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Imagem da Capa: The Lute Player (ca. 1626) – Valentin de Boulogne. The Metropolitan Museum of Art
Agradecimentos:
A Nicolas Souza Barros pela orientação durante o mestrado, dando total suporte para a elaboração deste
manual, desde disponibilização de material bibliográfico a auxílio para encontrar os melhores termos e
definições.
Aos colegas violonistas que contribuíram com o envio de depoimentos sobre interpretação de música antiga:
David Russell, Ericsson Castro, Geraldo Ribeiro, Luciano César Moraes, Luiz Claudio Ribas Ferreira,
Ricardo Dias e Sergio Abreu.
Ao programa de estágio docente da UNIRIO, à “Tríade – Instituto Musical” e aos alunos que participaram
dos cursos e oficinas de ornamentação barroca que ministrei durante a elaboração deste manual.
Aos professores de violão que me orientaram durante todo meu aprendizado musical: Pedro Cameron,
Geraldo Ribeiro, Henrique Pinto (in memoriam), Márcia Braga, Paulo Martelli, Fernando Lima e Hubert
Käppel.
Índice
Introdução …………………………………………………………………………………………………....6
Nota real e função ornamental ……………………………………………………………………………...6
O violão no contexto da ornamentação ……………………………………………………………………..8
O Manual …………………………………………………………………………………………………...10
Parte I: Convenções técnicas e ornamentação essencial ………………………………………………....11
Convenções técnicas gerais ……………………………………………………………………………….12
Convenções técnicas específicas para o método ………………………………………………………….12
Adoção de símbolos ornamentais ………………………………………………………………………....13
Ornamentação essência …………………………………………………………………………………...14
Apojatura ……………………………………………………………………………………………….14
Acciacattura ou apojatura curta ………………………………………………………………………...14
Mordente simples ……………………………………………………………………………………….14
Mordente duplo ………………………………………………………………………………………....15
Grupeto ………………………………………………………………………………………………....15
Slide ………………………………………………………………………………………………………………....16
Trinado ………………………………………………………………………………………………….16
Ornamentos compostos ………………………………………………………………………………....16
Parte II: Ornamentos realizados exclusivamente pela mão esquerda
…………………………………..17
Apojaturas ascendentes e descendentes …………………………………………………………………...18
Acciacattura ……………………………………………………………………………………………….20
Slide ……………………………………………………………………………………………………….21
Mordente simples ………………………………………………………………………………………….24
Mordente duplo …………………………………………………………………………………………....25
Grupeto …………………………………………………………………………………………………....25
Trinado …………………………………………………………………………………………………….26
Parte III: Ornamentos realizados exclusivamente por cordas cruzadas (m.d) ………………………...27
O conceito da micro-técnica e da posição fixa …………………………………………………………....28
Mordente simples ascendente …………………………………………………………………….……….30
Mordente simples descendente ………………………………………………………………….………...32
Preparação para mordente duplo e trinado ……………………………………………………….……….34
Exercícios de mordentes duplos: posição fixa e memorização digital …………………………………....35
Trinado: Um exercício de controle rítmico e de intensidade sonora ……………………………………...38
Como pensar um trinado …………………………………………………………………………………..40
Terminar um trinado simultaneamente com um baixo …………………………………………………....40
Digitações alternativas para trinados ……………………………………………………………………...41
Grupetos utilizando duas cordas …………………………………………………………………………..42
Parte IV: Ornamentação composta X Ornamentação mista
…………………………………………….43
Parte V: Coleção de obras ornamentadas ………………………………………………………………...46
Espagnoleta / Gaspar Sanz ………………………………………………………………………………...47
Si Dolce è’l tormento / Claudio Monteverdi ……………………………………………………………...49
Prelude / Robert de Visée
………………………………………………………………………………….50
Hornpipe / Henry Purcell ………………………………………………………………………………….51
Sonata K.32 / Domenico Scarlatti ………………………………………………………………………....52
Sarabande BWV 100 / J.S Bach …………………………………………………………………………..54
Sonata K. 208 / Domenico Scarlatti ……………………………………………………………………….56
Les Voix Humaines / Marin Marais
……………………………………………………………………….59
Apêndice: Interpretação da música no barroco: Um panorama apresentado em depoimentos
……....62
Amadeu Rosa (autor) ……………………………………………………………………………………...64
David Russell ……………………………………………………………………………………………...65
Ericsson Castro …………………………………………………………………………………………....65
Geraldo Ribeiro ………………………………………………………………………………….………...66
Luciano Cesar Morais ……………………………………………………………………………….…….66
Luiz Claudio Ribas Ferreira ……………………………………………………………………………….71
Ricardo Dias ………………………………………………………………………………………………73
Sergio Abreu ……………………………………………………………………………………………....76
Referências Bibliográficas ………………………………………………………………………………....77
Bibliografia sugerida ……………………………………………………………………………………….77
6
Introdução
Reconhece-se que o Barroco musical europeu começa com o surgimento da ópera, sendo esse
movimento ligado às criações de Claudio Monteverdi no final do século XVI e início do XVII, se
encerrando com a morte de Johann Sebastian Bach (1685-1750). A música da época se expandiu em
tamanho, variedade e complexidade de performance instrumental, estabelecendo formas musicais novas
como a suíte, a sonata e a fuga, assim como novas técnicas composicionais, como o baixo contínuo. Nesse
período, surgiu o desenvolvimento tonal, ocorreram mudanças essenciais na notação musical, e foram
desenvolvidas novas técnicas instrumentais e um sistema complexo de ornamentação.
Por outro lado, outros compositores da época anotavam todos os adornos, precavendo-se de
distorções do material melódico original.
O primeiro passo para que o aluno entenda o processo ornamental é desenvolver a capacidade
de fazer a distinção daquilo que faz parte do material melódico original e do que são as notas de adorno.
7
Como exemplo prático, segue na Figura 1 uma versão simplificada do tema inicial da “Marche pour Le
Cérémonie des Turcs”, de Jean-Baptiste Lully, basicamente sem acréscimos ornamentais.
Figura 1 - versão simplificada do tema inicial da “Marche pour Le Cérémonie des Turcs” s em acréscimos ornamentais
1
Osvaldo Lacerda, em seu livro “Teoria elementar da música”, classifica intervalos harmônicos em quatro grupos; I – consonantes
perfeitos ( 5as. e 8as. justas), II – consonante misto (4as. justas), III – consonantes imperfeitos (3as. e 6as. maiores e menores),
IV – dissonantes (todos os demais intervalos). Lacerda ainda define o resultado sonoro dos intervalos consonantes como “aqueles
cujas notas se fundem, produzindo sensação de repouso” e dissonantes como “aqueles cujas notas não se fundem, produzindo uma
sensação de movimento”
8
No Barroco, destacavam-se como cordofones dedilhados: a teorba, com registro mais grave; o
alaúde barroco, para o qual J. S. Bach destinou diversas obras solo e de câmera; e a guitarra barroca de cinco
afinações, que é considerada uma das antecessoras diretas da guitarra romântica (do século XIX). A teorba
tem cordas simples, mas os encordoamentos dos outros dois nomeados – o alaúde barroco e a guitarra
barroca - são compostos principalmente por afinações duplas. A afinação, tanto da teorba quanto da guitarra
barroca, integrava o princípio reentrante no qual cordas mais agudas são encontradas na região grave do
instrumento. Seguem as principais afinações da guitarra barroca:
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A ornamentação essencial desses instrumentos era realizada com ligados, com poucas exceções.
Apesar das semelhanças organológicas existentes entre o violão moderno e a guitarra barroca (a afinação é
idêntica, se não forem consideradas as oitavas), houve mudanças na composição dos encordoamentos no
século XX,que resultaram em uma majoração substancial na tensão dos encordoamentos. Essa foi uma das
razões para o desenvolvimento de uma técnica paralela na execução de ornamentos essenciais barrocos. Na
nova metodologia, os ornamentos serão executados sem ligados, sendo realizados com fórmulas arpejadas
em duas ou mais cordas. Denominado de cordas cruzadas (este termo é derivado de cross-string trill sem
inglês), são usualmente empregados os quatro dedos da mão direita nas fórmulas p-a-i-m ou p-a-m-i em
direção ascendente, ou a-i-m-p o u a-m-i-p em direção descendente. Trinados realizados em duas cordas são
encontrados nos métodos oitocentistas de Matteo Carcassi2 (1792-1853) e Ferdinando Carulli3 (1770-1841);
entretanto, o trinado demonstrado é realizado somente com os dedos i e m.
2
(CARCASSI, p. 44)
3
(CARULLI, 1981, p. 40)
10
O manual
Há também uma coleção de obras com todos os ornamentos discutidos, com autores como Sanz,
Monteverdi, Visée, Purcell, Scarlatti, Bach e Marin Marais. Espera-se, com este manual, que o aluno de
violão adquira muitas das ferramentas necessárias para navegar no oceano da ornamentação e da
interpretação histórica.
Bons estudos!
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PARTE I
Convenções técnicas e ornamentação essencial
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= Indicação de acorde escovado, técnica parecida com a de rasgueio em que, com um único golpe de
mão direita, atingem-se várias cordas do instrumento. A seta indica a direção do golpe, das cordas graves às
agudas. A intensidade sonora deve ser mais leve que a do rasgueado tradicional (como, por exemplo, o
praticado no flamenco), com o intuito de emular a sonoridade de instrumentos de cordas percutidas antigos.
Utiliza-se as digitações a-m-i ou m-i.
= Indicação de acorde escovado. Aqui o golpe de mão direita parte das cordas agudas em direção às
graves. Realizado com o dedo i ou p da mão direita.
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= Indicação de arraste. Essa técnica se parece muito com a técnica de ligados, onde a nota alvo soa sem
a interferência da mão direita. É realizada por um movimento que, mantendo-se a pressão dos dedos da mão
esquerda sobre as cordas, se produz som em uma casa vizinha no braço do instrumento através de um
movimento horizontal da mão esquerda.
= A nota do baixo é tangida por um dedo da mão esquerda, em um movimento parecido com o ligado.
Musicólogos como Thurston Dart4, autor do livro “Interpretação da música”, sugerem que
editores devam procurar uma padronização de notação na confecção de seus métodos ou edições musicais.
Portanto, na seção seguinte estão expostos os signos ornamentais que são utilizados neste manual.
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(DART, 2000)
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PARTE II
Ornamentos realizados exclusivamente pela mão
esquerda
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PARTE III
Ornamentos realizados exclusivamente por cordas
cruzadas (m.d)
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Para estudarmos ornamentação realizada por mão direita (cordas cruzadas), desenvolveremos o
entendimento da micro-técnica. Para isso, é preciso entender primeiramente o conceito da posição fixa de
mão direita. Essa posição é definida pela localização do polegar nas cordas do violão. Se o polegar estiver
localizado na quarta corda e os dedos i, m e a assumirem consecutivamente as cordas Sol, Si e Mi, como
mostrado na Figura 7, temos uma posição fixa de quarta corda.
Para desconstruir uma posição fixa, são realizados movimentos de extensão e/ou retração
digitais. Entende-se por extensão quando os dedos da mão direita se movimentam em direção contrária à
palma da mão e, por retração, quando os dedos se afastam da palma da mão.
Na Figura 8, por exemplo, o dedo indicador, que em posição fixa se encontra na terceira corda
do violão (Sol), atinge a segunda corda do violão (Si) por movimento de extensão.
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Já o polegar, que em posição fixa se encontra sobre a quarta corda do violão (Ré), atinge a
segunda corda do violão (Si) por movimento de retração, como mostra a Figura 9:
Na micro-técnica transformaremos, por meio de retrações e extensões digitais, uma posição fixa
que é realizada em quatro cordas do violão em uma outra posição fixa realizada em duas cordas, mantendo a
mesma digitação.
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PARTE IV
Ornamentação composta x Ornamentação Mista
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PARTE V
Coleção de obras ornamentadas
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Apêndice
Interpretação da música no barroco: Um
panorama apresentado em depoimentos
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Estudar ornamentação sob um ponto de vista técnico é apenas uma das maneiras de desenvolver
um sotaque para a execução das peças do barroco. Com a técnica estudamos a mecânica dos movimentos,
diferentes digitações, ferramentas que tornam possível a aproximação do violão moderno com as tradições
de um passado distante.Quando traçamos uma espécie de linha do tempo em música, percebemos que
Com isso, o intérprete moderno se depara com as possíveis escolhas interpretativas. Trazer a
música do passado ao presente e com ela toda sua linguagem estética, procurando uma espécie de fidelidade
sonora. Neste contexto pode ser apresentado o conceito de performance história ou música
historicamente informada, onde basicamente o músico consulta fontes de épocas como tratados,
manuscritos, tabelas de ornamentação e, através disso, constrói sua performance. Do outro lado da moeda há
músicos que tendem a tocar a música com uma visão estritamente contemporânea, onde o gosto pessoal se
sobrepõe a tendências de épocas anteriores. Há também os intérpretes que, buscando um meio termo, criam
suas performances adequando pistas do passado ao critério artístico pessoal. Sem tentar criar qualquer tipo
de relativismo, todas essas escolhas interpretativas são absolutamente válidas, tanto que grandes intérpretes
meio musical (com atuação entre os séculos XX e XXI) que contarão em seus depoimentos qual o tipo de
relação que têm com a música barroca, com a ornamentação e quais os critérios de que utilizam para criar
uma concepção musical para suas performances. Nenhum depoimento sofreu qualquer tipo de edição ou
Com esses depoimentos espera-se que o aluno conheça as diversas vertentes do pensamento
musical e que, a partir deles, comece a praticar música barroca e a ornamentação de maneira consciente.
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Depoimentos
Apesar de ser autor do presente manual, me abstive de colocar - pelo menos em palavras -
pontos de vistas pessoais sobre a interpretação de música histórica, ou construir discursos através de
correntes estéticas já existentes, em prol de manter o foco principal deste trabalho: desenvolver um manual
de técnica violonistica sobre ornamentação.
“Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica/ Fora disso sou doido, com
todo direito a sê-lo / Com todo direito a sê-lo, ouviram?”Álvaro de Campos em Lisbon
Revisited (1923).
Por compreender que, além da técnica, entender o processo ornamental e interpretativo como um
todo é essencial, tive a ideia de reunir depoimentos de violonistas que generosamente contribuíram com este
apêndice, expondo seus processos e pensamentos. Também por isso, me concedo ao direito de, nessas
linhas, fazer, por assim dizer, minha confissão.
Sempre mantive estreita relação com música antiga, mais especificamente com o Barroco.
Depois de aprender minhas primeiras sonatas de Domenico Scarlatti ao violão, comecei a pensar mais
seriamente sobre ornamentação, recorrendo a tabelas e tratados, e iniciei uma pesquisa de repertório e
confecção de transcrições/arranjos. Nesse mesmo período participava de um madrigal que se dedicava à
interpretação de obras da renascença e do barroco e tinha meu primeiro contato com réplicas de
instrumentos de época.
Desde então, utilizo o violão de 11 cordas para tocar obras de Bach e, alterando a afinação do
instrumento para as mesmas dos alaúdes, trabalho diretamente nas tablaturas originais ou facsimiles obras de
Gallot, Visée, Kellner, Weiss, etc. No violão de 6 cordas, costumo tocar obras originais para guitarra
barroca, cravo e violino, além de, é claro, repertório original para o instrumento de outros períodos.
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O curioso é que, em todos esses anos, tive a impressão de ver alguns violonistas se afastando da
performance histórica, não por uma razão pessoal estética, mas por antipatia aos “gurus” da música antiga
que, arbitrariamente, vendiam seus pontos de vistas musicais como verdades únicas e perfeitas, e que, por
serem verdades únicas e por serem perfeitas, eram vazias.
Hoje interpreto as pistas do passado, como tratados, cartas e manuscritos, de uma maneira
bastante diferente. Essas são nossas únicas ligações com o que se fazia na época, desde práticas ornamentais
a relatos de construção de um instrumento; relatos estes que podem nos dar muitas informações importantes
a ponto de influenciar em uma escolha interpretativa como, por exemplo, a digitação. Pistas do passado são
como folhas secas que, no outono, ao caírem das árvores, desenham rostos no chão.
David Russell
"I have always enjoyed playing Baroque music, as perhaps my favourite form of expression. As you ask
about ornamentation, I feel that the ability to play trills, mordents, etc on several strings can give an exciting
rendition of many Baroque pieces we can play. I started using the trills on several strings many years ago
and continue to use them in the situations that I think are adequate. I think that this is specially true in music
that was originally written for the harpsichord, but not exclusive to that music.
Perhaps to experiment in ornamentation it is better to take music by a lesser known composer. This gives us
the opportunity to expand our knowledge through trial and error, whereas if we over ornament a piece by
Bach, for example, that is well known, we will often clash with others’ points of view. Some pieces are so
complete that the ornamentation may only intrude in the music, whereas there are other pieces that are much
more open to our own recreation and ornamental enjoyment.
Baroque music has given me personally so much joy that I will always include some pieces in my concert
programmes."
Ericsson Castro
"Os trabalhos escritos de violonistas têm crescido no Brasil, isso é ótimo para somar e aumentar a produção
didática. Já temos ótimos exemplos nos territórios da teoria, e agora, vem crescendo também a produção de
livros voltados à técnica.
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Geraldo Ribeiro
"Eu nunca improvisei em cima de música, eu tocava sempre o que estava escrito. Agora, isso não quer dizer
que não se possa improvisar, principalmente com alguns compositores do Barroco. Bach, por exemplo,
costumava escrever todos ornamentos. Evidentemente isso varia de uma edição a outra, de revisores para
outros revisores.
Em alguns compositores os ornamentos eram feitos na repetição com o intuito de embelezar suas
composições. Tais ornamentos eram realizados e inspirados no canto, onde os cantores, para agradar o
público, alardeavam suas vozes com inúmeros ornamentos causando, às vezes, um mal gosto. Por isso
alguns compositores preferiram anotar cuidadosamente seus ornamentos, como é o caso de Bach, entre
outros"
ampliar horizontes, por que ela volta nossos ouvidos para o que realmente importa aqui: a pré-compreensão
e o questionamento da estrutura argumentativa de base.
Em minha juventude nos anos 90, a escassez de informação musical me arrastava noites adentro
assistindo ao programa Concertos Internacionais, antiga (e abandonada) tentativa da Rede Globo de
justificar alguma relevância cultural que ela porventura pudesse ter tido. Ali ouvi baixinho, para não acordar
a pobre família que me apoiava no estudo da música, o ciclo Beethoven de 1968 com Karajan, o ciclo
Brahms com Kurt Masur, concertos de Ano Novo das maiores orquestras europeias, e outras aparições
criativas que davam um sentido às aulas de instrumento com Graça Lima. Minha professora de violão se
empenhava em descrever as diferentes realidades dos instrumentos antigos para que Robert Johnson soasse
na sua diversidade em relação à um estudo de Leo Brouwer, por exemplo. Mas num dia em que o sono (e o
ensino médio matutino...) não me permitiram acompanhar a exibição do Oratório de Natal de Bach, tive que
me contentar com o relato de meu tio, aficionado pela música a quem devo o estudo dessa interpretação
muito depois, porque ele a tinha gravado em VHS: “Foi lindo, tinha crianças cantando...”, etc.
Há um problema aqui. Como é que um regente (ninguém menos que Nikolaus Harnoncourt e seu
Concertus Musicus de Viena) poderia escolher pirralhos para cantar as árias mais desafiadoras do repertório
lírico? Bem depois eu entendi, confirmando a máxima de Sergiu Celibidache, que só ao vivo é que se pode
entender o fato do fenômeno musical. Quando vi os Meninos Cantores de Leipzig em 2011, com o 16º
sucessor de Bach, Gerog Christoph Biller e um grupo de música antiga, algo fechou a experiência do VHS
com Harnoncourt. Crianças tem menos fôlego, elas têm que fragmentar mais o fraseado. E a fragmentação
motívica, usada ao invés da grande linha de frase é, muitas vezes, o que melhor pode distinguir uma
concepção interpretativa “barroca” de outra “romântica”, para falar de duas orientações estilísticas que são,
em grande medida, influenciadas pela questão da expressividade no contexto da Estética do Sentimento. A
voz infantil tem menos vibrato, é mais focada. Cortante e transparente, tende para um espectro agudo de
equalização, e pode ser ouvida em um grande espaço, mas mantendo um equilíbrio sonoro em relação aos
instrumentos que a acompanham, construídos também para gerar mais foco do que volume. Isso muda tudo:
andamento, clareza polifônica, hierarquia entre elementos expostos na voz ou na orquestra, tudo fica
diferente, em todos os quatro parâmetros sonoros. O que pode parecer natural e idiomático, orgânico e direto
em um conjunto instrumental, pode requerer uma habilidade ultra-especializada em outro para atingir o
mesmo efeito ou afeto. Isto muda a s dificuldades e facilidades, não as minimiza.
dificuldade. Neste caso, falamos de dois elementos – aplicação do vibrato e fragmentação motívica – que
podem, perfeitamente, ser manipulados pelo violão, um instrumento pós-revolução francesa. A adaptação
desse fundamento sugerido pela audição das novas orquestras “antigas” exige algo que impõe outras
dificuldades no idioma do instrumento.
O livro El Maestro, de Milan, com fantasias e pavanas para vihuela, por exemplo, concebido como
coletânea de dificuldade progressiva, já começa ultracomplicado para violonistas. “Ler” isto no violão muda
completamente a proposta, tanto do ponto de vista de uma grade curricular, quanto de uma proposição
artística.
Para o violão, as diferenças em relação aos instrumentos históricos impõem uma abordagem técnica
que não está nos tratados antigos. As obras do período renascentista têm que nos fazer pensar no “peso” do
som, na fluência da condução polifônica e na agógica que revela as tensões e distensões resultantes do atrito
entre as vozes. Nada disto tem qualquer semelhança com o que sentimos/vemos/ouvimos em uma vihuela
autêntica. Já no barroco, além de todos esses problemas, surge outra dificuldade, justamente o tema deste
livro: a ornamentação. Um mordente não pode soar “leve e gracioso” se o tocamos em uma corda cuja
pressão no cavalete pode atingir cerca de 10 quilos, como é o caso do violão. Por outro lado, um alaudista
não pode acentuar uma nota bona, ou um primeiro tempo de dança, do mesmo modo que um violonista.
Usando parcimoniosamente o toque com apoio, indisponível para instrumentos com cordas duplas, criamos
o acento natural que a frase às vezes requer. Isso nos leva a usar apoio em obras de uma época em que algo
parecido jamais passou na cabeça do compositor. Ainda sobre o toque com apoio, há um aspecto importante,
cuja aplicação pode hoje ser averiguada nos recentes vídeos disponibilizados na web com alguns recitais do
Duo Abreu. Uma ligeira desproporção rítmica que precisa ser vencida é quase inevitável no começo da
prática desse tipo de toque. Quem diria que esse “erro” precisasse ficar em nosso repertório gestual para ser
usado no tipo de deslocamento métrico chamado, na música francesa, de inégalité? A seleção de seis
“Pieces pour clavecin”, de J. P. Rameau, pode ilustrar isto, com o vídeo agora disponível no site
youtube.com5 que traze uma surpresa interessante em relação à gravação “oficial” em áudio mais difundida.
Eduardo Abreu, nesta, usa uma divisão regular de colcheias. No vídeo, o inégalité é empregado.
Dependendo da proporção do volume sonoro requerido, um apoio relaxado (para as mãos e para rigor do
ritmo) pode ser ideal para se construir o efeito.
no tempo em que tive contato com a música historiograficamente informada pela primeira vez, mas o
fascínio e o impacto desse cruzamento de universos não perderam a atualidade.
Já que tudo aqui é diferente, os recursos têm que ser controlados com uma grande cultura de escuta e
empre foi um processo
abertura de espírito para experimentação. A ornamentação nunca existiu a priori. S
que precisa ser discutido no contexto de cada instrumento, dos recursos que ele apresenta. Talvez por isso, o
repertório tarreguiano não nos ajude a tocar Dowland ou Narvaez, e aí a falácia de que música antiga é mais
fácil do que música romântica/moderna aparece com toda a sua ofuscante estupidez.
Algumas soluções que encontramos são realmente bizarras. A ornamentação em duas cordas, por
exemplo, apesar de ter aparecido esparsamente na história do violão, só foi utilizada ostensivamente na
música barroca por David Russel, em um disco que marcou época, lançado nos anos 90, com obras de
Haendel transcritas do cravo. A razão é mais do que plausível. O violão pode imitar de modo interessante o
trinado e o mordente do som pinçado do cravo, como foi a intenção de Russel. Mas quando se trata do
repertório para cordofones antigos dedilhados ou friccionados, como o alaúde ou o violino, encontramos
dificuldades em reproduzir a suavidade do ataque da mão esquerda desses instrumentos. Que digam os
pianistas, sempre com ouvido afiado para reclamar do som ponticello dos ligados que nós consideramos bem
feitos... O lirismo exigido nos ornamentos das obras de Guerau ou Mudarra quase nos convencem a mudar
de instrumento. Foi o que fizeram, no Brasil, Regina Albanez ou Guilherme de Camargo, seguindo os passos
de um José Miguel Moreno ou de um Carles Trepat, este último já suficientemente distante da tradição
Tárrega-Llobet para propor elementos dessas obras que as cordas de carbono e os tampos double-tops de
alguns violões já não nos trazem mais. Para mim, ainda é difícil pensar na possibilidade de dominar um
alaúde, ou uma guitarra barroca. São instrumentos que pedem técnicas conflitantes e, pelo menos por hora, é
raro ver quem possa convencer atuando nos dois mundos. Não obstante, as obras estão aí e são muito boas
para que as abandonemos ao exclusivismo especializado da Alte Musik. É preciso nos apropriar também
desse repertório, mas a proposição interpretativa tem que valer a pena.
O acúmulo dessas proposições interpretativas é sempre discutido em sala de aula. O maior problema
é que a ornamentação acaba sendo mais difícil, tecnicamente, do que a obra em si e isso é muito frustrante.
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Sem a ornamentação, a peça parece falsa, assim como parece falso um trinado em duas cordas em uma
fantasia de Dowland, que definiu na tablatura o trilo em uma corda só. O ornamental é estrutural no barroco,
por contraditório que isso possa parecer. Minha experiência com prática e ensino de repertório me obriga a
reconhecer que, talvez, o violão não seja exatamente o melhor instrumento para esse período, se pensarmos
em uma execução completamente orientada para a música antiga. Mas a boa notícia é que também no
barroco a informação variava muito e não é extravagância nenhuma manter essa parte de nossa história no
horizonte de possibilidades interpretativas. O violão de 11 cordas, usado por Goran Sollscher e, no Brasil,
por Paulo Martelli, Nicolas Barros e, agora, Amadeu Rosa, é muito mais tenso e pesado do que o clássico
violão de 6. Paradoxalmente, ele exige uma leveza de toque que acrescenta algo interessante e adequado à
música antiga no inventário sonoro já enriquecido pela extensão ampliada para o grave. Minha solução foi
menos radical e mais na direção do insubstituível equilíbrio da relação encontrada por Torres entre tessitura,
peso de som, volume e sustentação. Pedi a Wolfgang Schmidt, um luthier tão curioso com a história da
luteria quanto eu com a história da interpretação, um violão baseado na Leona de Torres, de 1857,
instrumento paradigmático da construção moderna que, no entanto, tem ponte cordal, como na guitarra
romântica ou no alaúde. Esse é o mais perto que consigo chegar de um material instrumental histórico. E o
resultado sonoro já muda radicalmente a expectativa que eu tenho, mesmo da música pré-revolução
francesa.
Venho tentando dizer, há algum tempo, que o que chamamos de problemas técnicos, na música, não
são exatamente técnicos, no sentido de algo que possa ser superado em uma formação técnica do tipo
FATECs, focada no aprendizado dos elementos básicos (e como seriam básicos, se suas reformulações
propositivas nos perseguem até o fim da vida?). A execução de uma obra musical é uma formulação
intelectual. Conscientemente ou não, ela é filtrada em operacionalidade artística, que se manifesta em um
vocabulário técnico/mecânico. Daí a dificuldade em compreender a sutileza da continuidade de práticas
conservatoriais no ensino musical superior. É verdade que continuamos tendo disciplinas no modelo das
aulas individuais, que ocupamos tempo revisando problemas de base, revisitando peças da iniciação e do
nível médio, e que gastamos dias a fio refazendo dedilhados, restringindo nosso estudo da harmonia, análise
e contraponto. Mas também é verdade que cada revisão do repertório básico é também uma revisão dos
procedimentos interpretativos cristalizados no conservatório, e precisam de uma revitalização que não
acontece senão na re-experimentação constante, que fundamenta tudo de outra forma. Para o instrumentista,
e essa é a diferença entre uma noção de técnica em qualquer outra área de conhecimento e a nossa, esse
trabalho operacional “braçal” é o que determina (e expõe) nosso conhecimento da parte especulativa e
teórica da música. Se é verdade que o instrumentista em nível superior ocupa grande parte do seu trabalho
pensando em resoluções técnicas, também é verdade que uma revolução nos pré-supostos da visão prévia
que temos das obras só pode se materializar com uma correspondente conscientização nos níveis técnicos e
mecânicos que possibilitam a esta ou aquela visão interpretativa se concretizarem em som. No limite, o
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dedilhado escolhido acusa o conhecimento de harmonia, contraponto, história e estilo. Sem esta noção, que
especifica o território do instrumentista em relação ao do regente, compositor ou crítico musical, a
especulação em torno dos tratados se torna vazia, genérica ou especulativa.
Esse é o grande passo dado por Eduardo Fernandez, quando entendeu que seu mestre Carlevaro, nos
seus Cuadernos, tratou mais de mecanismo do que de técnica. Fernandez entende e explica de maneira clara,
que a técnica está atrelada a uma ideia musical que já tem que estar previamente elaborada. Esse é também o
passo fundamental dado por Amadeu Rosa, quando pretende discutir a viabilidade técnica da deslumbrante
ornamentação barroca no contexto de nosso instrumento. Enfrentar essa questão sistematicamente é a única
forma de integrar o enorme corpus de conhecimento sobre música antiga na nossa tarefa, que exige
responsabilidade para com as proposições interpretativas históricas. A opção contrária é sermos papagaios
de mestres que vieram antes de nós, sem sequer conhecer os fundamentos de suas formulações, atuando por
meio de uma cristalização inquestionada de pre(con)ceitos. Para qualquer pessoa com um mínimo de
formação humanística, essa é a formula certa para um tipo de decadência humana que ninguém gostaria de
repetir.
Decisões técnicas instrumentais para se interpretar música antiga residem no fato de um sincero diálogo com
a contemporaneidade; com o passar dos tempos; com o instrumento que está servindo à música.
Servir à música significa estar apto a analisar os dois tempos (o tempo da obra com o hoje); estar apto a
servir e a modernizar via instrumento atual um produto não feito para seu tempo.
Muito bem, a partir daí história, estética e o instrumento atual hão de se combinarem para tentar tornar
plausível, agradável e palatável o que se pretende tocar do passado. Diante de tal equação as ferramentas
seriam: identificar a pessoa/compositor referente a seu habitat, a política, religião e sociedade de seu tempo;
estabelecer uma verdade sonora dos instrumentos atuais em combinação com a perspectiva sonora do
período da obra. Tarefa árdua uma vez que registros fonográficos de certas épocas inexistem. E, por último,
e tão claro quanto, o gosto pessoal do intérprete, aquele que é sentido, que é empírico, de intuição.
Wallace Berry, autor de Musical Structure and Performance, pondera que a intuição é insuficiente para a
compreensão do todo musical. Prega também que o conhecimento da estrutura da obra pode melhorar o
intérprete e sua interpretação. Conclui que a análise formal, como instrumento significativo para a melhoria
da performance, existe para que através de um pensamento e compreensão do todo o produto final resulte,
entre outras coisas, numa mudança das repetições interpretativas. (BERRY, 1989, p.217-18)
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Edward Cone, diz a mesma coisa pelo prisma das gravações. Diz que mesmo a interpretação, que parece
num particular momento uma revelação, pode tornar-se monótona através dos tempos. O autor sintetiza que
as gravações podem perder seu interesse, pois são imutáveis no tempo e no espaço, enquanto a música sofre
metamorfose em tempo real. (CONE, 1968, p.35).
Joel Lester, em Studies in Music Interpretation, diz que elementos teóricos só servem se o intuito for o de
contribuir realmente para a fluidez e contextualização da performance. (LESTER, 1995)
Heinrich Schenker (1868-1935), no tocante aos intérpretes que utilizam sua técnica de análise, cita que
liberdade de opinião gera liberdade de interpretação. Quão maior a habilidade e conhecimento o intérprete
detém, maior a liberdade de expressão ele possui. Segundo o autor, o verdadeiro intérprete é aquele que
percebe a estrutura musical de maneira orgânica.
Diz que:
Freedom of opinion, freedom to perform! The more ability man possesses, the more freedom does he also
have.
De acordo com Charles Rosen (b.1927), antes de Schenker, a análise de uma obra musical era em grande
medida uma articulação das partes que a compunham (...). Schenker “procurou, em vez disso, mostrar não
como a peça pode ser dividida, mas como ela se unificava.” (ROSEN, 2004, p.202). A esta unidade
apontada por Rosen, Schenker denominou por organicidade, ou coerência orgânica da obra.
De posse de diálogos sobre interpretação, análise estrutural, estética, posicionamento histórico, organização
de ideias e gosto pessoal, o manuseio das técnicas do violão passam a ter um papel importante para tornar o
instrumento claro/eficiente ao discurso.
O violão, particularmente, tem um passo à frente na música antiga pelas possibilidades de ornamentação.
Entre alguns se pode dizer que os trinos de mão esquerda e as campanelas o posicionam a frente das cordas,
órgão e sopros, instrumentos esses que só realizam ornamentos de uma mesma forma física. Harpejos, com
um mesmo motivo de mão esquerda, também seriam como uma técnica “estendida”, pois realizam
movimentos harmônicos sem a necessidade de reproduzi-los nota a nota (comuns ao órgão, cravo,
fortepiano e piano moderno). Outra ferramenta de grande impacto são as escalas no violão: feitas em cordas
diferentes ou em mesmas cordas causam diferentes afetos na progressão melódica. O que significa
sobremaneira para o tratamento da retórica e articulação, em música antiga.
Enfim, a envergadura técnica do violão gera uma paleta de possibilidades interpretativas em qualquer
estética seja original ou não! Uma reflexão acurada fatalmente faz do violão um grande expoente para
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interpretação de obras feitas antes do seu surgimento. Estudo criterioso faz-se necessário para resultado de
um bom produto.
Creio que é inevitável colocar a técnica a serviço da música, e sempre. Ainda mais quando o repertório é
transcrito e concebido num mundo anterior ao violão.
UNESPAR-Campus EMBAP
Ricardo Dias
Acredito que decisões sobre interpretação precedem a ornamentação; mais que isso, as definem. Quando
comecei a estudar violão nos anos 80 o panorama da interpretação no barroco era desolador. Se a linha dita
segoviana era muito combatida (com uma certa razão), a corrente vigente era insuportável: a impressão era
que bastava um metrônomo para determinar o que fazer. O importante era o tempo, firme, sem rubatos ou
vibratos. E quando líamos algum artigo, coisa que raramente aparecia (não havia internet...), estes de um
modo geral defendiam essa visão seca com ponderações várias, nenhuma delas, a meu ver, plausível. E meu
argumento, embora bastante simplista, me parece irrespondível: peguemos o samba. Um samba em São
Paulo soa muito diferente de um no Rio, e mais diferente ainda na Bahia, ou mesmo em Minas. Ora, se
dentro de um mesmo país, no mesmo período, há tantas diferenças, imagine-se em países diversos. Mais
ainda, se essas particularidades existem hoje havendo rádio, TV, internet, imagine numa época em que não
havia essa contaminação! Evidentemente os pesquisadores sérios assinalavam isso, mas muitos professores
embrulhavam tudo no mesmo pacote, colocavam a etiqueta “barroco”, e as diferenças que se danassem. Mas
os que não comungavam dessa visão cometiam, a meu ver, um erro pior: tentavam adivinhar como se fazia
então. E para isso cravavam regras baseadas nos artigos que liam ou nos poucos manuscritos da época.
Como vou saber, de fato, como Bach tocava? Seus ornamentos estavam escritos, mas isso não define um
modo de tocar. Se fizermos uma extrapolação para o barroco na pintura ou na escultura, certamente não será
uma coisa seca e metronômica. Posso imaginar as limitações dos instrumentos, mas jamais afirmar coisas
que são discutíveis. Ora, por exemplo, durante muito tempo se acreditou que não se fazia vibrato em alaúde.
De fato não é das coisas mais orgânicas a se fazer, mas aí alguém descobriu um texto contemporâneo
descrevendo seu uso. Como dessa discussão nascem outras, vamos esquematizar:
Ninguém sabe. Há informações em tratados e livros antigos. Mas para ser uma interpretação historicamente
informada, qual a relevância disso no violão? Ele não existia, sua sonoridade era desconhecida, então emular
outros instrumentos nele E se preocupar em como era feito me parece estéril. E supondo que ainda assim
fosse importante saber o “como”, fica a questão: onde? Como já disse, se hoje em cada lugar se toca a
mesma música de formas diferentes... Mesmo havendo bastantes textos sobre ornamentação, o resultado era
quase sempre artificial, duro.
Ninguém sabe. E ainda que se soubesse, fica a questão: qual a relevância? Fazendo uma analogia simples,
temos gravações de Villa Lobos tocando algumas de suas obras. Devemos imitá-las, simplesmente? Essa
seria a maneira “correta”? Ou (e me parece uma pergunta crucial) cabe ao INTÉRPRETE nos propor formas
de interpretar cada discurso? Para mim, essa é a natureza da profissão de concertista. Se a forma de Segovia
nos mostrar Bach talvez não fosse a ideal (por motivos que serão expostos adiante), ainda assim é a visão de
um artista sobre outro. Glenn Gould fez algo novo, como Walter (depois Wendy) Carlos, e cada um agrada
um determinado nicho, satisfaz uma determinada plateia. E de forma alguma estão errados.
Ninguém sabe. Não temos absoluta certeza sobre afinação, andamento, tempo, pulso... Temos sim algumas
formas de observação, por exemplo: as línguas nacionais. Cada uma tem sua acentuação e ritmo próprios,
então a música vocal simplesmente muda de acordo com a língua em que se canta. No nosso caso, o violão,
seria interessante analisar isso como um acessório, de forma a ter um “sotaque” convincente. Mas tenho a
suspeita que quando tentamos reproduzir integralmente algo de séculos atrás a essência se perde, e nem
sempre isso é uma coisa ruim. Ou alguém assistiria, sem rir, a uma apresentação de Romeu e Julieta onde a
mocinha fosse interpretada por um homem, como era na época do bom William? Então creio que a busca
pela interpretação historicamente informada deve ser sempre mediada pelo bom senso.
E há outra questão. Imagine-se um holocausto que acabe com a maior parte de nossa civilização e os
registros gravados. Daqui a mil anos arqueólogos encontram uma gravação de um estudante pouco talentoso
interpretando uma peça, por exemplo, de Rodrigo. Os estudiosos do futuro provavelmente escreverão artigos
explicando detalhadamente como TODOS nós tocamos hoje... Imagine-se Rodrigo eternamente tocado de
forma tatibitate, sem ritmo e sem pulso!
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Mas nunca se suponha que o que escrevi acima seja um convite à bagunça. Se sou contra as amarras não
significa que eu considere que vale tudo. Ou melhor, até vale, mas creio que uma interpretação, para ser
levada a sério, tem que fazer sentido. E é aí que começamos a tentar organizar o negócio – e aí a importância
de livros como este.
Quando o compositor escreve diretamente para um instrumento ele fica preso às limitações deste. Quando
usa o idioma específico, então, temos uma indicação clara do efeito que deseja. Uma semibreve no órgão ou
no violino é irreproduzível no cravo ou no violão, então temos a visão objetiva da limitação. Ou, se estamos
diante de uma longa frase escrita em semicolcheias podemos assumir que um rubato no meio dela pode
quebrar o discurso. E “discurso” é a palavra-chave. Usando novamente Shakespeare, podemos dizer “Ser ou
não ser” de várias formas: “Seeerrr ou não ser”, “SER ou NÃO seeeerrr”, “serounãoser”, mas acho que
concordamos que ficaria sem sentido algo como “SEROU nãoser”; e esse bom senso é que me parece estar
voltando à moda. Não sabemos como o bardo queria que essa frase fosse dita, mas podemos supor algumas
formas aceitáveis e outras nem tanto. Por isso, aliás, disse anteriormente que o jeito segoviano de encarar o
barroco poderia ser questionado: ele frequentemente corta o discurso em prol de uma nota mais cantada ou
de uma pausa mais romântica. No entanto, há que se respeitar, ainda que se discorde. Melhor liberdade que
prisão.
Exatamente por isso um livro como este me parece valioso. Parte do violão, um instrumento cuja sonoridade
não existia no barroco, e trata da ornamentação com bom senso, mostrando formas exequíveis de se pensar e
de se fazer, que privilegiam justamente o discurso, e o discurso, repito, NO violão.
A ornamentação sempre foi um tema espinhoso: os tratados são muitos, mas para os instrumentos a que se
destinavam, portanto nem sempre a transposição é possível ou fácil. Bach escrevia tudo, mas ainda assim,
quando transcrevemos para violão fazemos o quê? Acrescentamos ou retiramos notas? Respeitamos a
ornamentação como parte da música ou a encaramos como um enfeite descartável – ou substituível? Ao
longo dos anos as correntes se sucederam, e cada uma impunha – ou tentava impor – às demais suas
conclusões. E, pior, essas conclusões eram importadas quase que à força para o violão, sem respeitar sua
natureza, sua sonoridade, a qualidade de seu sustain, etc.
Cabe ao intérprete decidir que tipo de tratamento quer dar à peça. Cabe a ele decidir que tipo de risco correr,
pois uma ornamentação mal feita ou fora de hora simplesmente corta todo o fluxo – e, portanto, o discurso.
Cabe a ele se informar sobre as possibilidades. Como disse acima, meus argumentos são aparentemente
simplistas; é que acho muito óbvio que o critério deverá ser SEMPRE musical, nunca a letra fria de um texto
escrito séculos atrás.
Sergio Abreu
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“(...)Acrescentar ornamentação em música barroca nunca foi uma preocupação minha. Se você ouvir minhas
gravações verá que sempre optei pelo mínimo possível de acréscimos à partitura original. Especialmente em
Bach, que sempre escrevia por extenso a maioria das ornamentações (ao contrário de Handel ou Corelli), por
exemplo o Adagio inicial da Sonata BWV 1001 para violino.
Tecnicamente eu sempre me preocupei em fazer o mais audível possível os ligados da mão esquerda, com
um ataque rápido martelando de leve nas notas que não são tocadas pela mão direita. É muito comum os
violonistas apenas encostarem o dedo na corda sem produzir quase som algum.”
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Referências bibliográficas
CARULLI, Ferdinando. Seconde Suite a la méthode de guitarre, op. 27, s.d. Edição fac-similar. Firenze:
SPES, 1981.
DART, Thurston. Interpretação da música; t radução de Mariana Czertok. – 2a. Ed. – São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
Bibliografia sugerida
DONINGTON, Robert. The Interpretation of Early Music. 6. ED. London: Faber and Faber, 1990.
NEUMANN, Frederick: Ornamentation in Baroque and Post-Baroque Music: With Special Emphasis on
J.S. bach. New Jersey: Princeton University Press, 1983.
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