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Interpretada de forma impecável por Sheléa, Sometimes I Feel Like a Motherless Child nos remete ao
século XVII e a uma parte da música folclórica norte-americana que influenciou o blues e o jazz. A
canção faz parte do álbum The Gospel According to Jazz Chapter IV, de Kirk Whalum.
Também conhecida como Motherless Child, a canção é um spiritual de 1870. Esses cantos eram
entoados por negros em campos de trabalho e por isso são conhecidas como work-songs.
franceses foram mais tolerantes com o paganismo, já que não se importavam com a salvação de seus
escravos. Lá a música tradicional africana conseguiu sobreviver de forma mais pura do que em
Entretanto, os spirituals não eram apenas canções religiosas que simbolizavam a fé e esperança dos
escravos. Com o tempo, os cantos em campos de trabalho se tornaram uma linguagem exclusiva,
Quando na música citava o rio Jordão, por exemplo, “a referência não era apenas ao metafórico rio
bíblico, mas concretamente também ao rio Ohio, o qual, na época, constituía a fronteira com os
Um dos mais famosos spirituals é Wade in The Water. A canção seria usada pelo The Underground
Railroad (UGRR), movimento de resistência que indicava um conjunto de rotas secretas para fugas
em direção ao Norte e Canadá através das estradas de ferros subterrâneas. Em Wade in The Water a
Outro spiritual regravado várias vezes é Swing Low, Sweet Chariot. Nela pode-se ouvir a alusão ao rio
James Martin, um especialista em spirituals, diz que Sweet Chariot “era um sinal de esperança de que
alguém estava vindo para ajudar. Por isso, sempre foi não apenas uma esperança inspiradora, mas uma
esperança real.”
Em Sometimes I Feel Like A Motherless Child, podemos ouvir um escravo que se sente como uma
criança sem mãe. Esse sentimento era comum entre os negros, uma vez que seus donos separavam as
crianças de suas mães, vendendo-as para outros escravocratas que moravam em locais distantes — a
O trecho também pode ser entendido como uma alusão à mãe África e a seus filhos que estão em uma
terra estranha, longe de casa, como órfãos, quase desfalecendo — sometimes I feel like I’m almost
gone.
Especialista na música folclórica norte-americana, Arthur C. Jones sugere que a palavra sometimes
pode gerar a sensação de esperança, já que, somente as vezes, e não sempre, eu me sinto como um
órfão longe de casa. A esperança está presente nos momentos em que o eu lírico da canção não passa
Na interpretação contemporânea de Sheléa, apenas com voz e piano, é possível criar em si um pouco
dos sentimentos presentes na canção. Os acordes escolhidos, com acentuação nos tons graves, podem
transmitir a tensão daquele momento de lamento e dor, intensificado pela voz forte e os melismas de
Com o tempo, o spiritual faria nascer sua forma moderna: o gospel (canções das igrejas protestantes
norte-americanas). Juntos, essas duas formas gerariam influências no blues e no jazz. “Os spirituals e
as canções gospel continuam, em todos os estágios da evolução, a ser cantados, e todos eles
continuam a fornecer uma fonte inesgotável para o jazz em geral e para determinadas obras em
especial” [Hobsbawn].
“predominantemente nos blues e na maior parte do jazz, e que é preservado em sua forma mais
arcaica na música das congregações do gospel negro. (…) A polifonia vocal e rítmica, e a
“Passaram minutos, longos minutos de uma estranha tensão. Os murmúrios, os lamentos, foram se
tornando cada vez mais altos, dramáticos, até que eu, de repente, senti a tensão criativa percorrer as
pessoas, como uma corrente elétrica. Era um sussurro que não se ouvia. As emoções se acumulavam
como nuvens. Depois, das profundezas da má consciência de um pecador, surgiu um lamento breve,
compassivo, um típico suspiro de negro, modulando -se plangentemente numa cadência musical. De
algum outro ponto da multidão comprimida, uma voz improvisou uma resposta. O lamento voltou,
dessa vez mais alto e impaciente. Mais vozes se uniram à resposta e lhe imprimiram a forma de uma
frase musical. Assim, desse metal fundido da música, por assim dizer, surgiu aos nossos ouvidos uma
nova canção, composta por ninguém em particular e, entretanto, por cada um geral” [Berendt e
Huesmann].
O clima descrito por Burlin não se distancia de um concerto de jazz, “quem vai a uma igreja gospel
no sul de Chicago, por exemplo, não nota nenhuma diferença em relação à atmosfera de êxtase, que
O blues é a forma mundana do spiritual e do gospel. Ou o inverso: o gospel e o spiritual são as formas
vibrafonista Milt Jackson teria dito: ”O que é a alma do jazz? É o que vem dentro de você. Em meu
caso, acredito que seja aquilo que eu ouvi e senti na música da minha igreja. Essa foi a grande
influência da minha vida. Todo mundo quer saber de onde vem esse funk stil. Pois bem, ele vem da
Charles Mingus também já declarou que o jazz seria impossível sem a experiência do spiritual e
gospel. Ouçam “Wednesday Night Prayer Meeting”, por exemplo. A canção “descreve com
vivacidade e experiência de um culto gospel: o modo como os fiéis evocam o criador, como caem em
transe, como pregador expulsa os maus espíritos e “fala em línguas” [Berendt e Huesmann].
Mahalia Jackson, a cantora que, para alguns, possui a voz que mais se aproximou de Bessie Smith,
cantava gospel, e sempre negou o título de cantora de blues. Ela queria mesmo é cantar o “barulho
alegre para o Senhor”, contrariando aos amigos Louis Armstrong e Duke Ellington.
Até mesmo Bessie Smith viria a ser comparada a um famoso pregador de cruzadas evangelísticas
protestantes que arrastavam multidões nos EUA. “Se você foi muito à igreja como as pessoas do Sul,
como eu, por exemplo, então você sabe que há uma semelhança entre o que Bessie Smith faz e o que o
pregador e o evangelista do Sul fazem. Em certo sentido, ela foi o que hoje é Billy Graham”, disse o
Obviamente o jazz não nasceu somente das raízes negro-africanas, pois há também a influencia da
colonização europeia. Exemplo disso, podemos citar os creoles, termo usado para definir os
negros-franceses, que estão no centro da história de Nova Orleans e do jazz. Entretanto, é inegável a
grande contribuição negra, não só para o jazz, mas para música de qualquer lugar do mundo. Para
de seus filhos.
● Rosie é uma work-song de 1947, composta pelo folclorista Alan Lomaz e gravada em
negros cantavam work-songs para controlar o ritmo do trabalho. Em Rosie, por exemplo,