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BREVE HISTÓRIA DA SOUL

MUSIC
(ou O que é soul music)

Sílvio Anaz

São Paulo
2013
© 2013 Sílvio Anaz
imagem da capa: Marvin Gaye em apresentação no Royal Albert Hall, em Londres, em 1979.

Foto de David Corio/Michael Ochs Archives/Getty Images.


revisão: Smirna Cavalheiro

A15q Anaz, Sílvio


Breve História da Soul Music
(O que é soul music) / Sílvio Anaz
São Paulo, 2013
47 p.
Bibliografia
ISBN 9788564620018
1.Música 2. Soul music 3. Black music 4. Canção popular
SUMÁRIO
PARA COMEÇAR...

RAÍZES ESPIRITUAIS
O FLORESCER DA SOUL MUSIC
ORGULHO DE SER NEGRO

TRILHA SONORA DOS DIREITOS CIVIS

APENAS OS FORTES SOBREVIVEM


SENSUALIDADE E ORGULHO À FLOR DA PELE

O SOM DA MOTOWN

O FIM DA INOCÊNCIA
GRANDES BANDAS DA SOUL MUSIC

RENASCIMENTO DA SOUL MUSIC


EM POUCAS PALAVRAS...

NÃO DÁ PARA NÃO OUVIR

BIBLIOGRAFIA
Ray Charles, o “inventor” da soul music, e as Raelettes, em 1960
(GAB Archive / Getty Images)
PARA COMEÇAR...

Era uma vez uma época de otimismo e esperança. Anos dourados que
fizeram a população negra norte-americana sonhar com uma vida melhor.
Um momento em que compositores, intérpretes, músicos e produtores
criaram canções cheias de suingue, sensualidade e outros elementos típicos
da tradição da música negra dos Estados Unidos. Foram baladas românticas
e verdadeiros hinos na luta pelos direitos civis que nasceram de uma cultura
que já tinha inventado o blues, o jazz e o rock'n'roll. Esse tipo de canção foi
chamado de soul music e expressou o orgulho de ser negro num mundo em
que o preconceito racial era respaldado por leis.
Os talentos de Ray Charles, James Brown, Berry Gordy Jr., Marvin
Gaye, Stevie Wonder, Aretha Franklin, Otis Redding, The Supremes,
Jackson 5, Sam Cooke, Booker T & the M.G.s., The Funk Brothers e The
Temptations, entre outros, e as gravadoras Motown, Atlantic e Stax fizeram
da soul music um sucesso mundial. Mesmo após o fim de sua fase dourada,
a música soul permaneceu influente e matriz de boa parte do que é feito
dentro do rhythm'n'blues. Prova disso foram os sucessos de Diana Ross e
Michael Jackson nas décadas de 1970 e 1980, o permanente resgate de seus
elementos e de sua tradição com Mary J. Blige, Jay-Z, Seal e John Legend,
entre outros, e o seu "renascimento" no começo do século 21 nos trabalhos
de artistas como Joss Stone e Amy Winehouse.
Este livro é uma introdução à soul music. Além de contar a história
do gênero, ele procura mostrar a importância e a influência que ele tem na
música popular pelo planeta. As canções da soul music ainda são perfeitas
para embalar romances e festas, e já foram fundamentais para elevar a auto-
estima da população negra e para amplificar as vozes que lutaram contra a
segregação racial. Para saber como ela tem conseguido fazer tudo isso,
escolha uma trilha sonora, aproveitando as dicas que estão no final do livro,
e descubra nas próximas páginas o que é soul music.
RAÍZES ESPIRITUAIS

Profanas e sensuais, as canções interpretadas por Aretha Franklin e


Marvin Gaye, dois dos expoentes da soul music das décadas de 1960 e
1970, têm suas raízes num tipo de canto espiritualizado e religioso
desenvolvido pelos negros norte-americanos - escravos e seus descendentes
- entre os séculos 17 e 19, principalmente durante o árduo trabalho nas
plantações no sul dos Estados Unidos. Esse tipo de canção foi fruto da fusão
da cultura africana trazida pelos escravos com a que eles encontraram na
América do Norte trazida pelos colonizadores europeus, principalmente
ingleses e franceses.
Chamada de spiritual, ela era um canto de lamento e, ao mesmo
tempo, de alento, que se desenvolveu durante dois séculos como fruto dessa
relação entre os escravos africanos e seus proprietários europeus. O spiritual
foi o resultado do sincretismo entre o passado, representado pelas tradições
culturais da África, e o presente, expresso na imposição dos valores
culturais europeus e cristãos. Além de produzir um novo canto, esse
sincretismo resultou também em danças, linguagens e religião originais.
Essas novas formas de expressão cultural foram transmitidas oralmente de
geração para geração e se tornaram fundamentais para os negros
sobreviverem à opressão e enfrentar a dura realidade de trabalhos em
condições subumanas, que persistiram mesmo após o fim da escravidão,
principalmente nas plantações no sul dos Estados Unidos.
O spiritual era essencialmente um canto religioso que se desenvolveu
a partir da adoção do cristianismo pela população negra como uma forma de
“libertação”. Ele foi uma evolução das músicas de trabalho e de protesto
cantadas pelos escravos no campo desde o século 17. O spiritual é a matriz
dos primeiros gêneros da canção popular negra norte-americana, como o
blues e o jazz, assim como de um outro tipo de canção que se tornou muito
popular no século 20: o gospel.
O gospel é uma espécie de "evolução" do spiritual. Suas canções
destacam vocais e coros num estilo que ficou conhecido como "chamado-e-
resposta" (o canto de um vocalista solo - o chamado - é respondido por um
grupo de cantores, "resposta" que geralmente vem de um coral) para
expressar uma intensidade espiritual de forma dramática e emotiva. Mas, na
primeira metade do século 20, a música negra norte-americana não se
expressava apenas de forma espiritual. No terreno profano, tornavam-se
cada vez mais populares o jazz e o blues (este também caraterizado pelo
estilo "chamado-e-resposta", só que em um "diálogo" feito entre o cantor e
o violão ou a guitarra).
A mistura de elementos estéticos do blues, jazz e gospel resultou em
uma sonoridade que ficou conhecida como "rhythm'n'blues" (classificação
adotada pela revista Billboard a partir de 1947), criada nos anos 1940 por
artistas como Louis Jordan, e que se tornou a matriz dos principais gêneros
da canção negra que surgiu na segunda metade do século 20, entre elas a
"soul music".
O FLORESCER DA SOUL MUSIC

Entre os anos 1940 e 1950, "soul" era o termo usado por alguns
músicos de jazz como John Coltrane e Art Blakey, envolvidos em um
movimento pelo retorno do gênero as suas origens. Para eles, "soul"
significava a essência que o jazz tinha perdido à medida que o gênero se
transformou em um dos principais produtos da indústria fonográfica,
principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Nos anos seguintes, o uso
do termo ultrapassou as fronteiras do jazz e passou a expressar na música
popular as características essenciais que revelam sua negritude. Isto é,
"soul" passou a significar o traço fundamental, o âmago, a alma da cultura
negra norte-americana presente em uma canção.
Os primeiros sucessos desse tipo de canção surgiram no final da
década de 1950. O principal responsável por isso foi Ray Charles, artista
portador de um talento excepcional para tocar piano, cantar, fazer arranjos e
compor. Charles colocou letras sensuais em composições que misturavam
elementos musicais do blues e do gospel e vendeu milhões de discos para
audiências negras e brancas que viraram fãs de um novo gênero da canção
popular norte-americana que algum tempo depois seria chamada de "soul
music". Charles conseguiu fazer na canção popular o que os músicos de
jazz estavam perseguindo: criar uma identidade para suas músicas que
fizesse qualquer um que as ouvisse dizer que elas eram sem dúvida música
negra, isto é, que elas tinham a essência da cultura negra norte-americana,
que elas tinham "soul".
Naquele momento, não era só Ray Charles quem tinha conseguido
isso. James Brown, outro artista negro igualmente talentoso, também estava
fazendo canções que não só mostravam terem "soul", como também
expandiam o significado do termo para o campo social e político fazendo
dele sinônimo de identidade e orgulho dos negros, considerados então
cidadãos de segunda classe nos Estados Unidos. Com a banda Famous
Flames, Brown levou a excitação típica da canção gospel ao extremo
cantando temas profanos.
As igrejas protestantes criadas e frequentadas pelos negros nos
Estados Unidos surgiram como fruto do sincretismo das culturas africana,
europeia e cristã. Nelas os encontros costumam ser profundamente
emotivos, nos quais o canto gospel e as danças servem para canalizar parte
da excitação religiosa e da explosão de sentimentos dos fieis. James Brown
adaptava de forma inovadora para o palco e nas suas canções as louvações
típicas da igreja batista pentecostal, só que com temas bem mundanos,
como sexo e garotas, no lugar dos sagrados. Sua voz e seu jeito inovador de
dançar contagiavam e ensandeciam plateias negras da mesma forma que
Elvis Presley fazia com as brancas.

COMO RAY CHARLES INVENTOU A SOUL MUSIC


Ray Charles compôs e gravou "I've Got a Woman" em 1954. Nela, ele
juntou blues, jazz, rock'n'roll, gospel e criou um novo estilo de vocal para
cantar sobre sexo e mulheres. Essa fórmula seria utilizada até meados dos
anos 1970 como a base da soul music. Charles era um talento excepcional.
Aos sete anos de idade ele perdeu a visão por conta de um glaucoma. Isso
não o impediu de mostrar ser um garoto prodígio enquanto estudava música
em uma escola para cegos e surdos na Flórida. Na adolescência, ele era um
virtuoso em instrumentos como piano, saxofone, trumpete e clarinete. Suas
principais influências vinham de Nat King Cole e de Louis Jordan. Após
atravessar o país tocando piano para estrelas do rhythm'n'blues como Ruth
Brown, Ray Charles montou sua própria banda e começou a compor e tocar
blues e jazz. Entre 1954 e 1959, ele compôs uma série de canções que
ampliaram a estética do rhythm'n'blues e estabeleceram os fundamentos da
"soul music", entre elas "What'd I Say". Charles foi o primeiro a conseguir
colocar em suas canções àquela essência da música negra buscada pelos
músicos de jazz desde os anos 1940. E ele foi buscar essa essência
justamente na raiz espiritual da canção negra norte-americana, no gospel.
Desde então, a música gospel foi a principal influência e inspiração da soul
music.

Além de James Brown e Ray Charles, Sam Cooke formou o


triunvirato que moldou os primeiros anos da soul music e a tornou um
sucesso. Filho de pastor e assíduo participante dos corais das igrejas desde
criança, Cooke era no começo dos anos 1950 integrante de um dos mais
populares grupos de música gospel, o Soul Stirrers. Apesar do sucesso com
os cantos religiosos, Cooke queria mais. Seduzido pela popularidade de
artistas negros do rock'n'roll, como Little Richards e "Fats" Domino, ele
juntou sensualidade, charme, boa pinta e uma excepcional voz para cantar
coisas profanas. Em 1957, lançou "You Send Me", uma típica canção de
soul music e uma inegável demonstração de que Cooke era um dos
melhores cantores da história da música popular. A canção foi o primeiro
sucesso da música soul com mais de um milhão de compactos vendidos.
O rhythm'n'blues tinha na segunda metade da década de 1950 gerado
dois gêneros que se tornaram os mais populares do planeta nos anos
seguintes: o rock'n'roll e a soul music. Ambos conseguiram romper as
barreiras raciais e tornaram-se gêneros musicais que integraram artistas e
audiências independente da cor de suas peles. Especialmente para a
população negra, a soul music mostrou que a canção poderia ser um fator
fundamental para resgatar e manter elevada sua auto-estima e até mesmo
embalar suas lutas pelos direitos civis.

ROCK & SOUL


Solomon Burke foi um dos principais intérpretes da soul music e o rei de
um estilo chamado de "rock'n'soul", uma fusão dos dois principais gêneros
que surgiram do rhythm'n'blues dos anos 1950. Assim como a maioria dos
artistas da soul music, Solomon Burke desenvolveu seu talento aprendendo
nos corais gospel das igrejas e cantando músicas religiosas. Ele criou um
estilo peculiar de interpretar com suas interjeições gritadas, o uso de várias
notas para uma mesma sílaba num trecho da melodia (melisma), uma
recitação persuasiva e um timbre áspero de voz. Nos primeiros anos da
década de 60, Burke consagrou-se como rei do rock & soul com sucessos
como "Cry to Me", "If You Need Me", "Everybody Needs Somebody to
Love", "Goodbye Baby (Baby Goodbye)", "Got to Get You Off My Mind" e
"Tonight’s the Night". Assim como os pastores da igreja, onde aprendeu e
cantou gospel, Solomon Burke queria que as pessoas sentissem
profundamente as palavras das suas canções e para fazer isso isso usou e
abusou das técnicas vocais da canção gospel.
James Brown, o soul brother número um, em 1973
(Foto de Michael Putland/Hulton Archive/Getty Images)
ORGULHO DE SER NEGRO

A soul music teve uma importância social e política tão grande quanto
foi seu impacto artístico. Aliás, sua trajetória nos anos 1960 está
intimamente associada à da população negra norte-americana em sua luta
contra a discriminação racial, por melhores condições de vida e
oportunidades econômicas e na construção e afirmação de uma identidade
sociocultural. Isso, no entanto, não significou que ela foi uma canção
exclusivamente feita por e para negros. Pelo contrário, desde o princípio ela
se caracterizou pela integração racial. Apesar de seus principais intérpretes
e compositores serem negros, havia músicos, produtores e donos de
gravadoras brancos participando do sucesso da soul music.
Também contribuiu para que a música soul emergisse como a forma
de expressão artística mais representativa da comunidade negra norte-
americana o "embranquecimento" do então recém-nascido rock'n'roll. Na
segunda metade dos anos 1950, mesmo com a contribuição fundamental de
"Fats" Domino, Big Joe Turner, Chuck Berry e Little Richard, o rock já era
um gênero visto como um rhythm'n'blues para brancos por boa parte da
comunidade negra norte-americana. Ironicamente, a parcela racista e
reacionária da sociedade branca nos Estados Unidos via o rock como um
produto da cultura negra e uma ameaça aos valores tradicionais da branca.
Entre tantas contradições, o fato é que o rock - um rhythm'n'blues
acelerado, como diria Little Richard - tornou-se um sucesso comercial
graças ao seu "embranquecimento", exemplificado na figura do rei do rock
Elvis Presley, um branco influenciado pela música gospel e com uma voz e
um jeito de dançar típicos da tradição negra.
Com o rock "apropriado" pela indústria fonográfica voltada para o
consumidor branco (fenômeno que já havia ocorrido com o jazz), a
construção de um gênero musical popular que tivesse em sua alma a
essência da negritude passou a ser a meta de alguns músicos, compositores,
intérpretes e produtores ligados ao rhythm'n'blues. A soul music que surgiu
no sul dos Estados Unidos, na mesma região em que havia nascido o
gospel, o blues e o jazz, é profundamente identificada com essa negritude e
tornou-se expressão do orgulho da comunidade negra.
Um dos inventores desse tipo de música, Ray Charles fez canções que
agradavam às plateias negras e brancas. Mas foi James Brown o primeiro
artista da música soul a radicalizar na busca dessa essência da negritude a
literalmente cantar que tinha orgulho de ser negro. O estilo de soul music
desenvolvido por Brown era tão radical que ao longo da década de 1960 ele
se transformou no artista que levou a anarquia à música soul, enfatizando a
sonoridade do baixo e da percussão, para transformá-la em um novo gênero
musical: o funk. Logo nos seus primeiros sucessos como "Please, Please,
Please", Brown mostrava em sua voz uma emoção bruta que exortava as
plateias no melhor estilo gospel e conduzia performances incansáveis no
palco, com movimentos acrobáticos e um jeito original de dançar que criou
uma legião de seguidores, de Mick Jagger a Michael Jackson. Essas
características que iam fundo na busca da essência da negritude perseguida
pela soul music agradavam as plateias negras mas afugentavam as brancas,
que não conseguiam assimilar muito bem o estilo de James Brown.

JAMES BROWN, O SOUL BROTHER NÚMERO UM


James Brown formou o triunvirato que inventou e definiu a soul music,
junto com Ray Charles e Sam Cooke. Mas ele foi além. Brown foi um
artista obstinado a ponto de se autoproclamar "o trabalhador mais ativo do
show business". A crítica musical e os fãs o consideraram o "padrinho do
soul" e o "soul brother número um". Além de ajudar a inventar o gênero,
Brown levou ao extremo as experiências com o som do baixo sincopado e a
percussão para criar um som puramente dançante, com letras sensuais, que
virou uma inusitada variação da música soul e seria chamado de funk. Mas
quase que Brown não consegue fazer nada disso. No parto, ele foi declarado
morto pelos médicos, mas uma obstinada tia insistiu em colocar ar pela
boca do bebê até ele dar o primeiro dos milhares de berros que daria em sua
vida de cantor. Pobre, vivendo em uma família desestruturada, com longas
passagens por reformatórios e tentativas de ser jogador de beisebol e
boxeador, James Brown encontrou na música o meio de realizar sua
obstinada vontade de vencer. Quando corajosamente gravou em 1968 "Say
It Loud, I'm Black and I'm Proud", Brown criou um lema e um hino para a
população negra e fez a soul music alcançar o ápice de sua busca pela
negritude.

Desde o começo, as canções da soul music cantaram principalmente


sobre as relações amorosas, com altas doses de amor romântico e erotismo.
Elas, no entanto, não deixaram de lado questões fundamentais da luta pelos
direitos civis, embora as canções sobre esses temas tenham sido poucas e
esporádicas. Independente disso, o fato é que sejam sobre amores
românticos ou lutas políticas, as canções da soul music viraram símbolo do
orgulho de ser negro em um tempo em que a segregação racial era
respaldada em leis.
TRILHA SONORA DOS DIREITOS CIVIS

Um dos inventores da soul music, Sam Cooke foi assassinado em


1964 pela apavorada gerente de um motel, enquanto ele perseguia uma
amante, ou por uma quadrilha de criminosos a quem ele teria recusado as
propostas, dependendo da versão. Pouco antes disso acontecer, Cooke
compôs e gravou "A Change Is Gonna Come", uma das canções que melhor
expressou o sentimento de esperança dos negros no momento em que a luta
contra a segregação racial e pelos direitos civis estava no seu auge nos
Estados Unidos. Desde meados da década anterior, a questão racial havia se
tornado uma das mais relevantes no país.
Além da herança histórica de abusos desde os tempos da escravidão e
da legislação segregacionista, dois fatos ocorridos nos anos 1950
impulsionaram um movimento nacional pelos direitos civis dos negros. Um
deles foi protagonizado pela ativista Rosa Parks. Em dezembro de 1955, ela
se recusou a ceder seu lugar a um homem branco em um ônibus na cidade
de Montgomery, no Alabama, onde leis segregacionistas estabeleciam
lugares separados para brancos e negros (com os piores para estes).
O ato de Parks fez eclodir uma onda de protestos e boicotes em prol
de reformas na legislação dos direitos civis e inspirou a fundação de uma
associação, cujo líder, um pastor da igreja batista chamado Martin Luther
King Jr., se tornaria a figura mais importante do movimento negro norte-
americano. A proposta de Martin Luther King Jr era conduzir protestos
pacíficos, inspirados nos atos de desobediência civil e de resistência sem o
uso da violência do líder da independência da Índia Mohandas Karamchand
Gandhi. O boicote durou até o ano seguinte, quando a Suprema Corte dos
Estados Unidos declarou inconstitucional a lei de segregação nos ônibus em
Montgomery.
Outro acontecimento que incendiou os protestos contra o racismo
também aconteceu em 1955. O adolescente negro Emmett Till, um garoto
de Chicago que visitava parentes no Mississippi, foi sequestrado e morto
por homens brancos. Till, vindo do norte e provavelmente sem ter noção do
ódio racial em algumas regiões do sul, teria cantado uma garota branca em
uma loja e provocado a ira dos racistas locais.
Mesmo que a maioria delas não fosse engajada nos temas da luta
pelos direitos civis, as canções da soul music viraram a principal trilha
sonora do movimento ao lado de músicas compostas por Bob Dylan e
artistas ativos politicamente. Provavelmente, a principal razão para isso é
que apesar de serem canções cheias de suingue, românticas e feitas para
negros e brancos, elas expressavam o orgulho de ser negro e conseguiam
carregar a marca registrada da cultura negra norte-americana de uma forma
que mesmo quando cantada e tocada por brancos não havia como negar essa
essência cultural. Havia também uma razão econômica. A música soul,
desde o início quando surgiu em Memphis nos estúdios da Stax, tornou-se
um negócio lucrativo. Pela primeira vez na história, os negros do sul dos
Estados Unidos - que já haviam criado o gospel, o blues e o jazz, mas cuja
principal atividade era trabalhar nas plantações de algodão- conseguiam
construir todo um segmento econômico, com uma geração de intérpretes,
compositores, músicos, produtores e donos de gravadoras reconhecidos
nacional e internacionalmente e que estavam ganhando dinheiro com o fruto
de seu talento artístico.
Mas não era nada fácil tocar música soul no sul racista, onde a Klu
Klux Klan cometia suas barbaridades e George Wallace, governador do
Alabama, usava o lema "segregação agora, segregação amanhã, segregação
para sempre". Os artistas e grupos da soul music normalmente enfrentavam
ameaças de bomba, boicotes e perseguições dos defensores da "supremacia
branca" em suas apresentações.
Mesmo assim, a música soul deu aos negros um lugar na sociedade
norte-americana e isso era sua maior força para impulsionar a participação
deles na luta contra a segregação racial. A importância da música soul era
tal que ela começou a substituir o algodão como principal contribuinte para
a economia local em Memphis, ironicamente uma cidade com legislação e
práticas extremamente segregacionistas, onde uma mulher negra ao tocar
em um chapéu ou em um vestido em uma loja era obrigada a comprá-lo,
sem sequer poder experimentá-lo.
A importância e o mercado conquistado pela música soul começou a
dar poder econômico e a elevar a autoestima da população negra e para
fazer isso ela não precisou ter letras engajadas politicamente. Apesar disso,
na política ela também mostrou sua força. Após o assassinato de Martin
Luther King Jr. em Memphis, em 1968, uma série de conflitos raciais
explodiu pelos Estados Unidos. Para acalmar as comunidades negras, os
prefeitos de Washington e Los Angeles, por exemplo, recorreram a James
Brown, um dos criadores da soul music e reconhecido pela população como
o "o padrinho do soul".
APENAS OS FORTES SOBREVIVEM

Para alguns historiadores da música negra norte-americana, o soul é


um gênero tipicamente sulista, que surgiu principalmente na gravadora
Stax, em Memphis (Tennesseee) ou foi composta e interpretada por músicos
do sul contratados por gravadoras nortistas como a Atlantic Records. Para
eles, a soul music e a canção negra produzida pela Motown seriam distintas.
O crítico e historiador Peter Guralnick, na obra "Sweet Soul Music: Rhythm
and Blues and the Southern Dream of Freedom", a define como "um tipo de
música pouco contida, baseada na música gospel, reveladora de emoções,
que se desenvolveu no rastro do sucesso de Ray Charles, em 1954, até seu
completo desabrochar, com a Motown, no início dos anos 1960". Apesar de
reconhecer o auge da soul music com a Motown, o próprio Guralnick
ressalta que quando ele fala de soul music está se referindo a um fenômeno
cultural e geograficamente sulista, enquanto a Motown, gravadora sediada
inicialmente em Detroit (Michigan), produzia uma sonoridade
contemporânea à soul music mas que era mais inclinada ao pop, a
consumidores brancos e aos padrões da indústria fonográfica.
Outros críticos e historiadores, no entanto, preferem ver a soul music
como um fenômeno nacional nos Estados Unidos, sem negar suas raízes
geográficas sulistas mas a entendendo como um fenômeno histórico e
cultural. Alguns outros, reconhecendo esse papel histórico dela, dizem que
a música soul surgiu, cresceu e entrou em declínio junto com o
envolvimento nacional dos negros norte-americanos no movimento pelos
direitos civis. O processo de urbanização da música negra do sul, de
secularização do gospel cantado nas igrejas e de desistência dos artistas
negros em trilharem pelo caminho do rock'n'roll também são fatores
considerados importantes pelos estudiosos para o surgimento e crescimento
da música soul a partir do fim da década de 1950.
O que todos são unânimes em reconhecer é que a história da soul
music começa com Ray Charles e que sua explosão se dá a partir de
Memphis, cidade sulista localizada no entroncamento da rota dos negros
que migravam em direção ao norte e que se tornou o principal centro
urbano de desenvolvimento da cultura negra nos Estados Unidos.
Os fatos que precederam o surgimento da soul music remetem ao fim
dos anos 1940, quando Louis Jordan começou a tocar um tipo de música
que não era jazz ou blues, e sim uma combinação dos dois com uma sessão
rítmica inovadora. Aquele novo tipo de música seria chamado de
rhythm'n'blues e era algo extremamente dançante e sensual. O novo ritmo
logo virou um sucesso junto à população negra. Um dos primeiros a
notarem a novidade foi uma dupla de imigrantes turcos que havia fundado
em Nova York uma gravadora, a Atlantic Records. Fundada em 1947, por
Ahmet Ertegün e Herb Abramson, a Atlantic tinha vários artistas de blues e
jazz em seu catálogo. O rhythm'n'blues ganhava variações cada vez mais
dançantes e contagiantes fazendo com que plateias "segregadas" ignorassem
as barreiras e se misturassem nos shows de artistas negros.
Na primeira metade da década de 1950, Ertegün ao ouvir as canções
que Ray Charles estava compondo resolveu apostar no rhythm'n'blues
tocado por ele. Atuando como pianista profissional desde a adolescência -
tocando para artistas ascendentes da música negra como Ruth Brown- e
inspirado por aquela sonoridade inventada por Louis Jordan, Ray Charles
juntou o rhythm'n'blues ao gospel e a letras sensuais e românticas, criando
uma canção que venceu a barreira da cor da pele e que em pouco tempo se
transformaria em sucesso para audiências brancas e negras. Nascia a soul
music.

OS DOIS CAMINHOS DO RHYTHM'N'BLUES


Ray Charles não foi o primeiro a transformar o rhythm'n'blues em algo
novo e que conseguia conquistar plateias bancas e negras. Desde o final da
década de 1940, uma espécie de rhythm'n'blues acelerado, muito
influenciado pelo boogie-woogie, um estilo percussivo e rítmico tocado por
pianistas negros desde os anos 1920, começou a fazer sucesso fora das
comunidades negras. Artistas negros como "Fats" Domino, Big Joe Turner e
Chuck Berry, entre outros, estavam transformando o rhythm'n'blues em algo
que seria chamado de rock'n'roll. Quase que simultaneamente, e sem
ignorar o então emergente rock'n'roll, Ray Charles, James Brown e Sam
Cooke levariam outros elementos da música negra, como o gospel, para o
rhythm'n'blues, para transformá-lo em música soul. Enquanto isso, o
rock'n'roll passou a ser visto na segunda metade dos anos 1950 como uma
versão menos "suja" do rhythm'n'blues, uma versão mais "aceitável" feita
para tocar em rádios e em shows para audiências brancas.

Já famoso por ter emplacado canções como "Mess Around", "It


Should Have Been Me" e "Don't You Know" nos anos anteriores, Ray
Charles compôs e gravou "I Got a Woman" em 1954 estabelecendo os
padrões estéticos que norteariam a soul music ao cometer o "sacrilégio" de
introduzir o gospel no rhythm'n'blues. Ele romperia definitivamente a
barreira racial em 1959 com a sexy "What'd I Say", uma das obras-primas
da soul music. Charles conseguiu criar um tipo de canção que não só tinha a
tão sonhada "alma" ou "essência" da música negra, perseguida pelos
músicos de jazz da década anterior, como também expressava as esperanças
e sonhos de uma geração de negros norte-americanos. A receita de pôr
gospel e muita sensualidade no rhythm'n'blues seria usada, quase ao mesmo
tempo em que Ray Charles a desenvolvia, por outros dois fundadores da
música soul: James Brown e Sam Cooke. A soul music colocava toda a sua
sensualidade à mostra.
Aretha Franklin, a “rainha da soul music”, em 1968
(Michael Ochs Archives/Getty Images)
SENSUALIDADE E ORGULHO À FLOR DA
PELE

Sam Cooke era um bem-sucedido cantor de gospel quando em 1957


gravou a canção "You Send Me" e ajudou a definir o som da soul music.
Até aquele momento a população branca dos Estados Unidos associava a
canção religiosa dos negros ao antigo spiritual retratado em livros como "A
Cabana do Pai Tomás", um clássico do século 19 que denunciava de forma
realista as condições dos escravos negros no país e que ajudou a
desenvolver o sentimento abolicionista. Mas desde os anos 1940, o gospel
cantado pelos negros nas igrejas ou fora dela era bem diferente do spirituals
do tempo da escravidão. Ele era um gênero musical consolidado na cultura
negra norte-americana, com vários grupos e artistas considerados estrelas e
com vendas crescentes de discos e apresentações. Àquela altura, o gospel
começava a extrapolar seu sentido religioso influenciando outros gêneros
bem profanos como o recém-nascido rhythm'n'blues e o emergente
rock'n'roll, principalmente pela sua proposta harmônica, seus estilo vocal e
a fórmula do "chamado-e-resposta".
Na década de 1950, Sam Cooke era uma estrela da música gospel.
Influenciado por Rebert H. Harris, então uma lenda viva do gospel em
Chicago, ele ingressou no grupo The Soul Stirrers, um dos mais famosos do
gênero nos Estados Unidos. Sua excepcional voz alçou as canções do grupo
a outro patamar levando o The Soul Stirrers a viajar pelo país para
concorridas apresentações nas igrejas das comunidades negras nas cidades
em que passavam. A voz poderosa e suave de Cooke o diferenciava dos
tradicionais cantores de gospel e se tornaria uma das características
marcantes da sonoridade da soul music. Isso começou a acontecer quando
Sam Cooke desejou ir além do universo gospel e cantar música laica, quase
profana. Na sua primeira tentativa, ele usou o nome artístico Dale Cook e
gravou "Lovable". Alguns meses depois, ele largou o The Soul Stirrers e
gravou como Sam Cooke o que seria seu primeiro grande sucesso, "You
Send Me", um clássico da música soul. Com o sucesso, ele pôs muito mais
de gospel naquele nascente gênero da canção pop do que Ray Charles tinha
feito até então. A fórmula das canções de Cooke as fizeram estar entre as
preferidas de garotos e garotas apaixonados e nas vitrolas que consolavam
corações solitários ou animavam bailinhos de adolescentes.
Mas nem só sobre corações partidos e amores românticos eram as
canções de Cooke. Inspirado pelas composições de Bob Dylan, ele escreveu
e gravou "A Change Is Gonna Come" considerada uma das primeiras
canções engajadas com os objetivos políticos do movimento pelos direitos
civis produzidas pela soul music. Àquela altura Cooke não só era um dos
principais nomes da música soul como também um atuante produtor
responsável por descobrir e produzir outros artistas do gênero. Morto
precocemente em 1964, Cooke tornou-se referência para uma geração de
novos artistas negros que seguiram seus passos da música gospel para o
estilo pop da soul music, como Otis Redding e Aretha Franklin.
Otis Redding foi o herdeiro do estilo e da voz sedutores de Cooke. Ao
mesmo tempo integrante e motorista de uma banda da Geórgia, a Johnny
Jenkins’s Pinetoppers, Redding teve seu excepcional talento descoberto
quando seu grupo foi para Memphis gravar um disco na Stax, no começo
dos anos 1960. Ao final da sessão de gravação, Redding cantou duas
composições próprias. Uma delas era a sensacional balada “These Arms of
Mine” (1962). Nos anos seguintes, Otis Redding virou o paradigma para
todos os cantores negros, com seu tom emocional, poderoso e sincero. Ele
era também um excepcional compositor e entre 1964 e 1967, ano em que
morreu em um acidente de avião, escreveu várias obras-primas da música
soul como “I’ve Been Loving You Too Long” (composta em parceria com
Jerry Butler), “Respect”, “Mr. Pitiful”, “I Can’t Turn You Loose” e “(Sittin’
on) The Dock of the Bay”.
A sensualidade na música soul alcançaria o seu clímax na metade dos
anos 60 com James Brown e sua mistura de rhythm'n'blues, jazz e gospel
que transformou o soul em algo radicalmente dançante, em um estilo que
seria chamado de funk e tornaria-se um dos mais influentes gêneros da
música pop nos anos 1970. Filho pródigo da soul music, o funk era, na
segunda metade da década de 1960, o ritmo preferido de muitos negros
norte-americanos para celebrar seu estilo de vida. As canções de James
Brown, o padrinho do soul, serviram como combustível para engajamentos
políticos como o defendido pelo Partido dos Panteras Negras e pelo
movimento liderado por Malcolm X. Brown, no entanto, não compartilhava
dos mesmos ideais políticos dos radicais defensores do "black power" e
para ele o "poder negro" viria do enriquecimento e da ascensão social da
população negra.
Dizer alto e em bom som que se era negro com orgulho não foi algo
que se limitou a James Brown e outros artistas do funk, como Sly & The
Family Stone. A soul music continuava a produzir artistas que com suas
canções predominantemente românticas elevavam a auto-estima da
comunidade negra. A dupla Sam Moore e Dave Prater fazia exatamente isso
em canções como "Hold On , I'm Comin'", "Soul Man" e "Thank You".
Isaac Hayes, que escreveu e gravou "Theme from Shaft" e foi um precursor
do rap com seu disco "Hot Buttered Soul", e Wilson Picket, que, com seu
estilo agressivo e machista reforçado pela voz rouca e áspera, emplacava
sucesso atrás de sucesso, como "Midnight Hour"e "Mustang Sally", eram
outros nomes ascendentes da soul muisc na segunda metade da década de
1960. Dentre esses artistas geniais estava também uma mulher: a cantora
Aretha Franklin, reconhecida como uma excepcional intérprete desde
criança quando cantava música gospel acompanhando seu pai, um famoso
ministro da igreja batista. Em 1960, aos 18 anos de idade, Aretha trocou a
música religiosa pela laica, mostrando sua versatilidade e talento para
cantar blues, jazz, pop e vários outros gêneros. Mas foi em 1966, quando foi
contratada pela Atlantic Records, que Aretha começou a ascender ao trono
da música soul.

POR QUE ARETHA FRANKLIN É A RAINHA DO SOUL


Aretha Franklin foi coroada a rainha da música soul ao fazer uma inventiva
mistura do sagrado do gospel com o profano do jazz e do rhythm'n'blues.
Sua voz poderosa e sensual aproximou definitivamente a soul music do pop,
fórmula que a levou a emplacar 20 canções no topo das paradas de sucesso
de rhythm'n'blues. Tal sucesso começou em 1967, quando ela gravou “I
Never Loved a Man (the Way I Love You)”. Finalmente todos conseguiram
ouvir o que só os críticos e produtores tinham reconhecido até então: uma
excepcional voz que revelava claramente as influências do blues e do
gospel e levava a soul music a um novo caminho. Apesar de estar na estrada
desde o começo daquela década, só quando foi para a Atlantic Records - a
gravadora dos imigrantes turcos que se especializou em música negra norte-
americana - Aretha Franklin conseguiu encontrar o gênero que melhor
revelava seu talento. Um talento que já era conhecido pelos frequentadores
da igreja batista nacionalmente desde que ela, aos 14 anos de idade, gravou
o álbum "The Gospel Sound of Aretha Franklin". "Respect", uma versão do
clássico de Otis Redding, gravado por Aretha também em 1967 logo virou
um hino da consciência negra e também contra todo tipo de abusos,
agressões e discriminações sexuais e raciais. Chamada de "Lady Soul", ela
foi a primeira mulher a fazer parte do Rock and Roll Hall of Fame.
O SOM DA MOTOWN

Bob Dylan disse uma vez que Smokey Robinson era o maior poeta
vivo da América. Robinson era então um dos expoentes da soul music.
Cantor, compositor e parceiro de Berry Gordy Jr. na fábrica de música
negra que foi a gravadora Motown durante os anos 1960. O talento de
Robinson ajudou a construir uma nova versão da soul music, com canções
que conquistaram a juventude negra e branca. Mas foi seu visionário
parceiro quem criou e fez o som da Motown ser o maior sucesso da música
negra norte-americana.
Berry Gordy Jr. levou para a indústria fonográfica o conceito de
"linha de produção", similar ao que existia nas grandes indústrias
automobilísticas de Detroit (Michigan), cidade onde a Motown nasceu e
viveu sua época de ouro. Quando ele resolveu fundar uma gravadora de
artistas negros que conquistasse a audiência branca, no final dos anos 1950,
a soul music estava estabelecendo sua estética com os primeiros sucessos de
Ray Charles e James Brown. Berry Gordy Jr. inspirou-se no que estava
acontecendo, e tomou US$ 800 emprestado de sua família, para criar uma
sonoridade cuja marca principal eram baladas que misturaram as
tradicionais harmonias da música negra e do gospel com a batida do
rhythm'n'blues. Mas para fazer isso soar diferente da soul music feita pro
artistas da Stax e da Atlantic, ele colocou uma dose muito mais acentuada
de elementos da música pop e a fez intencionalmente atraente à audiência
branca. Para manter o controle e a qualidade do som da Motown, ele
implantou uma forma de produzir canções que era inspirado na tradicional
divisão de trabalho industrial, exemplificado principalmente pelas grandes
indústrias de Detroit, sua cidade natal.

O DONO DO SOM DA MOTOWN


Berry Gordy Jr. criou a mais importante e bem-sucedida gravadora
comandada por um negro na história. Até então as principais gravadoras da
soul music - a Stax e a Atlantic - eram dirigidas por brancos. Com a
Motown, Gordy queria construir algo que o tornasse participante do sonho
americano de ganhar dinheiro e fazer sucesso. Após abandonar a escola,
tentar carreira como lutador de boxe e como militar no exército dos Estados
Unidos, Gordy voltou a Detroit para abrir uma loja de discos de jazz e
produzir canções que ele mesmo compunha. Ao conhecer num show de
calouros local e tornar-se amigo do talentoso William "Smokey" Robinson,
ele vislumbrou a possibilidade de uma gravadora de negros voltada para o
mercado branco dar certo. Personalista e polêmico, Gordy era visto como
um "chefão" impiedoso por parte dos artistas que trabalharam com ele e por
alguns historiadores e críticos. Apesar disso, é inegável que sua ideia de
criar uma estrutura de produção musical, com compositores e uma banda de
apoio fixos, sua capacidade empresarial e seu talento para criar uma
fórmula musical cheia de ricas harmonias e uma batida suave mas vigorosa
fizeram dele o rei do som da Motown. No fim dos anos 1960, ela era uma
das cinco maiores gravadoras dos Estados Unidos. Gordy atribuiu o sucesso
da Motown a essa ideia de "linha de produção", onde o mais importante era
a qualidade da equipe - compositores, músicos e intérpretes - e não os
talentos individuais.
Detroit, por sediar as principais indústrias automobilísticas dos
Estados Unidos, era conhecida como "motor city" (cidade do automóvel) ou
pelo apelido de "motown" ("motor town"). A cidade não tinha uma
identidade musical própria, como tinham Chicago, Nova York e Nova
Orleans. Ao chamar sua gravadora pelo apelido de Detroit, Gordy faria a
sua cidade natal identificar-se com o novo som que estava criando. A
Motown Record Corporation começou numa casa modesta, mas cheia de
ambição, como revelava a placa colocada em sua porta de entrada:
"Hitsville" (algo como "lugar de sucessos").
Antes de fundar a Motown, Gordy já tinha composto várias canções,
inclusive alguns sucessos do rhythm'n'blues com Jackie Wilson, conhecido
também como "Mr. Excitement", um ex-integrante do grupo The Dominoes
a quem Gordy foi apresentado pelo cantor Al Green. Com a sua própria
gravadora aberta - no início, ela era dividida em dois selos: Tamla e
Motown -, Gordy compôs "Money" para ser gravada por Barret Song. A
canção foi o primeiro sucesso da Motown e nos anos seguintes ganhou
várias versões roqueiras feitas pelos Beatles, Rolling Stones e Led Zeppelin,
entre outros. Mas foi em parceria com Smokey Robinson, um talentoso
cantor e compositor do grupo Miracles, que Gordy fez da Motown a fábrica
de sucessos que ela foi.
A primeira parceria dos dois a fazer sucesso foi a canção "Shop
Around", lançada pelos Miracles em 1960. Apesar da parceria com
Robinson, que viria a ser o vice-presidente da Motown, no início, Gordy fez
dela uma empresa familiar com suas irmãs e cunhados ocupando posições
importantes. Mas ele também contratou gente experiente da indústria
fonográfica para cuidar, por exemplo, do marketing da gravadora. Além de
centralizar o processo de criação das músicas, Gordy almejava ter total
controle sobre a sonoridade que era produzida nos estúdios de sua
gravadora. Para tanto, formou uma banda exclusiva que acompanharia
todos os artistas da Motown: os Funk Brothers. A ideia não era original,
uma vez que a Stax também tinha um grupo para acompanhar seus músicos,
o excepcional Booker T. & the M.G.s. Os Funk Brothers, no entanto, foram
essenciais na construção do som e do sonho da Motown. A estrutura
artística da gravadora - seus compositores, músicos e intérpretes - eram
assalariados, como outros trabalhadores dos setores econômicos
tradicionais, e apenas alguns poucos eram agraciados com participações nos
resultados das vendagens.
Com a estrutura estabelecida, Gordy "foi às compras", isto é, saiu em
busca de artistas negros talentosos que ele pudesse produzir e moldar ao
som da Motown. Não foi difícil encontrá-los. Gordy logo reconheceu o
talento do grupo Marvelettes, de Mary Wells e de um quarteto de garotas
adolescentes chamado The Primettes. Em 1961, Florence Ballard, Mary
Wilson, Barbara Martin e Diana Ross assinaram com a Motown e trocaram
o nome de Primettes para The Supremes. Como um trio a partir de 1962,
com a saída de Barbara Martin, o grupo tornaria-se rapidamente o maior
sucesso comercial da gravadora.
A primeira metade da década de 1960 trazia muitas esperanças para a
população negra nos Estados Unidos. As conquistas do movimento pelos
direitos civis, a liderança de Martin Luther King Jr., a ascensão do
presidente democrata John F. Kennedy e a música soul criaram uma
atmosfera otimista, principalmente entre os jovens. A Motown apostou
nesse alto-astral com canções que o alimentavam.

A FÓRMULA DO SOM DA MOTOWN


Berry Gordy Jr. sabia que os admiradores da soul music eram, na sua
maioria, jovens que ouviam as canções nos rádios de seus carros ou de suas
casas. A baixa qualidade dos equipamentos distorcia e prejudicava
significativamente o som produzido nos estúdios e fazia tanto a parte
instrumental como a voz soarem sem peso e com baixa qualidade. Para
superar isso, Gordy passou a fazer a mixagem das canções enfatizando a
harmonia e as belas vozes de seus intérpretes, a contagiante batida que saía
da bateria e a intensidade do baixo sincopado que causava boa parte do
impacto dançante das canções. Juntava-se a isso, letras que criavam
cenários profundamente românticos para casais apaixonados ou que
consolavam corações partidos por alguma desilusão amorosa. A fórmula
deu tão certo nos anos 1960 que ao final daquela década a Motown era uma
das cinco gigantes da indústria fonográfica norte-americana.

A fórmula do som da Motown enfatizava o clima otimista em canções


como "Dancing in the Street", que se tornou um sucesso na interpretação de
Martha & The Vandellas. Além disso, naquele momento, não era só a soul
music que colocava a música negra norte-americana em evidência. A
(re)descoberta do blues do delta do Mississippi e elétrico de Chicago pelas
então emergentes bandas de rock britânicas, como The Rolling Stones, The
Who e The Yardbirds, entre outras, também ajudava a elevar a auto-estima e
incentivava a integração entre brancos e negros. Uma das razões para isso
era a Chess Records, gravadora de Chicago que, desde o começo dos anos
1950, gravava e lançava artistas negros de blues, jazz, rhythm'n'blues e
rock'n'roll, como Muddy Waters, Willie Dixon, Bo Diddley, Chuck Berry,
Etta James e Howlin' Wolf, fazendo o som da música negra tornar-se
conhecido dentro e fora dos Estados Unidos. Com Etta James e suas
influências da música gospel, a Chess Records também apostou numa soul
music sofisticada e emplacou vários sucessos nas paradas, como "The Fool
That I Am" e "Something's Got a Hold On Me".
No entanto, enquanto as outras gravadoras da soul music aguardavam
descobrir um talento para produzi-lo, ainda que isso não fosse muito difícil
dada a qualidade dos intérpretes negros norte-americanos, a Motown
mantinha uma linha de produção com "times" de compositores a postos para
fazer canções sob encomenda para os artistas da gravadora. Entre eles,
estavam o próprio Berry Gordy Jr., Smokey Robinson e o famoso trio HDH,
formado pelos irmãos Brian e Eddie Holland e Lamont Dozier. Essa equipe
de compositores criou a maior parte das canções gravadas pelos artistas da
gravadora. E os resultados desse processo foram excepcionais. Num
mercado em que, em média, 30% das canções lançadas conseguem agradar
ao público, a Motown conseguia emplacar 65% de suas canções nas paradas
de sucesso.

GÊNIO MUSICAL
Dentro da fábrica de sucessos que era a Motown um artista se destacava:
Smokey Robinson. Ele era um excepcional compositor, intérprete e
produtor. Quando se pensa nos principais hits da Motown, como "My Girl",
gravada pelos Temptations, "I'll Be Doggone", com Marvin Gaye, "My
Guy", com Mary Wells, ou "Going to a Go-Go", com o The Miracles
(depois regravada pelos Rolling Stones), neles estão a marca criativa de
Robinson, um dos mais geniais e prolíficos compositores da Motown. Ele
conheceu Berry Gordy Jr. quando ainda fazia parte do grupo The Matadors
e encontrou no futuro fundador da Motown um mentor profissional e um
grande amigo. Com Gordy ele aprendeu e aplicou duas regras fundamentais
para a composição das canções: fazer com que seus versos reflitam uma
ideia, e não apenas um conjunto de frases com rimas, e contar uma história
completa. Suas melhores composições seguem essa fórmula à risca, como
"The Tracks of My Tears" e "I Second that Emotion", que fizeram Bob
Dylan chamá-lo de "o maior poeta vivo da América". Para muitos, Smokey
Robinson foi o melhor compositor da soul music.

Durante boa parte da década de 1960 as atenções de Gordy estavam


voltados para as Supremes. As vozes e o carisma das três garotas que
viviam nos conjuntos habitacionais para trabalhadores pobres de Detroit
emplacavam sucessos seguidos com canções dançantes escritas pelo HDH,
trio de compositores fixos da Motown. Mas para agradar ao público branco
não bastava a boa música. Pensando nisso, Gordy transformou o visual e o
comportamento das três adolescentes pobres no de princesas. O grupo
vendia como nenhum outro da Motown e emplacou 12 canções no topo da
parada de sucesso, tornando-se o conjunto feminino de maior sucesso dos
anos 1960. Salvo algumas exceções, como o bem-sucedido Temptations,
grupo masculino que teve Smokey Robinson como primeiro mentor deles
na Motown, vários artistas da gravadora foram relegados a segundo plano
por conta da atenção dada para as Supremes. A cantora Gladys Knight, que
com seu grupo The Pips, parecia ser a nova promessa da Motown foi uma
dentre os que sofreram com isso. Apesar do talento fora-de-série de Knight,
ela não recebeu a devida atenção da gravadora. O grupo Four Tops também
padeceu com a atenção concentrada nas Supremes e, especialmente, em
Diana Ross. O grupo, que tinha feito muito sucesso com canções como
"Reach Out, I'll Be There", resistiu um pouco mais, mas no início da década
de 1970 deixou a gravadora. Gordy, no entanto, não desprezou todos os
talentos excepcionais que estavam em suas mãos. Ele soube muito bem dar
atenção e conduzir as carreiras do "pequeno" Stevie Wonder, do grupo
Jackson 5, com seu cantor prodígio Michael Jackson, e de Marvin Gaye.

MARVIN GAYE, A VOZ MAIS SENSUAL DO SOUL


Marvin Gaye era um dos cunhados de Berry Gordy Jr. e nos primeiros anos
da Motown atuava como baterista e pianista de estúdio. Gaye tinha uma voz
excepcional e versátil que o fazia interpretar diferentes tipos de canções.
Além disso, sabia explorar muito bem seu carisma e seu estilo sensual. Para
completar, elevou ao máximo o romantismo da soul music em duetos com
grandes cantoras como Mary Wells, Kim Weston e Tammi Terrel.
Problemático, muito em função da difícil relação com o pai, um enérgico
pastor da igreja pentecostal, e com tendências suicidas, Gaye tinha atitudes
artísticas, como evitar aparições na TV, raramente apresentar-se ao vivo ou
não aparecer em alguns de seus shows, que provavelmente refletiam seus
conflitos internos e sua dependência das drogas. Isso tudo, no entanto, não
impediu que ele se tornasse uma lenda da soul music e provavelmente o
mais famoso intérprete dessa época dourada da música negra. Na sua voz,
sucessos como "Sexual Healing", "How Sweet It Is (To Be Loved by You)",
"Let's Get It On", "Heard It Through the Grapevine", "Ain't No Mountain
High Enough" e "What's Going On" continuam a ser as obras-primas da
soul music mais executadas nas rádios do mundo inteiro. Gaye morreu em
1984, um dia antes de completar seus 45 anos de idade, assassinado com
um tiro pelo próprio pai, após uma violenta discussão.
Em 1967 a fórmula de linha de produção musical com artistas
assalariados, que até então tinha sido um sucesso, começou a mostrar seus
efeitos colaterais. A voz mais poderosa e líder das Supremes, Florence
Ballard, incomodada com o destaque dado a Diana Ross e com os 300
dólares que, segundo ela, recebia por semana, enquanto a gravadora
ganhava milhões com seu grupo, foi "demitida" por Gordy. O trio de
compositores HDH, também reclamando dos salários baixos e da pouca
participação nos lucros da gravadora, saiu deixando uma lacuna que não
seria mais preenchida. Enquanto a revolucionária estrutura da Motown
começava a desandar, Gordy ainda mantinha alguns talentos em ascensão
que fizeram a gravadora terminar a década de 1960 e entrar nos anos 1970
mantendo a soul music em alta.

GAROTOS PRODÍGIOS
Durante os anos 1960, Gordy cuidou pessoalmente e muito de perto de dois
meninos que tinham um talento excepcional: "Little" Stevie Wonder e
Michael Jackson. No começo daquela década, Steveland Morris tinha 11
anos de idade quando foi apresentado a Berry Gordy Jr. O dono da Motown
reconheceu imediatamente o fenomenal talento do garoto e lhe deu o nome
artístico de "Little" Stevie Wonder. Multi-instrumentista, compositor e
intérprete, com apensas treze anos e em seu terceiro single, Wonder
alcançou com a canção "Fingertrips (Part 2)" o primeiro lugar na parada de
sucesso. Dentro do esquema de linha de produção da Motown, Wonder
produziu inúmeros sucessos até 1971, quando completou 21 anos, ganhou
sua emanciapação e deixou a gravadora. Naquela época, outro menino
prodígio já havia impressionado Gordy. Em 1969, o dono da Motown
conheceu através da cantora Gladys Knight um grupo de cinco jovens
irmãos negros da pequena cidade de Gary (Indiana), que cantavam e
dançavam soul music de forma exuberante. O destaque era o mais novo
deles, chamado Michael Jackson, que como "Little" Stevie Wonder, tinha
apenas 11 anos de idade quando assinou com a Motown. Centrado na voz e
nas coreografias (inspiradas nos passos de James Brown) de Michael,
Gordy fez dos Jackson 5 um dos últimos grandes sucessos da Motown.
Canções como "I Want You Back”, “ABC”, “The Love You Save” e “I’ll Be
There” viraram hits imediatos.

No começo dos anos 1970, Marvin Gaye quebrou as regras da linha


de montagem da Motown, ao assumir totalmente o comando da produção de
seu disco "What's Gojng On". A não ser Smokey Robinson (que, lembre-se,
também era vice-presidente da gravadora), nenhum outro artista da Motown
tinha tido esse controle sobre uma obra. Apesar da relutância da gravadora,
inclusive em lançar o disco após finalizado, a opção de dar liberdade a Gaye
mostrou-se acertada e o álbum estreou em primeiro lugar nas paradas de
sucesso tornando-se um dos melhores feitos pela Motown. A obra-prima de
Marvin Gaye tinha canções sobre o amor, mas também sobre a guerra e
temas políticos, refletindo as mudanças na atmosfera e nas perspectivas de
vida dos negros naquele momento em que as esperanças que os anos 1960
trouxeram começavam a se dissipar.
Os acontecimentos do fim daquela década - com a escalada da Guerra
do Vietnã, a eclosão de violentos conflitos raciais pelos Estados Unidos,
inclusive em Detroit, e o assassinato de Martin Luther King Jr. - criaram
uma atmosfera de medo e pessimismo que atingiu em cheio o som da
Motown. Concebida para vender otimismo e harmonia entre brancos e
negros, baseada em canções ultrarromânticas e numa certa visão inocente e
esperançosa, a soul music da Motown combinava cada vez menos com os
novos tempos. A gravadora mudou-se definitivamente para Los Angeles em
1972, mas a debandada de importantes artistas que não concordavam com o
que eles consideravam uma injusta distribuição de riquezas da gravadora
nem mais com sua ideia de "linha de produção" musical fizeram com que a
Motown fosse perdendo paulatinamente sua importância, ao mesmo tempo
em que a soul music também ia deixando de ser o mais representativo
gênero da música negra norte-americana, com a ascensão do funk e o
nascimento do rap.

Marvin Gaye no Royal Albert Hall, em Londres, em 1979


(Foto de David Corio/Michael Ochs Archives/Getty Images)
O FIM DA INOCÊNCIA

Respeito foi provavelmente a questão central da soul music. James


Brown fazia questão de se apresentar vestindo terno e gravata para mostrar
e exigir respeito com sua música e com as comunidades onde tocava. Otis
Redding escreveu "Respect", que na voz de Aretha Franklin virou não só
um sucesso nacional como também um hino da população negra norte-
americana. A Motown manteve escola de boas maneiras que ensinava seus
artistas a se comportarem, falarem e a se vestirem da melhor maneira
possível, de forma a respeitarem e serem respeitados pelas audiências tanto
negras como brancas (uma das maiores estrelas da Motowm, Diana Ross,
que interpretava as canções demonstrando todos os seus sentimentos em
suas expressões faciais, teve que aprender a ser mais contida, pois nenhuma
audiência toleraria ver suas caretas durante as duas horas de um show).
Dos primeiros sucessos de Ray Charles até o auge da Motown, a soul
music fez canções que buscaram uma integração entre negros e brancos e
para que isso acontecesse o respeito era um sentimento essencial.
Simbolicamente, o ponto alto desse respeito foi alcançado quatro décadas
após o auge da música soul, com a eleição do primeiro presidente negro da
história dos Estados Unidos. E não foi por acaso que a artista convidada
para cantar na cerimônia de posse foi Aretha Franklin, a rainha da soul
music e quem imortalizou a canção "Respect" no imaginário do gênero. A
dimensão espiritual da música soul associou-se intimamente com as ações
práticas e não-violentas do movimento pelos direitos civis ao longo das
décadas de 1950 e 1960. Canções predominantemente de amor procuraram
vencer preconceitos e barreiras raciais, principalmente entre os jovens. A
Motown buscou essa integração intencionalmente e considerava que suas
canções feitas por artistas negros representavam a América jovem, no
entanto, à medida que se caminhou para o fim daquela década, e a
atmosfera de otimismo das mudanças raciais e sociais foi se esvaindo, a
soul music permaneceu sendo a canção apenas da América jovem e negra.

SOUL MUSIC NA TERRA DA RAINHA


A soul music influenciou um dos mais polêmicos movimentos jovens
ingleses: o mod. As canções e o jeito de se vestir dos negros urbanos norte-
americanos inspiraram os adolescentes de Londres nos anos 1960. Esses
jovens eram chamados de "modernistas" (e depois pela abreviação "mod"),
em função do seu estilo de vestir e viver, baseado em roupas elegantes, uso
de lambretas, festas e ingestão de anfetaminas. Admiradores do bebop, do
rhythm'n'blues e do rock, os mods identificavam-se com os artistas de soul
music da Motown e formavam gangues com postura arrogante e visual
estilizado - o que incluía ternos bem talhados, sapatos italianos e cabelos de
cortes diferentes e curtos. A soul music, principalmente da Motown,
também foi muito admirada na região central da Inglaterra a ponto de criar
uma cena musical local chamada de "northern soul".

O fim da era da inocência na soul music veio em 1968 com o


assassinato de Martin Luther King Jr. O crescente desencanto com o ritmo
das mudanças das condições sociais e oportunidades para a população
negra, apesar das conquistas legais contra a segregação obtidas pelo
movimento dos direitos civis, transformou-se em violentas revoltas e
manifestações de ruas após King ser morto em Memphis. Conflitos raciais
eclodiram em várias cidades norte-americanas e alguns prefeitos tiveram
que pedir para que James Brown, o padrinho da soul music, acalmasse os
ânimos.
Àquela altura, com o desencanto e os horrores da Guerra do Vietnã e
dos conflitos raciais, não havia mais espaço para visões inocentes da
realidade e a soul music refletiu isso nas suas canções, como nas letras
engajadas do grupo The Impressions, de Chicago, que havia lançado em
1965 "People Get Ready". Curtis Mayfield, compositor do The Impressions,
continuou durante a segunda metade dos anos 1960 a fazer letras com
mensagens que inspiravam o movimento pelos direitos civis. Mesmo astros
da Motown, como Marvin Gaye, e da Stax, como Isaac Hayes, passaram a
refletir em suas canções, sem perder a sensualidade e o suingue originais da
soul music, temas relacionados às duras condições sociais de vida dos
negros, que, apesar dos avanços e conquistas, continuavam em grande parte
a viver em guetos.
Apesar de até meados da década de 1970 a soul music emplacar
vários sucessos, com Aretha Franklin, Diana Ross, Jackson 5, Marvin Gaye
e Stevie Wonder, ela foi perdendo espaço para gêneros que refletiram
melhor aqueles novos tempos. Em 1975, a falência da pioneira gravadora
Stax foi o marco final de uma era. Eram tempos em que o otimismo e a
esperança dos anos 1960 não existiam mais.
GRANDES BANDAS DA SOUL MUSIC

Um dos principais segredos da fórmula de sucesso da soul music foi a


manutenção pelas gravadoras de grupos instrumentais fixos que
acompanhavam os principais artistas do gênero. As duas principais
gravadoras da música soul, a Stax e a Motown, mantiveram bandas de
estúdio que foram fundamentais para a criação de sonoridades particulares,
que diferenciaram a soul music feita pela gravadora de Memphis do som da
Motown.
Em 1961, Booker T. Jones, um talentoso tecladista de estúdio da Stax
Records, juntou-se ao guitarrista Steve Cropper, integrante do grupo Mar-
Keys, ao baixista Lewis Steinberg, que permaneceria com eles pouco tempo
e seria substituído por Donald "Duck" Dunn, e ao baterista Al Jackson Jr.
para formar uma banda que funcionaria como uma unidade de estúdio para
a Stax. Chamado de Booker T. & Memphis Group (ou, mais popularmente,
de Booker T. & MG's.), o grupo praticamente estabeleceu a sonoridade que
caracterizaria os artistas da Stax Records. Booker T. & MG's tinha brancos
e negros em sua formação, refletindo a intenção de integração racial
proposta pela soul music desde o seus primeiros anos. O grupo não só foi
responsável por fazer a base musical dos principais artistas da Stax, como
Otis Redding, Wilson Picket e Sam & Dave, entre outros, como também
lançou obras-primas instrumentais que viraram clássicos da soul muisc,
como "Green Onions", “Boot-Leg”, “Hip Hug-Her” e “Time Is Tight”.
Em Detroit, na mesma época, a Motown montou sua versão do
Booker T. & MG's. Apelidado de The Funk Brothers, o grupo também era
multirracial e liderado por um pianista, primeiro Choker Campbell e,
depois, o talentoso Earl Van Dyke. No coração rítmico dos Funk Brothers
estavam o baixista James Jamerson e o baterista Benny "Papa Zita"
Benjamin, além de virtuosos guitarristas como Robert White e Joe Messina.
O grupo praticamente criou o chamado "som da Motown", com uma
pulsação rítmica e um suingue originais baseados principalmente no som
que saía das batidas de "Papa Zita" e no baixo sincopado e criativo de
James Jamerson, considerado um dos principais mentores da sonoridade da
soul music. O Funk Brothers acompanhava as estrelas da Motown, como
The Supremes, The Temptations, Gladys Knight & The Pips e Marvin
Gaye.

BRANQUELOS DE ALMA NEGRA


Uma das provas de que a soul music atingiu plenamente seu objetivo de ser
um tipo de canção que expressa a alma da negritude é o fato de que mesmo
quando interpretada pelos vários artistas brancos que enveredam pelo
gênero ela não perdeu a sua essência: é impossível não reconhecer em suas
canções a negritude (diferentemente de outros gêneros originalmente negros
como o jazz e o rock'n'roll). Entre os cantores e instrumentistas brancos que
se destacaram na soul music estão os guitarristas Joe Messina, do Funk
Brothers, e Steve Cropper, do Booker T. & The MG's., os intérpretes Joan
Osborne e Tom Jones, a dupla Hall & Oates e o The Allman Brothers.

O Funk Brothers foi uma verdadeira máquina de sucessos da música


pop. Durante o auge da Motown, o grupo tocou tantos hits quanto Beatles,
Rollings Stones e Elvis Presley. Apesar dessa proeza, quase ninguém sabia
quem eram os Funk Brothers. As pessoas identificavam aquele instrumental
que ouviam nas canções como o "som da Motown", mas não imaginavam
que ele era feito por uma banda fixa composta pelos melhores
instrumentistas de jazz e blues que Berry Gordy Jr conseguiu recrutar em
Detroit. Esses virtuosos e geniais instrumentistas construíram as fundações
e a essência do som da Motown, com novos ritmos e texturas que deram a
soul music uma sofisticação e um "groove" inéditos. Infelizmente,
diferentemente do consagrado Booker T. & The MG's., os Funk Brothers
nunca tiveram o devido reconhecimento público por conta da própria
política da Motown de mantê-los à sombra dos artistas para quem eles
tornaram realidade o fantástico som da Motown.
ENQUANTO ISSO NO BRASIL ...
A música soul influenciou a canção pop brasileira no final dos anos 1960. O
som da Motown, de James Brown e de outros astros da soul music norte-
americana, misturado a gêneros tipicamente nacionais como o baião e o
samba, fizeram Tim Maia, Toni Tornado, Jorge Ben, Hyldon e Cassiano
produzirem ao longo da década de 1970 um repertório de soul à brasileira.
Entre os principais sucessos dessa época estão canções como “A Lua e Eu”,
“Na Chuva, na Rua, na Fazenda”, “Gostava Tanto de Você” e “Não Quero
Dinheiro (só quero amar)”. A história da música soul no Brasil começa com
Wilson Simonal, compositor, intérprete e show-man que na segunda metade
da década de 1960 introduziu temas e elementos do gênero em algumas de
suas composições, ao misturar soul com samba e bossa nova. Canções
como "Mamãe Passou Açucar em Mim" e "Sá Marina" mostram o resultado
dessa mistura que foi denominada de "pilantragem". Mas foi com Tim Maia
que o gênero realmente aterrisou no país. No final dos anos 1950, aos 17
anos de idade, Tim embarcou para os Estados Unidos e lá vivenciou o
florescer da soul music. Quando voltou para o Brasil, ele trouxe na
bagagem o novo som da música negra norte-americana e produziu uma
criativa fusão com ritmos brasileiros. Com uma voz poderosa e
composições em português e inglês, ele lançou em 1970 seu primeiro
álbum, que imediatamente se tornou um sucesso graças a canções como a
balada "Azul da Cor do Mar". No mesmo ano em que Tim Maia mostrou
sua versão brasileira da soul music, o gênero ganhou nova projeção
nacional com a canção "BR-3", que na interpretação de Toni Tornado
venceu a fase nacional do V Festival Internacional da Canção. Durante a
primeira metade da década de 1970, o público descobre dois outros grandes
nomes da soul music brasileira. Um deles é Cassiano. Autor do sucesso
"Primavera", imortalizado na voz de Tim Maia, ele lançou obras-primas
como "A Lua e Eu" e "Coleção". Outro é Hyldon, que estreou em 1975 com
a balada " Na Chuva, Na Rua, Na Fazenda", um dos clássicos da música
soul brasileira. Na segunda metade da década de 1970, com o
enfraquecimento do gênero nos Estados Unidos, a soul music brasileira
passou a ser fortemente influenciada pelo funk de James Brown, mas várias
canções de Jorge Ben Jor, da banda Black Rio, de Marcos Valle e de Tim
Maia mantiveram elementos estéticos do auge da soul music. Nas décadas
de 1980 e 1990, a versão brasileira do gênero seria retomada nos trabalhos
de Ed Motta, Claudio Zoli, Sandra Sá e Skowa & Máfia, entre outros.
RENASCIMENTO DA SOUL MUSIC

O fim do otimismo que alimentou a soul music durante os anos 1950


e 1960 fez o gênero transformar-se ao longo da década de 1970. O funk,
filho predileto da música soul inventado por James Brown, o soul brother
número 1, emergiu no final dos anos 1960 como o principal herdeiro do
suingue, da sensualidade e da negritude da soul music. O gênero era muito
mais exótico para as plateias brancas, mas a proposta de produzir uma
canção negra de fácil assimilação por esses consumidores tinha ficado para
trás, já que as fórmulas até então bem-sucedidas da Stax, Atlantic e Motown
não se adaptavam bem a um novo contexto histórico mais sombrio e
pessimista.
Mas o processo de assimilação do funk não tardou e na segunda
metade dos anos 1970, a mistura dele com elementos da música pop e
eletrônica resultou no som dançante da chamada "disco music", em
referência às discotecas, clubes noturnos onde se dançava ao som dessas
canções. Artistas da soul music original como Diana Ross tornaram-se
grandes sucessos na era da música de discoteca. Enquanto a disco music se
apropriava da sonoridade do funk para animar plateias brancas e negras, um
tipo de canção mais radical, alimentada pela pobreza e pelo colapso das
propostas para melhorar as condições sociais e as oportunidades
econômicas das comunidades negras nas grandes cidades norte-americanas
começou a surgir. Ainda que as primeiras experimentações que lembram o
rap tenham sido feitas por expoentes da soul music, o gênero que surgiu em
Nova York na segunda metade da década de 1970 era uma reação raivosa
dos jovens negros moradores de guetos que em nada se parecia com a
estética voltada para a classe média da soul music original.
Durante os anos 1970 e 1980, expoentes da soul music como Smokey
Robinson e Marvin Gaye mantiveram a música soul viva, enquanto artistas
como Michael Jackson a fundiram com a música pop para criar algo
completamente novo. A partir da década de 1980, vários artistas do
rhythm'n'blues, como Seal, Mariah Carey, Ben Harper, Whitney Houston,
John Legend e Mary J.Blige, por exemplo, retomaram em suas canções os
principais elementos estéticos da soul music original atualizando-a para
tempos contemporâneos. Já no começo do novo milênio, um revival da soul
music foi comandado principalmente por intérpretes britânicas como Joss
Stone, Amy Winehouse, Duffy, Adele e Estelle. Em muitas de suas canções
são nítidas as influências da era dourada da soul music, enquanto outras são
regravações e versões de sucessos daquela época.
EM POUCAS PALAVRAS...

Após conhecermos o essencial da história da soul music, podemos


afirmar que:
Soul music é um gênero que surgiu na canção popular norte-
americana resultado da fusão de elementos do rhythm'n'blues com o gospel
e produto de um momento histórico de otimismo e esperança para a
população negra nos Estados Unidos. Sua sonoridade é reveladora da
essência, da alma da cultura negra norte-americana. As canções da soul
music buscaram expressar a negritude, valorizando as peculiaridades
culturais dos negros e incentivando o orgulho de ser negro, mas dentro de
uma proposta de integração racial, caracterizada por uma estética que fosse
assimilada pelos consumidores brancos. O suingue e a sensualidade, as
letras românticas e a proposta dançante das canções são as marcas
principais do gênero, que surgiu em meados dos anos 1950 e viveu sua era
dourada durante a década de 1960. O estilo profundamente emotivo do
canto gospel usado em interpretações de músicas laicas, e muitas vezes
profanas, é também uma das principais marcas do gênero, sendo que boa
parte de seus mais importantes intérpretes atuaram como cantores gospel
nas igrejas de suas comunidades. A soul music nasceu, se desenvolveu e
perdeu sua força junto com o movimento pelos direitos civis que lutou
contra a segregação racial nos Estados Unidos. Ela formou a trilha sonora
de um período histórico cheio de idealismo. O gênero contribuiu para
romper algumas barreiras raciais e elevar a auto-estima dos jovens negros
principalmente durante os anos 1960.
The Supremes: Diana Ross, Mary Wilson e Florence Ballard, em 1965
(Frank Driggs Collection/Getty Images)
NÃO DÁ PARA NÃO OUVIR

Conheça os artistas e algumas das canções essenciais da fase áurea da


soul music e descubra por que elas ainda fazem a cabeça de muita gente:
Al Green - grande destaque dos anos derradeiros da soul music, Al
Green emplacou seis sucessos consecutivos na parada norte-americana no
começo dos anos 1970, entre eles a sensual "Let's Stay Togheter", que
remete aos melhores momentos da soul music em seu auge, e "I'm Still in
Love with You".
Aretha Franklin - "Respect", canção composta e gravada
originalmente por Otis Redding, se tornou um sucesso nacional na
interpretação da cantora, que logo seria reconhecida como a "rainha da soul
music". Durante a gravação da canção, Carolyn, irmã de Aretha, sugeriu
para ela alterar a velocidade da pronúncia de "respect" ajudando a enfatizar
a força da palavra. Ouça também "I Never Loved a Man (The Way I Love
You)" e "I Say a Little Prayer".
Barret Strong - ele interpretou a versão original do clássico "Money
(That What I Want)", escrita por Berry Gordy Jr., o primeiro sucesso da
Motown lançado em 1959. Strong fez parte do time de compositores da
gravadora e junto com Norman Withfield escreveu clássicos como "I Heard
It Through the Grapevine" e "Papa Was a Rollin' Stone".
Booker T. & The MG's - o grupo de estúdio que tocou para a maior
parte das principais atrações da Stax e que ajudou a moldar a soul music
feita em Memphis também produziu grandes sucessos instrumentais como o
clássico "Green Onions".
Jackson 5 - Após terem uma apresentação proibida no Texas por
serem negros, Berry Gordy Jr. disse que seus pupilos do Jackson 5 estavam
acima de qualquer questão racial. E ele estava coberto de razão. Tendo à
frente o garoto prodígio Michael Jackson, o grupo superou todas as
barreiras raciais na virada da década de 1960 para 1970 com sucessos como
"I'll Be There", "ABC" e "Never Can Say Goodbye".
The Four Tops - "Reach Out I'll Be There" é uma das mais
conhecidas canções da soul music graças à combinação dos talentos dos
compositores Holland/Dozier/Holland, do instrumental fenomenal do Funk
Brothers e da interpretação desse quarteto vocal que foi um dos mais bem-
sucedidos da Motown.
Gladys Knight & The Pips - "If I Were Your Woman" e "Neither
One of Us (Wants to Be the First to Say Goodbye" são canções que
mostram o excepcional talento de Gladys Knight, uma das melhores
cantoras da Motown.
The Impressions - o grupo de Chicago estava fora do circuito das
principais gravadoras de artistas da soul music, mas graças ao talento do
cantor e compositor Curtys Mayfield criou canções inesquecíveis como
"People Get Ready", que ficaram intimamente associadas ao movimento
pelos direitos civis.
James Brown - "Please, Please, Please", lançada em 1956, já trazia
os fundamentos da soul music, mas era exótica demais para as audiências
brancas, e "Papa's Got a Brand New Bag",. gravada em 1966, tinha tanto
suingue que já apontava para um novo estilo de soul music que seria
chamada de funk. Nesse meio tempo, James Brown tornou-se o padrinho da
soul music ou o "soul brother número 1". Ouça também "Say It Loud, I'm
Black and Proud".
Martha & The Vandellas - "Dancing in the Streets" é uma das
canções que melhor expressa o otimismo dos anos em que a soul music
floresceu. Graças em parte à interpretação de Martha Reeves, uma
secretária da Motown encarregada de ensinar a letra das novas canções
escritas pelo time de compositores da gravadora às cantoras, que formou
com duas ex-colegas de escola, Annete Sterling e Rosalind Ashford, esse
grupo vocal feminino que emplacou vários hits.
The Marvelettes - "Please, Mr. Postman" deu o primeiro dos vários
primeiros lugares que as canções da Motown alcançariam nas paradas de
sucesso nos Estados Unidos. A versão original de 1961 cantada pelas
Marvelettes, grupo vocal de quatro garotas que ganhou um concurso de
novos talentos promovido pela gravadora, tem Marvin Gaye na bateria, na
época um dos músicos de estúdio da Motown.
Marvin Gaye - o primeiro dos inúmeros hits de Marvyn Gaye foi
versão que fez de "I Heard It Through the Grapevine", que havia sido um
sucesso com Gladys Knight & The Pips um ano antes. Na interpretação de
Gaye, a canção ganhou um tom dramático muito mais forte e tornou-se o
compacto mais vendido da Motown até então. Ouça também "Ain't No
Mountain High Enough", um dos famosos duos dele com Tammi Terrell,
"What's Going On" e "Sexual Healing".
Mary Wells - uma das primeiras estrelas da Motown, ela ajudou a
definir a soul music feita pela gravadora de Detroit graças a interpretações
como a de "You Beat Me to the Punch", composta por Smokey Robinson.
Otis Redding - com sua interpretação de "I've Been Loving You Too
Long", Redding mostra que "soul" não é algo que possa ser imitado, ou
você tem ou não tem. Como compositor ele escreveu outras obras-primas da
música soul como "(Sittin' On) The Dock of the Bay" e "Pain in My Heart".
Ray Charles - "What'd I Say" foi a canção que inaugurou o auge da
soul music ao consolidar a inovação de trazer o gospel para o
rhythm'n'blues, mas Ray Charles foi além, e produziu obra-prima atrás de
obra-prima em vários gêneros. Na soul music, entre eles estão "Hit the
Road, Jack" e a versão que fez para "I Can't Stop Loving You".
Sam & Dave - "Hold On, I'm Comin'" e "Soul Man" são duas das
canções mais marcantes dessa dupla que nos quatro anos que permaneceu
na Stax Records emplacou vários sucessos.
Sam Cooke - "You Send Me" é considerada uma das canções que
definiram a estética da soul music, mas foi com "A Change Is Gonna
Come", com sua letra remetendo às esperanças que o movimento pelos
direitos civis trazia, que Sam Cooke surpreendeu a todos ao enveredar por
temas que não os ligados ao amor romântico.
Smokey Robinson & The Miracles - "Shop Around" foi o primeiro
grande sucesso do prolífico e genial compositor e intérprete Smokey
Robinson, mas é como "The Tracks of My Tear" que ele atinge a perfeição.
Essa obra-prima da soul music fez Bob Dylan considerar Robinson o maior
poeta vivo da América.
Solomon Burke - "Got to Get You Off My Mind" chegou ao primeiro
lugar na parada de rhythm'n'blues em 1965 revelando a excepcional voz de
Burke numa típica canção da soul music antes do cantor introduzir
elementos do rock'n'roll em suas canções e inventar e ser coroado como o
rei do "rock'n'soul". Ouça também "Everybody Needs Somebody to Love".
Stevie Wonder - conhecido como "Little" Stevie Wonder, afinal só
tinha 11 anos de idade quando ingressou na Motown no começo dos anos
1960, ele foi o primeiro artista na história a emplacar dois discos ao mesmo
tempo no topo das paradas. Um deles era um compacto com a canção
"Fingertips Pt 2". Entre suas obras-primas na fase Motown está "I Was
Made to Love Her".
The Supremes - "Baby Love" é uma das dezenas de canções de
sucesso compostas por Holland/Dozier/Holland, trio de compositores fixos
da Motown. A canção marca também o momento em que Diana Ross torna-
se o foco de atenção da gravadora e começa a assumir a condição de líder
das Supremes. Ouça também "Where Did Our Love Go" e "You Can't
Hurry Love".
The Temptations - "My Girl" é provavelmente uma das músicas que
melhor simboliza a atmosfera de inocência que dominava parte significativa
da soul music. Composta por Smokey Robinson e com um riff e uma
melodia imortalizada pelo Frunk Brothers, a canção foi um dos grandes
sucessos do The Temptations. Ouca também "Cloud Nine" para notar as
influências do psicodelismo na soul music.
BIBLIOGRAFIA

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WERNER, Craig Hansen. A Change Is Gonna Come: music, race &
the soul of America. Michigan: The University of Michigan Press, 2006.
SOBRE O AUTOR
Sílvio Anaz é jornalista e pesquisador na área de cultura e
comunicação. Graduado em Jornalismo pela Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo, tem Mestrado em Letras pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorado em Comunicação e
Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É autor dos
livros “Pop Brasileiro dos Anos 80” (Editora Mackenzie, 2006) e “O que é
rock” (Popbooks, 2011). Concebeu e dirigiu o documentário “Pop Songs”
(2010). Trabalhou como jornalista na Folha de S. Paulo, Gazeta Mercantil e
Discovery Communications e na área cultural no SESI-SP, entre outros. E-
mail: sanaz@uol.com.br.

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