DE WALTER BENJAMIN
J.M. COETZEE
TRADUZIDO DO INGLÊS POR JOSÉ RUBENS SIQUEIRA
RESUMO
Neste texto o escritor sul-africano J. M. Coetzee comenta a vida e a obra
de Walter Benjamin (1892-1940), a propósito da publicação de três títulos que compõem o projeto da Harvard University Press de
tradução da obra benjaminiana para o inglês. Trata-se do inacabado The arcades project (Trabalho das passagens), lançado em 1999, e dos
volumes I e II dos Selected writings, que reúnem textos dos períodos 1913-26 e 1927-34 e foram publicados em 1996 e 1999,
respectivamente.
PALAVRAS-CHAVE: Walter Benjamin; Trabalho das passagens; marxismo; comunismo.
SUMMARY
Here, the South-African writer J.M. Coetzee comments the life and
work of Walter Benjamin (1892-1940) from a review of three titles that compose the Harvard University Press' project of translating
Benjamin's oeuvre into English. It deals about the unfinished Arcades Project, issued in 1999, and the two first volumes of the Selected
Writings, which gather texts from 1913-26 and 1927-34 and were published respectively in 1996 and 1999.
KEYWORDS: Walter Benjamin; The Arcades Project; Marxism; Communism.
[*] Originalmente publicado em A história já é tão conhecida que quase não precisa ser
The New York Review of Books, contada. O cenário é a fronteira franco-espanhola, em 1940. Fugindo
vol. 48, nº 1, janeiro de 2001.
da França ocupada, Walter Benjamin apresenta-se para a esposa de um
certo Fittko, que conhecera num campo de detenção. Soube, diz ele,
que Frau Fittko poderia guiá-lo com seus companheiros na travessia
dos Pireneus para a Espanha neutra. Ela o leva em uma caminhada
para fazer o reconhecimento das melhores rotas; ele carrega uma pasta
pesada. A pasta é mesmo necessária? — pergunta ela. Contém um
manuscrito, ele responde. "Não posso correr o risco de perder isto.
Precisa ser salvo. É mais importante do que eu".
No dia seguinte atravessam as montanhas, Benjamin parando a
cada poucos minutos por causa do coração fraco. Na fronteira, são
detidos. Os papéis não estão em ordem, diz a polícia espanhola; têm de
voltar para a França. Em desespero, Benjamin toma uma overdose de
morfina. A polícia faz um inventário dos pertences do morto. No in-
ventário não há nenhum registro de um manuscrito.
O que havia na pasta e como desapareceu, só podemos especular.
Gershom Scholem, amigo de Benjamin, sugeriu que era a última revisão
do inacabado Passagen-Werk [Trabalho das passagens], conhecido em
inglês como Arcades project. ("Para grandes escritores", escreveu
Benjamin, "uma obra terminada pesa menos que aqueles fragmentos
em que trabalharam a vida inteira".) O esforço heróico, embora inútil,
de salvar seu manuscrito das fogueiras do fascismo, levando-o a salvo
para a Espanha e em seguida para os Estados Unidos, torna Benjamin
um ícone do scholar para o nosso tempo.
A história tem uma virada feliz. Uma cópia do manuscrito dei-
xada em Paris fora escondida na Bibliotèque Nationale por George
Bataille, amigo de Benjamin. Recuperado depois da guerra, foi publi-
cado em 1982 em sua forma original, isto é, em alemão e com enormes
trechos em francês. Agora temos a magnum opus de Benjamin em tra-
dução integral para o inglês, e estamos ao menos em posição de fazer
a pergunta: por que tanto interesse por um tratado sobre compras na
França do século XIX?
Benjamin nasceu em 1892, em Berlim, numa família judia assi-
milada. O pai era um bem-sucedido leiloeiro de arte que expandiu suas
atividades para o ramo de investimento em propriedades; para a
maioria dos padrões, os Benjamin eram abastados. Aos 12 anos, depois
de uma infância doentia e cercada de cuidados, Benjamin foi enviado
para um colégio interno progressista no campo, onde sofreu a
influência de um de seus diretores, Gustav Wyneken. Após deixar a
escola, militou por muito tempo no movimento juvenil antiautoritário
de retorno à natureza liderado por Wyneken, e só o deixou quando este
declarou apoio à I Guerra Mundial.
Em 1912 Benjamin matriculou-se na Universidade de Freiburg
como estudante de filologia. Ao concluir que o ambiente intelectual não
lhe apetecia, lançou-se no ativismo pela reforma educacional. Quando
a guerra eclodiu, furtou-se ao serviço militar primeiro fingindo um
problema de saúde e depois mudando-se para a Suíça neutra. Ali ficou
até 1920, lendo filosofia e trabalhando em uma dissertação de douto-
ramento para a Universidade de Berna. Sua esposa reclamava que eles
não tinham vida social.
Benjamin tinha atração por universidades assim como Kafka por
companhias de seguro, observou seu amigo Theodor Adorno. Apesar
dos escrúpulos, Benjamin cumpriu todos os passos exigidos para obter
a Habilitation (doutorado superior) que lhe permitiria tornar-se pro-
fessor, e em 1925 submeteu à Universidade de Frankfurt sua dissertação
sobre o drama barroco alemão. Surpreendentemente, a dissertação não
foi aceita: ficava entre as cadeiras de literatura e filosofia, e Benjamin
não contava com um orientador preparado para encaminhar o seu caso.
Fracassados seus planos acadêmicos, Benjamin lançou-se numa car-
reira de tradutor, radialista e jornalista free-lance. Uma das suas
encomendas foi a tradução de À Ia recherche de Proust; três dos sete
volumes foram terminados.
Em 1924 Benjamin visitou Capri, na época o reduto de férias favo-
rito dos intelectuais alemães. Lá conheceu Asja Lacis, diretora de teatro
da Letônia e comunista engajada. O encontro foi decisivo. "Toda vez
que experimentei um grande amor, passei por uma transformação tão
fundamental que assombrava a mim mesmo", escreveu em retrospecto.
"Um amor genuíno me faz ficar parecido com a mulher que eu amo."
Nesse caso, a transformação implicou uma mudança de rumo político.
"Para pessoas progressistas em seu juízo perfeito, o caminho do pensa-
mento leva a Moscou, não à Palestina", disse-lhe Lacis incisivamente.
Todos os traços de idealismo do seu pensamento, para não falar do seu
flerte com o sionismo, tiveram de ser abandonados. Seu amigo do peito
Scholem já havia emigrado para a Palestina e esperava que ele o se-
guisse. Benjamin achou uma desculpa para não ir; ficou dando des-
culpas até o fim.
Em 1926 Benjamin viajou a Moscou para um encontro com Lacis.
Ela não o recebeu calorosamente (estava envolvida com outro homem).
Em seu registro da visita Benjamin revolve o seu infeliz estado de
espírito, bem como se pergunta se deveria ou não se filiar ao Partido
Comunista e submeter-se à sua linha. Dois anos depois eles se reuniram
brevemente em Berlim: viviam juntos e freqüentavam as reuniões da
Liga dos Escritores Revolucionários-Proletários. A ligação precipitou a
ação de divórcio em que Benjamin se comportou com notável mes-
quinharia para com sua mulher.
Na viagem a Moscou, Benjamin manteve um diário que depois
revisou para publicação. Ele não falava russo. Em vez de recorrer a
intérpretes, tentou ler Moscou a partir de fora — o que depois desig-
naria como seu "método fisiognômico" —, esquivando-se de abstração
ou julgamento e apresentando a cidade de uma tal forma que "toda
factualidade já é teoria" (a frase é de Goethe). Algumas das proposições
de Benjamin sobre a experiência "histórico-mundial" que ele vê em
curso na União Soviética hoje parecem ingênuas. Mesmo assim, per-
manece o seu olhar afiado. Muitos dos novos moscovitas ainda são
camponeses — observa — vivendo vidas de aldeia em ritmos de aldeia;
a distinção de classes pode ter sido abolida, mas dentro do Partido está
se engendrando um novo sistema de castas. Uma cena num mercado de
rua capta o status degradado da religião: um ícone à venda flanqueado
por retratos de Lênin "como um prisioneiro entre dois policiais".
Embora Asja Lacis seja uma constante presença de fundo no "Diário
de Moscou" e Benjamin insinue que suas relações sexuais eram
problemáticas, dá-se ali pouca idéia da pessoa física de Lacis. Como
escritor, Benjamin não tinha o dom de evocar as pessoas. Nos escritos
de Lacis temos uma impressão muito mais viva do próprio Benjamin:
seus óculos como pequenos refletores, suas mãos desajeitadas. Pelo
resto de sua vida Benjamin se intitulou como um comunista ou um
companheiro de viagem. Mas quão profundo terá sido o seu caso com
o comunismo?
Durante anos depois de conhecer Lacis, Benjamin repetiria sen-
tenças marxistas sem ter lido Marx — "a burguesia [...] está condenada
ao declínio em razão de contradições internas que se tornarão fatais à
medida que se desenvolverem". "Burguesa" tornou-se o seu anátema
para uma mentalidade — materialista, acomodada, egoísta, pudica e
acima de tudo autocomplacente — à qual ele era visceralmente hostil.
Proclamar-se comunista era um ato de se postar, moral e historicamente,
contra a burguesia e sua própria origem burguesa. "Uma coisa [...]
jamais poderá ser consertada: ter deixado de fugir de meus pais", escreve
Benjamin em Rua de mão única, a coleção de anotações de diário, relatos
de sonhos, aforismos, mini-ensaios e mordazes observações sobre a
Alemanha de Weimar com a qual se deu a conhecer em 1928 como um
intelectual free-lance. Não ter fugido de casa cedo o bastante significava
que ele estava condenado a fugir de Emil e Paula Benjamin pelo resto da
vida: ao reagir contra a prontidão de seus pais em se assimilar à classe
média alemã, ele se igualava a muitos judeus germanófonos de sua
geração, inclusive Kafka. O que incomodava os amigos de Benjamin em
seu marxismo era que parecia haver nele algo de forçado ou meramente
reativo.
As primeiras incursões de Benjamin pelo discurso da esquerda são
deprimentes de se ler. Há um deslize para o que só se pode chamar de
estupidez voluntária quando ele tece rapsódias sobre Lênin (cujas car-
tas têm "a melodiosidade da grande épica", diz em um texto não in-
cluído nos Selected writings da Harvard) ou recita os execráveis eufe-
mismos do Partido:
II
[Benjamin] diz: quando você sente o olhar de alguém pousar em você, mesmo
às suas costas, você reage (!). A expectativa de que tudo o que você olha está
olhando para você cria a aura [...]. Tudo muito místico, apesar das atitudes
antimísticas dele. E assim que a abordagem materialista da história é
adaptada! Isso é um tanto chocante.
III
bulevares internos [...], corredores com teto de vidro e painéis de mármore que
se estendem por quarteirões inteiros de edifícios [...]. Ladeando ambos os lados
[...] estão as lojas mais elegantes, de forma que uma tal passagem é uma
cidade, um mundo em miniatura.
IV
J.M.COETZEE é escritor.