oportunidade antecipada de contato com o conteúdo das perguntas, podendo se preparar
para respondê-las.

Procedeu-se à análise e aos comentários do conjunto de entrevistas, sendo realizada


uma discussão ao final.

Docentes entrevistados

O corpus é composto conforme explicitado na metodologia. Há tanto docentes


falantes nativos da língua portuguesa, quanto estrangeiros, dentre os quais se registram
falantes de espanhol e de francês, como língua materna (LM). Em quaisquer dos casos, tem-
se o ensino voltado ao PLE(PLA). Dentre os entrevistados há nacionais e estrangeiros quase
todos (ainda) realizando cotidianamente a prática de docente na área de PLE.
O quadro a seguir dá uma visão do perfil dos entrevistados ECI ou ECNI, associando-
os, simultaneamente, como DFN ou DE.

Quadro 1 – Perfil dos entrevistados

Entrevistados DFN DE CI CNI Entrevistados DFN DE CI CNI

(E1Fe) X X (E9Ra) X X

(E2Le) X X (E10Pa) X X

(E3He) X X (E11Na) X X

(E4Is) X X (E12Va) X X

(E5Li) X X (E13Id) X X

(E6Iz) X X (E14Au) X X

(E7Gl) X X (E15Ya) X X

(E8Br) X X (E16AP) X X

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Entrevistados DFN DE CI CNI

(E17AL) X X

(E18MC) X X

(E19Da) X X

(E20AE) X X

(E21Ca) X X

(E22Ma) X X

(E23Mi) X X

Resultados

Dos 23 entrevistados, apenas 3 são falantes não nativos (citados, neste trabalho, como
estrangeiros), sendo 20, portanto, falantes nativos. Dos 3 citados, apenas um em contexto de
imersão; os outros dois em contexto de não imersão, ou seja, em Santiago-Chile. E, dentre os
20 brasileiros (FN), metade, à época da entrevista, em contexto de imersão; demais,
espalhados pelo mundo.

As sinopses das respostas que foram dadas pelos 23 entrevistados estão no ANEXO 2.
E, embora se trate de sinopse, cada resposta que é apresentada tenta ser o mais fidedigna
possível, centrando-se, a cada pergunta, no cerne daquilo que foi respondido pelos docentes
informantes.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Para a primeira pergunta feita, tem-se que a maioria está atuando diretamente na
docência de PLE, especificamente em sala de aula, junto aos estrangeiros, havendo alguns
entrevistados que já se encontram em fase de formação de novos docentes. Quanto ao tempo
dedicado à prática em apreço, pode-se dizer que há uma tripartição do grupo, havendo uma
parte que atua há cerca de 30 anos (ou algo em torno disso); um grupo está na docência de
PLE há aproximadamente 20 anos (ou quase isso); e, por fim, uma expressiva quantidade está
há menos tempo na docência, isto é, nos últimos 4 anos, ou por volta disso.

As experiências relatadas foram as mais variadas, perpassando aspectos culturais,


linguísticos e, inclusive, abrangendo as dificuldades pessoais de adaptação à nova realidade
que era vivenciada em uma sala de aula na qual a língua materna estava sendo ensinada como
uma língua estrangeira. Sugiro uma leitura das sinopses, por ser um tópico muito
significativo das experiências pessoais.

A terceira pergunta do questionário/roteiro encontrou eco naquilo que já estava


previsto, embora pudesse haver surpresas, estas não se concretizaram: nenhum dos 23
entrevistados fez um curso específico, no âmbito da formação acadêmica para ser professor@
de PLE. O que foi observado é que o corpo docente que compõe o corpus desta pesquisa é de
pessoas que fizeram, em sua maioria, o curso de Letras, licenciatura, sobretudo, mas para o
ensino de outras línguas estrangeiras, quais sejam, o espanhol, o inglês ou o italiano; ou,
então, o português, porém como licenciatura para o ensino como língua materna. Também
registradas aquelas pessoas que têm licenciatura, porém não na área de ensino de língua(s).

A questão do estágio acadêmico encontrou respaldo nos tradicionais estágios


acadêmicos dos cursos de licenciatura e, de forma bastante expressiva, o Centro de Extensão,
atrelado à Faculdade de Letras, a partir do momento em que é o setor responsável pela
seleção e contratação de professores-aprendizes para o ensino de PLE, sendo que todos
aqueles que passaram por tal experiência, consideram-na de grande relevância em sua
iniciação na docência afim, alguns citando-a como sendo o estágio profissionalizante que
pôde realizar e que @ preparou para a função precípua.

Quanto ao quesito quinto, que versa sobre oportunizar aos neófitos o saber-fazer a
partir da experiência do outro, apenas 10 dos 23 entrevistados tiveram essa possibilidade,
sendo que uma das pessoas o fez voluntariamente, pedindo para ser ouvinte em sala de aula
onde se ensinava o PLE, antes de vir para o Chile, por já alimentar o desejo de ministrar aulas
dessa natureza. Alguns ressaltaram que o acompanhamento se deu em relação às aulas dos
estagiários que haviam chegado na seleção anterior do CENEX e, portanto, eram professores
nem tão experientes assim…

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A solicitação de que fosse(m) relatada(s) dificuldade(s) que pudesse(m) haver sentido


no início da docência e de que natureza foi(foram), encontrou apenas dois entrevistados que
não as tinham a relatar. Vinte e um entrevistados relataram dificuldades de toda ordem,
inclusive a de reconhecer encontrar-se em uma. Vários citaram os aspectos práticos de
seleção de material, de conteúdo, dentre outros. Sugiro uma leitura acurada da resposta a essa
pergunta no ANEXO 2.

Houve praticamente um consenso para o tópico 7 do questionário/roteiro quanto à


dupla teoria e prática serem um par que deve caminhar junto na formação e atividade
docentes, embora tenha havido uma resposta que sugeriu ter que saber primeiro o tipo de saia
justa, apontando para uma indecisão entre ambas, ou seja, preferiu um “depende”; apenas
uma pessoa entrevistada apontou para a prática como mais importante que a teoria. Dentre os
23 entrevistados, portanto, 21 apostam na combinação e utilização em sintonia: teoria e
prática no ensino de PLE.

A satisfação com a atuação docente no início da carreira encontra ressonância em 8


dos entrevistados, ficando 15 na categoria dos insatisfeitos, alguns chegando a expressar que
a insatisfação é uma constante e que faz parte da autocrítica docente. O (não) preparo no
início foi o elemento crucial para gerar essa (in)satisfação, conforme se pode depreender com
uma leitura mais detida das sinopses que representam as respostas no ANEXO 2.

Todos creem na importância do conhecimento da própria cultura como sendo um fator


importante no ensino de língua-cultura, considerando esse novo par dentro do ensino de PLE,
como algo único e uníssono e, acrescentaram que também o conhecimento da cultura do
outro e o reconhecimento da intercultura são elementos com os quais deve saber lidar (e bem)
um@ profissional hábil na área.

Quanto à formação, embora dentre os entrevistados haja egressos de instituições


brasileiras que têm o curso específico de formação docente para o ensino de PLE(PLA), quais
sejam, UnB e UFBA, ainda assim, o corpus não contempla ninguém que tenha tido essa
formação precípua, verdadeiro privilégio e, em sua maioria, vê-se, por interesse próprio e
visando o crescimento na carreira, uma constante busca de formação, tanto através de cursos
rápidos, normalmente ofertados pelos Centros de Extensão, dentro das instituições que atuam
com estrangeiros, de maneira geral, mostrando-se como cursos de capacitação em PLE
propriamente; quanto participando de Congressos, fazendo disciplinas onde quer que sejam
ofertadas, enfim, tentando uma capacitação que venha a suprir a lacuna que há quando não
foi possível uma formação afim para o ensino de PLE.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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A última pergunta do questionário/roteiro montado para se descortinar um pouco


desse mundo onde há tanto interesse em continuar atuando e melhorando, justifica o título
deste artigo e foi com grande satisfação que vi o quanto de amor há na prática cotidiana de
todos aqueles que seguem engajados e, até mesmo aqueles que não mais estão atuando,
diretamente, demonstraram a paixão por aquilo que fizeram (fazem) e, sem dúvida, é o que
traz o brilho nos olhos de cada um de nós, quando recebemos termos e expressões de
verdadeiro amor pela prática do ensino do PLE, conforme poderá ser descortinado, no item a
seguir.

Discussões finais

Este trabalho foi direcionado à busca de se realçar o início da carreira do profissional


do ensino do PLE, como já explicitado. Os problemas que puderam ser detectados, os relatos
que surgiram, as paixões que são ardentes e as experiências únicas, foram a grande colheita
com a qual pude me deleitar.

Essa preocupação com o início da docência na área de PLE (ou PLA, terminologia
que vem sendo adotada em algumas instituições e foi ouvida em algumas entrevistas) é
visando, primordialmente, realçar a necessidade ímpar que há de que se criem com a maior
brevidade possível, cursos específicos, tanto no Brasil quanto no exterior, os quais visem
sobretudo formar e capacitar professores na área em apreço, pois acredita-se que não haja
cursos em quantidade suficiente – frente à demanda – e que a prática acaba por “empurrar” os
docentes para a frente e estes, por si mesmos, tentam capacitar-se da melhor forma possível,
realizando o que popularmente corresponde ao “correr atrás”. O ideal, entende-se, é que haja
formação afim, que o profissional possa ser preparado especificamente para a docência de
PLE, que o docente saiba onde está e o que deverá fazer; que o docente não seja relegado a
um plano de “se vira”: antes, durante e após a sua aula. O famoso: faça o que puder, que
depois os problemas que surgirem serão resolvidos.

Inegável a importância crucial no início da atividade daqueles que um dia eram


aprendizes nessa arte de ensinar, do espaço destinado à preparação, conformado sob o nome
de Centro de Extensão da Faculdade de Letras, sobretudo e principalmente, na UFMG,
quando da seleção para o ensino de PLE, posto que veio a configurar como sendo o momento
de formação que é inolvidável, mesmo para aqueles que já têm mais de 20 anos na docência.
De enorme relevância também a coordenação e o constante acompanhamento daqueles que
estão por detrás dessa seleção dos novos e futuros atuantes no ensino de PLE, os que neste
trabalho são chamados de experts, os quais, na constância das reuniões e das boas
orientações, acabam favorecendo o surgimento/o aflorar de professores com capacidade de
refletir sobre o próprio percurso, sobre sua prática cotidiana e aptos, na sequência de sua

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

formação continuada, como bem o destaca entrevistad@ 16, ao relatar sobre esse momento
da formação, a capacitarem os novos docentes que chegam: é muito legal perceber que hoje,
está na posição já de poder ajudar aos que estão começando, pois passou a integrar o grupo
dos mais experientes. Ressalte-se, isso em tão somente 4 anos de prática docente, o que
mostra que estão trilhando o caminho certo ao manterem a coesão desse grupo de PLA junto
a essa instituição, da forma como o fazem.

É bem verdade, conforme ressaltam Brenneisen & Tarini (2008, pág. 90), que os
conteúdos programáticos, as metodologias de ensino e as avaliações são as mesmas, mas os
alunos são diferentes e é exatamente aí que acredito residir o grande diferencial de se ensinar
o PLE, pois sempre e constantemente serão diferentes de cada um de nós, em relação à nossa
cultura brasileira, além de nos incitarem a aprender, o que alcançamos ao buscar conhecer a
cultura de cada discente a cada nova turma, seja ela um grupo homogêneo ou não, em
contexto de imersão ou não. Estando eles (alunos) em uma sala de aula do tipo auditório com
300 alunos, como nos preparatórios para a participação do Programa Mais Médicos, antes de
eles irem para o Brasil, ou estando num curso quase particular, com 4 alunos tão somente,
sempre configurarão um constante desafio para que busquemos um entre-lugar que conforme
uma intercultura, que não nos mold, mas nos refaça, renove a cada novo dia de aula.

Como bem nominou entrevistad@ 11, esse caldeirão cultural é real e torna a poção
mágica do ensinar, nessa caixinha mágica, como denominou o espaço da sala de aula
entrevistad@ 22, nosso alimento, eternos magos da nossa própria cultura.

Em se tratando de teoria e prática, elementos tão coesos e tão relevantes no trabalho


em apreço, de grande relevância que se aproximem, que possam estar no mesmo diapasão.
Para informar-se mais e melhor a respeito dessa sintonia entre ambas, imprescindível a leitura
de Micoli (2013), pois a autora discorre de uma forma agradável e de fácil compreensão
sobre essa aproximação para os professores de línguas estrangeiras, ou seja, ler este livro é
estar com a faca e o queijo na mão, prática que nós mineiros não dispensamos, seja em seu
sentido literal ou não.

Também trazida à tona a cultura do ensinar e do aprender que podem se chocar


quando se tratar de culturas diferentes em convívio, pois é preciso lembrar que uma
aquisição é uma modificação da conduta do sujeito, que manifesta a adaptação a uma forma
de necessidade, como bem o aponta Martinez (2009, pág. 34).

Para Mendes (2011, pág. 145), em uma perspectiva dialógica, centrada nas relações
interculturais, as experiências de ensinar e aprender pressupõem um constante ir e vir entre
teoria e prática, entre fazer e desfazer, entre construir, desconstruir e reconstruir

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

significados, o que, por conseguinte, corrobora as respostas de cada docente entrevistad@,


sobretudo quando responderam à sétima e à nona perguntas do questionário/roteiro.

Resultou da análise de todas as entrevistas concedidas, ratificar a importância do


acompanhamento de alguém mais experiente, logo no início da atuação; o peso positivo da
formação continuada, bem como o quão relevante é o conhecer a cultura do outro, inclusive
para que o docente possa preparar o cotejo entre (todas) as culturas envolvidas no ensino de
PLE.

É imprescindível que não se perca de vista em nossa atuação, como bem o lembrou
entrevistad@ 4, como sendo algo que é preciso que se resgate, é que o foco do nosso
trabalho é o aluno, no que encontrou eco em palavras d@ entrevistad@ 22, que disse que ter
o pé na sala de aula de PLE significa ter compromisso com o aprendiz.

Em sala de aula é de fazer o brilho nos olhos se intensificar, quando um aluno do nível
básico, depois de uma semana de aula, apenas – para a qual costuma chegar sem nenhum
conhecimento da língua-alvo – consegue expressar seu sentimento em relação ao docente que
lhe ensina cotidianamente, em relação à própria cultura, na mescla com a cultura do outro e
até surpreender com o grau de sofisticação que alcança gradativamente e, inclusive, com as
possibilidades que traça para a própria vida, como estrangeiro, a partir do momento em que
se dá conta de que é detentor de um conhecimento além do meramente textual; é
simplesmente incrível e vale a pena o desafio de se tentar superar todos e quaisquer
obstáculos que porventura surjam.

Resta-me, face à impossibilidade neste trabalho acadêmico de me estender um pouco


mais, agradecer e, sobretudo, parabenizar àqueles que, embora não integrem em sua
formação inicial a licenciatura em português ou em uma língua estrangeira, ainda assim, com
a incessante busca do aperfeiçoar-se, com o bem-fazer e o bem-cumprir, pautado, muitas
vezes nos modelos que encontrou enquanto discente, bem como na autocrítica, alcançaram a
excelência em seus resultados, comprovadamente estampado no sucesso de seus aprendizes.

Finalizo com uma fala da educadora Rita Pierson, bastante significativa para todos
nós, a qual expressa a esperança naquilo em que muitos de nós investimos toda nossa vida: Is
this job tough?You betcha. Oh God, you betcha. But it is not impossible. We can do this.
We’re educators. We’re born to make a difference.

Referências

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

ALMEIDA FILHO, J.C.P.; LOMBELLO, L. C. (Orgs.) O ensino de português para


estrangeiros: pressupostos para o planejamento de cursos e elaboração de materiais. 2.ed.
Campinas, SP: Pontes, 1997.
BRENNEISEN, Eliane; TARINI, Ana Maria de F. L. Identidade, diferença e pluralidade: um
olhar para a sala de aula. Linguagem & Ensino, vol. 11, n. 1, jan./jun., p. 81-99, 2008.
DELL’ISOLA, R. L.P. O efeito das perguntas para estudo de texto na compreensão da leitura.
Cadernos de pesquisa. Belo Horizonte. NaPq/FALE/UFMG. Número 23. Março. 1995.
ENTREVISTA: Rita Pierson. Disponível em: <http://www.ted.com/talks/
rita_pierson_every_kid_needs_a_champion#t-22287> Acesso em: ago. 2016.

MARTINEZ, Pierre. Didática de línguas estrangeiras. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
Trad. Marco Marcionilo.
MENDES, Edleise. Diálogos interculturais: ensino e formação em português língua
estrangeira. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011.
MICCOLI, Laura. Aproximando teoria e prática para professores de línguas
estrangeiras. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2013.
SILVA, K. A. et al. (Orgs.). A formação de professores de línguas: novos olhares. Coleção:
Novas Perspectivas em Linguística Aplicada. Campinas, SP: Pontes Editores. Vol. I, 2011 e
vol. II, 2012.


SCHOFFEN, J. R. et al. (Orgs.) Português como língua adicional: reflexões para a prática
docente. Porto Alegre: Bem Brasil, 2012.

ANEXO 1 – QUESTIONÁRIO/ROTEIRO DA ENTREVISTA SOBRE O INÍCIO DA


SUA ATUAÇÃO NA ÁREA DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA –
PLE
Entrevistadora: Mônica Baêta Neves Pereira Diniz
Entrevistado(a):

Cumprimentos...

1) Atualmente, você é professor(a) de PLE? Se, sim, há quanto tempo? Se não, você dá
aula de quê?
2) Conte alguma experiência de quando você começou a trabalhar em uma sala de aula
(ou espaço assemelhado – caso das aulas virtuais) para ensinar PLE.
3) Você teve uma formação acadêmica para ensinar PLE? Se, sim, que tipo de curso fre-
quentou?
4) Você teve algum estágio acadêmico? Se, sim, quantas horas de estágio? Ou profission-
alizante? Se, sim, por quanto tempo?
5) Você teve a oportunidade de acompanhar algum(a) professor(a) mais experiente antes
de você adentrar a uma sala de aula para a docência sozinho(a)? Conte como foi.
6) Você pode relatar alguma dificuldade que sentiu no início de sua experiência em sala de
aula? Se, sim, de que natureza foi?

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

7) Na sua opinião, o que é mais importante para resolver uma dificuldade (ou uma “saia
justa”) em sala de aula: teoria ou prática? Você acredita que a teoria é suficiente para aten-
der e resolver um problema em sala de aula?
8) Você se sente (ou se sentiu) satisfeito(a) com sua atuação em sala de aula no início da
docência na área de PLE? Justifique.
9) Como o conhecimento da cultura do povo brasileiro pode ser fundamental para ser
um(a) bom(boa) professor(a)? Se não acreditar que esse conhecimento seja importante,
justifique o porquê.
10) Faz ou fez durante algum tempo cursos para se capacitar como professor(a) de PLE?
Que tipo de curso? De curta duração? De aperfeiçoamento? De longa duração – uma pós-
graduação?
11) Você conhece a expressão “ter o pé”? Por exemplo, Fulano tem o pé na agricultura
(significa que Fulano está envolvido integralmente, está imerso no tema, no assunto. Está
dentro; integra; participa) Para você, o que significa ter o pé na sala de aula de PLE?

Agradecimentos...

ANEXO 2 – SINOPSE DAS RESPOSTAS DOS ENTREVISTADOS

Entrevistados (E1F (E2L (E3H (E4Is


e) e) e) )
Perguntas

1 Na CTPS: Formou em 99, na Sim, é professor@ de A primeira experiência com


revisora de UFJF, indo em 2000 PLE(PLA) desde 2005, PLE foi em 2006. Mas não
texto em colé- pra BH, quando co- portanto, há 11 anos. trabalhou o tempo todo até seu
meçou a dar aula de
gio de Ensino atual leitorado, com o PLE.
italiano e, por isso
Médio. No mesmo, pelo contato Em 2009 retornou, após ter
primeiro semes- profissional em em- trabalhado um tempo com
tre é a respon- presas como a FIAT, Literatura.
sável por um surgiu a oportunidade
grupo de es- de dar aulas de portu-
trangeiros guês para alunos
intercambistas italianos. Depois
disso, em 2012, entrou
dessa escola. E
para o CENEX, per-
no CEFET manecendo por 3
também dá aula anos. Agora está na
de PLE e aulas Coreia do Sul dando
de formação aula de português em
para futuros uma universidade,
docentes. Co- desde fevereiro/2015.
meçou em
2010, como
leitora, no Peru.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

2 Chegou meio Em 2012 foi quando Um dos primeiros trabalhos Fez graduação na UnB. À época
d e “ p a r a q u e- começou propria- finais que fez com uma ficou tentad@ a integrar o grupo
das” no Peru. mente a atuar em turma bem heterogênea, de PLE, mas se licenciou em
No edital que sala de aula de PLE. versava sobre cultura; a espanhol e começou logo em
seguida o mestrado e depois
buscava profes- Antes, sua experiên- partir daí acredita advir seu
passou num concurso numa
sor@ para cia era com o italiano interesse pela área. A per- universidade no Ceará e, com
trabalhar no e em caráter particu- gunta desse trabalho que deu isso, morreu o interesse pelo
Peru dizia lar é que ensinava muito certo, foi parar em sua PLE por algum tempo. Quando
professor@ de português, mas para dissertação e era algo que se teve os primeiros contatos com o
Literatura e só grupos homogêneos. assemelha a: “O que faz o PLE levou muito em conta a
quando chegou No começo, no Brasil, Brasil? E quais as experiência pretérita que @
foi que desco- CENEX, começou (des)semelhanças entre a formara como docente, oportu -
nidade em que pôde, de fato,
briu que seriam com turmas mistas. própria cultura e a do lugar
saber o que é ser professor@. A
aulas de PLE. Foi bem diferente; onde estava em imersão Escola Normal (que forma
Dava aula antes foi desafiador e, com (BH)?” Normalista) mostrou-lhe o
de LM. Foi uma o passar do tempo, ofício, a arte de ensinar.
experiência pode dizer que foi
interessante. No prazeroso.
final, os alunos
organizaram um
festival de
cinema, do que
f o i e x p e c t a-
dor@, apenas.
3 Formação pela Não teve formação Sim, porque passou na Já havia dado aula de portu-
PUC. Habili- acadêmica para ensi- seleção do CENEX, tendo se guês como LM e inglês/espan-
tação: português- nar português como formado para iniciar na hol, aquele com possibilidade
língua estrangeira.
inglês e total- docência da área. O curso de ensinar e, este, estágio
Formou- se em Letras
mente voltada com habilitação em foi ministrado por quem à universitário.
para Literatura. italiano. Em sua época coordenava. O curso
instituição de gra- finalizou com uma aula que
duação tinha uma cada um tinha que dar.
disciplina de PLE, Durante esse curso leu textos
ministrada para doente teóricos e conheceu LDs da
da Linguística. Já área. Também fez, à época,
achava interessante,
uma capacitação para aplicar
mas não se integrou ao
grupo; ficou no ita- o Celpe-Bras. Assistia às
liano. Quando surgiu a aulas dos professores que já
oportunidade, poste- estavam há mais tempo na
riormente, foi que área.
voltou seu interesse
pelo PLE.

4 Estágio em PLE, Na área de PLE, não. O período que permaneceu Estágio universitário para a
NÃO. Procurou no CENEX: de 2005 a 2008, licenciatura em espanhol.
ajuda no Centro considera que lhe valeu
Cultural Brasil-
como estágio profissionali-
Peru, para se
inteirar do que zante.
era PLE. Em
seguida, passou a
integrar o grupo
de estudos do-
centes dali, que
se reunia todas
as sextas-feiras,
pela manhã. A
p r i n c í p i o , foi
e s s a s u a f o r-
mação/estágio na
área e, depois,
acredita que a
intuição ajudou

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

5 Antes de chegar Também não. Quan- Sim, como já respondeu em 3. Não, não acompanhou nen-
ao Peru, em do entrou para o Os acompanhamentos que fez hum@ professor@ mais expe-
maio/2010, mestrado, surgiu a foram muito úteis porque eram riente, quando iniciou com o
didáticas distintas: uma muito
nunca tinha oportunidade de PLE.
expositiva (estruturalista) e
nem ouvido começar a trabalhar outra mais comunicativa. Esta,
falar de PLE. A no CENEX, reali- fazia adaptações à realidade de
partir de junho zando-se trocas e inserção dos alunos, para
daquele ano discussões entre os contextualizar temática do LD.
teve a oportuni- próprios professores, O bom foi pegar o que de
dade de acom- sem que tenha tido a melhor havia em cada didática
panhar algumas possibilidade de de cada docente mais expe-
riente acompanhad@.
aulas de alguns assistir a alguma aula
professores no de professor@ mais
Centro Cultural experiente.
Brasil-Peru.

6 No início foram A maior dificuldade Era muito envolvid@ com a No Ceará, quando lhe surgi-
várias dificulda- foi ser professor de um língua inglesa. Seu primeiro ram as primeiras oportunida-
des. Não sabia grupo heterogêneo, já semestre, falava inglês des de ensinar PLE, as maiores
nem o que sele- que sua experiência
demais na sala e seus alunos dificuldades foram em relação
cionar para dar até então era com um
suas aulas. Co- grupo homogêneo de LM inglesa adoravam. à seleção de MD. Acredita que
meçou a seguir o específico: falantes de No início tinha dificuldade suas experiências docentes
que lhe indica- italiano. Fazia trabalho em usar o português; acredi- anteriores ajudaram muito.
vam, mas depois contrastivo português ta que por influência da Teve que encontrar formas de
seu senso crítico x italiano, por ser língua inglesa em sua vida ensinar o português não como
começou a ajudar profund@ conhece- profissional e acadêmica LM, mas como LE.
e deixou algumas dor@ dessa língua e, também (sua habilitação é
coisas que não por vezes, partir do
inglês).
funcionavam alunado esse interesse
bem, de lado, pelo contraste. Então
passando a criar. se deu conta que teria
Pode dizer que que usar outros recur-
sua maior difi- sos; que não daria
culdade foi com certo da mesma
MD. Além disso, forma.
teve turma muito
heterogênea
quanto ao nível
de conhecimento
e com 70 alunos.

7 Hoje, pode Só a teoria não basta; Mais a prática. Acha que A experiência de ter sido alun@
dizer que tem prática e teoria se além da “saia justa”, amplia- na Escola Normal prova a impor-
mais embasa- complementam, na ria para a interculturalidade, tância da prática. Nenhuma
teoria dá conta sozinha, mas é
mento teórico. verdade. Mas a que é um conflito negociável
louvável que não se prescinda
No início não prática é, sem dúvi- (algo “líquido”, movimen- dela também. Algo que é preciso
tinha noção de da, muito importante tando-se num entre-lugar). A que se resgate, é que o foco do
nada; tudo era porque é quando se teoria certamente ajuda nosso trabalho é o aluno. Algu-
voltado à práti- começa a entender muito, entendendo que mas fidelidades teóricas às vezes
ca. Acredita que que nem tudo fun- andam juntas. Diria que a podem ter consequências preo-
tudo colabora: ciona do mesmo prática tem um papel pre- cupantes para o processo de
teoria/prática e jeito, em todas as ponderante. A teoria sozinha ensino/aprendizagem, porque na
verdade, nenhuma teoria dá
até a forcinha turmas. O docente não dá conta. É bom enfren-
conta da realidade como um
da intuição. tem que mudar, que tar conflitos, na prática, com todo. Cada teoria aporta um
Ta m b é m é se adaptar mesmo. algum conhecimento teóri- pouquinho de contribuição para
importante e Através da prática se co). as dificuldades que são sempre
ajuda muito um tem a oportunidade novas. Parece também que é
curso de capaci- d e v i v e n c i a r s i- fundamental na formação do
tação, um es- tuações por isso é professor de PLE ter a perspecti-
paço para dis- fundamental. va do observador que vai apren-
dendo a partir das dificuldades
cussão na área.
que vão se colocando. E um
Discussão e outro ponto é a habilidade de
reflexão em transposição didática que leva
conjunto com a um certo tempo para que surja.
prática, resu- Não são todos que, partindo da
mindo. teoria, conseguem lhe dar uma
aplicação prática. Que corporifi-
quem as teorias na prática. As
referências como alun@ também
foram muito importantes na

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

8 No início, até No comecinho, Sim. Chegou a ser elogiad@ Não se sentia no início e não se
começar a estu- período de adap- por docente mais experiente sente agora. Todos os dias
dar melhor, até tação, não. Se cobra- que acompanhava suas encontra desafios diferentes
que pode dizer va muito, pensava primeiras aulas. para os quais não encontra
que foi muito
que podia ter feito solução. No início encontrou
bem-sucedid@.
Alguma coisa diferente, melhor. mais dificuldades que hoje,
funcionou. Hoje, Mas acha isso nor- mas considera que ainda há
com mais emba- mal, pois era quando um longo caminho a trilhar.
samento, pois ainda tinha muito o
teve que correr que aprender.
muito atrás, faria
muita coisa
diferente e o
curso que ofere-
ceu à época,
certamente seria
melhor e mais
bem-sucedido.

9 Acredita muito O conhecimento da Para alguém se dizer um ser Não existe trabalho de língua
no conhecimento cultura é fundamen- intercultural, tem que ter sem trabalho de cultura. Nenhu-
da cultura e que tal porque quando se atitude não apenas para con- ma língua se forma, se cria e se
isso influencia no hecer a cultura do outro, mas mantém viva fora de contextos
ensina, se ensina
ensino, até também a própria cultura. E culturais os mais diversos. Isso
mesmo porque cultura, porque como vai alcançar isso? Len- faz com que uma língua seja
língua é cultura. ambas são insepará- do, estudando, interagindo. É várias línguas ao mesmo tempo
Há, no Brasil, veis. fundamental saber sobre a porque pode formar às vezes
uma diversidade própria cultura, porque ensinar culturas muito diferentes, como é
cultural muito língua, é ensinar cultura. Aliás, o caso do português que, dentro
grande. O não diria língua e cultura, mas do próprio Brasil já é diversifi-
ensinoda língua “linguacultura”, sem hífen, cado. Uma língua nunca vive
reside no ensino inclusive. Até os gestos são isolada, sobretudo quando ela se
da cultura. O cultura; a sua forma de ensi- dá num contexto de aprendiza-
mais interessante nar, passar um conteúdo, é gem de uma LE. É pelo outro
do ensino de cultura. Cultura é tudo. Saber que nossa identidade se afirma.
línguas é propi- cultura é fundamental para o Não há como trabalhar com o
ciar ao discente ensino de língua diria que a ensino de língua sem trabalhar
que encontre o cultura é o sabor da aula; é a com as culturas envolvidas. O
seu lugar. carne que preenche o esquele- jogo que se estabelece num
to; língua e cultura são indis- ensino de língua é intercultural.
sociáveis. Ser um docente que Além disso, nem sempre o
se instrui sobre a própria docente tem o português como
cultura é ler as obras fundado- sua LM e é preciso se levar isso
ras dela em nosso país, é ir ao em conta também.
teatro, é ir ao cinema, é curtir
a música brasileira.

10 Referência: o O mestrado não foi O mestrado foi “o curso” sobre Fez o mestrado na área de
INFORTEC. Ao na área de PLE; o PLE. Foi uma experiência Teoria da Literatura, mas isso
retornar ao doutorado será. Mas riquíssima, podendo dizer que não significa que não busque
foi um grande curso de aper-
Brasil estudou fez curso de aper- se formar na área. Mas essa
feiçoamento na área. Minicur-
com afinco na feiçoamento no sos em congressos em que formação se dá de forma mais
área e seu mes- CEFET, que foi o de participou; um curso na Casa autônoma, por leituras, parti-
trado é voltado ensino de PLE ba- do Brasil, na Argentina, sobre cipação em eventos, tendo
à variação seado em tarefas, confecção de MD de PLE. O inclusive feito disciplina
linguística no com 15 horas de curso foi online pelo Portal do isolada na pós-graduação do
MD de PLE. duração e também o Professor de PLE. CEFET-MG, voltada ao PLE.
Fez bastante curso de capacitação As formações
para aplicação/avaliação/
coisa no âmbito para a aplicação do
elaboração do Celpe-Bras. Os
do PLE e pode Celpe-Bras, na cursos que já ministra, versan-
dizer que alca- UFMG e também na do sobre cultura, no CEFET-
nçou um bom Coreia do Sul, em MG. Cursos de férias na
currículo. 2015. Participava de UFMG; oficina de MD em
grupo de estudos Córdoba, que ministrou em
com os colegas parceria; uma semana de curso
docentes, sob orien- em Diamantina, dentre outros.
Agora, o doutorado, na área
tação de docente
também.
coordenador.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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11 Conhece a É no sentido de ter Não só fisicamente, mas é Pode significar muitas coisas
expressão equi- jeito para a coisa, principalmente estar envol- diferentes. Contexto e necessi-
valente: “Tá no estar inserido naque- vido o tempo todo; não se dades variam com o país, o
sangue”. É estar le ambiente, sentir-se desligar da atividade precí- perfil do alunado, as finalida-
conectad@ com à vontade. É o PLE pua. É pensar no fazer diário, des desse grupo de aprender. O
a disciplina e fazer parte da sua adequando material a públi- ensino de uma língua como LE
tudo que ela vida, ser o seu tra- co. É estar assistindo TV e pressupõe sempre um certo
possa oferecer; balho; é ter intimida- pensar no PLE; é ir assistir a processo de internacionali-
é estar intima- de com esse tipo de um filme (e fazer o mesmo). zação da língua portuguesa,
mente ligad@; é ensino. É respirar o PLE. É estar que no início se deu sem ini-
muito mais pesquisando na área, atuali- ciativa pedagógica, mas hoje é
prazeroso ensi- zad@, informando-se sobre diferente. Que implicações
nar sua própria a própria cultura; participar tem no nosso trabalho coti-
cultura. O legal do Celpe-Bras. Sempre diano a influência que o portu-
de ensinar o pesquisando, produzindo guês exerce em todos esses
PLE é poder MD, conversando e trocan- países onde ele é falado? Cada
sair do lugar do ideias com os colegas, novo contexto vai ressignificar
comum e poder indo a Congressos, dando esse processo de ensino e de
se colocar no aulas maravilhosas; é isso aprendizagem de PLE. Como
lugar do outro. que soma para todos na área. nós (docentes) vamos nos
O PLE, as pes- preparando para reagir e atuar
soas que trabal- nessas situações tão diversas?
ham com o Esse processo de ensino-
ensino de PLE, aprendizagem pode abrir
enfim, são todos muitas portas, despertar novos
apaixonantes. interesses, criar novas necessi-
dades, fazer com que surjam
novos caminhos de integração
entre culturas e populações
diferentes.

Entrevistados (ESL (E6Iz (E7G (E8B


i) ) l) r)
Perguntas

1 Atualmente dá Sim. Atualmente está Sim. Formou em 2014 como De maneira informal, quebrando
aula de PLE dando aula de PLA na tradutor@ e no mesmo ano o galho, atuava em seu país, em
num curso bem UFMG, na graduação, começou a trabalhar dando 2014.E de maneira formal, no
específico. São desde março/2016. aulas como Bolsista do CEFET, em fevereiro de 2016,
aulas de escrita Camões. no módulo cultura de um curso
de PLE. Atuou no ensino de
acadêmica para
espanhol: 5 a 6 meses antes de ir
6 alunos de pós- para o Brasil, onde também atua
graduação. como docente de francês para
estrangeiros. Formou-se para o
ensino de espanhol, na verdade.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

2 Primeiro: em A 1ª. experiência Experiência: é confundid@ Tinha 4 alunos, apenas. Como


2012, para uma com PLA foi em com estudante quando chega dava aula de cultura, no início
turma bem Timor-Leste, no ano pela primeira vez na sala. parecia meio estranho ensinar
heterogênea. de 2012. No início sobre esse tópico, sendo
Dava aula com-
ficou um pouco estrangeiro, mas acredita que
partilhada com
outr@ profes- angustiad@ porque se deu bem.
sor@. Montavam achou que fosse
o material realizar lá um tipo de
junt@s e alterna- trabalho, mas se
vam semana na deparou com outra
aplicação da aula realidade. Não havia
entre amb@s. ficado claro que
Foi muito inter-
trabalharia com o
essante, à época,
aliar sala de aula português como LE.
com sua pesquisa Achou que trabalha-
sobre interlíngua, ria com o português
para lançar como com os professores
dados ao finali- de lá, em uma capa-
zar seu mestrado, citação.
naquela oportu-
nidade. Ficou um
pouco assustad@
e também os
alunos, porque
foi quando
começaram a
filmar as aulas de
PLE e, como se
considera um
pouco tímid@,
porque não é
professor@, isso
@ assusta um
pouco.

3 Fez o primeiro Em 2012 não tinha Não. Em sua instituição são A formação acadêmica foi
curso de exten- nenhuma formação na formad@s para serem tradu- para o espanhol, mas muito do
são sobre PLE área. Sabia da possibi- tor@s. que aprendeu, aproveita para
que o CEFET- lidade de se ensinar o o PLE; afinal, são línguas
MG ofereceu. português para estran- estrangeiras. Mas o que vale
Acompanhou geiros, mas nunca mesmo é o que aprende na
imaginou que faria
alguns professo- prática.
isso, porque tem
res e isso ajudou formação plena em
muito, mas língua portuguesa e
considera que imaginava que só
ainda tem muito poderiam dar aula de
a aprender na português para estran-
área. geiros as pessoas que
têm alguma LE em sua
formação; por exem-
plo, quem é formado
em inglês daria aula de
português para os
falantes nativos dessa
língua. Adveio daí sua
angústia, já que não
tinha formação em
outra língua. Para
lecionar em Timor-
Leste apoiou-se nos
conhecimentos que
detinha como alun@
de LE, no caso, espan-
hol e inglês. Depois
que retornou de Ti-
m o r- L e s t e foi e m
busca de formação na
área de PLA no CE-
FET-MG e na UFMG.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

4 Não. Infelizmen- Na verdade, não, O estágio tem que ser em Não teve estágio acadêmico
te, não fez nen- embora o PQLP tradução. Não é na área de para o ensino de ELE. Atuou
hum estágio aponte estágio de docência. diretamente. Em PLE, teve
acadêmico na docência para a ativi- 15h/aula antes de atuar em
dade que exerceu.
área de PLE. fevereiro/2016. São essas suas
Embora concurso
público, com essa experiências na área.
terminologia, permite
ao Governo eximir-se
de responsabilidades
empregatícias, além de
lhe gerar um menor
custo-benefício,
mesmo frente a pes-
soal qualificado. Hoje
sim, faz um trabalho
que considera um
estágio de docência,
5 Sim. Acompan- Em PLA, não. Mas Não. Começou só. Ganhou a Sim. No ano de 2015, em
hou docente no estágio acadêmi- bolsa e lhe falaram que tinha julho, numa turma de francó-
mais experiente co pôde acompanhar que dar aula. Então tentou se fonos, acompanhou três pro-
lembrar daquilo que mais
antes de aden- professores de língua fessores para colher dados
gostava em seus professores,
trar sozinh@ portuguesa no ensino para fazer igual. Tentou criar para sua pesquisa sobre a
em uma sala de fundamental. uma personagem para tirar interlíngua de francófonos.
aula e isso foi seus discentes do “conforto”. Foram 30h/aula que ajudaram
muito bom, pois muito para quando foi atuar
pôde observar o só na docência de PLE.
tempo que era
gasto com cada
atividade, o tipo
de material, a
didática desse
docente.

6 A dificuldade Com certeza aconte- Dificuldades: primeiro, falta Dificuldades: maior preocu-
no primeiro ceram muitas difi- de experiência. pação é com o MD, LD,
curso foi com culdades. A que se Enfrentar uma turma com porque nem sempre as coisas
relação ao lembrou e relatou diz pessoas mais velhas que são compatíveis com os obje-
vocabulário, respeito a sua falta de quem os ensina, por não tivos docentes. Tem aprovei-
porque os alu- conhecimento da saber se acreditariam em si. tado bastante do que é dispo-
nos estavam cultura do outro. Foi Estabelecer uma metodolo- nibilizado no PPPLE, mas às
num nível muito e m Ti m o r- L e s t e ; gia, porque seus alun@s não vezes tem que fazer adap-
básico e eram queria que seus querem aprender gramática; tações. É um desafio muito
muito jovens. alunos aprendessem mas querem aprender portu- grande. Acredita que qualquer
No atual curso, as maneiras infor- guês pelos mais diferentes pessoa pode ser profissional
que também mais de cumprimen- motivos, como por exemplo, do ensino de qualidade se tem
partilha com tar que os brasileiros por uma paixão (caso de um bom material. Uma preo-
outro docente, usam. Dentre as amor). cupação que tem é como
teve dificuldade possibilidades estava Ter medo de não saber res- ensinar gramática sem ser
em saber a o “Oi” e um aluno, ponder uma pergunta de muito estruturalista.
quantidade de ao final da aula, um@ alun@.
material que disse que não com-
levaria e quanto preendia o porquê de
tempo dedicaria ser usado o “Oi” e,
a cada atividade. depois de alguma
Mas isso foi conversa, ele expli-
apenas no início, cou que na cultura de
antes de conhe- seu povo, aquele
cer o alunado; som era para provo-
agora está mais car ao inimigo.
tranquilo esse
controle de
tempo.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

7 Tanto a teoria Pergunta difícil. Já A teoria não é suficiente. Nem só a teoria, nem só a práti-
quanto a prática viveu situações em Tem que ser um balanço ca há para resolver as coisas. A
são muito im- que era necessário perfeito entre teoria e prática. pessoa pode ter um doutorado,
portantes para conhecimento, mas a um pós- doutorado e ser docente
deplorável. Ou pode ter só uma
resolver um prática também faz
licenciatura e ser profissional
problema em falta e muitas vezes competente. Depende de como
sala de aula. sente isso. A prática se combina teoria e prática.
Claro que a nos ajuda a contor- Sabe-se que o ensino de língua
prática permite nar alguma situação, tem que ter uma abordagem
ter alguns con- como o exemplo intercultural, mas na prática será
hecimentos cultural que citou que isso é feito pelos docentes?
testados, mas a anteriormente. A A autoavaliação dos docentes
ajuda a pensar na prática afim.
teoria permite a prática é importante
Juntar teoria e prática é um
reflexão sobre e tem que ser valori- desafio, mas é o melhor caminho
algumas ques- zada. para fazer com que a teoria seja
tões para a colocada em prática, para ver se
resolução de a coisa está mesmo funcionan-
possíveis pro- do; a teoria está presente na
blemas. A práti- prática é para facilitar as coisas.
ca, em alguns
momentos se
sobressai, como
por exemplo,
para resolver
uma saia justa.
Mas acredita
que as duas
andam juntas.

8 Considera que está Não, de forma al- Um@ docente nunca se sente Acredita que houve satisfação.
bem no início guma. Sentiu muita realmente satisfeit@. O bom O desafio não foi tão grande.
ainda da docência
em PLE. Não dificuldade, princi- é quando se reencontra com Todas as condições favoráveis
considera que palmente para criar um ex- aluno e ouve relatos estavam reunidas. Nada a
nasceu para dar MD, que acredita ser do quanto o curso tem sido reclamar.
aula, principal-
mente depois que o que dá mais tra- útil em sua vida.
terminou a gra- balho na área. A 1ª.
duação; ficou experiência foi com
m e i o uma cultura muito
desanimad@; mas
viu na área de PLE diferente. Considera
uma oportunidade que havia um abis-
muito boa, porque mo entre as duas
as turmas com as
quais se trabalha culturas: a sua e a de
n o C E F E T- M G seus aprendizes e
são bem pequenas tinha que produzir
e o público é MD que fizesse
bastante interessa-
do. Além disso, o algum sentido para
fato de aliar a sala eles. Houve momen-
de aula com a tos em que conse-
pesquisa é o
diferencial que guiu produzir mate-
gerou a atração. rial e dar uma aula
Coisas que não que foram eficientes
percebia na gra- e outros momentos
duação e tampou-
co com o estágio, em que não alcançou
agora consegue êxito.
perceber com o
PLE. Por isso que
acha essa prática
vinculando sala de
aula e pesquisa
9 Não tem como Acredita que é A cultura é realmente muito É muito importante para
separar o ensino da
língua, da cultura; importante sim, importante; a língua é um qualquer pessoa que queira
um está atrelado ao inclusive porque sistema que tem que ser ensinar ou aprender o portu-
outro. Conhecer a
nossa cultura é temos termos e contextualizado. guês. Há todo um modo de
imprescindível; é expressões que são ver o mundo que está por
fundamental para
que possamos típicos da cultura detrás de uma língua. Para se
proporcionar ao brasileira. Interes- dar bem em uma sociedade há
nosso aluno uma
reflexão sobre a sante comparar o que se entender os aspectos
nossa cultura e a português do Brasil culturais.
dele próprio. E, a
partir daí, estabele- com o português
cer comparações europeu e o portu-
desconstruindo
estereótipos que guês africano e com
muitos carregam isso se perceber o
consigo. Há que
trabalhar com as quanto a língua está
diversas culturas relacionada à cultura
que há no Brasil
para formar melhor e vice-versa.
o aluno.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

3 Graduação em Ainda faz o curso de No início, não. Não tinha Formação em Letras, português.
Letras – sem prepa- Letras, mas é de nenhuma preparação. Teve o privilégio de trabalhar no
ro para atuar em Te c n o l o g i a s d e Começou a buscar disci- CENEX, com a turma de PLE,
participou do Celpe-Bras, tudo
P L E . Teve p a r a Edição, não se plinas dentro da FALE
sob a coordenação de docente
inglês e para portu- podendo dizer que (UFMG) que trabalhas- experiente. Tudo começou com
guês como língua prepara para a do- sem metodologia de disciplina na área, que fez depois
materna. Começou cência. Contudo, fez linguagem e de ensino de de ter sido alertada por uma
a fazer disciplinas dois cursos de capa- língua, uma vez que sua colega de curso que não havia
e a participar de citação, os de núme- formação não privilegiava exigência do conhecimento da
cursos de capaci- ro III e IV de um esses aspectos, impres- língua inglesa para cursar tal
tação e, ao iniciar o projeto, alcançando cindíveis ao PLE, pois sua disciplina, coisa que acreditava
ser necessária. A partir daí, ao
mestrado, foi que o de ensino baseado formação basilar é a
demonstrar seu interesse, aca-
passou a ter essa em tarefas e o de licenciatura do português bou prestando o concurso no
formação para preparar o docente como LM. Nessa busca foi CENEX- FALE, tendo sido
ensinar PLE. para o curso prepa- que descobriu que havia o aprovada e passou a atuar desde
ratório ao Celpe- PLE no CENEX, que então na área do PLE. Foi uma
Bras, respectiva- havia alguém ali expert no excelente maneira de se aper-
mente. Acredita ter assunto e, então, sempre feiçoar e de aprender, no âmbito
aprendido muito que disciplinas na área universitário.
mais foi na prática eram ofertadas, matricu-
mesmo. lava-se. Engajada na área
foi se aprimorando de
várias formas e faz isso
até hoje por acreditar que
a formação é algo contí-
nuo.

4 Sim. Não teve estágio Entende que a preparação Como estágio da preparação
acadêmico ainda, mas para se tornar professor@, para se tornar professor@ de
participou por propiciada pelo CENEX, PLE do CENEX-FALE, tinha
10 meses do projeto que apresentar relatórios das
que foi algo em torno de
de extensão que aulas às quais assistia (foram
20 horas antes de começar duas), dos demais professores de
visava a capacitação em sala de aula, propria- PLE, seus antecessores. Tais
de professores de mente, tenha funcionado relatórios tinham que ser entre-
PLE e por mais 10 como estágio. Período gues à coordenação da área.
meses na pesquisa de mais longo, a título de Teve, depois disso, ainda no
iniciação científica, estágio, não fez. processo seletivo, que dar uma
a qual focou nessa aula e, a seguir, partiu par a sala
questão do PLE e, de aula, sendo a fase de aprendiz
pode-se dizer, a como professor@, oportunidade
em que contou com a ajuda da
partir de então,
coordenação, dos demais que
mergulhou de ca- estavam lá há mais tempo, bem
beça no PLE. como do material que encontrou
já pronto na sala do curso. Esse
estágio foi feito em alguns
(poucos) dias e depois já foi
direto para a sala de aula mes-
mo.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

5 Não. Já começou a Acompanhou sim, Acompanhava algumas Sim, dois professores que já
dar aula direto, mas tendo sido uma expe- aulas antes de entrar sozin- eram integrantes do grupo
como já dava aula riência maravilhosa. ha em sala de aula, no docente do PLE, à época de
de inglês, acredita Tratava-se de um período do estágio no CE- sua seleção, mas apenas uma
grupo homogêneo, de
que isso ajudou NEX-FALE. aula de cada, para cumprir a
hispano-falantes,
muito. alunos do CEFET na programação do processo
pós-graduação em seletivo, como relatou ante-
Engenharia, prove- riormente. A salinha (forma
nientes da República carinhosa) do PLE era um
Dominicana, sendo constante ponto de encontro,
bem hábeis no manu- apoio e ajuda recíproca. Era
seio da LA e o curso muito importante. Mas, preci-
foi de escrita acadê-
sava mesmo era de ir para a
mica. Teve a oportu-
nidade de ver a prepa- sala de aula!
ração e acompanhar a
aula propriamente
sendo ministrada,
observando a partici-
pação e interação dos
alunos. Infelizmente,
foi sua única expe-
riência de como se
portar, atitude, plane-
jamento docente, uma
aula não apenas
falada, mas visando a
interação e a atividade
prática dos alunos em
sala. Foi uma expe-
riência muito provei-
tosa.

6 Sim. Dificuldade Além do já relatado A 1ª. dificuldade acredita Teve várias dificuldades. A 1ª.
em relação ao na resposta 2, teve que tenha sido em relação é a barreira da língua mesmo;
material didático. algumas dificulda- à seleção de conteúdo. O não saber o inglês. Tem que
Os cursos deman- des. Admitir as que selecionar? O que falar em português mesmo...
dam material muito próprias dificulda- seria relevante? Entender Contudo, para o aluno, traz
específico. Dificil- des, dar conta das qual era o seu público. De um conforto quando se enten-
mente se encontra perguntas inespera- onde começar a ensinar de o que ele quer dizer. Nem
material que atenda das, as quais tiravam esse português, já que era todos têm segurança. Para
90% à turma. Daí o foco que tinha a sua LM ensinada como esses, precisava sim, que
a necessidade de para a aula. LE? O 2º. Ponto é o soubesse o inglês para apoiá-
montar o próprio desafio da seleção de MD, los e, como ainda não tinha
material e, no que está muito atrelado à esse domínio, sentia-se um
início, gera insegu- 1ª. dificuldade apontada. pouco mal. Outra coisa foi na
rança. É conhecer o MD, fazer elaboração do MD, no início.
uma seleção desses MDs, Ainda é, às vezes, porque
em trabalho colaborativo sempre busca algo que tenha
com os demais colegas do tudo a ver com seus alunos. A
CENEX- FALE. E, nessa gramática, por exemplo.
sequência, a elaboração de Ensiná- la de uma forma
MD por perceber que eles interessante, gerou muitas
não eram adequados para vezes, dificuldades em sua
o que era importante/ prática docente.
necessário aos seus alu-
nos.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

8 A satisfação é uma Não se sentiu nem Sentia-se satisfeit@ sim e Não se sentiu satisfeita e,
constante na vida um pouco. Hoje, sim. o feedback para isso era a inclusive até hoje, muitas
de um professor. No começo era mais reação dos próprios alu- vezes não se sente satisfeita;
No início, conse- nervosismo do que nos. A satisfação decorria acredita que isso é uma
guiu cumprir o seu tudo; aquela sen- de uma prévia e cuidadosa marca de sua personalidade.
papel. Hoje, não sação de não estar preparação e pesquisa. Não Sempre acha que poderia ter
sabe se faria da com a preparação é pelo fato de estar dando feito mais. No início isso era
mesma maneira. suficiente. A insatis- aula da própria língua que ainda pior.
Para a experiência fação é decorrente do faz/permite prescindir da
que tinha, crê que despreparo mesmo. qualidade no/do preparo
deu tudo certo. da aula. Importante lem-
Agora, querer brar que o público discen-
melhorar é caracte- te com que somos brin-
rístico de um dad@s advém de letra-
professor. mentos/bagagens culturais
diversos, o que demanda,
por conseguinte, nossa
excelência na preparação
de nossas aulas. Embora
essa situação possa assus-
tar um pouco, é algo
desafiador a impulsionar o
docente cotidianamente.

9 Não acredita no Os cursos de PLE em Se lá bem no início da O conhecimento da cultura


ensino de língua que atuou até então docência no PLE, já descon- da língua que se ensina é
dissociado de são todos de língua fiava que o conhecimento fundamental. É igual ao ar
cultura, tal qual cultural é importante nessa
vinculada à cultura. que respiramos. Talvez não
vários teóricos da prática, hoje, com bem mais
Isso é essencial. A bagagem, tem certeza disso. tanto no início do aprendiza-
Linguística e do língua se constrói na do, mas à medida que o
1º porque língua e cultura
próprio PLE cultura. Ensinar um são aspectos indissociáveis discente cresce no conheci-
(PLA). português com cultu- de seu ponto de vista; apren- mento linguístico, precisa
ra é ensinar um por- de-se/ensina-se língua para demais da cultura para que
tuguês em uso, do se oportunizar ao outro falar possa entender as expres-
dia-a- dia. E é isso sobre; advém daí que uma sões, tudo. Daí que a cultura
série de questões culturais
que a língua é: a é essência; ela é imprescin-
perpassam esse processo.
expressão da cultura Ressalta que entende como dível. Sua recente experiên-
de um povo. conhecimento da cultura do cia em Hong Kong lhe pos-
povo brasileiro que isso não sibilitou ter uma turma em
se limite a questões folclóri- que metade estava interessa-
cas, festivas, mas que sejam da no português variante
também questões cotidianas, brasileira e a outra metade,
domésticas, formas de agir, na variante europeia. A
condutas em um espaço
escola é de línguas euro-
institucional, uma relação
informal, tudo isso é abran- peias. Foi levada a buscar
gido pela cultura. Conhecer/ informações sobre a cultura
Saber sobre isso e levar para portuguesa, porque isso
a sala de aula é fundamental acrescenta muito em sala de
para esse conhecimento de aula.
língua que o outro quer ter.
Também para que se desfaça
estereótipos e para que
consigamos explicitar o que
não o é.

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contemporâneas

10 O mestrado é na área O mestrado não foi na O mestrado não é na área, Seu mestrado é com foco em
de PLE, especifica- área de PLE, mas de mas pode fazer disciplina línguas estrangeiras. Cursos
mente a parte escrita correção de texto. O de Pedagogia. de capacitação: foco na forma
do Celpe-Bras. 1º. Contato com e outro: variação linguística.
Agora está fazendo o teórico da área foi por
TICs no ensino de línguas,
doutorado também uma palestra a que
com foco no Celpe- assistiu, no CEFET- num seminário online, os
Bras, desta feita o MG, ao ex-diretor do quais resultaram muito pro-
escopo é a parte oral, IILP pronunciar-se veitosos. Os dois primeiros
tentando pesquisar sobre o PLE. Depois foram de 15 horas cada.
sobre questões de fez disciplina isolada
validade e confiabi- na pós-graduação,
lidade do exame. sobre ensino e pesqui -
Como é que um sa em PLE. Fez 2 ou 3
exame de língua cursos oferecidos pela
reflete o ensino, pois Extensão do CEFET-
no CEFET-MG dão MG, abrangendo o
aula para alunos que ensino de PLE e,
irão prestar o exame. também, ao exame
No próprio curso de Celpe-Bras. Depois
escrita acadêmica, os fez mais uma discipli -
alunos demandaram na na pós-graduação
um simuladão sobre do CEFET-MG, sobre
o Celpe-Bras. É o o tema avaliação de
sempre vincular o produção oral e, mais
ensino à pesquisa. recente, na UFMG,
Atualmente não está sobre PLA. O douto -
fazendo nenhum rado: letramento
curso de capacitação acadêmico em PLA.
em BH, mas o pró-
ximo que for ofere-
cido, certamente
fará.
11 Conhece a expres- É (re)pensar nossa É estar se atualizando É estar completamente envol-
são e é algo que língua, nossa cultu- sempre; adaptar aulas aos vido; preocupar-se com a
quer. Acredita que é ra, nossa prática alunos que tem. Conhecer própria prática daí melhora,
estar preparad@ enquanto docentes, aos alunos ajuda bastante pois tem consciência daquilo
para a diversidade porque nosso públi- para adequar as aulas ao que faz.
que vai encontrar na co pode nos sur- perfil deles.
sala de aula e estar preender em muitos
preparad@ a usar aspectos, ou melhor,
MD e recursos propor desafios para
didáticos que aten- nós.
dam a essa diversi-
dade. É estabelecer
um diálogo entre
essa diversidade, é
trabalhar língua-
cultura de forma
indissociável e
também se preparar
para nunca ter
material pronto e
acabado. É estar
ligad@ ao fato de
se dar bem, de ser
um@ bom(boa)
professor@.

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contemporâneas

10 Cursos de curta Como já havia abor- Por achar que sempre se A universidade onde atuava
duração, tendo sido dado, de alguma pode aprimorar, constan- em Hong Kong dava cursos
o primeiro deles no forma em sua respos- temente, participa de cur- de pequena duração (um dia)
estilo seminário. ta 3, complementou, sos de capacitação, seja e pôde fazer um sobre MD e
Reuniões decorren- sinalizando que como discente ou como outro sobre como elaborar
tes dos cursos de pretende fazer o docente. Foi através desses provas e foi bem interessante.
PLE que sempre mestrado na área. cursos de capacitação que Sua pós-graduação é em
estão acontecendo lhe foi possível con- educação infantil. Fez em
no CEFET, crê que tatar com teorias mais Hong Kong como uma possi-
também têm um abrangentes e com várias bilidade (financeira, sobretu-
papel importante na outras questões que per- do) a mais de trabalho.
formação, pois passam o ensino de PLE,
muitos temas rele- como por exemplo, o que
vantes ao docente se relaciona a identidade,
neófito são discuti- análise do discurso, Lin-
dos nelas. guística Aplicada. Acredita
Metrado sobre a que, sem uma capacitação,
formação de pro- podemos nos tornar pro-
fessores para ensi- fessores superficiais, só da
nar PLE em MG. prática; não se torna o
professor reflexivo que é
fundamental que sejamos.

4 Sim. O CENEX- Não teve estágio Sim, desde 2008, quando Fez o curso de Letras, licencia-
FALE era o estágio acadêmico, já que o trabalhou com o PEC-G. tura português e depois espan-
acadêmico, profis- bacharelado em Foi estagiária do CENEX. hol e, para cada uma dessas
licenciaturas fez 120 horas de
sionalizante. Foi a tradução não o prevê. Cessou em 2012. Em 2015
estágio. Mas o estágio de PLA,
sua escola para seu Em relação ao PLE, e 2016: estágio de docên- a experiência é realmente o
trabalho com o foi na prática mesmo cia, durante seu mestrado. CENEX. Foram 5 semestres
PLE. Atuou lá que se profissionali- com pelo menos 60 horas cada
durante sua gra- zou. e, em alguns deles, ministrava
duação, no mestra- aula par duas turmas. O CE-
do e, inclusive, NEX é um estágio muito bom
quando já cursava porque é supervisionado pelo
professor@/orientador@ e tem
o doutorado.
reuniões fixadas previamente,
nas quais @ professor@ apren-
diz tem a oportunidade de
discutir dúvidas, saná-las, ver
qual a melhor conduta aplicável
a cada caso. É muito interessan-
te. Nesse grupo que se reúne
sempre tem os professores mais
experientes que ajudam bastan-
te a quem está começando e é
muito legal perceber que hoje,
está na posição já de poder
ajudar aos que estão começan-
do, pois passou a integrar o
grupo dos mais experientes. É
muito legal.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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5 Professor@ expe- Não. A primeira Sim. Foi monitor@, inclusi- Não teve a oportunidade de
riente, no padrão experiência com ve, de um@ professor@ acompanhar a nenhum docen-
dos que se compa- um@ professor@ mais experiente. te mais experiente, tendo seu
ram ao responsável mais experiente foi o contato se restringido às
pela coordenação, acompanhamento a reuniões, nos encontros
não. Pôde observar docente, retrocitado. quinzenais. Acredita muito na
outros estagiários, Monitorou docente da importância dessa presença
mais precisamente área de Fonética por 4 em sala de aula coo observa-
àqueles que @ anos, voluntariamen- dor@, para se ver como (não)
antecederam no te, em todos os cursos fazer. Após um ano e meio de
CENEX-FALE e intensivos ministra- atuação no CENEX ocorreu
pode dizer que esse dos a estrangeiros, uma nova seleção, ocasião
acompanhamento tendo a oportunidade em que a coordenação do
foi muito válido. de acompanhar, inclu- PLA sugeriu que montassem
sive, as aulas. Contu- um curso para esses novos
do, à época (2008 a candidatos. Surgiram várias
2011), já atuava como questões, desde as mais
docente. Mas consi- triviais, até as mais comple-
dera que foi uma xas, como por exemplo, que
oportunidade ímpar. tipo de exemplo de brasilei-
ro você quer ser para seu
alunado? Até questões gra-
maticais, propriamente. Foi
oportunizado aos interessa-
dos acompanharem algumas
aulas dos professores que já
estavam atuando. Fazendo
uma correlação dessa impor-
tância da observação da
prática do mais experiente, vê
o quanto é válida a inserção
dos futuros aplicadores do
Celpe-Bras no espaço do
exame, para que possam se
capacitar adequadamente.

8 Sim, mesmo com Mais do que insatisfeit@, Como conhecimento Sim. Sente-se satisfeita. É
todas as dificulda- ficou frustrado por não saber que tinha na época, claro que há situações para
des. resolver o problema da turma dedicava-se muito. No as quais hoje, pensa: “Meu
de nível avançado que citou início lhe faltou reflexão Deus, por que eu agi daque-
na pergunta 2. crítica. Sente-se satisfei- la maneira?” Hoje faria
diferente. Mas sempre se
ta porque fez tudo que
esforçou muito para dar as
lhe foi possível fazer. melhore aulas até mesmo
Gostaria de haver co- porque caiu meio de
meçado melhor prepara- “paraquedas” na área,
da. Considera que à embora sempre tenha sido
época, com o que sabia, seu sonho ser professor@,
dedicou-se bastante. jamais havia pensado que
atuaria na área de PLA, pois
sonhava ensinar português
para brasileiros, coisa que
não mais lhe passa pela
cabeça. Hoje se realiza
dando aula de PLA. Mas é
inevitável que no início
deixe a desejar. Um exem-
plo bem simples para
ilustrar isso é o uso do MD.
Seus primeiros cursos, no
CENEX-FALE, apoiavam-
se em um LD e o seguia à
risca no 1º. semestre; do 2º.
em diante não tanto mais;
não pulava nada! Só levava
algo novo quando o mate-
rial (LD) acabava. Era bem
fiel ao LD No início, mas
com o passar do tempo se
descobriu autônoma. Acre-
dita que isso se associa à
cultura de ensinar do brasi-
leiro.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

9 Hoje, vê que tão Cultura não são as lembran- Conhecimento crítico- Realmente o conhecimento
importante quanto cinhas que se compram em cultural que seja capaz da cultura do povo brasilei-
conhecer a cultura lojas de aeroporto, de acordo de mostrar os diversos ro é fundamental para uma
do povo brasileiro, com a fala de ex-docente que brasis que há no Brasil; é boa atuação como profes-
nisso que aposta em sor@ de PLA. Tem-se
é conhecer a lhe marcou. Há duas vertentes
termos de alguém poder exemplos desde gramaticais
cultura do outro, importantes sobre a cultura, até práticas sociais, como
do estrangeiro, até no âmbito do ensino de PLE, ser apontado como um
por exemplo o uso de ‘tu’ e
para se resolver para as quais deve estar atento bom professor quanto a
‘vós’; como, em diferentes
alguns impasses o docente: esse aspecto. regiões, os brasileiros se
que advenham - o modo de ser, pensar e agir cumprimentam? As músicas
desse choque do povo brasileiro, conve- brasileiras se mostram em
cultural que cos- nções sociais, para se desfa- quantos ritmos? Estes se
referem a que parcela da
tuma surgir quan- zer estereótipos com os quais
nossa sociedade? Qual
do chegam a um chegam aos professores os (des)prestígio representa
contexto de imer- alunos estrangeiros. socialmente? Qual desses
são e também para será eleito pelo professor@
valorizar tanto a para levar para a sala de
língua quanto a aula? Escolher trabalhar
cultura desse país com um funk em sala de
que eles (estrangei- aula poderia depor contra o
bom nome d@ professor@?
ros) estão adotan-
Em contraponto à escolha
do para estudar, de uma MPB, por exemplo?
para trabalhar ou Quando @ professor@ faz
para viver. Portan- sua opção a esse respeito, o
to, considera que ele, na verdade, está
fundamental que o assumindo? Tem-se a teoria
docente, além da do Letramento Ideológico
língua, passe eu defende que @ profes-
sor@ pode escolher trabal-
também a cultura
har só com MPB e descon-
brasileira aos seus siderar todos os demais
alunos. ritmos musicais, desde que
faça essa escolha de forma
consciente de que gerará
desdobramentos para a sua
aula. Igualmente @ profes-
sor@ que escolhe trabalhar
com o funk e sabe que será
criticado por isso, mas

!579
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Entrevistados (E9R (E10 (E11 (E12


a) Pa) Na) Va)
Perguntas

1 Sim. Há aproxima- Sim. Dá aula desde Atualmente não dá mais Não, atualmente não se encon-
damente 4 anos. 2014. Começou aula de PLE para estran- tra atuando como professor@
Letras em outubro/ geiros. Está na capacitação de PLE, devido à mudança de
país. Atuou em Hong Kong e,
2013 e buscou al- de futuros professores de
caso estivesse lá estaria atuando
gum grupo de pes- PLE. Começou a ensinar ainda. Esteve lá desde 2012 até
quisa no qual pudes- PLE em 2000. março/2016. O curso começou
se se engajar, co- sob sua tutela e, quando saiu,
meçando já em 2014 estava sendo aberta uma turma
em sala de aula. de PLE 3, mostrando a evo-
lução/interesse crescente pela
área. Esta última turma (nova),
infelizmente, por causa da
mudança, não pôde assumir.

2 P e l o C E F E T. No início, turma Uma experiência do início, O que foi mais impactante


Dificuldade maior: pequena, 4 alunos, quando percebeu que ser quando começou a dar aula de
turma heterogênea mas cada um de uma professor de PLE é muito PLE foi justamente essa troca
de experiências e esse contato
e com níveis de nacionalidade, além mais que dominar conteú-
com o estrangeiro. Antes disso,
conhecimento de estarem em pa- do de língua, era o fato de nunca tinha tido contato com o
diferentes na lín - tamares diferentes ter que saber lidar com estrangeiro, nunca tinha saído
gua portuguesa de conhecimento da questões (inter)culturais. do Brasil. Foi muito gostosa
língua e nem sempre Exemplo, seu contato com essa troca, saber/receber a visão
terem uma língua outros docentes que tinham do estrangeiro da sua cidade, do
comum para se preconceito com alunos seu país, pelo prisma do outro.
comunicarem, pois, africanos do PEC-G, por Outra coisa que amou no início
dessa sua experiência foi visitar
além do português, não acreditarem na capaci-
lugares interessantes com seus
só sabe o inglês. dade de aprendizagem alunos, como a Fazenda Vale
Considera muito desses discentes ou por se Verde, em Betim, que, apesar
interessante o aspec- incomodarem com atitudes de morar tão perto, não conhe-
to da multiculturali- que estavam bem, já que cia ainda. Então essa oportuni-
dade nessas turmas tais discentes eram recém- dade de explorar o lugar onde
do CEFET. chegados e estavam em mora, em companhia de seus
fase inicial de adaptação. alunos foi muito relevante.

7 Teoria não resolve É uma combinação Sem uma teoria, as respos- Tudo tem que ser contextua-
nada sozinha. de ambas para resol- tas para uma saia justa que lizado e atualizado também.
Prática, idem. A ver um problema em possa acontecer na prática, Por isso, acredita que ambas:
junção das duas sala de aula. A teoria elas podem ser superfi- teoria e prática. Não acredita,
seria o ideal para é importante porque ciais. Sobretudo se não é portanto, que a teoria seja
resolver alguns gera embasamento, um docente experiente. suficiente para resolver um
aspectos e cada mas prática traz a Quanto à teoria ser sufi- problema em sala de aula.
docente o faz de realidade e não ape- ciente, acredita que não,
um jeito. nas os modelos de porque ela não consegue
aula, de aluno. Apre- prever todas as saias justas
goados pela teoria. que possamos vir a ter.
Então entra a experiência,
pois um docente mais
vivido em sala de aula já
terá passado, por conse-
guinte, por mais situações
de conflito ou desconfor-
táveis, na prática, e isso
auxiliará até mesmo no
próprio construto teórico.

!580
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

11 Por mais que pense Significa que “a Significa ter o pé nessa É a pessoa se engajar de
em fazer outra gente sai da sala de sala, mas com cabeça e alguma forma. Mesmo que a
coisa, sempre irá aula, mas a sala de coração abertos para a pessoa seja de outra área, ela
voltar para a sala de aula não sai da gen - diversidade, para a tole- também atua e se desempen-
aula, ambiente que te”. “É ser 24 horas/ rância, para a formação, ha bem na área do PLE. Ou,
testa e realiza. dia professor@!” É para a sensibilidade cultu- então, ter os pés fincados no
Quem começa a pensar sempre em ral, para o conhecimento PLE; é aquilo que faz (é ser
trabalhar com PLE, novas maneiras de linguístico, enfim, estar aquilo). É sentir saudades
quer estar atuando. ensinar e se aper - imerso em um caldeirão quando, por algum motivo, a
É uma área diferen- feiçoar sempre. Ter o cultural e estar sempre pessoa se afasta do PLE... É
te. É querer trabal- pé na sala de aula de atent@ e preparad@ para querer voltar!
har com a sua PLE é ter o corpo tudo que ele possa nos dar.
cultura, mostrando- inteiro na sala de aula
a ao outro e, com de PLE.
isso, um pouco de
você para o mundo.

Entrevistados (E13I (E14 (E15 (E16


d) Au) Ya) AP)
Perguntas

1 Atualmente, sim, é Sim, desde 2008, inin- Sim, desde 2007. Sim. Atualmente dá aula na
professor@ de terruptamente e é a graduação da UFMG, numa
PLE. Nos últimos única aula à qual se parceria entre a SRI e a FALE,
4 anos está trabal- dedica. sendo o seu segundo semestre,
hando diretamente com intercalação de um entre
com os estrangei- ambos. Já está na docência há
ros, na universida- 4 anos, ou seja, desde o 1º.
de. Há mais de 10 semestre de 2012.
anos trabalhou
com o PLE em
cursos de exten-
são. Conta com
uma experiência
de em torno de 20
anos.

!581
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

2 Lembrou-se de Teve dificuldade em Experiência marcante: Tem uma experiência bem


uma experiência no conseguir um MD acreditar que um aluno marcante, de um aluno
âmbito cultura, que tivesse a ver com negro era africano, mas na (refugiado político) que
logo no início de o objetivo dos apren- verdade ele era de Barba- chegou ao Brasil sem falar
sua atuação na dizes, de nível ava- dos (na América Central). nada em português, foi acol-
área. Tinha uma nçado, de diferentes hido por uma família; muito
turma heterogênea, nacionalidades e dedicado; sequer conhecia o
na qual havia uma diferentes patamares, alfabeto em português; em
aluna religiosa. Na sobretudo porque turma de nível básico, com
época, estudante desconhecia metodo- outros alunos, falantes de
do curso de Letras logia de ensino de inglês, fez a seguinte pergun-
pediu-lhe para PLE e MD para o ta: “Qual a diferença entre
falar sobre o sam- ensino de PLE. letra, sílaba e palavra?”
ba nessa sua tur- Então pensou: “Meu Deus!
ma. Então, pen- Como responder a uma
sando nessa ques- questão tão simples, mas, ao
tão cultural, acei- mesmo tempo elaborada,
tou. Introduziu o para um aluno que não fala
assunto com sua nada de português?” Então
turma e, quando a lançou mão do recurso de
pessoa apareceu na exemplificar com palavras
sala, foi em com- bem do cotidiano dele, sim-
panhia de sambis- ples, como ‘casa’,
ta, em trajes típi- ‘cachorro’, ‘mesa’, para
cos e isso causou explicar para ele. Esse mes-
enorme constran- mo aluno tinha dificuldade
gimento devido à muito grande para entender o
presença da reli- que era verbo. Normalmente,
giosa na turma, o nível básico começa pelo
tendo a sua frente verbo ‘ser’. Passados já uns
sambista de biquí- 2 meses de curso, ele disse
ni. A partir dessa que ainda não sabia o que era
experiência co- verbo. Exemplificou para ele
meçou a olhar com com ‘caminhar’, ‘andar’,
outros olhos para ‘correr’, ‘ler’, ‘estudar’.
essa questão cultu- Então ele associou: “Ah!
ral. Então tudo isso é ‘ser’?!”
Foram essas duas expe-
riências bem marcantes que

3 Não. É da geração Apesar de ter se for- Na instituição onde se No início começou como
em que se aprendia mado em tradução formou em Letras não tem estagiári@ no curso de
tudo na prática, inglês- português, o o ensino específico, mas extensão da UFMG e não
que fez com que se
pegando e fazen- sempre buscou saber a tinha formação acadêmica
mantivesse na Letras
do, sob a orien- foi o PLE. respeito através de enga- nenhuma, estando, à época,
tação de docente Como parte da gra- jamento, na prática, com no 4º./5º. período do curso
expert na área; duação, não teve uma disciplinas que passaram a de Letras. Ainda não havia
participando de formação para ensinar ser ofertadas, na área, após cursado nenhuma disciplina
Congressos, face PLE. O processo de sua graduação. Depois da relacionada não. No mestra-
ao incentivo que seleção para lecionar formação como licenciada do, fez a opção de trabalhar
recebia e só mes- no CENEX considera em espanhol também se com o ensino de PLA e então
que fez parte de sua
mo quando já licenciou em português e, fez disciplinas relacionadas
formação, tanto na
estava cursando o parte teórica quanto na posteriormente, no mes- com o ensino de língua
doutorado foi que prática, quando teve a trado, passou a focar preci- estrangeira.
teve a oportunida- oportunidade de testar samente em PLA.
de de ser alun@ de algumas aulas para o
disciplina na área PEC-G. Houve o
de PLE, com a acompanhamento por
mesma orientação docente que fazia o
doutorado à época e
de que já dispunha.
isso permitia uma
Então seu começo visão crítica do que
na carreira foi estava fazendo em sala.
pondo a mão na
massa, errando/

!582
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

6 No início teve Há dois episódios mar- Dificuldade maior: nunca Que principiante que não
muita dificuldade, cantes: em uma turma tinha observado o portu- tem dificuldade? Sentiu
principalmente com muitos francófonos, guês como uma língua dificuldade para lidar com
turmas heterogêneas porque,
relacionada à fez uma brincadeira sobre estrangeira.
apesar de haver um teste de
gramática, até futebol com um argentino nivelamento, em uma turma
mesmo por causa e outro aluno, da Tunísia, sempre há alunos de dife -
do tipo de for- sentiu-se ofendido, to- rentes níveis, com necessi -
mação recebida na mando as dores do outro, dades diferentes. Essa
UFMG. Foi uma considerou bullying, diferença citada acredita ser
época em que racismo e preconceito e o grande desafio do profes -
estudou muito a reclamou, inclusive na sor iniciante. Em contrapar -
tida, numa turma homogê -
gramática. Tudo coordenação do curso.
nea, sobretudo se for de
isso porque os Isso lhe gerou ansiedade falantes de uma mesma
discentes deman- e considera que lhe faltou língua, quando esta é do
davam muito sobre jogo de cintura para domínio/conhecimento do
aspectos gramati- mostrar ao tunisiano que docente, que este não se
cais e não se tinha isso faz parte da cultura apoie constantemente no
essa prática na brasileira e é normal. Foi, recurso da tradução, porque
universidade. na verdade, uma dificul- tentar explicar com imagens,
palavras, mímicas, muitas
Como por exem- dade de adaptação do
vezes, torna-se muito difícil
plo, conjugar os tunisiano à cultura alvo. quando @ professor@ está
verbos em todos os O outro fato era a difi- com a tradução na ponta da
tempos, o uso de culdade de selecionar língua. Conforme a metodo -
pronomes. Teve MD em quantidade sufi- logia adotada, acaba tradu -
uma saia justa ciente para uma carga zindo, visando ganhar tempo
certa feita, com um horária maior, para um na aula ou para garantir a
conteúdo gramati- grupo de alunos em aulas compreensão do aluno. Em
sua opinião essa não é a
cal e não conse- particulares.
melhor saída até mesmo
guia resolver o porque o aluno pode vir a se
problema. apegar a esse recurso e, nem
sempre terá quem o favo -
reça com essa tradução.
Exemplo recente foi sua
experiência no grupo Mais
Médicos, no qual evitava
“entregar de bandeja” a
tradução e se respaldava na
realidade com a qual depara -
riam todos aqueles médicos,
nos rincões brasileiros, onde
não contariam com um
tradutor...

!583
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

7 Acredita que as Na verdade, não; teoria A teoria ajuda muito, É uma questão muito
duas: teoria e práti- não é suficiente para mas a prática tem um difícil. É de opinião que
ca, mas ainda acha resolver todos os proble- papel principal. Se esta teoria e prática caminham
que esta última é mas, especialmente vier acompanhada da juntas. Em uma situação
mais importante. porque o ensino de PLE teoria, melhor. Em de saia justa não saberia
deve levar em conta a verdade, ambas são qual delas escolher, qual
nacionalidade dos apren- essenciais. ajudaria muito. Têm que
dizes e considerando que estar aliadas a fim de
cada um apresenta suas resolver o problema. A
especificidades, suas teoria muitas vezes sugere
idiossincrasias, é compli- atuações que nem sempre
cado aplicar uma teoria são possíveis e, nesses
que valha a qualquer casos, a prática finda por
contexto de ensino. E é sobressair-se. Para os
válida a experiência iniciantes, ir para a sala
(prática) e quanto mais com o respaldo de teorias
abrangente em termos de gera muito mais segurança
público for, melhor será e para a aula, por já ter o
poderá dar conta daquilo domínio/conhecimento da
que a teoria por si só não área. Na área de PLA, não
alcançaria. acredita que haja uma
grande lacuna entre teoria
e prática, por se tratar de
área muito nova, tendo a
teoria se desenvolvido
junto com a prática. Há,
tem-se conhecimento, de
muitos trabalhos sobre
sala de aula, sobre MD, o
que é muito interessante e
ajuda bastante ao profes-

!584
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

10 Mestrado e doutorado Começou no CENEX e já Na docência de PLA A linha de seu mestrado é o


não foram especifica- explicou antes como se para o PEC-G e da ensino de línguas estrangei -
mente na área do PLE. deu esse início. Em even- paixão pelo PLA, nas- ras, de forma geral e sua
Naquele, trabalhou com tos, fez minicursos que ceu o projeto para fazer pesquisa é sobe o ensino de
PLA, mais especificamente
aquisição de linguagem duravam um dia; leitura o mestrado na área, em
a abordagem que os LDs
e, neste, com variação de bibliografia constante. 2015, pesquisando o mais atuais fazem dos textos
fonológica, sendo que Mestrado: instrumento de porquê de esses alunos multimodais. Percebe-se
ambos ajudam no avaliação – efeito retro- não terem voz na insti- que a multimodalidade tem
ensino de PLE. Atual- ativo do exame Celpe- tuição. Há uma recipro- tomado conta do mundo,
mente participa do Bras. Fez visando apro- cidade: prática docente inclusive pelo avanço das
Fórum do Idioma sem ximar suas aulas dessa x mestrado. tecnologias e, muitas vezes,
Fronteira. Fez a capaci- necessidade. os professores ou os LDs se
esquecem de que uma
tação de nov/2015 a
charge, um panfleto, um
maio/2016 e gostou outdoor também são textos.
muito porque pôde ter Muitas vezes estão arraiga -
contato com textos de dos naqueles textos tradi -
teóricos que sabem cionais só com palavras.
nomear às coisas com Então, pesquisa a presença
as quais lidamos coti- desses textos multimodais
dianamente. nos LDs de PLA e precisou
fazer um recorte em leitura e
produção textual, ou seja,
mais especificamente, qual é
a abordagem que os autores
(dos LDs) fazem desses
textos? Quando são apresen -
tados, são explorados os
elementos multimodais? Ou
eles estão ali (nos LDs) com
outras finalidades? É um
pretexto para a discussão da
gramática e/ou do tema
apenas? Ou @ autor@
chama a atenção d@ alun@
para o conjunto textual
dentro da multimodalidade,
alertando-@ para o fato de
há outros (mais) elementos
que auxiliam na compreen -
são daquele texto?
11 É @ própri@ entrevis- É ter um jogo de cintura É estar abert@ à cultura Sim, conhece a expressão
tad@! Fez/Trabalhou para dar conta de um do outro, à própria e e entende que seja exata-
muito anos, entendendo determinado momento, poder/saber construir mente gostar do que se
ter um pé no PLEL e seja pela teoria, seja pela uma intercultura. É estar faz; é viver o ensino de
outro na alfabetização, prática. É aquele que dispost@ sempre a PLA não apenas na sala de
pois ficava parte do ensina ter domínio inclu- aprender. aula, mas no dia-a- dia dos
tempo na área do PLE, sive intercultura para alunos, preparando as
na FALE, parte no expandir conteúdos dos aulas e principalmente se
Letramento, na FAE. LDs e daquilo que o preparando para as aulas,
próprio discente possa ter
Acabou sendo conquis- buscando ser um@ profes-
sobre aspectos linguísti-
tad@ de vez pelo PLE, sor@ complet@, não só
cos e culturais da língua
tem o pé no PLE, tem no que diz respeito ao
alvo.
esse envolvimento estudo de teorias, mas
integral no trabalho sobretudo imergindo na
com os estrangeiros, cultura a ser ensinada,
com o material, com a entendendo que @ profes-
formação de novos sor@ de PLA tem que se
professores. Acabou ver meio como um estran-
tendo prestado concurso geiro. Estar apto a enten-
específico para essa der a cultura do discente,
área e hoje ministra porque pontes serão cons-
curso de PLE, na Fa- truídas e refletirão o en-
culdade de Letras da sino/aprendizagem da LP.
universidade onde é
efetiv@. O ensino de
PLE é o nome da sua
disciplina, a qual abriu
espaço para o PLE nos
cursos de Letras na
universidade.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Entrevista- (E17 (E18 (E19 (E20


dos AL) MC) Da) AE)
Perguntas

1 Sim. Começou a Sim. Há 34 anos na do- Sim. Há 21 anos atuando Nesse momento, não. Está
trabalhar em 2001, cência de PLE. como docente de PLE. afastad@ por questões de
no CENEX. Aqui, no saúde. Não está podendo
lecionar devido a proble-
Chile, desde 2008, na
mas auditivos; está con-
universidade. fundindo as palavras com
o zumbido que tem no
ouvido, a tonteira que
sente... Trabalha na mesma
instituição há mais de 36
anos.
2 A heterogeneidade de Foi chamad@, em 1982, Algumas experiências. Foi @ primeir@ contrata-
turmas grandes, de para dar aulas no antigo Não sabia espanhol. Foi da@ local. Teve muita
nível básico, inter- CEB, atual CCBRACH. O escrever colher, em es- sorte porque @ diretor@
então diretor preparava o da instituição à época lhe
mediário e avançado; panhol, e escreveu como
material que os docentes ensinou a lecionar. Qual-
contato com formas usavam. Um dia, foi se ouve: cutiara* e os quer dúvida que tinha, era
de aprender diferen- embora e todos ficaram alunos não entendiam o ajudad@ pel@ diretor@,
tes, levando à própria sem material. Daí que que era. Verbos semear e que lhe mostrou o percurso
aprendizagem de percebeu que o estilo que nomear. Ao ensiná-los, docente a ser trilhado. Daí
como dar aula. esse diretor usava na fazia perguntas que os poder dizer que não teve a
preparação do material era alunos respondiam, mas dificuldade encontrada por
similar ao dos cursos de sem entender do que se outros docentes no início
inglês, à época, e começou da prática precípua. Co-
tratava.
a seguir o que estes últi- meçou no primeiro nível e,
mos ensinavam, fazendo depois que já tinha segura-
as devidas adaptações ao nça, foi passando à docên-
ensino do português. cia de outros níveis.

3 Não uma formação Não. Formação acadê- Estudou Letras com menção É professor@ licen-
em inglês. Nunca pensou que
acadêmica, mas um mica, não. Quase todos fosse ensinar português para ciad@, mas para outra
curso que selecionava os professores são estrangeiros. Por ter se casado área. Para o PLE pode
dentre os aprovados, “jogados” na sala e têm com chilen@, ao vir morar em dizer que sua formação
quem seria o futuro que se virar. Agora é um Santiago, preparou um mate- foi pelos ensinamentos
rial em português, para a
professor do CE- pouco menos; antes era casualidade de conhecer dess@ antig@ diretor@.
NEX. Durava 40 assim. alguém que quisesse aprender Na UnB era tudo muito
horas, com pressu- a língua para ir ao Brasil. teórico quando estudou
Antes, ensinava português
postos teóricos, como língua materna. Chegou lá. Veio parar no Chile ao
palestras, trabalho a ensinar inglês também. 15 pedir uma bolsa para vir
autônomo, em sala de dias depois de já estar moran- estudar aqui algo mais
aula e, inclusive, do em Santiago, passou em prático. Voltou ao Brasil
frente ao Centro Cultura, na
acompanhando pro- Embaixada do Brasil e per- para dar aula já bastante
fessores mais expe- guntou ao guarda o que se preparad@ e isso @
rientes, elaboração de fazia ali e ele lhe disse: “aqui ajudou muito como
se dá aulas de português.”
relatórios etc. Começou tudo a partir daí. professor@.

4 Esse período no Teve estágio acadêmico na Teve estágio acadêmico de Fez estágio também nesse
CENEX, considera própria área. Fez Normal umas 800 horas, em São período no Chile.
como um estágio na Escola Caetano de Paulo, chegando a dar
Campos, em São Paulo e,
mais do tipo profis- aulas de inglês, em escola
depois, História, na USP.
sionalizante, porque Para ambos fez estágio e municipal, à época.
tinha autonomia. teve que apresentar tra-
balho, considerando que a
didática é o seu destaque.

5 Foi muito bom Não. Foi como aprender Não. Lamentavelmente, Não. Teve acompanha-
acompanhar aulas de a andar, andando. A não. Recebeu o material e a mento, como já relatou.
professores mais expressão de (des)agra- ordem para entrar na sala e
dar a aula, porque os alunos
experientes; foi do dos alunos foi/é/
estavam esperando. Co-
fundamental para a continua sendo o sinali- meçou aos trancos e barran-
própria formação, zador a cada aula. Ci- cos. A sorte foi que tinha
pois antes era docen- tação: Caminante, no experiência de dar aulas de
te de língua materna, hay camino/ se hace português como língua
1
em ensino fundamen- materna. Foi se reinventan-
tal. do e o faz até hoje. É docen-
te performátic@, pode-se
assim dizer.

caminho al andar.
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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

6 Discente de nível À época, como docente, A dificuldade foi não Tinha medo de falar bes-
avançado colocar na não tinha nem mesmo entender o espanhol. Não teira; medo de reagir
parede, durante uma consciência das dificul- tinha (e não tem) medo de diante de certas coisas.
explicação de item dades. Antes, não se enfrentar a sala de aula, Mas, com o tempo, a
gramatical que ensi- vergonha vai embora. No
tinha ideia do que é mas de a aula não dar
nava o fenômeno da início, passou vários
crase. Agora, explica ensinar português, como certo. Na hora da aula, é apertos. Como por
qualquer dúvida, se tem hoje. professor@, mas antes e exemplo, não saber o
independente do nível depois disso, é amig@ significado de algumas
da turma. também. palavras, porque usavam
textos muito difíceis,
inclusive regionais.

6 Não pode dizer que Não, não sentiu dificuldade. Com certeza. No começo, sempre nos
sentiu grandes dificulda- deparamos com alguma dificuldade ou
des no início, porque outra. Acha que alguns conteúdos gra-
maticais. Alguma pergunta que alun@
sempre se sente à vonta-
faz e que você nunca na vida tinha
de em uma sala de aula. pensado nisso e aquilo pode ser difícil
Gosta do que faz. de se responder no repente, de imediato.
O fato de ser professor@ de espanhol
ajudou-@ bastante aqui, no Chile,
pois sabia de algumas dificuldades
que o alunado tinha e resultou ser uma
troca de experiências muito profícua,
gratificante por ter a experiência que
tem com o espanhol. Lembra-se de um
alun@ estadunidense, quando deu aula
em uma empresa, que aprendia o espan-
hol e o português simultaneamente e,
nessa época, estava distanciad@ de seus
conhecimentos de inglês e, portanto, foi
mais difícil ensinar a essa pessoa, por-
que não era alun@ com o conhecimento
do espanhol para embasar o aprendizado
do português. Já havia tido outros alu-
nos, de outras nacionalidades: franceses,
alemão, mas todos já sabiam o espanhol
e, portanto, era mais fácil lidar com eles.

10 Até 5 anos atrás tinham Fez vários cursos de capacitação como Na verdade, pretende, doravante,
muitos cursos de capaci- citou anteriormente. especializar-se mais na área de Litera-
tação, tinham encontros tura. Trabalhar com a área de estudos
de professores de PLE literários e também estudos latino-
em Santiago e até chega- americanos e, talvez, mais para a
ram a ir para o exterior frente, não atuar mais como profes-
para tais encontros. Mas, sor@ de PLE.
de 5 anos para cá, não
têm mais nada.

11 É estar totalmente envol- Significa compromisso com o aprendiz; Acha que é estar completamente
vido com o ensino do que para @ docente, o que está entre- envolvid@ em todos os aspectos da
idioma, com o alunado, gando vai ter um resultado positivo. E língua, da cultura, enfim, tudo que
porque como têm um isso é o mais gostoso da sala de aula: abranja o PLE. É uma coisa que
curso livre, têm muitas que se tem o retorno permanente. Por talvez nos falte, a nós, docentes, que é
diferenças entre os dis- exemplo: no ano de 2015 teve uma o estar envolvid@s com o âmbito
centes: idade, incapaci- turma grande que quis prestar o exame integral do ensino de PLE. Ocorre
dade (limitações físicas, Celpe-Bras e todos prestaram, tendo que alguns miram para uma área,
como surdez, cegueira); sido todos aprovados, sendo que 2 outros para áreas diferentes, dentro do
daí que @ docente tem deles com o nível avançado. Isso é um próprio PLE, impedindo a integração
que ter o pé fortemente conforto. É um indicador de que deve do ensino.
preso à aula de PLE para estar aportando o que precisa. Mas não
conseguir lidar com toda quer dizer que é o ótimo, o melhor.
essa diversidade. Sempre deve melhorar, capacitar-se.

!587
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

7 Não, a teoria não é As duas coisas. Quando se As duas caminham juntas: Não. Acha que são as duas:
suficiente. A teoria é tem a teoria, há embasamen- teoria e prática; de mãos teoria e prática. As pessoas
orientadora; é muito to, mas a prática também é dadas. têm maneiras diferentes de
aprender. Para @ entrevis-
importante. A prática importante.
tad@ a gramática é muito
também é muito importante para aprender.
importante. Ambas Entende que se há que
são necessárias numa abranger as várias maneiras
mesma dose. de um discente aprender,
pois há individualidades em
uma classe, quanto à forma
de aprender e ela costuma
ser diferente. Qualquer
ferramenta para o ensino é
válida.

8 Bem no início, não No início, sim! Agora é que Satisfeit@ completamen- Sim. Porque ess@ dire-
era muito satisfeit@ não tem satisfação. Aumen- te, não. Mas também não tor@ que monitorava suas
com seu desempen- tou a reflexão, a autocrítica. insatisfeit@. Sempre aulas era tão rigoros@,
ho. Passou a se pre- procurou fazer o melhor. que @ forçava a uma
parar muito para se Se conseguir dar a meta- preparação de alto nível
sentir mais segur@. de do que se propôs, está para as aulas que minis-
satisfeit@. trava.
9 É fundamental por- A cultura é importantíssi- A língua sem a cultura é É muito importante.
que a língua se ex- ma no ensino de PLE. O como um cabide sem Muitas vezes o público
pressa pela cultura e interesse por aquilo que roupa. Saber os aspectos que demanda o curso na
vice-versa. Tudo da está acontecendo no país culturais aproxima aos instituição o procura pelo
nossa cultura que transmite a ideia de que a próprios alunos do povo aspecto cultural que possa
possa ser transparen- língua é algo vivo. brasileiro. aprender. A nossa cultura
tado pela língua, há (brasileira) chama muito a
que ser passo aos atenção dos chilenos. E é
aprendizes. por aí que se tem uma
grande possibilidade de
chegar a eles (alunado).
Eles amam a nossa músi-
ca; nossa mistura racial; a
forma como vemos,
vivemos a vida, compa-
rando à deles, que é muito
diferente.
10 Desde o curso prepa- Em 1995 houve a primeira Fizeram alguns cursos na Fez/Todos na instituição
ratório do CENEX, capacitação no CEB. Um instituição com os pro- fizeram vários cursos de
depois o aprendizado curso com José Carlos fessores: Edleise Men- capacitação pelo MRE.
sobre o Celpe-Bras: Paes de Almeida Filho e des, Regina L. P. Dell’I- Foram excelentes oportu-
aplicação, avaliação. Elizabeth Fontão. Foi um s o l a , N e l s o n Vi a n a , nidades para se capacitar
O mestrado foi na encontro de vários profes- Jerônimo Coura-Sobrin- e, também, conhecer
área, focando no sores de CEBs da América ho e José Carlos Paes de outros professores e
público hispano- do Sul. Pelo MRE, foram à Almeida Filho. Depois conhecer a realidade de
falante, mais preci- Argentina, que tinha um foram ao Brasil e fizeram outros países.
samente aspectos da projeto de vender o pró- outros cursos; também
escrita. Aqui, no prio LD para outros CEBs. foram à USACH e fize-
Chile, fez o curso Foram 15 dias de curso. ram cursos com alguns
Diplomado en la Depois foram ao Peru. Sob professores de lá. O fato
enseñanza del espa- a direção de Elisa Lopes, de não estar em imersão
ñol como lengua até 2010, tiveram vários gera defasagem. A língua
extranjera, área cursos: ora ministrados é um rio vivo e o docente
afim, que ajudou a pela própria diretora, ora não pode ficar numa
pensar sobre o PLE, pelos contatos dela que lagoa ou numa poça. Um
sempre seu foco. passassem por Santiago. pedido veemente: que
haja atualizados dos
docentes da instituição
que integra.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

11 É estar envolvid@, É estar envolvid@, preo- Em parte, tudo que já foi A integração entre os
estar dentro, cupar-se com o que faz e dito. Visar melhorar alunos tem que existir.
inegrad@; nunca com o que se discute sobre docentes e discente como Entre os professores
aceitou estar fora da PLE. É fazer autoava- tal, cada qual de acordo também. Estes, cientes de
sala de aula, apesar liação, ter autocrítica. com seu papel, com que a aula é para @
das demais ativida- Buscar atualizar-se per- preparo e coerência, alun@, deverá aproveitar
des. É não abrir mão manentemente. caminhando juntos. É ter a aula para se expressar.
de estar em sala de responsabilidade com o Ter o pé na sala de aula
aula. contexto e a atualização de PLE é esquecer do
no âmbito ensino/apren- mundo, esquecer de tudo
dizagem. que há fora daquele es-
paço. Acredita que tod@
professor@ é assim.

Entrevista- (E21 (E22 (E23


dos Ca) Ma) Mi)
Perguntas

1 Sim. Há mais ou menos Exatamente. Há 17 anos, em Santia- A 1ª. experiência como professor@ de
uns 16 anos. go. Antes disso, foi professor@ de PLE foi em 2012, no Chile. Antes tinha
espanhol no Instituto de Línguas, em dado aula somente de espanhol.
SP, nos anos 80. Já estava ali há uns
2/3 anos quando @ diretor@ lhe
pediu que substituísse professor@ de
PLE que estava doente. À proposta
considerou ridículo, porque é chilen@
e se encontrava em imersão (no Bra-
sil), mas a confiança d@ diretor@ @
levou a aceitar esse desafio. El@ se
comprometera a assistir a suas aulas.
Essa substituição acabou se transfor-
mando num longo período. Não tem
formação acadêmica como profes-
sor@, o que @ levou a, obrigatoria-
mente, estudar mais. A substituição
alcançou o período de um ano; depois
de 3/4 aulas, @ diretor@ lhe deu o
aval de que poderia continuar e assim
o fez.
2 As experiências são A 1ª. turma de PLE para a qual lecionou, Uma experiência bonita e marcante foi
sempre boas, porque os lembra-se que era formada por alunos de uma atividade de produção escrita que
alunos vão aprender o diversos primeiros níveis, que se junta- propôs a sua turma de português V, no
ram formando uma grande turma de
português na instituição ano de 2015, com o título: “O que é ser
nível 2. Não havia integração entre eles.
onde trabalha, volunta- As dinâmicas não fluíam naturalmente. mulher?” e, ao final dessa atividade,
riamente. Uma vez um@ Então decidiu que iria favorecer à inte- eles entregaram um poema, uma defi-
alun@ fez uma pintura gração dessa turma e resolveu selecionar nição do que significava para cada um
de um tema que tinha a algumas situações cotidianas que teriam deles. E muitos alunos lhe escreveram
ver com o Brasil e dedi- que encenar. Lembra-se que, à época, depois que, coo pessoas do sexo mascu-
cou ao curso. estava na moda o brinquinho nos ho- lino, nunca haviam pensado o que é ser
mens, o que gerava atritos/críticas entre mulher e que tinha sido muito bonito
familiares/amigos. Elegeu esse tema
pensar e refletir sobre isso. Acredita que
para que o preparassem O resultado foi
uma maravilha; eles apresentaram muito quando se consegue fazer o outro pensar
bem. A cada novo tema, armava novos de uma forma diferente ou em algo
grupos. Com isso, os discentes passaram novo, isso é muito bonito.
a se conhecer e formaram uma turma
integrada. Os alunos foram obrigados a
se conhecer(em) e aí a coisa fluiu.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

3 Não. Foi capacitada pelo Para ensinar o português, não teve Formação acadêmica para ensinar PLE,
MRE do Centro onde formação acadêmica. Mas, quando especificamente, não. Sua formação na
atua e também pelo ingressou no CEB, o 1º. curso de capaci - UFBA foi para o espanhol como língua
Instituto de Idiomas tação que pôde fazer foi em Buenos estrangeira, depois de haver estudado o
Aires, na temática abordagem comunica -
onde começou a dar português. Ao chegar ao Chile, acabou
tiva. Foi um curso de vários dias (10 ou
aulas de português. 15), de carga horária diária plena (manhã retomando o português e hoje está na
Recebeu capacitações e tarde). Depois participou do PROFIC, docência de PLE.
no decorrer de sua em Assunção (em 2007) e outro curso de
carreira. capacitação, em Lima (em 2010). No
próprio CEB, fez cursos sobre tarefas
comunicativas e avaliação do aprendiz;
fonética e fonologia, tópicos gramaticais
no ensino de português, prática do ensino
de português, produção escrita e outros.

4 Não. No seu curso acadêmico teve um ano Teve estágio acadêmico como professor@
de estágio e, depois, no Instituto de de espanhol. Obrigatório, por 2 semestres.
Idiomas, em SP, ficou 3 meses fazendo Por problemas nas escolas públicas do
Brasil, à época, acabou atuando no Ciência
estágio.
sem Fronteira e então deu aula aos discen-
tes que viajavam pelo programa em apreço.

5 Não. Não. Chegou, inicialmente no CEB, Sim. Antes de vir para o Chile, já tinha a
como professor@ horista, tendo pretensão de atuar no ensino de PLE e
recebido apenas uma turma, mas isso então acompanhou, na UFBA, grupo que
ofertava curso afim para alunos intercam-
lhe gerou uma sensação tão gostosa,
bistas, coordenado por expert daquela
porque essa caixinha mágica que se instituição. Pediu para acompanhar aulas,
chama sala de aula, faculta-lhe o como ouvinte, de alguns professores desse
esquecimento de mil dores; esquece grupo, PROEL, se não se equivoca, opor-
tudo: os problemas somem quando tunidade em que recebia desses docentes
ingressa em uma sala de aula. Na 1ª. mais experientes o material das aulas por
aula já se sentiu completamente à eles ministradas e isso @ ajudou muito
vontade. nesse começo.

7 Não. Acredita que teoria Vai depender da natureza da saia justa. Não. Acha que a experiência, a prática.
e prática andam juntas. A Porque se é algo de natureza compor- Por exemplo: hoje sente muito mais
teoria é muito importante tamental, é lógico que a prática, a expe- segurança em sala de aula; tem experiên-
cia para prever quais as dificuldades que
para poder ratificar à riência que resolve. Mas se for no
os seus alunos terão, quando vai trabal-
prática e, portanto, as sentido de conteúdo, demandará um har com eles determinado conteúdo,
duas têm que andar conhecimento profundo. Como lembra diferentemente de como estava, em
juntas. sempre aos alunos, professor@ não é termos de preparo, quando começou, em
Deus. Houve ocasião em que ficou sem 2012, a dar aulas de PLE. No seu 1º.
responder de imediato a uma dúvida de Curso, lembra-se que lhe chegavam
alun@, por desconhecer o que lhe coisas e tinha que se inventar, buscando
perguntava e pediu que aguardasse um soluções para determinados assuntos:
como explicá-los? Qual a melhor forma?
pouco para lhe dar a resposta.
Hoje já tem um pouco mais de experiên-
cia.

8 Sim, sentia-se muito No início, sentia que deveria ter uma Acha que não se sente satisfeita até
entusiasmad@. Acredita maior autocobrança, estudar mais. Bus- agora. Não porque seja perfeccionis-
que saía com mais ener- cou se preparar. ta, mas por sentir que tem muito
gia do que entrava com ainda para aprender. Daí que, toda
ela para dar aula, porque vez que termina uma aula, anota
r e c e b i a e n e rg i a d o s todas as coisas que funcionaram, mas
alunos. No início era também as que sente que não e, com
muito fantástico. isso, vai buscando melhorar cada vez
mais. Sente que ainda não alcançou o
nível docente a que almeja.

!590
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

9 Nós não podemos sepa- Esse conhecimento é importantíssimo. Acha que esse conhecimento é essencial
rar a cultura da língua. Língua e cultura são duas linhas parale- porque a língua e a cultura são assim:
Sempre há o aspecto las que se complementam. Partindo da “grudadinhas”. Não há como separá-las.
cultural no ensino de ideia de que o idioma cumpre uma Não tem como ensinar LP, ou seja, a
variante brasileira, sem estarem inseri-
uma língua. função social e que é usado dentro de
dos aí os aspectos culturais. Acha que,
um contexto histórico, político e social, além disso, a interculturalidade, a iden-
não tendo esse referente (cultura), tidade que @ alun@ vai criar a partir do
trunca. A cultura nos aproxima muito momento em que for conhecendo essa
mais do conhecimento do idioma. A nova língua (português), vai ser funda-
língua deve ser o veículo para levar a mental para o processo de seu aprendi-
cultura à sala de aula. zado. Não apenas para que alcance
compreender uma expressão, mas tam-
bém como ela se formou, por que surgiu.
Se para o próprio brasileiro já é difícil
entender essa diversidade, imagina para
um estrangeiro. É um desafio para nós,
docentes, pois ninguém dá conta de
todos esses aspectos.

“Pensamento crítico em sala de aula (PLE)”


Oscar X. Melendez Robles


Professor do Centro Cultural Brasil – Peru
Embaixada do Brasil em Lima
oscar.melendez.robles@hotmail.com

Abstract: hoje nós temos um novo tipo de aluno em sala de aula, o aluno 2.0, que pertence à
conhecida Geração X. Este tipo de aluno precisa aprender línguas estrangeiras para cumprir
diferentes objetivos, mas também precisa aprender certas habilidades para questionar-se e
resolver problemas no futuro em contextos culturais diferentes. A maioria de nossos alunos
está vinculada às redes sociais e à internet recebendo muita informação. Nosso dever como
professores é guiá-los para que possam processar e entender bem essa informação na língua-
alvo. Neste trabalho, gostaria de debater três pontos importantes: Por que o Pensamento
Crítico é importante? O que é mesmo Pensamento Crítico? Como o integramos ao ensino de
Português Língua Estrangeira (PLE)? Além disso, gostaria também de ver como adaptar
atividades às diferentes sub-habilidades do Pensamento Crítico: Entender, Aplicar, Analisar,
Avaliar, Criar.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Key words: línguas estrangeiras, pensamento crítico, PLE, ensino.

Introdução

O que é pensamento crítico?

Definir este termo não é simples, pois representa um conjunto de atividades


complexas desenvolvidas pelos alunos durante uma aula específica. Segundo John Hughes
(2014), existe um interesse crescente em entender melhor o que significa pensamento crítico
na área de educação, em especial, no ensino de línguas. Podemos entendê-lo como o processo
de compreender, avaliar e analisar a informação que recebemos cada dia. Isto é, a habilidade
que as pessoas têm para refletir, julgar razoavelmente e decidir em que acreditar ou o que
fazer. Poderíamos dizer que o termo-chave seria: questionar-se.

O pensamento crítico tem muito a ver com o quadro de objetivos educacionais:


Taxonomia dos Objetivos Educacionais, desenvolvido por Benjamin Bloom em 1956. O
autor e seus colaboradores elaboraram uma estrutura hierárquica colocando o Conhecimento
no cume da pirâmide, tendo abaixo a Compreensão, a Aplicação, a Análise, a Síntese e,
finalmente, a Avaliação. Em 2001, Anderson y Krathwohl, decidiram revisar esta taxonomia e
substituíram as palavras mencionadas por verbos: lembrar, entender, aplicar, analisar, avaliar
e criar. Isto é, para os autores, estas “palavras de ação” descreviam os processos cognitivos
pelos quais os “pensadores” passam para adquirir e processar com o conhecimento.

Importância do Pensamento Crítico

O pensamento crítico é considerado uma habilidade do século 21, e foi mencionado


pelo presidente americano Barack Obama em um discurso na Câmara de Comércio Hispana
sobre a Educação Americana Competitiva e Completa (poderia colocar parte do texto e
indicar o ano).

No nosso caso, como professores de PLE, a questão é ir além da avaliação escrita, dos
exercícios simples de completar as lacunas ou responder perguntas simples com um sim ou
não. Nosso trabalho deveria estar focado em proporcionar o ambiente e os elementos
adequados para que os alunos possam desenvolver suas habilidades para solucionar
problemas, especialmente aqueles que eles devem encarar, com o objetivo de adquirir a
língua-alvo.

Por outro lado, nossos alunos recebem informação todos os dias em seus telefones,
tablets e computadores. Eles interagem com essa informação, pois reagem a ela e até

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

respondem, providenciando informação nova. Isto é, estão viciados no “trânsito da


informação”. Por outro lado, é importante que eles aprendam a avaliar e identificar as
informações que são úteis e relevantes para o conhecimento.

Então é importante que nossos alunos “usem” o cérebro, conhecido como a Máquina
do Pensamento Crítico, que eles sejam capazes não só de reunir informação, mas também de
usá-la, analisá-la e, inclusive, de produzir na língua-alvo com base nela.

Pensamento Crítico em aula de PLE : O caso do CCBP

No caso do Centro Cultural Brasil – Peru, somos nós os professores, junto com a
coordenação pedagógica e a direção, que criamos o material a ser usado em sala de aula, isto
é, existe uma produção de material autêntico. O objetivo do material é expor nossos alunos a
diferentes experiências comunicativas possíveis e que eles possam buscar solução para
problemas na língua-alvo, através de debates, discussão, elaboração de projetos, etc.

Nosso material inclui textos que podem ser explorados pelos colegas professores de
PLE de forma que possam ser aproveitados totalmente pelos alunos.

Por exemplo, incluímos um texto no qual uma ex-aluna do CCBP, que hoje estuda no
Brasil, conta a sua experiência de buscar e encontrar um lugar onde morar. O texto pode ser
usado para a realização de diferentes atividades, de acordo com o planejamento de cada
professor e do andamento do curso com a turma específica. No meu caso, planejei uma aula
usando as sub-habilidades do pensamento crítico e pensei em uma atividade para cada fase.

1) Entender: O objetivo aqui era ajudar os alunos a entender o texto em geral. Para isto, planejei
um exercício de localização de informação, por exemplo: lugar onde mora, instituição onde
estuda, tipo de moradia preferida, tipo de moradia escolhida, etc.

2) Aplicar: Os alunos aqui tiveram que usar a informação do texto em uma tarefa específica.
Neste caso, planejei algumas frases para que eles decidissem se os conceitos eram verdadeiros
ou falsos.

3) Analisar: Logo depois, veio a fase de análise mas de uma análise da linguagem. O objetivo
era que o aluno não só identificasse a informação. Ele foi orientado a ressaltar a informação
que alicerçava os fatos apresentados.

4) Avaliar: Fiz uma atividade em que escolhi seis frases do texto e pedi para eles as
classificarem como explicitadoras de fatos ou opiniões. Além disso, eles puderam identificara
a estrutura da língua e observar como os fatos e as opiniões foram descritos no texto.

5) Criar: Os alunos elaboraram uma pasta na qual tinham que reunir e organizar informações
referentes a moradias, transporte, etc., criando assim um produto pessoal ou grupal. Desta

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

maneira, personalizam a informação obtida. É importante mencionar que o trabalho não foi
criação do aluno.

Logo depois, os estudantes se reuniram em grupos e trabalharam com a pasta de um


grupo diferente. Eles conversaram e escolheram onde morar entre as opções apresentadas nos
documentos. Finalmente, no grupo de Facebook, os alunos comentaram sobre a experiência
de trabalhar uma pasta com informações organizadas e a forma de elaborá-la.

Reflexões

- As atividades planejadas com a leitura do texto deram muito certo pois os alunos se
envolveram desde o início no tema que foi do interesse deles.

- Levar este tipo de textos (temas) à sala de aula desperta a curiosidade do alunos, já
que os assuntos e experiências tratados ou citados no texto fazem parte do cotidiano dos
mesmos.

- Embora as atividades tenham sido feitas pelos alunos na língua-alvo, na parte final
da discussão em grupos, cerca de 20% da turma usou a língua materna para se comunicar. Em
uma nova sessão a conversa em grupos poderia ser guiada através de perguntas numeradas.
Nesse caso, a atividade foi indicada apenas com instruções orais.

- A atividade final (5) poderia ser trocada por uma reportagem. Isto é, o aluno teria que
procurar um amigo/pessoa que foi estudar no Brasil e teria que entrevistá-lo para depois
elaborar uma reportagem escrita.

Conclusões

- No século XXI nossos alunos são “bombardeados” com informações de diferentes


partes do mundo em diferentes línguas.

- O pensamento crítico faz com que os alunos não só reúnam essa informação e a
armazenem, mas também que possam usá-la para (comentá-la) uma produção adequada e
criativa na língua-alvo.

- O pensamento crítico poderia ser resumido em uma atividade mental: questionar-se.


Quando os alunos se questionam sobre o que leem ou ouvem, ativam fases de pensamento
que levam a uma análise e julgamento dos dados e conhecimento obtido.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

- Os alunos desenvolveram um trabalho de busca e escolha de informação, o que os


fez descobrir dados interessantes sobre a cultura-alvo. Este tipo de atividade proporciona o
desenvolvimento da consciência cultural dos alunos, pois conheceram a cultura-alvo e a
comparam com a sua, identificando semelhanças e diferenças. Além disso, foram eles que
trouxeram essas informações à sala de aula e as compartilharam com o professor, o que criou
um interesse particular pela busca de fatos culturais, para posterior discussão em sala de aula.

Bibliografia

- Hughes, J. (2014). Critical Thinking in the Language Classroom. Reino Unido: Eli.

- National Geographic Learning [NationalGeographicLearning] (2014, Marzo 31) John


Hughes, Critical Thinking in the ELT Classroom [Arquivo de vídeo] Recuperado de: https://
www.youtube.com/watch?v=QZxIaVyVBhE

- Office of the Press Sercretary (2010). The White House: Remarks of the President to the
United States Hispanic Chamber of Commerce. Washington, D.C, EUA. Recuperado de:
https://www.whitehouse.gov/the-press-office/remarks-president-united-states-hispanic-
chamber-commerce

- Armstrong, Patricia (2016) Vanderbilt University-The Center for Teaching: Bloom’s


Taxonomy. Nashville, TN, EUA. Recuperado de: https://cft.vanderbilt.edu/guides-sub-pages/
blooms-taxonomy/

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Português como Língua Materna

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Estudos sobre gêneros textuais e implicações pedagógicas no ensino da


Língua Portuguesa: atuando na contemporaneidade

Ana Carolina A.de Barros (UFPE)


barros.anaalmeida@gmail.com

Sheila Alves de Oliveira (UFPE)


sheila_alves18@hotmail.com

Resumo: este artigo objetiva refletir sobre o ensino de gêneros textuais na


contemporaneidade, pensados a partir de sua aplicabilidade relacionada às experiências
culturais dos alunos. Como pressuposto teórico, utilizamos as questões desenvolvidas pela
Linguística Aplicada, LA, bem como uma correlação entre as dinâmicas propostas pelos
estudos da Linguística de Texto, LT, articulando-as ao ensino de Língua Portuguesa, LP.
Compreendemos que as práticas desenvolvidas comunicativamente, efetivadas por meio dos
gêneros textuais, configuram-nos como instrumento de mudança e atuam como “ferramentas”
às quais se recorre na promoção e participação social de alunos-cidadãos, em uma
diversidade de práticas linguajeiras através da atuação em múltiplas esferas, que comportam
as atividades comunicativas. Os gêneros possibilitam um agir discursivo na sociedade em
uma determinada cultura, e, como salienta Bunzen (2003, p.18), “são as situações retóricas
que ajudariam o aluno a pensar nos propósitos comunicativos, na audiência, na circunstância
e no gênero”. Para tanto, propomo-nos a pensar sobre como uma concepção
sociointeracionista da linguagem, adotada no trabalho com os gêneros textuais,
operacionaliza ou evoca questões de cunho social em comunhão com os elementos culturais.
Salientamos que as práticas materializadas nos discursos podem apontar para uma efetiva
atuação de sujeitos, em sua constituição socio-histórica, favorecendo o trânsito dos
interlocutores na participação em ambiente social, pois quando há o domínio de um gênero,
passamos a realizar objetivos em situações particulares (MARCUSCHI, 2008). Apoiamo-nos,
para tanto, em teóricos como: Rojo (2003), Bunzen (2004), Marcuschi (2008), Moita-Lopes
(1996; 2013), Koch (2011; 2012), a fim de que os alunos intuitos em movimentos
discursivos, materializados nos gêneros, concebam e imprimam em suas práticas, um agir na
linguagem que os faça atuar de maneira crítica, valorativa, reflexiva, pois são agentes e,
como tais, podem empoderar-se dentro das vivências e papéis por eles assumidos, no acesso
aos bens simbólicos.

Palavras-chave: Linguística Aplicada; Linguística Textual; Ensino de LP; Gêneros textuais;


Cultura.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Introdução

Certamente, entender os textos enquanto unidade comunicativa humana,


concretizados via gêneros, é assumir que eles realizam “[...] linguisticamente objetivos
específicos em situações particulares” (MARCUSCHI, 2008, p. 154), em efetivações e
movimentos que estão além do puramente linguístico, em constructos que funcionam como
“[...] materialidade textual a uma determinada interação humana recorrente em um dado
tempo e espaço [...]” (MEURER & MOTTA-ROTH, 2002, p.11), instaurando, assim,
“rotinas” comunicativas em ações discursivas.

Compreendemos, portanto, que as práticas desenvolvidas comunicativamente,


efetivadas por meio dos gêneros textuais, configuram-nos como instrumento de mudança e
atuam como “ferramentas” às quais se pode recorrer na promoção e participação social de
alunos-cidadãos.

É em uma diversidade de práticas linguajeiras através da atuação em múltiplas


esferas, que comportam as atividades interlocutivas, onde possibilidades de alcance,
transformações e/ou ajustamentos quando sobre elas se reflete, dados os intercâmbios e
práticas realizadas por esses agentes de linguagem, que acessos aos bens instituídos
simbolicamente tornam-se possíveis.

Na esteira dessas considerações acerca do uso da linguagem, as práticas pedagógicas


voltadas ao ensino dos gêneros ganharam maior visibilidade no Brasil após a publicação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais de Ensino (PCNs), tanto na modalidade Fundamental
(1998) quanto no Ensino Médio (1999). A proposta dos PCNs de ensino da língua materna
voltado ao estudo dos gêneros foi colocada por Rojo (2000) como uma tentativa de
desestabilização de práticas pedagógicas vistas como tradicionais, uma vez que o conceito de
linguagem passa a ser tomado de maneira ampla, visto como “ação interindividual orientada
por uma finalidade específica, um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais
existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos de sua
história” (2000, p. 15).

Presenciamos nos documentos o empenho em nivelar as discussões teóricas de nível


acadêmico às práticas estabelecidas em sala de aula, por muitas vezes, no entanto, tal objetivo
não vem sendo alcançado, pois tais práticas dependem de demais elementos, como a
formação docente, o material didático e a avaliação nacional. (ROJO, 2000, p.28). Pensando
nisso, propomo-nos a ampliar a discussão sobre o ensino de gêneros, levando em
consideração as perspectivas aqui mencionadas, para observarmos se as práticas pedagógicas

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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condizem com o que vem sendo discutido a nível acadêmico. Para tanto, traçaremos, a seguir,
um percurso que vai da concepção acerca dos gêneros aqui adotada às práticas de ensino que
reconfiguram esse entendimento, transpondo-o para a sala de aula.

Dos gêneros textuais às implicações pedagógicas

Para que seja possível atuar nas realidades em que estamos imersos, os gêneros
configuram-se como orientadores não só na ação, mas também ao refletirem práticas de
linguagem revestidas de intersubjetividades, nas formas de ser e conhecer, encontrando
amparo na recorrência e na compreensão em como os eventos são/estão socioculturalmente
ambientados, apresentando graus de estabilidade suficientemente reconhecíveis, o que auxilia
estrategicamente nas dinâmicas e coerências comunicativas. (BAWARSHI & REIFF, 2013)

O que parece haver são rotinas e práticas interacionais que, através dos gêneros, são
tornadas possíveis mediante a negociação e produção de sentidos, pelas “[...] pessoas, que
como membros de grupos sociais, se engajam em eventos comunicativos por intermédio da
linguagem”, como afirma Acosta Pereira (2007, p.1708), em dinâmicas que favorecem o
(re)conhecimento de um mundo dotado de alguma estabilidade, beneficiando uma atuação
conjuntamente instituída entre agentes, que se envolvem não na objetividade em si mesma,
mas são “regidos” sob seus efeitos.

O que esses constructos fazem e permitem, é equilibrar um mundo anunciado,


esquematizando ações, dando sentido às percepções e ao que é “normatizado” dentro das
comunidades, fortalecendo vínculos e heranças. É, pois, nessas configurações que
salientamos e torna-se fundante um aspecto pontuado por Marcuschi (2008, p.93), quando ele
diz que um texto

[...]se dá numa complexa relação entre a linguagem, a cultura e os sujeitos históricos


que operam nesses contextos. Não se trata de um sujeito individual e sim de um sujeito
social que se apropria da linguagem ou que foi apropriado pela linguagem e a
sociedade em que vive.

Isto implica, então, em uma reflexão que concebe as materializações textuais, em


gêneros, válidas, significativas e “reais” quando compartilhadas societariamente, quando se
tornam realidade para os grupos que as autorizam circular, quando funcionam dentro das
práticas efetivas e constitutivas de um meio, de uma esfera, estando coordenadas e
efetivamente articuladas às expectativas, às funcionalidades e finalidades para elas
instituídas. São ainda unidades complexas, pensadas além do nível linguístico, pois enquanto
materializações textuais, englobam elementos de cunho social para desenvolver significância
entre os agentes comunicativos. Para Bronckart (1997, p.71),

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contemporâneas

[...] toda unidade de produção de linguagem que veicula uma mensagem


linguisticamente organizada e que tende a produzir um efeito de coerência sobre o
destinatário. Consequentemente, essa unidade de produção de linguagem pode ser
considerada como a unidade comunicativa de nível superior.

Percebemos que o uso da linguagem, e os textos que resultam desse uso, mantêm
vínculo com as necessidades e demandas das formações sociais. Sendo assim, o
entendimento de linguagem vinculado a sua natureza social permite pensarmos o ensino de
língua de maneira mais ampla, integrando “os principais eixos do ensino: leitura, produção e
análise linguística” (BUNZEN, 2004, p.222) de modo a aproximar as práticas pedagógicas ao
contexto dos alunos, às características culturais e sociais do meio em que as interações
discursivas acontecem naturalmente. A leitura, enquanto um dos eixos de ensino, possibilita-
nos observar a relevância de considerar não apenas o conhecimento linguístico, mas também
o que é da ordem do textual e do social para que as inferências possam acontecer e os textos
tornem-se significativos.

Moita Lopes (1996) menciona dois tipos de conhecimentos ligados à prática da leitura
e interpretação, seriam eles o conhecimento esquemático, referente aos elementos
extralinguísticos que auxiliam nas inferências do leitor e o conhecimento sistêmico, esse da
ordem do linguístico (lexical, sintático e semântico). Para o autor, “fazendo uso do
conhecimento esquemático e sistêmico, o leitor seria visto como parte de um processo de
negociação do significado com o autor” (idem, p.141). Dessa forma, a perspectiva
decodificadora do ensino de língua materna junto às atividades meramente gramaticais
perdem força quando confrontadas ao entendimento de língua no âmbito social, motivando
um tratamento didático voltado ao desenvolvimento cognitivo e cultural e ao conhecimento
dos gêneros que circulam nas esferas de comunicação predominantes na vivência
comunicativa do aluno.

Uma das áreas que tem desenvolvido importantes contribuições a respeito do uso e
ensino da Linguagem é a Linguística Aplicada (LA), tendo como uma de suas características
centrais a transdisciplinaridade. É possível observar no trabalho dos pesquisadores dessa área
uma preocupação em desenvolver estudos que aproximem disciplinas em torno de um eixo
central, objetivando investigar e oferecer possibilidades aos desafios advindos do uso da
Linguagem. Moita Lopes (2013) recobra as discussões já realizadas em torno da LA,
pensando-a vinculada ao contexto escolar, área de interesse da nossa discussão. Discorrendo
sobre o desenvolvimento epistemológico da disciplina, o autor pontua a noção de sujeito,
desenvolvendo um percurso que vai dos pressupostos positivistas ao entendimento do sujeito
social, abordagem consolidada nos anos 90. Desse modo, a LA “o coloca como crucial em
sua subjetividade ou intersubjetividade, tornando-o inseparável do conhecimento produzido

!600
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

sobre ele mesmo assim como das visões, valores e ideologias do próprio pesquisador” (2013,
p. 17). Nessa perspectiva qualitativa, os interesses caminham para a observação do uso da
linguagem em consonância com as condições políticas, ideológicas e éticas, descentralizando
às atenções voltadas às generalizações.

Um ambiente fértil para investigação e que reflete as demandas de uma sociedade


cada vez mais complexa e globaliza são as salas de aula. Muito se fala a respeito da
necessidade de inovações teórico-metodológicas, muitas vezes devido à demanda dessas
modificações na estrutura social, como também do entendimento de linguagem enquanto
constituída socialmente. Ainda segundo o autor é necessário desenvolver pesquisas na área
que se preocupem em proporcionar ganhos significativos à melhoria das condições humanas,
compreendendo que “fazer pesquisa é também fazer política”. (MOITA LOPES, 2009, p. 48).
Pensando assim, muito podemos contribuir para o desenvolvimento social e humano dos
alunos.

Há de se entender que uma diversidade de práticas linguajeiras, através da atuação em


múltiplas esferas, possibilita um agir discursivo em uma sociedade ou em uma determinada
cultura, as situações sob as quais se está envolvido ajudam, por exemplo, o aluno a pensar em
propósitos/objetivos comunicativos, na sua audiência, nas circunstâncias e,
consequentemente, no gênero (BUNZEN, 2004) a ser utilizado, direcionando e ampliando,
assim, as possibilidades e o trânsito em distintos espaços a partir de um domínio claro e
efetivo de acessos a bens linguisticamente instituídos e promovidos na e para a construção de
mundos e acessos a domínios, em propostas e situações legítimas de uso, quando da
reivindicação de posturas e processos que são especificamente constitutivos em possíveis
espaços de atuação desses sujeitos, em posicionamentos e ações de/no mundo, apontando
para a “[...] ação cuja realização se dá através do gênero utilizado” (MILLER, 1994, p. 23).

Quanto maior a diversidade de gêneros trabalhados em sala de aula, maiores são as


possibilidades desses indivíduos interagirem verbalmente na sociedade, munidos de um vasto
repertório que facilitará a participação satisfatória nas mais diferentes esferas sociais. É esse
domínio que permitirá ao aluno a interação com o outro, discutindo e participando dos
acontecimentos que estão ao seu redor.

Considerações finais

Sobre as reflexões aqui propostas, um dos pontos que podemos mencionar como
herança é o entendimento de que o que reverbera, indubitavelmente, se assim considerarmos,
são os aspectos que envolvem tanto a cultura como o poder e os desdobramentos das ações
linguajeiras em cada uma das instâncias comunicativas onde os interlocutores acabam por se

!601
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

situar. Bunzen (2004) afirma que esse processo concerne a aspectos de valores, prioridades e
deslocamentos, em circunstâncias mais ou menos imediatas, dentro de certas tradições e/ou
espaços escolares, nos mecanismos e movimentos com os quais lidam para/nas conduções e
apropriações de práticas de linguagem, bem como no quanto esses direcionamentos
circunstanciam, reduzem ou ampliam, textualidades e discursivizações significativas, nos
diálogos ali travados, em (re)construções e desconstruções, apontando e orientando, através
de encaminhamentos, para o que de ideológico, cultural, social, institucional e rotineiro cabe
e concentra a ampla e instigante diferença entre os constructos, que ganham força e
relevância nas (co)ocorrências e possibilidades, tanto no que se refere a mudanças como no
que condiz às persistências e/ou resistências, bem como naquilo que desemboca em uma
língua acompanhada de vida e dinamicidade.

Em tais orientações o que está aí também implicado são os aspectos constitutivos ou


próprios da língua, suas efetivas (re)criações, possibilidades e vivicidade, dada a capacidade
plásticas e adaptativa (KOCH & TRAVAGLIA, 2011; KOCH & ELIAS, 2012), em
verdadeiras heterogenias, bem como das relevâncias no jogo interlocutivo, nos
“enquadramentos” e integralidade de uma rede fortemente instituída pelos atores de
linguagem, no socialmente situado, em práticas que apontam ou devam apontar, de modo
legítimo, ao que se torna substancial para o agir textual-discursivo no mundo, na utilização
que recorra ao que, de fato, é conveniente em graus que revistam necessidades comunicativas
efetivas dos alunos e suas “realidades”, em termos do que se torna indistintamente importante
para uma atuação interlocutiva efeticaz, em efetivações de práticas orientadoras que atendam
às demandas e propósitos específicos de atuação, mas também em construção significativa,
desde que favoreçam reflexões e sentidos mais próximos às realidades postas, quando
entendidos, os gêneros, como recursos que viabilizam acessos a bens socialmente
distribuídos, quando do caráter compreendido como transformador, desde que sinalizem para
o potencial qualitativamente crítico e estruturador de vidas, que se desenvolvem sob a luz de
estruturações e acordos sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Letramento Visual, Ensino e Práticas Sociais. In: IV Simpósio Internacional de Estudos de
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Estudos de Gêneros Textuais - SIGET. Tubarão - SC: UNISUL, 2007.

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Tradução Benedito Gomes Bezerra. 1a ed. São Paulo: Parábola, 2013.

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Cadeias referenciais em textos do gênero carta aberta: um projeto didático


para a educação de jovens e adultos

Profª Drª Ana Maria de Carvalho Leite

!603
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

FALE/UFMG
anadecarvalholeite@gmail.com

1 Contextualização da pesquisa

O trabalho que aqui relatamos situa-se no âmbito da Linguística Aplicada (LA) e,


como tal, aborda um problema de linguagem que possui reflexos na sociedade e ultrapassa os
estudos restritos à sala de aula. Entre os problemas mais frequentes nesse contexto, podemos
afirmar que as dificuldades em produzir textos por alunos que concluem o Ensino Médio
produzem efeitos diretos nas situações sociais em que a escrita é requerida. Conforme
observação de Charles Bazerman (2005), ao escrever textos, produzimos também fatos
sociais “que afetam as ações, direitos e deveres das pessoas” (BAZERMAN, 2005, p.21).
Segundo o autor,

Cada texto bem sucedido cria para seus leitores um fato social. Os fatos
sociais consistem em ações sociais significativas realizadas pela
linguagem, ou atos de fala. Esses atos são realizados através de formas
textuais padronizadas, típicas e, portanto, inteligíveis, ou gêneros [...]
(BAZERMAN, 2005, p.22).

Na prática, as dificuldades que os alunos enfrentam na produção de textos bem


sucedidos, ou seja, que atinjam os objetivos esperados, são um problema do mundo real,
centradas no uso da linguagem; por isso, podem levantar diversas questões para pesquisa,
tornando-se passíveis de interesse da Linguística Aplicada. Tais investigações têm muito a
oferecer, já que o uso inadequado da linguagem pode comprometer seriamente a participação
em uma sociedade letrada. No âmbito da formação do docente, a LA pretende contribuir para
que haja o entendimento de que a linguagem é socialmente construída, o que requer uma
conscientização política com relação aos problemas inerentes a linguagem e sua vinculação
com o contexto social.

Nosso trabalho se inscreve nesse quadro, uma vez que parte das dificuldades
encontradas por alunos que concluem o Ensino Médio em realizar um dos processos de
textualização que julgamos fundamental na produção textual, a referenciação. Para lidar com
a questão, procuramos respaldo na Linguística Textual, na Pedagogia e na Psicologia
Educacional, bem como em propostas curriculares para o Ensino da Língua Portuguesa no
Brasil quais sejam, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998), o Conteúdo Básico
Comum de Língua Portuguesa (CBC-LP, 2008) e a Proposta Curricular para a Educação de
Jovens e Adultos (PCEJA, 2002).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A escolha de alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA II) como sujeitos de


pesquisa deu-se principalmente pelo fato de essa modalidade de ensino fazer parte das
políticas públicas adotadas pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade e Inclusão (SECADI), para a redução de desigualdades educacionais. No tocante
à organização dos textos, por exemplo, as diretrizes da EJA recomendam explicitar a
mobilização de habilidades que envolvem o conhecimento de mundo, da organização e das
características de um gênero textual, e o conhecimento linguístico, tais como itens lexicais,
estruturas sintáticas, recursos estilísticos. Ampliar tais habilidades é uma imposição que vai
além de uma explicação teórica. Trata-se de levar a uma reflexão sobre os recursos que a
língua oferece e à utilização desses recursos em situações apropriadas.

Assim, tendo em vista os princípios que regem a EJA para o ensino de Língua
Portuguesa, condizentes com nossas opções teórico-metodológicas, com a colaboração do
professor de Língua Portuguesa da referida turma, elaboramos um Projeto Didático com
Carta Aberta (doravante PD), que guarda muitos pontos em comum com a noção de
Sequência Didática (DOLZ, NOVERRAZ, SCHNEUWLY, 2004).

Partimos da hipótese de que um trabalho sistemático com um gênero textual poderia


desenvolver nos alunos habilidades específicas na produção de textos: tanto em relação a
aspectos de sua construção global, quanto aos aspectos mais pontuais de sua organização
(como na construção de cadeias referenciais que favorecem a unidade temática e a progressão
do texto).

O objetivo geral da investigação foi analisar um trabalho sistematizado de leitura e


escrita com um texto do gênero Carta Aberta, verificando até que ponto esse trabalho poderia
contribuir para o desenvolvimento das capacidades do aluno como produtor de textos.

2 A produção de textos na escola: o problema

2.1 Como tem sido na prática

Apesar das várias reformas de ensino da língua que buscaram melhores propostas de
produção textual, não é prática comum na escola proporcionar experiências de interação entre
os interlocutores por meio de textos escritos em situações comunicativas concretas. Significa
que as atividades de escrita são, na maioria das vezes, de caráter simulado e prescritivo, nas
quais não se define com precisão a quem o aluno deve se dirigir quando escreve e com que
finalidade. Além disso, os textos dos alunos são feitos em versões únicas, sem revisões, o que
não permite que as dificuldades possam ser discutidas e trabalhadas e, por consequência, que
avanços sejam detectados. O tratamento didático equivocado dado à atividade de produção

!605
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

escrita pode ser atestado pelas redações de exames oficiais, que são bons indicadores de um
ensino centrado em regras gramaticais, vistas como únicas ferramentas para intervir nos
textos dos alunos.

2.2 Mudanças de perspectivas para a prática

Um dos maiores ganhos para a prática de produção de textos na escola é a abordagem


interativa da língua que subsidia os tópicos e habilidades presentes no CBC-LP (2008). Essa
perspectiva de trabalho opera com a ideia de produção textual como atividade complexa,
situada em contextos da vida cotidiana, que envolve, além da materialidade linguística,
fatores discursivos, cognitivos, afetivos e sociais. Nesse documento curricular, procura-se
superar a noção de redação como atividade avaliativa e de texto como produto da aplicação
de regras gramaticais, pois, embora esses conhecimentos sejam necessários, é preciso
considerar “outros aspectos sobre a língua e sobre as convenções sociais que caracterizam o
uso dos textos as serem redigidos” como observa Joaquim Dolz (2010), em entrevista à
Revista L@el em (Dis-)curso . Essa abordagem parte da premissa de que um texto não se
define por propriedades imanentes, mas como o resultado da combinação de elementos
linguísticos (e não linguísticos), cognitivos e sociais e por determinadas condições que
conduzam à produção de sentidos. Tais elementos são definidos pelos parâmetros da situação
comunicativa em que o texto se insere, como o lugar e o momento da produção, os papéis dos
interlocutores, a finalidade e o assunto, este representado pelos conhecimentos de mundo
armazenados e organizados na memória dos interlocutores.

Outro importante pressuposto da perspectiva interativa é o lugar que se pretende


conferir ao aluno de sujeito ativo, uma vez que, ao produzir um texto, sua voz efetivamente
aparece marcada por quatro fatores essenciais, de acordo com Luiz Antônio Marcuschi
(2008): ter o que dizer, para quem dizer, razão para dizer e condições de escolher as melhores
estratégias para seu projeto de dizer.

3 Fundamentação teórica

Adotamos neste trabalho o pressuposto básico de que todas as manifestações verbais


se dão por meio de textos, produzidos no interior de ações situadas histórica e socialmente.
Essa ideia encontra-se fundamentada no Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), que defende a
tese de que as práticas de linguagem situadas são os instrumentos principais do
desenvolvimento humano. A interação se processa por meio de ações de linguagem,
construídas na negociação de sentidos em uma situação de comunicação. Para sustentar essa

!606
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

ideia, a noção de gêneros do discurso é basilar. Bakthin/Volochinov (1992) aponta um


caminho de como operar e lidar de modo mais estável com as relações humanas mediadas
pela linguagem:

Para falar, utilizamo-nos sempre dos gêneros do discurso, em outras


palavras, todos os enunciados dispõem de uma forma padrão e
relativamente estável de estruturação de um todo. [...] Os gêneros do
discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as
formas gramaticais (sintáticas) (BAKTHIN/VOLOCHINOV, 1992, p.
301).

Sendo assim, no presente trabalho, importa enfatizar os estudos e experiências sobre a


incorporação dos gêneros na esfera escolar, bem como as metodologias propostas para sua
didatização. Nesse campo, é fundamental a contribuição do grupo de Genebra Schneuwly e
Dolz (2004) e Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), segundo os quais os gêneros são
instrumentos de mediação entre as práticas sociais e os objetos escolares; são, na verdade,
megainstrumentos que permitem adaptar os textos a situações comunicativas particulares. Na
linha de Bakhtin (1979), os autores distinguem três dimensões do gênero: 1) os conteúdos
dizíveis, 2) a estrutura comunicativa 3) e as configurações específicas de unidades
linguísticas.

Outro importante contributo teórico-metodológico, ao qual recorremos para analisar e


melhor compreender a dinâmica da construção e organização interna dos textos, é o conceito
de “arquitetura textual”, proposto por Jean-Paul Bronckart (1999) na perspectiva do ISD.
Segundo o autor, essa arquitetura se estrutura como um “folhado”, constituído por três
camadas sobrepostas, também identificadas como níveis, conforme o grau de dependência
contextual: o primeiro nível, mais profundo, diz respeito à infraestrutura textual, subdividida
em planificação geral do conteúdo temático, e os tipos de discurso, referentes à construção de
mundos discursivos e seus correspondentes tipos de discursos: mundo do expor implicado
(discurso interativo), mundo do expor autônomo (discurso teórico); mundo do narrar
implicado (relato interativo) e mundo do narrar autônomo (narração)

O nível intermediário da arquitetura textual é composto pelos mecanismos de


textualização, caracterizado pela coerência, ou seja, as relações entre os níveis de organização
do texto; e pela coesão nominal e verbal, explicitada pelos organizadores textuais. O nível
mais superficial diz respeito aos os mecanismos enunciativos, responsáveis pela coerência
pragmática do texto (BRONCKART, 1999). Estão presentes nesse nível os modalizadores,
elementos que marcam as avaliações do enunciador sobre aspectos do conteúdo temático,
bem como as vozes dos interlocutores, que expressam papéis sociais e posições assumidas

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

pelo enunciador. No âmbito do ensino, esse modelo de análise pode guiar o trabalho com o
aluno para o desenvolvimento das seguintes capacidades de linguagem, segundo Dolz &
Schneuwly (1998):

1. Capacidades de ação: reconhecimento do gênero e das representações do contexto de


produção e mobilização de conteúdos;
2. Capacidades discursivas: reconhecimento da infraestrutura geral do gênero, tipos de
discurso e de sequências mobilizadas;
3. Capacidades linguístico-discursivas: reconhecimento dos mecanismos de
textualização responsáveis pela coesão nominal, verbal e pela conexão, bem como o emprego
dos recursos linguístico-discursivos e mecanismos enunciativos para a construção global do
texto.
Nessa perspectiva, ancorada nas ideias de Bronckart (1999), a proposta curricular de
Língua Portuguesa de Minas Gerais (CBC-LP, 2008, p.33-54) traz um Eixo Temático
inteiramente dedicado à Compreensão e Produção de Textos, a fim de possibilitar o trabalho
com as capacidades de linguagem definidas por Dolz & Schneuwly (1998). Para tanto, esse
eixo procura contemplar operações envolvidas no desenvolvimento de habilidades de
compreender e produzir textos de diferentes gêneros; é composto por tópicos e subtemas de
estudo dos gêneros, que englobam as operações de contextualização, tematização, enunciação
e textualização.

Semelhante a essa abordagem, destacamos a proposta de Irandé Antunes (2010),


segundo a qual uma análise significativa do texto deve levar em conta uma dimensão global,
que representa o eixo de sua coerência, e um nível interno, com aspectos mais pontuais de
sua construção. No nível global, estão incluídos o universo de referência para o qual o texto
remete, o campo de circulação, o tema central, a função comunicativa, a representações e
visões de mundo, os padrões de organização, as particularidades da superestrutura de cada
gênero, os recursos de progressão temática, de encadeamento e de articulação das partes do
texto, a adequação à situação comunicativa e as relações intertextuais.

Já os aspectos pontuais da construção do texto dizem respeito a elementos mais


específicos, tais como recursos sintático-semânticos (preposições, conjunções, advérbios,
locuções etc.), relações de sinonímia, antonímia, hiperonímia e paronímia, concordância
verbal e nominal e suas relações com a continuidade temática, marcas de conexão, expressões
referenciais e retomadas dessas expressões, entre outros (ANTUNES, 2010, p.57).

Pelos pontos em comum que apresentam, de acordo com a visão processual do texto
aqui assumida, procuramos conjugar as duas propostas, tomando-as como diretrizes para
nosso trabalho. Em nossas análises, procuramos realizar esse movimento descendente,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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sugerido pelos autores supracitados, o que nos permitiu colocar em evidência as capacidades
de linguagem dos alunos, bem como algumas habilidades que dizem respeito ao mecanismo
de textualização que consideramos essencial ao estabelecimento da coesão nominal: a
referenciação

4 O trabalho com a referenciação no mecanismo de textualização

Embora todos os níveis da construção sejam contemplados neste trabalho, por


questões de delimitação metodológica, enfocamos de maneira especial as estratégias de
referenciação, principalmente porque defendemos que essa operação é fundamental para
textualização, perpassando todos os níveis da construção do texto.Cláudia Roncarati (2010, p.
52) destaca outras operações efetuadas no interior do processo de referenciação, quais sejam:
a) a correferenciação, que significa a retomada do mesmo referente, implicando identidade
absoluta, mas não sinonímia lexical absoluta; b) a cossignificação, que constitui uma relação
de identidade léxico-semântica por meio de anáforas e catáforas; c) a (re) categorização, que
implica um tipo de refocalização da informação precedente por meio da adição de novas
predicações. Tais noções são importantes para que compreendamos como as estratégias de
referenciação operam na construção do objeto de discurso.

Feitas essas observações, procuramos focalizar os modos como se desenvolve o


processo de construção de referentes, ou objeto-de-discurso, conforme Mondada e Dubois
(1995/2003), no interior do processo de construção do texto, bem como a formação de
Cadeias Referenciais (RONCARATI, 2010). Estas realizam não apenas uma sequencialidade,
como também o entrelaçamento significativo entre as partes formadoras do texto, em todos
os níveis, por meio de recursos gramaticais e lexicais. De acordo com Roncarati (2010), as
Cadeias Referenciais (CR) são processos linguístico-discursivos e semântico-interativos que
permitemconectar as informações continuamente acrescentadas aos referentes ao longo das
sentenças e parágrafos, em uma rede dinâmica e variável de interrelações semânticas,
tornando mais visível o processamento discursivo-textual (RONCARATI, 2010, p.22).

A constituição da CR permite depreender as pistas que facilitam o acesso


interpretativo, por meio rastreamento de percurso semântico-cognitivo e interativo do texto;
integra as informações ao longo do texto, maximizando a atribuição de coerência textual;
contribui para a focalização dos referentes, mantendo as expressões referenciais no foco de
consciência dos interlocutores; possibilita o exame do processo dos diferentes estados de
ativação do objeto de discurso e concorre para discriminar, sequencializar e entrelaçar os
estágios evolutivos do objeto de discurso na progressão temática. Para Delaine Cafiero
(2002) a Cadeia Referencial é uma marca de reintegração de informações, um índice da

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

continuidade do texto, que serve de instrução de que elementos devem ser conectados.
Seguindo instruções dessa cadeia o leitor pode estabelecer relações, associando termos e
expressões novos a antecedentes anteriormente dados (CAFIERO, 2002, p.32-33).

Na constituição das CR, importa estabelecer o domínio de sentido a partir do qual os


referentes/objetos de discurso podem ser identificados (RONCARATI, 2010, p88); ou seja, os
parâmetros ou condições que nos ajudam a localizar o referente e sua evolução no decorrer
do discurso. Esse movimento implica a mobilização de uma série de estratégias, que
permitem operacionalizar sobre os discursos e as formas de comunicação (cf. VAN DIJK ,
1992), a partir de pistas prospectivas e retrospectivas na superfície textual. Roncarati (2010 p.
141-151) propõe uma categorização para essas estratégias, mobilizadas na criação de Cadeias
Referenciais.

5 Procedimentos Metodológicos

5.1 Instrumento de pesquisa: O Projeto Didático

Com base nos conceitos explicitados sobre produção escrita, gênero textual e
Sequência Didática, explicitamos nesta seção como foi estruturado o Projeto Didático com
Carta Aberta PD), utilizado como principal instrumento de nossa pesquisa. Ao planejar esse
procedimento, procuramos inicialmente responder às questões que dizem respeito aos
objetivos da realização de uma sequência de atividades, às necessidades sociais e de
aprendizagem dos alunos, às capacidades de linguagem e habilidades mobilizadas, ao nível
de ensino e à escolha do gênero textual. Defendemos a posição de que a habilidade dos
alunos em empregar essas estratégias, formando cadeias de referência, concorre de forma
bastante significativa para o estabelecimento da coesão na produção de textos; defendemos
também que tal habilidade pode ser trabalhada sistematicamente na aula de Português.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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OFICINA 1: IMPORTÂNCIA DE ESCREVER

Apresentação da proposta
Tomar contato com a proposta de trabalho
Discutir sobre a produção de textos escritos e sua função na sociedade.
Apresentar a proposta da pesquisa, seus objetivos e modos de participação
.01 AULA
OFICINA 2: ESCREVER PARA DENUNCIAR – OS PROBLEMAS DA CIDADE
Identificar problemas locais
Escolher o gênero textual
Fazer levantamento dos problemas da cidade e escolher o tema.
Ler diferentes textos sobre o tema e escolher o gênero mais adequado para a situação.
02 AULAS
OFICINA 3:RECONHECENDO UMA CARTA ABERTA
Ler exemplares de Carta Aberta para reconhecer características próprias desse gênero textual
Procurar em revistas e jornais exemplos de Carta Aberta.
Ler para identificar as situações em que são produzidas.
Identificar o conteúdo temático, a função social e a estrutura composicional recorrentes.
01 AULA
OFICINA 4: ESCREVENDO UMA CARTA ABERTA – PRIMEIRA VERSÃO
Produzir a primeira versão da Carta Aberta Definir a situação de produção: a escolha dos interlocuto-
res, e o conteúdo temático da carta e o suporte de circulação.
Propor a escrita de uma Carta Aberta, com base nas características observadas na Oficina
02 AULAS
OFICINA 5: A CARTA ABERTA – RECONHECENDO AS CARACTERÍSTICAS
Analisar um exemplar de Carta Aberta para aprofundar suas características próprias do gênero Sele-
cionar uma Carta Aberta para estudar mais detalhadamente sua função social, sua estrutura composi-
cional, sequências discursivas predominantes, estruturas linguísticas recorrentes.
Identificar as vozes presentes na Carta Aberta.
02 AULAS
OFICINA 6: ENCADEANDO AS IDEIAS
Identificar e usar estratégias de manutenção e retomada temática Ler e observar em textos diver-
sos como as ideias são introduzidas e encadeadas.
Realizar atividades de reconhecimento e de criação de cadeias referenciais
02 AULAS
OFICINA 7: DISCUTINDO SOBRE O TEMA: A SAÚDE EM NOSSO MUNICÍPIO
Buscar informações sobre o tema
Discutir os resultados
Produzir texto coletivo ajuda do professor
Pesquisar sobre o tema em revistas e jornais locais.
Apresentar slides sobre o tema e realizar debates.
01 AULA
OFICINA 8: ESCREVENDO A CARTA ABERTA – VERSÃO FINAL
Revisar e melhorar o texto inicial
Produzir a versão final da Carta Aberta
Retomar as oficinas anteriores.
Em duplas, revisar e melhorar as produções iniciais.
Escrever individualmente a versão final da Carta Aberta.
02 AULAS

Fonte: quadro produzido pela autora


5.2 Desenvolvimento da pesquisa

A investigação consistiu na aplicação das oficinas do PD em sala de aula, durante um


mês, com a realização de atividades sequenciadas, elaboradas especificamente para o estudo

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do gênero Carta Aberta, para abordar seus diferentes níveis de construção. Sem perder de
vista os demais níveis da planificação textual, buscamos dar especial enfoque às operações de
textualização que dizem respeito à referenciação, empregadas pelos referidos alunos em suas
Produções Iniciais e Produções Finais. Por meio desse procedimento, foi possível uma
análise mais aprofundada do objeto de pesquisa, uma vez que permitiu a visualização e a
identificação de estratégias de referenciação realizadas em textos reais, produzidos por alunos
em uma situação concreta de produção de texto.

5.3 Coleta de dados e formação de corpus de análise

O Projeto Didático foi o principal instrumento de coleta de dados, permitindo-nos ao


mesmo tempo observar a funcionalidade do procedimento e acompanhar etapa por etapa o
desenvolvimento das atividades, bem como o comportamento dos participantes durante a
participação nas oficinas. Para a formação do corpus de análise, as produções iniciais e finais
dos alunos participantes, submetidos às atividades do PD, foram digitalizadas e digitados,
perfazendo um total de 34 textos, sendo 17 identificados como PI (Produção Inicial) e 17
como PF (Produção Final).

5.4 Critérios de análise

Os textos produzidos pelos alunos participantes foram submetidos aos seguintes


procedimentos: primeiramente, nas produções iniciais (PI) foi realizada uma análise dos
aspectos globais do texto, por meio dos quais levantamos, de forma geral, as capacidades de
ação, as capacidades discursivas e as capacidades linguístico-discursivas dos alunos. Após a
realização das oficinas do PD, os mesmos critérios foram aplicados às produções finais. Em
seguida, de forma mais detalhada, no nível interno dos textos, foi feito um levantamento das
ocorrências das estratégias de referenciação na formação de Cadeias Referenciais
(RONCARATI, 2010). Com base nessas ocorrências, analisamos as capacidades linguístico-
discursivas especificamente relacionadas ao emprego desses recursos, por meio da
segmentação dos textos dos alunos em proposições, para identificação e categorização das
CR. Cada Cadeia Referencial foi sinalizada por numerais e letras, em sequência, de acordo
com seus desdobramentos. Por fim, procedemos às análises comparativas, por meio de
confronto entre as produções iniciais e finais dos participantes, a fim de identificar se as
alterações (ou não) nas versões finais poderiam significar desenvolvimentos das capacidades
de linguagem.
6- Resultados

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Após a aplicação do PD, verificamos que, em relação ao plano global, a maior parte
dos textos analisados se insere de forma concreta no campo social discursivo da Carta Aberta,
uma vez que os alunos cuidam em denunciar problemas na saúde pública do município e
reivindicar providências junto ao interlocutor previsto. Todos os textos se organizam em
torno da denúncia de um problema, sendo que alguns alunos fazem descrições detalhadas de
episódios de descaso, mau atendimento, discriminação, realmente vivenciados por eles ou por
pessoas próximas, que geraram denúncias, por meio das quais foi possível aos alunos
expressarem pontos de vista, com maior ou menor grau de argumentação. O tema é
sintetizado logo no início dos textos e progride com o detalhamento de situações relacionadas
com o problema apresentado.

O mesmo acontece com o propósito comunicativo, anunciado por meio da denúncia e


reforçado no decorrer do texto. O plano composicional também se aproxima das
características do gênero Carta Aberta: a denúncia do problema, o ponto de vista sobre o fato
denunciado, a argumentação e a retomada do problema, culminando com a formulação de
pedido de providências. Por meio da mobilização desses aspectos, com maior ou menor
adequação, os alunos participantes revelaram suas capacidades em potencial e indícios
importantes com recursos mais específicos, para o desenvolvimento das capacidades.

Observamos que os alunos são capazes de formar CR em seus textos iniciais, usando
diferentes estratégias; entretanto, o emprego de tais estratégias pode ser potencializado e
realizado com mais eficácia em seus textos finais, a partir de um trabalho sistematizado com
os recursos linguístico-discursivos, já previstos nas propostas curriculares para o ensino de
Língua Portuguesa. O que dizemos aqui pode ser ilustrado pelo exemplo a seguir.

Exemplo 1 – Produção Inicial (PI) e Produção Final (PF) do Sujeito de pesquisa oito (S8)
S8 PI

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Eu, morador do município de Manhumirim venho apresentar-lhe esta carta a você se-
cretário de saúde uma situação [1] do qual ocorre em minha cidade (Manhumirim)
[2], que no qual ocorre um desrespeito á população. [1a] Manhumirim [2a] tem um
meio de Saúde muito precário [1b] o baixo número das fichas nos postos de saúde
[1c] isso [1d] vem como consequência as pessoas [3] terem que sair de suas casas de
madrugadas e acontece sempre as pessoas[3a] saírem cedo esperarem nas enormes
filas[1e] para no final o médico [4]falta a sua consulta[4a] e a pessoa [3b] sem ter ou-
tra saída ele[3c] é obrigado a enfrentar novamente as enormes filas[1g] pra remarcar
novamente a consulta[4a] Tem outro exemplo é o hospital[5] que tem a sua parte do
SUS ( sistema único de saúde) [5ª]e o particular[5b] que o mesmo médico do SUS
[5c]e o que atende no particular[5d] mais assim se em algum momento chegar uma
pessoa [3d]para ser atendido no particular[5e] o paciente do SUS[3e] fica (rodado).
Por fim protestamos contra essa palhaçada [1h] que é o nosso sistema de saúde [1i]
nos desejamos que á secretaria de saúde atenda nossos humildes pedidos porque a po-
pulação [3f] já está cansada

S8 PF
Carta Aberta a Secretaria Municipal da Saúde

Sou morador do Muncípio de Manhumirim (MG) Venho apresentar-lhe esta carta a


você Secretaria de Saúde Uma situação [1] há qual ocorre em minha cidade [2] Que
está ocorrendo um desrespeito á população. [1a] Manhumirim [2a] tem um meio de
Saúde muito precário [1b] O baixo numero de fichas nos postos de Saúde [1c] E isso
vem como consequência as pessoas [3] terem que sair casa de madrugada E acontece
sempre das pessoas [3a] saírem cedo esperarem nas enormes filas [1d] Para no final o
médico [4] falta a sua consulta [4a] E a pessoa [3b] sem ter outra saída elas [3c] são
obrigadas a enfrentar novamente as enormes filas [1e] Para remarcarem há consulta
[4b] Um outro exemplo é o hospital [5] Que tem sua parte do SUS (sistema único de
Saúde), e particular. [5a] Sendo que os mesmo medico do SUS [5b] e o que atende no
particular.[5c] Sendo assim se em algum momento chegar uma pessoa[3d] para ser
atendida no particular[5d] O paciente do SUS[3e] fica esperando Enquanto o
doutor[5e] atende outro paciente.[3f] Por fim protestamos contra esse problema[1f]
que é nossos sistema de Saúde[1g] Nós desejamos que a secretaria de saúde atenda
nossos humildes pedidos Porque a população[3g] já está cansada de tanta incopeten-
cia. Atenciosamente
xxxx
Manhumirim – MG
08-04-12

Fonte: quadros produzidos pela autora

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contemporâneas

O exemplo acima é representativo das alterações nos textos finais em relação às


primeiras versões, que em maior ou menor grau, apresentaram avanços, tanto no plano global
quanto no plano pontual, em especial no emprego de estratégias de referenciação, o que
sinaliza o desenvolvimento de capacidades dos aluno como produtores de textos.

7. Considerações finais

A realização desse trabalho permitiu-nos explicitar os efeitos de uma intervenção com


finalidades específicas, que foi o de verificar o emprego de estratégias de referenciação em
Cadeias Referenciais pelos alunos participantes em seus textos iniciais e finais, estes últimos
reescritos após a realização de atividades especialmente para o uso dessas estratégias no
estabelecimento da coesão. Sem dúvida, é grande a dificuldade de se dar conta de todos os
aspectos da produção textual, mesmo por meio de uma sequência de atividades especialmente
elaboradas para esse fim. Entretanto, as evidências que conseguimos apurar nos textos dos
alunos ao final do Projeto Didático permitem-nos afirmar que essa modalidade de trabalho
sistematizado e progressivo a partir de um gênero textual pode trazer resultados positivos,
uma vez que possibilita o trabalho com a língua, tomando-a como conjunto de práticas
sociais (MARCUSCHI, 2008). Essa perspectiva é fundamental para que a produção de textos,
contextualizada em situações do cotidiano, tenha objetivos reais. Isso foi comprovado pelo
trabalho com o gênero Carta Aberta, por meio do qual os alunos colocaram em prática suas
capacidades de denunciar, reclamar, expor suas opiniões, além de se apropriarem de algumas
características do discurso argumentativo e do gênero em questão.

Acreditamos que projetos como esse podem se tornar cada vez mais frequentes na sala
de aula, com a real adoção de um ensino contextualizado da língua, segundo o qual os papéis
dos recursos linguístico-discursivos sejam compreendidos na construção dos diferentes níveis
do texto. Para isso, é fundamental que sejam dadas aos professores, além das diretrizes
teórico-metodológicas, condições para que possam desenvolver suas capacidades
profissionais e encontrar o verdadeiro sentido de renovação do ensino do Português.

Por fim, com a experiência aqui relatada, reiteramos que a formação de um aluno
capaz de intervir nas decisões sociais por meio da escrita, pauta-se por vivências sistemáticas
de produção de textos na escola que se traduzam em práticas sociais significantes, nas quais
aluno e professor realmente se envolvam e percebam a possibilidade se produzir textos bem
sucedidos.

8- Referências

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

ANTUNES, I. Análise de Textos – fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola Editorial,


2010.
BACKTHIN, M. & VOLOSHINOV, V.N. Marxismo e Filosofia da linguagem. São Paulo,
Hucitec, 1992.
BAKHTIN, M. (1979) Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BARRICELLI, E. & MUNIZ-OLIVEIRA, S. Entrevista com o professor Joaquim Dolz.
Revista L@el em (Dis-)curso. Volume 2, 2010.
BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e interação. Org.: DIONÍSIO, Â.
P.&HOFFNAGEL, J. São Paulo: Editora Cortez, 2005.
BRASIL (1998). Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa para o 3º e o 4º
ciclos do Ensino Fundamental. Secretaria de Educação Fundamental, Brasília, MEC/SEF.
PCN. 1998
BRONCKART, J.P. Atividade de linguagem, textos e discursos – por um interacionismo
sociodiscursivo. São Paulo: EDUC, 1999.
CAFIERO, D. A construção da continuidade temática por crianças e adultos: compreensão de
descrições definidas e de anáforas associativas. Tese (Doutorado em Linguística) Instituto de
Estudos e Linguagem, UNICAMP, Campinas, 2002.
CAVALCANTI, M. A propósito da Linguística Aplicada. In: Trabalhos em Linguística
Aplicada nº7, 1986, p.5-12.
DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita:
apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e
escritos na escola. Tradução de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado
das Letras, 2004, p. 95-128.
LEITE, A.M.C. Elementos articuladores em artigo de opinião – uma experiência com
sequência didática no Ensino Médio. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG,
2009.
MARCUSCHI, L.A. "Produção textual, análise de gêneros e compreensão". São Paulo:
Cortez, 2008.
MINAS GERAIS. Conteúdo Básico Comum – Proposta curricular de Português/Educação
Básica. Belo Horizonte: SEE, 2008
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Educação de jovens e adultos. Ensino Fundamental:
proposta curricular – 1º segmento. São Paulo/Brasília, Ação Educativa/SEF, 1998.
MONDADA, L.; DUBOIS, D. Construção de objetos de discurso e categorização: uma
abordagem dos processos de referenciação. Tradução Mônica Magalhães Cavalcante. In:
RONCARATI, C. Cadeias do Texto: construindo sentidos. São Paulo: Parábola Editorial,
2010 (Estratégias de ensino; 19).
SCHNEUWLY, B. & DOLZ, J. Os gêneros escolares: das práticas de linguagem aos objetos
de ensino. Revista Brasileira de Educação, Associação Nacional

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Língua portuguesa e gêneros digitais: ressignificações necessárias na


hipermodernidade
Anair Valência
Universidade Federal de Goiás UFG/Regional Catalão
anair_valenia@hotmail.com
Introdução

Debruçar-nos-emos, neste artigo, sobre questões relacionadas ao ensino de língua


portuguesa mediado pelos gêneros digitais com o intuito de entendermos sua efetivação no
espaço hipermoderno, multimidiático e hibridizado da contemporaneidade. Sobre a época
contemporânea vivida, cunhada por Lipovetsky (2004) como hipermoderna, podemos nos
apoiar nos pressupostos conceituais apresentados pelo autor que, por sua vez, resgata de
Michel Foucault a discussão sobre uma das principais rupturas da era moderna, a disciplina.

Segundo Lipovetsky (2004, p. 16), a disciplina, cujo maior objetivo é controlar e não
libertar, é um “conjunto de regras e técnicas específicas (vigilância hierárquica, sanção
normatizadora, exame de avaliação) que têm por efeito produzir uma conduta normatizada e
padronizada, adestrar os indivíduos e submetê-los a uma fôrma idêntica para otimizar-lhes as
faculdades produtivas”. Ao romper com esses pressupostos disciplinares, conforme o autor,
entramos na era da pós-modernidade, essencialmente marcada pelo efêmero, pelo fluido, pela
lógica da moda, do consumo.

Nesse período histórico, a palavra de ordem é investir na aparência, por meio da qual
marcam-se também o paradoxo das classes sociais, opondo-se as mais prestigiadas às menos
prestigiadas. Somente a partir da segunda metade do século XX é que a produção e o
consumo não mais estão reservados somente a uma classe privilegiada. Há então uma
expansão do gosto por aquilo que é considerado novo, “da promoção do fútil e do frívolo, do
culto ao desenvolvimento pessoal e ao bem-estar” (LIPOVETSKY, 2004, p. 24).

Com a potencialização cada dia mais acirrada do dispêndio, inicia-se uma nova fase
marcada por um excesso de narcisismo e de consumo, e, por que não dizer, marcada por um
hipernarcisismo e um hiperconsumo, denominada hipermodernidade. Nessa nova fase
histórica, a hipermodernidade pode ser descrita como se constituindo de uma sociedade
essencialmente liberal, “caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela
flexibilidade” (LIPOVETSKY, 2004, p. 26).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A hipermodernidade é, então, assinalada pelas constantes transformações culturais e


crescimentos urbanos. Com a violência e a falta de políticas públicas de segurança, as
pessoas se veem aprisionadas em suas próprias casas, pois não se sentem tão seguras em
outros espaços. Le Goff (1998), ao estabelecer uma comparação entre as cidades da Idade
Média e da atualidade, descreve que na estrutura organizacional das cidades na Idade Média,
os “perigos” residem para além dos altos muros erguidos ao redor dos centros urbanos,
enquanto que no século XIX o perigo parece se concentrar com maior rigor nos centros das
cidades, em seus interiores, tornando os moradores mais frágeis e expostos aos “perigos” e
“violências”. Ao se alastrar entre todas as camadas sociais, essa violência acaba por
impulsionar a busca por formas alternativas de consumo dos bens valorizados socialmente.
Isso quer dizer que, ao invés de sair às ruas, ir aos centros das cidades para realizar as suas
compras e em busca de lazer, a população tem como opção os shoppings ou a navegação pela
internet.

É nesse contexto que ganham ascensão as mais diversas formas de usos dos espaços
hipermidiáticos, entre eles a literatura eletrônica, as mídias sociais e os aplicativos
interativos. Nesse viés, muito se tem falado sobre a cultura da convergência, especialmente
nos contextos que possuem como pauta a tecnologia e suas influências cada vez mais
acirradas nas práticas de produção, recepção e divulgação de conhecimentos, tais como
publicidade, entretenimento, educação, dentre outros.

Segundo Jenkins (2009, p. 29), a cultura da convergência ocorre em um espaço em


que novas e velhas mídias colidem, “onde mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam,
onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras
imprevisíveis”. Mais especificadamente, onde podem se hibridizar as mais diversas
plataformas de mídias, onde os mais variados mercados midiáticos têm de se adequar às
singularidades e especificidades do público dos meios de comunicação, que por sua vez estão
sempre renovando os seus gostos, os seus desejos, sempre em busca de experiências e
vivências diferenciadas.

Tomamos a proposição conceitual de Jenkins, nesse artigo, por entendermos,


juntamente com ele, que a convergência deve ser menos de processos tecnológicos, que
mesclam diferentes funções em um mesmo aparato de aparelhagem, e mais no cerne da
constituição de “consumidores individuais e em suas interações sociais com outros”, pois,
conforme o autor, “cada um de nós constrói a própria mitologia pessoal, a partir de pedaços e
fragmentos de informações extraídos do fluxo midiático e transformados em recursos através
dos quais compreendemos nossa vida cotidiana” (JENKINS, 2009, p. 30). Cada um, por
exemplo, produz a sua própria informação, mesclando dados adquiridos em mídias diversas,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

criando as suas próprias referências e, por isso mesmo, fazendo originar os seus próprios
sentidos sobre o que está sendo distribuído e hibridação de linguagens, que acabam por se
tornar protagonistas na constituição de uma literatura digital contemporânea, de gêneros
digitais hipermodernos. Com essas linguagens, há a inserção de novas semioses no meio
sociocultural, uma vez que é ela (a linguagem) que veicula esse recente modo de pensar e de
se expressar do homem. Dentre essas novas possibilidades de produção e recepção de
gêneros encontram-se os ciberpoemas, os hipercontos, os memes, os minicontos digitais,
além de aplicativos como o Instagram, que, se por um lado apresentam releituras de
literaturas cânones que migram do impresso para o virtual, também retratam produções
criadas exclusivamente nos espaços digitais.

Gêneros digitais contemporâneos

É possível dizer que os leitores se veem constantemente interpelados a promoverem suas


próprias significações quando se deparam com alguns gêneros digitais que muitas vezes
hibridizam mídias diversas em sua estrutura composicional (BAKHTIN, 2003[1979]).
Precisam promover um deslocamento das formas cânones de leitura para outras que requerem
habilidades e capacidade para mesclar entendimentos de palavras escritas com palavras
faladas, imagens estáticas com imagens em movimento e competência para migrar de uma
mídia para outra ao interagir com um determinado gênero. Por exemplo, ao ler o livro
Literatura Eletrônica: novos horizontes para o literário, de N. Katharine Hayles, se não
houver um conhecimento prévio da literatura eletrônica discutida pela autora, os leitores se
sentem impelidos a buscar outras mídias para entender o que a autora está expondo. Vejamos
a seguinte passagem:

Como as variedades de literatura eletrônica aumentaram as ficções de


hipertexto também mutaram para uma gama de formas híbridas, incluindo
narrativas que emergem de uma coletânea de armazenamento de dados como
Califia, de M. D. Coverley, e seu novo trabalho Egypt: the book of going forth
by day; o hipertexto picaresco The Unknown, de Dirk Stratto, Scott Rettberg e
William Gillespie, rememorativo em sua estética de excesso a Pé na estrada, de
Jack Kerouac; a obra elegantemente articulada em Storyspace, Twelve Blue, de
Michael Joyce, divulgada na Web pelo site Eastgate Hypertext Reading Room;
These Waves of Girls, de Caitlin Fisher, incluindo som, texto falado, texto
animado, montagens gráficas e outras funcionalidades de uma estrutura de
redes interligadas; o trabalho multimodal de Stuart Moulthrop, Reagan Library,
apresentando filmes no QuickTime e geradores de texto aleatórios; The Jew’s
Daughter, de Judd Morrissey em colaboração com Lori Talley, com sua
interface moderna de uma tela única de texto em que algumas passagens são
substituídas quando o leitor passa o mouse por cima delas; o trabalho
brilhantemente concebido e programado de Talan Memmott, Lexia to
Perplexia; e a paródia de Richard Holeton, Frequently Asked Questions about
Hypertext, que, ao estilo nabokoviano, desenvolve uma narrativa a partir de

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supostas anotações sobre um poema, com uma série de outros [...] Como
pioneiro no uso de ambiente CAVE para literatura interativa [...] (HAYLES,
2009, p.24-28).

Ou seja, a autora discute várias literaturas eletrônicas e seus modos de construção,


analisando as relações entre imagens, sons, palavras, textos, movimentos. Todos esses
elementos em interfaces de conexão em ambientes virtuais primam pela narratividade e
poeticidade, elementos esses indispensáveis na criação das obras digitais. Entretanto, se não
houver uma migração das formas de leitura da mídia impressa, ou seja, do livro que se tem
em mãos, para as citadas por ela que se encontram em ambiente virtual, o leitor corre o risco
de ficar à margem do entendimento do texto, sem atingir o âmago das significações
propostas, sem entender as narrativas, as lexias e as plataformas multiformes ali abordadas.
Há, então, a convergência de várias mídias na mobilização da compreensão. Para que haja de
fato uma produção de sentido e uma interação com a obra é preciso que o leitor se mova do
“lugar de costume na leitura para um encontro ativo que nos aponta o caminho para o lugar
do humano no mundo contemporâneo” (HAYLES, 2009, p. 30), que nos motivam a romper
com noções canônicas de leitura.

Um dos desafios dessa nova proposição de leitura é não ler a tela do computador
como a página de um livro, em certa medida estática e linear, mas, sim, perceber que nesse
formato literário há a hibridação de texto escrito, oralizado e animado, elementos de jogos de
computador, gráficos, imagens, textos e palavras que ondulam e balançam no espaço virtual
em que a obra se constitui. Nativos das leituras canônicas, muitas vezes os leitores precisam
se deslocar dos espaços de leitura nos quais se constituíam até então e migrar para espaços
hipermodernos que requerem novos olhares e novas posturas leitoras. Conforme Hayles
(2009),

os leitores chegam a uma obra digital com expectativas formadas no meio


impresso, incluindo um conhecimento extenso e profundo das formas de letras,
convenções do meio impresso, e estilos literários impressos. Por necessidade, a
literatura eletrônica deve preencher essas expectativas mesmo à medida que as
modifica e as transforma. Ao mesmo tempo, e porque a literatura eletrônica é
normalmente criada e executada em um contexto de rede e meios de
comunicação digital programáveis, ela também é movida pelos motores da
cultura contemporânea, especialmente jogos de computador, filmes, animações,
artes digitais, desenho gráfico e cultura visual eletrônica (HAYLES, 2009, p.
21).

No processo de produção e recepção da literatura eletrônica, vários elementos são


relevantes para que ocorra uma interação entre autor, obra e leitor. Entra em jogo processos
de interação entre obra e leitor e entre leitor e máquina (notebook, smartphone, tablete etc.)
para que haja mais do que o acesso, mas um querer fazer parte daquele universo, querer ler,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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interagir e se deleitar com a obra. Essa afinidade parece ser imprescindível para que a leitura
se efetive, pois muitas obras podem causar estranheza, pela sua própria estrutura
composicional (BAKHTIN, 2003[1979]) diferenciada e em muitos casos inusitada, podendo
inclusive afastar o leitor ao invés de interpelá-lo para a leitura. O leitor precisa acessar a obra
com certo sentimento de pertença àquele ambiente hipermidiático, sabendo que poderá
encontrar propostas de composição literária que até então desconhecia.

Discutiremos adiante essas questões atreladas à constituição, produção e divulgação


dos gêneros digitais ciberpoemas, memes, minicontos digitais, hipercontos, bem como do
aplicativo Instagram. Em seguida, refletiremos sobre as possibilidades, e por que não dizer
necessidade, de trazer esses gêneros, bem como sua recepção e produção, para as aulas de
língua portuguesa.

Ciberpoemas

O ciberpoema, gênero digital híbrido e impuro produzido no meio virtual mediante a


apropriação de uma multiplicidade de signos, em especial a palavra e a imagem, em
confluência com outros recursos multimodais, multissemióticos e multimidiáticos, é um dos
gêneros que ocupa espaço na literatura contemporânea da hipermodernidade.

A estrutura composicional (BAKHTIN, 2003[1979]) dos ciberpoemas confere à


poesia um novo território, um novo suporte e um novo plano estético. Essas circunstâncias
fazem pensar na migração da própria literatura, enquanto arte, para a “interface” das novas
mídias digitais. Em outras palavras, a revolução está tanto no signo quanto na mídia ou no
suporte midiático que o transmite, haja vista que são os signos, enquanto elementos
transmissores de nossos pensamentos, que constituem a linguagem, seja ela escrita ou
imagética, visual ou não visual. Sensível a esse aspecto, Santaella (2003) discute o fato de
que:

não devemos cair no equívoco de julgar que as transformações culturais são


devidas apenas ao advento de novas tecnologias e novos meios de comunicação
e cultura. São, isto sim, os tipos de signos que circulam nesses meios, os tipos
de mensagens e processos de comunicação que neles se engendram os
verdadeiros responsáveis não só por moldar o pensamento e a sensibilidade dos
seres humanos , mas também por propiciar o surgimento de novos ambientes
socioculturais (SANTAELLA, 2003, p. 24).

Convicta da importância dessa elucidação, a autora reitera que “mídias são meios, e
meios, como o próprio nome diz, são simplesmente meios, isto é, suportes materiais, canais
físicos, nos quais as linguagens se corporificam e através dos quais
transitam” (SANTAELLA, 2010, p. 25). Partindo-se dessas premissas, ênfase deve ser dada

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

ao caráter multissemiótico, híbrido e impuro do ciberpoema, enquanto gênero digital


contemporâneo por excelência.

Os textos eletrônicos, e o ciberpoema é um exemplo, são dotados, em regra, de


configurações hipertextuais, multimidiáticas e/ou hipermidiáticas, ou seja, possibilitam o
acesso a outros textos ou outros signos, dialogando assim com outras modalidades de
linguagem (fotografias, textos, sons, imagens em movimento etc.), o que confere ao texto
digital, em especial ao gênero digital ciberpoema, um caráter multissemiótico, isto é,
constituído de uma multiplicidade de linguagens, razão pela qual pode ser considerado
híbrido e impuro.

Abandona-se assim a estruturação do poema em verso, seja ele em sua forma fixa ou
livre; a palavra, por sua vez, não é mais o signo exclusivo com que o poeta tece suas
metáforas. O papel também não é mais o único espaço de materialização da linguagem.
Como um móbile flutuando na espacialidade virtual da tela, o ciberpoema é dotado de
movimentos (imagético e sonoro) uma vez que os signos agora podem se converter, no
âmago da tessitura linguística e metafórica do texto, no próprio ato que significam, o que faz
com que a palavra vá muito além de seu conteúdo semântico. A exemplo dos movimentos das
vanguardas européias do início do século XX, “as palavras devem existir em liberdade e não
presas ao procedimento linear, fixadas pela sintaxe e pelas convenções gramaticais. O tipo e a
escrita libertam-se da opressão de serem meros suportes de sentido” (CAPARELLI et al.,
2000, p. 70).

De igual modo, é essa também a dinâmica que se movimenta no interior da


semiosfera do ciberpoema. Se o poeta escreve “pula”, a palavra salta na tela, se o verbo é
“chover”, o movimento da chuva é reproduzido no espaço virtual, como se chovesse no
próprio poema. Se o poeta escreve “vermelho”, a própria tela pode tingir-se dessa cor,
oferecendo aos olhos de quem lê muito mais que a palavra, mas o próprio colorido que ela
pretende significar. É a virtualidade do ciberespaço operando no leitor um maravilhamento
que vai muito além daquele que simplesmente lê, mas sobretudo daquele que percebe no
ciberpoema os mistérios e revelações da linguagem.

Em parte, isso ocorre porque, com o ciberpoema, diminuem-se os limites estéticos


daquilo que pode ser uma fotografia, uma breve filmagem, um texto escrito em prosa ou um
milenar “haicai”. Existe um verdadeiro apagamento de territórios, haja vista que o gênero
passa a ser constituído de multissemioses. O ciberpoema constrói-se como uma verdadeira
“instalação”, ainda que compacta e virtual, onde uma multiplicidade de signos são urdidos
para dar corpo a uma poética híbrida e impura. Outro aspecto que deve ser ressaltado é a
circunstância de que a hibridização da linguagem verbal e não verbal (imagem e palavra)

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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sempre existiu. Por outro vértice, o que ocorre com o advento da era digital é uma nova
experimentação de cruzamento dos signos (imagético e linguístico), uma vez que agora a
concepção do texto será feita a partir das novas tecnologias, o que fará surgir uma “imagem
sintética” e uma “escrita eletrônica” (SANTAELLA, 2010), elementos semióticos
relativamente novos que inauguram uma nova linguagem da qual o ciberpoema apropria-se
para a constituição de seu corpus.

O ciberpoema, como um dos herdeiros das Vanguardas Européias do início do século


XX e do próprio Concretismo, passa a exigir de quem o lê, além de um letramento digital,
uma percepção especial, como aquela exigida para a pintura e a música, uma vez que a
“leitura” do ciberpoema implica, sobretudo, numa contemplação do texto, numa audição das
estrofes ou até mesmo a utilização de ambas as habilidades ao mesmo tempo, pois é oportuno
lembrar que estamos diante de um gênero híbrido e impuro.

Na realidade, a tônica do hibridismo não é um fenômeno emergente, nem tampouco


típico da hipermodernidade e dos gêneros digitais que nela surgiram. Primeiro porque o
pensamento do próprio homem sempre foi híbrido, uma vez que o cérebro processa, codifica
e decodifica simultaneamente uma infinidade de signos sobrepostos, onde repousa os mais
variados conteúdos que constituem nosso inconsciente, além de nossos pensamentos,
memória e imaginação. Segundo porque, conforme conclusão de Rojo (2012, p.
14): “vivemos, já pelo menos desde o início do século XX (senão desde sempre), em
sociedades de híbridos, impuros, fronteiriços”.

Memes

As principais discussões sobre o gênero meme abordam questões relacionadas ao seu


surgimento e à sua forma de propagação rápida e fluída em ambiente hipermidiático.
Dawkins (2015), ao propor uma reflexão sobre a utilização da nomenclatura meme para
designar essa forma de linguagem, e, mais ainda, ao delimitar as práticas socioculturais para
utilizá-la, assevera que:

Precisamos de um nome para o novo replicador, um substantivo que transmita a


ideia de uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação.
"Mimeme" provém de uma raiz grega adequada, mas quero um monossílabo
que soe um pouco como "gene". Espero que meus amigos helenistas me
perdoem se eu abreviar mimeme para meme. Se servir como consolo, pode-se,
alternativamente, pensar que a palavra está relacionada à "memória", ou à
palavra francesa même. Exemplos de memes são melodias, ideias, "slogans",
modas do vestuário, maneiras de fazer potes ou de construir arcos. Da mesma
forma como os genes se propagam no "fundo" pulando de corpo para corpo
através dos espermatozóides ou dos óvulos, da mesma maneira os memes

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

propagam-se no "fundo" de memes pulando de cérebro para cérebro por meio


de um processo que pode ser chamado, no sentido amplo, de imitação
(DAWKINS, 2015. p.122).

Segundo o autor, o que se percebe é primeiro o caráter de imitação, pois o meme


possui um estilo de significação de memória que abrange situações e manifestações diversas
que acabam se propagando. Esse fenômeno é observado com a afirmação “é por imitação, em
um sentido amplo, que os memes podem replicar-se” (DAWKINS, 2015, p.123). Nesse
sentido, esse gênero pode surgir como uma manifestação de linguagem que contrapõe ou
complementa acontecimentos que fazem parte das situações corriqueiras do dia a dia, tais
como circunstâncias de ordem social, moral, acadêmica, dentre outras.

Isso ocorre porque o meme visa a transmitir significados de forma mais crítica,
utilizando-se de argumentos irônicos para chamar a atenção do leitor e levá-lo à reflexão
acerca do que se pretende transmitir. Ao abordar a questão da replicação do meme, Dawkins
(2015) faz uma alusão à reprodução biológica e orgânica, ao caráter de mutação. Trazendo
essa reflexão para os contextos hipermidiáticos contemporâneos, observa-se que a
comunicação, nos processos de interação, é estabelecida por uma estrutura, uma mensagem.
Os sujeitos envolvidos podem fazer com que as significações e ressignificações sejam cada
vez mais difundidas e/ou modificadas dependendo dos contextos em que são empregadas.

Os memes, no fim do século XX e começo do XXI, adquirem outras proporções com


a difusão dos meios virtuais. As redes sociais, com a sua idiossincrasia constituinte, serviram
como ferramenta propagadora do meme devido à sua capacidade de multiplicação de
conteúdos. O meme visa a transmitir algo ou algum significado de forma mais crítica,
utilizando-se de argumentos irônicos para chamar a atenção do leitor e levá-lo à reflexão
acerca do que se pretende transmitir.

Em sua maioria, os memes trazem um conteúdo mais humorístico, ou contextos


históricos, e utilizam com frequência a hibridização de imagem e texto para obter o efeito
humorístico pretendido. Essa multimodalidade dos memes contribui para a divulgação das
significações, pois a sua constituição está atrelada à liberdade de criação e expressão. Um dos
elementos constituintes de sua estrutura composicional (BAKHTIN, 2003[1979]) são os
desenhos, em sua maioria mais caricatural, embora possam ser encontradas também imagens
com traços mais trabalhados ou mesmo imagens originais.

Segundo Dawkins (2015), um meme se estrutura sob a égide de um tripé constituinte,


aspectos esses que norteiam a sua criação, sendo eles: a) longevidade, sua duração no tempo;
b) fecundidade, reprodução de cópias; c) fidelidade, estabelecimento de semelhanças. Assim,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

conforme o autor, a sua constituição não sofrerá alterações significativas ao se propagarem,


pois, independentemente do meio em que se difunde, mantém-se fiel à sua origem ou
propósito. Nesse sentido, fecundidade refere-se à capacidade de se criar e, consequentemente,
se propagar e longevidade diz respeito à sua durabilidade, ou seja, na medida em que se
propagam mais serão lembrados e se perpetuarão. Quando disponibilizados na internet, a
divulgação e propagação dos memes ocorrem com muita rapidez. Um fator determinante para
essa ação é o avanço das tecnologias em comunicação e telecomunicação, além da facilidade
na aquisição de eletroeletrônicos.

Minicontos digitais

O gênero miniconto digital emerge em decorrência do miniconto cânone, que surge


em meados do século XX, como uma recriação do conto. Esse gênero pode ser encontrado
com outras nomeações como nanoconto, narrativa unifrásica, microconto. Dentre os contistas
cânones destacam-se: Dalton Trevisan, Edgar Allan Poe, Irmãos Grimm, Júlio Cortázar,
Enerst Hemingway entre outros. Se referindo aos minicontos especificamente, um dos
autores pioneiros é Dalton Trevisan com o livro Ah, é?.

O miniconto é uma narrativa que tem como principal característica o fato de ser
condensada, concisa, sem descrições e detalhes e mantendo a essência da narrativa (começo,
meio e fim) com a presença de um personagem. Por outro lado, é um gênero, por mais curto e
breve que seja, que não pode ser atrofiado, pois é necessário que contenha uma estrutura
narrativa para que não perca o seu efeito único (SPALDING, 2008). É uma narrativa que se
expande para além do dito, não se configurando como o fragmento de um texto isolado, ou
uma frase solta. O enredo se apresenta como a ponta de um iceberg para que o leitor construa
os acontecimentos a partir da leitura do miniconto.
Spalding (2008, p.15) afirma que é “um tipo de narrativa que tenta a economia
máxima de recursos para obter também o máximo de expressividade, o que resulta num
impacto instantâneo sobre o leitor”. Nesse sentido, a redução de linguagem não deixa de
contar algo e dar ao leitor elementos para que se possa construir a história. É possível
afirmar que o miniconto digital é um gênero contemporâneo e hipermoderno que constitui-se
de uma narrativa virtual e que se vale das mesmas características dos miniconto cânone. É
desenvolvido em ambiente virtual, agrega interatividade e hibridiza recursos sonoros, visuais
e movimento.

Aplicativo Instagram

O Instagram é um ambiente digital multissemiótico, um espaço de linguagem, em que


as produções ali realizadas, além de conterem textos, também hibridizam imagens e vídeos.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Segundo Bakhtin (2003[1979]), toda vez que um indivíduo usa a linguagem para se
comunicar, conscientemente ou não, esse enunciado é um tipo de texto.

Para que se possa entender a rápida propagação e aceitação do aplicativo Instagram é


preciso entender a conjuntura de hipermodernidade, marcada pelas constantes transformações
culturais e crescimentos urbanos. Com a violência e a falta de políticas públicas de
segurança, as pessoas se veem aprisionadas em suas próprias casas, pois não se sentem tão
seguras em outros espaços. Nessa reclusão, elas encontram, por meio das tecnologias, novas
possibilidades de comunicação, informação e conexão, criam novas formas de
compartilhamentos sociais, que extrapolam os limites geográficos, gerando um processo de
desterritorialização e reterritorialização (GARCÍA CANCLINI, 2015[1997]). Isso ocorre
porque já não há sentimento de pertencimento àquele território geográfico, pois a conexão é
global. Além disso, o investimento na produção e alastramento das Novas Tecnologias de
informação e Comunicação - NTC popularizaram os aparelhos que possibilitam novas
conexões. Como resultado, pessoas dos mais diversos contextos têm acesso aos equipamentos
e às tecnologias e são inseridas nas práticas sociais cotidianas, gerando diferentes
apropriações.

As pessoas estão (re)criando signos identitários, ou seja, as apropriações transformam


os indivíduos de forma singular, principalmente porque o uso dessas tecnologias é
diferenciado nos mais diversos grupos. Considerando as transformações impostas pela
hipermodernidade – do culto à moda e ao hiperconsumo, e para se entender a constituição
dos posts que geralmente ocorrem no Instagram, é preciso refletir acerca do conceito de
corpo como uma coleção que sofre grandes mudanças com as novas formas de expressão e
comunicação, pois “a agonia das coleções é o sintoma mais claro de como se desvanecem as
classificações que distinguiam o culto do popular e ambos do massivo” (GARCÍA
CANCLINI, 2015[1997], p. 96).

As coleções de corpos que ocorriam há pouco tempo atrás possuíam como cerne o
próprio eu, mas passaram por um processo de descoleção e constituição de novas coleções,
nesse caso para uma coleção mais rígida, em que o corpo torna-se objeto. A beleza e a saúde
tornam-se então condicionadas a uma alimentação restrita, exercícios físicos intensos e
roupas pré-determinadas. Essa nova concepção de corpo remete a uma reorganização dos
vínculos entre grupos e sistemas simbólicos, e essa descoleção não representa apenas um
grupo. Embora essa nova concepção tenha surgido em estratos sociais mais favorecidos, já
não é possível vincular rigidamente as classes sociais com os estratos culturais, pois esses
novos padrões de corpos também são coleções para as classes menos abastadas.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Seguindo o movimento de refletir sobre as novas formas de corpo na


hipermodernidade, e sobre como o Instagram é o sinônimo desses novos corpos, é preciso
voltar um pouco na história para tentar entender como eram esses corpos e o que mudou.
Miskolci (2006) vai nos dizer que os corpos, como são conhecidos hoje, tiveram sua origem
filosófica na década de 1980, com a denominação da “Geração Saúde”. Porém, o autor
aponta que essa nova forma de lidar com os corpos ocorrera primeiramente nas classes altas e
médias.

A partir do conceito de desterritorialização, observa-se que no decorrer dos anos esse


processo de valorização do corpo começou a chegar também às classes mais baixas. Ao
Caminhar um pouco mais no tempo, percebe-se que a mídia reinventa o conceito de beleza
periodicamente. Os corpos deixam de pertencer à geração saúde e passam a entrar na lógica
da beleza importada, do belo construído nas passarelas, ainda assim esse corpo remete ao
corpo magro, ao corpo que dá forma às roupas (MISKOLCI, 2006).

Atualmente, os corpos são diferentes, e o local prioritário desses novos corpos pode
também ser o Instagram, espaço onde se reinventam o corpo e o seu uso, onde criam-se novas
coleções. O conceito de Estádio do Espelho (LACAN, 1998[1949]) auxilia no entendimento
de como as coleções de corpos e imagens divulgadas no Instagram influenciam na
constituição e no estilo de vida dos usuários. Lacan, partindo dos trabalhos de Henri Wallon,
de 1931, sobre “Prova do espelho e a noção do próprio corpo”, teorizou sobre a constituição
do eu a partir da identificação com a imagem do outro.

Nesses estudos, denominados Estádio do Espelho, o autor determinou que a imagem


tem papel fundamental na constituição do eu e na matriz simbólica do sujeito, além disso,
definiu a identificação como “a transformação produzida no sujeito quando assume uma
imagem” (LACAN, 1998[1949], p. 57). Inicialmente, na estruturação do sujeito, a criança
não tem a dimensão exata de seu corpo por sua prematuridade neurofisiológica. Dessa forma,
a imagem do próprio corpo refletida no espelho, que é tida ainda como imagem do outro, é
que apresenta o corpo como uma unidade. Esse “novo” corpo, não fragmentado, gera euforia
na criança, que busca no adulto a confirmação do que vê no espelho. Essa imagem passa a ser
seu ideal. Para definir o Estádio do Espelho, Lacan diz que:

Basta compreender o Estádio do Espelho como uma identificação, no sentido


pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no
sujeito quando ele assume uma imagem [...]. A assunção jubilatória de sua
imagem especular, por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na
dependência da amamentação que é o filhote do homem no estágio de infância,
parecer-nos-á, pois, manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em
que o eu [je] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no


universal, sua função de sujeito [...] (LACAN, 1998[1949], p. 97).

Adiante, ele continua a definição afirmando que,

[...] o Estádio do Espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da


insuficiência para a antecipação - e que fabrica para o sujeito, apanhado no
engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma
imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que
chamaremos de ortopédica - e para a armadura enfim assumida de uma
identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu
desenvolvimento mental (LACAN, 1998[1949], p. 101).

Para além do desenvolvimento infantil, a experiência do espelho atravessa toda a vida


do sujeito, representando a relação libidinal essencial com a imagem, demonstrando o
aspecto de conflito existente na relação dual. Trata-se da relação consigo e com o outro, de
um corpo virtual (corpo-imagem) que é marcado pelo significante (corpo-fala) e habitado
pela libido (corpo-gozo), e, dessa forma, é necessário um olhar distinto do da medicina, pois
o Estádio do Espelho estabelece uma relação do organismo com sua realidade. Em outra
dimensão, são novas coleções que buscam inovar a maneira de pensar e lidar com o corpo.
Uma nova cultura que parece incluir uma superexposição, que subverte noções de público e
privado e que parece ter sido criada a partir dos dispositivos móveis e deles dependem.

Hipercontos

Conforme as principais discussões acerca do gênero hiperconto (SPALDING, 2010;


DIAS, 2012), apesar dos inúmeros recursos multissemióticos que entram em jogo em sua
estruturação, o aspecto literário é relevante e imprescindível para a sua constituição.

O hiperconto aproxima-se do conto canônico por preservar sua narratividade breve,


um título interligado aos fatos narrados e uma seleção de aspectos linguísticos, cujo objetivo
é aproximar o locutor do interlocutor, promovendo uma maior interação e compreensão do
que está posto. Além disso, é possível afirmar que o conteúdo temático (BAKHTIN,
2003[1979]) do hiperconto não diverge do conto canônico, haja vista que, apesar dos
inúmeros assuntos específicos entre contos e hipercontos, o gênero se ocupa em apresentar
uma narrativa, contar uma história.

Segundo Spalding (2008), os autores do hiperconto devem hibridizar os recursos


multissemióticos, bem como integrar jogos de computador, artes digitais, desenhos gráficos,
animações etc. Esses recursos midiáticos ampliam as possibilidades de sentidos que podem
ser produzidos a partir da materialidade linguística apresentada na literatura digital. Em

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contemporâneas

especial, os processos interativos aumentam as produções de sentido, podendo o leitor, em


alguns hipercontos, interferir na forma de organização do texto, potencializando a sua
significação, modificando o roteiro narrativo e o seu final.

A interação está presente na maioria dos hipercontos observados, seja em níveismais


baixos, seja em níveis mais elevados de interatividade. Em uma perspectiva sociocultural e
discursiva, a interação ocorre entre sujeitos em um processo comunicativo em que o locutor,
por meio da linguagem, exerce um fazer persuasivo e o interlocutor um fazer interpretativo
(BRONCKART, 1999). Nesse processo, porém, os papéis não são fixos, sendo que o sujeito
pode, em um determinado momento da interação, ser locutor e em outro ser interlocutor.

Considerações finais

Ao analisar e refletir acerca dos gêneros digitais, observa-se que há uma confluência
de inúmeras semioses, uma apropriação de diversas linguagens, advindas das mais variadas
vertentes semióticas para a constituição de novos gêneros. Produtos da hipermodernidade ou
não, a produção e o consumo desses gêneros constituem uma inegável realidade.
Os ciberpoemas, minicontos digitais, memes, Instagram, hipercontos são fontes
inesgotáveis de (re)leituras, sendo a (re)configuração desses gêneros e aplicativos um
interessante produto da cultura literária e digital, não sendo possível permanecer à margem da
sala de aula de ensino de língua portuguesa. Seja dando movimento às palavras na tela, seja
desenhando formas concretas ou abstratas, ou ainda produzindo música na fenda de outros
signos, os gêneros digitais estão presentes nos ambientes virtuais e podem se configurar
como uma possibilidade de proporcionar aos docentes e discentes a oportunidade para o
desenvolvimento de interações para além de atividades de apenas assistir vídeos no Youtube,
navegar pelas redes sociais ou participar de jogos online.

Problematizar, compreender e produzir os gêneros digitais são ações que devem


figurar na pauta pedagógica dos professores de língua portuguesa, trazendo para o contexto
de sala de aula possibilidades didáticas que sejam inovadoras e instigantes. Mais ainda, os
gêneros digitais podem ser entendidos como novas coleções (GARCÍA CANCLINI,
2015[1997]) que buscam inovar as maneiras de se utilizar a linguagem. Também
problematizar e compreender essas novas relações, concepções e coleções se fazem
importantes para todos que estão inseridos no contexto de ensino de língua, especialmente
aqueles que lidam diretamente com os adolescentes, alunos do ensino Fundamental e Médio.

Se no campo da literatura digital ainda muito se especula e pouco se conclui, não é


aqui que se pretende fazer, ao contrário. Fica, porém, uma ponta de convicção, uma sombra
de certeza: os gêneros, especificadamente em sua vertente digital, nunca estiveram tão

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

próximos e familiares ao homem, cuja pedra no meio do caminho pode ser deletada com um
único dedo, no estalar rápido de um simples clic!

Referências

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Fontes, 2003[1979].

BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, texto e discurso. Trad. Anna Rachel Machado e


Péricles Cunha. São Paulo: EDUC, 1999.

CAPARELLI, S. et al. Poesia visual, hipertexto e ciberpoesia. In: Revista FAMECOS. Porto
Alegre, n 13, dezembro de 2000, p. 69-82.

DIAS, A. V. M. Hipercontos multissemióticos: para a promoção dos multiletramentos. In:


ROJO, R.; MOURA, E. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

DAWKINS, R. O gene egoísta. Disponível em: http://www2.unifap.br/alexandresantiago/


files/2014/05/Richard_Dawkins_O_Gene_Eg oista.pdf. Acesso em: 10 jun. 2015.

GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.


Tradução Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 2015 [1997].

HAYLES, N. K. Literatura eletrônica: novos horizontes para o literário. São Paulo: Global:
Fundação Universidade de Passo Fundo, 2009.

JENKINS, H. Cultura da convergência. Tradução Susana L. de Alexandria. São Paulo:


Aleph, 2009.

LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do Eu. In: LACAN, J. Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998[1949], p. 97-103.

LE GOFF, J. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. Tradução Reginaldo
Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

LIPOVETSKY, G. Os tempos hipermodernos. Tradução Mário Vilela. São Paulo: Editora


Barcarolla, 2004.

MISKOLCI, R. Life as a Work of Art – Foucault, Wilde and the Aesthetics of Existence. In:
MISKOLCI, R. Cultural Production. Amsterdam: Amsterdam School for Cultural Analysis,
Anais do Evento Trajectories of Commitment and Complicity: Knowledge, Politics, Cultural
Production. 2006, p. 42-48.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

ROJO, R. H. R. Pedagogia dos multiletramentos: diversidade cultural e de linguagens na


escola. In: ROJO, R.; MOURA, E. (Org.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola
Editorial, 2012, p. 11-29.

SANTAELLA, L. e NÖTH, W. Imagem, cognição, semiótica, mídia. 4. ed. São Paulo:


Iluminuras, 2010.

SANTAELLA, L. Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do pós-humano. In: Revista


FAMECOS. Porto Alegre, n. 22, dezembro de 2003, p. 23-31.

SPALDING, M. Os cem menores contos do século e a reinvenção do miniconto na literatura


brasileira contemporânea. 2008. Dissertação (Mestrado em Literaturas

A constituição da autoria no gênero textual resumo: um projeto de


engenharia didática aplicado à Educação Profissional Técnica de Nível
Médio

Aurélio Takao Vieira Kubo


Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais – Campus Timóteo
aureliokubo@gmail.com

Resumo: em uma escola de Educação Profissional Técnica de Nível Médio, o currículo


requer a necessidade de aproximar os alunos de gêneros textuais integrantes do domínio
discursivo científico. Dentre outras escolhas possíveis, compreende-se que o gênero resumo
seja um dos pontos de partida favoráveis a essa aproximação. Todavia, o aluno ainda não foi
preparado para lidar com essa modalidade de texto. A hipótese defendida é que, na produção
do resumo, o aluno deverá mobilizar dois grupos de competências básicas: aquelas
relacionadas à compreensão leitora e outras relacionadas à capacidade de escrita e
sumarização dos dados. Dessa forma, nossa pesquisa tem como principal questão a seguinte:
considerando-se que um resumo evidencia uma compreensão de um texto fonte, como
planejar uma sequência didática que garanta ao aluno construir sentidos a partir do resumo e
nele se manifestar como sujeito do seu próprio dizer? As questões secundárias dizem respeito
à própria engenharia implicada na construção da sequência didática (DOLZ, 2016) destinada
ao desenvolvimento das competências leitora e escritora, mas também preocupada com a
ergonomia do trabalho docente. Do ponto de vista da interação, assumindo que o professor é

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

um leitor privilegiado do aluno, torna-se relevante refletir sobre quais seriam os limites entre
personalização e padronização na hora de elaborar os comentários (RUIZ, 2010; ABAURRE
& ABAURRE, 2012) que orientarão o trabalho de revisão e (re)escrita dos alunos. Esta
pesquisa se justifica, uma vez que o projeto de engenharia didática possibilita ao professor
investigar a própria prática e também a de seus alunos, de modo a reorientar as atividades de
ensino que possam culminar no desenvolvimento das capacidades de leitura e de escrita do
resumo.

Palavras-chave: resumo, engenharia didática, ergonomia, leitura, reescrita.

1.0 Introdução

Em uma escola da Educação Profissional Técnica de Nível Médio integrante da Rede


Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, interessa-nos o trabalho realizado
com alunos matriculados no primeiro ano de três cursos técnicos integrados: Edificações,
Informática e Química. De um lado, interessa-nos observar as possibilidades de aproximação
desses estudantes aos gêneros circulantes no domínio discursivo científico e, de outro lado, o
trabalho de mediação entre os alunos e as práticas daquele domínio discursivo. Dentre as
várias possibilidades para realizar a aproximação referida, partimos da hipótese de que, na
produção do resumo, o aluno deverá mobilizar dois grupos de competências básicas: aquelas
relacionadas à compreensão leitora e outras relacionadas à capacidade de escrita e
sumarização dos dados.

Assim, a partir de sequências didáticas elaboradas sob o viés da Engenharia Didática,


esta pesquisa tem como objetivo geral determinar as características de uma sequência
didática que garanta ao aluno construir sentidos a partir do resumo e nele se manifestar como
sujeito do seu próprio dizer. Neste mesmo campo, consideramos importante refletir sobre a
natureza das atividades didáticas selecionadas a fim de determinar sua capacidade de atender
a certos princípios (DOLZ, 2016: 250-251) que regulam a produção dos exercícios de
linguagem de uma forma tal que permitam aos alunos continuar seu processo de aquisição da
linguagem. Quanto ao nosso trabalho de professor, gostaríamos de apresentar reflexões sobre
a etapa de correção e avaliação dos textos produzidos pelos alunos. Esse interesse se justifica
em face da dificuldade, sempre existente, em criar ferramentas que possibilitem sistematizar
critérios de correção e avaliação, além de facilitar a observação dos resultados alcançados
pelos alunos e, em última instância, permitir a regulação das aprendizagens.

2.0 Fundamentação teórica

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Ana Maria Netto Machado (2007) observa duas abordagens quanto ao ensino de
língua: um ensino baseado em modelos, que permearia toda a educação básica e considerável
parcela da superior, incapaz de produzir a autoria; e uma prática entre dois sujeitos,
orientando e orientador, engajados em uma atividade de escrita que prescinde de modelos
estritos. Assim, os manuais de metodologia “favorecem a produção de textos-padrão, e levam
a mirar-se em modelos idealizados, enquanto os orientadores, quando experientes, podem
incentivar o desenvolvimento do estilo do autor” (MACHADO, 2007: 188). Isso aconteceria
porque,

finalmente, o aluno tem como aliado uma personagem cujo trabalho não pode
se desenvolver sem o seu escrito. [...] A relação orientador-orientando tem, em
decorrência, de centrar-se na produção escrita do aluno, um caráter
completamente distinto da relação professor-alunos de sala de aula da
graduação. (MACHADO, 2007: 190).

Ao que parece, a condição de autor, de uma escrita crítica e criativa, seria conquistada
por meio de uma relação pessoal e artesanal diante do processo de escrever, possível na
relação orientador-orientando e difícil na relação professor-alunos. Isso aconteceria em
função do esvaziamento da experiência de escrever. Nas palavras de Machado:

Temos evidências de que não se aprende a escrever a não ser com/no próprio
corpo e recursos. Entretanto, a maneira como se ensina a escrever na escola
deixa de lado o cultivo da experiência subjetiva de escrita, e segue o caminho
das normas, regras e modelos (MACHADO, 2007: 185)

As evidências e a trajetória sintetizada por Machado podem ser encontradas em


trabalhos já bastante conhecidos no campo do ensino de língua no Brasil. Como exemplo,
apontaríamos Costa Val (1991) e Pécora (1982), que, por sua vez, retoma pesquisas realizadas
por Osakabe (1977). Dentre vários outros, todos já ocupados com a escrita realizada em
exames vestibulares. Conforme o objeto de pesquisa é a redação de vestibular já apresentada
pelos candidatos, há uma lacuna quanto ao ensino de língua na etapa final da educação
básica.

O reconhecimento de uma interação entre o sujeito que escreve e o sujeito que lê


estaria na raiz mesma da concepção de linguagem que se teria passado a praticar nas salas de
aula. Assim é que Antunes (2006: 179) propõe uma avaliação de textos que seja ampla,
complexa e multidimensional e, por essas razões, capaz de exercer a regulação das

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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aprendizagens. O currículo focalizado nesta pesquisa apresenta algumas das características


associadas à organização cumulativa apontada por Márcia Mendonça (2006: 203) e suas
consequências negativas para a seleção dos conteúdos e competências a serem trabalhados ao
longo do ensino médio. Por essa razão e acompanhando ainda essa autora, há que se assinalar
“o fato de que a aquisição da linguagem se dá a partir da produção de sentidos em textos
situados em contextos de interação específicos” (MENDONÇA, 2006: 203).

Consequentemente, considera-se também que a compreensão dos fenômenos da


linguagem deve muito à inclusão dos seus sujeitos e das posições sociais e históricas destes,
ou seja, da inclusão das condições de produção e da situação de comunicação como objeto
de estudos. Pois, já apontava Bakhtin, “qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação
considerado, ele será determinado (...) antes de tudo pela situação social mais
imediata” (1997: 112, itálicos no original). Quanto ao ensino, considerar a situação de
produção do texto reposicionaria as atividades didáticas para uma aproximação mais alta com
os fenômenos da vida social. Nas palavras de Bunzen:

os alunos não deveriam produzir “redações”, meros produtos escolares, mas textos
diversos que se aproximassem dos usos extra-escolares, com função específica e
situada dentro de uma prática social escolar. Se assumirmos tal posicionamento,
apostaremos em um ensino muito mais procedimental e reflexivo (e menos
transmissivo), que leva em consideração o próprio processo de produção de textos e
que vê a sala de aula, assim como as esferas da comunicação humana, como um lugar
de interação verbal. (BUNZEN, 2006: 149)

A própria natureza das atividades e exercícios de linguagem precisaria, então, ser


revista. De preferência, sem os exageros já observados em décadas anteriores, quer no campo
da substituição de uma terminologia gramatical por uma advinda da linguística textual, quer
na proliferação de gêneros textuais precariamente associados às vivências dos alunos, mas
sempre presentes graças às possibilidades de análise. Acompanhando a exposição de Bunzen,
“para os alunos utilizarem a língua escrita de forma dialógica e situada, os professores teriam
de criar situações e estratégias em que os alunos utilizassem os gêneros em diferentes
situações” (2006: 157), sem perder de vista a regulação das aprendizagens, além da própria
regulação das atividades e exercícios escolares destinadas ao ensino de língua.

2.1 Engenharia didática

É tarefa do professor ocupar-se da pesquisa em Didática das Línguas e poderá fazê-lo


a partir das contribuições de um seu campo particular, denominado por Dolz (2016: 240) de
engenharia didática, que, a partir dos problemas de ensino, desenvolveria inovações sempre
ajustadas ao contexto institucional, tempo, recursos disponíveis e ergonomia dos atores

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implicados, o professor e os alunos. Uma avaliação conforme proposta por Antunes (2006)
poderia estar mais próxima do alcance a partir de desenvolvimentos e inovações que
buscassem a ergonomia do trabalho do professor.

A engenharia didática fornecerá subsídios à medida que

tem a responsabilidade de conceber projetos escolares e de elaborar dispositivos,


atividades, exercícios, materiais escolares e novas tecnologias da comunicação escrita,
oral e audiovisual. Com este objetivo, ela imagina e planifica as formas sociais de
trabalho escolar dos alunos. Também está encarregada de inventar ferramentas para
facilitar as aprendizagens e de orientar as intervenções e os gestos profissionais do
professor. Finalmente, ela realiza pesquisas sobre as inovações introduzidas,
controlando e avaliando a implementação das novidades. (DOLZ, 2016: 241)

Em sua exposição, Dolz apresenta três domínios no campo da engenharia didática: 1)


pesquisa e desenvolvimento de inovações; 2) aplicação e controle de qualidade; 3) difusão e
formação; dos quais, destacamos o primeiro como o centro de nossas atenções. E isso se
justifica no interesse em desenvolver dispositivos, suportes e ferramentas que facilitem o
trabalho dos professores. Quanto à avaliação, há que se projetar ações de forma tal que o
professor consiga superar as contingências impostas pela instituição escolar: o tempo
disponível, as quantidades de alunos, entre outras limitações. Por exemplo, um projeto de
engenharia didática poderia contemplar, em todas as suas fases, mecanismos de coleta e
sistematização dos dados auferidos nas diferentes etapas da avaliação. Dolz (2016: 243-244)
destaca as quatro fases que constituem um projeto de Engenharia Didática: análise a priori do
trabalho de concepção; concepção de um protótipo de dispositivo didático; experimentação; e
análise a posteriori.

Dolz (2016: 250-251) destaca a importância das atividades escolares na aprendizagem


e apresenta sete princípios basilares para a concepção e elaboração de exercícios inovadores,
com foco nos pressupostos da Engenharia Didática: permitir ao aluno que passe pela
atividade da linguagem; considerar a Zona de Desenvolvimento Proximal do aluno (ZDP);
garantir uma dinâmica que vai da elementarização para aprender à integração dos elementos
novos na totalidade do texto; fabricar as ferramentas para o aluno por um movimento
progressivo de devolução; diversificar e articular as tarefas; antecipar as interações e
explicitar os conceitos e comportamentos a desenvolver; respeitar a escolha do aluno.

Conquanto importantes, a observância a esses princípios nada tem de fácil. A nosso


ver, mesmo o esforço prévio de planejamento pode ser frustrado por variáveis que nem
sempre estão sob o controle do professor ou são simplesmente imprevisíveis. Nas palavras de

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contemporâneas

Dolz, constata-se “uma insegurança explícita dos professores em relação à concepção e à


aplicação das sequências didáticas, sobretudo, no que consiste em avaliar as capacidades dos
alunos e adaptar as atividades de acordo com os obstáculos observados (2016: 252). Por essa
dificuldade, consideramos importante o professor assumir o papel de engenheiro e munir-se
de uma metodologia de investigação que relacione pesquisa e ação sobre o sistema
fundamentado em conhecimentos didáticos.

2.2 Avaliação da escrita

Na rotina do trabalho docente, não é impossível que o feedback dado aos alunos
resulte ambíguo, inespecífico ou inútil para que eles desenvolvam suas habilidades de
linguagem. Daí o interesse em refletir teoricamente sobre uma questão que, inicial e
embrionariamente poderia ser posta em torno dos princípios que deveria seguir o professor
em seu trabalho rotineiro de avaliação da escrita e dos instrumentos, inclusive tecnológicos,
que permitiriam potencializar a mediação realizada nas condições típicas (às vezes, adversas)
em que se realiza o trabalho de leitura e avaliação dos textos.

Pesquisas relacionadas à correção e à avaliação de textos têm ganhado certa projeção


e incluem também em suas preocupações o ensino médio. A tradução brasileira de Serafini
([1985] 1995) e a proposta de Ruiz (2010) seriam exemplos dentre numerosas publicações.
Serafini (1995: 107) lista seis princípios de correção a serem observados pelo professor (a
correção não deve ser ambígua; os erros devem ser reagrupados e catalogados; o aluno deve
ser estimulado a rever as correções feitas, compreendê-las e trabalhar sobre elas; deve-se
corrigir poucos erros em cada texto; o professor deve estar predisposto a aceitar o texto do
aluno; a correção deve ser adequada à capacidade do aluno).

A mesma autora faz uma distinção entre os conceitos de corrigir e avaliar. Para ela, a
correção “é o conjunto das intervenções que o professor faz na redação pondo em evidência
os defeitos e os erros, com a finalidade de ajudar o aluno a identificar os seus pontos fracos e
melhorar” ([1985] 1995: 97). Por seu turno, a avaliação consiste no “julgamento que o
professor dá ao texto, através de uma nota ou de um comentário verbal, com o objetivo de
quantificar seu resultado em relação aso demais alunos e aos resultados anteriores do próprio
aluno” (Idem). Neste trabalho, tomaremos o termo avaliação em sentido mais amplo,
recobrindo o conceito de correção acima apresentado. Conforme Antunes (2006: 164-165),
estamos considerando a avaliação como atividade que inclui auto avaliação e avaliação
socializada, anteriores à avaliação realizada pelo professor e em que pese a dificuldade
prática de realizá-las nas contingências do tempo escolar.

Serafini identifica estilos de correção (indicativa, resolutiva e classificatória). RUIZ


(2010: 47) acrescenta a estes estilos uma forma de intervenção que chamou textual interativa.

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contemporâneas

Em direção semelhante, Abaurre e Abaurre (2012: 172) também tratam de intervenções de


ordem interativa, desta vez, não por meio de um bilhete pós-texto, mas uma carta endereçada
a aluno. Estes trabalhos mais recentes têm levado em conta o papel do professor não somente
como a autoridade destinatária única dos textos, mas também como um mediador do processo
de escrita. Por essa conta, a avaliação precisará contar também com um conjunto de
estratégias capazes de preservar o laço afetivo capaz de tornar bem-sucedida a mediação
(LEITE, 2013) e de sistematizar os dados obtidos na avaliação.

3.0 Metodologia

Esta pesquisa insere-se nos quadros do sócio-interacionismo discursivo e adota os


pressupostos da Engenharia Didática na expectativa de que ela contribua com a possibilidade
aliar o conhecimento científico acumulado quanto a um dado saber e sua aplicação na prática
da sala de aula. Esse objetivo poderia ser alcançado a partir da “fina análise prévia das
concepções dos alunos, das dificuldades e dos erros tenazes” (ARTIGUE, 1996: 202), uma
vez que “a engenharia é concebida para provocar, de forma controlada, a evolução das
concepções” (Idem).

Conforme já começamos a expor, a pesquisa se fez no interior de uma escola de


Educação Profissional Técnica de Nível Médio e envolveu o planejamento da disciplina
Redação e Estudos Linguísticos ofertada para 126 alunos matriculados no primeiro ano de
três cursos integrados (Edificações, Informática e Química). Além dos conteúdos frequentes
no ensino de língua portuguesa, o programa dessa disciplina também apresenta uma
dimensão instrumental por meio da qual espera-se que os alunos travem contato com gêneros
textuais do domínio discursivo científico e presentes em outras disciplinas que integram seu
currículo: relatórios de práticas laboratoriais, relatórios de pesquisa, artigos científicos,
relatórios de estágio, entre outros.

Para atender a essa demanda, o gênero resumo apresenta-se como opção inicial útil
não só por permitir o desenvolvimento de competências leitora e escritora, mas também
permitir o contato interessado com textos fonte típicos do domínio discursivo científico.
Além disso, há a necessidade de cumprir a dimensão propedêutica da disciplina, na qual se
encontram conceitos e conteúdos relacionados aos Estudos Linguísticos e cuja transposição
didática precisa precaver-se contra os exageros terminológicos indicados por Buzen (2006:
152).
Dessa forma, o corpus analisado constitui-se de um projeto de Engenharia Didática e
suas respectivas sequências didáticas planejadas e implementadas com a finalidade de
desenvolver uma abordagem situada ao gênero resumo e, paralelamente, a outros gêneros e

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contemporâneas

práticas do discurso científico. Além dessas sequências e atividades, integra o corpus o


conjunto de instrumentos destinados à avaliação das atividades.

4.0 Análise do corpus

A análise se organizará a partir das quatro fases previstas na elaboração de um projeto


de Engenharia Didática. A saber: 1) Análises preliminares; 2) Concepção e análise a priori; 3)
Experimentação; e 4) Análise a posteriori e validação. Na concepção das atividades
didáticas, buscamos, na medida do possível, contemplar os sete princípios norteadores da
confecção de exercícios apresentados por Dolz (2016: 250-251).

4.1 Análises preliminares e concepção de protótipos

A primeira fase consistiu na determinação dos conhecimentos disponíveis sobre o


objeto de estudo resumo considerado nesta pesquisa. Nesse sentido, consideramos,
acompanhando Machado (2007: 139), a necessidade de construirmos previamente um modelo
didático do gênero que definisse com clareza e simplicidade o objeto de ensino e o fizesse
tendo em vista uma prática social escolar específica e com o propósito explícito de levar a
uma aproximação ao domínio discursivo científico. Tratava-se, portanto, de uma dimensão do
letramento escolar. O movimento inicial de constituição desse modelo veio de Severino, para
quem o resumo seria “a síntese das ideias do raciocínio e não a mera redução dos parágrafos.
Daí poder o resumo ser escrito com outras palavras, desde que as ideias sejam as mesmas do
texto” (1989: 127-128).

A seleção de possíveis textos fonte para os resumos foi outra preocupação inicial.
Procuramos responder a ela a partir das demandas programáticas da disciplina Redação e
Estudos Linguísticos, que, em sua primeira unidade, previa a reflexão sobre os conceitos de
língua, linguagem e variação linguística. Assim, aproveitamos esse estudo teórico para
apresentar exemplares do discurso científico e para situar a produção dos resumos. O contrato
didático implicaria ler e resumir os textos científicos com a finalidade de conhecer os
conceitos neles abordados. A primeira consequência dessa escolha é o grau de dificuldade das
leituras selecionadas, certamente superior às capacidades de vários alunos. Para lidar com
esses obstáculos na realização das atividades, foram idealizados apoios em forma de roteiros
de leitura e roteiros para esquematização dos textos fontes, a serem progressivamente
retirados à medida que as atividades se sucedessem.

Com essas reflexões em mente, a segunda fase dedicou-se à criação dos protótipos de
dispositivos didáticos, os quais se organizaram em torno de sequências didáticas, ou “um
conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero

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textual oral ou escrito” (Dolz, Noverraz & Schneuwly, 2004, p.97). Nesta etapa, foram
planejadas quatro atividades a serem desenvolvidas ao longo do primeiro semestre letivo de
2016. No percurso, outras duas foram acrescentadas em função dos resultados obtidos na
primeira avaliação formativa realizada.

A primeira atividade, a se realizar em grupos, consistiria no resumo de um trecho de


Carlos Alberto Faraco sobre a linguagem humana. Dada a densidade do texto, um roteiro de
leitura foi apresentado a fim de facilitar sua compreensão. A segunda atividade também
selecionou um texto de Faraco, desta feita, porque ele se organizava a partir de várias
sequências narrativas ordenadas numa sucessão cronológica e apresentava citações e
referências a outras obras. Assim, aproveitaram-se a facilidade de leitura proporcionada pela
ordenação cronológica e a exemplificação do funcionamento das citações e referência
bibliográficas. Como estratégia de apoio à leitura, a atividade solicitava a ordenação dos fatos
expostos em uma linha do tempo. A terceira atividade ocorreu em contexto de avaliação
formativa e não contaria com apoios para sua realização. Em função disso, um artigo
assinado por Ferreira Gullar (Ler e falar, Folha de S.Paulo) foi o objeto selecionado. A
quarta atividade selecionou um texto de Marcuschi, que se apresentava estruturado em uma
exposição didática. Essa atividade previa a retirada total dos apoios para a leitura, além da
redução ao mínimo das instruções de sua realização.

4.2 Experimentação

Como resultado do planejamento anterior, na terceira fase do projeto, as atividades


foram aplicadas conforme descreve o quadro abaixo:

Formas de Aulas Respostas Comentários Média


Atividade Proposta
avaliação
P.1.v1 01 e 02 34 209 6,147
Atividade 1 Horizontal e vertical
P.1.v2 05 e 06 19

P.2.v1 07 e 08 118 523 4,432


Auto avaliação e
Atividade 2
avaliação vertical P.2.v2 11 e 12 111 433 3,936

Atividade 3 Avaliação vertical P.3 19 e 20 122

P.3.a 27 e 28 51
Atividades
Avaliação horizontal
extras P.3.b 27 e 28 53

Auto avaliação e P.4.v1 37 e 38 116 542 4,672


Atividade 4 avaliação vertical

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Quadro 1. Conjunto de atividades implementadas.

As diferentes fases até o momento descritas não são estanques. Tanto é que podem
levar a reorientações e adaptações ao longo do caminho. Em nosso caso, as atividades extras
(P.3.a e P.3.b), resultantes da avaliação formativa, foram elaboradas com a finalidade de
sistematizar algumas características composicionais do resumo.

4.3 Análise a posteriori

Como etapa de preparação das atividades constituintes das sequências didáticas, uma
só grade de desempenhos (abaixo) foi elaborada para avaliar todas as atividades em suas
sucessivas versões. Inicialmente, essa providência foi tomada tendo em vista a padronização
do trabalho. Todavia, a aplicação da grade terminou por suscitar dúvidas quanto à exatidão e
detalhamento dos seus descritores. Talvez fosse o caso de criar maior quantidade de níveis de
desempenho a fim de indicar aos alunos mais detalhes sobre a avaliação de seus textos. De
outro lado, a maneira de descrever um desempenho também poderia ter sido alterada para
refletir um maior grau de pessoalidade.

Competência I: Domínio da Norma Padrão

Nível Descritor

Demonstra domínio precário da modalidade escrita formal da língua portuguesa, de forma


0 sistemática, com diversificados e frequentes desvios gramaticais, de escolha de registro e de
convenções da escrita.

Demonstra domínio insuficiente da modalidade escrita formal da língua portuguesa, com


1 muitos desvios gramaticais, de escolha de registro e de convenções da escrita.

Demonstra domínio mediano da modalidade escrita formal da língua portuguesa e de escolha


2 de registro, com alguns desvios gramaticais e de convenções da escrita.

Demonstra bom domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa e de escolha de


3 registro, com poucos desvios gramaticais e de convenções da escrita.

Demonstra excelente domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa e de escolha


4 de registro.

Competência II: Desenvolvimento do gênero na temática solicitada

Nível Descritor

Desenvolve precariamente a temática apresentada no texto base. Apresenta cópias e/ou acrés-
0 cimo de fatos e opiniões dele ausentes. Desenvolve precariamente o gênero resumo.

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Apresenta a temática a partir de cópias do texto base e/ou acréscimo de fatos e opiniões dele
1 ausentes. Apresenta indícios que permitem identificar o gênero resumo.

Desenvolve razoavelmente a temática por meio de cópias do texto base. Apresenta elementos
2 da estrutura prevista no gênero resumo.

Seleciona e usa com propriedade as ideias apresentadas no texto base. Desenvolve a temática
3 empregando vários elementos previstos na estrutura do gênero resumo.

Seleciona e organiza consistentemente as ideias apresentadas no texto base. Desenvolve com


4 autonomia e propriedade a temática e o faz por meio da exploração intencional da estrutura
do gênero resumo.

Competência III: Textualidade

Nível Descritor

Apresenta ideias desconexas ou contradições. Muitos problemas de coesão sequencial e/ou


0 referencial. Apresenta contradições que comprometem o sentido global do texto.

Apresenta desarticulações e problemas de coesão textual que comprometem a referenciação e


1 a progressão textual. Apresenta contradições que afetam o sentido do texto.

2 Apresenta ideias articuladas e não contraditórias. Há ocorrência de problemas coesivos.

Há indícios de articulação intencional das ideias em benefício da articulação textual. Não


3 apresenta contradições. Faz bom uso dos recursos coesivos em função do sentido global do
texto.

Apresente articulação muito boa e intencional das ideias em função do desenvolvimento do


4 texto. Faz uso sofisticado dos recursos coesivos em benefício da articulação textual. Não
apresenta contradições.

Quadro 2. Grade de desempenhos empregada para avaliar as atividades.

Nesta parte, focalizaremos os resultados da segunda (P.2.v1 e P.2.v2) e da quarta P.


4.v1) atividades implementadas. Elas demonstram os avanços alcançados pelos alunos na
aquisição do gênero resumo.

Diferentemente do que preconizam os modelos de resumo voltados para a educação


superior, decidimos suprimir a referência bibliográfica, que seria objeto de outras ações ao
longo do curso. Assim, o modelo didático adotado previa a separação das vozes do autor do
resumo e do autor do texto base e uma contextualização inicial limitada à indicação do título
do texto resumido e de seu autor. Na leitura da P.2.v1 foram deixadas 42 instruções
semelhantes a “Modifique a introdução para que ela expresse o título do texto base, seu
autor e a principal tese que ele defende”. Isso corresponde a 36% dos 118 resumos
apresentados. A segunda versão (P.2.v2) necessitou da mesma instrução outras 25 vezes (23%
dos 111 resumos apresentados). Esses fatos podem estar associados à incompreensão da
instrução; ou a uma representação de bom texto como sendo aquele livre de erros superficiais
(inicialmente, muitos alunos se limitaram à higienização ortográfica em seu trabalho de
reescrita). De qualquer forma, há ainda que se investigar a recepção que o aluno faz do
feedback deixado em seu texto. Há que aponte o descaso do aluno quanto aos comentários,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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porém esta não nos parece uma hipótese muito forte na medida em que percebemos alto grau
de comprometimento dos alunos na realização das tarefo, o que pode ser atestado pelo baixo
quantidade de omissões.

Em compensação, a busca pelos mesmos índices durante a leitura da P.4.v1 revela que
em apenas 4 (3% dos 116 textos avaliados) não constam informações sobre autoria e título do
texto fonte já nas linhas iniciais. Essa redução expressiva revela que, ao menos por ora,
considerável parcela dos alunos modificou suas representações sobre o gênero resumo.

Também em direção positiva apresentam-se os gráficos de desempenhos. Para facilitar


a visualização, apresentaremos os números relativos a duas das três turmas consideradas na
pesquisa: a Turma 1 apresenta os resultados mais modestos enquanto a Turma 2 apresenta
maiores avanços.

! !

Figura 1. Desempenho na atividade 2 – Turma 1 Figura 2. Desempenho na atividade 2 – Turma 2

!
!

Figura 3. Desempenho na atividade 4 – Turma 1 Figura 4. Desempenho na atividade 4 – Turma 2

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Na passagem da proposta 2 à proposta 4, observe-se o maior agrupamento de alunos


nos níveis 3 e 4 de desempenho. A comparação dos desempenhos da mesma turma em duas
atividades realizadas mostra avanços, ainda mais se considerarmos que se trata de resultados
obtidos a partir das primeiras versões, portanto, ainda sem as eventuais melhorias decorrentes
do trabalho de reescrita. Além do mais, os avanços também se notam quanto ao domínio da
norma culta e da textualidade, indicados pelas competências C1 e C3.

4.4 Ferramentas de avaliação

Um dos critérios de validação das inovações técnicas passa pela eficácia ergonômica
para o trabalho do professor, que é complicada pelas condições mesmas de trabalho em que
ele frequentemente se encontra. No caso dessa pesquisa, a proposta foi tratar a avaliação a
partir de tecnologias popularmente conhecidas a fim de alcançar a ergonomia: se já são
conhecidas, o professor poderá criar, desenvolver (e consertar) seus instrumentos com maior
autonomia. Para realizar a avaliação dos textos dos alunos, armazenar os dados obtidos e
organizar uma resposta a mais clara possível, empregamos dois aplicativos: o Microsoft
Excel e o Microsoft Word. Enquanto o primeiro se encarrega de efetuar cálculos e organizar
comentários aos textos, o segundo procede à comunicação das intervenções e dos resultados
da avaliação propriamente dita.

As imagens abaixo mostram uma atividade posteriormente à avaliação realizada. Ao


final, o relatório é impresso sobre a folha do aluno, que interpreta as intervenções a partir dos
destaques e índices anotados ao longo do texto.

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contemporâneas

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Figura 5: Exemplo de um texto avaliado. Fonte: acervo da pesquisa.

Os dados constantes do relatório que se vê ao final da página dois foram criados em


uma planilha do Excel e transferidos ao Word por meio de mala direta. Para cada atividade
uma planilha diferente foi gerada a partir de uma matriz. Isso permite que todas as avaliações
realizadas a propósito de todas as atividades de todos os alunos estejam contidas em uma só
pasta de trabalho. A planilha matriz foi organizada conforme descrevemos no quadro abaixo:

Coluna Função

Registra (em valores booleanos) se a atividade de um aluno em particular foi recebida. Em


Msc. caso negativo, impede que o relatório correspondente seja mesclado na mala direta do Word.

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N.o Registra uma chave primária para identificar com exclusividade um aluno.

Nome Acrescentam informações sobre o aluno. Ocasionalmente, estas colunas podem ser subdivi-
das para expressar datas, nomes de cursos e prenomes de alunos. Isso pode ser útil se a mala
Turma direta gerar e-mails, caso da avaliação de textos produzidos em suporte digital.

C.1.1
Registram o nível de desempenho alcançado pelo aluno em uma dada competência. Haverá
C.2.1 tantas colunas quantas forem as competências previstas na grade de avaliação de uma ativi-
dade.
C.n.1

D.1.1 Servem para expressar o descritor corresponde ao nível de desempenho alcançado em uma
competência dada. Por meio da função PROC, a célula D.1.1 lê o valor contido na célula C.
D.2.1 1.1, procura o texto correspondente àquele nível na grade de desempenhos (Quadro 2) e pas-
sa a expressar esse texto.
D.n.1

Efetua o cálculo da nota a partir dos níveis de desempenho atribuídos. As fórmulas podem
Nota 1 ser alteradas e considerar diferentes cálculos (soma, média) ou diferentes pesos para as com-
petências em avaliação.

Contém o texto de um comentário feito ao trabalho do aluno. Abriga no máximo 255 caracte-
Obs.1.1 res com espaços. Comentários podem ser padronizados para reutilização e formatados (co-
res) para destacar questões recorrentes nos trabalhos dos alunos.

Usa a função NÚM.CARACT para contar a quantidade de caracteres empregados no comen-


Ct.1.1 tário. Se a formatação condicional for aplicada, a célula mudará de cor sempre que o limite
estabelecido for alcançado.

Obs.2.1

Ct.2.1

Obs.n.1

Ct.n.1

C.1.2 a Na continuação da grade de avaliação, os mesmos campos descritos acima foram duplicados
Nota 2 para abrigar a avaliação pertinente à 2ª versão de uma atividade qualquer.

Quadro 3. Descrição da planilha matriz a partir da qual foram copiadas as planilhas de avaliação das diferentes atividades.

A utilização de planilhas revelou-se útil em várias tarefas associadas à avaliação.


Dentre elas, destacaríamos: organizar o fluxo de tarefas recebidas; registrar os comentários
feitos a cada aluno e, ao mesmo tempo, permitir a visualização das questões recorrentes no
grupo; possibilitar a categorização e a recategorização dessas questões anteriormente à
devolução das atividades aos alunos; revisar os comentários e ajustá-los da melhor maneira
possível às necessidades dos alunos; reutilizar comentários recorrentes ao longo do processo
de avaliação; e calcular desempenhos. Conforme a visualização dos resultados tornou-se mais
inteligível, também houve ganhos — não sem percalços — quanto à reorientação das práticas
a fim de melhor regular as aprendizagens.

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Considerações finais

Iniciamos este artigo com uma questão relativa aos métodos que permitiriam o
desenvolvimento do gênero resumo por estudantes de cursos técnicos de nível médio. Assim,
partindo da hipótese de que o gênero resumo propiciaria o desenvolvimento das
competências leitora e escritora, traçamos o objetivo de determinar as características de um
projeto de Engenharia Didática que permitisse a aproximação gradual dos estudantes a outros
gêneros do domínio discursivo científico. Paralelamente, buscávamos apresentar reflexões
sobre o trabalho de avaliar empreendido pelo professor.

Os resultados apontam um progressivo domínio do gênero resumo e avanços mais


gerais quanto ao desenvolvimento de outras competências linguísticas. Conquanto o maior
desempenho no domínio da norma culta possa ter tido como causa o contato com a essa
norma nos textos fonte, há que se indicar ao menos outras duas leituras: um avanço na
competência para escrever, ou uma maior sensibilidade para ler aqueles textos e aproveitar-se
deles. A nosso ver, uma interpretação análoga pode ser feita quanto às melhorias observadas
na textualidade.

Como princípio, Serafini defende que poucos erros devem ser marcados em um texto.
Isso ocorreria porque a capacidade de o aluno concentrar-se neles é limitada. Por essa causa
ou outra, o confronto das segundas versões com as primeiras realmente revelou a
desconsideração das orientações recebidas. Como tarefa futura, há que se determinar o
significado quantitativo dessas ocorrências e, a depender de sua permanência, buscar formas
de contornar essa dificuldade, ou, no mínimo, tentar determinar uma quantidade ótima de
indicações a fazer em certos textos.

O engajamento observado nos alunos quando da realização das atividades,


manifestado também pelos números expressivos de atividades realizadas é indício das
vantagens em se planejar atividades sob o viés da Engenharia Didática. Houve antecipação de
dificuldades, criação de atividades desafiadoras (em excesso, segundo alguns alunos... o que
violaria o princípio segundo o qual um exercício deve respeitar a ZPD). E, durante a fase de
experimentação, os subsídios fornecidos pela avaliação permitiram redirecionar as ações a
fim de atender às necessidades identificas.

As planilhas de avaliação funcionaram e permitiram alguma individualização do


feedback em meio ao uso recursivo de parte dos dados. Permitiram também uma
interpretação mais clara dos resultados da avaliação, o que, conforme era de se esperar,
favoreceu a regulação das aprendizagens.

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Diferentemente do que propõem Abaurre & Abaurre (2012), incluímos um nível zero
em nossa grade de desempenhos (assim como em outras grades utilizadas em exames de
escrita). Todavia, a não ser em caso de inadequação total ao gênero, a existência desse nível
implicaria aceitar a possibilidade de um grau zero de letramento e ainda, a aceitar a tarefa de
discernir entre esse nível e o imediatamente superior. A grade conforme a apresentamos
requer mais reflexão: de um lado, abandonar os níveis zero de desempenho e, de outro,
aumentar a quantidade de níveis para favorecer uma separação mais precisa entre os atuais
níveis 2 e 3, onde se localizam muitos dos textos. O detalhamento dos descritores deverá
corresponder a uma avaliação mais justa.

Quanto ao desenvolvimento de uma escrita autoral e criativa (MACHADO, 2007),


muito ainda há que se avançar, principalmente, por meio de outras práticas e gêneros, dado
que a própria separação das vozes do autor do resumo e do autor do texto lido ainda não é
uma operação consciente e consistente para números alunos. Mesmo nos casos em que se
observam tentativas, rapidamente o aluno-autor defronta-se com os limites imposto pelo
gênero.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A representação da subjetividade em epitáfios: uma análise benvenistiana


Aurineide Profírio Barros Correia214


Universidade Católica de Pernambuco
Instituto Federal de Alagoas
aurineideporfirio@gmail.com

Resumo: o estudo da língua em situações reais de uso, em forma de ação, implica estabelecer
uma relação que justifique esse uso ou a escolha de determinadas palavras no discurso
assumidas por um sujeito. Evidencia-se, ainda, no aspecto semântico, o estabelecimento da
relação dos signos com as condições de um enunciado, que determina a significação em
função de oposições instituídas no interior do sistema linguístico e exterior a ele. Benveniste
(2006) destaca a dêixis (pessoal, espacial e temporal) como marca explícita da relação do
sujeito com o enunciado. Dessa forma, os elementos dêiticos, referem-se à realidade do
discurso e só podem ser identificados em termos de locução, implicando, assim, as relações
de subjetividade que envolvem o locutor e um alocutário por ele instituído. Faz-se relevante
destacar que Benveniste deteve-se em uma vertente de análise da língua em uso, em ação, em
sua dimensão enunciativa, pois para ele “a enunciação é este colocar em funcionamento a
língua por um ato individual de funcionamento” (BENVENISTE, 2006, p. 82). Com base
nessas questões buscamos analisar a dêixis no processo de representação da subjetividade em
epitáfios, tendo como base a Teoria da Enunciação de Émile Benveniste (2005 e 2006).
Utilizamos, nesse estudo, o método de pesquisa qualitativa, de caráter descritivo. Esperamos,
dessa forma, ampliar as discussões em torno da teoria enunciativa de Émile Benveniste,
destacando, principalmente, o viés semântico, proporcionando uma reflexão sobre a língua
em uso e a sua função mediadora numa perspectiva dialógica, possibilitando modos de se
conceber a linguagem e suas implicações metodológicas no ensino da língua portuguesa.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria da Enunciação, subjetividade, dêixis

Resumen: el estudio de la lengua en situaciones reales de uso, en forma de acción, implica


establecer una relación que justifique ese uso o la elección de determinadas palabras en el
discurso asumidas por un sujeto. Aún se evidencia en el aspecto semántico, el establecimiento
de la relación de los signos con las condiciones de un enunciado, que determina la
significación en función de oposiciones instauradas en el interior del sistema lingüístico y
exterior a él. Benveniste (2006) destaca la deixis (personal, espacial y temporal) como marca
explícita de la relación del sujeto con el enunciado. De esa manera, los elementos deícticos,

214
Mestranda em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de Pernambuco e Professora de Língua
Portuguesa da Educação Básica, Técnica e Tecnológica do Instituto Federal de Alagoas - Brasil.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

se refieren a la realidad del discurso y sólo pueden ser identificados en termos de locución,
implicando, así, las relaciones de subjetividad que envuelven el locutor y un alocutário por él
establecido. Es importante destacar que Benveniste se detuvo en una línea de análisis de la
lengua en uso, en acción, en su dimensión enunciativa, porque para él "la enunciación ES
esse poner a funcionar La lengua por um acto individual de utilización” (BENVENISTE,
2006, p. 82). Dentro de esta base de datos buscamos analizar la deixis en el proceso de
representación de la subjetividad en epitafios, teniendo como soporte La teoría de la
Enunciación de Émile Benveniste (2005 y 2006). Utilizamos, en este trabajo, la investigación
cualitativa, de carácter descriptivo. Esperamos así ampliar las discusiones relativas a la teoría
enunciativa de Émile Benveniste, destacando, en especial el semántico, posibilitando una
reflexión sobre la lengua en uso y su función mediadora en una visión dialógica,
posibilitando maneras de concebir la lenguaje y sus implicaciones metodológicas en la
enseñanza de la lengua portuguesa.

PALABRAS CLAVES: Teoría de la Enunciación, Subjetividad, Deixis.

Introdução

A compreensão que temos sobre linguagem resulta de uma diversidade de


interpretações e definições construídas ao longo da história da humanidade. Segundo Platão,
em seu Diálogo do Crátilo (1988), no qual o filósofo faz a relação entre linguagem e
conhecimento e evidencia a adequação ou não do nome à coisa dita, da palavra à ideia, a
linguagem seria um meio, um instrumento que, no entanto, não seria capaz de traduzir o
mundo inteligível, citando como exemplos os nomes pensados como imitação da realidade
que trariam significados ambíguos, o que comprometeria, dessa forma, a possibilidade plena
do conhecimento. Aristóteles, em sua obra A Política (2008), relaciona fala e linguagem e
classifica esta como uma condição humana, fazendo parte da sua natureza, pois, segundo ele,
o homem é um animal político e, dentre todos os animais, o único dotado de linguagem.
Dessa forma, segundo ele, sem linguagem não haveria sociedade política.

Para Ferdinand de Saussure, linguista genebrino, e fundador da Linguística moderna


com o seu Curso de Linguística Geral215 (2012), a quem devemos todo o conhecimento sobre
linguagem produzido no século XX, trata-se de algo abstrato, que não pode ser definido de
uma forma inteligível. Para ele “a linguagem é multiforme e heteróclita; o cavaleiro de
diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso

215Curso de Linguística Geral é uma obra póstuma de Ferdinand de Saussure publicada em 1916, organizada
por seus discípulos Albert Sechehaye e Charles Bally, a partir de três cursos ministrados por Saussure na Uni-
versidade de Genebra, entre os anos de 1906 e 1911. Nele, Saussure elege a língua em oposição à linguagem
como objeto central da Linguística, concebendo, dessa forma, o status de ciência autônoma à Linguística e deli-
neando um método de estudo desse objeto que, posteriormente ficou conhecido como estruturalismo.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

ao domínio individual e ao domínio social”. (SAUSSURE, 2012, p. 41). Assim, a melhor


forma de tratar a linguagem em seus estudos seria caracterizando e opondo entre si seus
elementos constituintes: a fala: individual, heterogênea e multifacetada, e a língua: a parte
social da linguagem, exterior ao indivíduo.

Estabelecida essa dialética, Saussure elege a língua como objeto de estudos da


Linguística, pois, segundo ele, a língua se evidencia como um sistema de signos, um sistema
de convenções, agregando, portanto, as características suficientes e necessárias para se
estabelecer como tal. Dessa afirmação decorre uma de suas principais proposições: a natureza
do signo linguístico, na qual o signo é arbitrário, e comporta a união de uma forma
significante e uma forma significada. Não havendo, no entanto, relação lógica entre uma
determinada palavra e o que ela representa. Como nos afirma o próprio linguista,

De um lado, o conceito nos aparece como a contraparte da imagem auditiva


no interior do signo, e, de outro, este mesmo signo, isto é, a relação que une
seus dois elementos, é também, e de igual modo, a contraparte dos outros
signos da língua. (...) A língua [é] um sistema em que os termos são
solidários e o valor de um resulta tão-somente da presença simultânea de
outros (SAUSSURE, 2012, p. 161).

Ferdinand de Saussure inaugura, dessa forma, a concepção estruturalista da


linguagem, concebendo-a como um conjunto de signos bem organizados, formando um todo
significativo, em que cada elemento só adquire valor a partir de sua relação com os seus
pares. Na visão de Mattosos Câmara (2013), o estruturalismo216

[...] é uma nova forma de encarar os fenômenos [linguísticos] porque faz com
que a significação dependa, completa e exclusivamente, das suas relações
íntimas e liberta esta concepção de outros postulados, falsos ou unilaterais, que
tinham sido explicitamente enunciados e através dos quais se devia deduzir a
existência de relações vagas e indistintas. (CAMARA JR, 2013, p. 134)

Nessa concepção, Saussure assinala a importância da arbitrariedade do signo


linguístico, não destacando em seus estudos o contexto exterior, a sua relação com o mundo,
propondo um modelo de significação que não enfatiza o sujeito, no qual a língua é concebida
como “um sistema que conhece somente sua ordem própria” (SAUSSURE, 2012, p. 55).

Na esteira do desenvolvimento da Linguística Moderna, Émile Benveniste, linguista


pós-saussuriano, considera Saussure o “homem dos fundamentos” (BENVENISTE, 2005) e,

216
Apesar de ser a teoria saussuriana a fundadora do estruturalismo, é importante salientar que Saussure, em seu
Curso, não utilizou a palavra estrutura e sim a palavra sistema. (NORMAND, 2009).

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nesse sentido, revisita os conceitos do mestre genebrino, detendo-se, sobretudo na questão da


significância, pois, segundo ele,

[...] antes de qualquer coisa a linguagem significa, tal é seu caráter primordial,
sua vocação original que transcende e explica todas as funções que ela assegura
no meio humano. [...] bem antes de comunicar a linguagem serve para viver
(BENVENISTE, 2006, p. 222).

Faz-se relevante destacar que Benveniste deteve-se em uma vertente de análise da


língua em uso, em ação, em sua dimensão enunciativa. Já que para ele “a enunciação é este
colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE,
2006, p. 82).

Essa concepção de análise linguística é responsável por estabelecer um pensamento


inovador sobre a linguagem, onde se permite uma investigação acerca da mesma de forma
bem particular - em funcionamento, visto que, para Benveniste (2006) é apenas em um
contexto de uso, enunciativo, que há possibilidade de apreender o entendimento do princípio
axiomático do “homem na língua”. É importante salientar que o pensamento de Benveniste
reintroduz no campo da linguística moderna o sujeito que, até então, estava marginalizado.
Assim, a linguagem para Benveniste torna-se o lugar onde o indivíduo se constitui como
sujeito, englobando, dessa forma, as dimensões do sujeito e do discurso.

Para Benveniste a língua significa em dois aspectos distintos, porém complementares,


visto que um não anula o outro. Um relacionado ao sistema abstrato de formas linguísticas
(semiótico), semelhante ao que propõe Saussure, e o outro relacionado ao seu uso em
determinado momento de enunciação (semântico).

Ela [a língua] é investida de uma DUPLA SIGNIFICÂNCIA. Trata-se


propriamente de um modelo sem analogia. A língua combina dois modos
distintos de significância, que denominamos modo SEMIÓTICO por um lado,
e modo SEMÂNTICO, por outro (BENVENISTE, 2006, p. 64, grifos do autor).

Verifica-se, por conseguinte, que no aspecto semiótico, é a relação entre signos no


interior de um sistema linguístico que se torna evidente,

[...] cada signo entra numa rede de relações e de oposições com os outros
signos que o definem, que o delimitam no interior da língua. Quem diz
“semiótico” diz “intralingüístico”. Cada signo tem de próprio o que o distingue
dos outros signos. Ser distintivo e ser significativo é a mesma coisa
(BENVENISTE, 2006, p. 227-228).

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Nas palavras de Merleau-Ponty “(...) os signos, um por um, nada significam” (apud
DOSSE, 2007, p. 74). É a sua relação dentro de um sistema que os tornam significativos.

No aspecto semântico, o que se evidencia é o estabelecimento da relação dos signos


com as condições de um enunciado que determina a significância em função de oposições
instituídas no interior do sistema linguístico e exterior a ele. É importante salientar que
Benveniste se preocupava com questões da significação, no entanto, contribuiu de forma
decisiva com a questão da subjetividade, reestabelecendo o lugar do sujeito na linguagem. A
forma de significância por ele proposta evidencia a língua como trabalho social, como
esclarece o próprio autor,

[...] vemos desta vez na língua sua função mediadora entre o homem e o
homem, entre o homem e o mundo, entre o espírito e as coisas, transitando a
informação, comunicando a experiência, impondo a adesão, suscitando a
resposta, implorando, constrangendo; em resumo, organizando toda a vida dos
homens (BENVENISTE, 2006, p. 229).

Entende-se, assim, que, em um determinado enunciado, existem signos linguísticos


que são assumidos pelo usuário da língua para exercer essa dupla função, significando em
nível semiótico e em nível semântico. Por conseguinte, verifica-se que algumas categorias
linguísticas não remetem a um conceito ou objeto propriamente dito, pois necessitam ser
assumidas no discurso para significar. Dessa forma, a enunciação, apesar de se estabelecer
por processos individuais, produz condições de análise sistêmica, com representações gerais
constantes.

Essa nova concepção de análise linguística destaca signos relacionados às categorias


de pessoa, espaço e tempo – os dêiticos, encontrados em todas as línguas naturais “cuja
função é de colocar o locutor em relação constante e necessária com sua
enunciação” (BENVENISTE, 2006, p. 84), evidenciando a linguagem como organismo
significante que significa por meio de suas propriedades universais.

Para Benveniste os elementos dêiticos só podem ser identificados pela instauração do


discurso, recebendo determinado sentido por sua relação com o que representam no momento
em que são enunciados.

Nesse sentido, busca-se com este trabalho a compreensão da representação da


subjetividade em epitáfios sob a perspectiva da teoria da enunciação de Émile Benveniste.
Para tanto, realizamos uma análise enunciativa da dêixis na construção da subjetividade em
epitáfios coletados de lápides no Cemitério Nossa Senhora da Piedade, no município de
Maceió/AL - Brasil.

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A ênfase na Teoria da Enunciação 217 de Émile Benveniste na representação da


subjetividade indicará como o locutor, assumindo os dêiticos no discurso, e instituindo um tu
como seu alocutário, vinculará “seu enunciado ao seu próprio dizer” (LAHUD, 1979, p. 114),
contribuindo, dessa forma, para uma vertente de análise da língua em uso, em ação, em sua
dimensão enunciativa. É nessa perspectiva que caminha o presente trabalho, com a proposta
de uma análise enunciativa sobre a dêixis na representação da subjetividade em epitáfios,
contribuindo, dessa forma, na ampliação das discussões acerca da teoria da enunciação de
Émile Benveniste, destacando, principalmente, o viés semântico, proporcionando uma
reflexão sobre a língua em uso e a sua função mediadora numa perspectiva dialógica,
possibilitando modos de se conceber a linguagem e suas implicações metodológicas no
ensino da língua portuguesa.

1. Benveniste e a subjetividade: a instauração da categoria de pessoa no discurso

Uma das peculiaridades da Teoria da Enunciação, fundada por Émile Benveniste,


que o diferencia da corrente estruturalista da qual é afiliado, consiste no estabelecimento da
noção de subjetividade e do aspecto semântico na linguagem. Sem abandonar as formas, tão
valiosas ao estruturalismo, Benveniste evidencia a relação dos signos com as condições de
um enunciado como determinantes para significação em função de oposições instituídas no
interior do sistema linguístico e exterior a ele, isso “porque a enunciação é o lugar de
instauração do sujeito e este é o ponto de referência das relações espaço-temporais, ela é o
lugar do ego, hic et nunc.” (FIORIN, 2010, p. 42). Como evidencia o próprio Benveniste
(2006), a cada enunciação se constitui um sujeito linguístico que, através da enunciação,
coloca em funcionamento a língua por meio de um ato individual de utilização
(BENVENISTE, 2006, p. 82).

Observa-se, portanto, que a teoria benvenistiana remete à instauração da


subjetividade no ato discursivo. Para tanto, entende-se que em um determinado enunciado
existem signos linguísticos que em consonância com os domínios orais e escritos da
comunicação são assumidos pelo usuário da língua que o marcam no ato de produção desse
enunciado.

Nessa perspectiva, os elementos dêiticos revelam-se como um conjunto de signos


que têm por função “colocar em relação o enunciado e a enunciação” (LAHUD, 1979, p.
114), realizando assim essa “inserção na língua das condições na fala” (Ibidem, p. 114).

217Flores (2013) evidencia que a expressão “Teoria da Enunciação” não consta da obra de Benveniste, e que a
mesma decorre de “uma dedução feita, a posteriori, pelos leitores dos artigos reunidos em PLG I e II do que
propriamente um propósito explícito de Benveniste”(FLORES, 2013, p. 28).

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Dessa forma, a utilização dos dêiticos torna possível ao sujeito que os assume, no momento
de uso, vincular “seu enunciado ao seu próprio dizer” (Ibidem, p. 114).

Faz-se necessário conceituar a dêixis sob a perspectiva benvenistiana, pois há


pensamentos divergentes quanto a sua definição e seus elementos constituintes.

Para Benveniste os dêiticos são formas vazias, sem qualquer referência material, que
se tornam plenos à medida que o locutor os assume no discurso. Dessa forma, eles se referem
à realidade do discurso e só podem ser identificados em termos de locução. A base
constitutiva dos dêiticos recai sobre os termos “eu/tu – aqui – agora”, desses se derivam
outras categorias que têm sempre o sujeito, a pessoa, como centro da enunciação. Segundo
Flores (2009, p. 77), a dêixis é considerada um “mecanismo que relaciona a indicação de um
objeto através de uma palavra à instância de discurso que a contém”, portanto,

[...] é ao mesmo tempo original e fundamental o fato de que essas formas


‘pronominais’ não remetam à ‘realidade’ nem a posições ‘objetivas’ no espaço
ou no tempo, mas à enunciação, cada vez única, que as contém, e reflitam
assim seu próprio emprego (BENVENISTE, 2005, p. 280).

Assim, os dêiticos revelam-se elementos que articulam um conjunto de referências


implicadas em um ato discursivo, considerando os níveis pessoais, espaciais e temporais,
assumidos por um sujeito e mobilizados em uma enunciação em função de dar significância a
algo, visto que “cada instância de emprego de um nome refere-se a uma noção constante e
‘objetiva’, apta a permanecer virtual ou a atualizar-se num objeto singular, e que permanece
sempre idêntica na representação que desperta” (BENVENISTE, 2005, p. 278).

Nesse contexto, a representação da subjetividade em um determinado enunciado


indica a forma que o locutor assume os dêiticos no discurso e institui um tu como seu
alocutário, instituindo-se como sujeito e instaurando um tempo e um espaço no ato do dizer,
bem como todas as avaliações, suposições e perspectivas que são de responsabilidade desse
sujeito.

2. Procedimentos metodológicos

Neste trabalho, de caráter descritivo, utilizamos o método de pesquisa qualitativa.


Compreende o corpus deste estudo epitáfios coletados no Cemitério Nossa Senhora da
Piedade, Maceió/AL - Brasil. Destaca-se a escolha do referido cemitério por ser um dos mais
tradicionais e antigos do estado de Alagoas, com mais de 160 anos.

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Inicialmente o que nos motivou a proceder a uma análise benvenistiana em epitáfios


foi o caráter singular desses enunciados, visto que os mesmos podem evocar em um leitor
desavisado a imagem de um locutor ausente. No entanto, os postulados da Teoria da
Enunciação de Émile Benveniste evidenciam que no ato enunciativo o eu insere a presença
de pessoa, instaurando, dessa forma, a própria linguagem, como evidencia o autor,

[...] aquele que fala se apropria desse eu, este eu que, no inventário das formas
da língua, não é senão um dado lexical semelhante a qualquer outro, mas que,
posto em ação no discurso, aí introduz a presença da pessoa sem a qual
nenhuma linguagem é possível. (BENVENISTE, 2006, p. 68-69).

É importante esclarecer que a noção de pessoa postulada por Benveniste se refere


apenas ao par eu/tu, em oposição a ele, a não-pessoa. O par eu/tu representa a subjetividade
no discurso, pois necessitam ser assumidos por um falante no ato discursivo para tornarem-se
plenos e ganharem referência, mas sempre de forma única, móvel e reversível, caracterizando
a intersubjetividade na linguagem, ou seja, a alternância das funções de locutor e alocutário.
O mesmo não pode ocorrer com a terceira pessoa - ele, a qual tem referência objetiva,
independente do ato enunciativo e não participa da relação intersubjetiva no discurso.

Nesta perspectiva, os pronomes não devem ser considerados como uma “classe
unitária” quando se referem à forma e função, pois, para Benveniste, a forma está vinculada à
sintaxe da língua, enquanto a função vincula-se ao aspecto funcional, característico da
instância do discurso.

Entendemos que uma pesquisa pautada na categoria dos dêiticos, fundamentada na


Teoria Enunciativa de Émile Benveniste, evidencia questões relevantes na representação da
subjetividade no processo discursivo do gênero textual epitáfio, pois os elementos dêiticos
referem-se à realidade do discurso e só podem ser identificados em termos de locução,
implicando, assim, as relações de subjetividade que envolve locutor e um alocutário por ele
instituído e implicado no seu dizer. Dessa forma, estudar a representação da subjetividade sob
o viés enunciativo se caracteriza numa atividade inquietante e provocadora para o ensino da
língua portuguesa, pois requer um trabalho constante com a variedade linguística em
consonância com os domínios orais e escritos da comunicação e interação verbal.

Considerando que “a linguagem exige e pressupõe o outro” (BENVENISTE, 2006, p.


93), o gênero textual epitáfio revela um ato enunciativo multifacetado, no qual ao instaurar o
eu no ato do dizer, têm-se a possibilidade de se verificar, em alguns casos, um discurso
referido, ou seja, “uma citação na qual eu seria imputável a um outro.” (BENVENISTE,
2005, p. 278). Nesse estudo, nos deteremos nas análises desses casos específicos.

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Segundo Benveniste (2015), eu é quem diz eu, no entanto, no gênero textual epitáfio,
especificamente, nem sempre é a imagem do eu (locutor) que se revela à primeira instância,
fazendo-se necessário que o tu (alocutário) determine, dentre as diferentes escolhas possíveis,
a representação do eu que, nesse caso, projeta no ato discursivo a imagem de um eu ausente,
apenas revelado na instância enunciativa em questão, pois, eu refere-se unicamente a uma
realidade discursiva (BENVENISTE, 2005).

3. A representação da subjetividade em epitáfios

O termo Epitáfio, do grego epitáfios, significa “sobre o túmulo”. Este termo se refere
às frases que são escritas, geralmente em placas de mármore ou de metal e colocadas sobre o
túmulo, ou mausoléus nos cemitérios, com o fim de homenagear seus mortos sepultados
naquele local. Estas placas são chamadas de lápides.

Nesse sentido, faremos uma análise dos dêiticos, tendo como base a teoria
benvenistiana, em epitáfios coletados de lápides218 no Cemitério Nossa Senhora da Piedade,
no município de Maceió/AL-Brasil, a fim de se observar como se dá a representação da
subjetividade nesse processo discursivo.

Figura 1

Fonte: acervo pessoal

“Pense em mim. Saudades eterna de seus filhos, esposo, irmãos, primos, noras demais
parentes e amigos”

218Os nomes e datas presentes nas lápides foram omitidos por questões éticas e pelo fato de o estudo centrar-se
exclusivamente em análises dos epitáfios evidenciados.

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O epitáfio presente na figura 1: Revela, por meio do verbo “pense” e do


pronome pessoal oblíquo “mim”, um desejo do locutor que institui o leitor como o tu (Eu
desejo, eu quero que você pense em mim). Numa primeira análise pode-se entender que o
sujeito da enunciação projeta nesse ato discursivo um eu ausente (o morto).

Eu é instaurado no ato de dizer, sendo tu e muitas de suas propriedades


codeterminadas pela informação contextual e situacional disponível aos interlocutores,
logo, percebe-se que a subjetividade presente nesse processo discursivo se refere
exclusivamente ao eu linguístico e ao tu (leitor) instituído pelo locutor e implicado no ato
enunciativo. O fato é reforçado pela instância enunciativa, a qual é utilizada com a
intenção de homenagear postumamente alguém. Além disso, têm-se o reforço da citação
que se segue “Saudades eterna de seus filhos, esposo, irmãos, primos, noras demais
parentes e amigos” evidenciando as possibilidades de locução por meio do termo “seus” o
qual se opõe e contradiz o termo “mim”.

Não se pode, nesse sentido, confundir o enunciado presente com um discurso


referido, no qual a referência enunciativa seria atribuída a outra pessoa. Cabe ressaltar que
“eu só pode ser identificado pela instância de discurso que o contém” (BENVENISTE,
2005, p. 279) e, apesar da presença do termo “mim” demonstrando explicitamente a
primeira pessoa construindo seu enunciado, outra marca pessoal evidencia o conflito do
ego aqui instaurado: “Saudades eterna de seus filhos, esposo, irmãos, primos, noras
demais parentes e amigos”. Recorremos, mais uma vez a Benveniste (2005) para
esclarecer que “essas formas ‘pronominais’ não remetem à realidade nem a posições
‘objetivas’ no espaço ou no tempo, mas à enunciação, cada vez única que as
contém” (Ibidem, p. 279).

Dessa forma, verifica-se que o locutor enuncia um desejo seu recorrendo,


aparentemente, a um discurso indireto, ou seja, a modificação do esquema linguístico para
a transmissão da enunciação do outro, o que Benveniste classifica como discurso referido.
No entanto, o pronome “seus” marca linguisticamente o locutor no momento da
enunciação, organizando o tempo e o lugar da enunciação e evidenciando o sujeito do
discurso.

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Figura 2

Fonte: acervo pessoal.

“Enfim cumpri minha missão na terra. Agora estou no paraíso, vou continuar a
minha vida porque breve nos encontraremos. No amor que não morre nunca, mas que
eterniza, fica a saudade eterna de seus familiares e amigos”,

No epitáfio representado na figura 2, o enunciado, aparentemente, constitui um


discurso indireto, no qual há a presença de um eu (locutor) e um tu, implícito e implicado
no ato discursivo (o leitor), ambos referendados pelos dêiticos em destaque, e um ele (a
não-pessoa), a qual sabemos que a instância enunciativa se refere (o morto).

Observa-se, também, que não se trata de um processo de debreagem enunciativa, na


qual se pressupõe um narrador (FIORIN, 2015). Mais uma vez, assim como na figura 1,
recorremos à instância enunciativa para identificarmos o “eu que diz eu” (Ibidem, 2015).
Observa-se um eu pressuposto e um eu projetado, uma tentativa de simbolizar, de
desenhar a imagem do morto no ato enunciativo (Eu digo que “Enfim eu cumpri minha
missão [aqui] na terra. Agora eu estou no paraíso, eu vou continuar a minha vida porque
breve nos encontraremos”), no entanto, sabemos, pela instância discursiva e pela presença
do pronome “seus” na frase que se segue (No amor que não morre nunca, mas que
eterniza, fica a saudade eterna de seus familiares e amigos) que o “eu que diz eu” não
representa o morto, mas, provavelmente algum parente dele. Observa-se, ainda que o
locutor se insere em um determinando espaço e tempo (Agora, [aqui] na terra) que não
pode ser o espaço e o tempo do morto.

Considerações finais

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A partir da análise dos dêiticos em epitáfios evidenciamos que a representação da


subjetividade em um determinado enunciado pressupõe a forma que o locutor, assumindo os
dêiticos no discurso, e instituindo um tu como seu alocutário e implicando-o no ato
enunciativo, constitui-se como falante e como sujeito do seu discurso. Evidenciamos ainda,
que o locutor mesmo utilizando-se de estratégias linguística que denotem um discurso
referido ou discurso indireto sempre deixa marcas no seu enunciado que evidenciam o sujeito
linguístico que se constitui na e pela linguagem.

A enunciação se refere à presença do homem na língua, logo, toda a complexidade e


efeitos advindos dessa presença devem ser considerados numa abordagem enunciativa. Dessa
forma, compreender as marcas do homem na língua significa conceber a instância
enunciativa sempre de maneira atualizada, pois “cada eu tem a sua referência própria e
corresponde cada vez a um ser único, proposto como tal” (BENVENISTE, 2005, p. 278.
Grifo do autor).

O recorte teórico utilizado nesse estudo contribuiu para uma vertente de análise da
língua em uso, em ação, em sua dimensão enunciativa, uma vez que a enunciação é sempre
única. Nesse sentido, entendemos que a Teoria benvenistiana possibilita modos de se
conceber a linguagem em sua dinamicidade e singularidade, tornando o ensino da língua
portuguesa atrativo e significativo, pois fornece subsídios para o trabalho com a língua como
nós a conhecemos: em funcionamento.

REFERÊNCIAS

ALVES-MAZZOTI, A. J.; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências naturais e


sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. 2 ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning,
2004.
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Escala, col. Mestres Pensadores, 2008.
BENVENISTE, É. Problemas de Linguística Geral I. 5. ed. São Paulo, Pontes, 2005.
______. Problemas de Linguística Geral II. 2. ed. São Paulo, Pontes, 2006.
CÂMARA, JR. J. M. História da Linguística.Trad. Mª do Amparo B. de Azevedo. 4. ed.
Petrópolis: Vozes, 1986.
DOSSE, François. História do Estruturalismo: o campo de signo – 1945/1966. São Paulo:
Edusc, 2007, v. 1
FIORN, J. L. Em busca do sentido – estudos discursivos. São Paulo: Editora Contexto,
2015
______. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo:
Ática, 2010.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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FLORES, V. L. et al. (orgs). Dicionário de Linguística da Enunciação. São Paulo:


Contexto, 2009.
______. Introdução à teoria enunciativa de Benveniste. São Paulo: Parábola, 2013.
KOCH, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e escrever. Estratégias de produção textual. São Paulo:
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LAHUD, M. A propósito da noção de dêixis. São Paulo: Ática, 1979.
______; TRAVAGLIA, L. C. A inter-Ação pela linguagem. 5.ed. São Paulo, Contexto,
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MOREIRA,H.; CALEFFE L.G. Metodologia da pesquisa para o professor pesquisador.
RJ:DP&A, 2006.
NORMAND, C. Saussure. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.
PLATÃO. Diálogos: Teeteto e Crátilo. Trad. C. A. Nunes. Belém: Editora da UFPA, 1988.
SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. 2º. ed. São Paulo: Cultrix, 2002.

Ensino de língua portuguesa na modalidade a distância: uma experiência

Profª Me. Beatriz Pacheco


Centro Universitário de Barra Mansa – UBM
beatriz.pacheco@ubm.br

Resumo: este trabalho relata a experiência de ensino de Leitura e Produção de Textos, em


cursos de Ead, modalidade semipresencial, em cursos de graduação no Centro Universitário
de Barra Mansa (RJ), para turmas iniciantes de diversos cursos. A educação a distância (EaD)
no Brasil vem crescendo consideravelmente, uma vez que Web 2.0 potencializou as formas
de publicação, compartilhamento e organização de informações e ampliou os espaços para
interação entre os participantes do processo. Partindo desse pressuposto, a experiência
relatada ancorou-se nos estudos da linguística textual, que se apresentaram eficazes uma vez
que entendem que as relações textuais são muito mais do que um somatório de itens, e
lançou-se mão de estratégias cognitivas e metacognitivas para fundamentar o material
específico criado e utilizado para o público-alvo em questão. Tal material, junto à
experiência, também é objeto deste artigo.

Palavras-chave: EAD, Ensino, Língua Portuguesa

Abstract: this reports an experience of teaching reading and texts production in Ead courses,
blended mode in undergraduate courses at the Barra Mansa University Centre (RJ), for
beginners in several courses. The distance education (DE) in Brazil has grown considerably

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contemporâneas

since Web 2.0 potentiated forms of publishing, sharing and organizing information and
expanded space for interaction between participants of the process. Based on this assumption,
the reported experience was anchored in the study of text linguistics, who presented effective
once they understand that the textual relations are much more than a sum of items, and it
employed cognitive and metacognitive strategies to support the specific material created and
used for the target audience in question. Such material, with the experience, it is also the
subject of this article.

Keywords: distance learning, Education, Portuguese Language

Introdução

Nada é mais desafiador para os educadores de hoje do que transformar o modelo de


instituições que temos. Afinal, as tecnologias de informação e comunicação mudaram a
maneira como vemos e pensamos o mundo. Há uma necessidade premente de se elaborar
material didático com atividades criativas, inovadoras e significativas. A organização de um
curso Ead e toda sua produção material deve proporcionar isso, além, logicamente, de uma
metodologia capaz de incorporar a cultura vigente. Se percebemos o mundo de diferentes
maneiras, também cabe ao professor oferecer conteúdos de diferentes maneiras. Afinal,
instrumentos não nos faltam.

A Ead mostra-se cada vez mais adequada aos novos tempos, uma vez que é capaz de
incorporar as transformações culturais por que o mundo passou nos últimos anos. Manuels
Castells, em “A Galáxia da Internet” (2003), afirma que a cultura dos produtores da internet
moldou o meio, os sistemas tecnológicos são socialmente produzidos e a produção social é
estruturada culturalmente. A cultura da internet é uma construção coletiva que transcende as
preferências individuais e influencia a prática dos seus produtores/usuários.

Desse modo, a Ead ao fazer uso da Internet também deve incorporar sua cultura,
principalmente no que diz respeito à construção de um aluno autônomo e criativo. No nosso
caso, dois construtos teóricos serviram de base à organização das aulas e à construção do
material didático: a linguística textual e os estudos em cognição e metacognição.

Na organização das aulas, tomamos por base a abordagem exposta nos trabalhos de
Fávero e Koch (2009), Koch e Travaglia (2009) e Val (1999) e a reflexão que tais autores
trazem sobre a construção da coerência textual, em primeiro lugar. Na elaboração dos
exercícios propostos, optamos por organizá-los a partir das reflexões de Kato (1995) e
Kleiman (1999), pois acreditamos numa concepção de aprendizagem associada aos avanços
das ciências cognitivas, uma vez que o aluno constrói ativamente a compreensão do mundo.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Assim, este artigo fará num primeiro momento a exposição das teorias citadas e logo
depois a exposição do material didático e uma análise.

Pressupostos teóricos

Primeiramente, era necessário definir com que conceito de língua e linguagem iríamos
trabalhar. Ao aceitar uma concepção em que o indivíduo realiza ações, atua sobre o
interlocutor, ou seja, os usuários da língua ou interlocutores interagem enquanto sujeitos que
ocupam ‘lugares sociais’, era necessário buscar um ramo dos estudos linguísticos que tivesse
o texto como unidade de foco analítico. Dessa forma, a linguística textual se apresentou
eficaz uma vez que entende que as relações textuais são muito mais do que um somatório de
itens ou sintagmas.

Fávero e Koch (2009), Koch e Travaglia (2009) apresentam o texto a partir de inúmeras
conceituações sob um enfoque muito amplo, uma vez que consideram texto como toda e
qualquer forma de comunicação, até uma abordagem bem restrita segundo a qual texto é uma
unidade linguística de sentido e de forma de extensão variável, desde que inserido em uma
situação comunicativa. Corrobora com os autores a perspectiva adotada por Val (1999) para
quem um texto deve possuir uma relação sociocomunicativa, semântica e formal, ou seja,
deve ser dotado de “textualidade”, um conjunto de características que fazem com que um
texto seja um texto.

Para esses autores, o escopo das perspectivas passa a compreender, além da noção de
texto, a noção de contexto pragmático, que consiste nas condições de produção, recepção e
interpretação que compõem o entorno do texto (FÁVERO e KOCH, 2009).

Beaugrande e Dressler (apud VAL 1999) apontam sete fatores de textualidade:


coerência, coesão, intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, informatividade e
intertextualidade.

Coerência e coesão se relacionam com o material conceitual. Esta promove a


conectividade textual no plano linguístico e aquela é responsável pelo sentido do texto. Esses
dois fatores têm em comum a característica de “promover a inter-relação semântica entre os
elementos do discurso” (VAL, p.07). Merece atenção especial o uso eficiente dos marcadores
linguísticos de coesão que devem corresponder a relações efetivas estabelecidas na estrutura
lógico-semântico-cognitiva do texto. Esses elementos, por sua vez, devem obedecer a
padrões prévios. Contudo, fundamental para a textualidade é a relação coerente entre as
ideias, explicitada ou não por meio de elemento coesivo.

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contemporâneas

Já os outros fatores se relacionam com fatores pragmáticos envolvidos na interação


entre os interlocutores. A intencionalidade e aceitabilidade têm a ver com o produtor e
recebedor do texto e o jogo comunicativo. A intencionalidade representa o empenho do
produtor de um texto em satisfazer os objetivos de uma situação comunicativa, sejam eles
pedir, ofender, convencer, avisar, etc: “... a intencionalidade diz respeito ao valor ilocutório
do discurso, elemento da maior importância no jogo de atuação comunicativa.” (VAL, p. 11).
A aceitabilidade representa a expectativa do recebedor de que o texto apresentado seja
coerente, coeso, útil e relevante e que seja capaz de levá-lo a acolher o objetivo do produtor.

Outro fator relevante é a situacionalidade, que é a adequação do texto à situação


comunicativa. Chama-se atenção aqui para a relevância do contexto, para adequação do texto
à situação comunicativa. Para Val (1999), “o contexto pode, realmente, definir o sentido do
discurso e, normalmente, orienta tanto a produção quanto a recepção”.

A intertextualidade também é fator importante, uma vez que o conhecimento de um


texto pode depender do conhecimento de outros textos: “Inúmeros textos só fazem sentido
quando entendidos em relação a outros textos, que funcionam como seu contexto.” (VAL, p.
15) Koch e Travaglia (2009) tipificam esse fator. A princípio, apontam que a intertextualidade
pode ser de forma e conteúdo e enfatizam a necessidade de conhecer os tipos textuais: “O
conhecimento dos tipos textuais permitirá ao leitor ‘enquadrar’ o texto em determinado
esquema, o que poderá dar pistas importantes para sua interpretação.” (KOCH e
TRAVAGLIA, p.77) Quanto ao conteúdo, a reflexão é de que a intertextualidade é uma
constante, os textos dialogam uns com os outros e esse fator pode aparecer de maneira
explicita ou implícita.

A informatividade designa em que medida a informação contida no texto é esperada ou


não-esperada, é previsível ou imprevisível. Val (1999) acrescenta que um texto com bom
índice de informatividade precisa oferecer dados suficientes para ser compreendido com o
sentido que o produtor quer. Assim, é necessário saber com que conhecimentos ele pode
contar.

A compreensão de cada um desses elementos na constituição de um texto nos pareceu


oferecer aos alunos algo mais novo que a velha prática do ensino gramatical, uma vez que os
verdadeiros objetos linguísticos são os textos e não sentenças isoladas e as gramáticas têm
pouco a dizer sobre esses objetos. É claro que não podemos dizer mais que o ensino de língua
portuguesa se resume ao ensino da gramática, mas é público que o ensino da gramática
normativa ainda ocupa um lugar de destaque maior do que qualquer ensino de leitura e
redação nos ensinos fundamental e médio.

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contemporâneas

Além da Linguística textual, os estudos de aspectos cognitivos da leitura, introduzidos


no Brasil por Mary Kato e Angela Kleiman, também fundamentaram o material. Desenvolver
estratégias cognitivas e metacognitivas.

No Brasil, Mary Kato (1995) elenca dois processos básicos de processamento de


informação: processo top-down (descendente) e processo bottom-up (ascendente). O primeiro
diz respeito à abordagem não-linear do texto, que faz uso intensivo e dedutivo de
informações não-visuais; direciona-se do macro a microestrutura e da função para a forma. O
segundo diz respeito à abordagem linear e ao uso indutivo das informações visuais e
linguísticas. Sua abordagem é composicional, através do processo análise-síntese do
significado das partes. As duas abordagens são importantes no ato da leitura. O leitor maduro
é o que usa os dois processos de forma complementar. A escolha de um ou outro é fruto de
elaboração de estratégias metacognitivas – ou seja, o leitor tem um controle ativo do seu
comportamento. A partir dessa visão, concebe-se a leitura como um ato de reconstrução dos
processos de sua produção. A competência de produzir e compreender textos se caracteriza
como sendo criativa e preditiva.

Kleiman (1999) enfatiza que o leitor proficiente dispõe de vários procedimentos de


leitura para chegar aos seus objetivos de compreensão. Sua capacidade de leitura é flexível.
Leitores deste tipo leem com objetivos em mente, ou seja, sabem para quê estão lendo; sua
leitura é seletiva e eles compreendem o que estão lendo, lançam mão de variados recursos de
captar o que de uma maneira eles não conseguem. Ou seja, sua compreensão é
automonitorada e esse tipo de compreensão só se desenvolve quando se estabelecem
objetivos para a leitura. Os seus objetivos de leitura deste ou daquele trabalho baseiam-se
muito no que ele conhece sobre o seu conteúdo, seu autor, a época e o gênero da obra seu
conhecimento prévio:

“O conhecimento linguístico, o conhecimento textual, o conhecimento de mundo


devem ser ativados durante a leitura para poder chegar ao momento da compreensão,
momento esse que passa desapercebido, em que as partes discretas se juntam para fazer um
significado.” (KLEIMAN, 1999)

A capacidade de estabelecer objetivos na leitura é considerada uma estratégia


metacognitiva. Somos aptos para “pensar sobre o pensamento”, o que chamamos de
metacognição, pois é a “cognição acerca da cognição”, (Flavell, Miller & Miller, 1999).
Assim, estabelecer sempre objetivos para a leitura, seja em pequenos exercícios de
interpretação, seja na leitura de um livro é um recurso para fazer com que o aluno aprenda a
ler com proficiência e possa ele mesmo estabelecer seus objetivos.

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contemporâneas

Os objetivos são importantes também porque ativam outro aspecto da atividade do


leitor que é a formulação de hipóteses: “Vários autores consideram que a leitura é, em grande
medida, uma espécie de jogo de adivinhação, pois o leitor ativo, realmente engajado no
processo, elabora hipóteses e as testa, à medida que vai lendo o texto.” (KLEIMAN, 1999, p.
36)

Apresentação do material

O portal Blackboard é uma plataforma específica para o desenvolvimento de processo


ensino-aprendizagem que se propõe a reunir um conjunto de ferramentas adequado para uma
aprendizagem mais eficaz.

Foi implementado na instituição no primeiro semestre de 2015 e oferece diferentes


possibilidades de interação e colaboração entre alunos e professores, além da fácil navegação
e da possibilidade de ser acessado até por dispositivos móveis. O aluno tem acesso aos cursos
nos quais está matriculado, fornecendo uma ideia geral das notícias e atividades de todas as
disciplinas, presenciais ou semipresenciais.

Após clicar em Disciplinas, é exibida a página contendo todas as disciplinas


disponíveis, conforme a FIGURA abaixo:


FIG 1

O portal Blackboard é uma ferramenta de ensino a distância que disponibiliza um leque de


funcionalidades. É composto por quatro áreas funcionais principais: gestão de informação,
informações pessoais, elementos de cursos e documentos, recursos acadêmicos através da web e
integração de conteúdos prontos; comunicação/ colaboração, ferramentas de colaboração assíncronas
e síncronas incluindo o e-mail, fóruns de discussão, vídeos, blogs, diário; avaliações, testes e
questionários com feedback automático, notas on-line e registro da participação e progressão nos
conteúdos, entrega de trabalhos; e, ainda, controle, utilitários de gestão para os docentes,
armazenamento de informação e relatórios.

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As ferramentas disponíveis são: avisos, que exibem anúncios para as disciplinas nas
quais o aluno está matriculado e comunicam informações confidenciais e com prazo;
calendário, que expõe eventos que os instrutores adicionaram; tarefas, que controlam o
trabalho com tarefas que seus professores adicionaram e outras pessoais adicionadas por ele
mesmo; minhas notas, que exibem o status de itens avaliáveis, como testes, exercícios,
entradas de blog e diário, e publicações do grupo de discussão; enviar e-mail, que conecta
todos os alunos por uma lista de disciplinas; e ainda outros recursos que, no momento, não
são foco de análise.

Para um trabalho colaborativo, o portal oferece o blackboard collaborate que


compartilha áudio, vídeos, textos, faz webconferências em qualquer lugar, pois pode ser
acessado inclusive por dispositivo móvel.

Em geral, as disciplinas disponibilizam suas aulas com alguma proposta de debate ou


reflexão com os recursos como testes (exercícios pré-programados, que podem valer nota ou
não, com respostas de múltipla escolha, falso ou verdadeiro e outras já selecionadas pelo
professor), blog em que os alunos participam com colaborações, fóruns em que a participação
se dá por debates sobre uma situação específica relacionada ao conteúdo ou trabalhos
(individuais ou em grupo) que contam também com uma ferramenta chamada safeAssign que
detecta plágio.

A disciplina de “Leitura e Produção de Texto”, adotada pela matriz curricular de vários


cursos do UBM — Centro Universitário de Barra Mansa —, é uma das oito oferecidas aos
cursos de graduação e tem por objetivo o desenvolvimento das seguintes habilidades:
desenvolver estratégias de leitura: índices de previsibilidade, explicitação do conteúdo
implícito, levantamento de hipóteses, relações de causa e consequência, de temporalidade e
espacialidade, transferência, síntese e generalização; comparar textos, buscando semelhanças
e diferenças quanto às ideias e à forma; desenvolver habilidades de leitura de textos verbais e
não verbais; comparar textos, buscando semelhanças e diferenças quanto ao gênero e às
ideias; produzir textos de diferentes gêneros textuais; utilizar diferentes estratégias de
argumentação; usar a língua padrão escrita; ampliar o vocabulário.

A disciplina é dividida em 10 aulas oferecidas aos alunos semanalmente e, ainda, dois


momentos de revisão de conteúdo. Cada aula busca uma abordagem relacionada às
habilidades acima descritas. Como é uma disciplina semipresencial, os encontros são
divididos em “presenciais” e “fóruns online”, alternadamente. Em cada aula, o material
disponibilizado apresenta o tema com exemplos. A partir daí, os alunos são solicitados a fazer
exercícios diferenciados no portal e a participar do fórum relativo àquela aula. As aulas são
distribuídas nas seguintes temáticas: coerência; unidade e progressão; elementos de coesão;
ambiguidade; situacionalidade; intertextualidade; aceitabilidade e intencionalidade e
informatividade; inferência; argumentação e estrutura dissertativa; fala e escrita, diferentes

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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modalidades. Além da apresentação do material no portal, o conteúdo das aulas também é


disponibilizado sob o título de “conteúdo online”, num sítio fora do portal em que os alunos
têm acesso às aulas com áudio e exercícios pré-programados e podem facilmente acessar com
seus smartphones.

As potencialidades de interação são revistas a cada aula, na tentativa de buscar


diferentes formas de abordagem. Ou seja, se numa aula, disponibilizamos exercícios pré-
programados, em outra procuramos mais interação e intensificamos o fórum que é
disponibilizado semana sim, semana não. Apenas busca-se manter uma uniformidade na
distribuição e apresentação do material para ajudar o aluno a encontrar o que precisa.

Vejamos um exemplo:

FIG 2

Este é o formato de todas as aulas. Num primeiro momento, o material de leitura é


disponibilizado em arquivos em pdf e depois se apresenta cada atividade que o aluno deve
fazer. O conteúdo também é disponibilizado em vídeos e outros links fora do portal para
melhor compreensão do conteúdo apresentado. Entre as atividades estão exercícios com
correção automática, folha simples de exercícios para serem discutidas nos encontros
presenciais, propostas de acessos em fóruns ou blogs. Esses dois últimos permitem uma ação
mais individualizada do processo de construção do conhecimento, principalmente no que se
refere à escrita, uma vez que é dessa forma que acontece a interação.

A organização do material a partir dos pressupostos teóricos aqui elencados permitiu-


nos abrir uma reflexão sobre o processo de ler e escrever, depreender e construir sentidos e

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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colocar o aluno no centro de sua própria construção do conhecimento. Conhecer os elementos


responsáveis pela coerência de um texto é se apropriar de uma reflexão sobre o texto como
um todo, o texto como produtor de sentidos.

Todas as aulas apresentam ao aluno um olhar sobre o processo de percepção do texto,


de como interpretar, a partir de que marcas textuais, buscando, assim, o desenvolvimento de
estratégias metacognitivas. Há inclusive uma aula sobre inferência que acaba por resumir
todas as outras ao revelar o processo. Veja parte desta aula abaixo:


FIG 3

As duas últimas aulas, argumentação e modalidades diferenciadas – fala e escrita, têm


por objetivo a reflexão da escrita acadêmica, uma vez que estamos já inseridos nesse
ambiente.

Considerações finais

A organização do material a partir dos pressupostos teóricos da Linguística Textual


insere o texto como objeto de observação e prioriza, nas atividades de leitura e produção de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

texto, a reflexão sobre o funcionamento da língua, sobre os recursos que a língua oferece para
a construção de sentido.

A inserção dos estudos em cognição traz como efeito o entendimento de que a reflexão
teórica e aplicada sobre o processo de leitura precisa levar em conta os conhecimentos
prévios trazidos pelos alunos e as atividades propostas devem propor objetivos para a prática
didática da leitura, a fim de levar os alunos a refletir sobre os significados que estão
construindo.

A potencialidade da EaD em interagir pessoas de diferentes contextos em um ambiente


propício ao trabalho colaborativo, assim como o quanto os recursos de linguagem oferecidos
pela internet alteram nossa maneira de comunicar e interagir culturalmente. Num ambiente
colaborativo, valoriza-se a história, as ideias, o conhecimento, enfim, a identidade de cada
sujeito envolvido.

Tal caracterização só intensifica a oferta de cursos a distância e a reflexão que fazemos


aqui é a de que há ainda muito que se construir. Mas já avançamos. Se por um lado,
conseguimos avançar já na organização e na linguagem, por outro, a interação ainda é pouca,
uma vez que nem todos têm acesso a uma internet de banda larga, o que inviabiliza trabalhos
colaborativos, e a ‘cultura escolar’ ainda desprestigia o ensino a distância.

REFERÊNCIAS:

CASTELLS, Manuel. A galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a


sociedade. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 244 p

COSTA VAL, Maria da Graça Redação e Textualidade. 2 ed. São Paulo. Ed.Martins Fontes,
1999.

FAVERO, L. L.; KOCH, I. G. V. Linguística Textual: uma introdução. 3°ed. São Paulo;
Cortez, 2009.

FLAVEL, J.H, MILLER, P.H.; MILLER, S.A; trad. Claudia Dornelles. Desenvolvimento
Cognitivo. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul Ltda, 1999.

KATO, Mary. O Aprendizado da Leitura. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

KLEIMAN, Ângela. Texto e Leitor: Aspectos Cognitivos da Leitura. Campinas, São Paulo:
Pontes, 1999.

KOCH, I. G. V.; TRAVAGLIA, L. C. A Coerência Textual. 17° ed. São Paulo; Contexto,
2009.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Da leitura para escrita – a engenharia didática do trabalho com o texto


dissertativo-argumentativo em sala de aula

Cláudia Mara de Souza


Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
- CEFET-MG
claudiaitab@gmail.com

Resumo: os gêneros textuais, como ações de linguagem vivas e, constantemente, mutáveis


realizadas por sujeitos sociais, constituem-se de número e aspecto ilimitado mediante as
infindáveis situações, funções e facetas do agir humano. Atrelados aos objetivos da
linguística em refletir sobre o uso da linguagem como ferramenta para o desenvolvimento
humano (DOLZ & SCHNEUWLY, 2004), propomo-nos com esse trabalho a apresentar
reflexões acerca da influência da leitura de textos motivadores sobre a produção de texto
dissertativo-argumentativo. Para isso, partimos de uma metodologia de pesquisa ação com
alunos do terceiro ano do ensino médio de uma escola técnica federal. A pergunta norteadora
é em que medida a leitura de textos motivadores influencia a produção do texto dissertativo-
argumentativo? Ou seja, que uso os alunos fazem desses textos em suas produções? O
corpus é constituído por leituras preparatórias para produção de texto e um texto, em primeira
versão, produzido por uma turma do terceiro ano. As análises são feitas à luz de teorias que
compreendem a linguagem como interação, a leitura como processo social e cognitivo de
produção de sentido, o texto como evento comunicativo e a mediação como mobilização de
capacidades para um nível ainda não alcançado antes. O referencial teórico é estabelecido a
partir de autores como Bakhtin (1997), Beaugrande (1997), Dell’ Isola (2007), Dolz (2016),
Marcuschi (2005, 2007, 2008), Vygotsky (1984, 2007), entre outros. Nesta proposta, o
resultado da atividade é observado na medida e nas formas em que os textos motivadores são
retomados, ou não, na produção dos alunos por meio de cópia, paráfrase, alusão etc. Com o
trabalho, esperamos contribuir para reflexão e prática docente tornando mais clara a relação
ensino/aprendizagem a partir de projetos de engenharia didática.

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Palavras-chave: Leitura, escrita, texto dissertativo-argumentativo, engenharia didática


Introdução

Este trabalho tem como um dos objetivos refletir sobre a engenharia didática em sala
de aula na produção de textos por alunos de uma escola técnica federal. Como a prática de
produção de texto dissertativo-argumentativo é muito comum aos alunos do terceiro ano,
tendo em vista o Exame Nacional do Ensino Médio, que os permite ingressar no ensino
superior, identificamos uma obrigação e uma necessidade de que estes alunos demonstrem
competências e habilidades bem desenvolvidas nesta fase de escolarização. É notória a
influência do exame e do modelo de redação por ele proposto, o tipo textual é o dissertativo-
argumentativo e o gênero, por sua consolidação e uso social, pode ser chamado de redação do
Enem. Interessa-nos observar, nos textos produzidos pelos alunos, as marcas presentes de
suas leituras dos textos motivadores apresentados na proposta de redação. Entendemos que,
para isso, o estudante pode lançar mão de citação, paráfrase, alusão, cópia entre as categorias
de retomada dos textos fontes. Para organização deste trabalho, propomos três partes: na
primeira desenvolvemos os principais conceitos sobre engenharia didática, gêneros textuais,
redação do Enem e leitura e intertextualidade. Na segunda parte, apresentamos uma análise
de textos produzidos por alunos de terceiro ano de uma escola técnica federal e evidenciando
os artifícios usados por eles na retomada de textos lidos para a redação; na terceira parte,
apresentamos as conclusões acerca do trabalho realizado com vistas à contribuição para um
melhor manejo didático em sala de aula.

1. Engenharia didática, texto e gênero textual

Alguns conceitos são importantes no desenvolvimento deste trabalho, especialmente


os que tangem à prática da sala de aula e da produção do texto que constituem a própria
engenharia didática envolvida.

Dolz (2016) considera a engenharia didática como um campo particular da engenharia


das línguas. De acordo com o autor, a engenharia didática objetiva criar tecnicamente as
atividades e ações dos alunos para aprender, organizar as ações dos professores e preparar
ferramentas capazes de resolver os problemas de ensino da língua. “Ela organiza, transforma
e adapta os saberes sobre a língua e as práticas discursivas para o ensino (p.240).” Além
disso, é possível dizer que cabe à engenharia a responsabilidade de elaboração de projetos
escolares, de dispositivos, de instrumentos, atividades, materiais escolares e novas

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

tecnologias da comunicação. Ou seja, ela deve fomentar e facilitar as ações para o sucesso da
aprendizagem, como orientar as intervenções dos professores.

Ao conceber as formas de atuação de alunos e professores numa eficaz ação didática e


metodológica é possível pensar que se bem desenvolvida, ela favorece o sucesso da
aprendizagem. Em termos práticos, num trabalho com a produção de texto, a abordagem e o
modelo empregado interferem no processo de realização da atividade como é o caso do
ensino e produção textual para os alunos no ensino médio. Uma didática da língua
portuguesa, por exemplo, precisa investigar, apontar os problemas de ensino que aparecem no
cotidiano escolar.

O engenheiro deve conhecer bem o seu trabalho e o objeto sobre o qual ele vai atuar
para poder agir conforme a necessidade e também refletir, identificando as prováveis causas
de insucesso ou falhas no desenvolvimento com vistas à adequada intervenção. Neste
processo, Dolz aponta quatro fases da engenharia didática:

A primeira fase consiste na análise prévia do trabalho de concepção. Do ponto


de vista linguístico e epistemológico, os objetos de ensino devem ser
analisados. Assim, o ensino de um gênero textual, de uma estrutura gramatical
ou do vocabulário que se quer abordar em que ser conhecido pelo engenheiro.
(...) A segunda fase consiste em conceber um protótipo de dispositivo didático
analisando previamente as tarefas que ele pode realizar. Por exemplo, a
concepção do protótipo inicial das sequências didáticas exigiu uma análise
prévia dos obstáculos dos alunos e um modelo didático do gênero abordado. O
protótipo proposto consiste em uma produção inicial para avaliar as
capacidades dos alunos, uma série de oficinas e atividades centradas nos
obstáculos a superar pelos alunos
e uma produção final para avaliar os efeitos do ensino. A análise as tarefas
permite antecipar as estratégias que o aluno pode seguir para resolver os
problemas propostos (...). A terceira fase é a da experimentação. Ela pode
consistir em uma simples implementação pelo engenheiro didático ou um
estudo de caso para ajustar as atividades e as inovações propostas à realidade
do terreno, bem como ela pode ser objeto de uma pesquisa maior com uma
população de professores mais ampla em vista de sua possível generalização.
(...) A quarta e última fase consiste em analisar posteriormente os resultados
observados, confrontando as possibilidades antecipadas pela análise prévia com
as constatações ocorridas. Isto é a etapa do balanço das vantagens e limites do
dispositivo criado. (DOLZ, 2016, p. 243-244)

Estas fases apontadas por Dolz permitem ao professor, na sala de aula, conhecer,
aplicar e intervir sobre o objeto de ensino aprendizagem, permitm ainda avaliar os resultados
obtidos para posterior intervenção. Vamos apresentar estas fases numa proposta de produção
de texto desenvolvida com alunos no terceiro ano. As três primeiras fases forma

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

desenvolvidas para este trabalho, e o balanço do que foi identificado será objeto da discussão
feita nas seções posteriores.

Por se tratar de ensino de gênero textual, esse conceito também é necessário. Quando
pensamos em texto, pensamos em interação em movimento de quem escreve e de quem lê,
que se apropriam desse objeto e fazem uso dele em situações legítimas e socialmente
estabelecidas que seja na escola ou fora dela. Compreendemos o texto na perspectiva
apresentada e discutida por Beaugrande (1997) “um evento comunicativo no qual convergem
ações sociais, cognitivas e linguísticas”.

A noção bakhtiniana de gênero textual ou gênero discursivo foi também amplamente


defendida por vários autores (Marcuschi, 2007; Bezerra, 2007) nos últimos anos.
Sintetizamos esses conceitos na visão proposta por Bakhtin cujo conceito de gênero
discursivo refere-se a todas as produções de linguagem (enunciados) – faladas ou escritas –
que se realizam em condições e com finalidades específicas nas diferentes situações de
interação social. Ocorrem de acordo com determinados aspectos sociocomunicativos e
apresentam certas formas típicas (estrutura composicional e estilo) que as caracterizam de
forma que podem ser reconhecidas e nomeadas pelos participantes da situação de interação.
Uma conversa, uma piada, um provérbio, uma entrevista, uma palestra, uma explicação, uma
apresentação oral de um trabalho, um interrogatório, um cordel, são alguns exemplos de
gêneros discursivos orais. Artigo, carta, requerimento, procuração, notícia, reportagem,
propaganda, bilhete, romance, conto, poema, charge, relatório, receita, lista de compra etc.
são exemplos de gêneros escritos.

A redação do Enem, texto dissertativo argumentativo, aproxima-se especialmente de


gêneros do domínio discursivo jornalístico: artigo de opinião e editorial que são abordados a
seguir.

2.1. O texto dissertativo-argumentativo modelo: artigo e editorial

A redação do Enem, vem normalmente designada pelo tipo discursivo e/ou textual: o
tipo dissertativo argumentativo. Apesar de ser denominada pelo tipo a redação já se
cristalizou, ao longo dos anos como um gênero que se aproxima especialmente de gêneros do
domínio discursivo jornalístico: artigo de opinião e editorial. Tais gêneros apresentam
características que são pertinentes para a compreensão do gênero proposto pelo Enem. Desta
forma tratamos nesta subseção da caracterização desses gêneros textuais.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Dell‘Isola (2007) afirma que o artigo de opinião é constituído por pessoas que buscam
exprimir um ou mais pontos de vista em relação a um tema controverso. Segundo ela, trata-se
de um evento comunicativo real veiculado quase sempre em esferas jornalísticas e se utiliza
da argumentação para “informar sobre um assunto e de comentar sobre o tema informado, a
partir de determinada fundamentação.” (DELL‘ISOLA, 2007, p. 54). Köche et al. (2010, p.
33-34) e Bräkling (2002, p. 226-227) apontam para o fato de que o artigo utiliza da
argumentação para analisar, avaliar e responder a uma questão controversa, buscando
influenciar o outro e mudando seus valores por meio da argumentação a favor de uma
posição e de refutação de possíveis opiniões divergentes. Segundo Rodrigues (2005, p. 172) a
valorização social e profissional do articulista confere credibilidade a sua fala, elevando-o à
posição de “articulista” de um ponto de vista autorizado, de formador de opinião. A sua
opinião é de relevância social tanto para o jornal como para o público leitor. “Ele é um autor
da elite, pois é um leitor selecionado e autorizado pela empresa jornalística para assumir a
palavra; está, portanto, em uma relação de superioridade, em uma situação de interação
vertical.” Por outro lado, embora seja uma autoridade, faz uso de outras vozes para validar
seu posicionamento.

É possível dizer que o artigo de opinião aborda um tema, normalmente, de ordem


social, econômica, política ou cultural. Esses temas são relevantes para os leitores e
pertencem à ordem do argumentar, visto que o articulista posiciona-se frente a um assunto
controverso, podendo defendê-lo ou não. Segundo Köche et al. (2010, p.33-34), o processo
interativo se mantém pela elaboração de um ponto de vista. Nesse viés, Rodrigues (2005, p.
174) nesse gênero, o que mais interessa é a sua análise e a posição do autor frente àquilo que
expõe, em virtude da apresentação dos acontecimentos em si. Para ela, o artigo mostra, com a
textualização do acontecimento motivador, “a sua dupla orientação: constitui como uma
reação-resposta a esses enunciados da atualidade (o já-dito) e busca a reação-resposta ativa
do seu interlocutor” (RODRIGUES, 2005, p. 173).

Conforme Kaufman e Rodriguez (1995, p. 27-28) o artigo constitui-se de


comentários, avaliações, expectativas a respeito de um tema da atualidade que, por sua
transcendência, no plano nacional ou internacional, merece ser objeto de debate. As autoras
ainda afirmam que, embora os artigos possam se organizar em distintas superestruturas,
normalmente, se estruturam em uma linha argumentativa. Reiterando essa afirmação, Köche
et al. afirmam que a tipologia textual constituinte desse gênero é a dissertativa. Isto é, cada
parágrafo, normalmente, se constitui de um argumento que sustenta a conclusão geral.

Evidencia-se a dialogicidade no processo de produção: o autor coloca-se no


lugar do leitor e antevê suas posições para poder refutá-las. Ou seja, ele

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contemporâneas

justifica suas afirmações, tendo em vista possíveis questões ou conclusões


contrárias, suscitada pelo destinatário (KÖCHE et al., 2010, p. 44).

Ao produzir o artigo, o seu autor pode fazer uso de uma linguagem tanto cuidada,
quanto comum. A sua escolha será determinada pelo público a que se destina o texto.

O editorial pode ser concebido na mesma perspectiva do artigo de opinião. É um


gênero de tipologia dissertativo-argumentativa que, segundo Dell‘Isola (2007, p. 50), se
caracteriza por ser opinativo; no entanto, apenas serve de mediador para revelar o ponto de
vista da instituição, da empresa, do veículo de comunicação; inclusive é publicado sem
assinatura, com pouquíssimas exceções. Como diz Melo (1985, p. 79), diferentemente dos
outros autores de gêneros opinativos, que assumem a autoria e responsabilidade do texto
escrito por eles, no editorial, a responsabilidade é da instituição que o autor representa.

Esse gênero, normalmente, aborda temas polêmicos presentes na mesma edição ou em


números anteriores, a pauta do momento, os assuntos da semana; assuntos de maior
repercussão do momento. Ocupa um espaço já especificado pela revista ou jornal, quase
sempre nas primeiras folhas. O editorialista procura se adequar aos valores assumidos pelo
órgão a que representa. Conforme Russo (2004, p. 22-23), os principais jornais do país
produzem textos desse gênero. Quase sempre abordam política, economia e temas
internacionais.

Quanto ao seu propósito comunicativo, Köche et al. (2010, p. 60) afirmam que o autor
desse gênero defende um posicionamento diante dos fatos do dia a dia, num espaço repleto de
contradições, e ainda promove conciliação entre os interesses de diferentes leitores. Isso
implica dizer que, além de atender aos interesses do jornal ou revista a quem representa, ele
precisa avaliar o resultado de seu trabalho nos seus leitores. Nesse sentido, o editorial,
necessariamente, precisa posicionar-se, pois sua função primeira é aconselhar e dirigir
opiniões dos leitores.

Dell‘Isola (2007, p. 5) afirma que, além de opinar, o editorial também analisa,


clarifica, expõe, interpreta e traz à luz pontos obscuros, entre outras funções, assim como o
artigo de opinião. De acordo com a autora, de todas as estruturas dos gêneros do discurso
jornalístico, esta talvez seja a mais rígida e ao mesmo tempo simples. Seu título busca seduzir
o leitor. Na introdução, inicia com uma frase de efeito para fazer com que o leitor se sinta
motivado a ler o assunto abordado; interpreta os fatos e os sustenta por meio de argumentos,
conduzindo o leitor à sua opinião. A revista ou o jornal, por meio de argumentos do
editorialista, tenta legitimar sua opinião, buscando a adesão do leitor à sua opinião,
pertencendo assim, a ordem do argumentar.

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Para Dell‘Isola (2007, p. 50), e de modo semelhante também para Köche (2010) e
Melo (1985), os editoriais variam. Essa variação pode ser observada em relação à morfologia:
alguns se inserem na página opinativa, formatação especial de um jornal; uns apresentam
comentários atuais; outros, comentários críticos; há ainda aqueles que advertem o leitor de
algo que é importante ser lembrado. Tudo isso em um espaço predeterminado, de pouca
extensão, porque os espaços são pagos e são caros. Quanto ao conteúdo, eles podem ser 1.
Informativo – quando procuram esclarecer fatos, ideias ou situações aos leitores; 2.
Normativo – quando procuram convencer o leitor a fazer o que querem; 3. Ilustrativo-
quando buscam trazer maiores conhecimentos ao leitor, buscam ensinar algo. Seu estilo pode
adequar-se às situações, buscando alcançar racionalmente o leitor ou buscando sensibilizá-lo.
O editorial pode variar, ainda, de acordo com a natureza. Pode ser: a. promocional (quando
acompanhar regularmente todos os acontecimentos e fatos atuais.) b. circunstancial –
eventualmente para estabilizar e mostrar apreço sobre prováveis sucessos, circunstâncias ou
posicionamento.) c. polêmico (eminentemente doutrinário) ele não se limita a opinar,
clarificar fatos obscuros, analisar, interpretar, entre outros. A impessoalidade é uma
característica peculiar desse gênero em sua transição jornalística que deixou de ser uma
instituição familiar para ser organização complexa.

A partir do conhecimento da organização dos textos dissertativos argumentativos


artigo e editorial, o que podemos esperar e encontrar na redação do Enem? Esse gênero será
tratado a seguir.

2.1.1. O Enem e o texto na prova de redação – um modelo

O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) foi institucionalizado em 1998, desde


então os estudantes brasileiros são submetidos às provas de diversas áreas de conhecimento
com vistas ao ingresso no ensino superior. O exame se constitui de uma redação e de quatro
provas objetivas, que abrangem as várias áreas de conhecimento que integram o currículo do
Ensino Médio. Dentre estas provas, destaca-se a redação cujo valor de mil pontos torna-se
imprescindível a um resultado satisfatório para o sucesso do estudante no desempenho geral.
A redação é assim descrita no manual de capacitação de avaliadores:

A prova de redação visa à avaliação dos conhecimentos na área de Linguagens,


Códigos e suas Tecnologias, ao fim do ensino médio. A redação deve organizar-
se na forma de texto em prosa do tipo dissertativo-argumentativo, acerca de um
tema de ordem social, científica, cultural ou política. A operacionalização do
ENEM, no que tange à área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, mais

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precisamente à prova de redação, deve manter o caráter de interatividade e de


diálogo constante e privilegiar a construção de significados (Manual de
Capacitação para Avaliação das Redações do ENEM 2015, p.3).

A concepção de linguagem declarada nos documentos oficiais do Enem a traduzem


como interação e produção de sentido, ou seja, pode ser vista como a capacidade humana de
articular significados coletivos e compartilhá-los, em sistemas arbitrários de representação,
que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade. Para isso,
retoma os pensamentos de Bakhtin a quem faz referência. A modalidade de língua priorizada
no exame é a urbana de prestígio, assim

a abordagem da língua urbana de prestígio deve considerar a sua


representatividade, como variante linguística de determinado grupo social, e o
valor atribuído a ela no contexto das legitimações sociais. Valoriza-se no
ENEM determinada manifestação — a modalidade escrita formal do português
contemporâneo — porque socialmente ela representa grupos sociais que
autorizam sua legitimidade como a língua da ciência e da cultura letrada
(Manual de Capacitação para Avaliação das Redações do ENEM 2015, p.3).

A textualidade é elemento constituidor ao longo da produção para que a redação seja


considerada texto. O exame prioriza as várias competências linguísticas na dimensão textual.
O que sugere levar em conta o desempenho linguístico do participante no que tange às
habilidades de demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para
seleção, organização e interpretação de informações, estruturando-as em um texto
dissertativo-argumentativo, no qual se constituem entidades significativas. O que se ressalta é
que por meio da tessitura textual, nota-se a relação própria existente entre linguagem, mundo
e práticas sociais. Os mecanismos de coesão e coerência ganham relevância na construção
textual, o padrão dissertativo-argumentativo é defendido por se distinguir dos tipos narrativo,
injuntivo, descritivo, por apresentar e defender uma ideia, uma posição, um ponto de vista, “o
texto é argumentativo porque o objetivo é a defesa, por meio de argumentos convincentes, de
uma ideia ou opinião; e dissertativo porque se estrutura sob a forma dissertativa —
proposição, argumentação e conclusão.” (BRASIL, MEC, 2015, p.7).

Valoriza-se no exame a construção de uma proposição consistente, de argumentação


que lança mão de diversificadas fontes e de conclusão que retoma a tese, mas também
apresenta solução para o problema discutido. É importante considerar os movimentos de
descrever, expor, relatar, conceituar e definir são formas de linguagem que caracterizam o
tipo textual dissertativo-argumentativo. Além disso, espera-se que o estudante consiga evitar
que as ideias sejam vinculadas pessoal ou subjetivamente ao autor, mas procurar apresentá-
las como pertencentes a todos.

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1.2 Marcas de apropriação e retomada de texto motivador

Ao produzir a redação o aluno deve estar atento aos textos que servem de subsídio
para produção do texto. Geralmente o enunciado da prova pede que o aluno parta da leitura
dos textos presentes na proposta para a escrita. E nesse processo, os textos motivadores não
podem ser copiados, pois isso levaria à minimização da nota, uma vez que a cópia é
descontada enquanto a paráfrase recebe nota baixa, o máximo alcançado é o nível dois num
universo de cinco níveis em que o cinco é o máximo.

Para tratar da apropriação e retomada de texto, podemos buscar o conceito de


intertextualidade. Grosso modo, ela ocorre quando há uma referência explícita ou implícita
de um texto em outro. Também pode ocorrer com outras formas além do texto, música,
pintura, filme, novela etc. Toda vez que uma obra fizer alusão à outra ocorre a
intertextualidade.

No tocante à intertextualidade, ela pode ser implícita ou explícita. De acordo com


Koch (2004, p. 146) ela será explícita quando, no próprio texto, é feita menção à fonte do
intertexto, como acontece nas citações, referências, menções, resumos, resenhas e traduções,
na argumentação por recurso à autoridade, bem como, em se tratando de situações de
interação face a face, nas retomadas do texto do parceiro, para encadear sobre ele ou
contraditá-lo.

A intertextualidade, ainda de acordo com Koch, será implícita quando se introduz no


texto intertexto alheio, sem qualquer menção da fonte, com o objetivo que de seguir-lhe a
orientação argumentativa, quer de colocá-lo em questão, para ridicularizá-lo ou argumentar
em sentido contrário (valores de captação e subversão respectivamente de acordo com
Gresillon e Maingueneau apud Koch, 2004). Na primeira opção, verificam-se paráfrases,
mais ou menos próximas do texto-fonte; na segunda opção, estão incluídas paródias e/ou
enunciados irônicos, apropriações, formulações de tipo concessivo, entre outras (KOCH,
2004, p. 146).

Dessa forma, na intertextualidade pesquisada para este trabalho consideramos, os sete


tipos a seguir:

1. Epígrafe: trata-se de um texto inicial, que objetiva abrir uma narrativa. É, assim, um
registro inicial usado como orientação do discurso central, de certa forma, é capaz de resumir

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e dar forma à filosofia do escritor. A palavra ‘epígrafe’ origina-se do grego e pode ser
traduzida aproximadamente como ‘escrita na posição superior’.
2. Citação: é a referência a direta e identificada do discurso de outro usada no meio de um
texto, convencionalmente de vir escrita entre aspas e acompanhada da autoria.
3. Tradução: esta intertextualidade é a adaptação de um texto composto em outro idioma à
língua falada no país onde a obra é traduzida.
4. Pastiche: há uma união de diversos conteúdos e o resultado é uma colcha de retalhos. Não
é difícil de compreender: este recurso ocorre quando se realiza a combinação de um
determinado texto com um ou mais discursos.
5. Referência e Alusão: não se indica abertamente o evento em foco, faz-se uma insinuação
por meio de qualidades menos importantes ou alegóricas, ou seja, é dar-se a entender sem
falar abertamente.
6. Paráfrase: ocorre quando se reinventa um texto pré-existente, com instrumentos
apropriados, fazendo-se a manutenção da filosofia, do sentido original do texto fonte. O
termo provém do grego “para-phrasis”, que tem o sentido de reproduzir uma frase. Ou seja,
usa-se outros termos para dizer o mesmo.
7. Paródia: quando se apodera de um discurso alheio e, ao invés de manter o sentido original,
faz-se-lhe oposição discreta ou explicitamente. O discurso prévio pode ser adulterado,
desvirtuado, subvertido, seja por desejar criticá-lo ou por querer tecer uma ironia.
Nos textos produzidos pelos alunos, buscamos identificar quais mecanismos de
intertextualidade com o textos motivadores, os alunos mais usam e se o fazem de maneira
explícita ou implícita. A hipótese é a de que são usados os principais categorias explícitas:
citação, referência/ alusão e a implícita, paráfrase.

2. A produção dos alunos – metodologia

A produção de texto, foi desenvolvida em sala de aula com uma turma de alunos do
terceiro ano de um curso técnico de uma escola federal, foram em média 24 alunos e duas
propostas de produção de texto dissertativo-argumentativo que seguia os moldes do ENEM.
O total de textos foi considerado em função dos participantes que fizeram as duas propostas
voluntariamente. Para este trabalho, analisamos o total de quarenta e quatro textos. Na
primeira produção, quanto na segunda os alunos, receberam a proposta em sala de aula,
leram-na e escreveram seus textos em dois módulos-aula de cinquenta minutos. As propostas
fazem parte da rotina prevista para produção ao longo do ano.

O primeiro texto a ser produzido deveria desenvolver a temática da “Juventude” nos


moldes da redação do ENEM, para isso, foram apresentados quatro textos motivadores: três
fragmentos de artigo, em dois deles com a infográficos, e um artigo de opinião completo.

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O segundo texto a ser produzido partiu de uma proposta de segunda aplicação do


ENEM 2014, a temática a ser desenvolvida foi o fenômeno dos “Rolezinhos”, para isso três
textos motivadores constam da proposta: dois fragmentos de artigos e uma charge.

A atividade aplicada buscou seguir as fases da engenharia didática proposta por Dolz
(2016):

Primeira fase: Buscamos aplicar e desenvolver em sala de aula o gênero redação modelo
ENEM, cuja concepção teórica de linguagem é a interação, o texto segue os moldes padrão
previsto para o gênero e a modalidade de registro de linguagem é a urbana de prestígio.
Segunda fase: O modelo protótipo usado foi uma sequência didática curta, em que o protótipo
inicial é a primeira versão do texto, escrito tem sala de aula a partir da leitura de textos
motivadores e seguida de produção de texto dissertativo-argumentativo.
Terceira fase: O objeto produzido é devolvido ao estudante para reformulação e reescrita com
vistas a melhorar o produto entregue em uma segunda versão. Esta fase não será contemplada
neste artigo, pois o foco do trabalho incide sobre os mecanismos de intertextualidade usados
na primeira versão
Quarta fase: os textos produzidos são avaliados buscando –se observar a ocorrência de
intertextualidade e principais tipos usados pelos alunos na apropriação dos textos
motivadores. Nesta fase, buscamos identificar nos texto as apropriações ou intertextualidade
produzidas, para isso usamos a parte o quadro de análise a seguir.

Quadro1 : Modelo de quadro de análise -Tipos de intertextualidades

Texto / intertextualidade Explícita Implícita

Cita alude copia Paráfrase paródia

Fonte: Dados produzidos para esta pesquisa pela autora

Após computados os dados ou tipos encontrados, apresentamos em gráficos e


procedemos a análise. As análises são demonstradas na seção a seguir.

3. Os textos produzidos e a retomada dos textos motivadores

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A primeira produção contou com a participação de vinte textos produzidos em sala de


aula, os alunos leram a proposta e, em seguida procederam a escrita. Dos vinte textos
produzidos observamos que

Quadro 2 : Tipos de intertextualidades – “Juventude”


Texto / intertextualida- Explícita Implícita
de

Cita Alude/ref. copia Paráfrase paródia

Total textos 14 17 1 6 0

Total ocorrências 15 26 1 6 0

Fonte: Dados produzidos para esta pesquisa pela autora

Na proposta de redação 1 sobre “Juventude”, os números que mais se destacam são:


Em quatorze textos (70%) há a apropriação dos textos motivadores por meio citação,
com dezessete ocorrências. Em quinze textos (75 %) há intertextualidade por meio de alusão/
referência em vinte e seis ocorrências. Em um texto (5%) há cópia literal e, em seis textos
(30%) com uma ocorrência em cada percebe-se o uso da paráfrase. Observando-se esses
números em um gráfico temos:

Gráfico 1: Apropriações dos textos motivadores na proposta 1

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O maior percentual é encontrado nos textos que usam a alusão/referenciação, seguido


da citação e paráfrase. Em função da temática, dos tipos de textos motivadores
disponibilizados, o processo de apropriação ou de intertextualidade se altera. Se
consideramos a avaliação do ENEM, é um dado positivo a alusão sendo mais usada, haja
vista que a paráfrase é descontada do texto .

Na primeira redação produzida, houve significativo uso de citação, o que


provavelmente se dá devido à presença de dados numéricos sobre a juventude nos textos de
referência. Nesses, há dois infográficos que são base dos dados encontrados nas citações.

Na segunda proposta, cuja temática foi o fenômeno dos “Rolezinhos”, redação do


ENEM 2014, em segunda chamada. Nessa atividade, vinte quatro textos foram produzidos.
Nos quais observamos o quadro 3 a seguir.

Quadro 3 : Tipos de intertextualidades – “Rolezinho”


Texto / intertex- Explícita Implícita
tualidade

Cita Alude/ref. copia Paráfrase paródia

Total textos 02 17 01 18 0

Total ocorrências 03 28 01 26 0

Outros 1 Epígrafe
4 Citações de
argumento de
autoridade

Fonte: Dados produzidos para esta pesquisa pela autora

Na proposta de redação 2 sobre o “rolezinho”, os números que mais se destacam são:

Dezoito alunos (75%) fazem a apropriação do textos motivadores por meio de


paráfrase de partes do texto motivador, num total de vinte e quatro ocorrências. Dezessete
alunos (71%) fazem a intertextualidade por meio de alusão e/ou referência aos dados e
informações num total de vinte e oito ocorrências. Três alunos (12,5%) fazem citação
explícita do texto fonte e um aluno (4,1%) faz cópia de trechos dos texto motivadores.

Houve em uma redação a ocorrência de intertextualidade por meio de epígrafe, de


outro texto diferente dos motivadores, parte de letra de uma canção popular brasileira. Houve
ainda em um texto, a ocorrência de citação de quatro argumento de autoridade, para além do
texto motivador.

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Observando-se esses números em um gráfico temos:

Gráfico 2: Apropriações dos textos motivadores na proposta 2

O maior percentual é encontrado novamente nos textos que usam a alusão/


referenciação em número de ocorrências, seguido da paráfrase e citação. Diferentemente do
que ocorreu com a primeira redação a paráfrase é mais recorrente do que a citação neste caso.
O que pode redundar em desvantagem para o estudante considerando a posição que o ENEM
assume em relação a este tipo de apropriação do texto motivador, ou seja, a pontuação
máxima atribuída à paráfrase gira em torno do segundo nível de avaliação da redação, que
varia até cinco níveis crescentes de pontuação. Além disso, o uso constante de paráfrase pode
revelar que redator está muito preso aos textos motivadores e que possui pouco conhecimento
prévio acerca do tema proposto.

Quando computados os dados totais verificamos o gráfico 3 a seguir.

Gráfico 3: Apropriações dos textos motivadores nas redações do 3º ano

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Total de ocorrências de apropriação


do texto motivador

! Cita Alude/ref. Copia Paráfrase Paródia

Os dados revelam que, entre os alunos pesquisados, a maior parte usa o mecanismo de
alusão e referência ao tema, seguido de paráfrase e citação. Em seguida, em número pouco
significativo, aparece a cópia. Não se registra ocorrência de paródia.

Os dados são positivos no que tange ao que se espera do estudante, quando não
copiam ou usam menos a paráfrase, uma vez que no exame, é valorizada a construção de uma
proposição consistente, de argumentação que lança mão de diversificadas fontes. No entanto,
quando a paráfrase aparece em segundo colocação, nota-se que há um trabalho a ser
desenvolvido nas aulas a fim de que estes alunos aprendam a lançar mão de outras formas de
apropriação do discurso, do interdiscurso.

Foi ainda relevante perceber que a escolha de textos com mais ou menos elementos
numéricos e dados estatísticos bem como de textos apenas discursivos interferem no tipo de
mecanismo intertextual escolhido pelo aluno.

Ocorrências, que não foram foco deste trabalho, cujo foco foi a apropriação dos textos
motivadores presentes na proposta de redação estilo ENEM, sugiram: a epígrafe e a citação
de argumento de autoridade. O uso de tais mecanismos sugere mais conhecimento prévio e
capacidade de correlacionar o discurso de outras fontes ao tema proposto, o que Rodrigues
(2005) sugere como a capacidade de fazer uso de outras vozes para validar seu
posicionamento. Essa é uma competência extremamente pertinente à redação do exame e à
proficiência linguística em geral.

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4. Conclusões

As aulas de redação no Ensino Médio devem preparar os estudantes para o


desenvolvimento amplo da competência linguística nas várias modalidades e usos. O
conceito de letramento seria apropriado neste sentido por considerar o desenvolvimento
pleno, a apropriação da linguagem e seu uso efetivo em situações sociais.

Ao iniciar este trabalho, buscamos perceber como os estudantes se apropriam do


discurso ou do texto alheio em situação real de produção de texto, como preparação para o
uso efetivo e legitimado que é o exame ao qual inevitavelmente, os que almejam se inserir no
ensino superior brasileiro, devem se submeter. Houve assim, a identificação de que ao
escreverem a redação no modelo do exame ENEM, os estudantes caminham para a
autonomia e percepção das habilidades desejadas ao não se prenderem à transcrição literal do
texto, ocorrência mínima.

Observa-se, ainda, com o uso da categoria da alusão / referenciação temática, o texto


produzido retoma implicitamente o texto, as ideias de outro. Essa capacidade de fazer a
intertextualidade implícita revela que um bom percurso de aprendizagem de linguagem já foi
trilhado, contudo resta ainda notar que há mais a ser feito, haja vista a significativa proporção
de textos em que a paráfrase surge. O desafio é que esses estudantes ampliem seu
conhecimento prévio e conheçam as demais formas de fazer a intertextualidade de modo a
enriquecer seu próprio texto.

As poucas ocorrências de epígrafe e de discurso de autoridade mostram que o


caminho está posto e que pode ser ampliado na perspectiva de formar leitores e produtores de
texto que o fazem com competência, que apresentem o espírito crítico e que manejem bem os
mecanismos linguísticos necessários. A mediação da aprendizagem (Vygotsky, 2007) pode e
deve ser feita de maneira a permitir que o nível que se apresenta avance para o posterior
numa construção ativa de sujeitos produtores e recursos.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. 4ª. ed. Trad.
Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BEAUGRANDE, R. de. New Foundations for a Science of Text and discourse: Cognition,
Communication, and the Freedom of Access to Knowledge and Society. Norwood, Ablex,
1997.

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contemporâneas

BRÄKLING, Kátia Lomba. Trabalhando com artigo de opinião: re-visitando o eu no


exercício da (re)significação da palavra do outro. In: ROJO, Roxane (Org.). A prática de
linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC; Campinas: Mercado de
Letras, 2000.
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Gramaticalização de formas/construções verbais no português brasileiro,


europeu, angolano e moçambicano: convergências intralinguísticas

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Cristina dos Santos Carvalho*∗


Universidade do Estado da Bahia - UNEB
crystycarvalho@yahoo.com.br

Resumo: neste trabalho, seguindo-se a orientação teórica do funcionalismo linguístico norte-


americano (Hopper & Traugott, 2003; Bybee, 2003, 2010; Traugott, 2009, dentre outros),
tem-se o objetivo de investigar formas/construções verbais gramaticalizadas (mais
especificamente, com achar e dizer) e os seus contextos motivadores nas variedades
brasileira, europeia, angolana e moçambicana do português. Busca-se observar se há
convergências nas variedades estudadas e, por conseguinte, se existe uma mesma tendência
no que diz respeito ao processo de gramaticalização do ponto de vista intralinguístico assim
como já existem evidências translinguísticas. Para tanto, a pesquisa utiliza, como amostras,
textos falados do português contemporâneo (século XX), representantes das quatro
variedades examinadas e integrantes dos bancos de dados do Corpus de Referência do
Português Contemporâneo (CRPC) do Programa de Estudos sobre o Português Popular
Falado de Salvador (PEPP).

Palavras-chave: Funcionalismo. Gramaticalização. Construção.

Introdução

Como processo de mudança linguística, a gramaticalização configura-se como um


processo através do qual, em certos contextos linguísticos, os falantes usam (partes de) uma
construção com uma função gramatical ou atribuem uma nova função gramatical a uma
construção já gramatical (Hopper & Traugott, 2003; Traugott, 2009; Martelotta, 2011, dentre
outros).

Um exemplo clássico de gramaticalização remete à formação do futuro perifrástico


com o verbo ir e seus correlatos em distintas línguas a partir de uma construção hipotática219
com valor de finalidade: no português, a reanálise de ir em verbo auxiliar ocorreu no presente
do indicativo, seguido do infinitivo (1), o que também se evidenciou em outras línguas
românicas, tais como o francês (2), o espanhol (3) e o italiano (4).

(1) Então eles vão fazer esses sistemas todos subterrâneos. (100 S7 DID)220
∗∗
Professora Titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) - CAMPUS XIV (Conceição do Coité) / PP-
GEL (Salvador), Brasil. crystycarvalho@yahoo.com.br.
219
Nesse contexto, o rótulo construção hipotática remete à sentença complexa constituída, nos termos da gra -
mática tradicional de orações principal e subordinada adverbial final.
220 Exemplos (1) e (2) extraídos de Oliveira (2006, p. 137 e 35, respectivamente.).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

(2) Je vais chanter demain.


(3) El sábado voy a ir a la discoteca. 221
(4) Vado a partire domani. 222

Contudo, se há evidências translinguísticas no processo de gramaticalização, podem-


se verificar ou não os mesmos casos de gramaticalização em variedades de uma mesma
língua. A esse respeito, Batoréo (2010) cita exemplos comuns (quer dizer como conector
textual) (5) e específicos de gramaticalização no português brasileiro (tá?, sabe?, entendeu?
como marcadores discursivos) (6) e europeu (se calhar como construção modalizada, com o
valor de ‘talvez’) (7).

(5) olha só o regulamento que tem dentro do apartamento (..) você não pode ligar um
som alto, não pode fazer isso, não pode fazer aquilo, não pode bater um papo na
rua porta – ou você manda a pessoa entrar ou você tem que descer para conversar
na rua. Quer dizer, isso tudo é chato à pampa. (Gonçalves et al. 2007: ex. 27, p.
112) 223 .

(6) mas que adianta um casamento tão lindo… gastam tanto .. Pra no final eh .. Viv/
fica dois .. Três dias … depois se separam … entendeu? Eu acho isso aí um
absurdo… porque… poxa… eu sei lá… sabe? Num né?A vida/ tudo bem … está
tudo difícil … mas a pessoa … eu acho que ….(Martelotta, 2004: 101, ex. 5)

(7) Se calhar não me perdoariam se eu … se eu me esquecesse. (CRPC in: Lima,


2008: 56, ex.12)

Tendo em vista as considerações acima, pretende-se aqui responder a um


questionamento de viés mais teórico: Existe uma tendência mais geral no que diz respeito à
atuação do processo de gramaticalização em variedades de uma mesma língua? Neste
trabalho, norteando-se pelo aporte teórico do funcionalismo linguístico norte-americano
(Hopper & Traugott, 2003; Bybee, 2003, 2010, Traugott, 2009, dentre outros), pretende-se,
então, analisar formas/construções verbais gramaticalizadas (aquelas com achar e dizer) e os
seus contextos motivadores não só nas variedades brasileira e europeia, como o faz Batoréo
(2010), mas também em africanas - a angolana e a moçambicana - do português.

221 Exemplo de Parra (2005 apud Oliveira, 2006, p. 39).


222 Exemplo de Van Hecke (2005 apud Oliveira, 2006, p. 41).
223 Exemplos de (5) a (7) retirados de Batoréo (2010, p. 102-103).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Para tanto, são utilizados, como amostras, textos da modalidade falada do português -
brasileiro, europeu, angolano e moçambicano - contemporâneo (século XX), integrantes dos
bancos de dados do Corpus de Referência do Português Contemporâneo (CRPC)224 e do
Programa de Estudos sobre o Português Popular Falado de Salvador (PEPP)225.

Visando contemplar a discussão aqui proposta, este artigo está estruturado em três
seções. Na primeira, explicitam-se algumas premissas do funcionalismo linguístico,
sobretudo no que diz respeito à vertente americana. Na segunda, abordam-se os conceitos de
gramaticalização e construção e suas implicações a partir do que vem sendo chamado de
gramaticalização de construções (Traugott, 2009; Noël, 2007; Bybee, 2003, 2010; Traugott &
Trousdale, 2013, dentre outros). Na terceira, apresentam-se os resultados preliminares da
análise dos dados. Por fim, tecem-se as considerações finais em relação à análise efetuada e
ao questionamento aqui levantado.

1. Algumas premissas do funcionalismo linguístico

A abordagem funcionalista concebe a linguagem como um instrumento de interação


social e, por essa razão, parte da premissa de que qualquer fenômeno linguístico só pode ser
explicado em uso, ou seja, a partir da sua relação com a situação comunicativa, que envolve
os interlocutores, o objetivo da interação e o contexto discursivo. A esse respeito, afirma
Pezatti (2011, p. 25, 26): “toda e qualquer abordagem funcionalista leva em consideração o
uso que os falantes fazem de sua língua com o objetivo de interagir e se comunicar com seus
semelhantes”.

Desse modo, ao buscar na situação real de comunicação a motivação /explicação para


os fatos linguísticos, os funcionalistas não consideram a língua como um sistema autônomo.
Nesse caso, noções como cognição e comunicação, interação social e cultura, mudança e
variação, entre outras, são importantes para o entendimento do sistema linguístico (Givón,
1995). Seguindo essa mesma linha, Paiva e Braga (2012) explicam que,

Em oposição ao conceito de sistema linguístico autônomo, modelos linguísticos


baseados no uso preconizam que os eventos linguísticos se refletem tanto na produção
como na interpretação das formas linguísticas e que uma descrição mais adequada da

224 O CRPC representa “um vasto corpus electrónico da variedade europeia do Português e de outras variedades
(Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Goa, Macau, Timor-
Leste)” (www.clul.ul.pt). Engloba tanto textos falados como escritos pertencentes a diferentes gêneros e/ou tipos
textuais (literários, jornalístico, técnico, científicos, didácticos, folhetos, decisões do Supremo Tribunal de Justi-
ça, sessões parlamentares, monólogos, diálogos, conversas, telefonemas, leituras, homilias etc).
225O PEPP é um Programa desenvolvido na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), no Brasil, sob a coorde -
nação da Professora Norma Lopes. O Banco de Dados do PEPP é composto por quarenta e oito entrevistas reali-
zadas, no período de 1998 a 2000, com informantes que são naturais de Salvador e aí permaneceram a maior
parte de suas vidas.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

natureza da linguagem passa, necessariamente, pela identificação da forma como são


construídos os atos linguísticos, sua contraparte social e cognitiva (Paiva & Braga,
2012, p. 1).

Com base em Givón (1995), Martelotta e Areas (2003, p. 28), com o intuito de
caracterizarem a visão funcionalista da linguagem, mencionam suas premissas básicas. Serão
aqui explicitadas algumas dessas premissas: (a) a linguagem é uma atividade sociocultural;
(b) a estrutura é não-arbitrária, motivada, icônica; (c) mudança e variação estão sempre
presentes; (d) o sentido é contextualmente dependente e não-atômico; (e) as categorias não
são discretas; (f) a estrutura é maleável e não-rígida; (g) as gramáticas são emergentes.

Das várias vertentes funcionalistas, como já foi mencionado anteriormente, este


trabalho se orienta pela norte-americana, que tem como principais representantes linguistas
como Givón (1990, 1995), Heine et al. (1991), Hopper (1991), Bybee et al. (1994),
Martelotta, Votre e Cezario (1996), Hopper e Traugott (2003), Bybee (2003), Martelotta
(2010, 2011), entre outros. Entre os diversos objetos de estudo, essa vertente tem incluído na
sua agenda de trabalho o estudo da gramaticalização, processo de mudança linguística que
serve como evidência de algumas das premissas funcionalistas citadas anteriormente, a saber,
a não discretude das categorias linguísticas, a não arbitrariedade, a maleabilidade e a
emergência do sistema linguístico.
Da conjugação dos postulados do funcionalismo norte-americano e da linguística
cognitiva226, no que concerne à gramática das construções (Goldberg, 1995, entre outros),
surgiu uma abordagem que, partindo do princípio de que a estrutura da língua é motivada por
fatores cognitivos, sociocomunicativos e linguísticos (Bybee, 2010; Furtado da Cunha;
Bispo; Silva, 2013, entre outros), vem sendo designada de Linguística Funcional Centrada no
Uso (LFCU).

Do ponto de vista teórico-metodológico, alguns dos pressupostos comuns ao


funcionalismo norte-americano e à linguística cognitiva (e, por conseguinte, à LFCU) têm a
ver com as seguintes assunções em relação aos fenômenos linguísticos que são tomados
como objeto de estudo:

[...] rejeição à autonomia da sintaxe, a incorporação da semântica e da pragmática às


análises, a não distinção entre léxico e gramática, a relação estreita entre a estrutura das
línguas e o uso que os falantes fazem delas nos contextos reais de comunicação, o
entendimento de que os dados para a análise linguística são enunciados que ocorrem no
discurso natural [...] (Furtado da Cunha; Bispo; Silva, 2013, p. 14).

226Nos termos de Ferrari (2011), a linguística cognitiva, diferentemente da teoria gerativa, adota uma perspecti -
va não modular da linguagem, assumindo: (i) a atuação de princípios cognitivos gerais compartilhados pela lin-
guagem e outras capacidades cognitivas (tais como raciocínio matemático, percepção etc); (ii) a integração entre
os módulos da linguagem tradicionalmente estabelecidos (fonológico, morfológico, sintático, semântico e prag-
mático) e, mais especificamente, a interação entre estrutura linguística e conteúdo conceptual.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Para a LFCU, segundo Rosário (2015), três conceitos - gramática, uso e discurso -
ocupam lugar de destaque no desenvolvimento da investigação científica. O autor cita
Oliveira & Votre (2009) para explicar a imbricação dessas noções:

[...] ganha relevo a vinculação entre discurso e gramática, na defesa de que fatores de
natureza pragmático-comunicativa não só podem ser responsáveis pela regularização
gramatical, como também atuam na seleção e na organização daquilo que a própria
gramática atualiza. Em outros termos, uma vez sistematizados, os constituintes
gramaticais são usados conforme as condições interacionais, são dependentes de fatores
que marcam as práticas envolvidas no uso (Oliveira & Votre, 2009, p. 105 apud
Rosário, 2015, p. 37).

Em linhas gerais, tomando-se aqui emprestadas as palavras de Furtado da Cunha,


Bispo e Silva (2013, p. 14), pode-se dizer que a “simbiose” entre gramática, uso e discurso se
traduz no fato de que “a gramática é compreendida como uma estrutura em mutação/
adaptação, em consequência das vicissitudes do discurso”, sendo, portanto, moldada no/pelo
uso.

A interface funcionalismo-cognitivismo, na perspectiva construcionista da língua,


também culminou na reorientação teórico-metodológica do exame da gramaticalização, mais
especificamente, na abordagem construcionista da gramaticalização ou gramaticalização de
construções (Noël, 2007; Traugott, 2009, dentre outros). A próxima seção trata das noções de
gramaticalização e construção e suas inter-relações.

2. Gramaticalização (d)e Construções

Enquanto processo de mudança linguística, a gramaticalização, em uma acepção mais


restrita, foi, inicialmente, vista como um processo pelo qual itens lexicais assumem, em
determinados contextos linguísticos, funções gramaticais e, uma vez gramaticalizados,
continuam a desenvolver novas funções gramaticais (cf. Heine et al. 1991; Bybee et al., 1994,
dentre outros).

No entanto, em diversas línguas humanas, existem evidências de que a mudança


categorial via gramaticalização nem sempre incide apenas em um determinado item mas em
toda a construção em que se encontra esse item, como demonstra o exemplo de
gramaticalização, no inglês, do verbo go, na construção progressiva be going to (8a), também
realizada como gonna (8b), em marcador de futuro. Observa-se, nesse contexto, a atuação da
reanálise, “mecanismo que atua no eixo sintagmático, caracterizando-se por uma
reorganização da estrutura do enunciado e uma reinterpretação dos elementos que o

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

compõem” (Martelotta; Votre; Cezario, 1996, p. 57), em toda a construção, que perde o valor
progressivo e adquire o valor de futuro.

(8) a. Bill is going to go to college after all. 227


b. Bill 's gonna go to college after all.

A assunção de que o contexto morfossintático ou a construção em que a forma fonte


ocorre é importante para a efetivação da gramaticalização motivou um novo direcionamento
para as pesquisas funcionalistas (Traugott, 1997; Hopper & Traugott, 2003; Bybee, 2003;
Noël, 2007, dentre outros), no que diz respeito à ampliação do seu escopo de análise e à
redefinição do próprio processo de gramaticalização. Assim, além de a investigação desse
processo de mudança deixar de se restringir apenas a itens específicos, a gramaticalização
passou a ser vista, como já mencionado na introdução deste trabalho, como uma mudança
através da qual, em certos contextos linguísticos, os falantes usam (partes de) uma construção
com uma função gramatical, ou atribuem uma nova função gramatical a uma construção já
gramatical (Hopper & Traugott, 2003; Traugott, 2009; Martelotta, 2011, dentre outros).

Nos termos de Oliveira (2011), essa mudança de perspectiva de análise representa,


nos estudos sobre gramaticalização, uma abordagem mais holística e metonímica228 dos
padrões de uso, com ênfase em construções linguísticas. Nessa perspectiva, o rótulo
construção não pode ser entendido apenas como uma mera aglutinação de itens, mas como
uma unidade que, “uma vez amalgamada, no cumprimento de determinada função
comunicativa” (OLIVEIRA, 2011, p. 39), possui “forma e significado, cujos aspectos de sua
forma e de seu significado nem sempre estão previstos pelos elementos individualmente
presentes em sua composição, nem por outras construções preexistentes na
língua” (Goldberg, 1995, p. 04). Em outras palavras, uma construção não tem significado
composicional, atualizando-se na língua para satisfazer necessidades comunicativas.

No que concerne à gramaticalização de formas/construções verbais, Carvalho (2011)


demonstra que o tipo de contexto morfossintático parece ter implicações no resultado da
forma/construção gramaticalizada, o que pode sinalizar uma motivação entre forma e
função229. O contexto de primeira pessoa do singular (P1), associado ao presente do

227 Exemplos de Hopper e Traugott (2003, p. 1).


228 Metonímia é aqui entendida com o mesmo sentido adotado por Martelotta, Votre e Cezario (1996): “uma
mudança que sofre uma determinada forma em função do contexto linguístico (e pragmático) em que está sendo
utilizada”; nesse caso, a projeção metonímica se dá por “uma contiguidade posicional ou sintática, no sentido de
que a mudança não ocorre apenas com a forma em si, mas com a expressão toda da qual faz parte” (Martelotta;
Votre; Cezario, 1996, p. 56-57).
229 Na literatura funcionalista, essa motivação entre forma e função linguísticas remete à noção de iconicidade.

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indicativo, em sentenças complexas, tem possibilitado a reanálise de verbos em


modalizadores de opinião, como se pode ver no uso de (eu) acho que (Galvão, 1999; Cezario,
2001; Freitag, 2003; Carvalho & Silva, 2013) (9). A relação entre a nova função linguística
desempenhada pelas construções gramaticalizadas citadas e o contexto de primeira pessoa do
singular - que lhes deu origem parece bem motivada, uma vez que tais usos marcam um
ponto de vista pessoal, atuando como um mecanismo de preservação de face do falante
(Carvalho, 2015).

(9) Eu acho que a televisão atrapalha. Tanto que, de tarde, quando ela ... depois do
almoço, ela almoça lá embaixo, ele também, depois ela sobe, fica aqui, sem
televisão, sem nada, pra ele poder estudar.(PB230, PEPP, Inf. 1, p. 10)231

A gramaticalização de dizer, no contexto morfossintático de terceira pessoa do


singular (P3), nas construções diz que (10) e disse que (11), ilustra o primeiro estágio de
gramaticalização do verbo principal proposto por Lehmann (1988): verbo lexical >
evidencial232. Qual seria, então, a motivação para esse verbo ser mobilizado nessas duas
construções? Sobre dizer, Machado e Casseb-Galvão (on-line, p. 4) ressaltam que, no
português, esse verbo “integra a classe dos evidenciais lexicais”. Sendo assim, considera-se
aqui que essa característica de esse verbo já marcar a fonte da informação é ressignificada
com a sua gramaticalização, o que também repercute na sua sintaxe: enquanto operador
evidencial gramatical, dizer “não exerce função predicativa233, não apresenta um agente do
dito, um referente no mundo real a quem se pudesse atribuir a origem da fala
subsequente” (Casseb-Galvão, 2004, p. 163-164).

(10) DOC: Você está morando onde agora?


43: Estou morando na casa da minha sogra. Diz que é muito ruim morar na casa
de sogra e pior que é mesmo
DOC: É?
43: Morar na casa de sogra é ruim demais. Mas ela é legal comigo, minhas filhas.
Gosta muito de minhas filhas. Meu marido... meu marido não está
trabalhando, e ela está...

230 PB significa português brasileiro.


231 Exemplo extraído de Carvalho e Silva (2013, p. 38).
232 Os operadores evidenciais são utilizados, nas línguas humanas, para indicarem a origem de um conhecimen -
to, a fonte do dito (Galvão, 2001; Casseb-Galvão, 2004; Casseb-Galvão & Lima-Hernandes, 2007).
233Nesse contexto, o termo “predicativo” remete a predicador. Por ser responsável pela seleção dos argumentos
externo (sujeito) e internos (complementos), o verbo, enquanto categoria lexical, é considerado o predicador da
oração.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

DOC: ... está ajudando. (PB, PEPP, Inf. 43, p.02)234

(11) 17: Eu me achava dona da casa, colocava aquelas velhas do abrigo noturno lá em
casa porque se botasse moderna disse que meu pai papava... (PB, PEPP, Inf. 17,
p.01-02 )

Alargando-se a compreensão de construção como sinônimo de contexto fonte ou


resultado da gramaticalização, sob o prisma da gramática das construções, postula-se que as
construções linguísticas, entendidas como pareamento entre forma e significado (Traugott &
Trousdale, 2013), são as unidades básicas da língua, podendo ser o locus da mudança
linguística. Assim sendo, novas construções são exemplares específicos de construções mais
gerais existentes que assumem novas implicações pragmáticas, significados ou formas devido
ao seu uso em contextos particulares (Bybee, 2010). Nesse caso, segundo a autora, algumas
propriedades da nova construção podem ser determinadas pela construção da qual se originou
(Bybee, 2010, p. 110), o que pode ser perdido gradualmente ao longo do tempo.

Adotando-se uma perspectiva construcionista da gramaticalização, considera-se que,


quando esse processo ocorre, não só surgem novas construções de outras já existentes mas
um passo a mais é dado no sentido de que a construção adquire um status gramatical (Bybee,
2010, p. 30). Assim entendida, partindo de uma construção preexistente, a gramaticalização
“passa a envolver processos de uso da língua pelos quais ocorrem mudanças sistemáticas
tanto na morfossintaxe quanto no significado” (Traugott, 2008 apud Lacerda & Oliveira,
2015, p. 53), sinalizando um alinhamento entre padrões de uso e padrões gramaticais
(Lacerda & Oliveira, 2015). A próxima seção ilustra esse alinhamento no que diz respeito a
algumas construções verbais da língua portuguesa.

3. Análise dos dados

Antes de se começar a análise dos dados propriamente dita, faz-se necessária uma
observação: como a pesquisa ainda se encontra em execução (e justamente na fase de análise
dos dados), nesta seção, apresentam-se resultados preliminares dessa análise, procedendo-se a
uma descrição das construções investigadas. Nesse sentido, tais resultados se restringem ao
exame das seguintes construções verbais gramaticalizadas: (i) construções com verbos
epistêmicos235, no caso, com o verbo achar no contexto morfossintático de P1 - eu acho
(que); (ii) construções com evidenciais, no caso, dizer no contexto de P3 - diz/disse que.

234 Exemplos (10) e (11) retirados de Carvalho (2015, p. 18-19).


235Nesse caso, esses verbos expressam modalidade epistêmica, conceito que diz respeito ao grau de certeza ou
de crença do falante em relação ao que diz.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Ao analisarem os usos de achar no contexto de P1, em dados de fala soteropolitana


(que, neste trabalho, são tomados como representantes da variedade brasileira do português),
Carvalho e Silva (2013) e Carvalho (2015) identificam, entre outros, empregos com valores
de apreciação (12) e dúvida (13), (14), que já constituem casos de gramaticalização de eu
acho (que), respectivamente, como modalizador de opinião e advérbio de dúvida.

(12) Até o próprio professor ensina, educa, como... [...] Eles vão lá e ensinam a
maneira de você ser, e eles passam que você não use drogas, não vai, não faz
bem para a saúde. Não compre, que não vai fazer bem para a saúde, se você não
praticar, você vai cansar, sua mente não vai aceitar, não vai... não vai ficar
controlada. Então eles ensinam e como eu falei pra você, se eles praticassem o
esporte ia mudar totalmente o índice até de drogas de alguns, algumas pessoas.
Acho que o esporte ajuda muito o cidadão. (PB, PEPP, inf. 20, p.13)236

(13) Ah, tratavam muito bem né, mas não eram, mas não eram pessoas de recurso,
esse lado dos G..., apesar de ter um outro lado que era assim digamos metido a
rico né, mas o meu lado de cá era bem pobre, de forma que a gente foi eh,
passando né desse jeito, quando o meu pai morreu, eu estava acho que com
doze anos aí eu fui morar com a minha tia lá no Rio Vermelho, foi aí que eu me
realizei da, como assim o prazer de menino de, de conhecer o mar, [...]. (PB,
PEPP, inf. 14, p.1)

(14) DOC: E você a, ainda hoje se encontra com ela? Já...


18: Encontro mas a raiva já passou já, agora a gente é amigo, eu acho. (PB,
PEPP, inf. 18, p.2)237

Nos dados das outras variedades do português (europeia, angolana e moçambicana),


também se registra o uso de eu acho que como modalizador de opinião:

(15) -> vou a Lisboa e venho-me embora.


- porquê?
-> porque não me sinto bem, porque, e já tive lá amigos, mas, não, eh, sei lá, eu
acho que é diferente das pessoas aqui do norte. são mais individuais, mais

236 Exemplos (12) e (13) extraídos de Carvalho e Silva (2013, p. 46-47).


237 Exemplo retirado de Carvalho (2015, p. 12).

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fechadas no, e, não é o ser mais fechadas, mais, tudo mais isolado. (PE238 , CRPC,
As Grandes Cidades239, p. 1)

(16) -> não vamos dizer que é o pensamento moçambicano. é um sentimento de


desportista. porque toda a pessoa que vai para o campo espera ganhar.
- sim, mas eu acho que noutros países, por mais que os jogadores percam, mas
são recebidos com um pouco de, de carinho, não é, quando chegam. mas nós já
rece[...], às vezes recebemos com, des[...], desprezamos. mesmo quando os
Mambas foram perder na África do Sul. toda a gente, "esses, quando chegarem
cá, vão passar mal connosco", "eles foram brincar, não jogaram bem". temos
sempre essa tendência. sem querermos entender que eles também podem ganhar
ou perder. é difícil o moçambicano meter na cabeça que ele pode ganhar ou
perder. (PM, CRPC, Sentimento e Desporto, p. 2)

(17) - e qual é a sua maior aspiração depois de ter conseguido ultrapassar com muitas
dificuldades ao, ah, de ter-se triunfado na vida, digamos assim, com algumas
dificuldades, qual é a maior aspiração para o futuro que pensa realizar?
-> bem, a minha aspiração nesse momento seria mesmo trabalhar na informação,
porque eu... tenho o, o segundo ano de jornalismo, não é, apesar de não ter
terminado, faltavam dois, e portanto, eu me esforço um bocadinho que é para
ver se entro, portanto, na Rádio Luanda, ou em qualquer emissora que é para
mim poder aprofundar um bocadinho a minha experiência, porque eu sei na
realidade que, acho que a minha, minha vocação seria mesmo rádio. (PA,
CRPC, O Jovem Gaspar, p. 3)

Tanto em (12) como nos exemplos de (15) a (17), os informantes utilizam a


construção eu acho que para tecerem uma apreciação sobre um determinado assunto ou fato;
demonstram, assim, que têm consciência sobre o assunto de que falam, explicitando a sua
opinião.

O interessante é que o grau de certeza de eu acho que enquanto marcador de opinião


vai se perdendo com a abstratização dos sentidos dessa construção até culminar na incerteza,
na dúvida, o que parece motivar reanálise categorial dessa construção em uso equivalente a
de um advérbio, como mostram os exemplos (13) e (14) no português brasileiro e (18) e (19)
nas variedades europeia e angolana do português, respectivamente. O comportamento como

238 PE, PM e PA significam, respectivamente, português europeu, português moçambicano e português angola -
no.
239 Na amostra do CRPC, cada texto tem um título, que tem a ver com a temática discutida durante a entrevista.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

advérbio pode ser evidenciado não só pelo seu sentido de dúvida mas também pela sua
posição deslocada na sentença: intercalada (13) e final (14), (18). Nos dados analisados, não
se registrou esse uso de eu acho que na variedade moçambicana.

(18) - eu acho que as pessoas do Porto têm uma maneira muito especial de viver, não
é,
-> eh, sim, eh, não sei, eh, eu, como sou daqui, sempre fui, nascido e criado aqui,
não sei. não posso muito falar, acho. de facto, sei lá, não gosto de Lisboa, por
exemplo. (PE, CRPC, As Grandes Cidades, p. 1)

(19) - é só porque vive só é que esta facilidade lhe está, é porque, é só porque vive só
é que tem esta facilidade?
-> sim, sim. é porque tenho essa facilidade. porque se fosse, se eu vivesse com
mais alguém acho que esse dinheiro, di[...], dinheiro não chegava. nem para mim,
nem para a pessoa com quem eu vivesse e para o meu filho. (PA, CRPC, O Jovem
Gaspar, p. 1)

Com relação às construções com dizer que se tornaram operadores evidenciais240, no


português brasileiro, há ocorrências de diz que e disse que com os valores de reforço de
verdade geral (10), (20) e boato/especulação241 (11), (21).

(20) DOC: Mas essa história aí o que foi mesmo que a sua tia colocou em seu pé?
02: Toucinho quente, eh, eu furei...
DOC: Pra que?
02: Disse que é ótimo, eh, eu furei o, o pé com prego enferrujado, aí a minha tia
pegou, e minha avó, juntou todo mundo colocou toucinho quente, eu sei que
foi o maior auê, minha mãe querendo...
DOC: Pra facilitar o prego sair é?
02: Não, disse que é bom pra não, eu acho que não, não inflamar. (PB, PEPP, Inf.
02, p.02)242

(21) 31: [...] agora mesmo a gente está no aviso aí, a gente está trabalhando no aviso,
eu vou aproveitar, é, está no aviso aqui todo mundo.

240 Conferir nota 14 deste trabalho sobre operadores evidenciais.


241Essa tipologia de usos segue a proposta de classificação de Galvão (2001), Casseb-Galvão (2004) e Casseb-
Galvão e Lima-Hernandes (2007) para diz que. Vale ressaltar que essas autoras não analisaram a construção
disse que. Carvalho (2015), partindo, então, da categorização proposta para diz que, observou se os mesmos
usos ocorriam com disse que.
242 Exemplos (20) e (21) retirados de Carvalho (2015, p. 18 e 19).

!699
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

DOC: É, vocês vão sair?


31: A gente não sabe, a gente não sabe como é que vai ficar a situação da gente, a
gente está há dois, três meses sem receber um centavo...
DOC: É porque vai mudar a firma talvez né?
31: Diz que vai chegar outra firma mas ninguém sabe né. (PB, PEPP, Inf.31, p.
08)

Na variedade europeia, há um caso de disse que expressando uma especulação sobre


algo, o fato de não se andar sozinho há tempos atrás (22) e, na variedade angolana, em vez de
diz que, ocorre diz-se que como reforço de verdade geral decorrente de uma crença em uma
tradição oral africana (23).

(22) -> naquele tempo não, não, não se andava muito ah, ah, sozinho, era, tinha de ser.
isto, já está a ver, há sessenta e tal anos. eu estou com oitenta e quatro, faz favor
de ver.
- eh, eh, disse que naquele tempo não se andava muito sozinho.
-> não.
- ao contrário do que se passa hoje, não é,
-> oh, oh, hoje é uma desgraça. só, as, os pequenas - tenho uma sobrinha-neta que
aos catorze ou quinze anos já queria, sei lá, andar sozinha, não queria n[...], era de
noite e de dia, tudo mais, já sabe como é. elas agora entendem que a, que a
liberdade e a felicidade que se constrói assim mas... está bem. (PE, CRPC, - A
juventude ontem e hoje, p. 1)

(23) - e muitas vezes na tradição africana, as pessoas usam mesmo, eh, pulseiras, e
porque realmente acreditam em qualquer coisa de mágica. quando se vê, muitas
vezes, muitas mulheres africanas, sobretudo quando a gente viaja um pouco mais
para o interior, a gente vê pulseiras justamente, era mesmo, eh, algumas delas têm
qualquer coisa a ver com a tradição.
segundo o que se diz, pelo menos pelos muílas, onde eu andei muito pouco
tempo, não é, quer dizer, conheci um pouquinho aí, mas, diz-se que as pulseira
têm um poder energético, eh, muito forte, assim para, e que dá resistência às
pessoas. (PA, CRPC, Um Conto Tradicional, p. 2)

Em todos os usos evidenciais supracitados, os falantes, ao não explicitarem a fonte da


informação, não se comprometem com o que está sendo dito, não tendo nenhuma
responsabilidade sobre a informação veiculada: ou os falantes fornecem uma informação que
é reforçada/consagrada pelo domínio público (10), (20), (23) ou apresentam informações que,
por serem duvidosas, constituem boatos ou especulações (11), (21), (22). Conforme

!700
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

explicitado em Carvalho (2015), a mudança categorial operou da seguinte forma: (ele) diz/
disse que > diz/disse que243. Nos termos da autora, essa trajetória sinaliza que: de um lado, a
fonte da informação é direta, tendo sempre um sujeito que pode estar explícito ou implícito,
responsável por esse dizer; do outro, a fonte da informação passou a ser indireta e incerta e,
nesse caso, não há como se se explicitar o sujeito, que adquire um caráter indeterminado.

Considerações finais

Com este trabalho, seguindo-se a orientação teórica do funcionalismo linguístico


norte-americano, buscou-se observar se há convergências nas variedades do português
estudadas e, por conseguinte, se existe uma mesma tendência no que diz respeito ao processo
de gramaticalização do ponto de vista intralinguístico assim como já existem evidências
translinguísticas.

Respondendo à pergunta inicial da pesquisa, pode-se dizer que existe, para algumas
construções verbais, no que concerne a padrões de usos, uma tendência à gramaticalização
nas variedades da língua portuguesa, como ilustram os empregos de eu acho (que) e disse
que. As construções diz que e diz-se que parecem constituir contraevidências dessa tendência
intralinguística já que, nas amostras analisadas, foram registradas apenas nos dados do
português brasileiro e no português angolano, respectivamente. No entanto, se se assumir a
hipótese de que uma construção derivou da outra (diz-se que > diz que), mais uma vez,
haveria a confirmação de uma tendência intralinguística.

Os resultados preliminares até então obtidos, a depender da interpretação que se faça


dos usos gramaticalizados encontrados e das motivações para emergência desses usos,
apontaram tanto para convergências como para divergências intralinguísticas em relação à
gramaticalização. Tais resultados, juntamente com a constatação da relevância dos usos
linguísticos e das intenções comunicativas dos falantes para a emergência de novas
construções, motivaram o surgimento de novas questões teóricas para o exame da
gramaticalização, a saber:

(i) Quando as construções gramaticalizadas emergem, elas já são recrutadas por todas
as variedades de uma língua?
(ii) Se não há esse recrutamento instantâneo das construções gramaticalizadas, como
elas são difundidas de uma variedade para outra?

243Para tal consideração, Carvalho (2015) partiu, além dos dados analisados, do continuum estabelecido por
Galvão (2001) para a construção diz que: (ele) diz que > diz que.

!701
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Espera-se, com as etapas posteriores da pesquisa, que se possa responder a essas


questões a partir de evidências empíricas.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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Educação, ensino de língua portuguesa e desenvolvimento da expressão


oral: da tradição epistemológica moderna à pedagogia ludoestética
Waldorf

Dulciene Anjos de Andrade e Silva


Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
E-mail: ddulciene@yahoo.com.br

Resumo: este texto objetiva contribuir para a compreensão e o debate acerca do trinômio
educação, ensino de Língua Portuguesa e desenvolvimento da expressão oral, à luz de um
percurso investigativo delineado por quase uma década.

Palavras-chave: Educação – Ensino de Língua Portuguesa – Expressão Oral –Pedagogia


Waldorf

1 Para começo de conversa...

O exercício docente no ensino superior tem-me permitido observar que os estudantes


das instituições do sistema convencional de ensino, ao concluírem a formação básica,
apresentam, em sua maioria, uma recorrente dificuldade com relação a sua expressão oral.
Em minha dissertação de mestrado (ANDRADE E SILVA, 2004), ao buscar compreender as
raízes epistemológicas, educacionais, linguísticas e psicológicas desse fenômeno, pude
identificar que esse fenômeno tem sido também observado por pesquisadores que se
debruçaram ao estudo do desempenho expressivo e comunicativo dos estudantes, quer para
compor um diagnóstico da sua expressão oral, quer para refletir sobre o processo de ensino-
aprendizagem da linguagem oral.

Com o propósito de elaborar uma pedagogia da linguagem oral em Língua


Portuguesa, Wânia Milanez (1993) desenvolveu um estudo investigativo para examinar a
contribuição da escola no aprimoramento do desempenho linguístico oral de estudantes do
último ano da antiga formação em magistério em uma escola estadual de São Paulo. O
estudo, realizado em 1989, pretendia verificar se o que os estudantes aprenderam ao longo
dos onze anos na escola foi adequado e compatível com as situações comunicativas em
sociedade, principalmente as que demandam o uso formal da língua. Tal pesquisa demonstrou
que, desde a dificuldade em resumir e destacar dados relevantes para uma comunicação oral

!705
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

até a fragmentação e descontinuidade do discurso, passando pela insegurança manifesta


frente a um público, os problemas vivenciados pelos estudantes foram inúmeros - o que
evidencia que a escola tem se omitido em preparar esses indivíduos para um desempenho
linguístico oral satisfatório.

Alguns estudos assinalam que, na gênese deste fenômeno, está o pouco espaço
atribuído à oralidade em sala de aula, graças ao privilégio que a instituição escolar
historicamente tem dedicado à linguagem escrita. Dinéa Muniz (1986), em sua dissertação de
mestrado, procedeu a uma pesquisa em uma escola da rede pública de Salvador em que
buscou identificar como e quando ocorre a prática da expressão oral no ensino de Língua
Materna. Os resultados indicaram que, embora atribuam importância à prática da expressão
oral em sala de aula, as professoras observadas realizavam, em seu exercício, atividades de
produção oral condicionada à modalidade escrita - ou no máximo, atividades que propunham
a oralização da escrita, mas que não buscavam desenvolver as estratégias discursivas
necessárias à interação oral.

Como anuncia Muniz (1986), quando se pensa no trabalho do professor de Língua


Portuguesa, associa-se imediatamente sua prática ao ensino de gramática. Segundo a autora,
isso ocorre desde que foi implantado o ensino básico no Brasil, período em que a tradição dos
estudos tinha como base as convenções gramaticais, definições e classificações nos moldes
da gramática normativa tradicional. Partilhando uma compreensão abstrata, mecânica e
reducionista da língua, os professores de Língua Portuguesa passaram a disseminar a crença
equivocada de que o ensino de teoria gramatical (atividade eminentemente racional) era
suficiente para o desenvolvimento das habilidades linguísticas, procedendo à parcelização do
ensino da língua em gramática, literatura, pronúncia, leitura, redação, análise de textos etc. e
acreditando que, mediante o ensino da gramática, realizado descontextualizado das situações
de comunicação e dos informantes, favoreceriam o domínio prático da língua.

Por outro lado, como ainda explica Muniz (1986), graças ao valor que a modalidade
escrita adquiriu na sociedade, o que consagrou à escola o status de promotora de sua
aprendizagem, o ensino de Língua Portuguesa passou cada vez mais a focalizar um trabalho a
partir dos usos linguísticos da modalidade escrita, muitas vezes tomando, equivocadamente, a
fala como recodificação da escrita (e não o contrário!).

Na década posterior ao estudo de Muniz (1986), tornou-se mais expressivo, no meio


linguístico e educacional, o número de estudos que traziam como objeto a linguagem oral,
enfatizando a preocupação em integrá-la efetivamente ao trabalho escolar com a Língua
Portuguesa, sobretudo como ponto de partida para todo o ensino da língua escrita. Alguns,
inclusive, com propostas de intervenção para atender às proposições de inclusão da

!706
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

modalidade oral da língua a esse ensino, como é o caso da Pedagogia do Oral (MILANEZ,
1993), da Psicopedagogia da Língua Oral (DEL RIO, 1996), d’A Língua Falada no Ensino
de Português (CASTILHO, 1998), d’O Espaço da Oralidade na Sala de Aula (RAMOS,
1997), d’Oralidade e Escrita: perspectivas para o ensino de língua materna (FÁVERO;
ANDRADE; AQUINO, 1999)...

Entretanto, como, anos antes, anunciara Ball (1973), se, por um lado, a dificuldade
que os estudantes demonstram para se expressar oralmente é o resultado do caráter artificial
do ensino de Língua Portuguesa, cujas estratégias, além de enfatizarem o uso abstrato da
língua e a hegemonia da língua escrita, não priorizam as exigências das situações reais de
comunicação, por outro, está intimamente relacionada com a organização didático-
metodológica do ensino, em que o formalismo disciplinar impede a promoção dos atos de
fala do estudante e dificultam sua manifestação.

De fato, herdeira da tradição epistemológica moderna, a educação tem consagrado um


ensino eminentemente voltado para a aprendizagem cognitiva conceitual e priorizado a
transmissão de conteúdos e informações em detrimento do desenvolvimento das habilidades
desses indivíduos - inclusive aquelas que são essenciais para o seu desempenho comunicativo
e expressivo. Aliás, pelo caráter predominantemente expositivo das aulas, a quantidade dos
turnos de fala do professor, em sala de aula, é consideravelmente maior do que a quantidade
de turnos dos estudantes - o que ratifica constatação de que a fala, na escola, tem-se
estabelecido como uma atividade exclusivamente docente. Nesse contexto, a expressão
própria do educando não tem tido espaço para se desenvolver, o estudante não tem voz, e não
são estimuladas, no cotidiano escolar, situações de interação verbal. Ao contrário, muito do
que os indivíduos vivenciam na escola tem contribuído para gerar bloqueios que têm
restringido a sua expressividade, dificultando-lhes sobremaneira a sua expressão oral.

Estudos desenvolvidos por teóricos que buscaram uma compreensão da gênese dos
recalques que atuam na dinâmica da personalidade esclarecem o quanto as situações
traumáticas vivenciadas na educação causam nos indivíduos determinados padrões
automáticos de defesa que contribuem para conter a sua expressividade natural. Como
explica Reich (1988), sem a possibilidade de expressar com autenticidade seus sentimentos,
suas percepções, seus questionamentos, os estudantes registram em seu aparelho psíquico
uma série de bloqueios que, por sua vez, passam a impedir o livre fluxo de sua energia, da
sua emoção, atuando no sentido de restringir a sua expressividade natural - e, por
conseguinte, a sua capacidade de expressão oral. Não é sem razão que, nas situações em que
necessitam se expor oralmente, os estudantes, em geral, revelam que possuem diversas
dificuldades.

!707
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

2 Educação, ludicidade e desenvolvimento da expressão oral: compreendendo a


teia das relações

Se a pesquisa bibliográfica realizada buscou compreender as raízes epistemológicas,


pedagógicas, linguísticas e psicológicas da dificuldade de expressão oral dos estudantes, por
outro, a pesquisa empírica se propôs a desvelar as relações entre ludicidade e
desenvolvimento da expressão oral, tendo como ponto de partida uma metodologia em
experimento no componente curricular Laboratório de Expressão Oral, então integrante do
currículo do curso de Letras da Universidade do Estado da Bahia.

Como docente de LEO, executava um programa que propunha a cada aula uma
sucessão de atividades agrupadas de acordo com um grau crescente de estímulo à
espontaneidade pessoal: partíamos de realizações coletivas (a que denominei atividades de
“sensibilização” e “liberação”) - para exposições individualizadas (“produção”) e, finalmente,
uma partilha sobre a experiência vivenciada a cada encontro (“avaliação”). Desde dinâmicas
e jogos da cultura tradicional, passando por técnicas de expressão corporal e vocal, investi em
uma série de atividades lúdicas que buscavam proporcionar a exploração de diversos tipos de
linguagem, na tentativa de ajudar os estudantes a superar limites restritivos à sua
expressividade. Ao longo das diferentes turmas/semestres, identifiquei que esse trabalho
possibilitava aos graduandos um intensa “presença” em sala de aula, abrindo espaço para
que, progressivamente, além de reflexões e partilhas acerca das dificuldades enfrentadas por
cada um com relação à sua expressividade, eles começassem a se arriscar mais em situações
que se lhes apresentavam como desafios de superação individual.

Movida pelo imperativo de melhor compreender esse fenômeno, delimitei como


objetivo da pesquisa-ação realizada investigar como ou de que forma as atividades lúdicas
contribuem para o desenvolvimento do potencial comunicativo e expressivo dos educandos.
Para tanto, realizei, ao longo de um semestre letivo, encontros semanais de quatro horas-aula
com 13 estudantes matriculados em uma turma de LEO. No intuito de agregar um referencial
teórico mais consistente à metodologia em experimento, que se propunha a utilizar estratégias
para minimizar as dificuldades dos estudantes com relação à sua expressividade (flagradas na
sondagem inicial da pesquisa empírica), debrucei-me à compreensão do conceito de
ludicidade apresentado por Cipriano Luckesi (2000, 2005), o que possibilitou um salto
qualitativo no que tange à compreensão do trinômio educação, ludicidade e desenvolvimento
da expressão oral.

Utilizando-se da teoria desenvolvida por Ken Wilber (1998), que preconiza a


existência de quatro dimensões para a compreensão dos fenômenos humanos, Luckesi (Idem)
concebe a ludicidade como um estado interno do sujeito que vivencia uma experiência de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

forma plena, localizando este fenômeno na dimensão da experiência interior e individual.


Conforme explica, não se trata de conceber a ludicidade como sinônimo de atividades
lúdicas, enfocando-a a partir de suas características histórico-culturais ou histórico-sociais
(dimensão exterior coletiva), nem de abordar as funções terapêuticas e/ou educativas
associadas a essas atividades (dimensão exterior individual), mas, sim, de compreendê-la
enquanto qualidade interna do sujeito que vivencia qualquer ação (que nem sempre é
brincadeira) com plenitude: considerando, aqui, “plenitude da experiência” como a máxima
expressão possível da não divisão entre pensar/sentir/fazer. Essas reflexões de Luckesi têm
possibilitado uma compreensão abrangente do que é uma “educação lúdica”: aquela que,
transcendendo o viés estritamente racionalista que tem caracterizado a educação,
compromete-se com a promoção de aprendizagens significativas que envolvam o estudante
por inteiro, propiciando a integração harmônica do seu pensar/sentir/fazer.

Com a munição desse referencial, foi possível compreender que, enquanto qualidade
que conduz os educandos à experiência interna da inteireza, favorecendo o seu envolvimento
pleno em suas realizações e integrando as suas qualidades essenciais, a ludicidade mostra-se
um recurso potencial para desenvolver nos sujeitos a sua criatividade, a sua espontaneidade e
a sua auto-expressão. As diversas técnicas de coleta de dados utilizadas, como as
observações, as entrevistas realizadas na sondagem final da pesquisa e os relatórios de cada
encontro, progressivamente revelavam uma mudança significativa na postura dos estudantes:
o olhar assertivo já os deixava menos evasivos, a firmeza das palavras e o corpo mais
relaxado e mais presente mostravam-se mais condizente com o que o seu conjunto buscava
dizer... Embora demostrassem ter consciência de limitações que ainda se faziam presentes, os
estudantes alteraram fundamentalmente o modo de se relacionar com tais dificuldades: já não
mais as encaravam como algo que os deixava marginalizados em contextos diversos, mas
como um elemento que os conduzia ao conhecimento profundo sobre si e com o qual estavam
aprendendo a conviver de uma forma mais saudável e equilibrada.

Em suas condutas ao longo dos encontros, ou observadas por eles próprios em


situações de exposição oral fora do contexto disciplinar, os estudantes demonstravam maior
tranquilidade para expressarem-se oralmente, inclusive quando tinham que simultaneamente
formular seu pensamento, revelando maior confiança e mais domínio sobre si nessas
ocasiões. A ludicidade que experimentaram atuou positivamente em suas atitudes mentais e
emocionais, permitindo-lhes uma expressão oral mais verdadeira e efetiva. Creio que essas

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contemporâneas

transformações são o resultado do afrouxamento de suas couraças244 - o que foi possibilitado


pelo prazer experimentado nas atividades lúdicas (incluindo respiração, técnicas de
relaxamento, expressões plásticas, dramatizações), e/ou graças à qualidade do contato visual
e corporal estimulado; enfim, tudo o que favoreceu a esses estudantes o contato com a sua
própria expressão interior. Como já explicaram Reich e seus continuadores, a existência dos
bloqueios, inicialmente uma forma de proteção desenvolvida pelo ego para preservar a
integridade do indivíduo, serve também para amortecer seus sentimentos, suas percepções e
sensações. Mas, a partir do momento que as couraças começam a ser mobilizados, a
percepção vai se fazendo mais presente, o livre fluxo de energia vai permitindo que o
indivíduo reaja de uma forma mais corajosa e confiante face aos desafios com os quais se
depara, e o fluxo de suas palavras já não mais ecoam num vácuo sem expressão. Ao
contrário, surgem engravidadas pelos sentimentos, e com eles representam uma perfeita
conjunção. Liberar a emoção é liberar a expressão do indivíduo. É devolver-lhe a voz - e a
vida.

Assim, a partir da experiência desenvolvida na pesquisa do mestrado, pude observar


que o desenvolvimento da expressividade dos educandos é um processo que está intimamente
relacionado com os pressupostos de uma prática que, extrapolando o exercício do
racionalismo estrito, superando a visão atomística de mundo e de ser humano, e
compreendendo de forma mais integrada as qualidades fundamentais do humano que foram
dissociadas pelo pensamento cartesiano e positivista, esteja comprometida com a formação
integral dos estudantes, de modo a levar em consideração a multidimensionalidade do ser
humano - o que também significa integrar, no processo formativo do educando, o seu pensar,
o seu sentir e o seu fazer.

Uma nova questão fez-se caminho nessa trajetória de investigação: é possível


localizar, no cenário educacional brasileiro, uma escola que, atendendo aos pressupostos de
uma educação lúdica, apresente-se como um lócus para o aprofundamento das relações entre
educação, ludicidade e expressão oral no universo da educação básica?

Na tentativa de localizar uma iniciativa pedagógica que tivesse como princípio a


busca dessa unidade harmônica bio-psico-espiritual no processo de formação básica do

244 Segundo Reich (1998), a partir das situações com as quais se depara ao longo de sua existência, cada indiví -
duo vai construindo seus limites e possibilidades no interagir com o mundo. A persistência de uma mesma si-
tuação adversa vivida no cotidiano ou de frequentes conflitos entre as próprias necessidades e o mundo exterior
vão desencadeando, na estruturado ego, um processo de rigidez que origina o que denominou couraça de cará-
ter. Em suas investigações, constatou que estas couraças de caráter são funcionalmente idênticas às couraças
musculares, segmentos de estrutura anelar que se apresentam dispostos horizontalmente ao longo do corpo, de
modo a formar ângulos retos com a espinha dorsal. Assim, ao mesmo tempo em que se configuram como um
mecanismo de autodefesa, de proteção automática, estas couraças também restringem a motilidade do indivíduo,
o fluxo de sua energia biológica, inibindo a sua expressividade.

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educando, de modo a configurar-se um rico e fértil campo para aprofundar o estudo e a


compreensão das relações intrínsecas entre educação integral e o desenvolvimento da
expressão oral dos educandos, cheguei até a Pedagogia Waldorf, uma iniciativa de educação
formal idealizada e implementada pelo filósofo austríaco Rudolf Steiner em 1919, na
Alemanha. Desenvolvida de forma independente e às margens dos currículos de licenciatura
e/ou dos setores institucionalmente responsáveis pelas diretrizes oficiais da educação, a
Pedagogia Waldorf é, atualmente, praticada em mais de 1.000 escolas espalhadas pelos cinco
continentes, dentre as quais 60 estão no Brasil.

3 “Para não dizer que não falei das flores”: a Pedagogia Waldorf e o
desenvolvimento da expressão oral dos educandos

Você sabe que é Waldorf quando...


Você fala o verso da manhã todas os dias;

Você se forma e podem colocá-lo para falar

diante da China que você não tem vergonha;


Pensa que é natural ter quatro aulas duplas

de artes por semana e não entende por que

seus amigos acham isso estranho;

Você adora aprender, estudar... Mas estudar

para você não tem o mesmo significado que para

o resto dos mortais.

Ao mesmo tempo que anuncia especificidades que caracterizam a Pedagogia Waldorf


enquanto um modelo pedagógico diferenciado do sistema tradicional de ensino, a epígrafe
acima, de autoria de ex-estudantes Waldorf245, destaca a percepção desses educandos com
relação à problemática da pesquisa de doutoramento: a relação entre a Pedagogia Waldorf e o
desenvolvimento da expressão oral dos estudantes.

Como sinalizado, os egressos de escolas Waldorf apresentam um perfil diferenciado


com relação a estudantes do sistema tradicional de ensino. Eles se destacam, dentre outras

245Esses excertos (condensados e revisados para apresentação neste estudo sem, contudo, alterar o sentido ori -
ginal) foram extraídos do texto produzido por ex-alunos Waldorf de São Paulo, publicado no site da Sociedade
Antroposófica do Brasil: http://sab.org.br/pedag-wal/artigos/gea-sabe-waldorf.htm.

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prerrogativas, por apresentar um desempenho comunicativo oral marcado por uma notória
autonomia - o que faz com que, em diferentes plateias a que estejam expostos, independente
do grau de formalidade do registro de linguagem, consigam se expressar com segurança e
adequação. Segurança, aliás, não parece ser o único atributo que caracteriza a expressão oral
desses estudantes.

Pesquisas que têm se debruçado a investigar o perfil de ex-estudantes Waldorf


(BARZ; RANDOLL, 2007, GERWIN; MITCHELL, 2007) têm apontado que, além de
pensarem por si próprios e de terem uma forte inclinação para por em prática as suas ideias,
demonstrando pensamento autônomo e grande capacidade criativa, esses indivíduos “são
guiados por uma bússola moral interior” que imprime um teor ético às suas condutas em sua
vida profissional e privada, valorizando as relações humanas e buscando formas de
participação ativa no meio em que vivem. Tanto no cenário estudantil quanto no profissional,
destacaram-se por atuar cooperativamente e buscar soluções criativas e coletivas para
problemas apresentados, demonstrando grande habilidade para o diálogo e interações
comunicativas, além de uma excelente capacidade de se expressarem através da linguagem
verbal. Assim se pronunciam professores universitários de ex-estudantes Waldorf: [esses
indivíduos] “têm a mesma abertura para a educação. Eles são flexíveis, criativos e dispostos,
intelectualmente, a correr riscos”. (...) Sua imaginação, suas nuances verbais, suas qualidades
de liderança certamente foram ricamente nutridas em sua escolarização anterior”246 .

Por outro lado, em um estudo para a UNESCO, Heiner Ullrich (1994) também
esclarece que pesquisas que se propõem a diagnosticar o grau de inserção do ex-estudante
Waldorf no contexto social sinalizam que, além de se mostrarem preparados para enfrentar os
desafios da vida e apresentarem maior capacidade de lidar com tarefas e responsabilidades
sociais, esses indivíduos demonstram ser portadores de uma grande autoconfiança - elemento
indispensável para um bom domínio da expressão oral.

Diante desse panorama, uma pergunta se abre para a compreensão das relações entre
educação e desenvolvimento da expressão oral: o que faz com que os estudantes Waldorf,
conforme atestam estudos e depoimentos, apresentem um domínio satisfatório da expressão
oral? Por que a Pedagogia Waldorf tem-se mostrado eficiente na promoção de um bom
desempenho comunicativo e expressivo dos estudantes? Que fundamentos e estratégias a
caracterizam? E como esses fundamentos ou estratégias relacionam-se ao desenvolvimento
da fluência expressiva dos educandos?

246Cf: GERWIN; MITCHELL, 2007. In: http://www.waldorflibrary.org/Journal_Articles/GradPhase2.pdf. Tra -


dução do original “all have the same broad approach to education. They are flexible, creative, and willing to
take intellectual risks”. (…) “His imagination, his nuanced verbal skills, and his leadership qualities had been
richly nourished in him by his prior schooling”.

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contemporâneas

3.1 Fundamentos epistemológicos e princípios didático-metodológicos da


Pedagogia Waldorf

Pode-se destacar como uma das características da Pedadogia Waldorf o fato de que a
sua fundamentação epistemológica e a sua orientação didático-metodológica estão embasadas
na Antroposofia, um método de conhecimento científico, filosófico e espiritual elaborado por
Steiner para compreender a natureza, o ser humano e o universo (bem como suas inter-
relações). Embora se proponha a integrar o conhecimento científico produzido a partir da
cosmovisão moderna, ao constatar de que o universo e o ser humano não são constituídos
apenas de matéria e energia físicas e redutíveis a processos puramente físico-químicos, a
Antroposofia postula a existência de um mundo sutil estruturado de forma complexa em
vários níveis, transcendendo, assim, a tradição positivista - que só considera válidos os
fenômenos verificáveis pelos órgãos dos sentidos físicos e suas extensões. Portanto, nos
primórdios do século XX, Rudolf Steiner já anunciava os fundamentos para uma
epistemologia baseada num enfoque transdisciplinar, atualmente bastante aclamada, ao
menos conceitualmente, em nossos círculos acadêmicos e científicos247. Além de possuir uma
aplicação prática na educação, a Antroposofia também fundamentado outras áreas do saber,
como a medicina, a agricultura, a arquitetura, a economia... enfim, diversas áreas do
conhecimento humano.

Como anunciou Steiner, “para saber como educar, é preciso saber primeiro o que é o
ser humano”. Apoiando-se num conhecimento do ser humano obtido a partir da compreensão
das etapas evolutivas que, segundo a Antroposofia, regem o seu desenvolvimento, Steiner
elaborou os princípios da Pedagogia Waldorf: o seu currículo e suas orientações didático-
metodológicas foram estruturados a partir desses fundamentos, de modo a orientarem-se para
as necessidades do educando em sua fase específica de desenvolvimento. Ampliando a teoria
aristotélica sobre a estruturação da vida segundo os setênios, Steiner (1996, 2003) explica o
desenvolvimento da criança segundo ciclos de sete anos: cada ciclo é marcado por
significativas modificações biológicas, fisiológicas e cognitivas que, por sua vez, exigem do
currículo métodos de aprendizagem e de ensino diferenciados (FEWB, 1999).

No primeiro setênio (0-7anos), o foco do desenvolvimento está no organismo


corpóreo, haja vista que, apesar de o nascimento demarcar que o corpo físico, externamente,
está pronto para vir ao mundo, os órgãos internos da criança ainda não estão em sua forma

247 Segundo Nicolescu (2001), a física quântica, ao esclarecer que as leis físicas são diferentes para os níveis
das escalas subatômicas (microfísico) e atômicas (macrofísico), e ao constatar que é possível a esses pares de
escalas contraditórias coexistirem nos sistemas naturais, instituiu uma ruptura na lógica e na epistemologia mo-
derna, preconizando que cada um desses dois níveis é regido por suas próprias leis - o que destitui o dogma da
cosmovisão mecanicista: a existência de um único nível de realidade.

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acabada. Em nenhuma outra etapa da vida, os órgãos do corpo físico sofrerão tantas
modificações como acontece nesses primeiros sete anos de vida.

O sistema metabólico-motor da criança de 0 a 7 anos está em intensa atividade; o que


permite observar que o movimento é, no primeiro setênio, a atividade mais importante para o
desenvolvimento físico desses pequeninos - ou melhor, para todo o seu desenvolvimento
psicomotor, porquanto exerce importante papel também para o seu desenvolvimento
neurológico e até mesmo cognitivo, uma vez que atua como um ativador das estruturas
neurológicas necessárias para a aprendizagem a ser requerida posteriormente no processo de
escolarização da criança.

Compreendendo a importância desse período para toda a vida do ser humano, Steiner
propôs um Jardim de Infância como um ambiente propício para que as crianças fossem
estimuladas ao movimento, ao livre brincar - e também às vivências imaginativas ricas. No
Jardim Waldorf, pois, as crianças brincam muito: mas, ao contrário do que usualmente tem
ocorrido nos jardins convencionais, não se busca direcionar o brincar da criança para um
determinado fim ou uma meta; antes, cuida-se para que esse brincar seja movido a partir da
própria demanda da criança, de seu próprio interesse e iniciativa. O fundamental é possibilitar
que a criança permaneça ao máximo no estado de fantasia proporcionado pela brincadeira,
que a sua imaginação seja exercitada ao máximo. Quanto ao trabalho dirigido do professor,
este ocorre, sim, muitas vezes com o objetivo de conduzir a criança para a vivência de sua
própria corporalidade através do movimento - mas isto se dá em momentos específicos,
sobretudo na condução da roda rítmica, que sempre acontece no início do dia, possibilitando
trabalhar, de forma bem lúdica, tanto o movimento da criança, quanto a sua imaginação e a
sua expressividade, recorrendo a uma série de estratégias como versos acompanhados de
movimentos organizados, recitação de poemas, canções...

Ao contrário do que é fomentado em nossa sociedade, orientada pelo signo do pensar


intelectual utilitarista, no Jardim de Infância Waldorf as crianças não são conduzidas à
alfabetização linguística e matemática precocemente. Segundo Wiltz (2005 apud
ARMSTRONG, 2008), muitas iniciativas escolares, amparadas ou até estimuladas pelos
organismos oficiais que estabelecem as diretrizes para a educação infantil, têm buscado uma
“conexão entre a pré-escola e o ensino fundamental” e a “criação de transição suave entre
ambos”, escondendo o fato de que, na maioria das vezes, “o objetivo é organizar a educação
infantil do modo mais parecido possível com a educação no ensino fundamental, e não o
contrário” (p. 78). Ora, cientes que, nesse estágio de desenvolvimento, as crianças ainda não
apresentam habilidades mentais necessárias a manipulação de símbolos, já que os

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prolongamentos de seus neurônios não completaram o processo de mielinização 248, os


professores Waldorf só começam a alfabetizar suas crianças a partir dos aproximados seis
anos e meio, quando diagnosticam que elas já sinalizam certa maturidade estrutural,
psicoemocional e sócio-afetiva - o que indica que estão prontas para o aprendizado escolar.
Essa orientação, inclusive, está de acordo com o que também destaca Piaget (1967, 1975) em
seus estudos sobre epistemologia genética, segundo os quais até os seis/sete anos, por ainda
encontrarem-se no estágio pré-operacional, as crianças não demonstram possuir recursos
cognitivos para operações objetivas necessária à alfabetização.

No Jardim Waldorf, os professores recorrem a um recurso pedagógico fundamental


para o desenvolvimento das crianças: a contação de histórias. Durante aproximadamente
quatro semanas, um mesmo conto é narrado, preferencialmente com as mesmas palavras e
com a mesma sequência de fatos, ao final de toda manhã. Dentre outros objetivos, essa
atividade possibilita à criança internalizar modelos de narrativas muitas vezes complexos,
possibilitando a vivência de diferentes possibilidades sintáticas e ampliando o repertório
vocabular de sua linguagem, já que, como anunciou Steiner, ouvindo histórias a criança
mobiliza e aprimora o seu falar. Afinal o ato de escrever é posterior ao falar, a escrita é a
codificação da fala.

Por outro lado, assinala Joseph Pearce (2002, p. 160), ao ouvir uma narrativa, o
cérebro da criança é estimulado a criar um fluxo correspondente de imagens - um desafio
para ela, já que este ato requer a atividade de muitos campos neurais. Cada nova narrativa a
que a criança é submetida gera uma nova sequência de interações entre os campos neurais. E
“quanto mais forte e permanente se torna a capacidade de interação verbo-visual, mais fortes
se tornam a conceituação, a imaginação e a atenção, enquanto o escopo e a flexibilidade das
capacidades neurais em geral aumentam”.

Ao assegurar o direito de a criança investir em seus jogos simbólicos, brincando


livremente movida pelas suas próprias demandas e exercitando ao máximo a sua fantasia; ao
criar um ambiente que cultiva a audição de contos, estimulando a interação o verbal e o
imagético, de modo a possibilitar o desenvolvimento do seu pensamento simbólico e, ao
mesmo tempo, permitindo que vivencie diferentes possibilidades sintáticas e amplie o seu
repertório vocabular, a Pedagogia Waldorf tem instituído um ambiente alfabetizador - não no
sentido de iniciar o trabalho formal de aproximação direta da escrita, mas sim no que diz

248 Trata-se do processo de revestimento dos axônios por uma capa ou bainha de mielina, substância lipoproteica
que possibilita aumentar a velocidade da transmissão dos estímulos nervosos ou impulsos elétricos (sinapses),
atribuindo maior eficiência na transmissão da informação pelos neurotransmissores. Uma vez que o processo de
mielinização, que se inicia ainda no período embrionário, mais precisamente no sétimo mês de gravidez, esten-
de-se até os seis/sete anos, a alfabetização precoce, ao estimular demasiadamente uma parte do cérebro racional,
proporciona um grande desgaste para o sistema nervoso central, de modo a favorecer, posteriormente, o desen-
volvimento de patologias degenerativas.

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respeito ao cultivo e ao desenvolvimento das habilidades necessárias e suficientes para que a


alfabetização linguística e matemática aconteça posteriormente de modo mais eficiente e
significativo para essas crianças.

Uma vez avançado o processo de maturação orgânica da criança, o foco do


desenvolvimento, no segundo setênio (7-14 anos), desloca-se para o aspecto psicoemocional,
mobilizando mais intensamente suas faculdades psíquicas (o que possibilitará a sua
progressiva utilização a serviço do pensamento e da aprendizagem), e, ao mesmo tempo,
proporcionando uma intensa vivência emocional (favorecida pelo desenvolvimento das suas
emoções, dos seus sentimentos). Nessa fase, as crianças adquirem habilidades mentais que
evidenciam uma forma diferenciada de abordar o mundo, caracterizada por uma lógica
interna mais consistente e pela habilidade de solucionar problemas concretos. Embora essas
novas realizações evidenciem que ela já consegue raciocinar de uma forma mais
interiorizada, dispensando a manipulação direta e aproximando-se mais da lógica adulta,
tanto os seus esquemas conceituais como as ações executadas mentalmente ainda se referem
a objetos ou situações passíveis de serem manipuladas ou imaginadas de forma concreta, já
que o tipo de raciocínio que realizam é de ordem bastante distinta daquele praticado pelo
adolescente249.

Nessa fase, a criança apresenta uma atitude “estética e fenomenológica” diante da


vida: o mundo lhe fala não pelo seu conteúdo conceitual, mas por seu aspecto e pela
configuração de seus fenômenos. Respeitando essa característica do educando, o processo de
ensino-aprendizagem no ensino fundamental Waldorf é conduzido não de forma abstrata e
teórica, como é a tônica no sistema convencional de ensino, mas a partir da vivência, da
observação e da descrição dos fenômenos. Ademais, em consonância com a disposição
sentimental e estética latente nessa fase, o currículo elege a arte como o pilar primordial de
toda a educação. Não se reserva, porém, um horário determinado para essas atividades à
margem dos demais estudos, como usualmente acontece na maioria das escolas
convencionais; ao contrário, as atividades artísticas são “o laço de união entre as diversas
matérias”. Acredita-se que, envolvido sentimentalmente, o educando vivenciará o
aprendizado de forma significativa.

No período correspondente ao terceiro setênio (14-21anos), o foco do


desenvolvimento se desloca para o desenvolvimento espiritual do adolescente, ou seja, para o
desenvolvimento da sua individualidade, despertando as forças do pensar lógico, abstrato e

249Assim como Steiner, também Piaget (1967, 1975), em sua teoria psicogenética, compreende que no período
dos 6/7 até os 12 anos, a que denomina de estágio operatório concreto, embora já manipule objetos da realida-
de, aproximando-se das regras, das operações lógicas, a criança ainda não o faz com abstração característica da
próxima etapa, o estágio das operações formais ou abstratas.

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conceitual do indivíduo - base para a formação do seu julgamento pessoal. Essa modificação
adequa-se a um ensino que estimule a vivência de princípios verificáveis e o estudo da
realidade fundamentado no exercício científico e intelectual. Como esclarece Rudolf Lanz
(2003), enquanto no ensino fundamental Waldorf os conteúdos giravam em torno da
realidade (e não da abstração), proporcionando a observação e descrição dos fenômenos,
nesse novo ciclo, o ensino volta-se para a abordagem das teorias conceituais, possibilitando a
compreensão da realidade através de princípios verificáveis e demonstrando as possíveis
explicações para os fenômenos.

De acordo com a Antroposofia, somente nesse setênio deve-se iniciar o estudo das
abordagens puramente formais, pois é nesse estágio de desenvolvimento que o sistema neuro-
sensorial do jovem apresenta a maturação necessária para cumprir essa tarefa sem prejudicar
outros aspectos do seu desenvolvimento; só então é que ele apresenta maturidade suficiente
para encarar o mundo do ponto de vista conceitual250.

Vale observar que, assim como a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino
médio Waldorf são organizados, respectivamente, de modo a atenderem às especificidades do
desenvolvimento dos aspectos volitivos (fazer), psico-emocionais (sentir) e cognitivos
(pensar) do educando, também a orientação didático-metodológica de cada aula, a partir do
ensino fundamental, busca a harmonização da tríade pensar, sentir, fazer, evitando a
unilateralidade em uma ou outra esfera, e procurando um equilíbrio entre conteúdos formais,
atividades artísticas e atividades corporais. A aula principal é organizada de modo a obedecer
esse princípio, alternando atividade mais intelectualizada e atividade prática ou artística.
Como na Educação Infantil, é também iniciada com atividades rítmicas: exercícios de canto
coral, recitação de poemas, música (flauta doce), intercalados por muito movimento, ritmo e
percussão corporal, atividades que possibilitam a vivência do próprio corpo, da lateralidade,
do espaço, com exercícios que também trabalham a linguagem oral, através da articulação e
da dicção.

Após a roda rítmica, é iniciada a parte da aula na qual o estudante faz uma
retrospectiva das atividades e do conteúdo trabalhado no dia anterior (pensar). No próximo
momento, para introduzir o conteúdo do dia, a professora primeiramente apresenta-o sob
forma de imagem (sentir), contextualizando-o através de alguma narrativa elaborada para
esse fim específico, para então, no dia seguinte, após a retrospectiva feita pelos estudantes,
dar-lhe novo tratamento, expandindo a abordagem. Finalmente, a professora solicita que,
através da escrita e/ou do desenho/pintura, exercitem a matéria apresentada no dia anterior na

250 Também para Piaget (1967, 1975), é nesse estágio, que denomina de estágio das operações formais ou abs -
tratas, que o adolescente apresenta estruturas mentais que o permitem realizar operações baseadas num tipo de
raciocínio abstrato.

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etapa (fazer). Dá-se, então, início à narrativa de um conto (ou continuação do conto) pelo
professor - que também é precedido pela retrospectiva no que fora narrado no dia anterior.
Sueli Passerini (1998) esclarece que há um material narrativo específico para cada estágio de
desenvolvimento do coletivo de estudantes da classe, e que esse material constitui o pilar
fundamental sobre o qual se desenvolvem todos os conteúdos específicos do ano letivo.

Na segunda parte da aula, alternam-se, ao longo da semana, atividades de Artes


Plásticas (aquarela, escultura, marcenaria, desenho), Artes Cênicas (euritmia251, arte da
fala252, teatro), Trabalhos Manuais, Língua Estrangeira, Educação Física e Jardinagem, todas
regularmente trabalhadas de forma bastante articulada com os conteúdos formais de cada
época253, visando formar um todo orgânico, sob perspectiva interdisciplinar.

Se, a partir do que nos ensinou Luckesi, podemos dizer que uma educação lúdica é
aquela que propicia a plenitude da experiência formativa, reivindicando não apenas a
racionalidade do educando, mas sua presença “inteira” em sala de aula (pensar, sentir e fazer
integrados e, em uníssono, favorecendo e estimulando aprendizagens verdadeiramente
significativas), podemos, portanto, concluir que a Pedagogia Waldorf atende,
verdadeiramente, aos pressupostos essenciais da educação lúdica. Como vimos, a grande
contribuição da Pedagogia Waldorf é demonstrar, em sua organização curricular e
metodológica, um caminho efetivamente em curso em direção à integração entre o pensar, o
sentir e o fazer no âmbito da educação formal, atendendo aos anseios e necessidades do
paradigma educacional emergente. Ao anunciar que “a educação deve contribuir para o
desenvolvimento total da pessoa - espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido
estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade” (DELORS, 2001, p.99), o Relatório da
Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI referenda e convalida o que,
desde o início do século XX, vem sendo desenvolvido pelas escolas orientadas pela
cosmovisão de Rudolf Steiner.

4 A Pedagogia Waldorf e o desenvolvimento da expressão ora: tecendo os fios

251 A Euritmia é uma arte de movimento corporal criada por indicação de Rudolf Steiner.

252A Arteda Fala é uma atividade que explora os sons das palavras dispostas poeticamente, enfatizando os fo -
nemas do ponto de vista rítmico ou a métrica implícita em versos intencionalmente selecionados.
253Diferentemente da rotina escolar convencional, quando em um turno se sucedem aulas de várias matérias, na
Pedagogia Waldorf, durante o período de aproximadamente um mês, uma única matéria é destacada como tema
principal, de modo que as demais atividades que compõem o currículo são a ela relacionadas com o intuito de
complementá-la, sob perspectiva interdisciplinar.

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O estudo desenvolvido em minha tese de doutoramento teve como objetivo investigar


a relação entre a Pedagogia Waldorf e o desenvolvimento da expressão oral dos estudantes. A
questão que norteou toda a pesquisa foi: como, ou de que forma, a Pedagogia Waldorf
contribui para desenvolver nos educandos o seu potencial comunicativo e expressivo? Para
respondê-la, além dos estudos bibliográficos, foi realizado um estudo de caso com uma classe
de 5o ano de uma escola Waldorf localizada no estado de São Paulo. A partir de um
diagnóstico da expressão oral dos estudantes ao início e ao final da pesquisa, o estudo
empírico buscou verificar os efeitos das intervenções pedagógicas realizadas ao longo de dois
anos letivos no desempenho comunicativo dos estudantes, bem como localizar, através de
observação sistemática em sala de aula, do exame do currículo para as séries escolares e do
planejamento docente, aspectos da organização didática e metodológica do ensino Waldorf
que pudessem estar associados ao desenvolvimento da expressividade dos educandos.

Como já sinalizado, um pré-requisito básico para uma educação comprometida com o


desenvolvimento da expressão oral dos estudantes é o seu compromisso com a formação
integral do sujeito. Na Pedagogia Waldorf, esse compromisso, longe de se restringir a um
conjunto de conceitos que possam constituir o arcabouço teórico-conceitual construído pelos
professores por ocasião de seu processo de formação profissional, está claramente articulado
com a práxis pedagógica. Neste sentido, algo que chama a atenção é que, além de a
Pedagogia Waldorf ser uma proposta que se fundamenta numa cosmovisão caracterizada pela
compreensão de ser humano baseada em aspectos bio-psíquico-espirituais, superando o
reducionismo e a fragmentação característicos da educação moderna, a prática pedagógica
dos seus professores mostra-se bastante arraigada a esses princípios, evidenciando uma
correlação íntima entre os fundamentos filosófico-espistemológicos da Pedagogia Waldorf, a
organização didático-metodológica que advém desses princípios e a efetiva ação docente.

Para o professor Waldorf, o estudante não é visto simplesmente como um ser


pensante: é uma individualidade que apresenta um corpo físico, uma alma e um espírito. No
processo de educação dessa individualidade, ele deve estimular os elementos que
possibilitem a esse ser único desenvolver-se em sua totalidade. Logo no Jardim de Infância,
saltam aos olhos procedimentos e atitudes dos professores Waldorf que se apresentam muito
favoráveis ao desenvolvimento de uma individualidade em formação, inclusive atuando
positivamente na capacidade de expressão oral desses indivíduos: o estímulo ao movimento
livre, ao brincar, e às vivências sensoriais ou imaginativas ricas. Para a criança, o brincar é
uma atividade essencialmente caracterizada pelo diálogo instituído entre a sua experiência
interna e a expressão exterior dessa experiência, ou como diz Luckesi (2002) é um caminho
para expressar, metaforicamente, sua intimidade. A brincadeira é, nessa faixa etária, o

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contemporâneas

instrumento fundamental através do qual a criança expressa o que ainda não consegue
exprimir através da fala, sendo o fundamento essencial que a possibilita dar os primeiros
passos a caminho de uma auto-expressão que se manifestará de forma mais elaborada através
da linguagem oral.

Com relação ao segundo setênio, os instrumentos de estímulo à auto-expressão


desenvolvido no Jardim ganham nova roupagem. O elemento artístico vivenciado
anteriormente através do brincar assume novas configurações. Aliás, a orientação para que,
nesse período, o mundo vivenciado seja belo já sinaliza um dos pontos essenciais de toda a
tônica da educação fundamental Waldorf: a intensa vivência artística da criança, cada vez
mais intercalada, ritmicamente, com as atividades cognitivas específicas que começam a ser
desenvolvidas. Assim como para a criança pequena o brincar era a expressão de sua
interioridade - e favorecê-lo era um meio de proporcionar o desenvolvimento da auto-
expressão necessária ao desenvolvimento da expressão oral - agora também a experimentação
artística se mostra mais definida para esse propósito.

No Ensino Fundamental Waldorf, percebe-se um trabalho especificamente


relacionado ao desenvolvimento da expressão oral dos estudantes, no qual os aspectos
discursivos da fala são desenvolvidos com o mesmo cuidado, com a mesma atenção e com a
mesma regularidade dos aspectos plásticos ou estéticos. As sucessivas recitações que são
estimuladas tanto na roda rítmica como na arte da fala, os exercícios de dicção e articulação,
o coral, os jograis, a música, as dramatizações e o teatro se manifestam, no currículo, como
atividades eminentemente relacionadas aos aspectos plásticos da fala, atuando sobre e
favorecendo o fortalecimento do componente anímico desses indivíduos. Ao apresentarem
regularmente as produções respectivas a essas atividades nos encontros grupais e nas festas
comemorativas (assim como ao apresentar o relatório do conteúdo das épocas temáticas em
reuniões periódicas com o grupo de pais), esses estudantes criam uma cultura de exposição
pública especialmente favorecedora à desinibição, desenvolvendo uma espontaneidade que
muito o ajudará, no futuro, em situações similares nas quais necessitar se expor oralmente.

A retrospectiva diária do conteúdo do dia anterior, ou da narrativa apresentada no


final da aula do dia anterior, é o correspondente discursivo do trabalho com a linguagem oral
nessas séries. Esse trabalho realizado diariamente reflete, do ponto de vista metodológico, o
grande investimento formal dessa pedagogia no desenvolvimento do potencial expressivo dos
estudantes. À medida que o educando traz, no dia seguinte à explanação do professor, o
conteúdo apresentado no dia anterior, ele não o faz repetindo as mesmas palavras do seu
mestre, nem necessariamente através das mesmas estruturas linguísticas por ele utilizadas; ao
contrário, traz aquilo que já foi “transformado”, revelando, diariamente, uma elaboração
pessoal. Por outro lado, se observarmos a estrutura de uma aula principal numa escola

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Waldorf, logo identificaremos que o estudante desfruta de uma quantidade de turnos de fala
proporcionalmente correspondentes àqueles utilizados por seu professor, de modo que,
diferentemente do que é usual nas instituições tradicionais de ensino, a fala, nessas escolas,
não se configura como uma atividade eminentemente docente.

Cabem, ainda, algumas considerações sobre o que o Ensino Médio Waldorf traz de
específico com relação ao desenvolvimento expressão oral dos estudantes. Considerando-se
que, no terceiro setênio, o jovem está, de acordo com a Antroposofia, pronto para o pensar
lógico, analítico e sintético, o grande esforço dessa Pedagogia, agora, é promover situações
nas quais esse jovem possa formular o seu próprio juízo de valor. Esse esforço perpassa pela
disposição de seus professores em criar situações, também através da linguagem oral, para
que os estudantes sejam estimulados a exercitar o seu pensamento de forma autônoma e
crítica. Assim, tendo passado pelo estímulo à elaboração pessoal através do exercício diário
da retrospectiva dos conteúdos do dia anterior, esses jovens dão um passo adiante no que se
refere ao desenvolvimento do seu potencial comunicativo e expressivo, em prol da
construção de um discurso pessoal.

A esses aspectos particulares do ensino Waldorf, estão associadas outras


considerações que, extraídas da análise dos dados apresentados, mostram-se fundamentais
para a discussão aqui empreendida. Nesse sentido, cumpre destacar o que trouxe de
contribuição os diagnósticos inicial e final da expressão oral dos estudantes. No início da
pesquisa, muito embora a maioria dos estudantes da classe observada tenha demonstrado um
bom domínio da oralidade, manifestando-se com clareza, organização e adequação ao
registro específico de linguagem requerido pelas situações comunicativas promovidas, a
timidez, localizada como o maior impedimento para o domínio de uma expressão oral mais
espontânea na classe, apresentava-se ou já havia se apresentado como um fator restritivo
também à expressividade oral de alguns desses estudantes. E, uma vez que, dentre os
estudantes beneficiados pelo programa de integração social da escola254, 88,88%
apresentaram dificuldades com relação ao seu potencial comunicativo e expressivo, o fator
classe social revelou-se muito significativo com relação ao desempenho oral dos estudantes
da classe.

Também a variável ano de ingresso na escola repercutiu na configuração desse


diagnóstico, apontando uma grande diferença entre os estudantes matriculados na escola
Waldorf desde o início de sua escolarização e aqueles que chegaram para a classe no meio do

254 Graças a ajudas financeiras provenientes de organismos internacionais, a escola pesquisada recebe estudan -
tes de diferentes segmentos sociais. Dentre os estudantes do 5º ano, 30% eram beneficiados pelo programa de
bolsas concedidas àqueles que integram categorias menos favorecidas socioeconomicamente: 23,33% estudan-
tes recebiam bolsa integral e 6,66% bolsa parcial.

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contemporâneas

ensino fundamental. Além de não terem manifestado facilidade para exprimirem seus
pensamentos e seus sentimentos, demonstrando muita dificuldade para destacar o objetivo e
essencial para a comunicação, os egressos de escolas convencionais frequentemente
utilizavam a fala de modo agressivo e/ou desrespeitavam os turnos de fala alheios,
evidenciando uma grande dificuldade de ouvir e partilhar o espaço de enunciação - o que os
diferenciava muito dos veteranos da classe.

Por sua vez, o diagnóstico final possibilitou constatar que houve um crescimento
significativo do grupo com relação às suas habilidades comunicadoras, quer na qualidade dos
enunciados, que evidenciavam uma maior objetividade e seleção do essencial a ser
comunicado, quer na segurança e desenvoltura manifestas por esses estudantes nas ocasiões
de exposição oral - inclusive em se tratando daqueles que haviam se destacado por apresentar
maior timidez. Entretanto, por se tratar de uma classe composta por indivíduos que possuíam
singularidades e histórias de vidas diferenciadas (o que é uma realidade em todas as classes
de toda e qualquer escola), que atende estudantes com realidades socioeconômicas e culturais
diferenciadas e também convive com indivíduos portadores de habilidades e necessidades
cognitivas e psico-emocionais específicas, não se pode afirmar que todas as conquistas
tenham se deixado flagrar com a mesma intensidade ou de modo uniforme. Como
comprovam os dados, conquistas relacionadas ao desempenho comunicativo e expressivo dos
estudantes indubitavelmente foram asseguradas: embora algumas tenham sido mais notórias
do que outras, todas anunciam que houve um movimento crescente e consistente nesse
sentido.

Um último destaque cabe, ainda, à dimensão estética dessa proposta pedagógica e


suas relações com o desenvolvimento expressivo dos educandos sujeitos desta pesquisa.
Como sinalizado, a arte, na Pedagogia Waldorf, é o pilar primordial de toda a educação, e é a
estratégia fundamental para promover a integração entre o sentir, o pensar e o fazer do
educando. As diversas atividades artísticas que foram regularmente trabalhadas no cotidiano
escolar de forma articulada com os conteúdos conceituais e anímicos permitiram, cada uma
através de seus veículos específicos, que o estudante exteriorizasse o que ele pensa e o que
ele sente. Quando o currículo Waldorf cria condições para que os estudantes possam se
exprimir através de variadas linguagens expressivas, inclusive aquelas que não
necessariamente utilizam como forma de expressão a palavra falada, ele está favorecendo o
desenvolvimento do potencial expressivo do estudante como um todo - o que, por extensão,
favorece também a sua capacidade de expressão oral. Nesse sentido, a investigação realizada
ao longo de dois anos letivos revelou que muitos dos estudantes que, por ocasião da
sondagem inicial, demonstraram timidez ou mostraram-se inseguros e pouco confiantes para
expressarem nas situações em que lhes era demandada o uso da palavra falada, graças às
possibilidades que lhes foram asseguradas em uma ou outra modalidade de expressão

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contemporâneas

artística, gradualmente expandiram essas conquistas a outros domínios expressivos, como o


da fala, e já evidenciavam, na sondagem final, maior autoconfiança e espontaneidade para
enfrentarem as situações de exposição oral.

Creio que, através do entrelaçado neste texto, é possível compreender o motivo pelo
qual a Pedagogia Waldorf tem criado meios para que, através de sua perspectiva ludoestética,
os estudantes possam desenvolver as várias instâncias constitutivas do seu SER em
(trans)formação, apropriando-se de uma auto-expressão mais inteira e significativa. Do latim
expressione, “expressão”, em seu sentido primordial, significa pressão para fora. Se
relacionarmos a acepção desse vocábulo com o correspondente etimológico de “educação” -
do latim educere: conduzir de dentro de, identificaremos que, em seu significado essencial, a
educação traz para si o compromisso de promover o desabrochar da autêntica expressão do
sujeito, de modo a criar condições para que a sua interioridade possa emergir de forma plena.
Afinal, só um sujeito que se constitui enquanto tal é que poderá se apropriar da sua expressão
em plenitude. E esse tem sido, historicamente, um compromisso da Pedagogia Waldorf.

REFERÊNCIAS

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Concepções do ensino do papel do professor de língua portuguesa na formação


docente

Eliana Merlin Deganutti de Barros


Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Brasil
edeganutti@hotmail.com

1 Introdução

Este trabalho insere-se nas pesquisas realizadas no projeto “Gêneros do jornal como
objetos de transposição didática”, desenvolvido na Universidade Estadual do Norte do Paraná
(UENP), Paraná, Brasil, cujo objeto são os processos de transposição didática
(CHEVALLARD, 1989) de gêneros jornalísticos desenvolvidos no contexto do subprojeto de
ensino “Letramentos na Escola: práticas de leitura e produção textual”, inserido no Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) financiado pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Nos anos de 2014 e 2015 tal subprojeto desenvolveu ações em torno de um projeto
didático voltado para a construção de um jornal escolar (O Jornal PIBID), tendo como
respaldo os pressupostos teórico-metodológicos do Interacionismo Sociodiscurso (ISD)
(BRONCKART, 2003; SCHNEUWLY; DOLZ, 2004; entre outros), valendo-se da
metodologia das sequências didáticas de gêneros (cf. DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY,
2004; BARROS, 2013).

Para este trabalho, o objetivo é buscar indícios (com apoio do paradigma indiciário de
GINZBURG, 2007) de concepções do ensino e do papel do professor de língua portuguesa
pressupostos pela discursividade da escrita de diários de campo e pela planificação de
sequências didáticas elaboradas por pibidianos, professores em formação inicial. A finalidade
é verificar como os futuros professores estão representando o ensino, já que a formação
recebida no subprojeto centra-se num paradigma interacionista, numa proposta de
rompimento com o ensino tradicional e fragmentado da língua portuguesa.

A análise não parte, dessa forma, de categorias pré-estabelecidas, mas busca, por meio
da articulação com o contexto da produção, interpretar as concepções de ensino e do papel
dos professores em formação, explícitas ou subentendidas, reveladas nos diários das
intervenções e nos materiais didáticos produzidos pelos docentes em formação. Nesse
processo, objetiva-se, também, trazer à tona os gestos didáticos (AEBY-DAGHÉ; DOLZ,
2008; NASCIMENTO, 2014) pressupostos nas na planificação das SDG e nos diários críticos
escritos após as intervenções didáticas.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

2 O contexto da geração dos dados e a metodologia de análise

O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) é financiado pela


Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), oferecendo
bolsas a estudantes de Licenciatura, professores de Universidades e da Educação Básica.
Seu objetivo é promover uma articulação entre as Licenciaturas e as Instituições de
Ensino, possibilitando um imbricamento entre teoria e prática na formação docente. O
Programa tem como foco as escolas com baixo Índice de Desenvolvimento de Educação
Básica (IDEB).

Na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), o PIBID teve início em 2012.


Em 2014 foi iniciado o subprojeto “Letramentos na escola: práticas de leitura e produção
textual”, o qual visa promover “[...] a ampliação da competência comunicativa do aluno para
falar, ouvir, ler e escrever textos fluentes, adequados e socialmente relevantes” (ANTUNES,
2003, p. 122), conforme os objetivos das Diretrizes Curriculares da Educação Básica do
Paraná (PARANÁ, 2008), que preveem o trabalho com o ensino da Língua Portuguesa, tendo
em vista a articulação dos quatro grandes eixos: leitura (literatura e demais esferas sociais),
escrita, oralidade e análise linguística. O subprojeto é desenvolvido em duas frentes: uma
com foco no letramento literário e, outra, nos gêneros do jornal. É esse segundo eixo, por nós
coordenado, o objeto empírico do nosso projeto de pesquisa “Os gêneros da mídia jornalística
como objetos da transposição didática externa”.

Esse eixo do subprojeto contempla duas escolas estaduais e, consequentemente, duas


docentes (denominadas pelo PIBID como “professoras supervisoras”), além de onze alunos-
bolsistas da graduação em Letras da UENP. O objetivo das ações centra-se na transposição
didática de gêneros jornalísticos, com vistas à construção colaborativa de um jornal escolar –
o Jornal PIBID (2014, Primeira Edição; 2015, Segunda Edição).

Para dar conta dessa proposta, as ações do subprojeto PIBID são planejadas, levando-se
em conta tanto a formação docente como a execução das atividades didáticas de sala de aula.
De forma geral, as ações são estruturadas da seguinte forma: 1) leituras diversas para
discutir questões teórico-metodológicas que fundamentam o subprojeto; 2) observação do
contexto de intervenção; 3) realização de oficinas de leitura nas escolas-parceiras (turmas
pré-selecionadas); 4) oficinas de elaboração de gêneros do jornal; 5) elaboração de modelos
didáticos dos gêneros selecionados para fazer parte do jornal escolar; 6) elaboração das
sinopses das SDG a serem produzidas; ; 7) planificação das SDG, a partir de uma linguagem
instrucional, uma vez que, ao final, elas são transformadas em um caderno pedagógico a ser

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

distribuído na rede pública de ensino da região; 8) intervenção nas turmas selecionadas, com
escrita de diários reflexivos.

Para este artigo, a finalidade é interpretar as concepções de ensino e do papel de


professores em formação participantes do subprojeto PIBID, em articulação com a noção de
gestos didáticos (AEBY-DAGHÉ; DOLZ, 2008; NASCIMENTO, 2014) assumidos pelo ISD.
A intenção é que os resultados possam dar subsídios para que possamos reavaliar as ações
empreendidas no subprojeto.

Para a análise tomamos como corpus diários das intervenções didáticas escritos por
dois pibidianos nos anos de 2014 e 2015, assim como duas SDG que conduziram as
intervenções realizadas pelos dois alunos-pibidianos (professores em formação incial) no ano
2015, produzidas colaborativamente pelos participantes do subprojeto: uma do gênero
“reportagem” e outra do gênero “artigo de opinião”. A escolha dos sujeitos de pesquisa deve-
se ao fato de os dois participarem do subprojeto nos dois anos anteriores: 2014 e 2015. Dessa
forma, é possível traçar uma comparação entre as concepções assumidas ano a ano. De certa
forma, nós também somos sujeito da pesquisa, pois a pesquisa maior que dá embasamento a
essa análise parte de uma pesquisa colaborativa da qualfaço parte, como coordenadora do
subprojeto PIBID.

Em relação às análises, apoiamo-nos metodologicamente na noção de paradigma


indiciário de Ginzburg (2007): conjunto de procedimentos que propõe um método que busca
o detalhe, pistas e indícios que possam ser interpretados pelo pesquisador.

Mas pode o paradgma indiciário ser rigoroso? A orientação quantitativa e


antiantropocêntrica das ciências da natureza a partir de Galileu colocou as ciências
humanas num desagradável dilema: ou assumir um estato científico frágil para chegar a
resultados relevantes, ou assumir um estato científico forte pata chegar a resultados de
pouca relevância. Só a linguística conseguiu, no decorrer deste século, subtrair-se a
esse dilema, por isso pondo-se como modelo, mais ou menos atingido, também para
outras disciplinas (GINZBURG, 2007, p. 178).

Tendo como base esse paradima metodológico, a análise não parte, assim, de categorias
pré-estabelecidas, mas busca, por meio indícios discursivos e enunciativos, subsidiar
interpretações pertinentes aos objetivos traçados.

3 O ISD e a concepção teórico-metodológica que embasa as sequências didáticas


de gêneros
O construto teórico norteador da pesquisa são os estudos do Interacionismo
Sociodiscursivo (ISD), desenvolvidos pelos pesquisadores do conhecido Grupo de Genebra.
Tem como tese geral é de que “as propriedades específicas do comportamento humano

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resultam de uma socialização particular que é possibilitada pela emergência histórica de


instrumentos semióticos” (BRONCKART et al., 1996, p. 69).

O ISD, assim como desenhado pelo Grupo de Genebra, se inscreve ao mesmo tempo
em uma variante e um prolongamento do Interacionismo Social (VIGOTSKI, 2008),
aceitando, a priori, as principais ideias fundadoras desse segmento. Mais que uma ciência
linguística, psicológica ou sociológica, o ISD pretende ser uma corrente da ciência do
humano, cuja problemática central está no desvendamento das atividades linguageiras.

Bronckart (2006b), no entanto, recusa certo determinismo “definitivo” do


interacionismo social. Para o autor, sustentar que as práticas de linguagem estão na origem de
todo funcionamento do propriamente humano não pode levar a contestar essa “realidade
indiscutível que constitui a emergência de capacidades cognitivas gerais, tendendo a abstrair
diferenças sociais, culturais ou linguageiras, tais como Piaget notadamente as descreveu” (p.
8). O ISD não desconsidera tais capacidades cognitivas universais, mas as entende como
secundárias em relação às capacidades do pensamento orientadas pelo sócio-histórico e pela
interação linguageira. Consequentemente, para se compreender aquilo que é específico no
funcionamento humano, propõe uma abordagem descendente na qual “é necessário analisar,
primeiramente, as características do agir coletivo, porque é nesse âmbito que se constroem
tanto o conjunto dos fatos sociais quanto as estruturas e os conteúdos do pensamento
consciente das pessoas” (BRONCKART, 2006a, p. 137).

Em sua vertente didática, o ISD adota a perspectiva da “transposição didática”,


conceito explorado sistematicamente pelo educador Yves Chevallard (1989):

Conhecimentos não são, com poucas exceções, criados para serem ensinados, mas para
serem usados. Ensinar um conjunto de conhecimentos é, portanto, um projeto altamente
artificial. A transição do conhecimento como ferramenta para ser colocada em uso a um
conhecimento como algo a ser ensinado e aprendido é precisamente o que tenho
denominado de transposição didática do conhecimento (CHEVALLARD, 1989, p. 6 –
tradução nossa).

Transposição didática é, assim, o processo de transição pelo qual um saber de


referência (ao mesmo tempo teórico e social) passa para que seja transformado em saberes
didáticos. Para que os saberes de um objeto teórico/social sejam alvos de uma transposição
didática, eles necessitam passar, segundo Chevallard (1989), por três níveis básicos de
transformação: 1) os saberes teóricos sofrem um primeiro processo de transformação para
constituir os saberes a serem ensinados (saberes disciplinares)- transposição didática externa;
2) esses se transformam em saberes efetivamente ensinados; 3) os quais se constituirão em
saberes efetivamente aprendidos – transposição didática interna.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A vertente didática do ISD toma como objeto principal do ensino da língua os gêneros
textuais, instrumentos semióticos, de cunho sócio-histórico, que estão na base do
desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Entretanto, na nossa sociedade, para que
haja realmente a sua apropriação, é preciso que sejam mobilizadas instituições educacionais
formalizadas, ou seja, essa é uma tarefa que compete, sobretudo, às escolas.

A vertente didática do ISD e seus pesquisadores têm desenvolvido estudos em todos


os níveis da transposição didática, a partir de um instrumental teórico-metodológico que tem
possibilitado a concretização e possível avaliação/investigação desse processo. Esses
instrumentais inserem-se em uma engenharia didática, a qual é constituída, basicamente, por
duas ferramentas: 1) o modelo didático do gênero; 2) a sequência didática de gêneros.

A primeira ferramenta, o modelo didático, refere-se um artefato construído


explicitamente, ou mobilizado implicitamente, pelo professor ou pesquisador. É uma
ferramenta descritiva e operacional que, quando construída, facilita a apreensão da
complexidade de um determinado objeto a ensinar. Ele permite visualizar as características
(contextuais, discursivas, linguísticas) de um gênero (objeto linguageiro privilegiado desta
pesquisa) e, sobretudo, facilita a depreensão das suas dimensões ensináveis. Para Dolz,
Gagnon e Decândio (2010), o modelo didático refere-se a uma construção em engenharia
didática que explicita três dimensões: 1) a sistematização dos saberes de referência em
relação a uma prática de linguagem (busca pelas vozes dos especialistas do gênero); 2) a
descrição das características do gênero (contextuais, discursivas, linguísticas); 3) observação
das capacidades de linguagem dos aprendizes.

A vertente do ISD focada na didática das línguas busca articular práticas de


linguagens de referências (sempre configuradas em um gênero textual) a um projeto de
comunicação coletivo, concretizado pela metodologia das sequências didáticas de gêneros
(SDG – cf. BARROS, 2013). Essa metodologia, embasada na concepção sociointeracional da
língua e do ensino, prevê o desenvolvimento de oficinas didáticas para que os alunos
trabalhem sistematicamente para a resolução de um problema de comunicação (de
preferência real, ou ficcionalizado pela ação do professor), a fim de que possam se apropriar
do seu funcionamento e se tornem, ao longo do tempo, produtores competentes desses
gêneros (ou de outros semelhantes).
A SDG é “um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática,
em torno de um gênero textual oral ou escrito” (DOLZ, NOVERRAZ E SCHNEUWLY,
2004, p. 97). Ela tem como finalidade:

. preparar os alunos para dominar sua língua nas situações mais diversas da vida
cotidiana, oferecendo-lhes instrumentos precisos, imediatamente eficazes, para
melhorar suas capacidades de escrever e de falar.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

. desenvolver no aluno uma relação consciente e voluntária com seu comportamento de


linguagem, favorecendo procedimentos de avaliação formativa e de auto-regulação;
. construir nos alunos uma representação da atividade de escrita e de fala em situações
complexas, como produto de um trabalho, de uma lenta elaboração (DOLZ,
NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 110).

A estrutura de base da SDG é representada, segundo os autores genebrinos, por quatro


fases: 1) apresentação da situação (presentificação do gênero e do projeto de comunicação);
2) primeira produção (avaliação diagnóstica); 3) módulos (oficinas para se trabalhar os
problemas específicos do gênero); 4) produção final (a partir de um processo de revisão/
reescrita textual).

Segundo os autores Genebrinos, para o sucesso dessa metodologia de ensino da língua


é imprescindível a observação de alguns pontos essenciais, sendo que aqui destacamos dois:
1) o caráter modular da SDG; 2) os princípios teóricos subjacentes à metodologia das SDG.
Em relação ao primeiro, os autores colocam o caráter modular das SDG como o princípio
geral de concretização dessa metodologia. Segundo Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p.
110), a SDG deve sempre destacar

[...] os processos de observação e descoberta. [...] distanciar-se de uma abordagem


“naturalista”, segundo a qual é suficiente “fazer” para provocar a emergência de
uma nova capacidade. [...] evita uma abordagem “impressionista” de visitação. Ao
contrário, [...] se inscreve numa perspectiva construtivista, interacionista e social
que supõe a realização de atividades intencionais, estruturadas e interativas que
devem adaptar-se às necessidades particulares dos diferentes grupos.

Como vemos, o caráter modular dá ênfase à “prática” escolar, visando à apropriação,


pelos estudantes, das práticas de linguagem tomadas como objeto de ensino, mas rejeitando
uma visão “simplória” de que só fazendo se aprende a fazer. O objetivo é fazer com que as
atividades sistematizadas nos módulos façam com que os alunos tomem consciência do
funcionamento e das regularidades mais evidentes de um gênero textual, para que possam, no
processo de construção de identidade como produtores de textos, assumirem o papel de
sujeitos-atores do seu dizer.

Em relação ao segundo ponto destacado pelos autores genebrinos, os princípios


teóricos subjacentes à metodologia das SDG, o ISD destaca o paradigma sociointeracionista
que dá embasamento à sua proposta, o qual prevê, no campo da educação, um rompimento
com o ensino tradicional e fragmentado da língua. Paradigma esse que concebe a língua
como ferramenta da interação interpessoal (BAKHTIN, 2003); que mesmo aderindo aos
pressupostos do Interacionismo Social (VIGOTSKI, 2008) nega certo determinismo
“definitivo” da influência do social (cf. BRONCKART, 2006a); que pensa o ensino a partir
de uma abordagem descendente, que parte do mais complexo (objetos discursivos que

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

circulam no meio social) para o mais simples (toda a engrenagem linguística que aciona o
funcionamento da língua em sua completude).

No que diz respeito ao entendimento de “ensino tradicional”, Angelo (2005) faz as


seguintes considerações:

Essa imagem [do ensino tradicional] foi se transformando, ao longo das últimas
décadas, em um conhecimento definitivo e tem possibilitado escrever a história desse
ensino. [...] [A pesquisa] evidenciou que o ensino tradicional não pode ser
compreendido como um lugar estável nem único. Sob a sua denominação geral se
escondem etapas que se sucedem, cada uma delas trazendo pequenas alterações em
relação à etapa anterior, que são acréscimos, ajustes para se adequar às exigências
vividas em cada período (ANGELO, 2005, p. vi).

Nesse sentido, não é possível dar uma única definição para ensino tradicional, pois é
um conceito que vai ganhando contornos diferentes a cada contexto. Dessa forma, nas nossas
análises tomamos o cuidado de explicar a concepção de ensino tradicional pressuposta nos
dados pesquisados.

4 O agir docente: foco nos gestos didáticos

Um dos focos de análise dos dados gerados pela nossa pesquisa são os gestos
didáticos255 do professor (cf. AEBY-DAGHÉ; DOLZ, 2008; NASCIMENTO, 2014),
movimentos discursivos e pragmáticos – ou seja, verbais e não verbais – que direcionam o
agir docente. Neste trabalho desassociamos a noção de gestos didáticos exclusivamente das
ações corporais: “trata-se de movimentos didáticos, configurações de ações que favorecem a
construção do objeto ensinado em sala de aula, visando à aprendizagem do
aluno” (OLIVEIRA, 2012).

Aeby-daghé e Dolz (2008) apresentam duas categorias de gestos didáticos: a) os


gestos fundadores, relacionados às práticas estabilizadas convencionalmente pela instituição
escolar; e b) os gestos específicos, relacionados às necessidades singulares impostas pela
transposição didática interna de um objeto de ensino.

Quanto aos gestos didáticos fundadores, Aeby-Daghé e Dolz (2008, p. 85-86), com
base em suas pesquisas no contexto suíço, propõem a seguinte classificação:

Quadro 1 – Gestos didáticos fundadores

255Neste trabalho, consideramos os gestos didáticos como um subconjunto dos gestos profissionais, uma vez
que contemplamos a atividade do professor dentro do âmbito profissional – como trabalho.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Gestos didáticos fundadores Descrição

01 Presentificação Tem por finalidade apresentar aos alunos os objetos do saber


que passarão por um processo de didatização, por meio de
dispositivos adequados.

02 Focalização Focaliza uma (ou mais) dimensão ensinável do objeto a ensi-


nar – desconstrução e colocação em evidência dessas dimen-
sões.

03 Formulação de tarefas É a porta de entrada dos dispositivos didáticos; sua concreti-


zação envolve a utilização de comandos.

04 Implementação de atividades São os meios para enquadrar uma atividade escolar – pressu-
dispositivos didáticos põe a mobilização de suportes (textos, esquemas, objetos reais,
etc.).

05 Apelo à memória das aprendi- Pressupõe a colocação do objeto de ensino na temporalidade


zagens (ou memória didática) escolar para permitir convocar a memória das aprendizagens.
A memória didática “faz parte do métier do professor, cons-
ciente ou inconscientemente” (BARROS, 2013, p.116).

06 Regulação Refere-se à “[...] coleta de informação, interpretação e, se


necessário, a correção do objeto de ensino de uma se-
quência de ensino” (SCHNEUWLY, 2009, p. 38, tradução
nossa). Inclui dois fenômenos intrinsecamente relacionados:
as regulações internas e as regulações locais. As regulações
internas, centradas nas estratégias para obter as informações
sobre o estado dos conhecimentos dos alunos (processo diag-
nóstico – ver BARROS, 2015), podem estar no início, durante
ou no fim de uma atividade didática. As regulações locais
operam durante as atividades didáticas, em uma discussão com
os alunos ou no decorrer de uma tarefa. A avaliação é conside-
rada um gesto didático específico de regulação.

07 Institucionalização “Constituída pelos gestos direcionados para a fixação do saber


(externo) que deve ser utilizado pelos aprendizes nas circuns-
tâncias novas (internas) em que serão exigidos” (NASCI-
MENTO, 2011, p.427). Apresenta-se sob a forma de uma ge-
neralização, envolvendo a apresentação de informações sobre
o objeto de ensino e especialmente colocando em evidência os
novos aspectos desse objeto que os alunos devem aprender.

Em relação aos gestos didáticos específicos, entendemos que eles estão sempre em
articulação a um gesto fundador, sempre a serviço da construção dos objetos de ensino, no
processo da transposição didática interna. Ou seja, eles moldam-se às necessidades da
didatização dos objetos escolares, assim como esses objetos vão sendo internalizados à
medida que os gestos didáticos do professor vão se incorporando à atividade de ensino-
aprendizagem.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

5 Concepções de ensino da língua reveladas em gestos didáticos voltados para a


transposição didática externa de gêneros

Para essa análise, primeiramente, trazemos um olhar para duas SDG produzidas
colaborativamente pelos pibidianos, desenvolvida no ano de 2015 em uma escola pública de
uma cidade interiorana: uma do gênero “reportagem” (9º ano C) e outra do gênero “artigo de
opinião” (9º ano A). Cada gênero foi objeto de uma engenharia didática (SCHNEUWLY;
DOLZ, 2004), que resultou na elaboração de um modelo didático do gênero e de uma
sequência didática (com planificação de atividades, tarefas e dispositivos didáticos).

Nesse sentido, é possível verificar um diferencial do projeto no que diz respeito ao


agir docente. No ensino tradicional, representado pela mediação quase absoluta do livro
didático, o professor acaba atuando apenas no que Chevallard (1989) classifica de
transposição didática interna (passagem dos saberes a ensinar em saberes ensinados e
aprendidos), mas se isentando no agir pressuposto pela transposição didática externa
(passagem dos saberes teóricos/sociais aos saberes a ensinar – saberes disciplinares).

No caso do projeto PIBID em questão é possível observar gestos didáticos dos


docentes em formação desde os primeiros passos da transposição didática externa – gestos
esses não classificados como gestos fundamentais pelos pesquisadores Genebra, mas que
compreendemos que são relevantes para que o professor se transforme, efetivamente, em ator
do seu agir profissional. Na construção da engenharia didática que conduziu as duas SDG, é
possível inferir gestos didáticos específicos relacionados, primeiramente, à seleção dos
objetos (gêneros) que conduziriam as intervenções. Esse processo não é aleatório, pois requer
capacidades docentes para representar o contexto de ensino, seus sujeitos, os objetivos
específicos do projeto e articulá-los às prescrições externas que advém de várias instâncias do
sistema de ensino256. Isso fica evidente quando analisamos os gestos didáticos que resultaram
da seleção do gênero “reportagem temática” ao invés da “reportagem noticiosa”. O projeto de
ensino previa o desenvolvimento de uma SDG ao longo do segundo semestre de 2015, com
foco na publicação final de um jornal escolar – o jornal PIBID. A escolha, a priori, da
reportagem, se deve pelo fato de ser esse um gênero central dentro do jornal (BONINI,
2014), o que mais contribui com os objetivos informativos do jornalismo. Essa metodologia
parte da concepção do ensino da escrita como processo e como trabalho (DOLZ, 2009),
rejeitando, assim, uma noção simplista de escrita como mero produto. Nesse sentido, seria
impossível trabalhar com a reportagem noticiosa, uma vez que a “notícia” requer atualidade,

256No contexto brasileiro, podemos citar os Parâmetros Curriculares Nacionais, as Diretrizes Estaduais da Edu -
cação Básica e Projeto Político Pedagógico da escola.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

o que inviabiliza um projeto de fôlego, como pressupõe a SDG. Ou seja, a notícia já estaria
velha quando essa fosse publicada no Jornal PIBID.

Na concretização dessa engenharia didática, outro gesto didático relacionado à


transposição didática externa diz respeito à modelização didática (DE PIETRO,
SCHNEUWLY, 2014) do objeto de ensino (no nosso caso, dos gêneros “reportagem” e
“artigo de opinião”). Não há como elaborar uma SDG, formular tarefas (um dos gestos
fundadores), implementar atividades e dispositivos didáticos (outro gesto fundador) sem a
parametrização de um modelo didático que forneça tanto as características (contextuais,
enunciativas, discursivas, linguísticas) do gênero como objeto social de referência como sua
adaptação para o contexto ensino, ou seja, as suas dimensões ensináveis que serão alvo do
projeto de ensino. Se analisarmos as sinopses das duas SDG em foco veremos que está
pressuposto um gesto didático anterior de modelização didático, que delimita os objetos a
serem didatizados em relação aos gêneros condutores das SDG.

Quadro 2 – Objetos de ensino das SDG analisadas


Oficinas Objetos da SDG “Artigo de opinião” Objetos da SDG “Reportagem temática”

01 Questão polêmica Espaço da reportagem nos jornais locais e de


grande circulação: contexto de produção.
Relação entre foto/legenda e reportagem de jor-
nal.

02 O lugar da opinião nos jornais impres- Diferença entre reportagem noticiosa de temáti-
sos: os gêneros “artigo de opinião” e ca.
“charge”.

03 Escolha da temática e questão polêmica Questões externas que envolvem a produção de


da produção do artigo de opinião. uma reportagem (o fazer jornalístico).
O processo de construção da reportagem.
Pauta para a construção da reportagem temática.

04 Contexto de produção do artigo de opi- A entrevista jornalística.


nião. Tipos de pergunta para a entrevista.
Roteiro da entrevista.

05 O plano textual global do artigo de opi- Retextualização da entrevista oral em texto es-
nião: primeira análise. crito formal.

06 Primeira produção. Pesquisa para a produção da reportagem.

07 Dificuldades encontradas na primeira Primeira produção.


produção.

08 Plano textual global do artigo de opi- Plano textual global da reportagem temática.
nião.
09 A argumentação no artigo de opinião. A opinião na reportagem

10 Organizadores textuais no artigo de opi- Interferência da oralidade na produção escrita


nião. formal: foco na produção dos alunos.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

11 Diferença entre o artigo de opinião (de- Citação das vozes dos entrevistados na reporta-
fesa de uma tese) e o ensaio dissertativo gem: verbos do dizer e discurso direto e indire-
(discussão de uma problemática). to.

12 Alimentação temática, a partir dos te- Organizadores textuais na reportagem.


mas-foco das reportagens: pesquisa e
debate regrado.

13 Alimentação temática, a partir dos te- Acentuação gráfica.


mas-foco das reportagens: pesquisa a
partir de fontes diversas.

14 Debate regrado a partir das questões Infográfico como gênero conjugado à reporta-
polêmicas privilegiadas pela produção gem.
dos alunos.

15 Processo de revisão/reescrita textual. Processo de revisão/reescrita textual.

16 Publicação no Jornal PIBID. Montagem final da reportagem para publicação


no Jornal PIBID.

Esse quadro mostra certas escolhas relacionados aos gestos de modelização didática
dos gêneros. É possível observar que nas duas SDG os pibidianos, ao acionar o gesto didático
fundador de implementação de dispositivos didáticos, privilegiam a estratégia didática de
“comparação”. Na primeira há a comparação de dois gêneros, o artigo de opinião e a charge,
dois gêneros do argumentar, mas que expressam essa argumentatividade de formas
discursivas muito diferentes: um com a linguagem verbal e, outro, sobretudo com a
linguagem imagética. A SDG de reportagem, por sua vez, traz uma comparação entre dois
subgêneros (sobre esse conceito, cf. BONINI, 2014): a reportagem noticiosa e temática; já
que essa diferença é uma dimensão ensinável relevante quando se pretende colocar em
evidência um tipo específico de reportagem. A concepção de ensino que vemos por meio
deste gesto é, sem dúvida, uma concepção de um ensino produtivo, que “quer ajudar o aluno
a estender o uso de sua língua materna de maneira mais eficiente” (TRAVAGLIA, 2008, p.
39). A comparação força o aluno a refletir sobre os objetos em evidência. No caso dos
gêneros, faz com que ele articule os usos linguístico-discursivos à situação de produção, pois
as diferenças “visíveis” pela textualidade têm sempre uma explicação contextual.

Outro ponto que podemos destacar quanto ao gesto didático de modelização do objeto
de ensino diz respeito à delimitação do conteúdo “organizadores textuais” pelas duas SDG.
Esse gesto, relacionado à transposição didática externa dos gêneros, revela uma concepção de
ensino que busca associar os usos linguísticos com os elementos gramaticas. Aqui revela-se

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

uma concepção que, geralmente, coloca em confronto a visão da gramática normativa e


metalinguística/teórica (cf. TRAVAGLIA, 2008) a uma perspectiva de análise linguística
(GERALDI, 2003), cuja proposta didática procura colocar o aluno em confronto com sua
língua para que possa analisar sua funcionalidade, seu uso no interior das atividades de leitura
e produção de textos. Ou seja, a análise linguística não tem propósito em si mesma, mas
busca, sempre, contribuir para a realização de uma prática de linguagem. É nesse sentido que
os organizadores textuais são acionados nas SDG, como ferramentas operacionais da
construção textual de determinados gêneros.

Por outro lado, percebemos, na SDG da reportagem, um objeto relacionado a uma


dimensão transversal da escrita (DOLZ; GAGNON; DECÂNDIO, 2010): a acentuação
gráfica. Não é comum encontrarmos oficinas específicas para abordar esse conteúdo da
língua em materiais didáticos conduzidos pela metodologia das SDG. Não significa que tais
dimensões não são ou não podem ser abordadas em uma SDG. Significa apenas que elas não
são próprias de um gênero, ou seja, não se referem a uma prática de linguagem específica.
Nesse sentido, nos processos de revisão/reescrita textual é preciso acionar gestos didáticos
específicos para didatizar tais dimensões, sobretudo, a partir dos problemas detectados nas
produções dos alunos. Na descrição da metodologia das SDG, os autores genebrinos colocam
que:

[...] o tratamento de outros pontos não está, em geral, diretamente integrado nas
atividades propostas. Trata-se, particularmente, de questões relativas à sintaxe da frase,
à morfologia verbal ou à ortografia. No entanto, ao produzir um texto, o aluno
confronta-se forçosamente com problemas provenientes desses domínios [...]. Alguns
elos parecem evidentes. Assim, a recorrência de formas verbais ligadas ao gênero [...]
cria a ocasião para abordar ou retomar essas formas [...], de maneira paralela ao
trabalho realizado na sequência. [...] Os textos produzidos durante as sequências
permutem levantar os pontos problemáticos e construir corpora de “frases a serem
melhoradas” (DOLZ: NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 115).

No caso da SDG de reportagem em questão, os pibidianos preferiram criar um


momento específico para trabalhar um problema ortográfico, a acentuação, de uma forma
mais sistematizada. Isso mostra uma concepção de ensino voltada para a realidade do aluno,
ou seja, embora o objetivo maior seja que o estudante desenvolva capacidades de linguagem
para a escrita de um gênero, isso não pode negligenciar certos conteúdos formais da língua.
Dessa forma, mesmo os autores genebrinos não incorporando o ensino das dimensões
transversais da escrita de forma sistemática à SDG, entendemos que é possível que isso
aconteça, pois, nesse caso, não está pressuposto um ensino fragmentado da língua, pois os
elementos linguísticos estão articulados a uma prática de linguagem – o gênero que conduz o
projeto de ensino. Nesse caso, o ensino do conteúdo gramatical/ortográfico é sempre
direcionado à escrita/reescrita do gênero textual.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Vemos também que as duas SDG acionam um gesto específico de condução do


processo de revisão/reescrita textual, o qual podemos associar ao gesto didático fundador
“apelo à memória didática”. A revisão/reescrita busca trazer à tona as aprendizagens
anteriores para colocar em evidência os “erros” dos aprendizes, a fim de tentar saná-los. Esse
gesto implica uma concepção de ensino que valoriza o erro do aluno, pois o concebe como
um “indicador de processo, que dá informações ao professor sobre as capacidades do
aprendiz e de seu grau de maestria e aponta os riscos que o aluno enfrenta” (DOLZ;
GAGNON; DECÂNDIO, 2010). Nessa concepção de ensino o texto permanece provisório
enquanto estiver submetido ao processo de revisão e reescrita: “considerar seu próprio texto
como objeto a ser retrabalhado é um objetivo essencial do ensino” (DOLZ; NOVERRAZ;
SCHNEUWLY, 2004, p. 112).

De forma geral, os gestos didáticos fundadores, sistematizados pelos autores


genebrinos, apenas contemplam ações direcionados para o trabalho na transposição didática
interna de um objeto de ensino. Porém, acreditamos que o trabalho do professor não pode se
resumir a essa etapa, pois ele precisa desenvolver capacidades docentes também para atuar
nos “bastidores”, nos momentos pré-intervenção didática. Por isso, entendemos que seria
necessário adicionar ao quadro de gestos fundadores, pelo menos, três gestos: 1) seleção do
objeto de ensino; 2) modelização didática; 3) planificação das ações didáticas. Gestos esses
que foram contemplados pela formação propiciada pelo subprojeto PIBID em questão.

6 Concepções de ensino reveladas pela discursividade de diários de 


Como mencionado anteriormente, selecionamos dois pibidianos (professores em


formação inicial) para serem nossos sujeitos de pesquisa, por esses terem atuado no
subprojeto tanto no ano de 2014 como de 2015. São seus diários reflexivos das intervenções
didáticas que analisamos nesta seção. A identificação é feita pelas letras R e G, juntamente
com o ano dos diários – R-2014; R-2015; G-2014; G-2015.

Diferentemente dos textos instrucionais planificados para a elaboração das SDG que
tomam como foco prescrições para o agir docente, ou seja, o foco é a figura do professor, nos
diários reflexivos, geralmente, são os alunos que são colocados em evidência. Dessa forma, o
primeiro texto parece preocupar-se mais com o ensino e suas ferramentas e, o segundo, com a
aprendizagem do aluno (sem desconsiderar os dois outros componentes da tríade: professor e
ferramentas/meios de ensino). Esse foco, como podemos verificar nos trechos de diários a
seguir, pressupõe uma concepção que não desassocia o ensino da aprendizagem, isto é, o
toma como um amálgama: ensino-aprendizagem:

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Trechos 1 – Foco no aluno e na aprendizagem


a.Percebemos que os alunos participaram efetivamente tanto na atividade da questão do recreio como nas
disponibilizadas pelo jogo, dando sua opinião, entretanto, a justificativa da opinião muitas vezes não vinha
solidificada por um bom argumento (G-2014).
b.As coisas, aos poucos, foram clareando, eles foram se recordando, mas eram poucos alunos que davam
exemplos (R-2014).
c.Uma curiosidade é que, logo que eles escolhem a polêmica, eles já colocam suas opiniões sobre ela (R-2015).
d.Os alunos entenderam melhor o que é uma carta do leitor em comparação com vários tipos de cartas (G-2015).

Outro indício que chamou a atenção na pesquisa exploratória inicial dos dados foi a
ênfase dada à dicotomia desinteresse vs. motivação/ludicidade. Essa é uma concepção de
ensino um pouco equivocada, mas que parece imperar, inclusive, em documentos oficiais da
educação. Uma concepção de que o ensino deve ser sempre “agradável”, “gostoso”,
“divertido”, “descontraído”, “lúdico”, “informal”, etc. Ou seja, parece ir contra à concepção
defendida pelo ISD de escrita como trabalho: “A complexidade da atividade de escrita
justifica o caráter longo e árduo de sua aprendizagem” (DOLZ; GAGNON, DECÂNDIO,
2010, p. 31 – grifos nossos). Vejamos alguns trechos dos diários que revelam uma concepção
ancorada nessa visão dicotômica entre falta de interesse dos alunos e motivação pela
ludicidade e pelo “diferente”:

Trechos 2 – Desinteresse vs. motivação/ludicidade


a.Por conta dos desinteresses dos alunos estamos tentando deixar mais dinâmico, por exemplo: não estamos
trabalhando apenas atividades escritas, estamos trazendo jogos, vídeos (G-2015).
b.Estamos achando difícil encontrar um equilíbrio entre uma aula maçante e desinteressante a uma aula lúdica e
interessante que prenda a atenção deles (G-2015).
c.No fim da aula, passamos 2 vídeos sobre a questão polêmica das redes sociais, eles gostaram e se divertiram
bastante (R-2015).
d. Se tivéssemos que desenvolver a sequência didática hoje, acredito que muita coisa deveria ser alterada. Eu
focaria em atividades mais lúdicas, como vídeos, slides, cartazes, dinâmicas e um pouco menos de interpretação
(R-2014).
e.Reafirmo que hoje em dia motivar o aluno, principalmente a escrita, é um trabalho complexo e sem respostas
fáceis (G-2014).
f.Acreditamos ter correspondido ao nosso objetivo, pois apresentamos de forma lúdica o trabalho que iremos
desenvolver (G-2014).

Um ponto observado na pesquisa exploratória dos dados foi a menção, em alguns


momentos, a questões que revelam uma concepção “engessada” dos gêneros, que prioriza a
sua “forma” em detrimento da sua “função”. É o que muitos pesquisadores têm denominado
de “gramaticalização dos gêneros”: “Enquanto na pesquisa há um trabalho de determinação e
estabilização de classes e, logo, de apagamento de prática criativa, no ensino, há a
necessidade de se fazer o contrário, de re-estabelecer o valor da prática criativa e, portanto,
de desgramaticalizar” (BONINI. 2007, p.59). Ou seja, parece que certas práticas de ensino
que já se estabilizaram no contexto escolar são difíceis de serem descontruídas. Também não
estamos dizendo que a “forma” não é importante, mas ela não pode se sobressair ao

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funcionamento discursivo e enunciativo dos textos, em sua dimensão praxiológica. O ideal é


que sempre se articulasse as marcas linguísticas e estruturais do gênero aos parâmetros
contextuais. Somente assim o aluno poderia perceber que a linguagem é sempre situada e
depende de fatores externos para se concretizar. “Explicar” sobre o gênero, como o trecho 3.b
aponta, dá a falsa ideia de que o gênero está mediando o aprendizado; nesse caso, ele é
apenas mais um “conteúdo”.

Trechos 3 – Gramaticalização dos gêneros


a.Na primeira produção da carta do leitor os alunos não conseguiram atingir as capacidades discursivas, pois não
seguiram as características dos gêneros, a maioria deles não colocou a assinatura, o papel social, o local
(G-2014).
b.[...] principalmente em se tratando do artigo de opinião, a explicação oral é inevitável (R-2014).
c.Voltamos a explicar quanto à estrutura da carta, que ela deve ter referência da reportagem que pesquisou, deve
ter uma opinião, a cidade, nome do autor, etc. (G-2015).

Uma concepção que emergiu das nossas análises, em muitos momentos, sobretudo
nos diários de 2015, foi a do aluno como protagonista do seu aprendizado, com ênfase para a
questão da autonomia no fazer e no dizer. Essa observação mostra, pois, que há um avanço
em relação às concepções assumidas pelos alunos no decorrer dos dois anos. Esses trechos
revelam como os professores em formação inicial ou tentam dar uma autonomia maior ao
aluno ou valorizam seu protagonismo no desenvolvimento das atividades, como mostra os
trechos 4.d e 4.e, ou a sua opinião, como no trecho 4.c.

Trechos 4 – Autonomia e protagonismo dos alunos


a.Esse ano os alunos tiveram a autonomia de escolher qual a temática que eles queriam trabalhar, só que não
temos tanto conhecimento sobre essas temáticas escolhidas por eles e isso torna difícil para gente visualizar
como poderia ser a reportagem e acabamos não ajudando tanto os alunos (G-2015).
b. Os alunos não se contentaram em apenas retomar os textos que a gente havia dado para eles, o que foi muito
interessante, pois dessa forma, eles queriam outras opções de textos e tivemos que levá-los para sala de
informática (G-2015).
c.Foi bem convincente, foi interessante perceber que eles defendem sua opinião, mesmo que não seja igual as
dos demais (R-2014).
d. No momento da leitura você ouve bastante críticas ao texto, e, por um lado, isso é bom, pois conseguimos
perceber que eles têm noção do que é um texto com problemas, e como ele poderia ser melhorado (R-2015).
e. [..] alegou [um aluno] que o texto [foco da revisão coletiva] era muito redundante, e eu achei isso muito
interessante, pois eu, enquanto escolhia, não consegui enxergar isso, mas depois que ela disse foi fácil observar
(R-2015).

Na comparação de um ano para outro também ficou evidente um amadurecimento em


relação a certos pressupostos que embasam a concepção sociointeracionista do ensino
defendida pela metodologia das SDG, sobretudo, no que diz respeito ao ensino como
processo e como trabalho, a importância do processo de revisão/reescrita textual, o valor da
participação colaborativa dos alunos durante as atividades. Há muitos trechos que, inclusive,

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trazem explicitamente essa comparação entre os dois anos, como os 5.a e 5.b. Podemos
perceber também como os professores em formação compreenderam como, nessa concepção
de ensino, é natural as reconcepções do trabalho docente (MACHADO; LOUSADA, 2010),
como é possível observar no trecho 5.e.

Trechos 5 – Concepção interacionista de ensino


a.Primeiro ponto observado foi que as oficinas da SD do ano passado não estavam divididas pelos objetivos do
ensino (G-2015).
b.Esse ano nos compreendemos melhor a metodologia da SD. Dessa forma, entendemos a importância de cada
fase da SD, entre elas a importância de trabalhar nas oficinas as dificuldades dos alunos (G-2015).
c.Como é difícil pensar a melhor maneira de trabalhar processo de revisão, porque ano passado não focou isso
(G-2015).
d.Nós também fizemos a correção coletiva, então eles puderam participar, ler o seu e entender por que estava
certo ou errado (R-2015).
e.Hoje a programação da aula havia sido uma, mas, de última hora, nós mudamos (R-2015).
f. Do demais, gostei da colaboração de muitos na análise das charges. Eles também apresentaram a charge que
analisaram, são bons com isso (R-2015).

Os diários dos dois pibidianos, docentes em formação inicial, mostram, de forma


geral, que a experiência proporcionada pelo subprojeto PIBID têm reflexos significativos no
agir docente, revelando concepções de ensino e do papel do professor embasados em
premissas de cunho sociointeracionista, que dão ênfase a um ensino-aprendizagem como
trabalho, ao ensino da escrita como resultado de um processo complexo, árduo e que sempre
leva em consideração às práticas sociais das quais emergem os textos/discursos que adentram
a sala de aula e se transformam em objetos de ensino. Por outro lado, em alguns momentos, é
possível perceber concepções ainda “tradicionais”, que, muitas vezes, simplificam o ensino
da escrita a uma visão engessada e conservadora.

7 Considerações Finais

Este trabalho buscou trazer à tona concepções de ensino e do agir do professor em


dois momentos: 1) no processo de transposição didática externa de gêneros que fariam parte
de um projeto de construção de um jornal escolar – fase da planificação do trabalho docente
(professores em formação inicial); 2) no momento pós-intervenção didático, em que o
docente em formação inicial descreve e reflete sobre as ações implementadas.

Para o primeiro momento, privilegiamos a noção de gestos didáticos, a fim de mostrar


como é importante ampliar o quadro teórico desse conceito, sistematizando gestos para a
atuação na fase da transposição didática externa, pois o trabalho do professor não pode se
resumir apenas ao lócus da sala de aula, desconsiderando todo o fazer de planejamento e
planificação das atividades didáticas. Dessa forma, sugerimos que aos atuais gestos didáticos

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fundadores sejam acrescentados mais três: 1) seleção do objeto de ensino; 2) modelização


didática; 3) planificação das ações didáticas. Importante ressaltar que foi a análise das ações
implementadas pelo subprojeto PIBID que coordenamos que nos possibilitou fazer essas
observações e considerações, uma vez que tal subprojeto aborda o trabalho docente desde a
seleção do gênero unificador da SDG (metodologia de ensino adotada) até sua concretização
como objeto/ferramenta de ensino, com vistas à sua apropriação pelos alunos envolvidos.

No segundo momento, o foco foram as concepções de ensino e do papel do professor


emergidas na análise exploratória de diários das intervenções de dois professores em
formação inicial que participaram do subprojeto nos anos de 2014 e 2015. Essa análise
permitir enxergar a contradição, muitas vezes, evidente nas concepções desses alunos-
professores, o que é normal nessa fase da formação. Entretanto, a pesquisa revelou também
que a participação no subprojeto tem proporcionado uma consolidação nas concepções de
ensino que embasam a proposta didática, de cunho sociointaracionista, que toma o ensino da
escrita sempre na perspectiva do processo, do trabalho. Essa concepção assume a premissa de
que o processo de aprendizagem institucional da escrita demanda muito tempo escolar. Dessa
forma, acredita-se que não é uma escrita ocasional e sem planejamento que desenvolverá a
competência comunicativa do aluno. Entretanto, na escola, muitas vezes, parece-se assumir a
ideia de que escrever é um dom (cf. MENEGASSI, 2013) ou que se aprende escrever
apenas escrevendo.

Acreditamos que esse olhar “indiciário” para as concepções desses docentes em


formação possa contribuir para a continuidade das ações do subprojeto PIBID, além de
oferecer à comunidade acadêmica alguns pontos de reflexão para o desenvolvimento de
novas pesquisas que possam aprofundar as questões aqui apresentadas.

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Falando e escrevendo em português do Brasil: uma proposta didática257

Elis Uchôa de LIMA


Universidade de Brasília (UnB)
elis_uchoa@hotmail.com

257 Trabalho orientado pela professora Flávia Maia Pires (UnB).

!744
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Resumo: quando falamos de ensino de LE ou de ensino L2, no contexto de sala de aula, um


dos objetivos centrais para ambas as realidades é que o aluno consiga dominar tanto a
oralidade quando a escrita da língua que está sendo ensinada. Pensando nisso, foi realizada
uma análise de materiais didáticos que se apresentam como desenvolvidos com base na
abordagem comunicativa, e que contemplam as habilidades de: fala, escrita e leitura. Como
metodologia, utilizamos uma Ficha de Avaliação do Livro Didático, adaptada de DIAS
(2004) e de FAULSTCH (1998) para verificar se o livro cumpre ou não com a proposta
comunicativa e se ele atende algumas necessidades básicas do estudante de L2 ou LE. Por
fim, para que o objetivo do trabalho seja alcançado, foram propostas considerações finais
para a elaboração de um material didático que se propõe a contemplar a abordagem
comunicativa. Para Portela (2006), os métodos comunicativos têm em comum o foco no
sentido, no significado e na interação entre sujeitos relacionados à língua e tem como
objetivo criar condições favoráveis para a aprendizagem real de uma nova língua. Outro
ponto a ser abordado é o fazer intercultural (SILVA, 2009), pois não é possível falar de língua
e se excluir a cultura, ou vice-versa. Portanto, a proposta pretende criar meios que favoreça a
imersão do aprendiz de português como L2 ou LE ao imenso campo variacional linguístico e
cultural do Brasil, a fim de mostrar como a língua está inserida na sociedade (ALKMIN,
2003). Assim sendo, o trabalho tem extrema importância para a área a qual está direcionado,
pois além de refletir as abordagens de materiais didáticos, apresenta uma proposta que
concentra-se na prática e no desenvolvimento oral e escrito da língua portuguesa, abordando,
inclusive, a variedade linguística e cultural do Brasil.

Palavras-Chave: Material Didático; Abordagem Comunicativa; Português do Brasil;


Variação Linguística.

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A Diversidade Linguística e Cultural no Pará e a formação de professores


de Português

Inéia Abreu
Universidade de Aveiro - UA258
ineia.abreu@ua.pt

Resumo: a região norte do Brasil, mais especificamente o interior do Estado do Pará, é


marcada pela presença de comunidades muito diversificadas, o que comprova que essa região
possui grande Diversidade Linguística e Cultural (DLC). Tal diversidade é resultado de
muitos anos de miscigenação entre os povos autóctones e os alóctones que se instalaram
nesse território há mais de 500 anos e trouxeram para a língua e a cultura brasileira,
características bastante peculiares. Nessa região, três comunidades que apresentam
características próprias relacionadas à DLC merecem destaque: a comunidade indígena, a
quilombola e a japonesa. Atualmente são reconhecidas cerca de 170 línguas indígenas em
todo o Brasil, das quais 150 estão na Amazônia; 240 comunidades quilombolas,
remanescentes dos escravos africanos; e os imigrantes japoneses, que chegaram a esse
território no início do século XX. Este texto, portanto, terá como objetivo refletir sobre a
formação de professores de Língua Portuguesa (LP) para a DLC no Pará. A necessidade de
preparar os professores para a DLC se justifica não só pelo fato da língua ser objeto de ensino
em contexto profissional, mas também porque, enquanto educadores, os professores de LP
são atores essenciais na promoção do respeito à diversidade e na valorização e difusão da LP.

Palavras-chave: Formação de Professores de Português; Diversidade Linguística e Cultural;


Comunidade Indígena; Comunidade Quilombola; Descendente de Japoneses.

1. Introdução

258
Professora Assistente da Faculdade de Letras da UFPA e aluna do Doutoramento em Educação da UA.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Este artigo, integrado ao I Congresso Internacional de Língua Portuguesa, em Santiago,


no Chile, está vinculado ao projeto de tese intitulado Formação de Professores de Português no
Pará para a Diversidade Linguística e Cultural e para a valorização e difusão da Língua,
orientado por Maria Helena Ançã, no Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de
Aveiro. O interesse por este tema surge a partir da necessidade de desenvolver um estudo sobre a
Formação de Professores de Português (FPP) para a DLC, pois, apesar de ter como idioma oficial
apenas a LP, o Brasil é um país de várias línguas e várias culturas. As últimas décadas, no Brasil,
têm sido marcadas por diversificações nas pautas de reivindicações dos movimentos sociais,
sendo incluídas nelas questões étnicas, regionais e culturais, o que têm possibilitado vislumbrar
de forma contundente que o Brasil é um país constituído por mais de 200 comunidades
linguísticas participantes da vida política do país, cada uma a seu modo. Segundo Oliveira
(2007),

Emerge em vários fóruns o conceito de ‘línguas brasileiras’: línguas faladas


por comunidades de cidadãos brasileiros, historicamente assentadas em
território brasileiro, parte constitutiva da cultura brasileira, independemente de
serem línguas indígenas ou de imigração, línguas de sinais ou faladas por
grupos quilombolas. (OLIVEIRA, 2007, p. 8 grifo do autor)

O Brasil apresenta-se em lugar de destaque, por exemplo, pelo número de falantes de


LP259 e por sua extensão territorial260. Além disso, apresenta também grande diversidade
linguística, fruto tanto do contato entre os povos autóctones e os colonizadores que nesse
território se instalaram há mais de 500 anos, quanto da imigração de diferentes povos do
mundo.

Como resultado dessa realidade, o Brasil congrega falantes do Português que


apresentam características distintas: a maioria dos brasileiros tem a LP como língua materna,
embora, segundo Bagno (2007) e Teyssier (1994), essa língua apresente grande variedade e
diversidade, devido à grande extensão territorial e à injustiça social. Também encontramos
um grande número de falantes que a tem como segunda língua. Além disso, com a crescente
onda de imigração para o Brasil, cresce o número de falantes que a tem como língua
estrangeira.

Segundo Oliveira (2008), o Brasil tem hoje mais de 200 línguas (170 autóctones, 30
alóctones e 2 línguas de sinais das comunidades surdas), o que nos coloca no grande grupo
dos países do mundo (94%) que são plurilíngues. Então, achar que o Brasil é monolíngue é
desconsiderar toda a história de um país que possui tanto uma diversidade linguística por
conta das várias línguas faladas em seu território, quanto uma diversidade intralinguística por
conta das variedades da LP. As políticas linguísticas voltadas para as minorias linguísticas

259De acordo com o Barômetro de Calvet (http://wikilf.culture.fr/barometre2012/), a LP destaca-se entre as lín -


guas mais faladas no mundo. Segundo o número de falantes, está em 6ª colocação.
260
O Brasil é o 5º maior país do mundo em extensão territorial e o maior entre os países lusófonos.

!748
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

têm se ocupado, principalmente, da documentação e descrição das línguas das comunidades


indígenas e dos planos de ensino formal a essas comunidades e às concentrações de
imigrantes europeus e asiáticos não falantes de LP (CASTILHO, 2010).

É necessário, portanto, questionar acerca da formação dos professores de LP que


atuarão nesse contexto de DLC, pois, enquanto os alunos dos cursos de FPP receberem uma
formação baseada na LP como única língua falada no Brasil,

[...] o educando, filho de migrantes ou de nativos locais, inicia um processo de


perda de identidade, muitas vezes irreversível, porque é quase sempre colocado
frente à situações onde o professor insiste em iniciá-lo na prática da língua,
criticando e, muitas vezes anulando [...] todo o conteúdo linguístico que este
educando trouxe de casa. (PESSOA, 2009, p. 63)

A realidade brasileira impõe inúmeras possibilidades formativas e educativas para o


professor de LP, no entanto, as concepções de língua desses professores refletem uma visão de
língua homogênea, em que se considera apenas uma forma de falar correta – a “norma padrão”.
“Muitas vezes [esse futuro professor] nem mesmo aprendeu que, para ensinar Língua
Portuguesa, precisaria estudar, não só a Língua, mas também a Cultura e a Sociedade que
utiliza tal língua” (PESSOA, 2009, p. 65).

Assim, os professores de LP, atuantes diretamente na promoção da língua, precisam


ser adequadamente preparados para ensiná-la em contexto de DLC, promovendo não só a
língua mas também o respeito à diversidade linguística e cultural. Pretendemos, portanto,
enfocar nossa discussão a respeito dessa necessidade de formar professores de LP para
atuarem em contextos de DLC, pois, a região norte do Brasil, foco deste trabalho, é uma
região onde convivem diversas comunidades com aspectos linguísticos e culturais próprios. As
três comunidades de maior destaque no interior do Estado do Pará são: a comunidade indígena, a
quilombola261 e a descendente de japoneses.


2. A Diversidade Linguística e Cultural da Língua Portuguesa

No mundo atual, a globalização é um conceito recorrente e as fronteiras da


comunicação entre povos de países e línguas diferentes se tornaram mais flexíveis. Nesse
contexto, as línguas são, sem dúvida, um poderoso e imprescindível instrumento que leva as
pessoas a serem cidadãs do mundo. Dentre as línguas de relevância global, encontra-se o
Português, uma das línguas mais faladas no mundo como língua materna, assim como é
também uma das línguas utilizadas por falantes de outras línguas como língua segunda ou
estrangeira (RETO, 2012). É ainda a língua oficial de vários países: Brasil, Portugal, Angola,
Moçambique, Guiné-Bissau, Timor-Leste, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, e, mais
recentemente, Giné-Equatorial. No Brasil passou a ser a língua oficial a partir da

261
Remanescentes de escravos africanos.

!749
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

promulgação da Constituição Federal em 1988. Embora seja a única língua oficial do país, é
importante ressaltar que esta é uma língua que apresenta grande diversidade intralinguística,
tornando-se, portanto, difícil definir a variedade padrão da língua. Até meados do século XX,
a variedade carioca era considerada a variedade padrão do Português Brasileiro, sendo
utilizada nos manuais didáticos elaborados e impressos no Rio de Janeiro. No entanto, por
falta de aprofundamento científico, não ficou comprovado que as classes cultas brasileiras
utilizavam ou passavam a utilizar tal variedade apenas por imposição (CASTILHO, 2010).

Surgiram, então, nos anos de 1970, projetos desenvolvidos pelas ciências linguísticas
para a descrição da variedade brasileira da LP, a partir dos quais evidenciou-se a existência de
um policentrismo do padrão linguístico, em que, cada região do Brasil apresenta uma
variedade considerada núcleo padrão de variedade do Português Brasileiro. Cada padrão tem
suas especificidades fonéticas e léxicas que fazem transparecer os diferentes modos dos
falares cultos brasileiros e que devem ser considerados ao serem ensinados nas escolas,
mostrando, assim, que é “Impossível (...) escolher uma variedade regional e considerá-la o
padrão do Português Brasileiro” (CASTILHO, 2010, p. 5).

Esse policentrismo evidente no Brasil é fruto das diversas influências que contituem a
língua portuguesa brasileira, pois desde a sua “descoberta” pelos europeus, o Brasil tem
recebido influências linguístico-culturais de diversos povos. Quando no Brasil chegaram, os
portugueses mesclaram sua língua às línguas nativas (indígenas) e, em seguida, às línguas
africanas através dos negros que foram escravizados. Além disso, muitos outros povos
imigrantes, entre eles os descendentes de japoneses, contribuíram e continuam contribuindo
para o aumento da diversidade linguística que o Português Brasileiro apresenta (PAIVA,
2008).

3. A Formação de Professores de Português para a Diversidade Linguística e


Cultural no Estado do Pará

Conforme exposto acima, as três comunidades de maior destaque na região norte do


Brasil, no Estado do Pará, são a comunidade indígena, a quilombola e a descendente dos
imigrantes japoneses. Essas comunidades, por suas especificidades e relevante contribuição
na formação da identidade cultural da região, merecem especial atenção no que se refere à
educação escolar e à formação dos professores que atuam nessas comunidades.

Segundo Moore e Gabas (2006), a classificação das línguas indígenas brasileiras,


apresentada no website do Instituto Socioambiental, reconhece 160 línguas indígenas no
Brasil. É provável que há quinhentos anos existissem até oito vezes mais línguas do que
existem agora. No entanto, a educação para os povos indígenas ainda enfrenta problemas
graves, pois, conforme Moore e Gabas (2006, p. 441),

!750
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

No Brasil, o que existe, em sua grande maioria, são programas de educação


bilíngue que têm como base teorias de educação e leitura que não são
desenvolvidas especificamente para populações indígenas. Estas teorias são
feitas para povos não índios que já têm ortografias padronizadas, e são
destinadas a educadores que falam a mesma língua dos alunos, o que,
infelizmente, contrasta com a situação da maioria das populações indígenas.
(grifo do autor)

A educação escolar indígena está prevista na legislação brasileira, através da


Constituição Federal e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A FUNAI5 atua
nesse contexto como órgão federal articulador das políticas indigenistas para garantir o
direito fundamental do povo indígena de ter uma educação específica, diferenciada,
intercultural, bilingue/multilingue e comunitária. Compete aos Estados e Municípios a
execução desse direito indígena.

A partir da Lei de Diretrizes e Bases a educação escolar no Brasil passou a ser dividida
em dois níveis: Educação Básica e Ensino Superior. A Educação básica compreende a Educação
Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. A Educação Infantil é opcional, cabendo,
portanto, à comunidade indígena decidir o que lhe convém, de acordo com as especificidades de
cada comunidade. Há povos indígenas que entendem que o convívio com seus familiares nas
aldeias é o que garante a formação da criança indígena dentro da cultura de seu povo, como
integrante de sua comunidade, falante da sua língua. Por outro lado, em algumas aldeias urbanas
as mulheres indígenas precisam de apoio, e, nesse caso, a FUNAI deve apresentar a Educação
Infantil aos povos indígenas não como uma obrigação, mas uma opção, caso isso faça sentido
para eles.

Quanto ao Ensino Fundamental, este é obrigatório no Brasil. A FUNAI262 atua com


prioridade nesse nível de ensino, buscando valorizar os conhecimentos e pedagogias indígenas
próprias, as línguas maternas, a interculturalidade e autonomia escolar. O Ensino Médio Indígena,
por sua vez, apresenta duas versões: O Ensino Médio convencional e o técnico
(profissionalizante). O número de alunos indígenas no Ensino Médio é muito baixo, embora a
demanda por formação técnica seja grande. Esse fato se dá devido à falta de escolas de Ensino
Médio nas aldeias, às dificuldades de deslocamento e de adaptação dos alunos indígenas e à
inadequação das propostas das escolas urbanas. Ainda assim, alguns projetos têm apresentado
bons resultados no que se refere à profissionalização do povo indígena, promovendo diálogos
entre os conhecimentos indígenas e não-indígenas para a gestão ambiental das terras, por
exemplo.

Quanto ao Ensino Superior, é crescente o número de indígenas que têm buscado


acesso e condições de permanência nas Instituições de Ensino Superior. No campo da

262
Fundação Nacional do Índio.

!751
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

formação profissional, o MEC263 instituiu o PROLIND – Programa de Apoio à Formação


Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas – com o objetivo de “apoiar projetos de
cursos de licenciaturas específicas para a formação de professores indígenas para o exercício
da docência nas escolas indígenas, que integrem ensino, pesquisa e extensão e promovam a
valorização do estudo em temas como línguas maternas, gestão e sustentabilidade das terras e
culturas dos povos indígenas” (“Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas
Interculturais Indígenas – PROLIND”, [s.d.]). Pretende-se por meio desse projeto, habilitar
professores indígenas para a docência nos anos finais do Ensino Fundamental e Médio.

Além do apoio à formação inicial e continuada em cursos de Magistério Indígena em


nível médio e à formação em nível superior, o Ministério da Educação promove também a
produção de material didático em línguas indígenas, bilíngues e em português, apoia a
ampliação de oferta de educação escolar em terras indígenas, promove o controle social
indígena, incentivando professores e lideranças indígenas a conhecerem seus direitos, além
de apoiar financeiramente a construção, reforma e ampliação de escolas indígenas264 .

A educação escolar indígena tem dado bons frutos, ainda que escassos. Em 2015, um
integrante da etnia Guarani, Almires Martins Machado, recebeu o título de doutor em
Antropologia após defender sua tese intitulada De Sonhos ao Oguatá Guassú em busca da(s)
Terra(s) Isenta(s) de Mal, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Ele foi o primeiro
indígena doutor formado na Universidade Federal do Pará265.

No entanto, apesar do reconhecimento da diversidade linguística indígena no Brasil, a


educação para esses povos ainda enfrenta problemas graves, como por exemplo, a carência de
cursos bilingues voltados para essas comunidades e de professores preparados para atuar nas
comunidades indígenas ou em turmas urbanas que os alunos indígenas frequentem. Além disso,
os cursos de formação de professores precisam incentivar a valorização da diversidade de línguas
e de culturas presentes no país.

Assim como a comunidade indígena, a comunidade quilombola merece atenção no


que se refere à educação pois é um grupo de grande significância, que muito contribuiu e
ainda contribui para a formação da diversidade cultural do povo brasileiro. Os grupos
quilombolas foram formados a partir da resistência ao período de escravidão imposta aos
negros africanos trazidos para o Brasil, período que durou três séculos, mas que mostra claras
consequências, como as desigualdades que o povo negro enfrenta até os dias de hoje.

263
Ministério da Educação e Cultura.
264 Estas informações foram obtidas no site http://portal.mec.gov.br/educacao-indigena/apresentacao em
26/08/2016
265
Informação obtida em https://www.portal.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod=11023 acessado em 26/08/2016.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Não há um número exato de comunidades quilombolas no Brasil pois o Estado


brasileiro não possui registros de censo dessas comunidades. No entanto, de acordo com o
Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos, realizado pela Fundação
Cultural Palmares, existem 1.228 comunidades quilombolas. Acredita-se, porém, na
existência de mais de três mil comunidades em todo o território nacional.

Só no Estado do Pará é conhecida a existência de 240 comunidades quilombolas.


Historicamente, na região amazônica, a escravidão de negros não foi tão representativa em
termos numéricos quanto em outras regiões como a açucareira, a mineradora e a cafeicultora.
Ainda assim, escravos africanos foram levados para trabalhar nas fazendas de gado e nas
plantações de cacau no Baixo-Amazonas. Ao fugir do trabalho escravo, grupos de africanos
formavam os quilombos ou mocambos e neles garantiam autonomia e liberdade de ação e
movimento. Vários quilombos se formaram no estado do Pará ao longo dos séculos XVIII e
XIX. A história dessas comunidades é constituída por lutas e conquistas que são consideradas
pioneiras, como por exemplo, a primeira titulação de uma terra de quilombo no Brasil, em 20
de novembro de 1995, quando a comunidade quilombola de Boa Vista recebeu do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) o título de propriedade do seu
território com 1.125 hectares 266.

Entretanto, embora sejam visíveis as conquistas, são necessários diálogos a respeito


da formação de professores que atuam nessas comunidades. A Lei de Diretrizes e Bases e
posteriores desdobramentos tem regulamentado o tratamento da diversidade sociocultural,
como por exemplo a lei nº 10.639/2003,

[...] que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-


Brasileira nos estabelecimentos de ensino da educação básica, acrescida da lei
n. 11.645/2008, que introduz a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena. (MIRANDA, 2012, p. 369–370).

No entanto, não é suficiente que se criem leis para implementação do ensino referente
às culturas afro-brasileira e indígena, é necessário pensar na formação dos professores que
atuarão nas comunidades quilombolas, indígenas e mesmo nas escolas urbanas que
obrigatoriamente devem abodar tais temas.

Toda essa discussão gira em torno da emergência das comunidades remanescentes


quilombolas, sobre sua representação na atualidade e efetiva inserção cidadã. Segundo Paré,
Oliveira e Velloso (2007) para que essa inserção se realize,

266
Informações obtidas no site http://www.cpisp.org.br/html/sobre_cpi.html da Comissão Pró-Índio de São Pau -
lo - e http://www.quilombo.org.br/#!historia/c1860

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

não basta que a sociedade obtenha o conhecimento sobre estes grupos, mas
também que a população quilombola se veja dentro da sociedade atual, que o
conhecimento ocidentalizado, eurocêntrico, presente nas escolas formais abra um
espaço significativo para a vivência e educação destas comunidades.(PARÉ;
OLIVEIRA; VELLOSO, 2007, p. 217).

Nesse sentido, Larchert e Oliveira (2013) afirmam que, na Conferência Nacional de


Educação (CONAE), em 2010, foi determinado que é responsabilidade dos governos federal,
estadual e municipal promover a educação quilombola e que estas esferas governamentais
devem, entre outras coisas, “Promover a formação específica e diferenciada (inicial e
continuada) aos/às profissionais das escolas quilombolas, propiciando a elaboração de
materiais didático-pedagógicos contextualizados com a identidade étnico-racial do
grupo” (LARCHERT E OLIVEIRA, 2013, p. 49).

Para as autoras, a primeira exigência para a formação desses professores é “a


sensibilidade criativa que engloba a multiplicidade de expressões humanas que estão
inseridas no universo cultural brasileiro” (LARCHERT E OLIVEIRA, 2013, p. 54), ou seja, o
respeito à linguagem, à cultura, à cor, à religião, etc. permite o questionamento e a
desconstrução dos mitos de superioridade e inferioridade entre grupos humanos. Nesse
sentido, a obrigatoriedade do ensino da história africana e afro-brasileira contribui não só
para o conhecimento a respeito da cultura quilombola, mas também para que “o país se
reconheça como afrodescendente em sua formação humana e cultural” (PARÉ; OLIVEIRA;
VELLOSO, 2007, p. 217).

Ainda na região amazônica, no Estado do Pará, outra comunidade de destaque são os


descendentes de imigrantes japoneses, que chegaram a esse território no final da década de
1920 e início de 1930. Ao chegar a Belém, capital do estado, 189 japoneses dirigiram-se para
o interior, para o município de Tomé-açu e lá iniciaram trabalhos agrícolas (HOMMA, 2007).
Ao longo do século XX e por motivações diferentes em cada período, os japoneses foram em
direção ao interior do estado, estabelecendo-se em diversas cidades.

A primeira geração de imigrantes japoneses, chegada ao Brasil, na região sudeste, em


1908, é chamada issei. Os filhos dos isseis são os nisseis, segunda geração, agora
descendentes de japoneses. A terceira geração é chamada de sansei. Ao chegar ao Brasil, os
japoneses formaram colônias e logo se preocuparam prioritariamente com a construção de
escolas para seus filhos. Segundo Demartini (2000) a grande preocupação dos pais japoneses
era educar os filhos dentro da cultura e tradição japonesas, pois

A maior parte dos pais queria que seus filhos aprendessem a língua e os
costumes japoneses, tendo em vista o retorno a seu país de origem; caso as
crianças não fossem educadas à maneira japonesa, poderiam ser marginalizadas
ao voltar (DEMARTINI, 2000, p. 45)

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Entretanto, um dos maiores problemas enfrentados por esses imigrantes foi a falta de
apoio do governo em relação à educação das crianças. No início do século XX, a escola
formal não era um direito de todos, não havia escolas suficientes nem para as crianças
brasileiras, portanto, os imigrantes ficavam responsáveis por suas próprias questões
educacionais. Outro obstáculo que os imigrantes japoneses enfrentaram em relação à
educação foram as medidas nacionalistas do governo de Getúlio Vargas, que proibiu a
educação japonesa, “induzindo à transformação dessas escolas ou provocando seu
desaparecimento” (DEMARTINI, 2000, p. 46).

Atualmente, os descendentes de japoneses aprendem a falar em casa as duas línguas: a


japonesa e a portuguesa. Em idade escolar, essas crianças vão para as escolas brasileiras,
como qualquer outro brasileiro falante de LP como língua materna, para adquirir a
competência escrita da língua e frequentam também a Associação Nipo-brasileira, onde
aprendem, entre outras coisas, a respeito da sua cultura japonesa e a escrever em japonês.

4. O Curso de Formação de Professores de Português da Universidade Federal


do Pará

O curso de Letras 267, com habilitação em Língua Portuguesa, foi implementado pela
Universidade Federal do Pará (UFPA) na cidade de Castanhal, no nordeste paraense, no ano de
1986. Recentemente o curso passou por uma reformulação em seu Projeto Político de Curso
(PPC) e recebeu nota 4 na avaliação do MEC. Tem como objetivo

formar profissionais interculturalmente competentes, capazes de assumir um


posicionamento crítico e reflexivo que os levem a estabelecer relações
dialógicas no âmbito de sua comunidade e além dela, a fim de que possam
atuar em contextos formais, públicos e privados, e contextos não formais das
esferas do Ensino Fundamental e Médio, no que diz respeito ao ensino de
língua e literaturas portuguesas268.

Quanto à organização curricular, o curso se divide em cinco eixos de competências:

1. uso da língua/linguagem;
2. reflexão sobre a língua/linguagem;


267 O curso de Letras da UFPA de Castanhal será objeto de análise da tese a que se vincula este artigo.
268
Informação obtida no PPC do Curso de Letras da Universidade Federal do Pará, campus de Castanhal.

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3. prática profissional;
4. atividades complementares;
5. trabalho de conclusão de curso.

O primeiro e o segundo eixos estão relacionados à formação dos futuros professores


enquanto usuários da LP. O terceiro eixo diz respeito à prática reflexiva da docência, com
ênfase na observação, reflexão, compreensão e atuação em situações do contexto
profissional. No eixo das atividades complementares os alunos podem cursar disciplinas
optativas e participar de eventos, projetos, etc. Por fim, no trabalho de conclusão de curso o
futuro professor produzirá uma monografia sobre um tema de relevância teórica e acadêmica.

O nosso olhar sobre o PPC busca informações sobre a preocupação em formar os


futuros professores de LP para a Diversidade Linguística e Cultural própria da região onde o
curso está inserido. No entanto, após breve leitura, ainda em estágio primário da análise,
pudemos observar que de forma muito superficial a Diversidade Linguística e Cultural está
presente em dois momentos neste PPC.

Primeiramente, espera-se que o Licenciado em Letras tenha como uma das


características do seu perfil, ter “domínio do uso da língua, objeto de seus estudos, em termos
de sua estrutura, funcionamento e manifestações culturais, além de ter consciência das
variações e diversidades linguísticas” 269.

Depois, como atividade complementar é apresentado o tema “Educação Inclusiva:


desafios regionais” (que poderá ser uma disciplina ou minicurso) e abordará a política
nacional de inclusão social (incluindo as questões interraciais) e, em especial, a política de
inclusão da própria UFPA.

4. Considerações

Neste artigo, procuramos refletir sobre a formação do professor de Língua Portuguesa


para a Diversidade Linguística e Cultural na região norte do Brasil – na Amazônia paraense.
Vimos que cada comunidade linguístico-cultural presente na região tem sua história, sua
trajetória, sua cultura e seu próprio falar. Os caminhos traçados e seguidos pelas comunidades
indígenas, quilombolas e descendentes de imigrantes japoneses no que diz respeito à
educação escolar são diversos, mas têm um ponto em comum: há necessidade de formação
específica dos docentes que atuam nessas comunidades. Espera-se das Instituições de Ensino
Superior responsáveis pela formação do professor de LP que ofereçam suporte adequado para
os futuros professores, não só em conhecimentos teóricos sobre a LP, mas também

269
Informação obtida no PPC do Curso de Letras da Universidade Federal do Pará, campus de Castanhal.
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

conhecimentos sobre as comunidades que constituem a população desta vasta região e


conhecimentos sobre como atuar em contexto de Diversidade Linguística e Cultural.

Referências Bibliográficas

BAGNO, M. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola,
2007.

CASTILHO, A. T. Uma política linguística para o português. Disponível em: <http://


www.museulp.org.br/files/mlp/texto_17.pdf>.

DEMARTINI, Z. B. F. Relatos orais de famílias de imigrantes japoneses  : Elementos para a


história da educação brasileira. Educação & Sociedade, v. XXI, n. 72, p. 43–72, 2000.


HOMMA, A. K. . A imigração japonesa na Amazônia: sua contribuição ao


desenvolvimento agrícola. [s.l.] Embrapa, 2007.

LARCHERT, J. M. E OLIVEIRA, M. W. DE. Panorama da educação quilombola no Brasil.


Políticas Educativas, v. 6, n. 2, p. 44–60, 2013.

MIRANDA, S. A. Educação escolar quilombola em Minas Gerais: entre ausências e


emergências. Revista brasileira de educação, v. 17, n. 50, 2012.

MOORE, D. E GABAS, N. O Futuro das Línguas Indígenas Brasileiras. In: FORLINE, L.;
VIEIRA, I.; MURRIETA, R. (Eds.). . Amazônia além dos 500 Anos. Belém: Museu
Paraense Emílio Goeldi, 2006. p. 433–454.

OLIVEIRA, G. M. DE. Prefácio. In: MARCIONILO, M. (Ed.). . As Políticas Linguísticas.


São Paulo: Parábola Editorial; IPOL, 2007. p. 7–10.

OLIVEIRA, G. M. DE. Plurilingüismo no Brasil. Unesco, p. 1–11, 2008.

PAIVA, Z. O Ensino do Português como Instrumento de Formação para a Cidadania na


Educação de Adultos. [s.l.] Universidade de Aveiro, 2008.

PARÉ, M. L.; OLIVEIRA, L. P.; VELLOSO, A. D. A Educação para Quilombolas:


Experiências de São Miguel dos Pretos em Restinga Seca (RS) e da comunidade Kalunga do
Engenho II (GO). Cadernos CEDES, v. 27, n. 72, p. 215–232, 2007.

PESSOA, M. S. Sociolinguística, formação de professores e educação linguística. In:


FERRAZI, C. ET AL (Ed.). . Línguas,linguagens e culturas amazônicas. São Carlos: Pedro
e João Editores, 2009. p. 51–78.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas

– PROLIND. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/institucional/194-


secretarias-112877938/secad-educacao-continuada-223369541/17445-programa-de-apoio-a-
formacao-superior-e-licenciaturas-interculturais-indigenas-prolind-novo>. Acesso em: 29
ago. 2016.

RETO, L. Potencial económico da língua portuguesa. Alfragide: Texto editores, 2012.

TEYSSIER, P. História da Língua Portuguesa. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1994.

Palavras a girar: vivências com o léxico de origem africana nos espaços de


letramento de Alagoinhas

Lise Mary Arruda Dourado


UNEB

Neste artigo, apresentam-se resultados parciais do projeto Xirê de palavras: círculo de


vivências com palavras de origem africana orientadas pela contação de mitos afro-
brasileiros em espaços de letramento de Alagoinhas, o qual se encontra em desenvolvimento
no Curso de Letras Vernáculas com Português, no Departamento de Educação, Campus II, da
Universidade do Estado da Bahia. Trata-se de uma pesquisa baseada em algumas das práticas
curriculares analisadas na tese de doutorado de Dourado (2014), tendo o objetivo de
proporcionar aos estudantes de escolas públicas de Alagoinhas vivências com lexias africanas
e afro-brasileiras, de modo a causar impactos sociolinguísticos positivos na construção
identitária desses sujeitos.

A ideia de giro, de circulação das palavras, presente na nomeação do projeto de


pesquisa Xirê de palavras, foi inspirado no título do II Xirê das Letras: Giros de Resistência
– Congresso Internacional de Línguas, Literaturas e Culturas Africanas e Afro-Brasileiras.
Tal evento acadêmico, realizado de 21 a 24 de setembro de 2011, no Departamento de
Ciências Humanas e Tecnologias da Universidade do Estado da Bahia, em Xique-Xique, teve
o intuito de fazer circular, com espírito festivo e fraterno, conhecimentos das africanias
refletidas na língua, na literatura e na cultura brasileiras, inserindo-os no âmbito educacional.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Sobre a escolha da metáfora do Xirê para nomear um evento científico e, agora, um


projeto de pesquisa-ação, retomo as palavras que usamos em 2009 (na primeira edição do
congresso) e, posteriormente, ratificamos em 2011, quando definimos Xirê como uma
manifestação religiosa em que os Orixás, entidades sagradas do Candomblé, põem-se a
dançar e cantar em círculo, irmanando-se em um ato sagrado de fé e festa, oração e alegria.
Sabemos que são inúmeras as religiões nos países africanos, bem como no nosso grande
Brasil e demais países americanos. Ao escolhermos a simbologia do Xirê, pensamos em
homenagear as religiões afro-brasileiras, cujos adeptos, sofreram intensa perseguição no
passado (e ainda no presente), enfrentaram as adversidades e cuidaram da manutenção do
legado cultural de origem africana. Mas a ideia de Xirê, proposta como título, “surge
dessacralizada, abraça a todos, independentemente de credos religiosos, prevalecendo o
espírito festivo e fraterno na divulgação de novas produções acadêmicas, literárias e
culturais”. (PROJETO DO II XIRÊ DAS LETRAS, 2011, p.7)

Já as vivências com palavras de origem africana orientadas pela contação de mitos


afro-brasileiros foram, em princípio, observadas na minha pesquisa de doutoramento
(DOURADO, 2014), na Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, vinculada ao terreiro Ilê
Axé Opô Afonjá, em Salvador, Bahia. Na tese, um estudo de caso realizado na referida
escola, investigamos sobre as práticas curriculares que envolvem vivências com lexias
africanas e afro-brasileiras e o impacto sociolinguístico na construção identitária dos
estudantes. A partir de observações in locus, tais vivências foram descritas, orientadas pela
contação de mitos afro-brasileiros como eixo fundante de todas as disciplinas, as quais
ocorrem por meio de: uso seleto e diligente de livros didáticos e paradidáticos; uso cotidiano
de saudações de gentileza, em yorubá; consultas lexicográficas e elaboração de pequenos
dicionários; nominações na ambientação escolar e nos espaços circunvizinhos; cânticos em
yorubá e wolof.

Sob a inspiração dos ítan (mitos yorubanos), foram (re)criados mitos afro-brasileiros,
por Vanda Machado e Carlos Petrovich (2004a), que passaram a nortear o currículo da Escola
Municipal Eugênia Anna dos Santos desde 1999. A escola segue o Projeto Político
Pedagógico Irê Ayó (Caminho da Alegria), de autoria da educadora Vanda Machado (2004b).
Esses mitos afro-brasileiros, herdados da oralidade ancestre, de fato, mobilizam todas as
ações da escola. Assim, foram observadas as vivências com lexias africanas e afro-brasileiras
na escola, e cada uma delas, de maneiras diversas, propicia a compreensão do léxico
associada ao entendimento cultural africano e afro-brasileiro.

Compõem o valioso espólio cultural transmitido através da palavra circulante nos


terreiros de tradição yorubá-nagô: os cantos rituais (orin), os encantamentos (ofó), as rezas
(adurá), as exaltações poéticas (oriki), a contação de mitos (ítan) e as lições por meio de

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

provérbios (òwe). Nas escolas, principais espaços de letramento, considerando o seu caráter
laico, é possível retomar: os oriki, por sua riqueza poética; os ítan, por agregar histórias
propagadas pela literatura oral yorubana; e os òwe, por aglutinar lições sintetizadas em
provérbios. Defendo a relevância desses conteúdos no currículo escolar, pois é através da
palavra que é mantida a memória coletiva, a verdadeira modeladora da alma africana e
arquivo de sua história, conforme Amadou Hampâté Bâ (1979 [1973]), ao se pronunciar
sobre o poder da palavra.

A partir dos resultados da minha pesquisa de doutoramento, notei como a fluência de


palavras africanas pode contribuir positivamente para a identificação dos estudantes com a
cultura africana, possibilitando-lhes a apropriação de um léxico vinculado a costumes
herdados de civilizações pautadas em sentimentos de gentileza, respeito, solidariedade. É por
meio da palavra que a criança pode se identificar com o que é belo, positivo, sadio. É a
palavra a “materialização das vibrações das forças que constroem o universo” (MACHADO,
2006, p.73).

Ancorando-me na concepção de que léxico e ideologia não se apartam e que as


identidades dos sujeitos são construídas a partir da língua, conforme Rajagopalan (2004) e
López (2002), assumi que os estudantes da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos estão
sendo educados na identificação com a cultura afro-brasileira de maneira positivadora. O
convívio natural com o léxico de origem africana lhes possibilita construções identitárias
pautadas em palavras que os encantam, conscientizam, subvertem, aconselham, acolhem,
unem, referenciam, educam, e enegrecem os seus falares. Em meio a essas palavras em
correnteza, múltiplas e fluidas identidades vão se formando, abarcando a pluralidade cultural
desses estudantes, que transitam por diversas formações discursivas. Esse é um dos caminhos
possíveis para suplantar a supremacia das ideologias de recalque e denegação cultural,
marcadas pelo ensino vernáculo predominante na maioria das escolas brasileiras, nas quais as
palavras de origem africana permanecem silenciadas.

Acredito que as ideias norteadoras da minha tese também possam ser aplicadas nas
escolas da rede pública de ensino de Alagoinhas – cidade baiana de grande contingente
populacional negro, onde há muitos quilombos 270 e terreiros271 –, considerando as
características e configurações culturais da comunidade escolar local, na condução do ensino-

270 O Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural – PPGCC da UNEB, inclusive, sediou o I Encontro dos
Quilombos de Alagoinhas com os Governos Federal, Estadual e Municipal em maio de 2013. Disponível em: <
http://www.poscritica.uneb.br/?p=2187>.
271Conforme Luzia Silva, em As comunidades de terreiro de Alagoinhas: memória, tradição oral e a constru -
ção da identidade cultural, há muitos terreiros em Alagoinhas e cidades circunvizinhas: Inhambupe, Mata de
São João, Catu e Pojuca.
Disponível em: <http://www.seara.uneb.br/sumario/alunos/luziamartins.pdf>.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

aprendizagem do léxico afro-brasileiro, sob a inspiração dos ensinamentos herdados dos


terreiros, quilombos e demais espaços de resistência negra. Dessa forma, penso engendrar
articulações de novas práticas pedagógicas pautadas em valores do povo negro, lançando
sobre esse povo um olhar mais atento à sua memória histórica na contemporaneidade, pois há
urgência em construir, continuamente, identidades espelhadas em um léxico vinculado à
identidade negra. Nesse sentido, em seu blog, a escritora Cristiane Sobral registra a
necessidade de criação de um novo léxico e uma nova gramática vinculados à identidade
negra, aos seus referenciais históricos, míticos, artísticos:

Acordei com o desejo de criação de outros tecidos literários, novas gramáticas,


com termos que nos contemplem. É preciso estudar os dicionários para criar
outras línguas e perceber que ainda podemos desdobrar, articular a nossa
língua, misturando bantu com iorubá, quimbundu com tupinambá, gêge (sic),
nagô. É preciso revisitar Timbuktu272, ou Tombuctu, a prestigiosa universidade
corânica de Sankoré 273. Pela criação de uma nova gramática repleta de
negrume, para que possamos recitar em bom negrês, que chegará a nossa vez...
(SOBRAL, 2012)274.

Se, historicamente, o branco, ao colonizar e escravizar, tratou de ordenar ao índio e ao


negro o “dobre a sua língua”, impondo-lhes o seu léxico, a sua gramática, a sua mitologia, é
chegada a hora de fazer o movimento inverso, engendrar o contracombate, “desdobrá-la”,
como sugeriu Sobral, brincando com o duplo sentido desse termo, incitando a liberdade de
criação, de desenvolvimento, de empoderamento por meio de uma linguagem própria. A
Educação tem as armas, uma delas pode ser a Literatura, a exemplo do trecho supracitado, a
outra, a Lexicologia. Não é mais possível aceitar que apenas a lusofonia, a lusofilia e as suas
heranças europeias gozem de um estatuto de disseminação das suas mitologias, consideradas
clássicas, criadoras de palavras, cujos processos de criação estão fincados e legitimados nas
gramáticas, em imensas listas de afixos gregos e latinos, a despeito do apagamento dos
léxicos de origem africana.

272A cidade de Tombuctu, localizada no norte do Mali, na África, é conhecida como depositório de saber, guar -
diã de antigos manuscritos científicos.
273 “A instituição foi uma das principais escolas islâmicas durante a Idade Média. As instalações da universida -
de, as mesquitas e os mausoléus de alguns dos mestres são patrimônio tombado pela UNESCO. Parte desses
prédios foi destruída durante a ocupação dos radicais islâmicos e há risco de que alguns dos 20 mil manuscritos
das escolas tenham sido roubados” (Gazeta do Povo, Curitiba, 28/01/2013). Disponível em:
<http://www.gazetadopovo.com.br/m/conteudo.phtml?id=1339842&tit=Militares-da-Franca-controlam-aces-
sos-a-cidade-historica-no-Mali>
Acesso em: jun. 2013.
274
SOBRAL, Cristiane. Provocações. 03/08/2012.
Disponível em: <http://cristianesobral.blogspot.com.br/2012/08/provocacoes.html>
Acesso em: out. 2012

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Compreender neologismos de origem africana, que circulam nos cenários literários,


midiáticos e em outros espaços de manifestações populares baianas – como
“oxuniana” (relativo a Oxum, deusa do amor e da beleza), “oguniana” (referente a Ogum,
deus da guerra, do ferro), “exuzíaca’ (referente a Exu, Senhor das comunicações, da
procriação, dos prazeres humanos), “xangótico” (relativo a Xangô, deus da justiça, da
sabedoria, do fogo e dos trovões) – é tão importante quanto compreender os termos de
etimologia grega: “afrodisíaco” (relacionado à Afrodite, deusa do amor),
“hermafrodita” (pessoa que possui os dois sexos: o falo, símbolo de Hermes; e a vulva,
símbolo de Afrodite), “narcisista” (alguém que nutre admiração por si mesmo, tal qual
Narciso), comportamento “edipiano” (de desejo pela própria mãe, assim como Édipo),
atividade “hercúlea” (trabalhosa, que demanda muitos esforços, como fez Hércules).
Em se tratando de Educação Infanto-Juvenil, é preciso oportunizar aos estudantes um
letramento literário (COSSON, 2006) baseado em livros ricos em linguagem que lhes
apresentem palavras de origem africana, envolvendo-os em uma atmosfera de encantamento,
a exemplo dos nomes dos personagens: Exu; Oxalá; Yemanjá; Oxum; Oiá; Euá; Ossãe;
Oxóssi; Ogun; Xangô; Okô; Oxumarê; Omolu etc. Há pouco, era impensável o acesso das
crianças e jovens ao repertório lexical do povo-de-santo em uma produção literária orientada
pela escrita, mas ele já ocorre em alguns livros, como os utilizados no Xirê de palavras, tais
como: Irê Ayó: mitos afro-brasileiros (MACHADO & PETROVICH, 2004), Epé Laiyé terra
viva (SANTOS, 2009), Caminhos de Exu (CUNHA, 2005), Yemanjá (CUNHA, 2007), Festa
de Iemanjá (BRANDÃO, 2006), Ogum, o rei de muitas faces e outras histórias dos orixás
(CHAIB & RODRIGUES, 2000), Iansã (LIMA & HOISEL, 2012), Oxóssi (LIMA &
ARAÚJO, 2012), Oxum (LIMA & ARAÚJO, 2012) entre outros.

Nas ações de letramento previstas no projeto Xirê de palavras, o acesso a tal literatura
pretende possibilitar a construção de um novo espaço simbólico, no qual predomine a
ampliação do repertório de palavras de origem africana e a reversão da condição subalterna
imposta pela escravização africana, ao contrário do que, por exemplo, acontece nas obras
infanto-juvenis de Monteiro Lobato. Nestas, todos os deuses e heróis são brancos, alguns
deles gregos275, e as personagens negras são, muitas vezes, associadas ao folclórico e
diabólico, como o Saci Pererê, ou ao subalterno, como a tia Anastácia e tio Barnabé,
desprovidos de família, sempre prontos a servir, representados de maneira caricatural. Em
seus livros de Literatura Infantil, Lobato, como muitos escritores ocidentais da sua época (e

275 No livro O Minotauro (LOBATO, 1939), os netos da personagem Dona Benta vivem aventuras na Grécia
antiga, encontrando personagens da mitologia desse país, e os leitores dessa Literatura Infantil passam a conhe-
cer características, façanhas e nomes de deuses, heróis e lugares: Péricles; Atenas; Fídias; Partenon; Palas Atena;
Tessália; Olimpo; Hércules; Sócrates; Hidra de Lerna; Ninfas; Náiades; Dríades; Sátiros; Esfinge; Oráculo;
Apolo; Labirinto de Creta; Sófocles etc. Essas aventuras continuam no livro Os doze trabalhos de Hércules
(LOBATO, 1944), no qual se podem observar os nomes: Hércules; Nemeia; Centauros; Micenas; Medusa; Mon-
te Cirineu; Erimanto; Fênix; Pã, o deus da Arcádia; os Argonautas; o rei Áugias; Medeia; Dionísio; Euristeu;
Dédalo; Delfos; Temiscira; Faetone; Clóris; Nereu; Prometeu; Belerofonte; Cérbero.

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contemporâneas

ainda alguns da contemporaneidade), associa a prática da magia ao mal, pois a feiticeira é a


vilã, a Cuca. Nas salas de aula contemporâneas, nos momentos de leitura e contação de
histórias, via de regra, os referenciais de culturas eurocêntricas ainda se sobrepõem aos de
culturas não eurocêntricas.

Sem dúvida, os educandos têm direito a ter acesso a todos esses referenciais, afinal,
“entre a Ática e a África, tanto podemos aproximar Hefesto e Ogum, ferreiros divinos, ou
Hermes e Exu, mensageiros itifálicos, quanto podemos apartá-los” (RISÉRIO, 1996, p.71). A
questão é que, diante do silenciamento histórico dos léxicos não brancos, diante do “dobre a
sua língua”, das incessantes tentativas de apagamento das vozes e letras pretas, faz-se
necessário acender a tinta das palavras, ou seja, prioritariamente, oportunizar aos educandos
novas perspectivas de letramento, possibilitando-lhes a ampliação de um repertório lexical
rico em referenciais negros.

Se a criança cristã, em casa ou na igreja, é educada a partir de uma mitologia bíblica


que reforça uma visão demoníaca e estereotipada sobre os africanos e as suas culturas, é
preciso que a escola faça um movimento inverso, educando a partir de mitologias e palavras
que engrandeçam o sujeito negro. A escola não tem a função de ensinar religião, mas pode e
deve mediar, no terreno da Literatura, as leituras críticas, em que os estudantes percebam que
coexistem histórias diversas, originadas de diferentes culturas e línguas.

1 Por que fazer girar palavras de origem africana?

Em face das demandas contemporâneas no contexto global em torno de representações


individuais e coletivas de si, bem como da implementação da lei 10.639/03 e a
obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira, o projeto Xirê de palavras
justifica-se, portanto, na medida em que pretende colaborar para a construção, em
Alagoinhas, de uma educação básica e uma educação acadêmica afinadas em seus propósitos,
que ponham em diálogo, por meio da pesquisa-ação, os conhecimentos acerca da língua,
literatura, educação, cultura e identidades afro-brasileiras, com o intuito de impulsionar os
estudos acerca de tais conhecimentos, fazendo-os circular na prática de letramentos,
combatendo o processo de “invisibilidade social” dos negros nos âmbitos local e global e
aumentando sua autoestima.

Nos livros de História do Brasil, durante muitos anos, houve uma grande lacuna sobre
a participação dos negros na formação sociocultural deste país, merecendo registros apenas
atividades relacionada ao trabalho escravo. A invisibilidade social negra é consequência do
processo de racialização do negro e do branco, que vem ocorrendo há cinco séculos. Esse
processo foi construído no circuito transatlântico da diáspora africana. O negro, em situação

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de escravidão, foi considerado inferior e teve a sua cultura desvalorizada; e o branco, tido
como superior, esmagou as culturas dos colonizados e escravizados, impondo-lhes a sua,
tornando-a hegemônica. Mesmo com a abolição da escravatura, ainda permanecem na
contemporaneidade todas as consequências da desassistência social às comunidades negras
proveniente do sistema escravocrata – o subemprego, a mendicância, a criminalidade, a falta
de moradia digna, a fome, a desnutrição, as doenças, o não acesso ou o difícil acesso à
educação institucionalizada de qualidade, a inicial proibição e a contínua demonização das
religiões de matriz africana pelos adeptos das religiões dos colonizadores etc.

Na América Latina, na América do Norte, na Europa e em outras regiões do mundo


onde o grupo etnicorracial dominante constitui-se de indivíduos de fenótipo branco (quase
sempre adeptos das religiões cristãs), o racismo e a violenta intolerância religiosa contra os
afrodescendentes e indígenas representam um grave problema social. Os colonizadores do
Novo Mundo nutriram a ânsia catequética missionária, que sempre aprovou os genocídios
contra os “pecadores”, ou seja, os não cristãos, apropriando-se dos territórios e riquezas
desses povos.

Assim, no âmbito acadêmico, ao tentar lançar um olhar desvinculado da visão euro-


ocidental de mundo, é possível compreender a lógica da estereotipização do negro, da sua
cultura e da sua religiosidade, como, por exemplo, a demonização dos candomblecistas,
umbandistas e demais fiéis de religiões de matriz africana. Cabe, então, a todos os
educadores, inclusive aos que atuam na área de Letras, acender a tinta da resistência negra e
combater o etnocentrismo e as discriminações raciais, religiosas ou quaisquer outras,
principalmente, quando partem dos livros didáticos, das gramáticas, do currículo ou quando
são manifestadas em sala de aula.

Na área dos estudos linguísticos, as contribuições das línguas africanas no português


falado e escrito no Brasil é um fato. A maioria das gramáticas normativas da língua
portuguesa (senão todas), no entanto, no que se refere ao estudo dos processos de formação
de palavras, só traz listas de prefixos e sufixos gregos e latinos, “invisibilizando” as
contribuições africanas na Língua Portuguesa, o que não deveria ocorrer, haja vista que não
se pode menosprezar o fato de que o português foi imposto como segunda língua a uma
população majoritária de falantes africanos durante três séculos consecutivos, e o Brasil,
atualmente, possui a maior população afrodescendente concentrada fora do continente
africano” (CASTRO, 2009).

Há muito o que se pesquisar, produzir e divulgar no sentido de desconstruir; o que a


Linguística já registrou a respeito das línguas africanas; e, por extensão, o desprestígio dos
falares afro-brasileiros. De acordo com o historiador Ki-Zerbo, o linguista que se propõe

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estudar as línguas africanas (e pensa-se que, por extensão, as de povos afrodescendentes)


deve, antes de tudo, estar despido de olhares etnocêntricos, a fim de não falsear sobre a
identidade desse povo, não cristalizando nem criando estereótipos em torno da sua língua:

De qualquer maneira, a linguística, que já prestou um bom serviço à história da


África, deve desvencilhar-se de início do desprezo etnocentrista que marcou a
linguística africana elaborada por A. W. Schlegel e Auguste Schleicher,
segundo a qual “as línguas da família indo-europeia estão no topo da evolução,
e as línguas dos negros, no ponto mais baixo da escala, apresentando estas,
entretanto, o interesse de – segundo alguns – revelar um estado próximo ao
estado original da linguagem, em que as línguas não teriam gramática, o
discurso seria uma sequência de monossílabos e o léxico estaria restrito a um
inventário elementar”. (KI-ZERBO, 2007).

Na área dos Estudos Literários, durante anos, privilegiou-se o ensino da Literatura


Portuguesa e, na Literatura Brasileira (canônica), ignorou-se a existência da produção
literária de autoria negra, ainda conservando o ímpeto homogeneizante de uma estética
eurocêntrica. Nem mesmo Machado de Assis escapou do embranquecimento para se tornar
baluarte das Letras Brasileiras. Na maioria das representações fisionômicas de Machado de
Assis, vê-se um homem com características fenotípicas brancas. Apenas na década de 1970,
começa a se delinear o reconhecimento de uma Literatura genuinamente Afro-Brasileira, com
a escrita dos Cadernos Negros por autores assumidamente negros.

Para modificar esse panorama, em obediência à Lei 10.639/03, os Cursos de


Licenciatura em Letras devem possibilitar o ensino e a pesquisa (e a promoção de divulgação
e discussão dos seus resultados) em torno das Línguas Africanas e suas contribuições na
Língua Portuguesa, bem como das Literaturas Africanas e Afro-Brasileiras, associando-as às
produções literárias e culturais locais. Para Amâncio (2008, p.36), apesar da referida lei, “a
população negra ainda não se vê registrada nos conteúdos escolares, exceto como peça/
produto comercial e força de trabalho no período colonial”.

O caminho da construção de identidades afro-brasileiras ainda está bastante


comprometido, pois “os possíveis referenciais são invisibilizados, apagados da memória
histórica, ou desautorizados mediante qualificações como ‘cultura folclórica’, ‘arte popular’,
‘culto animista’ e assim por diante”. (NASCIMENTO, 2003, p.152.)

Como se pode constatar, o ainda superficial diálogo entre tradições culturais negras,
seu potencial de resistência e as Letras remete ao desrespeito à realidade sociocultural dos
estudantes, principalmente os da periferia, cursistas da rede pública de ensino, em maioria,
afrodescendentes. É preciso possibilitar que as expressões afro-brasileiras sejam visibilizadas

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como um saber, que estejam inseridas no currículo escolar e acadêmico, desde as práticas de
letramento até a produção de textos científicos. Nesse sentido, o fenômeno do letramento
ultrapassa o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de
introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita (KLEIMAN, 1995). Então,
letramento, para essa autora, é um conjunto de práticas com objetivos específicos e em
contextos específicos, que envolvem a escrita. A escola, portanto, pode ser apenas uma
agência fomentadora de letramento, dentre várias outras, e realiza apenas algumas práticas de
letramento. Para além dos portões das escolas, também se realizam letramentos diversos.

Eis o espírito fraterno suscitado pela simbologia do Xirê: a “celebração móvel” das
identidades, da diversidade irmanada, o desejo de fazer circular, em sala de aula e demais
espaços de letramento e produção científica, de maneira equânime e respeitosa, as expressões
afro-brasileiras na língua e na literatura. Segundo Hall, o sujeito pós-moderno não detém uma
identidade fixa, essencial ou permanente, pois essa se torna “uma celebração móvel”, por ser
construída processualmente e de acordo com as formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL, 2001). Assim, estar em
celebração constante consigo mesmo, aceitando-se, afirmando-se precisa ser um exercício
diuturno.

No Xirê de palavras, então, temos como objetivo geral: proporcionar vivências com
lexias africanas e afro-brasileiras, de modo a causar impactos sociolinguísticos positivos na
construção identitária dos estudantes do Ensino Fundamental I das escolas públicas de
Alagoinhas. Como objetivos específicos, no referido projeto, buscamos: 1) oferecer
alternativas para o ensino atualizado das palavras de origem africana e da mitologia afro-
brasileira, em consonância com o que prevê a Lei 10.639/03 sobre ensino de língua, literatura
e cultura afro-brasileira; 2) produzir material crítico atualizado acerca de letramento por meio
de obras literárias infanto-juvenis que ampliam o repertório lexical dos leitores e/ou ouvintes
dos mitos afro-brasileiros contados, de modo que tal material possa servir de referência para
os programas de formação docente desenvolvidos pela UNEB; 3) mapear e publicar os mitos
locais, a ser registrados por meio de entrevistas; 4) mapear as redes constituídas pelos
diálogos entre a mitologia afro-brasileira (herdada da oralidade, mas também registrada em
livros) e a que sobrevive na oralidade local; 5) conduzir os estudantes ao conhecimento do
legado cultural afro-brasileiro, à desconstrução de estereótipos referentes ao sujeito negro e a
construções identitárias pautadas no respeito à diversidade.

Para o desenvolvimento do projeto de pesquisa-ação (cf. THIOLLENT, 2011), são


previstas as seguintes etapas metodológicas: levantamento bibliográfico; leitura e análise da
bibliografia; visita de campo (espaços de letramento em Alagoinhas, sobretudo, salas de aula
do Ensino Fundamental I das escolas públicas, comunidades quilombolas, comunidades de

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terreiro etc.) para coleta de dados que nortearão a pesquisa-ação; análise do material
coletado; contação de mitos afro-brasileiros em oficinas de leitura (cf. KLEIMAN, 1993) nas
escolas ou rodas de leitura em outros espaços de letramento (praças públicas, jardins, áreas
verdes da cidade etc.); entrevistas (escuta dos falares de um grupo amostral de 10 estudantes);
registro dos mitos locais coletados por meio das entrevistas; ações de intervenção (contato
com palavras de origem africana por meio de vivências orientadas pela contação dos mitos:
uso seleto e diligente de livros paradidáticos; consultas lexicográficas e elaboração de
pequenos dicionários; cânticos); análise dos resultados; elaboração de artigos pelos
pesquisadores; elaboração e distribuição de livretos infanto-juvenis de mitos afro-brasileiros
nas escolas públicas de Alagoinhas.

Até a presente data, no desenvolvimento do projeto Xirê de Palavras, foram


cumpridas as seguintes etapas: levantamento bibliográfico; leitura e análise da bibliografia
pelos pesquisadores (docentes e discentes) envolvidos no projeto; visita de campo
(inicialmente, à comunidade do quilombo do Buri) para coleta de dados; análise parcial do
material coletado; oferta de minicursos por pesquisadoras discentes (sob orientação da
pesquisadora docente e coordenadora do projeto). Ainda há visitas a fazer em outros espaços
de letramento, sobretudo, nas escolas. As visitas a campo tardaram a começar devido à longa
duração da greve de docentes das Universidades Estaduais da Bahia, que durou 86 dias, de
13/05/2015 a 09/08/2015. A partir de agosto do mesmo ano, priorizou-se o aprofundamento
do estudo bibliográfico, outrora iniciado.

A partir de dezembro, deram-se os primeiros contatos para a visita à comunidade


quilombola do Buri. Em janeiro de 2016, a pesquisadora Ester Paixão dos Santos, graduanda
do sexto semestre do curso de Letras do Departamento de Educação, Campus II, da UNEB,
sob a minha orientação, deu início à pesquisa vinculada ao Xirê de palavras, intitulada Um
olhar lexicológico sobre os falares dos remanescentes do quilombo Buri, em Alagoinhas. Tal
pesquisa, em desenvolvimento, resultará em um Trabalho de Conclusão de Curso em 2017,
mas resultados parciais já foram apresentados no VIII Seminário de Estudos Filológicos, no
dia 06 de julho de 2016, na Universidade Estadual de Feira de Santana.

Nos falares dos sujeitos da comunidade do Buri, Ester Paixão, fundamentando-se na


Teoria dos Campos Lexicais, de Coseriu (1977), identificou diversas lexias de origem
africana, selecionando 22 (vinte e duas) para análise, as quais foram organizadas em 7
macrocampos lexicais – da culinária, dos animais, das plantas, das danças, das músicas, do
candomblé, das comunidades, subdivididos em microcampos lexicais (conforme se pode
notar no esquema gráfico a seguir, intitulado Léxico de origem negro africana no quilombo
do Buri), contextualizadas em trechos dos falares transcritos, e glosadas.
Autoria: Ester Paixão dos Santos (2016)

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Como considerações provisórias, constatamos que os moradores do quilombo do Buri,


arquivos vivos das heranças culturais africanas, mantêm em seus falares a presença de
afluxos linguísticos, seja no rememorar de palavras que entraram em desuso (tal como
“muringa”), nas cantigas de samba de roda, na alimentação, ao citar iguarias que fazem parte
dos seus cotidianos, no uso de plantas para diversas finalidades (medicinais, curativas
espirituais, mágicas, perfumaria etc.). A coleta e a análise dessas lexias servirão para compor
um Pequeno vocabulário do quilombo do Buri, bem como para a elaboração de livretos de
histórias infanto-juvenis, utilizando o léxico circulante na oralidade dos quilombolas do Buri,
e distribuição nas escolas públicas de Alagoinhas.

Espera-se, com o projeto Xirê de palavras, dar seguimento a produções profícuas dos
pesquisadores, amadurecendo, no Campus e nos discentes, o trabalho de pesquisa. Visualiza-
se, com a continuidade desse projeto, uma participação direta entre a Academia e a sociedade
local, podendo intervir e contribuir para a visibilidade das culturas locais, em especial, das
heranças africanas na língua falada e na literatura, e do contato com outras culturas. Espera-
se, sobretudo, impulsionar as ações de letramento, fazer circular palavras de origem africana
e, por conseguinte, contribuir para uma educação voltada à pluralidade cultural.

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Sensibilização para o/pelo olhar: um projeto de engenharia didática sobre a leitura e a


escrita do gênero textual crônica

Luiz Antônio Ribeiro


Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
Cefet-MG
luiz.antonio.ribeiro32@gmail.com

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Resumo: esta pesquisa explora o exercício do olhar como forma de experiência estética e
subjetivação. As reflexões apresentadas tiveram como ponto de partida a idealização e
implementação de um projeto de engenharia didática sobre leitura e escrita do gênero literário
crônica. As atividades desenvolvidas nesse projeto embasaram-se nos seguintes
questionamentos: O que é o exercício do olhar? Como essa prática pode contribuir para a
formação autônoma e cidadã? Considerou-se que as mediações realizadas por meio de um
projeto de engenharia didática e que valorizam o exercício do olhar potencializam a vivência
de experiências estéticas e humanizadoras. Os resultados sinalizam o fortalecimento/
favorecimento das interações entre professor, alunos e objetos de conhecimento; participação
ativa no cumprimento das atividades de linguagem; e desenvolvimento do senso de
humanização a partir das atividades exploradas. A importância desta pesquisa reside em
maior reflexão sobre como as práticas de linguagem podem contribuir para a formação de um
sujeito crítico, autônomo e mais humanizado, se forem desenvolvidas por meio de um projeto
de engenharia didática, que explore atividades desencadeadas a partir do olhar.

Palavras-chave: engenharia didática; olhar; crônica.

Abstract: this research explores the exercise of looking as a form of aesthetic experience and
subjectivity. The starting point for the reflections presented in this work was the idealization
and implementation of a didactic engineering project on reading and writing of literary
chronicle genre. Activities under that project were based on the following questions: What
does exercise of looking mean? How can this practice contribute to an autonomous and
citizen formation? It was considered that the mediations done through a didactic engineering
project which value the exercise of looking strenghten aesthetic and humanizing experience.
The results indicate the strengthening / favouring of interactions between teacher, students
and objects of knowledge as well as active participation in the language activities and the
development of the sense of humanization from the practiced activities. The importance of
this research lies in greater reflection on how language practices can contribute to the
formation of a critical, autonomous and more humanized subject if they are developed
through a didactic engineering project that explores activities from the looking.
Keywords: didactic engineering; looking; chronicle.

1. A cognição visual e a construção de cores e imagens

Para tratar da cognição visual, apresento resumidamente uma pequena crônica de


Eduardo Galeano sobre Diego, uma criança que, ao avistar o mar pela primeira vez, ficou
muda diante da sua imensidão e do seu fulgor. Por fim, já recuperada a fala, trêmulo e gago, o
filho pede: “- Pai, me ensina a olhar!”. Em seu tratado sobre a visão, influenciado pelo

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pensamento goetheano, Schopenhauer (2003, p. 29) inscreve seu tratado no campo da


cognição, ao asseverar que “toda visão é intelectual, pois sem o intelecto jamais haveria
visão, percepção ou apreensão de objetos”. O filósofo explica que uma criança recém-
nascida, embora perceba com todos os seus sentidos, não consegue apreender a realidade.
Gradativamente ela vai aprendendo a usar o seu intelecto, a aplicar a lei da causalidade
imanente em sua consciência e relacioná-la com as também imanentes formas de todo
conhecimento, do tempo e do espaço. “Assim, ela vai da sensação à visão e à apreensão, e a
partir daí olha o mundo com olhos sensatos e inteligentes.” (Idem, p. 32)

A visão, compreendida como a percepção de um objeto, ocorre a partir das


estimulações do meio externo, que acionam diferentes funcionalidades do córtex visual numa
complexa atividade cerebral. O cérebro visual é uma combinação de atividades cognitivas
superiores. Seus neurônios são suficientes para organização e interpretação de sensações
básicas, entretanto elaborações mais complexas exigem ação conjunta de outras capacidades
cerebrais, tais como a memória e a emoção, e também da de outras zonas cerebrais
relacionadas a um movimento, uma forma e uma representação do real. A estrutura cerebral
associa, de um lado, estabilidade e relativa uniformidade inerente à espécie humana, e de
outro, subjetividade e versatilidade, caracterizadas pelas diferenças genéticas comuns de um
indivíduo e pelas ações externas do meio sociocultural em que vive.

Na obra “Doutrina das Cores”, publicada em 1813, Goethe defende que a capacidade
de percepção das cores está intrinsecamente relacionada ao campo visual. Para esse filósofo,
a realidade das cores origina-se na relação estabelecida entre o olho e a luz: “o olho se põe
em atividade logo que percebe a cor e é de sua natureza produzir imediatamente, de forma tão
inconsciente quanto necessária, uma outra que, juntamente com a primeira, compreende a
totalidade do círculo cromático” (GOETHE, 1993, p. 146).

O cientista rompe com a visão newtoniana, segundo a qual a luz do sol se decomporia
em diferentes cores constituintes. Pela teoria de Isaac Newton, as cores representam um
fenômeno puramente físico e surgem das qualidades coloríficas dos raios luminosos. Estes
seriam captados de forma passiva pelo olho humano, que visualizaria as cores como mero
observador. Goethe abandona esse paradigma, ao considerar a postura ativa e a subjetividade
do observador, conforme explica Crary (2012), já que as sensações de cores são moldadas
pela nossa percepção, ou seja, pelo aparato fisiológico do olho e pela forma como o cérebro
processa as informações.

Aduzindo ao "efeito sensorial-moral das cores", o filósofo alemão põe em evidência a


percepção humana, cuja origem reside na corporeidade do observador. As cores são
essenciais em nossa percepção do mundo e se concretizam na forma de luz: “O olho deve sua

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existência à luz. (...) o olho se forma na luz e para a luz, a fim de que a luz interna venha ao
encontro da luz externa. (GOETHE, 1993, p.44). Assim, a cor é “natureza na forma de lei
para o sentido da visão” (idem, p. 45) e constitui-se de um fenômeno básico que nos permite
ser sujeitos de nossas próprias experimentações. A experiência da cor nos permite vivenciar
uma agradável sensação, conforme observa o filósofo:

As cores que vemos nos corpos não são algo completamente estranhas ao olho,
como se de algum modo fosse a primeira vez que tivesse tal sensação. Ao
contrário, esse órgão sempre se dispõe a produzir, por si mesmo, as cores, e
desfruta de uma sensação agradável, quando externamente se apresenta algo
adequado a sua natureza e se fixa de modo significativo sua capacidade de ser
determinado numa certa direção. (GOETHE, 1993, p. 140).

A compreensão da visão enquanto capacidade cognitiva será designada por


Schopenhauer (2003, p. 26) como a “teoria da visão empírica exterior dos objetos no espaço”.
Um aspecto a se destacar de seu tratado é o princípio da causalidade, segundo o qual a
percepção deve ser compreendida a partir de um ponto de vista causal, onde estímulos de luz
provocam sensações que darão origem à percepção das cores.

A visão cognitiva nos possibilita captar as impressões externas mais apuradas e mais
variadas, que resultarão na formação de imagem. Por meio dela, somos capazes de perceber o
voo de um pássaro, ler e apreciar um poema ou reconhecer um amigo que há muito não
víamos. A cognição visual também nos torna possível, por meio da imaginação, construir
imagens mentais e simbólicas, que podem parecer tão reais e intensas quanto as do mundo
perceptual. É por meio do trabalho mental que construímos, por exemplo, a imagem de Deus
e da liberdade. A esse respeito, Mari e Silveira (2010, p. 4) observam:

A ideia de Deus, em grande parte das culturas, não é imaginada sem um apelo à
atividade visual: concebemo-lo a partir de algum padrão imagético; as religiões
o materializam icônica, simbolicamente. O pensamento sobre a liberdade, a
virtude, a sinceridade pode ser acrescido de algum traço de caráter visual:
pensamos a liberdade em termos da nossa capacidade de circular pelo espaço,
ou do espaço para elaborar ideias sobre os objetos, sobre as pessoas que nos
circundam; erigimos a sinceridade como um atributo de ações de pessoas sobre
os objetos, sobre os fatos do mundo, para os quais parte do conhecimento
decorre da atividade da visão.

Tal como se apresenta, a elaboração de imagens mentais envolve um sofisticado


exercício imaginativo, que integra diferentes sensações, percepção, espacialização e
movimento, entre outros processos. Para tanto, necessita da atuação conjunta entre a visão e
outros órgãos do sentido.

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Outro aspecto a se considerar na doutrina de Goethe diz respeito à nossa percepção


gestáltica das imagens. Segundo a teoria da Gestalt, a nossa percepção de cada parte do todo
é proveniente do próprio todo, e não resultante de um processo de simples adição de suas
partes constituintes. Exemplo disso é que, quando vamos comprar um automóvel, nosso
primeiro olhar volta-se principalmente para o seu design e performance. Não nos ocupamos
em verificar cada uma das peças que compõem o motor, a transmissão, os freios, o sistema
elétrico, a direção, a suspensão e a carroceria, embora percebamos a importância de cada uma
delas para o bom funcionamento do veículo.

Para além das funcionalidades do veículo, a atividade da visão nos permite relacionar
velocidade, espaço de circulação e estacionamento, sinais de trânsito, etc. Formamos uma
visão integrada a respeito do funcionamento do automóvel e de seu uso nos espaços públicos.
Assim, compreendemos os objetos dentro das relações. A primeira sensação ocorre de forma
global e unificada; em seguida, podemos perceber os detalhes que constituem o todo, num
processo eminentemente dedutivo. A cognição visual, dessa forma, só pode ser estudada e
compreendida a partir de uma concepção holística, gestáltica do homem e sua interação com
o ambiente.

2. A crônica: olhar e subjetividade

Qual é a substância da crônica? Qual a relação entre esse gênero e a ação de olhar? A
resposta para tais questionamentos encontra-se na sensibilidade e no olhar contemplativo do
observador para a beleza e simplicidade da vida pulsante ao seu entorno, conforme explica
Fernando Sabino em seu texto “A última crônica”:

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao
balcão. (...) Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso
conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida.
Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer
num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente
doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem
mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do
poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não
sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde
vivem os assuntos que merecem uma crônica. (SABINO, 1986, p. 206-208)

Eis aí a essência da crônica: subjetividade, brevidade e simplicidade. O cronista busca


sua inspiração no prosaico, nas singelezas do cotidiano, nos pequenos eventos e na delicadeza
dos gestos. Em “A vida ao rés-do-chão”, o crítico Antônio Candido chama a atenção para o
barro do qual se produz uma crônica, que pode versar inclusive sobre questões mais sérias:

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(...) a crônica pode dizer as coisas mais sérias e mais empenhadas por meio do
ziguezague de uma aparente conversa fiada. Mas igualmente sérias são as
descrições alegres da vida, o relato caprichoso dos fatos, o desenho de certos
tipos humanos, o mero registro daquele inesperado que surge de repente (...)
Tudo é vida, tudo é motivo de experiência e reflexão, ou simplesmente de
divertimento, de esquecimento momentâneo de nós mesmos a troco do sonho
ou da piada que nos transporta ao mundo da imaginação, para voltarmos mais
maduros à vida, conforme o sábio. (CÂNDIDO, 1992)

O observador, por meio do espírito sensível, reflexivo e imaginativo, capta os


acontecimentos mais breves e circunstanciais e os transforma em linguagem. As suas
impressões acerca do objeto ou evento narrado resultam de sua leitura do mundo, das suas
experiências pessoais, dos seus interesses e aspirações. Destaca-se, nesse sentido, a
importância do olhar como elemento chave para observação, formação de impressões e
interação com o universo interior e exterior.

É aí que reside uma de suas principais características: a subjetividade. Moisés (1978)


destaca que todo assunto, ou mesmo a sua ausência, pode se transformar em uma crônica.
Para isso, é essencial um olhar pessoal e sensível do cronista sobre a temática abordada, que
lhe possibilite articular as imagens do cotidiano com as suas vivências. Segundo esse autor

A impessoalidade é não só desconhecida como rejeitada pelos cronistas: é a sua


visão das coisas que lhes importa e ao leitor; a veracidade positiva dos
acontecimentos cede lugar à veracidade emotiva com que os cronistas divisam
o mundo. Não estranha, por isso, que a poesia seja uma de suas fronteiras,
limite do espaço em que se movimenta livremente; e o conto a fronteira de um
território que não lhe pertence. (MOISÉS, 1978, p. 255)

Utilizando-se de uma linguagem aparentemente despretensiosa, porém impregnada de


reflexão e lirismo, o cronista narra as suas experiências, por meio das quais ele vai se
constituindo enquanto sujeito. O universo de suas emoções transcende a sua individualidade,
visto que toda linguagem postula a existência de um outro sujeito, com o qual passa a
interagir. A intersubjetividade constitui-se, desse modo, pelo diálogo entre diferentes sujeitos,
caracterizado pela singularidade, já que as contribuições de cada um deles refletem diferentes
olhares e percepções que se mesclam em um evento único e irrepetível. A crônica se
consagra, desse modo, como um espaço privilegiado de encontro de vivências e emoções.

Com seu olhar sensível e poético, o cronista usa como matéria-prima as sutilezas do
cotidiano, para revelar o belo contido naquilo que é comum, familiar, pouco perceptível. A
crônica, no que diz respeito ao tempo verbal, mescla duas atitudes comunicativas: a do

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mundo narrado, evidenciado pela retrospecção e prospecção; e a do mundo comentado,


caracterizado pelo presente, o tempo das emoções e que, segundo o autor ora citado, irá
prevalecer.

A crônica deixa emanar o lirismo, os estados de alma de seu autor, sublimados a partir
de suas experiências. Estas não refletem apenas um conjunto de vivências sedimentadas ao
longo do tempo, mas a ação de experienciar, consequente de um olhar aguçado sobre o
factual, o cotidiano da cidade. Entretanto seu objetivo transcende a mera representação do
real, pois:

Para ver além da banalidade, o cronista vê a cidade com os olhos de um bêbado


ou de um poeta: vê mais do que a aparência, e descobre, por si mesmo, as
forças secretas da vida. Não se limita a descrever o objeto que tem diante de si,
mas o examina, penetra-o e o recria, buscando sua essência, pois o que
interessa não é o real visto em função de valores consagrados. É preciso ir mais
longe, romper as conceituações, buscar exatamente aquilo que caracteriza a
poesia: a imagem. (SÁ, 2005, p. 48)

A beleza esconde-se por detrás das aparências e do automatismo. Para desvelá-la, o


cronista deve afastar-se da superficialidade e do imediatismo, volvendo cuidadosamente o seu
olhar em busca da essência de cada ser vivente ou não. É preciso flanar pela cidade, mas não
como um observador desatento e desinteressado. É importante perceber os sons, os odores, as
cores, a singularidade de cada espaço, os sentimentos secretos de cada passante em meio à
multidão. Benjamin assim descreve a relação do flâneur com a rua:

A rua se torna moradia para o “flâneur” que, entre as fachadas dos prédios,
sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os
letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom
ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha
onde apoia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e
os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente.
(BENJAMIN, 1989, p. 35)

Ao errar pelas ruas da cidade, passando pelos jardins, estátuas, prédios, galerias,
mercados e observando os mais diferentes tipos de pessoas, o flanêur percebe o mundo de
uma maneira particular. Com sua sensibilidade, ele experiencia o mundo a partir de seu
universo interior - suas memórias, sua vocação, seu universo místico, suas paixões e seus
conflitos – a partir do qual novas descobertas acontecem e novas realidades vão sendo
construídas. Sua relação, entretanto, não é a de um observador privilegiado e distante, já que,
ao perceber a cidade, ele se identifica e se mescla com ela. Sem a intenção de revelar seus
caminhos, o flâneur nos oferece múltiplas possibilidades de construir e seguir o nosso próprio

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itinerário por meio da intuição, já que a única estrada a seguir é aquela construída por meio
de nossas próprias vivências e desejos íntimos.

Massagli (2008, p. 57) atribui ao flâneur o papel de leitor da cidade e de seus


habitantes, por meio de cujas faces ele procura compreender os sentidos da vida urbana. Sua
flanêurie faz com que a cidade se transforme em “um espaço a ser lido, um objeto de
investigação, uma floresta de signos a serem decodificados – em suma, um texto”. Esse
processo de semiotização da cidade de certo modo dialoga com as célebres palavras de Paulo
Freire (1989) sobre a importância do ato de ler. Para esse educador, o modo de apropriação da
linguagem, ou seja, da “palavramundo”, encontra ressonâncias na leitura do universo
particular do leitor, podendo-se concluir daí que a “leitura do mundo precede sempre a leitura
da palavra” (p. 13).

3. Metodologia da pesquisa

Esta pesquisa pretendeu discutir sobre o exercício do olhar como uma forma de
desenvolvimento e potencialização da sensibilidade estética, a partir de um projeto de
engenharia didática com foco na leitura e produção de textos. Sua realização derivou das
reflexões de uma equipe de professores integrantes da área de Linguagens e Códigos de uma
instituição federal a respeito da organização e implementação de um projeto de leitura e
produção do gênero textual crônica a ser desenvolvido com alunos do primeiro ano do Ensino
Médio, em conformidade com as orientações da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo
o Futuro, de 2016. Para tal, partiu-se dos seguintes questionamentos: O que é o exercício do
olhar? Como tal atividade pode contribuir para o desenvolvimento de práticas de leitura e de
escrita, bem como para uma formação humana e cidadã?

A hipótese aventada foi a de que o desenvolvimento de um projeto de Engenharia


Didática com foco na leitura e produção de textos e que considere a sensibilização para e pelo
olhar potencializa a vivência de experiências estéticas e humanizadoras. Objetivou-se analisar
as interferências do exercício do olhar em ensaios fotográficos e crônicas produzidas por
alunos do primeiro ano do Ensino Médio, bem como a relevância dessa ação no processo de
constituição da subjetividade do aluno leitor-autor. Esta é uma pesquisa qualitativa, cujo
corpus consistiu de um projeto de engenharia didática idealizado pelos professores, bem
como dos textos orais e escritos produzidos pelos alunos durante a implementação do mesmo.
Para este artigo especificamente, o corpus analisado consta de vinte e cinco ensaios
fotográficos realizados por equipes de alunos em um trabalho proposto pelo professor durante
a oficina de fotografia, que antecedeu as atividades de produção dos textos.

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Os resultados apontam para maior dialogicidade entre professor, alunos e objetos de


ensino; motivação no cumprimento das tarefas propostas; e a sensibilização para o e pelo
olhar como uma forma de percepção, significação da palavra e constituição do sujeito. Tal
pesquisa se justifica, pois oportuniza maior reflexão e compreensão de como a prática de
leitura e escrita pode alcançar resultados mais satisfatórios, se for desenvolvida por meio de
um projeto de Engenharia Didática, que explore o exercício do olhar como forma de
humanização.

4. Apresentação dos dados

A Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro é um evento que, neste ano


de 2016, encontra-se em sua quinta edição e vem oferecendo importantes contribuições para
a melhoria do ensino da leitura e escrita de alunos de escolas públicas brasileiras de Ensino
Fundamental e Médio. O tema selecionado pelos organizadores foi “O lugar onde vivo”,
oportunidade ímpar para que os alunos desenvolvessem a sua cidadania por meio do
estabelecimento de vínculos com a comunidade e do conhecimento da realidade local.

Diante do desafio de apresentar uma proposta de ensino que oportunizasse aos alunos
do primeiro ano do Ensino Médio o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita do
gênero textual crônica, a equipe de professores citada engajou-se na idealização e no
desenvolvimento de um projeto de Engenharia Didática a partir da proposta apresentada pela
Olimpíada. Considerou-se, para esse fim, a importância do exercício do olhar como forma de
sensibilização, experienciação estética, constituição da subjetividade e formação da
cidadania. O cumprimento das tarefas requeria dos alunos envolvimento e participação ativa.

Os dados apresentados fundamentaram-se nas quatro etapas previstas para um projeto


de Engenharia Didática, conforme Dolz (2016, p. 243-244). A primeira fase, relativa à análise
prévia do trabalho de concepção, está voltada para o conhecimento dos objetos de ensino a
partir de um quadro teórico adotado pelo pesquisador e dos conhecimentos didáticos
relacionados ao objeto de estudo. A segunda fase diz respeito à concepção de um protótipo de
dispositivo didático, constituído de uma produção inicial com uma série de oficinas e
atividades que permitam avaliar as capacidades dos alunos, bem como de uma produção final
que possa mensurar os efeitos do ensino. Tais ações alcançam maior eficiência por meio do
desenvolvimento de sequências didáticas. A terceira fase, a da experimentação, constitui-se
da aplicação das sequências didáticas elaboradas na fase anterior a um grupo de alunos, com
vistas a verificar as hipóteses levantadas na análise preliminar. A última fase, a da análise dos
resultados, permite confrontar as conclusões elaboradas na análise prévia com as
constatações evidenciadas na aplicação da sequência didática.

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Para a construção do projeto, foram organizados vinte e oito encontros presenciais,


realizados em classe e extraclasse, perfazendo um total de sessenta e uma horas trabalhadas.
Não foram computadas nessas horas as atividades extraclasses de correção de textos e de
avaliação a cargo do professor. A implementação do projeto ocorreu a partir de quatro
sequências didáticas inter-relacionadas, que contaram com a participação de l28 alunos do
primeiro ano do Ensino Médio, divididos em quatro turmas. As atividades de idealização e
execução do projeto foram assim desenvolvidas:

Nº de Carga
Fase Encon- Horá- Procedimentos
tros ria

• Definição da proposta de trabalho, tomando-se como


base os referenciais da Olímpiada da Língua Portuguesa
Escrevendo o Futuro 5ª edição – 2016.
• Levantamento de material bibliográfico que suportasse a
pesquisa empreendida: a sensibilização para e pelo olhar;
1ª Fase: e o gênero textual crônica.
Análises pre- 5 10h • Leitura e análise das informações e do material didático
liminares disponibilizados no site da Olimpíada de Língua Portu-
guesa, relacionado ao gênero textual crônica e às suges-
tões de sequências didáticas propostas.
• Levantamento de materiais didáticos diversificados (di-
ferentes textos multimodais, filmes, músicas, etc.), a se-
rem utilizados na construção dos objetos de ensino.

Planejamento e implementação das seguintes sequências


didáticas:
• Oficina “Fotografia fácil”. Atividade em equipe.
• O gênero textual crônica: funcionamento sociodiscursivo
2ª Fase:
e fruição literária. Atividades individuais.
Construção
de protótipos 5 15h • Leitura e análise da coletânea de textos intitulada “Crô-
de dispositi- nicas da Cidade Amada”. Seminário e atividade em equi-
vos didáticos pe.
• Escrita colaborativa: “O lugar onde vivo”. Produção in-
dividual de texto. Reescrita a partir de comentários críti-
cos feitos pelos integrantes da equipe e correções do pro-
fessor.

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• Participação em uma oficina de fotografia, cujo produto


final fosse a apresentação de uma imagem sobre algum
aspecto da cidade em que vive, bem como reflexão sobre a
mesma, que representasse o olhar do aluno considerando-
se a sua condição de leitor e de cidadão.
• Realização de leitura e análise de crônicas, com vistas à
3ª Fase: Ex- compreensão do seu funcionamento sociodiscursivo.
12 24
perimentação
• Apreciações literárias a partir de crônicas de diferentes
autores com vistas à fruição e reelaboração da realidade.
• Produção de uma crônica que evidenciasse um olhar so-
bre a cidade, conforme a proposta da Olimpíada de Língua
Portuguesa, utilizando, para tal, um ambiente de escrita
colaborativa.

• Avaliação processual a partir dos seguintes instrumentos:


4ª Fase: exercícios e produções individuais; debates; reuniões de
Análise dos 6 12 equipe; apresentação de trabalhos; leitura e análise dos
resultados textos produzidos pelos colegas no ambiente virtual de
escrita colaborativa.

Tabela 1: Idealização e construção de um projeto de Engenharia Didática

A primeira fase consistiu de dois movimentos de pesquisa distintos, mas que se


integravam em uma única proposta: um relacionado ao levantamento dos pressupostos
teóricos subjacentes à leitura literária e ao gênero textual crônica, e outro relativo à seleção
de materiais didáticos, que servissem como referenciais do protótipo de dispositivo didático a
ser desenvolvido. Essa tarefa favoreceu o desenvolvimento de um referencial cognitivo
norteador da pesquisa em seus aspectos tanto epistemológicos quanto metodológicos.

Os dispositivos didáticos foram produzidos em conformidade com a estrutura de uma


sequência didática proposta por Dolz, Noverraz, Schneuwly (2004, p. 98), a saber:
apresentação da situação, produção inicial, módulos de atividades e produção final. As
atividades foram desenvolvidas sob um viés interdisciplinar, de modo a oportunizar aos
alunos o exercício da linguagem de forma interativa e em situação real de uso. As atividades
foram planejadas e estruturadas observando-se uma continuidade de desafios propostos a
partir de ações diversas e diferenciadas, que permitissem aos alunos o desenvolvimento do
senso de participação, de socialização e de fruição.

Na terceira fase, passou-se à implementação das sequências didáticas, cuja realização


dependeu de: explicitação dos objetivos e das condições de realização do projeto; mediação

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pedagógica e observância à Zona de Desenvolvimento Proximal dos aprendentes;


apresentação de estratégias que garantissem a eficácia e a viabilidade das atividades
pedagógicas; conscientização dos alunos quanto à necessidade de realização das atividades; e
atuação conjunta entre os pares, autonomia na tomada de decisões, experimentação,
reorganização das atividades e (re)adequação a um resultado satisfatório.

A avaliação apoiou-se em um conjunto de informações coletadas na experimentação,


por meio de registros orais e das produções escritas. Optou-se por um modelo de avaliação
qualitativa e quantitativa, que garantisse a mediação e as intervenções pedagógicas no
transcorrer das atividades. Assim, em cada encontro, professores e alunos revisaram as ações
previstas no projeto, observando-se as etapas cumpridas com sucesso e aquelas que
necessitavam de adequações ou de maior empenho no cumprimento das tarefas. Para a
produção das crônicas, utilizou-se o Google Drive, um ambiente de escrita colaborativa. Tal
ferramenta oportunizou que os alunos, divididos em pequenos grupos, não só lessem os
textos uns dos outros, como também apresentassem suas considerações a respeito das
produções dos colegas. Essa ação enriqueceu muito o trabalho de revisão textual e a
apresentação de uma segunda versão mais bem elaborada, visto que passou pelo crivo não só
do professor como também dos próprios colegas da equipe. A avaliação também foi
fundamental para que se procedesse a escolha da crônica enviada à coordenação da
Olimpíada da Língua Portuguesa.

5. Discussão dos dados

Essa discussão tem como ponto de partida a hipótese levantada nesta pesquisa,
segundo a qual o desenvolvimento de um projeto de Engenharia Didática com foco na leitura
e produção de textos e que considere a sensibilização para e pelo olhar potencializa a
vivência de experiências estéticas e humanizadoras. Dada a extensão do projeto, focamos
nossa lente na primeira atividade realizada em equipe na fase de experienciação, na qual os
alunos retrataram algum aspecto da cidade de Timóteo e discorreram sobre os aspectos
visuais concernentes às suas subjetividades. Ao todo, foram realizados vinte e cinco ensaios
fotográficos, que subsidiaram a análise feita.
Tendo a cidade de Timóteo como um espaço a ser contemplado e pesquisado, o olhar
dos alunos incidiu sobre diferentes objetos de discurso, sistematizados no seguinte gráfico:

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OLHARES SOBRE A CIDADE DE


TIMÓTEO-MG
Total 25

Veículos 3
Pessoas, relacionamentos 7

! 0 8 15 23 30
Gráfico 1: Olhares sobre Timóteo

Os ensaios fotográficos possibilitaram aos alunos estabelecer um enquadramento da


realidade, uma cena registrada em um momento singular pelas lentes de seu smartphone ou
da câmera fotográfica. Importante ressaltar que a realidade retratada não é senão uma
perspectiva do fotógrafo, uma visão pessoal e única transformada em linguagem. E é por
meio de suas experimentações que os alunos vão construindo as imagens que um olhar atento
e subjetivo lhes permite desenhar.

Com um olhar detido, contemplativo, que proporciona uma experiência perceptiva, os


alunos flanaram pela cidade de Timóteo, com o objetivo de captar objetos e/ou cenas comuns
do cotidiano, que de tão corriqueiros e banalizados, passam despercebidos aos olhos do
indivíduo comum. E os registros efetuados vinham impregnados de intensa fruição estética,
manifestadas nas reflexões proporcionadas por aquela vivência.

O olhar dos alunos cronistas voltou-se para o espaço urbano e desvendou os aspectos
das ruas, parques e jardins, bem como das construções. Refletindo sobre questões de
mobilidade urbana, eles denunciaram os buracos das ruas de Timóteo; a iluminação precária,
que deixa entrever os perigos de assalto; as pichações das praças, prédios públicos e
construções particulares, que apontam para o vandalismo e descaso com patrimônio público e
particular. Para além das denúncias, um olhar poético sobre os bairros mais populares, como
as favelas, permite revelar certa beleza e esplendor, que o preconceito, o medo ou o descaso
não nos permitem contemplar. As diferentes faces da urbe tornam-se, assim, objeto de
reflexão, conforme indicia o seguinte depoimento retirado do corpus em análise:

Essa foto ela foi tirada na janela da varanda da minha casa. Por que a pessoa
que mora na casa mais alta do morro em torno da escadaria o lugar onde as
pessoas na verdade evitam frequentar por julgarem que eu moro na favela por
dizer que o lugar onde eu moro é um lugar de difícil acesso. E eu fiz eu
realmente quis mesmo tirar foto de lá de cima pra mostrar que às vezes você
deixar de conhecer um lugar diferente da sua cidade, você abre mão de ter uma
beleza de ter uma experiência que tira da sua zona de conforto que às vezes

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pode surpreender você. (CORPUS OLHAR: AS DIFERENTES FACES DA


CIDADE, 2016)

Uma visão panorâmica da cidade convida para um passeio turístico pelo coreto,
rodoviária, museu, ginásio esportivo e centro comercial. Um olhar um pouco mais detido e
contemplativo revelará a beleza dos jardins de concreto, com sua multiplicidade de cores,
como forma de dizer que a cidade também tem vida, com a sua beleza e os seus encantos:

O nosso tema foi Jardins de Concreto e a gente quis mostrar as cores, a vida,
tudo que a gente vê o tempo todo e a gente fala que não tem, sabe. Porque é
muito normal você virar e falar “Ah eu gosto de ir pro sítio porque no sítio é
colorido, é vida, eu fico longe desse concreto, dessa dessa urbanização toda. Só
que a gente também tem vida aqui. A gente também tem vida na cidade, a gente
também tem jardins na cidade. Jardins de concreto. (CORPUS OLHAR:
JARDINS DE CONCRETO)

O cronista, desse modo, apropria-se do espaço urbano e constrói com ele uma relação
de intimidade. É preciso olhar para a selva de pedra, como se esta fosse um ser vivo, latente.
Deve-se buscar nela as cores e a poesia existentes, ainda que imperceptíveis aos olhares
apressados e desinteressados.

A cidade também é feita de movimento. E um olhar crítico se evidencia no ensaio


fotográfico sobre as “Relíquias do asfalto”, no qual são expostos carros que antes pertenciam
à última geração e que hoje se encontram abandonados, às margens das rodovias por falta de
recursos de seus proprietários. O descaso e o abandono descaracterizam a cidade e as vias
urbanas. Já em “Trens da vida”, o olhar se detém sensivelmente para a ferrovia que passa em
Timóteo, fazendo a conexão entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. A narrativa
resgata a história da ferrovia, utilizada para a carga de materiais, principalmente o minério de
ferro, e para o transporte de passageiros, que facilita o acesso dos mineiros ao litoral
capixaba. A história da ferrovia mescla-se com a história da cidade e com a vida de seus
habitantes em particular, cujas memórias, sentimentos e aspirações inspiram os alunos
cronistas: “Lá vai o trem carregado de muitas saudades. Trem que corre pelos trilhos cortando
todas as cidades. Vai conduzindo muitos sonhos sem maldade. Tanta fé, tanta esperança, tanta
busca pela felicidade. Em cada estação uma alegria...” (CORPUS OLHAR: TRENS DA
VIDA, 2016).

Os alunos cronistas também fazem uma incursão sobre as questões ambientais,


apresentadas principalmente a partir de uma abordagem ecossistêmica. As narrativas deixam
entrever uma investigação ao mesmo tempo científica e profundamente humana a respeito do
meio ambiente, conforme evidencia o seguinte enunciado: “Nosso trabalho a gente vai

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mostrar sob diferentes pontos de vista alguns lugares, classificando eles como forte
experiência humana, influência fraca, influência forte da natureza” (CORPUS OLHAR:
NATUREZA HUMANA, 2016). Um olhar precisamente técnico irá documentar áreas
atingidas pelas intervenções humanas e denunciar a depredação da natureza, por meio do
corte de árvores, das queimadas e da poluição ambiental. Mas as lentes também se voltam
para mãos empenhadas na preservação de parques e jardins, como uma iniciativa de melhoria
da qualidade estética, funcional e ambiental da região. Onde os impactos da ação humana não
são ostensivos, observa-se uma natureza quase intacta, elucidada pelas imagens da Serra dos
Cocais, parte integrante da província geológica da Serra do Espinhaço.

O ambiente escolar também passará pelo crivo das lentes dos alunos cronistas, que
vão especificar a experiência cotidiana dos estudantes. Esta começa mesmo antes de sua
matrícula na instituição e pode representar uma oportunidade ou frustração:

A história que eu conto falará de você, de mim e de qualquer outro aluno que
um dia almejou e conseguiu uma vaga nessa instituição. Ainda que só pra
agradar aos pais. A inscrição pra prova, as horas gastas pra estudo, a realização
do teste, a espera interminável pela liberação do gabarito, a conquista da... a
conquista da vaga, a realização da matrícula, a compra dos uniformes e o
primeiro dia de aula. Conseguimos. (...) Um sonho, uma conquista, uma vitória.
Um mundo de oportunidades. Ou decepção. (CORPUS OLHAR: UM SONHO,
OUTRA REALIDADE, 2016)

A interação ganha destaque na visão dos alunos cronistas, por contribuir sobremaneira
para a transformação sociocognitiva dos educandos. Sua importância será destacada, por
favorecer a união dos alunos, o diálogo com os professores, a afetividade, a aprendizagem de
conteúdos conceituais, atitudinais e procedimentais:

Quando acabamos de entrar no Cefet, a gente sempre tem aquela percepção de


que tudo é novo, tudo é organizado, todas as coisas são focadas... alunos bem
centrados, professores é... professores sérios, atividades difíceis, organização
das salas. Você vai ver a interação dos professores e dos alunos mas de uma
maneira mais séria, de uma maneira mais difícil. Mas com o tempo essas visões
vão mudando. (...) As pessoas do Cefet podem se comunicar podem estar num
meio inseridas juntas. Aí você vê que virou uma grande família (...) O Cefet em
si muda o nosso pensamento, muda o nosso jeito de pensar e de viver, mas
precisamos continuar a sonhar. (CORPUS OLHAR: PRIMEIRA IMPRESSÃO,
2016)

Essa reflexão sobre a importância da interação encontra eco na tese de Merleau Ponty
(1945), para quem o homem só se constitui como sujeito pela alteridade com o outro. Por
meio das relações interpessoais, o ser humano preenche os seus vazios no mundo. Algumas

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

narrativas deixam entrever um olhar amigo e afetuoso, que vislumbra no outro uma
oportunidade de aproximação e de identificação. Em outras, projeta-se o olhar para traços ou
características pessoais como forma de reconhecimento e valorização das diferenças
individuais. Uma analogia entre a espécie humana e a vegetal faz-nos compreender nosso
caráter ontológico. Novos olhares voltam as lentes para o relacionamento afetivo entre pares
pertencentes a classes sociais diferentes e também para o conturbado e dinâmico dia a dia das
pessoas. A relação afetuosa entre as pessoas e seus animais de estimação também torna-se
objeto de reflexão, como a história do gato Ptolomeu, que vaga pela cidade de Timóteo até o
pico do Ana Moura, onde pede a Deus a cura para a sua dona.

Há momentos em que o olhar se volta para o universo interior dos jovens, que, em
suma, representa um olhar para si mesmos: eles sentem, apaixonam-se, planejam o futuro,
soltam a imaginação, adoram viajar, querem lutar por causas sociais e políticas, buscam
adequar seus sentimentos a algum propósito. Em suas narrativas, constroem sentidos,
experienciam diferentes e múltiplas sensações, enfim modelam a sua subjetividade e se
identificam com a própria junventude:

A gente tá sempre atribuindo significados às coisas mais insignificantes assim.


Por exemplo ... coloca aqui... essa imagem aí, você tá beleza viajando aí com
seu pai pela cidade aí... você tá naquele carro, chovendo, aquele climinha top,
aquela música... isso já, né, já coloca aquele se me dá... nossa a vida é boa... a
vida é realmente boa, a vida é uma uma estética, olha a estética da vida, gente,
que coisa linda. (CORPUS OLHAR: O QUE OS JOVENS DA CIDADE
ESTÃO FAZENDO AGORA?, 2016)

O locutor acima nos convida a flanar pela cidade, buscando decifrar os sentidos da
vida urbana. Sua experiência é essencialmente sinestésica, estética, fruto de um olhar
aparentemente ingênuo e apaixonado. Ao flanar pela cidade, procura captar recortes da
realidade que o circunda. Tais recortes, entretanto, não são meras cópias de fatos reais, mas
fruto de uma recriação. Em outro ensaio fotográfico, os alunos cronistas propõem uma
reflexão metalinguística sobre a construção da imagem, explicando como eles se propuseram
a transformar o circunstancial, conferindo-lhe um toque de subjetividade e lirismo:

A gente procurou explorar pelas fotos é... uma questão de profundidade e


beleza. Que muitas vezes a gente passa pelos lugares e simplesmente passa.
Elas passam pelos nossos olhos e... a gente não busca outras coisas nessas
imagens. E... a gente buscou pôr efeito nessas fotos, cortar elas, focar num
elemento apenas para (...) dar um destaque ou até um certo drama. (CORPUS
OLHAR: PONTOS DE VISTA, 2016)

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Esse movimento de registro e recriação da realidade evidencia o olhar subjetivo e


poético do observador e impulsiona a criação literária. É esse o mistério da criação, que
assinalará o nascimento de uma crônica:

Neste trabalho eu ... meu grupo e eu organizamos as fotos de tal forma que
possa ser contada uma história através da apresentação. O nosso objetivo é
fazer com que vocês entendam a simplicidade dos acontecimentos, mas a
gravidade que isso tem ... e o peso que isso tem no sentimento daqueles que
estão envolvidos. (CORPUS OLHAR: REENCONTRO, 2016)

A crônica é fruto, portanto, da experienciação do olhar, de uma compreensão


particular do mundo. O cronista projeta luz sobre as sutilezas escondidas por detrás das
aparências. Sua percepção capta os dados e informações exteriores, recorta-os de acordo com
as suas intenções e imprime neles uma realidade renovada, impregnada de sensibilidade. A
apresentação a seguir, exibida com alguns recortes, ilustra o processo de constituição de uma
crônica, desde a sensibilização do olhar, passando por uma fragmentação da realidade e se
estruturando enquanto texto:

É... essa é a apresentação Viva la Vida. (...) são duas histórias duas trajetórias ...
uma é mais suposição e uma é real até o que sabemos ... que a primeira história
é de... é... eu acho que se eu perguntar pra todo mundo aqui que que você quer
ser quando crescer, a dedução da pergunta que cada um tem na mente é uma
profissão. Todo mundo tem isso eu acho pelo menos ... uma profissão quando
for adulto crescer... Mas por que que tem que ser assim, digamos, por que que
quando eu crescer eu tenho que trabalhar e... e mostrar pra todo mundo que eu
sei fazer e estudar pra eu saber fazer alguma coisa e não simplesmente ficar
quieto no meu canto fazer o que eu gosto. E... a primeira trajetória que ocês
viram é exatamente uma trajetória dessas de estudo... estudo... mais estudo... e
enfim trabalhar que é a vida que é imposta sobre nós da maneira que nós
conhecemos até pelo... pelo Capitalismo né. E eu não acho isso ruim
obviamente até pelo ambiente que a gente tá. Se eu falar contra isso eu acho
que fica ruim pra mim porque ... isso pra muitos hoje isso é visto como uma
vida de sucesso... você estudar, conseguir uma boa vaga na faculdade, um bom
emprego lutar por isso é uma vida de sucesso uma vida que você conseguiu
alcançou tudo que ocê tem. Mas a gente tem também a história do Francisco
(...) essas fotos aí são em frente à Itapuã na avenida ... e ele estava lá e a gente
bateu um papo com ele conversou com ele e ele dizia que ele contou essa
história dele que ele tava na faculdade estudou e ele contou essa história dele
que ele tava na faculdade estudou e chegou à faculdade e resolveu
simplesmente sair sabe ele se questionava essas coisas do sistema da sociedade
por que que tem que ser assim por que que eu tenho que estudar por que que
todo mundo faz a mesma coisa e ninguém tenta fazer algo diferente. Ah não
mas cada um faz o que gosta e esse curso e esse curso mas por que tem que ser
outro curso e uma profissão e não simplesmente um estilo de vida e... é isso
que a gente simplesmente isso simplesmente que a gente quer mostrar nessa

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contemporâneas

apresentação e... a gente deu esse nome Viva la Vida simplesmente porque ... a
gente não tá falando que nenhuma das duas maneiras e há muitas outras
maneiras que alguém pode escolher viver sua vida é errado ou certo porque a
vida é sua e simplesmente essa coisa de cultura de sociedade coisas que te
influenciam e que são impostas nunca vai ser mais que uma escolha sua
entendeu? (...) Ele só quis ser diferente de todo mundo e viver a vida do jeito
dele. É claro que a gente também não pode achar que na idade que a gente está
num lava nem a própria roupa a gente vai sair fazendo o que quer por aí. Mas a
partir do momento que a gente tem responsabilidade pra fazer nossas escolhas
ocê tem que fazer o que te faz feliz e viver a vida do jeito que cê quiser. É isso
aí. Vila la vida. (CORPUS OLHAR: VIVA LA VIDA, 2016)

A apresentação acima, embora não tenha sido concebida pelo grupo de alunos como
uma crônica, já traz em si os elementos essenciais desse gênero: subjetividade, brevidade e
simplicidade. A cena que irá despertar o olhar dos alunos cronistas é a de um rapaz que se
encontra em um semáforo, tentando ganhar algum dinheiro fazendo malabarismo com alguns
bastões. Uma situação factual, tão corriqueira e banal em nossas cidades servirá como ponto
de partida para a constituição do ensaio fotográfico. Essa imagem será mesclada pelos alunos
com outras cenas ou narrativas coletadas durante a flanagem pelas ruas e ainda com outras
que já constituem o repertório de suas existências. Com esse material sedimentado em suas
estruturas cognitivas, os observadores recriam a realidade, imprimindo nela um toque de
subjetividade e poesia. A proposta consiste em discutir a ruptura dos valores na nossa
sociedade a partir de cenas e narrativas comuns do cotidiano e provocar uma reflexão sobre
padrões pré-estabelecidos que restringem as escolhas das pessoas. O texto surge, desse modo,
como um processo simples, natural e espontâneo, por meio do qual se constrói um retrato de
situações vivenciadas no tempo e no espaço, as quais inspiram e dão sentido à existência
humana.

Considerações finais

O presente artigo pretendeu discutir sobre o exercício do olhar, como uma experiência
que potencializa a vivência de experiências estéticas e humanizadoras. Buscamos discorrer
sobre a importância do olhar nas atividades de leitura e produção de textos, em especial o
gênero textual crônica. Nos pressupostos teóricos, primeiramente refletimos sobre a
percepção visual e sua relevância para a cognição humana. Em seguida, buscamos
estabelecer a relação entre o gênero textual crônica e a ação de olhar.

A abordagem prática consistiu da apresentação de um projeto de Engenharia Didática


desenvolvido e implementado em quatro turmas de alunos do ensino médio, por uma equipe
de professores da área de Linguagens e Códigos, atuantes em uma escola da rede federal de
ensino. Centramos nossas análises nos ensaios fotográficos desenvolvidos pelas equipes de

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contemporâneas

alunos em uma oficina, resultantes de suas flanagens pela cidade de Timóteo. Os registros e
depoimentos nos permitiram compreender como ocorre o nascimento de uma crônica, cujo
processo criativo tem origem na sensibilização do olhar e no recorte da realidade.

Trabalhar com um projeto de Engenharia Didática tornou-se relevante tanto para


alunos quanto para professores. Os alunos puderam experienciar práticas de leitura e escrita
que lhes permitiram, mediante a sensibilização para e pelo olhar, agir sobre o texto,
construindo sentidos e vivenciando experiências estéticas e humanizadoras. As atividades
propostas e realizadas oportunizaram a todos os atores nelas envolvidos refletir sobre a
própria prática com vistas à melhoria dos resultados e tornar a aprendizagem cada vez mais
autônoma e significativa.

“- Pai, me ensina a olhar!”. O pedido de Diego ao seu pai apresentado no início deste
artigo ainda se encontra latente em nós à espera de uma resposta. A pergunta da criança se
justifica, dado que a percepção real de um objeto se esvai quando nos encontramos diante de
um conjunto complexo de estímulos e informações. Atribui-se a Leonardo da Vinci a
afirmação de que os olhos são as janelas da alma. Daí a importância de nos conectarmos com
a nossa essência. É preciso ver o mundo com olhar de cronista, olhar detido, contemplativo,
sensível. O cronista imprime em cada objeto não uma realidade objetiva, mas a sua própria
verdade, construída a partir da relação estética que estabelece com ele, o que o torna
esplêndido e singular.

Referências

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Carlos Martins Barbosa, Hermeson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989. CANDIDO,
Antonio et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas:
Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX [tradução
de Verrah Chamma; organização Tadeu Capistrano]. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. IL.
ArteFíssil.
DOLZ, Joaquim. As atividades e os exercícios de língua: uma reflexão sobre a engenharia
didática. D.E.L.T.A., nº 32.1, 2016, p. 237-260. Disponível em goo.gl/pyFdB8. Acesso em
30 jun. 2016.
DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCNHEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita:
apresentação de um procedimento. In: SCNHEUWLY. B; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos
na escola. Trad. de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras,
2004.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo:
Autores Associados: Cortez, 1989.
GOETHE, Johann Wolfgang Von (1813) Doutrina das cores. São Paulo: Nova Alexandria,
1993.
MARI, Hugo; SILVEIRA, José Carlos Cavalheiro. Sobre a cognição visual. SCRIPTA, Belo
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MASSAGLI, Sérgio Roberto. Homem da multidão e o flâneur no conto “O homem da
multidão” de Edgar Allan Poe. Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários,
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MERLEAU PONTY, M. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945.
MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa. São Paulo: Cultrix, 1978.
SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 2005.
SABINO, Fernando. As melhores crônicas de Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Ed.
Record, 1986.SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a visão e as cores: um tratado. Trad. Erlon
José Paschoal. São Paulo: Nova Alexandria, 2003

Transglossia e Transculturalidade:
características dos empréstimos linguísticos da língua inglesa presentes em
vocábulos de esportes do Português do Brasil

Olandina Della Justina


(UNEMAT/PIBID-LI-SINOP/DIVALIMT)
olandina2008@hotmail.com

João Batista Lopes da Silva


(UNEMAT-Sinop/UCB)
jb@unemat.br

Introdução

Este artigo apresenta os resultados de um estudo realizado com base na observação


das características de empréstimos linguísticos em nomes de esportes que são usados no
Brasil. Dentre os empréstimos linguísticos (italianismos, galicismos, arabismos,
espanholismos, entre outros), os anglicismos estão em maior número e sua ubiquidade pode
ser notada na linguagem de atividades profissionais, sociais, culturais e acadêmicas que
fazem parte da vida dos brasileiros. Os esportes e a linguagem especializada que faz parte
desse universo recebem a influência de uma língua que é reconhecida por sua importância na
interação entre povos e usada como língua mundial das comunicações. Os nomes de esportes

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

têm raízes históricas e denominam modalidades importantes, que permitem serem


compreendidos e cultuados nos mais remotos lugares do planeta. As mudanças linguísticas e
culturais na acepção de cada nome e sua respectiva modalidade são possíveis e aceitáveis,
não na condição de um atrito que repele, mas que acolhe e hibridiza as formas linguísticas
imprimindo-lhes novos significados. São para essas mudanças surgidas nas trocas linguísticas
do inglês e Português do Brasil que o nosso olhar está lançado.

Diante dessa perspectiva e, por considerarmos a linguagem dos esportes uma fonte de
integração entre diferentes povos e comunidades linguísticas, esse estudo trata sobre o elo
marcado entre as duas línguas por meio de processos transglóssicos e transculturais (ORTIZ,
2003; COX E ASSIS-PETERSON, 2001). A ênfase está na transglossia verificada na
estrutura fonológica, morfológica e ortográficas de vocábulos que dão nomes aos esportes.
Como apoio e organização dos dados de pesquisa, recorremos às categorias propostas por
Carvalho (2009), especialmente situado na categoria que trata da classificação de formas de
adoção como decalque, adaptação fonética, morfológica e ortográfica, incorporação na forma
original, simples, composto, completo, incompleto. Por conseguinte, entendemos que os
nomes de esportes carregam traços linguísticos que se consagram como o uso da LI “à moda
brasileira”.

1. Bases teóricas

1.1 Constituição do esporte na civilização moderna

O esporte constitui-se numa forma de linguagem universal.

Deriva do jogo, mas não se reduz ao jogo e suas possibilidades de manifestações


lúdicas, de ordem corporal, mimética e simbólica. Para além dessas possibilidades é possível
enquadrá-lo na categoria de atividade física, além de ser dotado de um conjunto de regras e
formalidades associativas que pode significar outras categorias de pensamento, como uma
atividade profissional ou enquanto parte integrante de um estilo de vida com a intenção de
manutenção ou melhora da saúde integral.

Produto da cultura humana, o esporte, enquanto espectro de categorias de


representação, como as citadas no parágrafo anterior, tem origem na Inglaterra, no século
XIX. As formas modernas do futebol, por exemplo, fazem parte de um conjunto de
transformações sociais as quais o sociólogo Norbert Elias chamou de processo civilizatório.
Segundo Dunning (2008), do modo como Elias compreendeu, esses processos não são
simples, lineares e "progressivos", mas formações complexas, que são como ondas, com
múltiplos níveis e que ocorrem tanto no nível dos indivíduos quanto em nível das sociedades.

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A ruptura proposta por Elias e Dunning entre os jogos tradicionais e o esporte


moderno ocorre devido à particularização das atividades de cunho esportivo em relação à
outras atividades socioculturais. Desse modo, o esporte ganha autonomia na constituição de
espaços físicos para as práticas de suas diversas modalidades, diferentemente dos jogos
tradicionais, competitivos ou não, mas que eram praticados especial e tão somente no tempo
livre de obrigações do trabalho ou outros eventos sociais.

O esporte é uma atividade de grupo organizada, centrada no confronto de pelo menos


duas partes. Exige um certo tipo específico de esforço físico. Realiza-se de acordo com regras
conhecidas, que definem os limites da violência que são autorizados, incluindo aquelas que
definem se a força física pode ser totalmente aplicada. As regras determinam a configuração
inicial dos jogadores e dos seus padrões dinâmicos de acordo com o desenrolar da prova.
(ELIAS, 1992, p. 230)

Com essa concepção, o esporte se transforma também em produto mercadológico e


passou a exigir uma estrutura ou organicidade empresarial que produziu um nicho para novos
profissionais atuarem nesse novo campo social, o que, muitas vezes, maculou princípios
como o fair play, característica marcante nos jogos de caráter lúdico ou associado aos valores
olímpicos.

Dentre os esportes coletivos, tomamos como exemplo o futebol, cujo processo de


internacionalização ocorreu no final do século XIX. Assim como os Jogos Olímpicos
modernos, que tiveram início em Atenas, no ano de 1896 – em oposição às Olimpíadas
Antigüidade – que também datam do mesmo período, a mentalidade organizacional e política
francesa colaborou na difusão mundial do futebol. Este processo geral tomou parte na grande
tendência rumo ao que hoje chamamos "globalização". (DUNNING, 2008)

Portanto, a partir de um processo civilizatório, com grande evidência na Inglaterra e


marcado por quebra de paradigmas nas relações jogo e sociedade, surge o esporte moderno e
sua propagação aos demais países europeus e a todos os continentes. Essa propagação se dá
com a marca do sotaque e da cultura esportiva inglesa.

1.2 Uso de LI no Brasil

Os empréstimos linguísticos da LI fazem parte do cotidiano do brasileiro e a sua


ubiquidade é comprovada pelo uso em atividades que envolvem atividades das mais simples

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às mais complexas. No entanto, o uso dessas expressões nem sempre são visíveis ao olhar do
leigo e, por vezes, dos especialistas absoltos pela rotina diária.

O uso de empréstimos linguísticos pode percorrer desde o despertar ao som do


smarthphone, o desjejum, como os famosos cookies que atraem os gostos da clientela kids e
teen, até os clássicos biscoitos cream cracker ou pão Pullman. Está presente no meio de
transporte que leva às atividades externas ao lar, de trabalho e de educação formal, nas vans,
em marcas de carros (Palio fire, adventure, weekend, fox), no aparelho de som: rádio ou CD
player, nos comandos (power, fast forward, rewind, etc.), nas músicas que dele ouvimos (...),
nos outdoors que informam e poluem nossa visão, nas fachadas das lojas, centros comerciais
que avistamos pelo caminho (Fancy Calçados, Speed Pneus, Bob’s Lanches, etc), no
notebook ou laptop que é utilizado no trabalho, desde os comandos para desempenhar as
tarefas mais simples (delete, save, shift, backspace, etc.) até as navegações pelos sites que
oferecem notícias, novidades, dados de pesquisas, livros em inglês, no coffee-break, nas
bebidas (Passport, Keep Coller, Sprite, Red Bull – em lata ou long neck) que nos
acompanham na happy hour juntamente com um cheese-egg, cheese-bacon ou outro
qualquer, em pleno rush da saída do trabalho para, então, no acalanto do lar, assistir, na
telinha, filmes, séries, propagandas, shows, telenovelas que trazem comumente expressões
em inglês.

A televisão por assinatura nos oferece uma infinidade de programas que têm os nomes
em inglês (Cartoon Network, Discovery Kids, HBO Family, Globo News, Fox, Geographic,
History Channel, Animal Planet, CNN entre outros).

As redes sociais via internet, como facebook, whatsapp, entre outros oportunizam a
circulação de posts, conteúdos diversos, expressões variadas que se tornam “familiares” e
“naturais” em nossas interações.

No espaço acadêmico-científico, a atenção está voltada tanto para publicações


internacionais, nas quais, a LI é sempre uma língua aceita e, de forma mais pontual, a
exigência dos abstracts nas produções científicas. O acesso a toda a literatura científica de
espectro mundial faz-se, com muita frequência, inicialmente pela tradução para o inglês da
obra original, para depois chegar à nossa língua.

Nesse espaço, as Ciências da Saúde, que utilizam significativamente a LI como canal


de divulgação de pesquisa, abrangem também os esportes e, portanto, todos os aspectos que
lhes são pertinentes. A linguagem dos esportes está contida em uma gama ampla como veios
condutores de vocábulos, envolvendo a linguagem especializada dentro de cada modalidade
esportiva.

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Ainda sobre os esportes, podemos observar empréstimos linguísticos como mountain


bike, motocross, paintball, boxe, body boarding, rafting, stock car, sky surf, squash, etc.
Juntamente com o nome do esporte aparecem vários comandos e regras em inglês: match
point, round, replay, set, pit stop, etc. São bastante conhecidas expressões divulgada em
academias de ginástica como fitness, body jump, body pump, etc.
Esse pequeno texto apresenta setores e áreas da linguagem especializada apenas como uma
ilustração limitada do uso de empréstimos linguísticos de LI em solo brasileiro.

1.3 Empréstimos linguísticos e classificação

No que ser refere aos empréstimos linguísticos, Carvalho (2009) defende que são tão
antigos quanto à própria língua e sua história. Eles marcam inclusive, a cultura de uma língua
através dos elementos linguísticos estrangeiros que adotou ou incorporou.

De acordo com a autora (1989), o empréstimo linguístico é a forma mais produtiva de


renovação lexical na língua portuguesa e esta renovação é parte da mutabilidade própria das
línguas humanas.

Na mesma direção, Schmitz (2002) assinala que as línguas são palcos de mestiçagem e de
interculturalidade, não são fortalezas da nacionalidade. A presença de estrangeirismos não
ameaça a cultura brasileira amplamente definida como literatura, música, teatro, folclore e
dança.

Carvalho (2009, p. 49-72) classifica os empréstimos linguísticos de acordo com a:


Origem: Íntimo - proveniente da convivência de duas línguas em um mesmo território;
Dialetal - realiza-se entre falares da mesma língua e são variantes regionais, sociais e jargões
especializados; Externo ou cultural - é resultado dos contatos políticos, sociais, comerciais e
militares entre os povos; Hibridismo – é compostos por elementos provenientes de duas
línguas diferentes.
Função, intenção ou necessidade de uso: Conativo - tem função expressiva e é um recurso
estilístico ou de expressividade; Denotativo - tem função referencial e introduz um objeto ou
conceito novo, de acordo com a língua e cultura exportadora.
Fase de adoção: Estrangeirismo - como palavra estrangeira, usada na língua importadora. É
o termo na fase de adaptação e instalação. Poderá ser adotado, rejeitado ou substituído;
Empréstimo - são feitas adaptações de qualquer tipo na língua importadora; Xenismo - não
há adaptações na língua importadora, a palavra permanece com na língua original.

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Formas de derivação: Direto - deriva diretamente da língua fonte; Indireto -tem a língua
fonte como intermediária no processo de adaptação.
Forma de adoção: Decalque - é a tradução literal da palavra ou locução; Adaptação fonética,
morfológica e ortográfica; Incorporação na forma original - reserva-se a forma original,
apenas com a consequente adaptação fonética, morfológica e ortográfica; Simples:
Constituído de apenas uma unidade lexical; Composto: Constituído de duas ou mais unidades
lexicais; Completo: Adoção do conjunto significante para o significado já existente na língua;
Incompleto: Uma nova forma substitui um significante já existente com o mesmo significado.
Para nossa análise, consideraremos, especialmente as forma de adoção por adaptação
fonética, morfológica e ortográfica para discutir os processos transglóssicos.

1.4 Processos transglóssicos e transculturais


Os empréstimos linguísticos oriundos da LI se configuram como uma linguagem


aceita e presente no contexto sociolinguístico e cultural do brasileiro. Faz parte de
praticamente todas as atividades profissionais, sociais e científicas. São elementos de uma
língua estrangeira que se tornam familiares ao serem inseridos nas interações cotidianas em
solo brasileiro. Nesse processo de inserção, as palavra provenientes da LI assumem diferentes
sons e sotaques, formas, grafias e sentidos e recebem novas características, à moda do
Português do Brasil, ou seja, tornam-se signos mestiços emoldurados em processos
transglóssicos e transculturais (Cox e Assis-Peterson, 2007). Para as autoras, a partir das
noções de transglossia e transculturalidade, a língua se desterritorializa e se faz presente na
linguagem do brasileiro. Resulta na formação de signos mestiço com traços linguístico-
culturais que transitam entre a língua portuguesa e a inglesa.

Considerando que o contexto de ensino da LI é uma atividade que prevê o


desenvolvimento formal da língua, Cox e Assis-Peterson (2013, p. 164), atestam que o
professor deve considerar essa realidade de uso da língua detectada no Brasil e apontam que é
uma forma de se desvencilhar da sisudez, da rigidez, da austeridade e do peso que timbram o
ensino-aprendizagem formal do Standard English, obstinado em desenvolver nos alunos as
quatro habilidades com o mesmo grau de proficiência de americanos ou britânicos, a despeito
de todos os obstáculos já fartamente observados e comentados pelas pesquisas na área.

As opiniões sobre o uso ou não de tais empréstimos linguístico se confrontam entre os


defensores do purismo linguístico e a atitude da maioria dos usuários. Baseada nos dados de
pesquisa que realizou sobre as expressões da LI presentes nas fachadas de comércio, e atenta
ao uso do caso genitivo, Assis-Peterson (2008) destaca a importância desse contexto ser

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levado em conta e conclui que observar emicamente como as pessoas usam a língua com
ênfase nas relevâncias contextuais nos afasta definitivamente de pensar os estrangeirismos
como problema, como ameaça ao português e à identidade do falante brasileiro, como
exemplo de comando imperfeito da língua e de estigmatizar as pessoas comuns como
deficitárias, indefesas, alienadas, incapazes de intervir ou de se defender. (ASSIS-
PETERSON, 2008, p. 339)

Rajagopalan (2004) afirma que os linguistas devam se aproximar mais do pensamento


de pessoas comuns para que não fiquem completamente perdidos quando convocados a
abordar problemas de relevância social.

Esse autor, defende que haja uma atitude realista e equilibrada no que diz respeito à
expansão e uso da língua inglesa. Não há de rejeitá-la sumariamente, tampouco aceitá-la de
forma resignada e passiva. Deve ser usada quando necessária e atender aos propósitos
daqueles que a têm no seu alcance.

Para Faraco, Garcez e Zilles, Paiva entre outros (2001), contrários à ideia de que os
empréstimos são ameaça à língua portuguesa, defendem que os esses fazem parte das
transformações linguísticas pelas quais passam todas as línguas e a língua é construída e
reconstruída pelas pessoas que dela fazem uso. Assim, os empréstimos da língua inglesa não
podem ser tidos como ameaça à língua-materna (língua portuguesa), uma vez que ocorrem,
principalmente, em nível lexical não interferindo na estrutura gramatical da língua que é viva,
se modifica e palavras renovam os seus significados, alguns termos permanecem, outros
passam por alterações e outros caem em desuso. Mesmo que conservem a grafia original, os
empréstimos de fonemas são raros, pois os falantes aplicam nas palavras estrangeiras os seus
sistemas fonológicos, desenvolvidos dentro da língua materna.

Em pesquisa realizada por Justina (2008, 2006) sobre crenças de pessoas comuns,
mais especificamente, quatorze profissionais de áreas profissionais diferentes, que a atitude
realista proposta por Rajagopalan (2005) dialoga com as ações dessas pessoas que possuem o
perfil de “desconhecerem os estudos da linguagem”. A presença dos empréstimos da LI,
muitas vezes, assume uma função conotativa para as pessoas comuns em que aos termos se
aliam ideia de status, prestígio, beleza, entre crenças e atitudes que ora aceitam e ora rejeitam
a inserção dos termos em nossa língua. As crenças dos participantes percorrem três vertentes
teóricas: do apelo esnobe – quando o uso de LI está ligada à ideia de maxi-valorização dos
países que falam a língua, de que a LI é símbolo de status, beleza e qualidade e ponte de
acesso a bens culturais e econômicos bem como a ação da mídia que propaga as expressões e
influencia as pessoas; a crítica ao imperialismo norte-americano – em tese, é contrária à
anterior e remete-se, principalmente, ao Estados Unidos, vê o uso de empréstimos da LI

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como ameaça e desprezo ao Português do Brasil e à cultura nacional; a pragmática ou


instrumental usam os empréstimos linguísticos de LI com o objetivo de desempenhar suas
ações profissionais, sociais, culturais e acadêmicas como exige cada um desses segmentos,
não há uma preocupação com a compreensão literal, mas com o significado funcional
relacionado a cada signo.

Nessa perspectiva, as expressões da LI usadas nas atividades exercidas pelas pessoas


estabelecem uma relação em que o local que serve de ponto de partida, em tempos de
globalização, estabelece trocas mútuas com as linguagens globais. Para Kumaravadivelu
(2008), na era da pós-modernidade, a paisagem do mundo está mudando. As distâncias
espacial e temporal estão diminuindo e as fronteiras estão desaparecendo, as fronteiras
nacionais estão de dissolvendo em termos de comércio, capital, informação, ideias, normas,
culturas e valores. Nessas mudanças, a linguagem é a veia condutora e propaga-se sendo
continuamente remodelada e enriquecida com os timbres e roupagens constituídos na
criatividade e marcas linguístico-culturais pertinentes ao brasileiro. São angariadas em seu
trânsito entre as vozes das variações linguísticas impressas no Português do Brasil. Os
processos transglóssicos e transculturais podem até suscitar desconfiança de puristas
ortodoxos, mas são ricamente acolhidos pelas pessoas comuns e retratam a realidade de uma
língua que se distancia dos preconceitos na própria maneira de ser usada.

Mesmo que entendamos a indissociabilidade entre língua e cultura, para delimitar o


estudo aqui discutido, a análise está mais atenta aos aspectos transglóssicos no que diz
respeito ao emprego dos empréstimos linguísticos com nomes dos esportes.

2. Metodologia da pesquisa

Esta pesquisa é qualitativa de base etnográfica. Envolve a análise interpretativa de


dados pesquisados em conteúdo um dicionário de LP, um livro de esportes e de programas
televisivos que tratam sobre esportes.

O corpus de pesquisa é composto pelos seguintes conteúdos: do Dicionário Houaiss


da Língua Portuguesa HLP (2009)- versão eletrônica; do Livro dos Esportes de Ray Stubbs
(2012); conteúdo de um programa televisivo que trata sobre esportes. Os dois primeiros
deram apoio à busca e compreensão de diferentes modalidades esportivas, o terceiro,
especialmente na análise fonética na observação da forma oral da língua usada por jornalistas
esportivos. A linguagem propagada pela mídia tem abrangência e alcance nacional e,
consequentemente, pode servir de meio para influenciar as formas de dizer os nomes de
esportes.

!797
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Foi obtido um total de 65 unidades lexicais, considerando suas variações apresentadas


nos verbetes (como entrada ou não). Para analisá-las, organizamos, primeiramente, em um
quadro em que continha a sistematização das unidades lexicais registradas, os nomes
originais em LI, como os lexemas estavam registrados incluindo a etimologia e datação.

No aspecto teórico, para a organização, sistematização e análise dos empréstimos de


unidades lexicais que nomeiam esportes nos registros escritos, recorremos à classificação de
Carvalho (2009), com ênfase às formas de adoção como decalque, adaptação fonética,
morfológica e ortográfica, incorporação na forma original, simples, composto, completo,
incompleto.

03. Transglossia nos empréstimos linguísticos da LI - Adaptação fonética, morfológica e


ortográfica

As adaptações fonéticas estão no primeiro nível de revisitação do estrangeirismo e


transformação em empréstimo linguístico. Predominantemente, é a primeira mudança pela
qual passam fonemas que não fazem parte do sistema fonológico da LP. Em alguns nomes de
esportes, podemos verificar uma mudança gradual iniciada por adaptações fonéticas que
influenciaram nas alterações morfológicas e ortográficas das palavras.

Abre-se um parêntesis para que seja estabelecido um paralelo nas diferenças fonéticas
pelo fato de implicar diretamente na grafia da maior parte dos esportes que passaram por
mudanças. Mesmo que alterações não sejam detectadas na morfologia, ortografia, semântica
ou sintaxe, dificilmente passam despercebidas pelo nível fonético.

basketball [ˈbɑːskɪtbɔːl] > basquetebol [baskEtSiˈbɔw]


baseball [ˈbeɪsbɔːl] > beisebol [bejzeˈbɔw]
boxing [ˈbɒksɪŋ]> boxe [ˈbɔksɪ]
cricket [ˈkrɪkɪt] > críquete [ˈkRɪkɪˈʧi]
croquet [ˈkrəʊkeɪ] > cróquet [ˈkrɔkEʧi]
football [ˈfʊtbɔːl] > futebol [futeˈbɔw]
golf [ɡɒlf] > golfe [ˈgowfɪ]
handball [ˈhændbɔːl] > handebol e handebol [ãdeˈbɔw]
hockey [ˈhɒki] > hóquei [ˈxɔkej]
jet skiing [ˈdʒet ˈskiːɪŋ] > jet ski [ʒEʧiˈski]
karting [karting] > kartismo e cartismo [kaRˈʧismu]
ping-pong [ˈpɪŋpɒŋ] > pingue-pongue [ˈpĩgɪˈpõgɪ]
polo [ˈpəʊləʊ] > polo [ˈpɔlʊ]

!798
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

pugilism [ˈpjuːdʒɪlɪzəm] > pugilismo [puʒɪˈlɪzmʊ]


rally [ˈræli] > rali [xaˈli]
rugby [ˈrʌɡbi] > rúgbi [ˈxʌgibi]
skating [ˈskeɪtɪŋ] > esqueitismo [iskejˈʧizmʊ]
surf [sɜːf] > surfe [ˈsurfɪ]
volleyball [ˈvɒlɪbɔːl] > voleibol [volejˈbɔw]
windsurf [ˈwɪndsɜːfɪŋ] > windsurfe [ˈuĩndisuRfɪ]

Um aspecto importante a ressaltar é que no caso de hóquei, o registro aparece somente


com o “h” inicial (pronunciado similar ao fonema [x] na LP). Pelas normas da LP, o “h”
inicial seria mudo. Desta forma, torna-se um signo mestiço e possui a propriedade de
estender um fonema não usual no nosso sistema linguístico que se converte em alofone
dentro do sistema fonético-fonológico da LP.

Quanto à morfologia, algumas palavras formadas de dois radicais (substantivos)


passaram por alterações que resultaram em um único radical no processo de
aportuguesamento. Há um elemento de composição pospositivo -bol, como nas unidades
lexicais: futebol, basquetebol, handebol, beisebol e voleibol. A palavra futebol, por exemplo,
forma derivados como futebolístico, futebolismo, futebolista. Basquetebol, handebol,
beisebol e voleibol também geraram palavras derivadas. Na LP passaram ainda pela
simplificação ou abreviação em que se exclui o elemento pospositivo –bol, pode ser
verificado no uso dessas palavras: basquete, vôlei, beise e hande ou ande. “Basquete” e
“vôlei” são atestados tanto no VOLP como no DHLP, “beise” e “hande” são mais usadas em
interações informais.

Os esportes que passaram por sufixação (+ - ismo) são iatismo, cartismo,


motociclismo e esqueitismo.

Algumas palavras receberam o acréscimo de vogais temáticas aos radicais originados


no inglês como aeróbica, golfe, surfe, pugilismo, windsurfe.

As mudanças ortográficas estão marcadas por algumas adaptações. Por exemplo, a


letra como o “k” de basketball e o “ck” de cricket, hockey e “sk” de skating, foram
substituídas por “qu” ou “c” por serem representativas do fonema [k] na LP: karting >
cartismo; cricket > críquete; hockey > hóquei; skating > esqueitismo. Outra adaptação é
palavra “tênis” em sua grafia possui aspectos semelhantes à escrita na LI, suprimiu um “n”
em um processo de simplificação de consoantes geminadas, que não fazem parte da estrutura
da LP. No que se refere à fonética, possui sonoridade bem próxima à de LI: tennis [ˈtenɪs] >

!799
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

tênis [ˈtenɪs]. Outros nomes que passaram pela simplificação de geminadas são: volley >
vôlei; rally >rali e o radical da língua inglesa ball modificado para o pospositivo –bol.

Incorporação na forma original:

Há unidades lexicais que no nível morfológico e ortográfico preservam a forma


original em LI. No entanto, há consequentes adaptações fonéticas. Algumas das unidades
lexicais elencadas nesta categoria aparecem em outras unidades lexicais adaptadas
morfológica e ortograficamente. Optamos por citá-las em mais de uma categoria por
representarem unidades lexicais diferentes, mesmo que sinônimas. A pluralidade de registros,
pode ser concebida como aceitabilidade de diferentes usos.

São elas 37 unidades lexicais entre as atestadas: handball, autocross, badminton,


baseball, basketball, body-board (associado a bodyboarding), bungee-jump (salto praticado
no bungee jumping), catch, catch-as-catch-can, cooper, cricket, croquet, cross-country, cross-
over, enduro, footing, hockey, jet ski, jogging, karting, motocross, mountain bike, off-road,
polo, rafting, raid, rally, rallye, rugby, skating, sprint, squash, surf, surfing, trekking, volley e
volleyball.

Portanto, conforme o critério de análise adotado com base em Carvalho (2009), em


relação aos vocábulos nominativos de esportes e, guiados por um corpus escrito, chamamos a
atenção para as seguintes observações:

a) Quanto à origem, a maioria dos termos é de origem externa ou cultural, sendo


encontrados apenas sete hibridismos analisados como tal em sua origem, como
estrangeirismo;
b) No que se refere à função, intenção ou necessidade de uso, há predominância do uso
denotativo. O uso conotativo se alia à ideia de que é atrativo, moderno, é status usar
uma língua estrangeira;
c) Nas fases de adoção, por se tratar de registros escritos, estrangeirismos e xenismos
podem ser confundidos. Os empréstimos assimilam características da LP que com o
tempo podem se aproximar mais, como no caso de handball > handebol > handebol.
Nesse percurso as mudanças fonético-fonológicas desempenham um papel
importante;
d) Em relação à forma de derivação, a direta foi a mais frequente, havendo somente
quatro indiretas, sendo que nesta análise não se incluem as línguas de herança;
e) Nas formas de adoção, foram observados dois decalques, vinte adaptações fonéticas
(sendo que essa está presente praticamente em todos os usos em maior ou menor
grau), que geralmente implicam nas alterações morfológicas e/ou ortográficas.

!800
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Considerações finais

Concluímos que a presença de empréstimos linguísticos provenientes de várias


línguas integra, historicamente, constituem a formação do PB. Desde 1500, o sincretismo
linguístico faz parte de nossa língua e, até mesmo antes, na sua formação primeira ainda
restrita a Portugal. Por conseguinte, não representa ameaça em relação a uma modificação
mais severa ou drástica que possa culminar com a dizimação da língua portuguesa.

A renovação lexical está vinculada a questões socioculturais, inclui-se nelas o avanço


tecnológico e surgimento de novos objetos e comportamentos. Os neologismos possuem
grande força na renovação interna da língua. Assim, os termos estrangeiros fazem esse papel
em um número bem menor e a maioria são empréstimos lexicais ou semânticos utilizados
como signos mestiços, resultados de processos transglóssicos que envolvem a língua inglesa
e a portuguesa em contato.

As palavras estrangeiras passam por processos de adaptação e são revisitadas com o


“jeito brasileiro” operando mudanças fonológicas, morfológicas, semânticas e até sintáticas.
A língua mundial das comunicações recebe as características locais e vice-versa e as
fronteiras geográficas não determinam as fronteiras linguísticas e o World English não é um
bem comum de países que têm o inglês como língua primeira.

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Gêneros discursivos e plano de trabalho docente: por um ensino


contextualizado das práticas sociais de linguagem

Patrícia Cristina de Oliveira Duarte


Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP/CJ)
patriciaoliveira@uenp.edu.br

Nerynei Meira Carneiro Bellini


Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP/CJ)
nerynei@uenp.edu.br

Considerações iniciais

À luz da Linguística Aplicada, entende-se, consoante Geraldi (1995), que as práticas


de análise linguística - envolvendo abordagens epilinguísticas, como fim, e metalinguísticas,
como meio - deveriam ser integradas, sem artificialidade, às práticas de leitura e de produção
textual. Entretanto, diagnósticos realizados, nos estágios supervisionados de língua
portuguesa, nos anos de 2014 e 2015, em escolas públicas do município de Jacarezinho (PR),
evidenciam que, apesar de existir um discurso inovador, o ensino gramatical continua sendo
feito, em diversos contextos educativos, tradicionalmente ou com uso do texto como mero
pretexto.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Visando colaborar para a transformação do quadro delineado, postula-se, neste


trabalho, que, nas aulas de língua portuguesa, mediadas pelo conceito de gênero discursivo
(BAKHTIN, 2003), devem ser estudados/observados, em enunciados concretos, orais ou
escritos, de diferentes gêneros, aspectos relacionados às dimensões bakhtinianas (conteúdo
temático; construção composicional e estilo – marcas linguístico-enunciativas), analisados,
indissociadamente, das condições de enunciação.

Sob tal enfoque, cabe ao professor, mediante os objetivos de ensino e análise do


perfil de sua sala de aula, selecionar/estudar o gênero discursivo adequado a ser ensinado/
aprendido, elaborando, aplicando e avaliando atividades sequenciadas e interdependentes na
prática da sala de aula. No viés teórico-metodológico assumido, tais atividades serão
mobilizadas, consoante o Plano de Trabalho Docente proposto por Gasparin (2009), que,
fundamentando-se na Pedagogia Histórico-Crítica276, propicia um processo de ensino-
aprendizagem que considera o conhecimento espontâneo do aluno, objetivando transformá-lo
em conhecimento científico.

Este trabalho, portanto, objetiva apresentar uma proposta de análise linguística


contextualizada às práticas de leitura e de produção textual, via texto-enunciado do gênero
discursivo conto de fadas contemporâneo, mais especificamente o conto A moça tecelã
(1991), de Marina Colasanti.

Linguagem, Dialogismo, Enunciado e Gêneros Discursivos

Para os teóricos do Círculo de Bakhtin, não é possível conceber a língua como um


sistema fechado em si mesmo e dissociado das relações histórico-sociais, visto rejeitarem o
caráter monológico das enunciações, defendido tanto pelo objetivismo abstrato como pelo
subjetivismo individualista. Sustentando uma concepção interativa de língua e linguagem, os
filósofos da linguagem postulam o caráter dialógico das enunciações. Dessa forma, definem:

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de


formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico da sua produção, mas pelo fenômeno social da interação
verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal

276 Fundada por Dermeval Saviani, a Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) é uma corrente pedagógica que se fir -
mou, no Brasil, fundamentalmente, a partir de 1979. Nas palavras do autor, a PHC pode ser sintetizada nos se-
guintes termos: “Essa pedagogia é tributária da concepção dialética, especificamente na versão do materialismo
histórico, tendo fortes afinidades, no que ser refere às suas bases psicológicas, com a psicologia histórico-cultu-
ral desenvolvida pela “Escola de Vigotski”. A educação é entendida como o ato de produzir, direta e intencio-
nalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto
dos homens. Em outros termos, isso significa que a educação é entendida como mediação no seio da prática
social global. A prática social se põe, portanto, como o ponto de partida e o ponto de chegada da prática educati-
va”. (SAVIANI, 1994, p. 421).

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

constitui assim a realidade fundamental da língua. (VOLOCHINOV/


BAKHTIN, 1992, p. 123)

Os autores completam que a língua se produz em processo dialógico ininterrupto, ou


seja, o discurso é produzido, nas interações verbais, nas relações entre um eu e um tu. As
ações linguísticas sobre o outro incidem sobre as motivações para agir; é no espaço da
interlocução (interação) que se constituem os sujeitos e a própria linguagem. Em decorrência,
é preciso considerar o caráter sócio-histórico da linguagem, bem como toda a sua diversidade
interna e externa, atentando para o fato de que não há possibilidade de compreendê-la como
uma unicidade lógica, imanente. “A língua vive e evolui historicamente na comunicação
verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo
individual dos falantes” (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 1992, p. 124).

O Círculo de Bakhtin, portanto, concebe a linguagem como forma de interação


humana, permeada pelo dialogismo, constituinte da linguagem e do próprio indivíduo.
Bakhtin/Volochinov (1992) sustentam ser o dialogismo um fenômeno natural de todo
discurso vivo, o modo de funcionamento real da língua, já que todo discurso é constituído sob
a base de discursos anteriores (os já-ditos), presentes no discurso do enunciador, e suscitará,
inevitavelmente, réplicas discursivas, materializadas em enunciados concretos e únicos.

Compreender a linguagem, materializada nos enunciados concretos e únicos


proferidos por seres expressivos e falantes (BAKHTIN, 2003), portanto, implica aceitar seu
caráter dialógico e interacional, reconhecendo a inexistência de discursos monológicos e
sentidos fundantes277. Corroborando o mencionado, Brait (2005, p. 25) destaca: “todo
enunciado cria o novo, mas só o pode fazer a partir do já existente”. Logo, as enunciações são
vistas sob o seu caráter constitutivo: sempre são destinadas a alguém, ao outro, não tendo
existência se não houver este outro para direcioná-las278. Dessa forma, a interação verbal,
propiciadora das relações intersubjetivas, determina a construção dos sentidos possíveis para
determinado enunciado, atribuindo-lhe dada valoração e não outras.

Sob tal ótica, “onde não há palavra, não há linguagem e não pode haver relações
dialógicas; as relações dialógicas pressupõem linguagem”. (BAKHTIN, 2003, p. 323). Assim,
toda e qualquer prática social de linguagem pressupõe a existência de enunciados concretos,

277 Bakhtin (2003) assinala que somente o Adão mítico poderia evitar por completo a mútua orientação dialógica
do discurso. Nesse sentido, para os teóricos do Círculo, o sentido de um discurso é construído na interação soci-
al. Não havendo, portanto, um sentindo fundante.

278 Nesse viés, estabelecer previamente quem é este outro a quem a enunciação se destina, constitui-se uma
condição de suma importância para a elaboração do enunciado. Essa essencialidade somente é precedida pelo
estabelecimento da finalidade discursiva.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

significados e situados, em um contexto sócio-histórico de enunciação, sem o qual o


enunciado não pode ser compreendido em sua totalidade. Em consequência, os teóricos do
Círculo postulam: o enunciado é a real unidade da comunicação discursiva, cuja existência
pressupõe o papel balizador de um (ns) gênero (s) do discurso.

Relacionando a concepção interativa e dialógica da linguagem ao contexto


educacional, Perfeito (2012), de forma precisa e concisa, declara:

os gêneros discursivos são enunciados típicos relativamente estáveis,


consubstanciados pelas ideologias dos campos sociais, por suas condições de
produção, finalidade discursiva e configurados por três dimensões: a) o
conteúdo temático – objeto de sentido, avaliativamente construído; b) o estilo -
manifestação de recursos linguístico-expressivos de regularidade do gênero; c)
a construção composicional – elementos de estrutura e significação. A
compreensão é, por conseguinte, de que o caráter normativo (de regularidades)
dos gêneros discursivos e o seu status estável são dados historicamente e não
criados no processo enunciativo. Como posto, no entanto, os gêneros
discursivos são dizíveis (proferidos) por sujeitos falantes, em processo
interativo, em forma de enunciados concretos, que, embora eivados de vozes de
outrem, anteriores e posteriores, são únicos e irrepetíveis no plano discursivo.
Sob tal enfoque, postula-se serem os gêneros discursivos de diferentes esferas,
selecionados em contextos escolares específicos, o eixo de articulação e
progressão curricular no ensino básico (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004). E os
textos-enunciado são entendidos como objeto de ensino, visto serem estudados,
lidos, falados, analisados como enunciados concretos e não, como gêneros.
(PERFEITO, 2012, p. 17 grifos nossos).

Ratificando o posicionamento axiológico da pesquisadora, neste trabalho,


concebemos o gênero discursivo como eixo de articulação e progressão curricular e o
enunciado concreto como objeto de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa. Como muito
bem postula o Círculo de Bakhtin, falamos por meio de enunciados; logo eles são práticas de
linguagem279, balizadas pelos gêneros, e as práticas, como defendido por Geraldi (2010),
produzem competências. E competência enunciativa é o que, como docentes, almejamos
desenvolver em nossos alunos.

O gênero discursivo conto de fadas contemporâneo

Segundo a visão dialógica bakhtiniana, os gêneros do discurso refletem as condições


sócio-históricas da evolução da sociedade. Em decorrência, num constante processo de vir-a-
ser, dialogismo, os gêneros nascem, hibridizam-se e transmutam-se, no grande tempo, dentre

279 Consideramos o texto como mediador das práticas sociais de linguagem, constituindo ele próprio uma com -
plexa prática social de linguagem, à medida que sua realização envolve uma série de funções psicológicas supe-
riores.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

eles, o conto de fadas – conteúdo de estudo e ensino deste trabalho – que percorreu uma
longa trajetória, partindo dos primeiros contos orais, passou por uma literatura moralizante,
até se tornar, na contemporaneidade, novamente renovado e transgrediente. Como muito bem
postula o mestre russo: “O gênero vive do presente, mas sempre recorda o seu passado, o seu
começo.” (BAKHTIN, 1993a, p. 121).

Imbuídos dessa perspectiva, entendemos, em concordância com Merege (2010), que o


caminho aberto por Andersen levou outros escritores a se aventurarem no universo mágico
dos contos de fadas, revisitando-os de diferentes formas, na contemporaneidade. Os contos
de fadas tradicionais, então, escritos em outra época, propiciaram a construção de novos
enunciados, os contos contemporâneos, os quais, segundo Duarte (2015), constituem
contrapalavras aos discursos presentes nos contos tradicionais, representando a compreensão
responsiva ativa criativa e crítica de diferentes autores da contemporaneidade às ideologias
propaladas nos clássicos contos de fadas.

De acordo com Estevão e Duarte (2014), o gênero conto de fada contemporâneo, em


seu processo de constituição, sofreu diversas transmutações, tais como adaptações ao estilo e
ao conteúdo temático, uma vez que o contexto social do conto contemporâneo é diferente dos
contos compilados por Charles Perrault, Irmãos Grimm e Andersen, autores de contos
tradicionais.

Duarte (2015) assinala que, em suas primeiras manifestações, os contos de fadas eram
contados por e para adultos, em diferentes circunstâncias e propósitos; entretanto, no século
XVII, os contos de fadas destinavam-se quase, exclusivamente, às moças e às crianças, visto
haver uma finalidade moralizante. A partir do século XVIII, por meio do trabalho dos Irmãos
Grimm e Andersen, os contos passaram a ser destinados, de forma quase exclusiva, às
crianças. Em decorrência, contos de fadas e literatura infantil passaram a ser concebidos
como termos sinônimos. A ascensão da ideologia burguesa, a partir do século XVIII,
contribuiu, expressivamente, para a “criação” de uma literatura voltada ao público infantil,
visto não haver, na sociedade antiga, o conceito de infância. Os contos de fadas foram, então,
ainda segundo a autora, úteis à disseminação dos valores burgueses de tipo ético e religioso,
inculcando nas crianças e adolescentes um determinado papel social e uma visão de mundo.
O trabalho dos Irmãos Grimm e Andersen contribuiu, expressivamente, para acentuar a
ideologia cristã veiculada nos contos de fadas. Concepção esta questionada, confrontada na/
pela modernidade tardia.

Em concordância com Duarte (2015), denominamos contos de fadas contemporâneos


os textos/enunciados concretos que revisitam os contos de fadas tradicionais, subvertendo-
os, seja por meio da paródia, estilização, ou pela crítica social, de forma mais velada, como,
por exemplo, em alguns contos de Marina Colasanti, nos quais a autora mantém,

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

praticamente, as mesmas características dos contos de fadas tradicionais, para, por meio
delas, tecer sutis críticas e questionar valores; caso do conto de fadas contemporâneo “A
moça tecelã”, focalizado neste artigo.

Dessa maneira, ainda comungando com o posicionamento de Duarte (2015),


entendemos o conto de fadas contemporâneo como

um gênero discursivo secundário híbrido, que emerge das condições sócio-


histórico-culturais do tempo-espaço da pós-modernidade, um cronotopo de
profunda angústia existencial, no qual se busca, incessantemente, ressignificar
a efêmera existência humana. Tal como o romance operou um corte na
linearidade épica, instaurando o devir, o vir-a-ser – a evolução, o conto de
fadas contemporâneo esfacelou o mundo maravilhoso/ideal retratado nos
contos de fadas tradicionais. (DUARTE, 2015, p. 194).

Nessa perspectiva, o conto de fadas contemporâneo dialoga com as vozes presentes


na sociedade contemporânea e também com as vozes presentes nos contos de fadas
tradicionais, promovendo uma profícua reflexão a respeito dos conceitos e valores que
permeiam, agora, a sociedade. No constante diálogo entre os dois gêneros, como destacado,
há elementos de aproximação e de distanciamento.

Diante do exposto, postulamos, em consonância com Duarte (2015), que enunciados


concretos pertencentes ao gênero conto de fadas contemporâneo, apresentam, em síntese, as
seguintes características:

• Conteúdo temático

✓ Temática de cunho existencial, apresentando assuntos variados e relacionados à


contemporaneidade.

• Construção Composicional

✓ Texto, relativamente, curto, desenvolvido em prosa, verso ou prosa- poética;


✓ Recriação/contestação de discursos/ideologias por meio
da paródia;
✓ Título, quase sempre, apresenta as expressões “para
tempos modernos”, “para mulheres modernas”, “às avessas”;
✓ Personagens ativos e ambíguos, próximos à realidade
contemporânea;
✓ Espaço e tempo imprecisos, configurados de forma
vaga;

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

✓ Sequência narrativa, na maioria das vezes, não linear;


✓ Narrador atento a seu destinatário, geralmente, em 3ª pessoa;
✓ Intertextualidade com os contos de fadas tradicionais;
✓ Irrupção do maravilhoso metafórico e satírico;
✓ Alternância entre magia e realidade.

• Estilo

✓ Atualização da linguagem, podendo apresentar linguagem coloquial;


✓ Presença de adjetivação constante;
✓ Predomínio de verbos no pretérito perfeito e imperfeito (mundo narrado/plano
ficcional);
✓ Uso de linguagem conotativa;
✓ Presença de figuras de linguagem, em especial, metáforas e comparações;
✓ Discurso parodiado, com tom humorístico, irônico e satírico; Convergência de
multilinguagens (verbal e não verbal);
✓ Uso de travessão para marcar o discurso direto;
✓ Uso abundante de reticências, pontos de exclamação e interrogação.

Práticas sociais de linguagem, Gênero discursivo e Plano de Trabalho Docente

Os documentos oficiais que versam sobre o ensino de Língua Portuguesa em nosso


país, tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) e as Diretrizes
Curriculares Estaduais de Língua Portuguesa (PARANÁ, 2008) destacam a importância de se
desenvolver um ensino gramatical articulado à prática de leitura e à prática de produção
textual, isto é, um ensino capaz de formar leitores críticos/reflexivos e produtores de bons
textos.
Em consonância com esse direcionamento, pautamo-nos no trabalho com a Análise
Linguística (AL), cujo foco é a observação e a análise da língua em uso, a partir do texto.
Segundo o documento,

a análise linguística é uma prática didática complementar às práticas de leitura,


oralidade e escrita, faz parte do letramento escolar, visto que possibilita a
reflexão consciente sobre fenômenos gramaticais e textual-discursivo que
perpassa os usos linguísticos [...] Essa prática abre espaço para as atividades de
reflexão dos recursos linguísticos e seus efeitos de sentido no texto. (PARANÁ,
2008, p. 77).

Trabalhar sob o prisma da AL, portanto, é privilegiar o desenvolvimento de atividades


epilinguísticas – reflexões sobre os usos dos elementos gramaticais/estruturais dos textos, não

!810
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

deixando de desenvolver, como meio, atividades metalinguísticas – análise descritiva por


intermédio de uma metalinguagem que permite falar sobre a língua.

Sob tal enfoque, cabe ao professor, mediador entre o aluno e o conteúdo de ensino –
enunciado concreto, balizado por um gênero discursivo, desenvolver atividades
metodológicas que visem a um ensino mais produtivo da linguagem. Neste trabalho,
postulamos um encaminhamento didático seguindo o Plano de Trabalho Docente (PTD),
proposto por Gasparin (2009).

O Plano de Trabalho Docente é uma proposta teórico-metodológica, fundamentada no


Materialismo Histórico-Dialético de Marx e Engels e na Teoria Histórico-Cultural de
Vygotsky. A proposta, então, volta-se às três etapas do método dialético de construção do
conhecimento – prática/ teoria/prática, propondo a abordagem dos conteúdos a partir de sua
finalidade social.

A estrutura de base do PTD segue os passos discriminados no quadro por Gasparin


(2009), transcrito na sequência.

Quadro 1 – Estrutura do Plano de Trabalho Docente


PRÁTICA (zona TEORIA PRÁTICA (zona
de desenvolvi- de desenvolvi-
(zona de desenvolvimento proximal)
mento real) mento poten-
cial)

P r á t i c a s o c i a l P r o b l e m a t i- Instrumentalização Catarse Prática social


inicial do con- zação Final do conteú-
teúdo do

1) Apresentação 1) Identificação 1) Ações docentes 1) Elaboração 1) Intenções do


do conteúdo; e discussão so- e discentes para teórica da sín- aluno. Manifes-
bre os principais construção do con- tese, da nova tação da nova
2) Vivência coti-
problemas hecimento. Relação postura men- postura prática,
diana do conteú-
postos pela prá- aluno x objeto do t a l . C o n s- da nova atitude
do:
tica social e conhecimento atra- trução da nova sobre o conteúdo
a) O que o aluno pelo conteúdo. vés da mediação totalidade e da nova forma
já sabe: visão da docente. concreta. de agir.
2) Dimensões
totalidade empí-
do conteúdo a 2) Recursos huma- 2) Expressão 2)Ações do
r i c a . M o b i l i-
serem trabalha- nos e materiais. da síntese. aluno.
zação.
das. Av a l i a ç ã o :
Nova prática so-
b) Desafio: o que deve atender
cial do conteúdo
gostaria de saber às dimensões
a mais? trabalhadas e
aos objetivos.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Fonte: Gasparin (2009, p. 159)

Consoante Gasparin (2009), esses passos pedagógicos constituem um todo


indissociável e dinâmico, em que cada fase interpenetra as demais.

Apresentadas as bases teórico-metodológicas que sustentam este trabalho,


apresentamos, na sequência, nossa proposta de transposição didática para o enunciado
concreto A moça tecelã, de Marina Colasanti, contemplando atividades contextualizadas das
práticas pedagógicas de leitura, produção textual e análise linguística. Por fim, ressaltamos
que as atividades desenvolvidas, destinadas ao 9º ano do Ensino Fundamental, são apenas
sugestões didáticas, nas quais o docente pode e deve fazer as adaptações necessárias para
atender às reais necessidades de sua turma.

Plano de Trabalho Docente para o conto A moça tecelã (Marina Colasanti)

1. Prática Social Inicial

5.1. – Anúncio dos conteúdos:

- O gênero conto de fadas contemporâneo;


- O contexto de produção;
- O conteúdo temático;
- A organização textual;
- As marcas de linguagem (linguístico-enunciativas), que se constituem elementos cruciais
para a construção de efeitos de sentido do texto;
- O conto de fadas contemporâneo A moça tecelã, de Marina Colasanti.

5.1.1. Objetivo geral:

- Reconhecer as características do gênero conto de fadas contemporâneo e sua importância na


sociedade.

5.1.2. Objetivos Específicos:

- Reconhecer o contexto de produção do gênero, relacionando-o ao conteúdo temático do


gênero;

- Compreender a finalidade social do gênero;

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

- Identificar as diferentes dimensões constituintes do gênero, compreendendo que elas são


indissociáveis;

- Identificar e compreender a importância das marcas linguístico-enunciativas para a


construção dos efeitos de sentido do conto A moça tecelã;

- Reconhecer o confronto de vozes sociais presentes no texto, compreendendo que todo


enunciado é dialógico.

1.2 – Vivência cotidiana dos conteúdos:

Nota para o professor: As atividades apresentadas na sequência objetivam indicar ao


professor o que os alunos já sabem com relação ao conteúdo. A fim de criar um clima mais
descontraído e interativo, as questões devem ser projetadas em slides e discutidas
coletivamente.

a) Você sabe o que é conto? E um conto de fadas contemporâneo?


b) Que diferenças há entre os contos de fadas tradicionais e os contos de fadas
contemporâneos?
d) Por que você acha que as pessoas começaram a escrever os contos de fadas
contemporâneos?
e) Quando essas histórias começaram a ser escritas? Elas ainda são escritas?
f) Por que as pessoas leem histórias desse tipo?
g) Onde essas histórias circulam?

Nota para o professor: Agora, com o auxílio do data show, deve ser feita a exibição de
trailers de filmes previamente selecionados, que tematizem os contos de fadas
contemporâneos. Sugestão de filmes: A Nova Cinderela (2004), A Fera (2011), Malévola
(2014). Na sequência, apresentar os questionamentos:
i) A partir das histórias vistas, pudemos observar que, apesar de manterem forte ligação com
os contos de fadas tradicionais, os contos contemporâneos apresentam temáticas voltadas à
sociedade atual. Quais são os temas explorados nos filmes exibidos? Elas seguem a mesma
temática do conto de origem? O que há de diferente de uma história para outra?
j) Além dessas obras que foram adaptadas para filmes, encontramos também muitos outros
exemplos de contos contemporâneos, que buscam inspiração nos clássicos contos de fadas,
produzidos há séculos atrás, em outro contexto sociocultural. Você já leu alguma história
assim, que lhe fez lembrar um conto de fadas tradicional por apresentar algum personagem
ou elemento mágico? Quais?

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

2. Problematização (Para problematizar o conteúdo por meio de questões desafiadoras


em diferentes dimensões)

2.1 Dimensão conceitual

a) O que um texto precisa ter para ser um conto de fadas contemporâneo?


b) Como diferenciar um conto de fadas contemporâneo de um conto de fadas tradicional?

Nota para o professor: Se possível, levar os alunos ao laboratório de informática. Caso não
seja possível, pode sugerir como tarefa de casa.

2.2 Dimensão social

a) Os contos de fadas contemporâneos, diferentemente dos tradicionais, não apresentam


garotinhas indefesas fugindo de um lobo mal, nem jovens que esperam de braços cruzados o
príncipe chegar montado em seu cavalo branco ou moças que adormecem por séculos à
espera de um beijo que as despertem. As histórias modernas, apesar de ainda apresentarem,
na maior parte dos casos, alguns elementos mágicos, possuem novas temáticas relacionadas
ao mundo atual, aos problemas que a sociedade enfrenta hoje. Para isso, quase sempre,
parodia ou satiriza os contos de fadas tradicionais. Nessa perspectiva, qual seria a
importância social que justifica a criação dos contos de fadas contemporâneos?

2.3 Dimensão econômica


a) Ganha-se dinheiro com os contos de fadas contemporâneos?
2.4 Dimensão escolar
a) Por que é importante estudar os contos de fadas contemporâneos?
2.5 Dimensão estética
a) Há diferenças nos contos de fadas contemporâneos produzidos por diferentes autores?

3 – Instrumentalização

Nota para o professor: Neste momento, deve-se fazer a leitura do conto de fadas
contemporâneo A moça tecelã, apresentando, na sequência, as perguntas elencadas abaixo,
que devem ser respondidas por escrito, contando sempre com a sua mediação.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

1. Atividades que abordam o contexto de produção:

a) Quem é o produtor deste texto?

b) Quem, provavelmente, são seus leitores?

c) Qual sua finalidade social?

d) Onde ele pode ser encontrado?

e) Em qual momento, provavelmente, ele foi escrito?

2. Atividades que abordam o conteúdo temático:

a) Ao ler o título A moça tecelã, naturalmente, você criou toda uma expectativa a respeito do
assunto que ia ser narrado. No decorrer da história, esse assunto se confirmou? Você
imaginou, pela leitura do título, a presença de algo mágico na história?

b) Quem é a protagonista desta história? Em que ela difere das protagonistas dos contos de
fadas tradicionais?

c) Segundo o texto, por qual motivo a tecelã sentiu necessidade de se casar?

d) Como você interpreta esse anseio da tecelã?

e) Por que a história não terminou quando a tecelã encontrou seu príncipe encantado?

f) Para você, o que o tear representa?

3.3 Atividades sobre a construção composicional (arranjo, organização textual) do gênero

a) No conto A moça tecelã, que tipo de narrador conta a história? Justifique sua resposta,
transcrevendo um fragmento do texto.

b) Ao ler o conto A moça tecelã, você conseguiu encontrar indicação exata da época e do
lugar onde a história ocorreu? Por que eles são apresentados dessa forma?

c) Os contos de fadas contemporâneos, diferentemente dos tradicionais, não se iniciam com


as clássicas expressões “Era uma vez” e tampouco se encerram com “e viveram felizes para
sempre”. Considerando o conto em estudo e outros contemporâneos que você já leu, você
notou se eles possuem expressões que, obrigatoriamente, devem iniciar e encerrar o texto?
Por que esses textos são escritos assim?

!815
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

e) O conto A moça tecelã apresenta intertextualidade e interdiscursividade em sua construção


composicional. Você consegue identificar alguns intertextos e interdiscursos presentes no
texto? Quais? Como você conseguiu identificá-los?

Nota para o professor: Este é o momento de relacionar o conto A moça tecelã com o conto
tradicional A filha do Moleiro. Como este último não é um conto muito difundido pode ser
que os alunos não o conheçam e não o citem como exemplo na atividade acima. É necessário,
então, que o professor faça a mediação apresentando-lhes o conto, levando a história para
realizar a leitura e motivando um debate entre as semelhanças e diferenças entre os dois.

3.4 Atividades que contemplam as marcas linguístico-enunciativas (dimensão verbal)

a) O texto em estudo se inicia com um verbo. Os verbos, como já estudamos, são palavras
usadas para indicar ações em um tempo passado, presente ou futuro, expressas por uma
pessoa verbal. Eles também possuem modos, que demonstram dúvida, certeza ou ordem.
Volte ao texto e identifique que tempo e modo verbal é predominante na narrativa. Por que os
contos de fadas contemporâneos apresentam o emprego desse tempo e modo verbal?
b) As conjunções são palavras invariáveis, ou seja, que não variam nem em gênero
(masculino ou feminino), nem em número (singular ou plural), nem em grau (aumentativo ou
diminutivo) e servem para conectar orações, termos da mesma função sintática e dar sentido a
um texto. De acordo com o uso, em cada contexto, as conjunções estabelecem relações
diferentes, por isso é muito arriscado decorar tabelas que classificam os tipos de conjunções.
A conjunção mas exemplifica tal situação, uma vez que, comumente, encontramos tabelas
que a classificam como adversativa, como, por exemplo, na frase “O brinquedo é novo, mas
não funciona”, em que temos a oposição de ideias e, portanto, o sentido é adversativo.
Entretanto, em outros casos, como, por exemplo, na frase “Foi à feira e não só comprou
bananas, mas maçãs e peras também”, a conjunção apresenta valor aditivo, já que sua função
é adicionar itens comprados. Na frase “Nossa, mas a prova estava tão difícil!”, o uso da
conjunção tampouco é contrastivo, já que funciona apenas como recurso enfático. Além dos
casos comentados, a referida conjunção apresenta muitos outros sentidos, assim como outras
conjunções que, dependendo da situação em que estão empregadas, assumem outro valor
semântico. No texto em estudo, encontramos um farto uso de conjunções. Sua tarefa será
retirar dois trechos que possuem conjunções, grifá-las e explicar qual é o sentido apresentado
por esse elemento gramatical.

c) Você já estudou que os adjetivos existem para que possamos caracterizar os substantivos,
atribuindo-lhes modos peculiares de ser. Quando usamos um adjetivo, intensificamos o
sentido daquilo que objetivamos transmitir, pois não podemos afirmar que “uma princesa”
tenha o mesmo sentido de “uma princesa linda e meiga”. No texto A moça tecelã, os adjetivos
são muito usados, estando presentes em quase todas as frases. Volte ao texto, identifique e

!816
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

transcreva o parágrafo que descreve o marido “tecido pela tecelã.” Feito isso, identifique os
adjetivos presentes e explique o efeito de sentido produzido por eles.

e) Na vida real, não temos o poder de possuir um tear mágico que realize nossos desejos, mas
temos a liberdade de escolher o que queremos e o que é melhor para nós, desde que não
prejudiquemos outras pessoas. No conto, por meio da história da jovem tecelã, você
conseguiu identificar a metáfora que vai sendo construída no tear?

4– Catarse

Vamos, agora, sintetizar o que aprendemos a respeito dos contos de fadas contemporâneos,
respondendo as questões abaixo:

a) Em que consiste o gênero conto de fadas contemporâneo?

b) Qual sua função social?

c) Quais as semelhanças e diferenças entre os contos de fadas contemporâneos e os


tradicionais?

d) Agora chegou a sua vez de colocar em prática os novos conhecimentos! Agora que você já
conhece bastante as características do gênero conto de fadas contemporâneo, que tal você
colocar em prática os novos conhecimentos e escrever seu próprio texto? Sim, você é
capaz de produzir uma bela história e, se quiser, pode fazer parceria com um amigo! Pense
como serão os personagens, o cenário, a história que será contada e não se esqueça das
características que nós estudamos. Ao final, pense em um belo e chamativo título!
Capriche, pois as produções serão digitadas e montaremos nosso próprio livro de contos
de fadas contemporâneos! Demais essa ideia, não é mesmo! Portanto, solte sua
imaginação...e não se esqueça de observar atentamente nosso contexto histórico-social,
pois é dele que emergem as ideias que figuram nos contos contemporâneos. Lembre-se
que esses contos dão respostas (concordando ou discordando) aos contos de fadas
tradicionais!


5. – Prática social final

Esse é o momento em que o aluno demonstra, por meio de intenções e ações, que o
conteúdo vivido, problematizado, teorizado e sintetizado é capaz de transformar a sua
realidade social. O último estágio de aprendizado do aluno, portanto, não poderá ser aferido

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

em sala de aula, mas, em suas práticas sociais de uso efetivo do gênero estudado. Assim,
espera-se que ele tenha a intenção de ler outros contos de fadas contemporâneos, veiculados
em diferentes suportes e mídias, compreendendo sua finalidade social e os valores que agora
permeiam nossa existência.

Considerações Finais

Ao atuarmos no cenário educacional diariamente, estamos cientes da necessidade de


se consolidar um ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa que, de fato, volte-se ao uso
efetivo das práticas sociais da linguagem. Para isso, entendemos ser necessário mobilizar, na
prática da sala de aula, enunciados concretos de diferentes gêneros discursivos, analisando
sua dimensão social e verbal, bem como seu caráter responsivo a outros gêneros.

Dessa forma, acreditamos que a proposta de transposição didática apresentada, neste


trabalho, constitui-se uma das possibilidades de se empreender análise linguística
contextualizada à prática de leitura e de produção textual, por meio de enunciados concretos
de gêneros discursivos, no caso, do gênero conto de fadas contemporâneo.

Referências

BAKHTIN, M. M; VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Paulo


Bezerra. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.

______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,
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______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 3. ed. São Paulo: Editora
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BRAIT, B.; MELO, R. Enunciado/ Enunciado concreto/ Enunciação. In: BRAIT: (org)
Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Rio de Janeiro / Brasília: DP&A, 1998.

COLASANTI, M. A moça tecelã. In: Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. Rio de
Janeiro: Global Editora, 2000. Disponível em: http://www.releituras.com/
i_ana_mcolasanti.asp Acesso em 12/09/2013.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

DUARTE, P. C. O.; PERFEITO, A. M. Uma possibilidade de análise linguística via gênero


discursivo conto de fadas. Anais 2º CIELLI – Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos
e Literários. Maringá, 2012.

DUARTE, Patrícia Cristina de Oliveira. Era uma vez um estágio de língua portuguesa:
diálogos sobre formação docente inicial, o gênero discursivo conto de fadas e suas
contrapalavras contemporâneas. 2015. 513 p. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) –
Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2015.

ESTEVÃO, A. G.; DUARTE, P. C. O. Uma proposta de leitura/análise linguística com o


conto A moça tecelã, de Marina Colasanti. Anais 3° CIELLI- Colóquio Internacional de
Estudos Linguísticos e Literários (Simpósio), Universidade Estadual de Maringá, Maringá,
2014.

GASPARIN, J. L. Uma didática para a pedagogia histórico-crítica. 5. ed. rev. Campinas, SP:
Autores Associados, 2009.

GERALDI, J. W. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

______. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares da Educação Básica:


Língua Portuguesa. Curitiba: SEED, 2008.

SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 32. ed. Campinas:


Autores Associados, 1994.

VOLOCHINOV, V. N.; BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Paulo


Bezerra. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1992.

ANEXO

A moça tecelã (Marina Colasanti)

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da
noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre
os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca
acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na
lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido.
Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os
pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a
acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear
para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E
eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de
leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia
tranquila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela
primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida,
começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu
desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato
engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos,
quando bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi
entrando em sua vida.
Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para
aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os
esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas
todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que
eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes,
e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta
imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e
escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite
chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar
batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu
tear o mais alto quarto da mais alta torre.

!820
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave,
advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os
cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria
fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o
palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar
sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas
exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao
tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e
jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os
cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e
todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o
jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado,
olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos,
e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo,
tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi
passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do
horizonte.

Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/resenhasdelivros/1413748> Acesso em:


20 maio 2016.

!821
O conceito de ‘cigano’: o léxico e os aspectos culturais

Rafael Veloso MENDES280


Universidade de Brasília (UnB)
rafaelveloso.m@hotmail.com

Resumo: o tema desta pesquisa se insere no bojo do projeto “Aplicação dos percursos
metodológicos da Lexicologia, Lexicografia, Terminologia e da Terminografia para
sistematização de lexemas e termos”, coordenado pela Profª Michelle Vilarinho, no âmbito
da linha de pesquisa Léxico e Terminologia do Programa de Pós-Graduação em
Linguística da Universidade de Brasília (UnB). O objeto de estudo é o conceito do lexema
cigano. Entendemos por conceito a representação mental do referente, conforme Vilarinho
(2013, p. 76). A motivação para a realização desta pesquisa se deu mediante a polêmica
que surgiu quando o Ministério Público Federal protocolou ação judicial contra a Editora
Objetiva e o Instituto Antônio Houaiss em razão da forma em que o verbete cigano foi
registrado no Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa – DEHLP (2009). O
objetivo da pesquisa é a criação do verbete cigano para o Dicionário Informatizado
Analógico de Língua Portuguesa (DIALP). Empregamos o método descritivo-
comparativo, de modo que os percursos metodológicos usados foram: i) comparação do
verbete do lexema em análise nas obras DEHLP, Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa (2010) e no Dicionário Online Aulete Digital; ii) participação do evento
“Seminário sobre Direitos Humanos e Povos Ciganos no Distrito Federal”, no qual foi
possível compreender o conceito do lexema; iii) preenchimento de ficha lexicográfica da
proposta metodológica para elaboração de léxicos, dicionários e glossários de Faulstich
(2001) para elaboração do verbete. Como resultado, o verbete foi elaborado, de modo que
as definições representam o conceito atual do povo cigano. Com a pesquisa, identificamos
que o léxico representa aspectos culturais, uma vez que a descrição do significado revela o modo
como a sociedade interpreta os seres e objetos do mundo.

PALAVRAS-CHAVE: Léxico. Cultura. Verbete cigano.

Introdução

O objeto de estudo é o conceito do lexema cigano. Entendemos por conceito a


representação mental do referente, conforme Vilarinho (2013, p. 76). A motivação para a
realização desta pesquisa se deu mediante a polêmica que surgiu quando o Ministério
Público Federal protocolou ação judicial contra a Editora Objetiva e o Instituto Antônio
Houaiss da Língua Portuguesa - DEHLP (2009).

280Rafael Veloso Mendes: graduando do curso de licenciatura em letras língua portuguesa e respectiva literatura
da UnB, rafaelveloso.m@hotmail.com
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

A metodologia aplicada foi a identificação do objeto de estudo, no caso, o conceito


do lexema cigano nas obras do DEHLP (2009), Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa (2010) e no Dicionário Online Aulete Digital e elaboração do conceito atual do
verbete cigano para o Dicionário Informatizado Analógico de Língua Portuguesa
(DIALP). O método utilizado na análise do lexema é o descritivo-comparativo.

Nessa pesquisa apresentaremos as seções a seguir: 1) aspectos culturais relevados


por meio do léxico; 2) povo cigano; 3) verbete cigano; 4) conceito de cigano atual e 5)
considerações finais.


1 Aspectos culturais relevados por meio do léxico

Para melhor entender a importância do léxico na nossa sociedade, torna-se


necessário a discussão entre o léxico, cultura e a necessidade do homem de nomear as
coisas que constituem o mundo. Para essa nomeação, são criadas significações para os
diversos elementos que rodeiam o nosso dia a dia. De acordo com Biderman (1987, p. 81),
“a propósito do léxico, de acordo com sua visão do mundo, sua cultura, o homem rotula os
objetos, interagindo cognitivamente com seu meio”. A forma como os objetos e seres são
vistos dentro da sociedade revela características culturais.

Entendemos por cultura em consonâncias com as ideias de Paula (2008, p. 74),


quando afirma que

cultura é o conjunto de práticas sociais, situadas historicamente, que se referem a


uma sociedade e que a fazem diferente de outra. Baseia-se na construção social de
sentidos e ações, crenças, hábitos, objetos que passam a simbolizar aspectos da
vivência humana em coletividade. Construída socialmente no cotidiano das relações
humanas demanda que seja definida no seio das relações sociais e históricas que a
amparam e por ela são caracterizadas.

A cultura descreve os atributos do povo e como disse Franz Boas (In: MIRANDA,
2013, p. 15), não podemos entender a cultura de um povo, sem ter contato com sua língua.
A língua é objeto de poder do povo, porém, o poder vem dos poderosos e não seria
diferente quando falamos de significações. Borba afirma que ideologia “se entende esta
como um conjunto de ideias, opiniões, valores, crenças etc. que expressam, explicam ou
justificam a ordem social, as condições de vida do homem em suas relações com os outros
homens” A ideologia também está presente nas acepções das palavras no dicionário, e
estando aquilo escrito, tido como certo, há uma preocupação em como isso causa um
preconceito social gerado por acepções equivocadas registradas nos dicionários.
Aprendemos que nem sempre o que está escrito ou que ouvimos possui uma verdade

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

absoluta, cabe a nós, como pensadores críticos, receber a informação e julgá-la,


socialmente, entre equivocada ou não, apesar do controle político, econômico, filosófico,
religioso, entre outros que estamos passíveis a sofrer, procuramos a melhor forma de
enxergar, de maneira questionadora, a total veracidade das coisas e não seria diferente
fazer isso com acepções presentes nos dicionários.

Além do histórico que há por trás de determinada cultura, ela é construída no


presente, todos os dias, com novas criações e novos significados de diversos elementos. A
cultura cigana não é algo novo na nossa sociedade, porém, sua realidade mudou com o
passar do tempo, o que não apaga os seus feitios do passado. Contudo, a trajetória do povo
cigano ainda não foi modificada em diversos dicionários, o que gera preconceitos da
ideologia cigana existente, que hoje é repleto de acepções que fogem da atual realidade
daquele povo.

O racismo ocorre na sociedade brasileira e gera violência e discriminação contra


diversos grupos raciais e étnicos, dentre eles o povo cigano. Os estereótipos que surgiram
contra o povo cigano na época do Brasil Colônia segue presente até hoje na nossa
sociedade, que gera discriminação, o que resulta em invisibilidade e isolamento social
deste grupo.

2 Povo cigano

Roma é o termo politicamente correto para designar os ciganos. Rom é sua forma
no singular, e designa toda pessoa pertencente a esta etnia. São um povo de origem
desconhecida. A teoria mais aceita atualmente os identifica como um grupo originário da
Índia, membros de uma casta militar. Por volta do ano 1000, teria iniciado diáspora em
razão de uma série de invasões islâmicas ocorridas na Índia. Esta teoria foi elaborada
fundamentalmente a partir do estudo do romanês. “A análise das variações encontradas no
romanês e da incorporação de palavras de outros idiomas permitiu a reconstrução de uma
suposta rota migratória inicialmente em direção à Ásia Menor e, posteriormente, para os
Bálcãs e Europa Ocidental” (GUIMARAIS, 2012, p. 40).


No Brasil, o primeiro registro oficial da chegada de ciganos, data de 1562. Este


registro faz referência ao Sr. João Gicliano, homem romani, natural do “Reino da Grécia”,
que desembarcou no Brasil com sua esposa e 14 filhos. Em 1574, há outro registro bastante
disseminado nos estudos produzidos no Brasil: um decreto do Governo português que
deportava o cigano João Torres e sua esposa Angelina para terras brasileiras por 5 anos
(COSTA, 1997). É importante destacar que a primeira menção sobre a presença de ciganos
em terras brasileiras, ocorre anos antes, em 1549, em carta do Padre Manoel da Nóbrega à
Companhia de Jesus. Nela, o jesuíta envia informações sobre esta terra - o Brasil - com mil

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

léguas da costa, toda povoada de gente que andava desnuda. Já nestes tempos, em partes
distantes desta terra, são dadas notícias de mulheres que andavam vestidas em trajes de
ciganas, com panos de algodão (HUE, 2006).

No período do Brasil Colônia, os ciganos eram associados à barbárie, assumindo


relevância apenas quando inquietavam as autoridades. Eram considerados “sujos”,
“trapaceiros” e “imorais”, e as especificidades de seu modo de vida, bem como suas
identidades, eram comumente consideradas apenas no campo da ilegalidade. Esta lógica
alimentou a construção de estereótipos poderosos, baseados na ideia de que toda pessoa de
etnia cigana era, via de regra, uma “pessoa suspeita”, uma “pessoa não-
confiável” (TEIXEIRA, 2009).

No Brasil, estão presentes três grandes grupos étnicos romani (ciganos): são eles os
Calon, Rom e Sinti. Cada um desses grupos étnicos possuem dialetos, tradições e costumes
próprios. Os Rom brasileiros pertencem principalmente aos sub-grupos Caldaraxa,
Matchuia e Rudari, originários da Romênia; aos Rorarrané, oriundos da Turquia e da
Grécia; e aos Lovara (MOTA, 2004). O grupo Calon, originário de Espanha e Portugal, é
bastante expressivo no Brasil, estando presente em todas as regiões do país.

Os estudos sobre os povos romani no Brasil obteve bastante crescimento nos


últimos 20 anos, porém, há uma grande falta de dados e estatísticas oficiais. No Brasil, a
única que oferece dados sobre o povo cigano é a Pesquisa de Informações Básicas
Municipais (MUNIC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2011,
a MUNIC identificou 291 acampamentos ciganos, localizados em 21 Unidades da
Federação, dentre eles, Minas Gerais, Bahia e Goiás são os estados com maior
concentração de acampamentos ciganos.

3 Verbete cigano

A motivação para a realização desta pesquisa surgiu a partir de uma ação judicial
no Ministério Público Federal contra a Editoria Objetiva e o Instituto Antônio Houaiss em
razão de como o verbete cigano foi registrado no Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua
Portuguesa. Um dicionário registra diversas informações linguísticas que trazem o
significado das palavras. Borba (2003, p. 309) esclarece que “um dicionário de língua,
como produto cultural e instrumento pedagógico, resulta de um olhar sobre a estrutura e o
funcionamento do sistema linguístico num determinado momento da vida de uma
sociedade”. Assim sendo, observamos que a significação das palavras contidas no
dicionário possui influência na sociedade e nas praticas sociais de seus indivíduos.

!825
Em um evento realizado pelo Mistério Público do Distrito Federal e Territórios
intitulado “Seminário sobre Direitos Humanos e Povos Ciganos no Distrito Federal”, havia
a presença de diversos ciganos com vários depoimentos da consciência de como eles são
tratados de acordo com as acepções existentes nos dicionários, sempre lembrados como
“caloteiros, ladrões e aplicadores de golpes”. Os ciganos sabem como são designados. Para
exemplificar isso, um vídeo foi mostrado no Seminário em que crianças espanholas leem o
verbete e expressam uma certa revolta, falando que não são aquilo que estão lendo. O
dicionário mostrado no vídeo é o Dicionário de la lengua española e observamos as
informações linguísticas do verbete gitano:

adj 1. Dicho de una persona: de un pueblo originário de la India, extendido por diversos
países, que mantiene en gran parte un nomadismo y ha conservado rasgos físicos y
cultuares proprios. 2. Perteneciente o relativo a los gitanos. 3. Prorpio de los gitanos, o
parecido a ellos. 4. caló (perteneciente al caló). 5. Trapacero. como ofensivo o
discriminatório. 6. Que tiene grafia y arte para ganarse las voluntades de otros. 7. Caló
(variedad del romaní).

O povo cigano é conhecido pelo seu nomadismo e isso é algo que segundo
depoimentos dos próprios ciganos demarca e causa discriminação por parte de povos de
outras etnias. Um outro depoimento de uma cigana fala que o nomadismo do cigano é
associado com liberdade, porém, a liberdade que o cigano reivindica é o de ter direitos de
acordo com a Constituição, de ser cidadão e de ser tratado como tal.

No Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa - DEHLP– (2009), o


verbete cigano é apresentado da seguinte forma:

adj 1. Relativo ao próprio cigano; zingaro; 2. Relativo ao indivíduo dos ciganos,


povo itinerante que emigrou do Norte da Índia para o Oeste (antiga Pérsia, Egito),
de onde se espalhou pelos países do Ocidente; calom, zíngaro; 3. Que ou aquele que
tem a vida incerta e errante; boêmio; 4. Vendedor ambulante de quinquilharias; 5.
Que ou aquele que faz barganha, que é esperto ao negociar; 6. Que ou que serve de
guia ao rebanho (diz-se de carneiro).

Encontramos nessas acepções significações que mostram certo incomodo ao povo


cigano, como pode ser observado na acepção 3, “vida incerta e errante” e “boêmio”.
Porém, essas acepções não existe somente no DEHLP, temos o exemplo do Dicionário
Aurélio - 2010 em que o verbete cigano aparece assim:

adj 1. Indivíduo de um povo nômade, provavelmente originário da Índia e emigrado


em grande parte para a Europa Central, de onde se disseminou, povo esse que tem
um código ético próprio e se dedica a música, vive de artesanato, de ler a sorte,
barganhar cavalos, etc. 2. Indivíduo boêmio , erradio, de vida incerta. 3. Indivíduo
trapaceiro, trampolineiro, velhaco. 4. Vendedor ambulante; 5. Designação de um dos
carneiros de guia; 6. Errante, nômade; 7. Ladino, astuto, trapaceiro.

No Aulete Digital, o verbete cigano possui as seguintes acepções:


I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

adj 1. Indivíduo dos ciganos, povo nômade, prov. originário da Índia, presente em
vários países, com cultura, ética e comportamento próprios, e conhecido esp. por se
dedicar a música, prática de artesanato, quiromancia, comércio de cavalos, etc; 2.
Indivíduo boêmio, de vida incerta [Por vezes, com uso pej.]; 3. Negociante esperto,
vivo; 4. Vendedor ambulante; 5. Conjunto de dialetos pertencentes a família indo-
europeia e falados por ciganos de diferentes países; 6. Referente aos próprios dos
ciganos (dança cigana); 7. Que lembra ou é próprio do modo de vida dos ciganos
(1), esp. quanto ao nomadismo e a importância da música e dança (vida cigana); 8.
Referente ou pertencente ao cigano; 9. Diz-se indivíduo esperto, enganador, esp. nos
negócios.


Observa-se que dentre essas três acepções apresentadas nos dicionários do


português do Brasil, encontra-se similaridade no modo de significação do cigano, como
sendo um povo provavelmente originário da Índia com migração para a Europa, um povo
nômade, que possui atividades artesanais e místicas como forma de sustento da família,
porém, muitas vezes estas atividades são associadas a uma atividade trambiqueira. O
Aulete Digital mostra acepções que voltam mais para a própria cultura cigana, como
música, dança e artesanato pertencentes aquele grupo, isso demonstra uma maior abertura
de pensamento de quem lê essas acepções.

A maior causa dos pensamentos equivocados da sociedade é em função do


estereótipo que gira em torno daquela coisa. De acordo com Lara (1996, p. 185), “un
estereotipo no es un conjunto de propriedades fácticas del objeto, sino uma contrucción
elaborada por la sociedad en su memoria de experiencias compartidas en relación con el
objeto.”281 A sociedade constrói a sua verdade absolta em torno de algo de acordo com a
memória que lhe foi imposta socialmente e culturalmente, e assim leva aquilo adiante,
resultando em acepções nos dicionários que gera incomodo e por isso surge a ideia de uma
nova acepção para o verbete cigano, tendo em vista que o conceito atual não represente
aquele povo.

4 Conceito de cigano atual

Correia (2009, p. 47) diz que "os dicionários são repertório de informações sobre as
palavras”, e por isso há várias maneiras que um lexicógrafo pode elaborar um dicionário,
que além da definição do lexema, pode (e deve, as vezes) conter informações, como:
classe gramatical da palavra, transcrição fonética, marcas de uso, definição lexicográfica,
ilustrações etc, que ajudam o consulente em sua busca no dicionário.

Atentemo-nos aqui nas informações acerca das marcas de uso. As marcas de uso
devem estar presentes em todos os bons dicionários, pois, a partir delas, obtemos

281
Tradução: um estereótipo não é um conjunto de propriedades reais do objeto, é uma construção elaborada
pela sociedade com base em sua memória de experiências partilhadas em relação ao objeto.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

informações relevantes de pejoratividade e variações. Entendemos marcas de uso da


seguinte forma: “são indicações relativas ao uso das palavras no que respeitada a registros
não padronizados da língua em análise, que se desviam da norma-padrão, apresentadas
também sob a forma de abreviaturas indicadas imediatamente antes do texto definitório
proposto por cada definição” (CORREIA, 2009, p. 58). As marcas de uso indicam variação
geográfica, temporal e/ou social. Além das variações que podem fazer parte do lexema, as
marcas de uso podem vir marcadas com conotações negativas, como a depreciativa, como
ocorre com o verbete cigano.

A importância da seleção correta do contexto auxilia na compreensão do


significado, porque apresenta conhecimento sobre o lexema. No caso de palavras
polissêmicas, o contexto ajuda na diferenciação das acepções que o lexema tem.

Para nos ajudar na nova definição do lexema cigano, vamos relembrar o que
entendemos como conceito a partir do estudo do signo linguístico, que é entendido de
maneiras diferentes por diversos estudiosos, como: Saussure (1916), Peirce (1908) e
Hjelmslev (1943). Nesta pesquisa, afunilaremos o conceito de signo linguístico de
Saussure. Esse linguista entende a língua como um sistema de estruturas, e representa o
signo linguístico com duas partes: o significante e o significado, em que o significante
compreende o conceito e o significado compreende a imagem acústica. A figura a seguir
apresenta o signo linguístico de Saussure:

Figura1 : Signo linguístico de Saussure (1916)

Fonte: (SAUSSURE, 1999, adaptado)

Assim, de acordo com Vilarinho (2013, p. 76), “O significante é composto por


expressão. O significado, […] é composto por conceito, […] pelo sentido, pela dimensão
extensional e pela dimensão intencional”. Por dimensão extensional e intencional, citamos
Lopes & Rio-Torto (2007, p. 23) que diz: por extensão, designamos as classes referentes

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

ou de denotados de uma unidade lexical. As propriedades semânticas de uma unidade


lexical perfazem a sua intensão.”

Assim, como resultado da pesquisa, elaboramos o conceito atual de cigano para


compor o Dicionário Informatizado Analógico de Língua Portuguesa (DIALP), que está
em fase de elaboração por Vilarinho (2013).

Para a estruturação do verbete, foi utilizada a proposta metodológica de elaboração


de léxicos, dicionários e glossários, de Faulstich (2001) como o preenchimento da ficha
lexicográfica. A ficha lexicográfica do verbete cigano é apresentada a seguir:

Quadro1 : Ficha Lexicográfica de verbete da parte alfabética

Entrada Cigano

categoria grama-
tical Adjetivo

Gênero Masculino

variante(s) Zíngaro; Calon

Área Etnia

Definição 1. Povo itinerante. 2.Indivíduo de um povo nômade originário da

Índia, com características próprias na língua e na cultura. 3.

Indivíduo que possui um estilo de vida distinto com atividades

musicais e artísticas comuns à comunidade cigana. 4. Indivíduos

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

comuns à comunidade cigana, geralmente nômade, composta de

trabalhadores autônomos confeccionadores de peças artesanais e

também praticantes da quiromancia.

fonte de definição Dicionário Houaiss; Dicionário Aurélio e Aulete Digital

abreviatura da fonte da definição Ho.; Aurélio e Aulete Digital, adaptado de RVM

1. “Paraíba sedia encontro regional de ciganos”; 2. “Escola esta-


Contexto dual

promove mostra cultural afro-brasileira, indígena e cigana em

Joinville”; 3. “Paula Soraia a primeira mulher cigana a concluir

doutorado na América Latina”; 4. “Entidade denuncia ações de

constrangimento da Guarda Municipal do Rio contra ciganas”.

fonte de contexto 1. http://www.portalafricas.com.br/v1/paraiba-sedia-encontro-

regional-de-ciganos/; 2. http://www.portalafricas.com.br/v1/es-
cola-

estadual-promove-mostra-cultural-afro-brasileira-indigena-e-

cigana-em-joinville/; 3. http://www.portalafricas.com.br/v1/pau-
la-

soraia-a-primeira-mulher-cigana-a-concluir-doutorado-na-ame-
rica-

latina/; 4.

http://www.lr1.com.br/index.php?
pagina=noticia&categoria=mundo

&noticia=5646.

data de publicação da fonte de 1. 19 de agosto de 2015; 2. 28 de outubro de 2015; 3. 22 de

contexto setembro de 2015; 4. 12 de junho de 2010.

abreviatura da fonte do contexto 1. Africas; 2. Africas; 3. Africas; 4. LR1.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Equivalente espanhol Gitano

Equivalente inglês Gipsy

Equivalente francês Gitan

Remissões

Hiperônimo Etnia

nota(s)

Autor Rafael Veloso Mendes

Redator

data 20 de janeiro de 2016

5 Considerações finais

A pesquisa contida nesse artigo traz como objeto de estudo o lexema cigano. Após
muitos estudo na área e análise em diferentes dicionários, notamos a deficiência nas atuais
acepções em representar o conceito a atual realidade do povo cigano.

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Grande parte da invisibilidade que o povo cigano sofre é decorrente dos
preconceitos surgidos ao longo do tempo, influenciado pela cultura e pela significação que
é dada aquele povo. A luta diária dos ciganos mostra a sua vontade de se ver fora desses
estereótipos e a por conquistas de terras para a construção de suas moradias e a
manutenção de sua cultura, que, muitas vezes, são perseguidos e mortos por vários
equívocos. A busca por políticas publicas também é tratada com cuidado pelos povos
ciganos.

É importante que as comunidades ciganas mereçam respeito por serem vitimas


frequentes do racismo institucional nas escolas, nos postos de atendimento à saúde, etc. O
racismo que emerge a cada dia contra esses povos precisa ser mudado, e o trabalho do
lexicógrafo é de extrema importância na mudança desta realidade.

A nova conceituação do verbete cigano para compor o DIALP irá refletir em como
esses povos são vistos e em como a visão da sociedade pode mudar com uma nova
significação. A ideia de conceituar um povo parece longe dos padrões de uma sociedade
como a nossa, é trabalhoso e difícil pensar aquilo diferente de uma realidade como a do
povo brasileiro, mas são passos assim que contribuem para um povo com menos
preconceito e mais visão critica.

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vocabulário. In: SILVEIRA, R. C. P. da (org). Português língua estrangeira: perspectiva.
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analógico de língua portuguesa. 2013. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade de
Brasília, Instituto de Letras, Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas,
Brasilia, 2013. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/bitstream/
10482/15142/1/2013_MichelleMachadoOliveiraVil arinho.pdf>. Acesso em: 01 mar.
2016002E


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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Ensino de leitura sob o olhar das relações lexicais mobilizadas na


construção dos sentidos

Sayonara Abrantes de Oliveira Uchoa


sayonara_abrantes@hotmail.com
(IFPB / UFPB/ PIBID/CNPQ)

Resumo: é inquestionável a importância do processo de leitura para o ensino e


aprendizagem, além de todas as relações sociais para as quais o leitor necessita de
determinadas habilidades e competências que são perpassadas pelo ato de ler. No entanto,
ainda prevalece a busca por estratégias capazes de fazer o aluno aprender, efetivamente, a ler
em seu sentido mais profundo, uma leitura compreensiva. Neste sentido, partimos do
pressuposto que é fundamental desenvolver uma consciência linguística através da qual o
leitor compreenda a leitura como um ato, um movimento constante, racional e evolutivo
decorrente da característica produtiva da língua. Assim, este estudo objetiva apresentar
resultados preliminares, oriundas de pesquisa de doutoramento, com o intuito de demonstrar
a relação existente entre a compreensão dos fenômenos lexicais envolvidos na construção de
sentidos do texto e o desenvolvimento de padrões cognitivos que possam auxiliar o leitor em
sua trajetória compreensiva, ao desenvolvimento de habilidades de leitura. Consiste, pois,
numa análise que agrega bases teóricas advindas da Semântica lexical e das teorias de Leitura
e Gênero. Decorrentes das reflexões proporcionadas, os resultados apresentados contribuem
para a análise e constituição de novos fazeres didáticos, no ensino de leitura, voltados à
formação de leitores mais competentes.

PALAVRAS-CHAVE: Léxico. Leitura. Ensino.

Summary: unquestionably the importance of reading process for teaching and learning, as
well as all social relations to which the reader needs certain skills and competencies that are
pervaded by the act of reading. However, still prevails the search for strategies to make
students learn effectively, read in its deepest sense, a comprehensive reading. In this sense, I
assume that it is essential to develop a linguistic consciousness through which the reader
understands reading as an act, a constant, rational and evolutionary movement resulting from
productive feature of the language. Thus, this study aims to present preliminary results,
derived from doctoral research, in order to demonstrate the relationship between the
understanding of lexical phenomena involved in building text directions and the development
of cognitive patterns that can help the reader in his career understanding, the development of
reading skills. It is therefore an analysis that combines theoretical basis arising from the

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contemporâneas

lexical semantics and theories of reading and Gender. Arising from reflections offered, the
results contribute to the analysis and creation of new doings teaching, teaching reading,
aimed at training more competent readers.

KEYWORDS: Lexicon. Reading. Teaching.

1 Introdução

Ler…

Tomada de forma superficial, a ação de ler parece representar uma situação


corriqueira e de fácil realização para todos os que fazem uso da língua em seu cotidiano, visto
que, fazer uso do código oral e escrito para interagir nas mais diversas situações.

No entanto, não é exatamente o que se verifica se levarmos em consideração aspectos


mais profundos deste ato, tomado aqui como um processo extremamente complexo, através
do qual o indivíduo é capaz de situar-se sócio, histórico e culturalmente, como agente,
protagonista.

Dito isso, partimos da premissa que grande parte dos usuários da língua, mesmo os
considerados “alfabetizados” não dispõem de ferramentas necessárias para imergir neste
universo letrado de modo a fazer-se protagonista, visto que, embora reconheça o código
linguístico não conseguem dispor de habilidades para compreender as diversas manifestações
identificadas nos gêneros textuais que constituem seu universo social.

Igualmente, defendemos que não é produtivo o simples fato de colocar este usuário da
língua em contato com a mesma, pois muitos fenômenos somente são internalizados a partir
do momento em que seus mecanismos são compreendidos. Assim, faz-se necessário que o
reconhecimento de regularidades e irregularidades da língua de modo a construir padrões que
o levem a constituir-se leitor, no sentido mais profundo da palavra, nas mais diversas
situações.

Considerados a reflexão apresentada, assumimos o pressuposto que é fundamental


desenvolver uma consciência linguística através da qual o leitor compreenda a leitura como
um ato, um movimento constante, racional e evolutivo decorrente da característica produtiva
da língua.

Assim, este estudo objetiva apresentar resultados preliminares, em sua fase teórica,
oriundas de pesquisa de doutoramento, com o intuito de demonstrar a relação existente entre

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

a compreensão dos fenômenos lexicais envolvidos na construção de sentidos do texto e o


desenvolvimento de padrões cognitivos que possam auxiliar o leitor em sua trajetória
compreensiva, ao desenvolvimento de habilidades de leitura.

A apresentação destes resultados decorre da análise de gêneros publicitários, recorte


textual realizado para a pesquisa, ancorada em bases teóricas provenientes dos estudos sobre
o ensino de leitura e dos fenômenos semântico-lexicais.

O estudo aprofundado dos elementos aqui citados resulta na percepção de nuances que,
levadas à comprovação científica, objeto de tese em desenvolvimento, aponta para a
importância desta relação e de sua disponibilização em situações de ensino de leitura, de
modo que contribuem para a geração de padrões a serem internalizados pelo leitor e, a partir
disso, a construção de habilidades de leitura.

Ter consciência de que a leitura não é um jogo de adivinhações, mas, sobretudo, uma
atividade consciente, orientada de percepção de padrões de uso do código linguístico é, na
visão adotada neste estudo, um passo significativo para contribuir para o ensino-
aprendizagem de leitura e por ela mediado.

2 Léxico, escritura, ensino

A reflexão teórica aqui proposta fundamenta-se nos três eixos que abrem esta seção,
ou seja, na percepção acerca da importância dos fenômenos de produção de sentidos, com
base nas relações lexicais, como eixos para o desenvolvimento de habilidades de leitura.

Assumindo uma concepção de leitura fundamentada na interação entre autor-texto-


leitor. Assim, ratificamos a visão de interação, com aporte em Kleiman (2011, p. 31), ao
afirmar que

A interação, portanto, não é aquela que se dá entre o leitor, determinado


pelo seu contexto, e o autor, através do texto. Essa interação se refere
especificamente ao inter-relacionamento, não hierarquizado, de diversos
níveis de conhecimento do sujeito (desde o conhecimento gráfico até o
conhecimento de mundo) utilizados pelo leitor na leitura.

Nesta visão, a interação não é compreendida como um modelo a ser seguido, mas
como reflexões acerca de níveis de conhecimento e processos necessários à compreensão.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Conceber o ensino de leitura com base em modelos a serem seguidos, contraria


totalmente a concepção de linguagem como manifestação criativa, em constante processo de
mudança, de construção e reconstrução, decorrente do fazer comunicativo de seus falantes.
Trata-se, pois, de perceber regularidades, caminhos a serem seguidos, perceber-se leitor como
aquele capaz de construir estratégias, aprender a aprender.

O ponto no qual ancoramos é o fato de que não basta que o aluno reconheça os
aspectos linguísticos constitutivos do texto, mas que seja capaz de fazer uso de habilidades
através das quais possa mergulhar nos fenômenos de produção de sentidos. Trata-se da
percepção tênue linha divisória entre a decodificação, a compreensão e a interpretação
textual.

Marcuschi (2001) deixa clara a grande dificuldade em se estabelecer limites precisos


no processo de intepretação e compreensão textual e indaga-nos: “Compreender textos é um
ato criativo, quais os seus limites?” A este questionamento, o autor evidencia que

...por um lado, os limites são dados pela própria base textual que exige
pelos menos a preservação da verdade e falsidade das informações ali
presentes. Por outro, o limite depende das estratégias do autor/falante ao
codificar suas informações e intenções. O aspecto meramente gramatical
e contextual nem sempre é orientador. (MARCUSCHI, 2001, p. 47)

Para iniciar esta discussão, Jouve (2002) leva-nos a refletir sobre a concepção de
texto e enfatiza que

Se o leitor está ao mesmo tempo “orientado” e “livre” no decorrer da


leitura, é porque a recepção de um texto se organiza em torno de dois
polos que podemos chamar, com M. Otter (1982), de “espaços de
certeza” e “espaços de incerteza”. Os “espaços de certeza” são os pontos
de ancoragem da leitura, as passagens mais explícitas de um texto,
aquelas a partir das quais se entrevê o sentido global. Os “espaços de
incerteza” remetem para todas as passagens obscuras ou ambíguas cujo
deciframento solicita a participação do leitor. (JOUVE, 2002, p. 66)

Refletir sobre os espaços de certezas e de incertezas, presentes em um texto, fortalece


a ideia inicial de que é necessário um ensino de leitura que proporcione situações de análise
acerca da própria linguagem, visto que somente o contato com os textos não é suficiente para
o desenvolvimento desta consciência linguística por parte do leitor em formação.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Ou seja, “no texto, a relevância dos saberes é de outra ordem. Ela se afirma pela
função que esses saberes têm na determinação dos possíveis sentidos previstos para o texto”.
(ANTUNES , 2003, p. 110).

Por esta importância, é papel da escola estabelecer direcionamentos, explorando a


produtividade dos fenômenos da língua para que o leitor perceba nos “espaços de incerteza”,
presentes no texto, situações de produção dos sentidos através das quais é seu papel
estabelecer as conexões entre os níveis de conhecimento, fundamentando-se nos “espaços de
certeza”.

De forma mais específica, é necessário que o aluno perceba que nem todos os sentidos
encontram-se na superficialidade textual, sobretudo, nas camadas mais profundas. Por tal, a
reconstrução destes sentidos depende de um contrato firmado entre as escolhas estabelecidas
pelo autor na construção do texto e, através deste, a percepção do leitor sobre estas pistas
para a recuperação de conhecimentos de mundo, experiências já vivenciadas pelo leitor,
enfim, para que este, de forma produtiva, eleja as informações necessárias para que seja
possível a reconstrução destes sentidos.

Caracterizados como estes espaços de incerteza, focalizamos a ambiguidade, seja por


polissemia, vagueza, homonímia; a falta de conhecimento do léxico mobilizado na
construção de determinados gêneros, potencializado pela mecanização da visão de fenômenos
como sinonímia, antonímia, meronímia, enfim, as diversas materializações do léxico, cuja
percepção demanda um mergulho mais intenso nas escolhas linguísticas adotadas pelo autor
no momento de sua produção.

É importante deixar claro que o trabalho do leitor, embora produtivo, é também


direcionado pelas inscrições presentes no texto, marcadas pelos sentidos pretendidos por
meio das escolhas lexicais, do gênero e das estruturas assumidas na construção do texto.

Esta percepção é explicada por Kleiman (2011) ao definir que “...tanto sujeito como o
texto delimitam o leque de possíveis leituras de um texto: não há abertura total, porque
hipóteses de leitura devem ser verificadas mediante a depreensão de aspectos formais, nem
há apenas uma leitura porque cada sujeito impõe a sua estrutura de conhecimento ao texto
(KLEIMAN, 2011, p. 39).

Ao identificar a regularidade dos fenômenos lexicais citados nos mais diversos


gêneros textuais, o leitor é direcionado à construção de estratégias através das quais
construirá padrões, caminhos possíveis para o desvendamento destes espaços de incerteza
presentes no texto, daquilo que foge à literalidade.

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A esse respeito, concordados com a ideia de que,

Para aprender a ler, então, é preciso desenvolver uma atividade léxica,


praticando atos de leitura. As ações de ensino estimulam assim uma
atividade reflexiva sobre as estratégias realmente aplicadas para resolver
os problemas levantados pelo texto. Essa abordagem “metaléxica”
permite que a criança faça avançar suas estratégias de questionamento da
escrita, construindo-as como um sistema, e que organize redes que se
abrem para outras hipóteses e outros índices. (FOUCAMBERT, 1994, p.
31)

Hipótese...

Talvez seja esta a estratégia crucial para o leitor fazer-se leitor. É, pois, a base de
qualquer fazer reflexivo. O estabelecimento de hipóteses para que sejam testadas e, a partir
disto, refutadas ou comprovadas, consiste em um processo cognitivo capaz de desenvolver
padrões significativos de aprendizagem.

Marcuschi (2008, p. 252) acrescenta-nos, ao explicar a complexidade constitutiva do


processo de compreensão da leitura, que esta só se efetiva com base na capacidade do leitor
de inferir, relacionando informações textuais, conhecimentos pessoais e de mundo com
suposições.

Nesta relação, as inferências são construídas com base na relação de elementos


sociossemânticos, cognitivos, situacionais, históricos e linguísticos, estabelecidos numa
atividade dinâmica de relacionar conhecimentos, experiências e ações interativamente.

Para Cavalcante (2012)

As inferências envolvem processos cognitivos que relacionam diversos


sistemas de conhecimento, como o linguístico, o enciclopédico e o
interacional. Esses conhecimentos entram em ação no momento em que
articulamos as informações que se encontram na superfície textual (o
contexto) com outras que se acham armazenadas em nossa memória,
acumuladas ao longo de nossas diversas experiências. (CAVALCANTE,
2012, p. 31)

Percebe-se, pelo exposto, que é por meio das inferências que o leitor é levado a
desenvolver mecanismos de compreensão de como o léxico é mobilizado em cada situação de

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comunicação e de forma diferenciada, pois todo ato comunicativo é único visto que ocorre,
também, em um contexto único.

Para Marcuschi (2001) a compreensão não se dá pela mera apreensão do significado


literal das palavras e sentenças. E vai além ao definir que compreender uma sentença ou um
texto exige a realização de uma contextualização cognitiva que depende, fundamentalmente,
da própria organização dos conhecimentos e experiências pessoais, de um processo
metacognitivo.

Toda a organização do conhecimento, a que nos remetemos, advém da nossa relação


com o mundo, intermediada pela linguagem. No entanto, com aporte em Antunes (2012, p.
27-28), é preciso explicitar que tal relação somente ocorre devido a um relação estabelecida
entre categorias cognitivas que são construídas pelo leitor em relação às coisas, ao longo das
experiências vivenciadas, ou seja, são estabelecidas representações linguísticas de nossas
compreensões sobre o mundo que, por sua vez, vão sendo armazenadas e constituindo esse
inventário de itens linguísticos que é o léxico.

No entanto, é preciso deixar claro que o léxico, consiste em um nível de realização


linguística extremamente instável e irregular, dada a condição criativa da própria língua,
sendo, pois, aberto e inesgotável.

Por outro lado, acerca desta instabilidade, Antunes (2012) chama a atenção para um
fato importante:

Isso não quer dizer que as palavras sejam destituídas de toda e qualquer
estabilidade de significado ou que, em cada momento da interação, os
sentidos sejam criados inteiramente “a partir de um estado cognitivo
zero”. Às palavras são associados significados básicos, que constituem,
isso mesmo, a base para a derivação de outros significados, próximos,
associados, afins. (ANTUNES, 2012, p.29).

Se esta condição criativa da língua, por um lado, nos permite criar, ousar, mergulhar
no mais profundo oceano da produção linguística humana, também, por outro lado, nos
permite reconhecer nesta condição caminhos para compreender, para perceber nuances
comportamentais da linguagem na interação humana.

Ao se falar em estratégias retomamos a ideia de que elas são, por sua vez, na visão de
Valls (1990) apud Solé (1998, p. 69) “suspeitas inteligentes”, visto que, embora consistam em
situações de risco, através das quais será possível afirmar ou refutar uma verdade, o aspecto

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mais pertinente é que sua potencialidade reside “...no fato de serem independentes de um
âmbito particular e poderem se generalizar; em contrapartida, sua aplicação correta exigirá
sua contextualização para o problema concreto”.

São estes comportamentos linguísticos que permitirão desenvolver situações de leitura


que possibilitarão estratégias metacognitivas, para que o leitor permita-se saber ler, frente às
situações comunicativas mais diversas, materializadas em gêneros textuais.

Diferentemente de muitas abordagens didáticas já conhecidas, através das quais o


aluno é levado a perceber fenômenos como a ambiguidade, referenciados através de “erros de
linguagem” a serem corrigidos. Por outro lado, percebemos nestas mesmas situações
oportunidades para levar este mesmo leitor a perceber estas condições de criação, a
possibilidade de um mesmo item lexical, uma mesma construção gramatical remeter-se, em
contextos diferentes, a significados distintos. Ou seja, levar o leitor a pensar a leitura como
um processo racional.

Isso, porque, na visão de Magalhães; Machado (2012)

...pode-se considerar que, mesmo quando o leitor não possui


conhecimento lexical e/ou de mundo específicos requeridos pelo texto,
se tiver habilidade para reconhecer a relação existente entre os vocábulos
no interior desse texto, é possível chegar a uma compreensão uma vez
que a interpretação de um elemento expresso refere-se a outro que já foi
utilizado na construção textual. (MAGALHÃES; MACHADO, 2012, p.
48)

Fundamentando-se nestes encontros e desencontros teóricos advindos da Semântica


Lexical, nas teorias do gênero e em diferentes abordagens para o ensino de leitura é que foi
possível estabelecer um objeto de estudo voltado à análise acerca da viabilidade do que nos
propomos.

Como se encontra em se embrionária, ou seja, na transição entre as hipóteses, a


fundamentação à construção dos instrumentos de coleta de dados, esta pesquisa busca tecer
caminhos acerca da eficácia de abordagens direcionadoras do ensino de leitura com
fundamento neste inventário que é o léxico para a produção dos sentidos.

Enfim, o caminho ainda está sendo trilhado.

Palavras finais

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O percurso trilhado, pelo largo caminho das bases teóricas que fundamentam as
reflexões aqui apresentadas, nos levou a perceber que adotamos um caminho muito
produtivo.

Perceber a importância do ensino de leitura, à luz das contribuições dos fenômenos


envolvidos na construção dos sentidos, sobretudo aqueles advindos das relações lexicais, nos
permitem acreditar ser um caminho para a promoção de este fazer-se leitor conhecedor do
próprio conhecimento, dos próprios percursos.

A reflexão aqui apresentada encontra-se em fase de aprofundamento, visto que


compõem um estudo maior e bem mais profundo sobre as relações entre léxico, gênero,
cognição e leitura.

Enfim, atingimos os objetivos a que nos propomos neste momento e que, por sua vez,
contribuem para o surgimento de novos olhares para a temática em questão.

REFERÊNCIAS

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Editorial, 2003.
_______________. Território das palavras: estudo do léxico em sala de aula. São Paulo:
Parábola, 2012.
CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2012.

DIONÍSIO, Angela Paiva; VASCONCELOS, Leila Janot de. Multimodalidade, capacidade de


aprendizagem e leitura. IN: BUNZEN, Clecio; MENDONÇA, Márcia. [Orgs.]. Múltiplas
linguagens para o Ensino Médio. São Paulo: Parábola, 2013.

FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 2004.


JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
KLEIMAN, Angela. Leitura: ensino e pesquisa. 4.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011.
MAGALHÃES, Rosineide; MACHADO, Veruska Ribeiro. Leitura e interpaçao no enquadre
de protocolos verbais. IN: BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Et al. [Orgs.]. Leitura e
mediação pedagógica. São Paulo: Parábola, 2012.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Leitura e compreensão de texto falado e escrito como ato
individual de uma prática social. IN: ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel Theodoro da.
[Orgs.].Leitura: perspectiva interdisciplinares. 5.ed. São Paulo: Ática, 2001. p. 38-57.
_________________. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Parábola, 2008.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6.ed. Porto Alegre: Penso, 1998.

Metodologias de aprendizagem para o processo de leitura e reflexão no


ensino superior

Symara Abrantes Albuquerque de Oliveira Cabral


(UFCG, IFPB, HSL)
symara_abrantes@hotmail.com

Resumo: a leitura constitui-se de um processo gerador de reflexão e aprendizagem, quando


realizada de modo efetivo, ou seja, forma compreensiva, o que demanda do leitor habilidades
e competências para sua efetivação. Observa-se no ensino de pós-graduação um déficit
considerável na capacidade de realização da leitura e, consequentemente, da compreensão, da
reflexão e, consequentemente, da aprendizagem, haja vista a utilização da simples
decodificação, insuficiente à aprendizagem, fato que pode influenciar no alto índice de
evasão neste nível de ensino. Neste escopo, tomando por base a necessidade da leitura
efetiva e o déficit hoje observado, tanto no ensino superior como na pós-graduação, observa-
se nas Metodologias Ativas de Aprendizagem um caminho para favorecer a aprendizagem
por meio do estímulo à metacognição. Assim, o presente estudo tem por objetivo demonstrar
a eficácia na utilização de tais metodologias como propulsoras da leitura efetiva, promovendo
a compreensão efetiva e aprendizagem. Para tal, tem-se resultados de experiência, exitosa
realizada em cursos de ensino superior, que fundamentou-se nas bases teóricas de Maturana
(2002), Rubem Alves (2012), Paulo Freire (2014), Piaget (1999), dentre outros. A experiência
demonstra, em sua efetividade, um potencial subsídio para repensar a prática de ensino, de
modo a favorecer os processos reflexivos de compreensão e aprendizagem a partir da
efetividade da leitura.

PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Ensino. Aprendizagem.

Summary: reading consists of a generator process of reflection and learning, when done
effectively, from its realization in a comprehensive way, that player demand skills and
expertise to its effectiveness. It is observed in the postgraduate teaching a considerable deficit
in reading and hence understanding, reflection and learning, given the use of simple basic
decoding, not being able to promote learning, which may influence the high dropout rate this
level of education. In this scope, based on the need for effective reading and the deficit today
observed both in higher education and in graduate, is observed in Learning Active
Methodologies a prerequisite to foster learning through stimulating metacognition, so this
study aims to demonstrate the effective use of methodologies such as driving effective
reading promoting understanding and effective learning. To this end, it has results of
successful experiment in higher education courses, which was based on theoretical basis of
Maturana (2002), Rubem Alves (2012), Paulo Freire (2014), Piaget (1999), among others.

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Experience has shown its effectiveness in a grant potential to rethink the teaching practice, so
as to favor the reflexive processes of understanding and learning from reading effectiveness.

KEYWORDS: Reading. Teaching. Learning.

Introdução

Estudos de Paulo Freire apontam que “[...] não foi a educação que fez mulheres e
homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade
[...]”(2014, p.57). A auto compreensão dentro do contexto da metacognição de um processo
transformador possibilita a autorreflexão constante e a percepção de tudo aquilo que precisa
ser transformado em metas e, que alimentam a esperança, possibilita a compreensão de que
“[...] minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se
insere [...]” (p.53), e assim “[...] gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser
condicionado, mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele [...]” (p.
52-53).

Então, se todo educador está neste mundo para promover o conhecimento, qual seria a
melhor maneira para se conseguir tal proeza? Importante considerar, à priori, que ensinar não
é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua produção ou sua construção,
“por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da
reflexão crítica sobre a prática” (FREIRE, 2014, pág. 40). A reflexão sobre a prática nos
coloca em uma posição de mudança de paradigmas na busca por metodologias de ensino e
aprendizagem que reavivem a esperança por discentes que, através da capacidade crítica
cognitiva e metacognitiva, possam adquirir conhecimentos dinâmicos e progressivos.

Surge neste contexto as premissas das Metodologias Ativas de Aprendizagem nas


quais a aprendizagem se dá a partir da construção das capacidades de: construção ativa da
própria aprendizagem; articulação dos conhecimentos prévios ao estímulo advindos dos
problemas selecionados para o estudo; e, desenvolvimento e utilização do raciocínio crítico e
das habilidades de comunicação para a resolução de problemas (SMOLKA; GOMES;
SIQUEIRA-BATISTA, 2014).

A utilização desta metodologia é abordada como efetiva no desenvolvimento da


autonomia do indivíduo no contexto pedagógico, em um constante processo de desafio à sua
inteligência (SMOLKA; GOMES; SIQUEIRA-BATISTA, 2014). A efetividade do método
envolve ainda o processo de concretização do conhecimento, dada pela preocupação efetiva
nesse caminhar, com enfoque no “por que” e “como” aprender, e não apenas no que se
aprende de forma objetiva (CYRINO; TORALLES-PEREIRA, 2004).

Deste modo, o processo deve ser compreendido diante de que “conhecer é modificar,
transformar o objeto, e compreender o processo dessa transformação e, consequentemente,
compreender o modo como o objeto é construído” (PIAGET, p.04).

Enfocando o papel do aluno nesse sistema de aprendizado, tem-se a posição ativa no


processo de aprendizagem, ou seja, ele é autor do seu próprio conhecimento pela

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reorganização das experiências e de reconstrução pela reflexão, na atuação prática/


aprendizagem (BOROCHOVICUS; TORTELLA, 2014).

Neste sentido, levando em conta como se dá a construção do conhecimento através


das Metodologias Ativas no PBL, o texto de Berbel (1998) aponta que a Aprendizagem
Baseada em Problemas é uma excelente ferramenta a ser utilizada em temas que permitam a
utilização da referida metodologia. Entretanto e outros temas, como nas ciências exatas e
inatas, existem outros métodos de ensino que melhor se adaptam. E, de forma objetiva o
autor elenca ainda o Arco de Manguerez, descrevendo seus passos na construção do
conhecimento, partindo da observação da realidade, passando pela definição de postos-chave
e teorização, culminando com a hipótese de solução e aplicação à realidade permitindo,
assim, que os discentes possam “[...] exercitarem a cadeia dialética de ação - reflexão –
ação [...]” (pág.144), de modo a promover a “[...] mobilização do potencial social, político e
ético dos alunos, que estudam cientificamente para agir politicamente, como cidadãos e
profissionais em formação, como agentes sociais que participam da construção da história
de seu tempo, mesmo que em pequena dimensão” (pág.145).

Já no estudo de Gomes, et al. (2009), tem-se a aplicabilidade da Aprendizagem


Baseada em Problemas no sentido de internalizar nos discentes a capacidade de estudar como
hábito de vida para aprendizagem, que se dá pela participação ativa do aluno e pela
valorização do conhecimento prévio e da sua interação com outras pessoas e outros
conhecimentos emanados no grupo. Assim, de forma bem definida, tem-se que “[...] as
metodologias ativas invadem o cenário tradicional de ensino propondo o protagonismo do
aluno no processo de aprendizagem, com vistas a viabilizar o desenvolvimento de sua
autonomia” (CAMPOS; RIBEIRO; DEPES, 2014, pág. 819).

Ainda de acordo com os autores supracitados, a construção do conhecimento nas


metodologias ativas é possível através da aplicabilidade das ideias morinianas, ao considerar
o contexto cognitivo pela religação dos saberes e a prática transdisciplinar. Para definir o
perfil de competência do facilitador, Duarte, Mônaco, Manso (2013) trazem a dimensão do
tutor com o papel de facilitador de aprendizagem através da discussão em torno de um
problema.

O estudo de Campos; Ribeiro; Depes (2014) traz para o “professor” a potencialidade


de estimular o senso crítico instigado pelo questionamento e pela busca do conhecimento,
fundamentado ainda pela essencialidade em conhecer, aceitar e valorizar o conhecimento
prévios dos “alunos”. Entretanto a metodologia existe do professor uma postura de
pesquisador, requerendo deste a disponibilidade de acompanhamento e colaborar no
aprendizado crítico do “aluno”, conforme apontam Ciryno; Toralles-Pereira (2004).

Trata-se, portanto, de uma formação que vai além do que se ensina e se aprende,
perpassando claramente pela formação do caráter crítico do discente, este a ser utilizado em
todos os âmbitos de sua vida, seja pessoal, profissional ou social. Neste sentido, tomando por
base que a leitura constitui-se de um processo gerador de reflexão e aprendizagem, quando
realizada de modo efetivo, a partir da sua realização de forma compreensiva, o que demanda
do leitor habilidades e competências para sua efetivação.

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contemporâneas

Observa-se no ensino superior um déficit considerável na leitura e, consequentemente,


compreensão, reflexão e aprendizagem, haja vista a utilização da simples decodificação, não
sendo capaz de promover a aprendizagem, fato que pode influenciar no alto índice de evasão
neste nível de ensino.

Para tal, buscou-se no presente trabalho a demonstração da eficácia na utilização de


tais metodologias como propulsoras da leitura efetiva, promovendo a compreensão efetiva e
aprendizagem a partir de experiência exitosa realizada em cursos de ensino superior que
fundamentou-se nas bases teóricas de Maturana (2002), Rubem Alves (2012), Paulo Freire
(2014), Piaget (1999), dentre outros.

Metodologia

O presente trabalho trata-se de um relato de experiência, sendo um estudo qualitativo,


realizado com dois grupos de participantes de um curso de pós-graduação na área de saúde,
sendo ambos os grupos distintos quanto à área específica de formação, abrangendo discentes
dos cursos de Medicina, Enfermagem e Psicologia.

A interdisciplinaridade deve ser enxergada no âmbito formativo para além das


atividades multidisciplinares, para além das subespecialidades formativas (MORIN, 2004).
Neste âmbito, a Língua Portuguesa, especialmente o ensino da leitura, deve transpor os anos
iniciais de formação, mais especificamente quando apresentam algum grau de ineficácia, que
é o que hoje se observa no Ensino Superior e nos cursos de pós-graduação, ou seja, a
presença de discentes capazes de decodificar palavras, mas não compreendê-las e,
consequentemente, não refletir sobre elas e transformá-las em aprendizagem significativa.

Deste modo, foram realizadas atividades com escopo nas Metodologias Ativas de
Ensino e Aprendizagem junto a tais discentes, com foco na interdisciplinaridade e na
melhoria do processo de leitura e compreensão.

Resultados e discussões

Ancorando-se na aprendizagem como pressuposto, impossível não remetermo-nos ao


desenvolvimento do raciocínio lógico a partir da gênese do conhecimento sob as premissas
conceituais de Piaget (OSTI, 2009) ao denotar a necessidade da interação com o meio para o
desenvolvimento da aprendizagem e para aquisição e reorganização do conhecimento, sendo
cada um agente do seu próprio desenvolvimento.

Trabalhar Metodologias Ativas com jovens demonstrou um potencial subsídio para


repensar a prática de ensino, de modo a favorecer os processos reflexivos de compreensão e
aprendizagem a partir da efetividade da leitura, entendendo que a autonomia do aprendizado
é promovida a partir do momento em que se valorizam os conhecimentos prévios e se
proporciona a formação através da discussão e resolução de problemas (BERBEL, 1998).

De acordo com Sá; Alves; Costa (2014), a aprendizagem significativa deve ser ativa,
na qual os estudantes envolvem-se em atividades de elevado grau cognitivo, como análise,

!847
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

síntese, avaliação, ou seja, não se limitando ao ouvir, de modo que o ensino seja centrado
menos na transmissão de conhecimentos e mais no desenvolvimento de competências dos
estudantes, considerando-se seus valores e atitudes.

Vygotsky (1978) já afirmava que a aprendizagem implica na interação com o outro e


nas zonas de desenvolvimento proximal. Para o autor, aprendemos via interação mediada e
que cada ser apresenta um tempo diferente para consolidar o processo.

Dentro da perspectiva de atuação do facilitador na condução do pequeno grupo,


Francischetti; et al. (2011) apresenta a técnica do role-playing ou jogo de papéis como
metodologia democrática e participativa, na qual utiliza-se uma situação-problema e a
possibilidade de assumir papéis diferentes dos vivenciados no cotidiano, no tocante a tomada
de decisões e previsão de suas consequências.

Deste modo, a atividade foi proposta com dois grupos de dez participantes que
elaboraram narrativas com a consigna: uma vivência que proporcionou aprendizagem. As
narrativas foram numeradas e distribuídas de modo que foram lidas e, posteriormente,
identificados os problemas relevantes, elaboradas hipóteses que geraram questões de
aprendizagem que, em outro momento, foram discutidas em uma nova síntese. Os
movimentos foram realizados duas vezes em cada um dos grupos, sendo que na primeira
realização a atividade foi conduzida apenas pelo facilitador e, na segunda realização, o papel
de facilitador foi denotado aos participantes.

É importante compreender que o facilitador, neste contexto, desempenha o elo


mediador das aprendizagens, sem, no entanto, direcionar o processo. Dito de outra forma, ele
possibilita o espaço para reflexão crítica do conhecimento, mas não implica na escolha dos
processos de construção do mesmo. Deste modo, ele “[...] deve ser mais ativador que
facilitador [...]. O objetivo do professor/ativador não é alimentar os fatos, mas nutrir a razão
[...]” (TSUJI; SILVA, 2010, p.167).

E assim, o facilitador atua na condução das ideias e discussões elencadas no processo


formativo, evidenciando que a função da escola/formação não é a preparação para uma vida,
mas sim a própria vida. Deste modo, “[...] o ambiente em que o aluno vive possui valor
determinante para o aprendizado, e ele aprenderia vivendo diretamente, em vez de,
simplesmente, praticar abstrações” (CONTERNO; LOPES, 2013).

De acordo com Cabral; Almeida (2014), não há necessidade de o tutor ser um


especialista na área que está sendo abordada no módulo temático, mas, de acordo com
Komatsu (2003), ele deve conhecer o método, compreender as suas funções e executá-las de
forma satisfatória”.

Sobre o processo avaliativo, no tocante à aplicação das Metodologias Ativas de


Aprendizagem, estudos de Borges, et al. (2014) retratam que avaliar em seu ato traz uma
multiplicidade de significados e interpretações que a faz tão difícil, e que envolvem:
examinar, julgar, testar, distinguir, comparar, ameaçar, punir, dentre outros, ficando assim a
avaliação sob o julgamento de quem a pratica.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Sobre a avaliação, o estudo de Cabral; Almeida (2014) diz tratar-se de uma etapa
relevante do processo educativo, por se constituir em um “[...] instrumento de avanço e de
novos rumos”. Neste sentido, a avaliação das atividades foi realizada de maneira formativa,
ao final de cada uma das atividades, de modo a registrar um considerável progresso,
especialmente no sentido da auto avaliação.

Considerações finais

Neste escopo, tomando por base a necessidade da leitura efetiva e o déficit hoje
observado no ensino superior e na pós-graduação, verifica-se nas Metodologias Ativas de
Aprendizagem um pressuposto para favorecer a aprendizagem por meio do estímulo à
metacognição.

A utilização das técnicas desenvolvidas para a atividade propiciou, à priori, a


capacidade da metacognição na inter-relação entre processos de aprendizagem de leitura e
compreensão, de modo que o presente estudo demonstrou a eficácia na utilização de tais
metodologias como propulsoras da leitura efetiva, promovendo a compreensão e a
aprendizagem. Deste modo, tais atividades podem ser efetivamente utilizadas tanto no ensino
superior como a nível de pós-graduação, favorecendo, sobretudo, a autonomia do discente
frente a sua própria aprendizagem e, assim, propiciando não apenas o aperfeiçoamento da
leitura como a condição da reflexão.

Parafraseando Maturana (2002, p.15), “[...] dizer que a razão caracteriza o humano é
um antolho, porque nos deixa cegos frente à emoção, que fica desvalorizada como algo
animal ou como algo que nega o racional [...]”e, na educação, no processo de ensino e
aprendizagem, esse prazer mediado pelo amor não poderia deixar de existir, em consonância
com o que defende o russo Liev Tolstoi ao afirmar que “o amor dá ao indivíduo um objetivo
para sua vida. O intelecto mostra-lhe o caminho para a conquista de tal objetivo”, como
pressuposto desta caminhada que deve ter o conhecimento como fim, início e um constante
recomeço.

Sabe-se que “[...] um educador [...] é um fundador de mundos, mediador de


esperanças, pastor de projetos” (ALVES, 2012, p.36). Com base nesta visão, confesso que no
transcorrer dos meus vinte e quatro anos como aluna, nunca tive professores que me fizessem
mediar esperanças, pouco menos pregadores de projetos. Felizmente vivenciei com minha
mãe/mestre tais experiências, minha melhor professora e, assim, desfrutei do que Rubem
Alves enfatiza (2012, p.16) “[...] professor é profissão, não é algo que se define por dentro,
por amor. Educador, ao contrário, não é profissão, é vocação. E toda vocação nasce de um
grande amor, de uma grande esperança”. Minha esperança? Conseguir contribuir para uma
sociedade crítica e transformadora, e continuar a sentir a emoção de plantar sementes cada
vez mais fecundas que posteriormente poderão também crescer e gerar sementes que
internalizem a mesma essência.

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

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O jornal ‘O Sinopeano’ e o processo de identificação do sujeito sinopense


durante a colonização da região norte mato-grossense da década de 70 do
século XX
Dra. Tânia Pitombo de Oliveira
taniapitombo@gmail.com
Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT

Dra. Cristinne Leus Tomé


cristinne@unemat-net.br
Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT

Resumo: o grupo docente de trabalhos do Mestrado Acadêmico em Letras se orienta pela


linha de pesquisa dos Estudos Linguísticos e se dedica ao estudo da linguagem na relação
sujeito e sociedade e ancora suas reflexões nos pressupostos teóricos da Análise de Discurso
materialista histórica. Este artigo tem como objeto compreender os processos de identificação
marcados por uma memória no dizer do jornal ‘O Sinopeano’, como único informativo de
uma região em processo de colonização e constituição de municípios que tiveram sua
fundação nos anos de 1970 no Estado de Mato Grosso. Focalizou-se a cidade de Sinop, polo
regional, inserida na Região da Amazônia Brasileira, para o recorte do corpus em que a
prática discursiva dos habitantes se marca pela referência à mudança do gentílico do jornal
‘O Sinopeano’ para sinopense, por solicitação da comunidade, à época dos primeiros meses
de distribuição do jornal. A pesquisa de abordagem qualitativa, com a metodologia da história
oral na realização de entrevistas semieestruturadas com moradores pioneiros e funcionários
da empresa de colonização da região na referida década. Nesta proposta de reflexão sobre a

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

linguagem, fundada nos trabalhos de Michel Foucault, Michel Pêcheux e Eni Orlandi,
mobilizou-se noções que são de fundamental importância para a compreensão da constituição
dos sentidos e dos sujeitos, no batimento entre língua e história, e que possam contribuir na
compreensão e interpretação de sentidos emanados da posição sujeito morador de um espaço
recente de colonização, na região amazônica brasileira.

Palavras-chave: Discurso; Processos de Identificação; Amazônia Brasileira; Posição Sujeito.

Introdução

Esta reflexão tem por objetivo compreender o movimento dos processos de


identificação marcados por uma memória no acontecimento discursivo posto no dizer do
jornal ‘O Sinopeano’ como único informativo da Gleba Celeste, região norte do Estado de
Mato Grosso, Brasil, em processo de colonização e constituição das cidades que tiveram sua
fundação a partir do ano de 1972, Vera, Sinop, Santa Carmem e Cláudia. Tomando o discurso
como lugar privilegiado de observação, focalizamos a cidade de Sinop, polo regional e
inserido em uma ampla região denominada Amazônia Legal Brasileira, área que ocupa 61%
(sessenta e um por cento) do território brasileiro e considerada como faixa de transição entre
o cerrado e a floresta amazônica (EMBRAPA, 1994). A cidade de Sinop, que recebeu o
mesmo nome da sigla da empresa Colonizadora Sociedade Imobiliária do Noroeste do Paraná
(SINOP), teve designado para o cidadão nascido em Sinop o gentílico dado pela empresa
Colonizadora, no caso sinopeano.

Para o recorte do corpus, em que a prática discursiva dos habitantes da região é


fortemente marcada pelo discurso da mídia jornalística no movimento de fundar sentidos, nos
debruçamos na referência à mudança do gentílico para os nascidos em Sinop de sinopeano
(como título do jornal ‘O Sinopeano’) para sinopense. A mudança de sinopeano para
sinopense ocorreu como uma manifestação popular, designação dos próprios moradores ao se
denominarem, que aos poucos também repercute nos documentos dos anos 70 e 80.

O corpus em estudo tomou por análise o material constituído principalmente pelo nº


13/80 do jornal ‘O Sinopeano’ e uma entrevista semiestruturada com um funcionário da
empresa Colonizadora SINOP S.A., proprietária da Gleba Celeste, que teve participação
efetiva no período em estudo.

Ao pensar a constituição dos sentidos, no batimento entre língua e história, o grupo


docente de trabalhos do Mestrado Acadêmico em Letras se orienta pela linha de pesquisa dos
Estudos Linguísticos e se dedica ao estudo da linguagem na relação sujeito e sociedade

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

ancorando suas reflexões nos pressupostos teóricos da Análise de Discurso materialista


histórica.

O discurso jornalístico e a determinação histórica dos sentidos

E, ao considerar as condições de produção do discurso, necessário se faz compreender


os sujeitos e a situação. Para Orlandi (2007), é necessário considerar as circunstâncias da
enunciação em um contexto imediato, ou seja, as circunstâncias da formulação e o contexto
sócio-histórico e ideológico, em um sentido amplo.

Para que se possa explicitar os mecanismos discursivos regionais, é necessário


observar o processo de constituição do sujeito “que é um lugar de significação historicamente
construído” (ORLANDI, 2007, p. 37). Assim, para a autora, “o sentido não é fixado a priori
como essência das palavras, nem tampouco pode ser qualquer um, há uma determinação
histórica. Ainda um entremeio” (p. 27). O sentido é assim uma relação determinada do sujeito
– afetado pela língua – com a história. A interpretação é a marca da subjetividade que se
realiza na relação do sujeito com a língua, com a história e com os sentidos, remetendo à
exterioridade, porque não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia.

O centro dessa relação é o espaço discursivo criado entre ambos. O sujeito só constrói
sua identidade na interação com o outro, e o espaço dessa interação é o texto. O sujeito e o
sentido se constituem como efeito ideológico na relação das palavras, seus textos e discursos.
O discurso jornalístico, em sua dualidade texto e contexto, produz efeitos de sentido entre
locutores (PECHÊUX (1993, p. 82), destacando-se como o discurso sobre o real, marcado
por uma “vontade de verdade” (FOUCAULT, 2006).

As matérias jornalísticas promovidas pela empresa Colonizadora SINOP S.A. nas


mídias locais e nacionais no início da colonização da Gleba Celeste, configuraram-se como
um espaço de legitimação de seu projeto de colonização privada, divulgando notícias sobre
os acontecimentos cotidianos. A imagem abaixo é um exemplo de matéria de publicidade em
uma revista de grande circulação nacional:

Imagem 1 - Iniciativa particular


coloniza a Amazônia

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

!
Fonte: VEJA, São Paulo, n. 205, 9 ago. 1972.

Na mídia local da cidade de Sinop, a empresa Colonizadora promoveu a circulação do


jornal ‘O Sinopeano’ na década de 70 e 80 do século XX, impresso com 04 (quatro) páginas.
Os textos jornalísticos, enquanto discursos oficiais da instituição, foram ferramentas que
possibilitaram os processos de constituição dos sentidos. Para Ponte (2005), o discurso
jornalístico está carregado de sentido ideológico, de escolhas, da noção de que essas são as
matérias sobre as quais se deve saber.

Conforme dados do acervo da empresa Colonizadora da região, o conteúdo


jornalístico tinha como objetivo divulgar e informar à população regionalda Gleba Celeste,
compreendida por quatro cidades (Vera, Sinop, Santa Carmem e Cláudia) e registrar
acontecimentos sociais, políticos e econômicos ocorridos à época. O informativo era o único
meio midiático de circulação efetiva e de registros escritos e fotográficos que marcaram e
instituíram uma memória na construção de uma rede de sentidos de uma comunidade, pois
somente no dia 21 de julho de 1981 a população teve acesso ao sistema de Discagem Direta à
Distância (DDD) que seria estendido posteriormente aos municípios vizinhos e, em 16 de
junho de 1981, inaugurado a transmissão da Rádio e TV Nacional, com apenas três horas
diárias de transmissão.

Para análise dos efeitos discursivos consultamos o jornal de número 13/80, o primeiro
impresso na década de 80 e que resume e identifica os trabalhos desenvolvidos pela empresa
na década anterior, quando começou a circular. O jornalista Nacim Bacilla Neto foi o
responsável pelas matérias do jornal que circulou até o ano de 1985, sempre distribuído
gratuitamente à população.

O Sr. Ascânio Baptista de Carvalho, funcionário da empresa Colonizadora SINOP


S.A., nos explica que, mesmo o jornal sendo impresso em Curitiba, eram enviados para o
escritório da empresa em Maringá (cidades do Paraná), a fim de serem distribuídos,
posteriormente, para a cidade de Sinop:

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

[...] todos os exemplares quando recebidos em Maringá, eram enviados


aos Escritórios da empresa, a fim de chegar às mãos dos moradores de
Sinop e região, e às mãos das Autoridades constituídas.

O jornal ‘O Sinopeano’ nº 13, em sua prática discursiva, apresentou ao Presidente do


Brasil, à época, o Sr. João Batista Figueiredo em uma visita oficial à cidade, “uma síntese do
que a Sinop vem realizando na Gleba ‘Celeste’, nestes 8 anos de trabalhos”.

Imagem 2 - Cabeçalho do jornal

!
Fonte: Colonizadora SINOP S.A., acervo particular, 1980.

Para Orlandi (2015), fatos vividos reclamam sentidos e os sujeitos se movem entre o
real da língua e o real da história, entre o acaso e a necessidade, o jogo e a regra, produzindo
gestos de interpretação. Neste sentido, a historicidade que nos interessa é o acontecimento do
texto como discurso, compreender como os sentidos trabalham nessa relação. No
acontecimento discursivo, procura-se compreender a língua não só como estrutura, mas como
a inserção, o cruzamento, o encontro da língua na história, ou seja, em um fato, em um
acontecimento que produz o discurso compreendido como efeito de sentidos entre locutores.

Tomando a língua como possibilidade de condição do discurso (ORLANDI, 2015, p.


20), ou seja, local em que podemos observar as sistematicidades da língua como condições
materiais sobre as quais se desenvolvem os processos discursivos, procuramos questionar a
fronteira entre língua e discurso nas práticas discursivas tomadas como objeto de análise
nesta reflexão encontradas neste trabalho, nos colocando na posição teórica trabalhada por
Pêcheux (1975), que nos diz que “essas sistematicidades não existem sob a forma de um
bloco homogêneo de regras organizado à maneira de uma máquina lógica. A relação é de
recobrimento, não havendo, portanto, uma separação estável entre elas”.

Continuando a reflexão, é fundamental pensar que sujeito e sentido se constituem ao


mesmo tempo, na articulação da língua com a história, em que entram o imaginário e a

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

ideologia. Para Orlandi (2015, p. 46), “a ideologia interpela o indivíduo em sujeito e este
submete-se à língua significando e significando-se pelo simbólico na história”.

Assim, a noção de acontecimento discursivo proposta pela Análise de Discurso e que


é desenvolvida neste trabalho, pensa o encontro da língua, enquanto estrutura, com a história,
como acontecimento, em um determinado contexto.

Retomando o pensamento de Orlandi (2015) que nos afirma que “fatos vividos
reclamam sentidos”, consideramos importante deitar um olhar sobreo acontecimento
discursivo da edição do Jornal ‘O Sinopeano’ (nº 13/80), que institui uma geração de sentidos
considerados necessários pela empresa responsável pelo projeto de colonização da regiãoe já
identificados no título como “Modelo SINOP de Colonização na Amazônia”. A formulação
“modelo Sinop” instaura e garante todo o envolvimento para que o empreendimento se alinhe
como “modelo” e que a cidade de Sinop seja considerada como polo regional entre quatro
outros municípios que a circundam.

Para percorrer essas ideias, e partindo do princípio de que “o modo de constituição do


sujeito é diferente nos modos como se individualiza (se identifica) na relação com as
diferentes instituições, em diferentes formações sociais, tomadas na história em que
trabalham as diferentes formas de confronto do político com o simbólico” (ORLANDI, 2015,
p. 75), trazemos recortes que instauram sentidos, marcam uma memória e instituem processos
de identificação.

JORNAL ‘O SINOPEANO’ E OS PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO

Na materialidade apresentada pelo Jornal ‘O Sinopeano’, procuramos analisar o texto


em seu funcionamento, como produz sentidos, como este texto se constitui em discurso e
como pode ser compreendido no conjunto de processos de identificação em que o sujeito
sinopense se constitui e, ao mesmo tempo, é constituído.

No cenário histórico que compunha os acontecimentos na Gleba Celeste, a circulação


das notícias a saber era decidida a partir de critérios estabelecidos pela própria empresa. A
concepção de discurso jornalístico, considerado como prática discursiva resultante de saberes
e articulada com outras práticas em que saber e poder se articulam, pois quem fala, fala de
algum lugar, a partir de um direito reconhecido institucionalmente, mediado pelas relações de
poder; a leitura do texto leva em conta o contexto das condições de produção. Segundo
Traquina (2001, p. 87), as escolhas da instituição (quem fala, fala de algum lugar) são
orientadas “[...] pela aparência que a ‘realidade’ assume para os jornalistas, pelas convenções

!856
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

que moldam a sua percepção e fornecem o repertório formal para a apresentação dos
acontecimentos, pelas instituições e rotinas”.

A grandiosidade das manchetes se encontra marcada pelas formulações destacadas


nos títulos e subtítulos das reportagens e carregam em suas formulações propostas de um
dinamismo necessário para estimular, convencer e injetar um ritmo desejado de
desenvolvimento e otimismo que movimentasse a população na construção de um imaginário
do município e região. (OLIVEIRA; STRAUB; TOMÉ; SODRÉ, 2013, p. 8).

Os autores Orlandi (2015; 2007) e Pêcheux (1993; 1999) nos permitiram compreender
a discursividade posta na prática jornalística, como informações que marcam uma memória
na população regional, construindo sentidos organizadores de uma unidade de sentidos.

Já no título do informativo “O MODELO SINOP DE COLONIZAÇÃO NA


AMAZÔNIA”, Sinop/Curitiba – agosto/setembro, encontramos uma proposta de síntese dos
primeiros oito anos de realizações da empresa na região, como podemos observar no recorte
abaixo,

[...] UMA SÍNTESE DO QUE A SINOP VEM REALIZANDO NA GLEBA


‘CELESTE’, NESTES OITO ANOS DE TRABALHOS.

O número 13/80 do jornal, ainda está subdividido em dez subtítulos que resumem,
para a época, os interesses, o envolvimento e as metas empresariais em destaque, elencadas
na ordem:

1 - SÍNTESE DE 4 PONTOS;
2 - OS PASSOS INICIAIS;
3 - A FASE DE INDUSTRIALIZAÇÃO;
4 - FIXAÇÃO DO HOMEM;
5 - O DESENVOLVIMENTO;
6 - A SINOP “É PARADIGMA PARA PROJETOS DE COLONIZAÇÃO
NA AMAZÔNIA E, TAMBÉM, PARA OUTRAS REGIÕES DO PAÍS;
7 - MISSÃO TÉCNICA DO PARAGUAI VISITA SINOP RESULTADO
DA VISITA DE ÊNIO A ASSUNÇÃO;
8 - OS TRABALHOS;
9 - MISSÃO TÉCNICA DO PARAGUAI VISITA SINOP RESULTADO
DA VISITA DE ÊNIO A ASSUNÇÃO;
10 - MISSÃO TÉCNICA DO PARAGUAI VISITA SINOP RESULTADO
DA VISITA DE ÊNIO A ASSUNÇÃO; PARA FALAR SOBRE ETANOL
DE MANDIOCA - (SINOP NO ENCONTRO FIGUEIREDO E VIDELA;
PERÚ INTERESSADO NO PROJETO SINOP; SENADOR DO PARANÁ

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
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FAZ VISITA A SINOP; CUMPRIMENTOS À SINOP; PROTEÍNA DO


VINHOTO

Imagem 3 - Primeira Página e Segunda Página

Fonte: Colonizadora SINOP S.A., acervo particular,1980.

O item 1 apresenta quatro objetivos essenciais, expostos na “SÍNTESE DE 4


PONTOS”, considerados como “básicos” e elencados como: “alimentos; energia carburante;
fixação do homem brasileiro nessa parte da Amazônia e a distribuição da riqueza consequente
do desenvolvimento econômico que se registra na área”.

Pensando a questão de ordem de identificação de prioridades, “os quatro itens-


objetivos colocados em destaque”, a questão da alimentação é marcada em,

A economia foi deslanchada através de um apoio dado por um complexo


de estruturas e recursos, destacadamente, a Cooperativa Agrícola Mista
‘Celeste’ Ltda; ‘viveiros’, campos experimentais, assistência aos
lavradores, elaboração de projetos agrícolas para a fixação na
propriedade adquirida, meios financeiros repassados pela Cooperativa,
além de atendimento ao agricultor, considerando-se as características da

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

Amazônia, em termos de solo, clima e outros aspectos predominantes


[...] fazer uma política de industrialização dos produtos [...] o café é
beneficiado, empacotado e a produção atende, não só o crescente
mercado local, mas se dirige para os grandes centros consumidores. Isto
acontece também com o arroz, a mandioca,
pimenta.

Com esta exposição, o informativo afirma que “O primeiro estágio de


desenvolvimento, na Gleba, com a agricultura, está consolidado” e, ainda, que “dentro do
Modelo SINOP de Colonização na Amazônia, atingiu-se ao primeiro estágio, que é o da
produção de alimentos”.

Com o título “A SINOP ‘É PARADIGMA PARA PROJETOS DE COLONIZAÇÃO


NA AMAZÔNIA E, TAMBÉM, PARA OUTRAS REGIÕES DO PAÍS” (p. 3), entendendo-se
aqui a ‘SINOP’ como o Projeto da Gleba “Celeste”, o jornal ‘O Sinopeano’ destaca a visita

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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias
contemporâneas

do Governador do Estado do Rio Grande do Sul, José Augusto Amaral de Souza, em sua
visita a Sinop, que se manifestou impressionado pela “magnífica estruturação alcançada”. A
parceriado Grupo SINOP com o Rio Grande do Sul continuou em outras ocasiões, como
notificado “SINOP NO ENCONTRO FIGUEIREDO E VIDELA” em que o governador, o
presidente brasileiro João Figueiredo e o presidente argentino Jorge Videla.

O discurso sobre o projeto de colonização da empresa SINOP ser um paradigma


nacional vai tornar possível, na análise da linguagem, as reflexões sobre o sujeito e a
situação. Para Orlandi (2007, p. 12), “é pelo discurso que melhor se compreende a relação
entre linguagem/pensamento/mundo, porque o discurso é uma das instâncias materiais
(concretas) desta relação”.
Nessa relação entre linguagem, sujeito e situação histórica, o paradigma de projeto
colonizatório é destaque em outros países do mundo. Com o país vizinho Paraguai (p. 3), em
abril de 1980 seu Enio Pipino apresenta os empreendimentos da Gleba Celeste a empresários
e representantes políticos que, interessados em conhecer, vêm ao Brasil em agosto do mesmo
ano.

A divulgação do Projeto de Colonização foi apresentada em setembro de 1980 quando


seu Enio Pipino discursou sobre A Gleba Celeste e a Produção de Etanol de Mandioca, na
Amazônia no “FORUM DAS AMÉRICAS”, com representantes do continente americano (p.
4). Interessados na tecnologia do processamento da mandioca pela SINOP AGRO QUÍMICA
S.A., um grupo de empresários do Perú também manifestou interesse de conhecer a cidade
(p. 4).

Na Gleba Celeste, novas possibilidades agrícolas e industriais eram estudadas a partir


da proteína do vinhoto para a ração animal (p. 4). O Projeto Colonizatório da SINOP
(alimento, energia, fixação, distribuição da riqueza) deixou impressionado o senador Leite
Chaves, do Paraná, “surpreendido com a tecnologia de ocupação territorial” (p. 4).

As falas produzidas sobre o paradigma deste Projeto, difundidas em eventos nacionais


e internacionais, deixaram de ser apenas enunciados nas mídias para tornarem-se um
acontecimento, o projeto deixa de seu um modelo para ser o modelo colonizatório. Para a
noção de acontecimento, Pêcheux (1999, p. 50), nos afirma sobre o Papel da Memória e a
fragilidade no processo de inscrição do acontecimento no espaço de memória e que, segundo
o autor, joga em uma dupla forma:

a) o acontecimento que escapa à inscrição, que não chega a inscrever-se;


b) o acontecimento que é absorvido na memória como se não tivesse ocorrido.

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Assim, os dizeres que circulam na única mídia impressa nos primeiros oito anos de
colonização da região norte mato-grossense, se encaixam em (b) como acontecimentos que
são absorvidos em uma memória como se não tivessem acontecido.

Finalidade desse jornal: alcançar nossas autoridades, e em especial os


moradores de Sinop, a fim de acompanharem o desenvolvimento -
vencendo os desafios que nos impunham –“fazer a diferença no Norte
de Mato Grosso”. (Sr. Ascânio Baptista de Carvalho, funcionário da
empresa Colonizadora SINOP S.A.).

Nesse processo de instauração e circulação de sentidos propiciado pelo informativo


‘O Sinopeano’, iniciado na década de 70 e com uma sinopse dos primeiros oito meses em
AGOSTO/SETEMBRO DE 1980, observamos que a questão da formulação “MODELO” em
“O MODELO SINOP DE COLONIZAÇÃO NA AMAZÔNIA”, é forte e caracteriza,
instaura e estabelece a proposta ideológica/alinhamento ideológico no percurso pretendido de
sentidos para a população radicada na região.
Assim, podemos conhecer esta população norte mato-grossense, que convive em seus
diversos setores com discursos sobre processos de identificação de sujeitos e de um espaço de
dizer, fundamentais para a constituição da representação político-ideológica, econômica e
cultural almejadas para a população regional.

QUESTÃO DE ORDEM DE IDENTIFICAÇÃOE DESIDENTIFICAÇÃO: de


sinopeano para sinopense

Para Orlandi (2002, p.81), “o desejo de completude é que permite, ao mesmo tempo,
o sentimento de identidade, assim como paralelamente, o efeito de literalidade (unidade) no
domínio do sentido: o sujeito se lança no seu sentido, o que lhe dá o sentimento de que esse
sentido é uno”.

Ao refletir sobre os processos de identificação, Orlandi (2001a, p. 204), retoma quatro


afirmações que são resultado de reflexões anteriores:
1. A identidade é um movimento na
história;
2. Ao significar, o sujeito se
significa;
3. Identidade não se aprende, isto é, não resulta de processos de aprendizagem, mas
refere, isso sim, a posições que se constituem em processos de memória afetados pelo
inconsciente e pela ideologia;

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4. Todo processo de significação é constituído por uma “mexida” (deslize) em redes de


filiação históricas (PÊCHEUX, 1983), sendo, desse modo, ao mesmo tempo,
repetição e deslocamento.

Assim, a proposta jornalística produz leituras de mundo, interpreta e até mesmo


produz os acontecimentos.

Todos éramos modestos colaboradores das notícias vinculadas - usá-lo


como ferramenta de fortalecimento no noticiário do Grupo Sinop;
introduzindo as visitas oficiais, com: visita do Presidente Joao
Figueiredo por quatro vezes; Governadores; Ministros; Senadores;
Deputados Federais e Estaduais; Imprensa em geral, etc. (Sr. Ascânio
Baptista de Carvalho, funcionário da empresa Colonizadora SINOP
S.A.).

Podemos afirmar que este é o movimento do discurso jornalístico. Tanto certos


acontecimentos podem se tornar notícia como determinadas notícias criam o acontecimento.
Neste movimento, a mudança ocorrida do gentílico sinopeano para sinopense nos aponta à
noção de dispersão presente tanto na constituição do sujeito, mas também do discurso como
efeito de sentidos. Segundo Foucault (1997, p. 61) essa dispersão se dá nos “diversos status,
nos diversos lugares, nas diversas posições que o sujeito pode ocupar ou receber quando
exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala.”

A prática discursiva de designação sinopeana para o nascido em Sinop se sustentou


nos anos iniciais. Com a forte migração presente na Gleba Celeste, e em particular em Sinop,
esse espaço discursivo teve características importantes na dispersão dos sentidos presentes
em suas práticas discursivas e sociais. No efeito de sociedade, Pêcheux (1995, p. 75), a partir
de Lacan, discorre “que a cadeia sintática dos significantes determina para o sujeito o seu
lugar, identificando-o a um certo ponto na cadeia (o significante, no qual ele se representa), e
que esse mecanismo de identificação diferencial não é outro senão o ‘efeito de sociedade’,
cujas dissimetrias encontram aqui sua causa.”

Nos dois exemplos a seguir, retirados do jornal ‘O Sinopeano’ nº 13, usam a


designação sinopeano. Na imagem 5, o uso da designação sinopeana será para exemplificar
as realizações do Grupo SINOP na cidade de Sinop. Na imagem 6, o uso de sinopeanos é
para designar os técnicos que trabalham no Grupos SINOP, moradores da cidade de Sinop,
uma vez que a cidade era muito jovem para ter técnicos nascidos nela.

Imagem 5 - Quarta Página - realizações sinopeanas Imagem 6 - Quarta Página - técnicos sinopeanos

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Fonte: Colonizadora SINOP S.A., acervo particular, 1980.

O lugar discursivo para o sinopeano foi constituído pela prática discursiva do jornal
‘O Sinopeano’, determinado pelo seu lugar social (histórico) e pela língua (intradiscurso). A
inscrição do sujeito no discurso do sinopeano perpetuou na mídia oficial, mas sempre em
condição de deslize discursivo: ora sinopeano ora sinopense. Os próprios cidadãos e a
comunidade em geral, em suas manifestações cotidianas, designavam-se como sinopenses,
até o momento em que o lugar discursivo para sinopense impôs sua inscrição em um novo
discurso, determinado por uma nova prática discursiva.

Em datas festivas da cidade de Sinop, manifestações da comunidade se auto-


designavam como sinopense. No exemplo a seguir, no desfile de 1978 em comemoração ao
4º ano de fundação da cidade (14 de setembro de 1974), mesmo tendo iniciado sua
colonização em 1972, a menina Luciana Joanucci desfila com uma placa mostrando a todos
que ela é a primeira criança nascida em Sinop, uma sinopense (SANTOS, 2007, p. 125).

Imagem 7 - Nascida em Sinop: cidadã sinopense,1978

Fonte: Luiz Erardi Santos, acervo particular, 2007.

Em um gesto de autoria, que faz com que o sujeito se assuma como posição-autor, a
criança “sou a 1ª sinopense”, mexeu (deslize) neste espaço intervalar de significação entre o
autor e o leitor, neste pode vir a ser em que o sentido se constrói. Ao discorrer sobre os
modos de significação, Orlandi (2007, p. 12):

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Porque há muitos modos de significar e a matéria significante tem


plasticidade, é plural. Como os sentidos não são indiferentes à matéria
significante, a relação do homem com os sentidos se exerce em
diferentes materialidades, em processos de significação diversos:
pintura, imagem, música, escultura, escrita, etc.

“Como os sentidos não são indiferentes à matéria significante” (recorte acima) o


desfile em data comemorativa portando uma placa branca com os dizeres em verde moldura
com uma borda dourada, a menina, ela própria uma materialidade textual, produziu um
sentido outro para o nascido em Sinop, não mais sinopeano, mas sinopense.

A partir de 1974, ano oficial de fundação da cidade, Sinop passou a ser Distrito do
Município de Chapada dos Guimarães em 29 de junho de 1976 (Lei Estadual n° 3.754/76) até
a criação como Município em 17 de dezembro de 1979 (Lei Estadual 4.156/79).

Com novos momentos históricos vivenciados em Sinop, “há no texto uma tensão que
aponta para o rompimento. [...] Há um conflito entre o que é garantido e o que tem de se
garantir. A polissemia é essa força na linguagem que desloca o mesmo, o garantido, o
sedimentado” (ORLANDI, 2001b, p. 27). O sentido para o nascido em Sinop só
aparentemente estavam controlado: sinopeano ou sinopense?

No jornal ‘O Sinopeano’ apareceu a designação sinopense ao referir-se à sociedade,


comunidade de moradores. Em notícia FESTA DE FORMATURA EM SINOP, discorreu
sobre a primeira formatura de ensino médio no Salão de Esportes “ENIO PIPINO”, com as
autoridades presentes, como o prefeito Osvaldo Paula, o Colonizador Enio Pipino, Jonas
Pinheiro da Silva, Presidente da EMATER-MT e Dona Nilza de Oliveira Pipino (SANTOS,
2007, p. 134).

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A fim de “usá-lo como ferramenta de fortalecimento no noticiário do Grupo Sinop”,


como nos fala o Senhor Ascânio, o jornal ‘O Sinopeano’ construiu seu elenco de notícias
principalmente referenciadas em seu contexto político “introduzindo as visitas oficiais, com:
visita do Presidente João Figueiredo por quatro vezes; Governadores; Ministros; Senadores;
Deputados Federais e Estaduais; Imprensa em geral, etc.” A notícia política, como matéria-
prima de uma construção discursiva sobre Sinop, materializou o cotidiano de um imaginário
a fim de estabilizar referências e sentidos sobre o Projeto de Colonização, suas ações de
interesse social e sua associação com representantes políticos brasileiros e internacionais.

No próximo recorte, de 1981, discorre sobre o governador do Estado do Mato Grosso


Frederico Soares Campos quando nomeou como primeiro administrador de Sinop Osvaldo
Paula até que fossem realizadas as eleições em 1982. Na administração de Paula foi
inaugurada no dia 16 de junho de 1981 a primeira rádio e o primeiro canal de televisão de
Sinop. O jornal ‘O Sinopeano’, designou como sinopeana a comunidade em sua matéria
INAUGURAÇÃO DA RÁDIO E DA TV (SANTOS, 2007, p. 149).

Nas primeiras eleições ocorridas no município de Sinop em 1982, o jornal ‘O


Sinopeano’ publicou uma série de reportagens, em que foi eleito o primeiro prefeito
Geraldino Dal Maso (1983-1988). Dentre elas, uma sobre ROBERTO CAMPOS, senador
eleito, em que se manifesta sobre o eleitorado sinopeano (SANTOS, 2007, p. 80).

Imagem 10 - Eleições: eleitorado sinopeano, 1982

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Fonte: Luiz Erardi Santos, acervo particular, 2007.

Na inauguração da APAE - Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, a


publicação de ‘O Sinopeano’ em 1984 refere-se à comunidade sinopense (SANTOS, 2007, p.
134).

Imagem 11 - APAE: comunidade sinopense, 1984

Fonte: Luiz Erardi Santos, acervo particular, 2007.

Para terminar esses recortes em que a designação para o nascido em Sinop deslizou
entre sinopeano e sinopense, no Natal de 1984, seu Enio Pipino escreveu uma mensagem
publicada no jornal ‘O Sinopeano’ com o seguinte título: MENSAGEM DE NATAL DE
ENIO PIPINO COM VOTOS PARA UM BOM ANO DE 85. Em face à dispersão dos
sentidos no discurso jornalístico promovido pela Colonizadora SINOP, entre a identificação e
a desidentificação, o próprio Colonizador se apropriou da designação sinopense como
gentílico. No discurso os sentidos das palavras não são fixos, mas produzidos em um grande
nó formado pelo sujeito, língua e história. Nesta mensagem, o Colonizador se destinou aos
sinopenses (SANTOS, 2007, p. 152).

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Imagem 12 - Mensagem de Natal: aos sinopenses, 1984

Fonte: Luiz Erardi Santos, acervo particular, 2007.

Conclusão

Ao pensarmos a noção teórica de Discurso proposta por Orlandi (1999, p. 15), que
nos apresenta a ideia de curso, de percurso, de movimento, definindo-o como “palavra em
movimento”, compreendemos a linguagem como mediação necessária entre o homem e a
realidade natural e social no trabalho dos efeitos simbólicos de sentidos, o que nos possibilita
compreender que a alteração do gentílico que nomeia o morador do município de Sinop de
sinopeano para sinopense, como vigora na contemporaneidade, é fruto deste movimento de
sentidos que se recobrem constituindo e alterando sentidos em um processo de identificação
do sujeito morador de uma região distante de sua terra natal, com desencontros geográficos,
climáticos, culturais que mexem com suas raízes e os assentam em um processo de

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nomeação, necessário para a constituição de sentidos próximos de suas terras de origem,


como os paranaenses (Estado do Paraná), catarinenses (Estado de Santa Catarina) e da
mesorregião rio-grandense (Estado do Rio Grande do Sul), os três principais Estados com
processos migratórios para a região norte do estado de Mato grosso nas décadas de 1970 e
1980.

A nossa posição é a de que a singularidade do recurso midiático ‘O Sinopeano’ por


quase uma década trabalhou na direção ideológica de homogeneização de sentidos, mas como
todo discurso se assenta, se recobre, se altera no movimento de efeitos de sentidos, o
processo migratório instaura a necessidade de construção de um novo espaço frente à
subjetividade do sujeito histórico que, por ser histórico, é diferente, e essa é a marca da
subjetivação.

Sendo o sujeito histórico, são formas históricas, portanto sujeito/sentido/espaço se


constituem ao mesmo tempo ancorados em processos de identificação.

REFERÊNCIAS

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Entrevistadora: Tânia Pitombo de Oliveira. Entrevista concedida à pesquisa sobre o jornal O
Sinopeano.

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