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MUSIC
(ou O que é soul music)
Sílvio Anaz
São Paulo
2013
© 2013 Sílvio Anaz
imagem da capa: Marvin Gaye em apresentação no Royal Albert Hall, em Londres, em 1979.
RAÍZES ESPIRITUAIS
O FLORESCER DA SOUL MUSIC
ORGULHO DE SER NEGRO
O SOM DA MOTOWN
O FIM DA INOCÊNCIA
GRANDES BANDAS DA SOUL MUSIC
BIBLIOGRAFIA
Ray Charles, o “inventor” da soul music, e as Raelettes, em 1960
(GAB Archive / Getty Images)
PARA COMEÇAR...
Era uma vez uma época de otimismo e esperança. Anos dourados que
fizeram a população negra norte-americana sonhar com uma vida melhor.
Um momento em que compositores, intérpretes, músicos e produtores
criaram canções cheias de suingue, sensualidade e outros elementos típicos
da tradição da música negra dos Estados Unidos. Foram baladas românticas
e verdadeiros hinos na luta pelos direitos civis que nasceram de uma cultura
que já tinha inventado o blues, o jazz e o rock'n'roll. Esse tipo de canção foi
chamado de soul music e expressou o orgulho de ser negro num mundo em
que o preconceito racial era respaldado por leis.
Os talentos de Ray Charles, James Brown, Berry Gordy Jr., Marvin
Gaye, Stevie Wonder, Aretha Franklin, Otis Redding, The Supremes,
Jackson 5, Sam Cooke, Booker T & the M.G.s., The Funk Brothers e The
Temptations, entre outros, e as gravadoras Motown, Atlantic e Stax fizeram
da soul music um sucesso mundial. Mesmo após o fim de sua fase dourada,
a música soul permaneceu influente e matriz de boa parte do que é feito
dentro do rhythm'n'blues. Prova disso foram os sucessos de Diana Ross e
Michael Jackson nas décadas de 1970 e 1980, o permanente resgate de seus
elementos e de sua tradição com Mary J. Blige, Jay-Z, Seal e John Legend,
entre outros, e o seu "renascimento" no começo do século 21 nos trabalhos
de artistas como Joss Stone e Amy Winehouse.
Este livro é uma introdução à soul music. Além de contar a história
do gênero, ele procura mostrar a importância e a influência que ele tem na
música popular pelo planeta. As canções da soul music ainda são perfeitas
para embalar romances e festas, e já foram fundamentais para elevar a auto-
estima da população negra e para amplificar as vozes que lutaram contra a
segregação racial. Para saber como ela tem conseguido fazer tudo isso,
escolha uma trilha sonora, aproveitando as dicas que estão no final do livro,
e descubra nas próximas páginas o que é soul music.
RAÍZES ESPIRITUAIS
Entre os anos 1940 e 1950, "soul" era o termo usado por alguns
músicos de jazz como John Coltrane e Art Blakey, envolvidos em um
movimento pelo retorno do gênero as suas origens. Para eles, "soul"
significava a essência que o jazz tinha perdido à medida que o gênero se
transformou em um dos principais produtos da indústria fonográfica,
principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Nos anos seguintes, o uso
do termo ultrapassou as fronteiras do jazz e passou a expressar na música
popular as características essenciais que revelam sua negritude. Isto é,
"soul" passou a significar o traço fundamental, o âmago, a alma da cultura
negra norte-americana presente em uma canção.
Os primeiros sucessos desse tipo de canção surgiram no final da
década de 1950. O principal responsável por isso foi Ray Charles, artista
portador de um talento excepcional para tocar piano, cantar, fazer arranjos e
compor. Charles colocou letras sensuais em composições que misturavam
elementos musicais do blues e do gospel e vendeu milhões de discos para
audiências negras e brancas que viraram fãs de um novo gênero da canção
popular norte-americana que algum tempo depois seria chamada de "soul
music". Charles conseguiu fazer na canção popular o que os músicos de
jazz estavam perseguindo: criar uma identidade para suas músicas que
fizesse qualquer um que as ouvisse dizer que elas eram sem dúvida música
negra, isto é, que elas tinham a essência da cultura negra norte-americana,
que elas tinham "soul".
Naquele momento, não era só Ray Charles quem tinha conseguido
isso. James Brown, outro artista negro igualmente talentoso, também estava
fazendo canções que não só mostravam terem "soul", como também
expandiam o significado do termo para o campo social e político fazendo
dele sinônimo de identidade e orgulho dos negros, considerados então
cidadãos de segunda classe nos Estados Unidos. Com a banda Famous
Flames, Brown levou a excitação típica da canção gospel ao extremo
cantando temas profanos.
As igrejas protestantes criadas e frequentadas pelos negros nos
Estados Unidos surgiram como fruto do sincretismo das culturas africana,
europeia e cristã. Nelas os encontros costumam ser profundamente
emotivos, nos quais o canto gospel e as danças servem para canalizar parte
da excitação religiosa e da explosão de sentimentos dos fieis. James Brown
adaptava de forma inovadora para o palco e nas suas canções as louvações
típicas da igreja batista pentecostal, só que com temas bem mundanos,
como sexo e garotas, no lugar dos sagrados. Sua voz e seu jeito inovador de
dançar contagiavam e ensandeciam plateias negras da mesma forma que
Elvis Presley fazia com as brancas.
A soul music teve uma importância social e política tão grande quanto
foi seu impacto artístico. Aliás, sua trajetória nos anos 1960 está
intimamente associada à da população negra norte-americana em sua luta
contra a discriminação racial, por melhores condições de vida e
oportunidades econômicas e na construção e afirmação de uma identidade
sociocultural. Isso, no entanto, não significou que ela foi uma canção
exclusivamente feita por e para negros. Pelo contrário, desde o princípio ela
se caracterizou pela integração racial. Apesar de seus principais intérpretes
e compositores serem negros, havia músicos, produtores e donos de
gravadoras brancos participando do sucesso da soul music.
Também contribuiu para que a música soul emergisse como a forma
de expressão artística mais representativa da comunidade negra norte-
americana o "embranquecimento" do então recém-nascido rock'n'roll. Na
segunda metade dos anos 1950, mesmo com a contribuição fundamental de
"Fats" Domino, Big Joe Turner, Chuck Berry e Little Richard, o rock já era
um gênero visto como um rhythm'n'blues para brancos por boa parte da
comunidade negra norte-americana. Ironicamente, a parcela racista e
reacionária da sociedade branca nos Estados Unidos via o rock como um
produto da cultura negra e uma ameaça aos valores tradicionais da branca.
Entre tantas contradições, o fato é que o rock - um rhythm'n'blues
acelerado, como diria Little Richard - tornou-se um sucesso comercial
graças ao seu "embranquecimento", exemplificado na figura do rei do rock
Elvis Presley, um branco influenciado pela música gospel e com uma voz e
um jeito de dançar típicos da tradição negra.
Com o rock "apropriado" pela indústria fonográfica voltada para o
consumidor branco (fenômeno que já havia ocorrido com o jazz), a
construção de um gênero musical popular que tivesse em sua alma a
essência da negritude passou a ser a meta de alguns músicos, compositores,
intérpretes e produtores ligados ao rhythm'n'blues. A soul music que surgiu
no sul dos Estados Unidos, na mesma região em que havia nascido o
gospel, o blues e o jazz, é profundamente identificada com essa negritude e
tornou-se expressão do orgulho da comunidade negra.
Um dos inventores desse tipo de música, Ray Charles fez canções que
agradavam às plateias negras e brancas. Mas foi James Brown o primeiro
artista da música soul a radicalizar na busca dessa essência da negritude a
literalmente cantar que tinha orgulho de ser negro. O estilo de soul music
desenvolvido por Brown era tão radical que ao longo da década de 1960 ele
se transformou no artista que levou a anarquia à música soul, enfatizando a
sonoridade do baixo e da percussão, para transformá-la em um novo gênero
musical: o funk. Logo nos seus primeiros sucessos como "Please, Please,
Please", Brown mostrava em sua voz uma emoção bruta que exortava as
plateias no melhor estilo gospel e conduzia performances incansáveis no
palco, com movimentos acrobáticos e um jeito original de dançar que criou
uma legião de seguidores, de Mick Jagger a Michael Jackson. Essas
características que iam fundo na busca da essência da negritude perseguida
pela soul music agradavam as plateias negras mas afugentavam as brancas,
que não conseguiam assimilar muito bem o estilo de James Brown.
Bob Dylan disse uma vez que Smokey Robinson era o maior poeta
vivo da América. Robinson era então um dos expoentes da soul music.
Cantor, compositor e parceiro de Berry Gordy Jr. na fábrica de música
negra que foi a gravadora Motown durante os anos 1960. O talento de
Robinson ajudou a construir uma nova versão da soul music, com canções
que conquistaram a juventude negra e branca. Mas foi seu visionário
parceiro quem criou e fez o som da Motown ser o maior sucesso da música
negra norte-americana.
Berry Gordy Jr. levou para a indústria fonográfica o conceito de
"linha de produção", similar ao que existia nas grandes indústrias
automobilísticas de Detroit (Michigan), cidade onde a Motown nasceu e
viveu sua época de ouro. Quando ele resolveu fundar uma gravadora de
artistas negros que conquistasse a audiência branca, no final dos anos 1950,
a soul music estava estabelecendo sua estética com os primeiros sucessos de
Ray Charles e James Brown. Berry Gordy Jr. inspirou-se no que estava
acontecendo, e tomou US$ 800 emprestado de sua família, para criar uma
sonoridade cuja marca principal eram baladas que misturaram as
tradicionais harmonias da música negra e do gospel com a batida do
rhythm'n'blues. Mas para fazer isso soar diferente da soul music feita pro
artistas da Stax e da Atlantic, ele colocou uma dose muito mais acentuada
de elementos da música pop e a fez intencionalmente atraente à audiência
branca. Para manter o controle e a qualidade do som da Motown, ele
implantou uma forma de produzir canções que era inspirado na tradicional
divisão de trabalho industrial, exemplificado principalmente pelas grandes
indústrias de Detroit, sua cidade natal.
GÊNIO MUSICAL
Dentro da fábrica de sucessos que era a Motown um artista se destacava:
Smokey Robinson. Ele era um excepcional compositor, intérprete e
produtor. Quando se pensa nos principais hits da Motown, como "My Girl",
gravada pelos Temptations, "I'll Be Doggone", com Marvin Gaye, "My
Guy", com Mary Wells, ou "Going to a Go-Go", com o The Miracles
(depois regravada pelos Rolling Stones), neles estão a marca criativa de
Robinson, um dos mais geniais e prolíficos compositores da Motown. Ele
conheceu Berry Gordy Jr. quando ainda fazia parte do grupo The Matadors
e encontrou no futuro fundador da Motown um mentor profissional e um
grande amigo. Com Gordy ele aprendeu e aplicou duas regras fundamentais
para a composição das canções: fazer com que seus versos reflitam uma
ideia, e não apenas um conjunto de frases com rimas, e contar uma história
completa. Suas melhores composições seguem essa fórmula à risca, como
"The Tracks of My Tears" e "I Second that Emotion", que fizeram Bob
Dylan chamá-lo de "o maior poeta vivo da América". Para muitos, Smokey
Robinson foi o melhor compositor da soul music.
GAROTOS PRODÍGIOS
Durante os anos 1960, Gordy cuidou pessoalmente e muito de perto de dois
meninos que tinham um talento excepcional: "Little" Stevie Wonder e
Michael Jackson. No começo daquela década, Steveland Morris tinha 11
anos de idade quando foi apresentado a Berry Gordy Jr. O dono da Motown
reconheceu imediatamente o fenomenal talento do garoto e lhe deu o nome
artístico de "Little" Stevie Wonder. Multi-instrumentista, compositor e
intérprete, com apensas treze anos e em seu terceiro single, Wonder
alcançou com a canção "Fingertrips (Part 2)" o primeiro lugar na parada de
sucesso. Dentro do esquema de linha de produção da Motown, Wonder
produziu inúmeros sucessos até 1971, quando completou 21 anos, ganhou
sua emanciapação e deixou a gravadora. Naquela época, outro menino
prodígio já havia impressionado Gordy. Em 1969, o dono da Motown
conheceu através da cantora Gladys Knight um grupo de cinco jovens
irmãos negros da pequena cidade de Gary (Indiana), que cantavam e
dançavam soul music de forma exuberante. O destaque era o mais novo
deles, chamado Michael Jackson, que como "Little" Stevie Wonder, tinha
apenas 11 anos de idade quando assinou com a Motown. Centrado na voz e
nas coreografias (inspiradas nos passos de James Brown) de Michael,
Gordy fez dos Jackson 5 um dos últimos grandes sucessos da Motown.
Canções como "I Want You Back”, “ABC”, “The Love You Save” e “I’ll Be
There” viraram hits imediatos.
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SOBRE O AUTOR
Sílvio Anaz é jornalista e pesquisador na área de cultura e
comunicação. Graduado em Jornalismo pela Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo, tem Mestrado em Letras pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorado em Comunicação e
Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É autor dos
livros “Pop Brasileiro dos Anos 80” (Editora Mackenzie, 2006) e “O que é
rock” (Popbooks, 2011). Concebeu e dirigiu o documentário “Pop Songs”
(2010). Trabalhou como jornalista na Folha de S. Paulo, Gazeta Mercantil e
Discovery Communications e na área cultural no SESI-SP, entre outros. E-
mail: sanaz@uol.com.br.