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FFLCH-USP

Gabriel Henrique Borges

Nº USP: 10764381

Turno vespertino

História do Brasil Colonial II – Dr. João Paulo Garrido Pimenta

Reformismo e Tradição: as luzes de Critilo e Doroteu

Análise da fonte Cartas Chilenas quanto ao seu “Prólogo”, “Epístola a


Critilo” e Dedicatória “Aos Grandes de Portugal”

São Paulo
2018
“O que chama a atenção nas Cartas não
é tanto o fato de elas poderem servir de
documento histórico relativo para o
estudo de Vila Rica no período, mas o
modo como por meio delas são repostos
alguns problemas básicos para o século
XVIII, particularmente os referentes às
proposições de uma forma de vida social
e política”1

(Ronald Polito)

1
POLITO, Ronald. Um coração maior que o mundo. Tomás Antônio Gonzaga e o horizonte luso-colonial.
São Paulo: Globo, 2004. pp. 127
1. Contextualização e apresentação da fonte:

O século XVIII na América Portuguesa é, antes de tudo, um século dinâmico. Em seu


decorrer, Portugal viu seu projeto colonial chegar ao auge com a descoberta dos metais
preciosos nas Minas Gerais e também a conhecer os primeiros marcos de sua ruína com
o advento da chamada Crise do Antigo Sistema Colonial, em grande parte tributária do
declínio dessa mesma sociedade aurífera. É, portanto, na sociedade mineira, como um
dos principais palcos do cenário luso-colonial no século XVIII, que se torna possível ver
com singular clareza os movimentos desse século tão contraditório.

Laura de Mello e Souza distingue a evolução dessa sociedade em três períodos bastante
marcados: um primeiro momento formativo, em que se funda uma ordem social baseada
nas riquezas encontradas, rejeitando os velhos valores estamentais; um segundo momento
de maior conciliação (ainda que de forma tensa) em que interesses de Estado e de
particulares se mesclam, e as elites locais passam a integrar as estâncias políticas; e um
momento de declínio quando se aguçam os conflitos entre uma elite bem nascida e letrada
e as elites descendentes dos arrivistas do ouro que ganharam poder pela riqueza e não
pelos ditos valores nobres2. É nesse contexto que é possível compreender o que era a
contestação política nas Minas do século XVIII e quem eram os seus agentes. Em um
cenário onde duas elites (uma estamental e outra “de fumaça” convertida em “de
costumes”3) dividiam o aparelho burocrático colonial, engendrou-se uma tênue – ainda
que incisiva – teia de oposições, sobretudo ao governador, de forma que as acusações de
arbitrariedade eram frequentes, especialmente a partir dos finais do século XVIII4. Com
todas as dificuldades de comunicação com a Coroa, a lentidão dos processos burocráticos
e a abissal distância entre as instruções régias e a realidade social, combinados com uma
confusão entre interesses públicos e privados, não era rara a substituição da legislação
pela iniciativa pessoal do governador, de forma que criava-se uma situação favorável à
elite de oposição acusar o governo de intransigência à lei do Rei5.

Se o contexto social se dinamizou com o passar do tempo, a forma como essa oposição
se processava também sofreu modificações com o advento da Crise. Em um estudo sobre

2
SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a sombra. Política e administração na América portuguesa no século
XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. pp. 148-181.
3
Ibidem, pp. 179-180.
4
APARÍCIO, João Paulo da Silva. Governar no Brasil colonial: a administração de Luís da Cunha Meneses
nas capitanias de Goiás (1778-1783) e de Minas Gerais (1783-1788). – 1. Ed. – São Paulo: Hucitec, 2015.
pp. 66-84.
5
Ibidem, pp. 79-82.
as bibliotecas particulares de letrados e homens de poder nas Minas, Luís Carlos Villalta 6
demonstra como os livros canônicos e de ofícios começavam cada vez mais a dividir
espaço com as obras ilustradas que chegavam da Europa. Títulos como Montesquieu,
Rousseau e ainda mais Raynal7 passavam a ser discutidos em clubes de leitura e
comunidades de letrados, servindo de subsídio teórico a uma ideia de transformação
social cada vez mais sediciosa. É nesse momento que, segundo Jancsó 8, ocorre uma
ressignificação dos ideais ilustrados da aristocracia reformista em nome de uma “nova
variante da cultura política dominante” que visava a contestação revolucionária ao
sistema colonial. Não que essas ideias circulassem apenas entre os letrados, mas ao
contrário, em uma sociedade ainda oral, as discussões rompiam a esfera privada dos
clubes de leitura e chegavam à esfera pública, tomando ruas, estalagens, ranchos, etc9.

Um aspecto importante desse movimento contestatório público se deu pelas


manifestações literárias árcades que chegavam com força de um Portugal empenhado em
consolidar seu próprio estilo de escrita, cuja força renovadora estava na ressignificação
da ideia de “Verdade” proposta pelos clássicos greco-latinos10. Segundo Cândido, essa
renovação vinha no sentido de transformar a fórmula de que a poesia deveria retratar o
belo em uma nova máxima na qual não é apenas a beleza que interessa ao poeta, mas
antes a harmonia tanto com a natureza, como com a sociedade 11. Por fim, se as obras
pretenderiam demonstrar a justa verdade da organização social, isto é, se seu conteúdo é
mais contestatório que estético, faz-se necessário que essas sejam pedagógicas, instrutivas
e verossímeis com a realidade objetiva, de forma a ensejar um “aristocrata com o gosto
do popular”12. Dessa maneira, ganha força nas manifestações literárias do chamado
“círculo mineiro” as sátiras, as odes e as epístolas.

É em meio a todo esse campo político-social e intelectual que foram escritas as Cartas
Chilenas, entre 1786 e 1789, geralmente atribuídas ao poeta e político Tomás Antônio

6
VILLALTA, Luiz Carlos. O que se lê e o que se fala. Língua, instrução e leitura. In: SOUZA, L. M. (org.).
História da vida privada no Brasil.- v.1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 362-367.
7
Villalta dá especial destaque a Raynal por ter sido o principal divulgador das ideias antidespósticas da
Independência dos EUA, cuja qual era amplamente debatida entre os intelectuais sediciosos.
8
JANCSÓ, István. A sedução da liberdade. Cotidiano e contestação política no final do século XVIII. In:
SOUZA, L. M. (org.). História da vida privada no Brasil.- v.1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp.
394-402.
9
Ibidem, pp. 399.
10
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de literatura colonial. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. pp.
177-226.
11
CÂNDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos (1750-1880). – 15ª edição.
Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2014. pp. 43-73.
12
FURTADO, Joaci Pereira. Uma república de leitores. História e memória na recepção das Cartas chilenas
(1845-1989). São Paulo: Hucitec, 1992. Pp. 29-38.
Gonzaga. Trata-se de um conjunto de 13 cartas em que um suposto Critilo escreve de
Santiago ao seu amigo Doroteu que se encontra em Espanha a respeito dos desmandos do
governo de Fanfarrão Minésio, uma caricatura de governador arbitrário. A metáfora é
clara no sentido de que Santiago representa Vila Rica e Minésio é Luís da Cunha
Meneses, governador das Minas Gerais entre 1783 e 1788, cuja administração foi
marcada por acusações de truculência e tirania. As cartas vêm acompanhadas por um
prólogo e uma dedicatória aos Grandes de Portugal, e por uma epístola de Doroteu em
resposta às Cartas – geralmente atribuída ao também poeta e político Cláudio Manuel da
Costa. Após essa exposição dos horizontes materiais e ideais das Minas setecentistas,
pretende-se fazer uma leitura detalhada das três partes introdutórias das Cartas de forma
a depreender delas aspectos do pensamento de Critilo-Gonzaga e Doroteu-Cláudio para,
ao fim, buscar inserir onde o documento se enquadra nesse complexo cenário.

2. Análise interna do documento13:

A primeira parte introdutória a ser analisada será a “Epístola a Critilo”, atribuída a


Cláudio Manuel da Costa, cujo narrador é Doroteu. Nessa epístola estão contidos os
principais aspectos do pensamento desenvolvido por Critilo-Gonzaga ao longo de toda a
obra, inclusive das outras duas partes introdutórias, de forma que se possa dizer que tanto
Critilo-Gonzaga quanto Doroteu-Cláudio compartilham um universo mental e um ideário
semelhante com relação aos temas abordados, ao menos nesta obra.

O verso inicial da epístola, por si só, já revela uma característica crucial acerca da obra:
a pretensa verossimilhança entre a realidade e os versos pintados por Critilo:

“Vejo, ó Critillo, do Chileno Chefe;/ Tão bem pintada a história


nos teus versos;/ Que não sei decidir, qual seja a cópia;/ Qual
seja o original [...]” (p. 21)

Isso é interessante, pois, o comentador da obra de Critilo, isto é, Doroteu, legitima o que
foi escrito por seu par com o argumento da verossimilhança, uma vez que não encontra
diferenças entre a verdade e a escrita, afinal, trata-se para ele de uma história pintada14.

13
Será utilizada como base para a análise a primeira edição completa das Cartas Chilenas, publicadas pelo
bacharel Luiz Francisco da Veiga, em 1863. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4606.
14
Furtado, op. cit, p. 33, chama atenção para essa intenção do poeta. Segundo ele, “Testemunha do que
narra, o poeta é retratista fiel dos acontecimentos e dos personagens que presencia. Não por acaso, a
pintura é a metáfora mais recorrente. Afinal, se a arte imita a vida, como se pensava na época, a pintura
era a que reproduzia a imagem da realidade [...]”.
Nos versos seguintes, Doroteu realiza uma espécie de autocensura quando comenta sua
reação ao ler as cartas de Critilo. Ele se diz preso em um “combate entre a raiva e o
prazer”, que gela e treme de horror e susto, mas, mais importante, “outras vezes do riso
apenas posso resistir aos impulsos”, para em seguida se censurar: “mas ah! Que disse!”.
O ponto nevrálgico dessa autocensura aparece em:

“Eu retracto a expressão, nem me subscrevo;/ Ao suffragio


daquelle, que assim pensa;/ Alheio da razão, que me
surpreende;/ Tracta-se aqui da humanidade afflicta;/ Exige a
natureza os seus deveres:/ Nem da mofa ou do riso póde a
idéa;/ Jamais nutrir-se, emquanto aos olhos nossos;/ Se
propõe do teu Chefe a infame historia” (p. 21)

E ainda:

“Quem me dirá, que da estultice as obras;/ Infestas à virtude, e


dirigidas;/ A despertar o escândalo, conseguem;/ No prudente
varão mover o riso?” (p. 22)

Ora, Doroteu se diz um homem guiado pela razão, e que a Natureza lhe exige que jamais
poderia achar graça diante das catástrofes projetadas por Minésio, segundo lhe conta
Critilo, assim sendo, como é possível que consiga rir diante da estultice dessas obras
“infestas à virtude”? É interessante notar ainda a ideia de uma “humanidade afflicta”, que
ele caracteriza como aquela que se pensa alheia da razão (entendida como uma Razão
Natural15), isto é, uma humanidade que se perde nas emoções e que desfalece no combate
da raiva e do prazer. Nos versos seguintes, ele faz um paralelo com as loucuras de
Calígula, as quais não lhe provocam riso, mas antes a “razão brilhante” o faz tremer de
raiva por vassalos inocentes terem de ser curvar ao cetro de um “Tyranno”.

Finalmente, Doroteu encerra a questão dando agora outro tom ao que ele chamou de
combate entre a raiva e o prazer:

“Devo pois confessar, Critillo amado;/ Que teus escriptos de


uma idade a outra;/ Passarão sempre de esplendor cingidos:/
Que a humanidade emfim desagravada;/ Das injúrias, que

15
BLUTEAU, Raphael. Diccionario da Lingua Portugueza ... Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira,
1789, 2.v. p. 288. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5412.
soffre, por teu braço;/ Os ferros soltará, que desaffrouxa;/
Tintos do fresco, gotejado sangue.” (p. 23)

E o elogio continua no verso seguinte de forma conclusiva:

“Subditos infelices, que provastes;/ Os estragos da barbara


desordem;/ Respirai, respirai: ao beneficio;/ Deveis do bom
Critillo a paz suave;/ Que a vossa liberdade alegre goza.”
(pp. 23-24)

Doroteu afirma que os versos de Critilo funcionaram como uma espécie de braço que
afrouxa os ferros que prendem a humanidade. Como teria se processado isso? Pode-se
depreender que a resposta esteja na própria tensão de sentimentos que a obra provocou
em Doroteu. Ao fim de toda sua autocensura, ele confessa que os versos de Critilo não
trazem senão alívio e “paz suave”. Essa humanidade outrora aflita agora está
“desagravada das injúrias que sofre”. Ora, segundo se interpreta do que Doroteu afirma,
a particularidade das Cartas que a fará passar de uma idade a outra cingida de esplendor
é justamente aquilo que ela provoca de novo mesmo nos homens de razão: o riso! Afinal,
diante de todas os desmandos de Minésio narrados por Critilo, os súditos infelizes, por
meio do riso provocado pela sátira, podem gozar do alívio e da paz, e respirar ante os
estragos da bárbara desordem provocada por um governo despótico.

O despotismo é o ponto central da epístola a partir dos versos seguintes. A finalidade


desse texto não está apenas em elogiar a sátira política de Critilo, mas mostrar que além
do riso, ela traz ainda uma série de ideias tão libertadoras quanto. Esse quadro mais
incisivo começa a se dar quando, ainda no verso de conclusão do elogio, Doroteu utiliza
os termos “bárbara” e “desordem” ao se referir àquilo que aflige a humanidade.

“De pejo, e de vergonha os bons Monarchas;/ Que pias


intenções sempre alimentão;/ De reger como filhos os seus
povos;/ Tocados se verão. Prudentes, sábios;/ Consultarão
primeiro sobre a escolha;/ Daquelles Chefes, que a remotos
climas;/ Determinão mandar, delles fiando;/ A importante
porção do seu governo” (p. 24)

Essas são as palavras que Doroteu utiliza quando se refere à reação que os bons monarcas
teriam ao ler as Cartas de Critilo. De tanta vergonha ao ver que aqueles que eles
delegaram pra reger as porções mais longínquas dos seus domínios, Doroteu acredita que
os monarcas vão passar a consultar primeiro antes de escolher um chefe. Não se observa
aqui nenhum tipo de crítica, mas sim de um aconselhamento. Doroteu delega a solução
para o problema dos governadores tirânicos, como Fanfarrão Minésio, ao próprio Rei,
embora aconselhe que essa solução seja debatida, e não decidida de forma arbitrária. Em
seguida, ele continua a se posicionar contra a escolha arbitrária dos Chefes como se
estivesse respondendo a um argumento contrário ao seu conselho:

“A virtude;/ Nem sempre aos netos por herança desce;/ Póde o


pai ser piedoso, sábio, e justo;/ Manso, affavel, pacifico, e
prudente:/ Não se segue daqui, que um impio filho;/ Perverso,
infame, discolo, e malvado;/ Não desordene de seus pais a
gloria;/ Nem sempre as águias de outras águias nascem;/ Nem
sempre de leões leões se gérão:/ Quantas vezes as pombas, e os
cordeiros;/ São partos dos leões, das águias partos” (pp. 24-25)

O argumento de Doroteu é certeiro no que concerne à delegação de governadores ou vice-


reis em virtude da fama e das glórias de sua família. A ideia fica ainda mais clara a seguir:

“Para reger, ó Reis, os vossos povos;/ Debalde ides buscar


brazões, e escudais;/ Entre os vossos Dynastas” (p. 25)

Como se realmente estivesse fazendo um debate, após apresentar o problema, propor um


conselho e discutir porquê a forma como se opera a delegação de poder não é adequada,
Doroteu concretiza sua ideia propondo uma solução com base no argumento de
autoridade da Antiguidade Clássica:

“Athenas;/ É quem a todas o caracter dava:/ Igualmente Civil


Juris-consulto;/ Que instruído guerreiro, era mandado;/ Um
cidadão, que da província as rédeas;/ Manejasse fiel. Daqui os
Fabios;/ Daqui os Scipiões, e os bons Emilios;/ Os Césares
daqui, que os fastos ornão.” (p. 25)

Doroteu se refere à democracia Ateniense e à República Romana, em que cidadãos


comuns manejavam as rédeas da província e a quem mesmo os instruídos guerreiros
respondiam. Fica claro, portanto, que Doroteu aconselha ao Rei para que o critério de
escolha para os seus representantes no Ultramar não seja baseado na genealogia das
famílias e dinastias, mas nas virtudes pessoais dos cidadãos que sejam dignos, como os
Fábios, Cipiões, Emílios e Césares que tanto geram admiração nos grandes de seu tempo.
Essa ideia merece particular atenção para não incorrer em interpretações equivocadas.
Doroteu-Cláudio está defendendo uma maior publicização do poder, de forma que este
não esteja restrito apenas aos homens de linhagem nobre, mas a qualquer um que possua
as virtudes da boa-governança. Isso não quer dizer, no entanto, uma publicização
irrestrita, no sentido universalizante do termo. O poeta não está defendendo nada novo, e
isto fica claro justamente pelo fato de ele evocar a autoridade da Antiguidade Clássica
como argumento de precedência bem-sucedida daquilo que ele está aconselhando. Um
César ou um cidadão ateniense não correspondem a uma noção geral de “público” ou de
“homem virtuoso”, mas sim ao espaço restrito de um determinado tipo de público, ou de
um determinado tipo de homem virtuoso, qual seja, o público e o homem aristocratas. É
importante demarcar isso, para não enxergar nessa ideia nenhum prenúncio de uma
democracia liberal ou de um rompimento sistemático com a ordem estamental baseada
fundamentalmente no nascimento e na posição social do indivíduo.

Ao fim desse arco de conselho quanto à delegação de poder, Doroteu lastima os prejuízos
que os vassalos sofram nas mãos de um déspota eleito por conta da linhagem familiar:

“É filho do Marquez, do Conde é filho;/ Vá das índias reger o


vasto Império;/ Ó Deus e que infelices os vassalos;/ Que tão
longe do Throno prostitúe;/ O vosso Império aos abortivos
Chefes!/ Lá vai aquelle, de avara sede” (p. 26)

É interessante notar em como essa argumentação é imbuída de um certo valor religioso,


uma vez que se evoca a ideia da “avara sede”, bem como nos versos seguintes fala-se:
“brutto apetite”, “aos vis ataques do atrevido orgulho”, “victimas da voraz sensualidade
as vossas filhas serão”, “que direi do soberbo, do vaidoso, do colérico”. A referência aos
pecados capitais endossa, pois, a construção do governador tirânico e autocrático.

Por fim, Doroteu encerra sua argumentação com mais um apelo à prudência do Rei,
expondo a fragilidade que os vassalos das colônias sofrem por estar longe da Metrópole:

“Gozar da sombra do copado tronco;/ É só livre ao que perto


tem o abrigo;/ Dos seus ramos frondosos. Se se aparta;/ Da
clara fonte o passageiro, preva;/ Turbadas águas em maior
distancia.” (p. 28)

Há aqui uma metáfora em que o Rei é representado primeiro como uma árvore e depois
como uma fonte de águas, não à toa, são duas figuras que remetem à vida. Só é livre
aquele que está à sombra do Rei, ou próximo da fonte, mas quanto mais se afasta, encontra
as águas turbadas, aqui representando a tirania. É importante notar que, para Doroteu, o
próprio corpo do Rei é uma garantia de liberdade, o que dota de mais sentido a imagem
da fonte, enquanto algo que emana vida e calmaria. Novamente, não há qualquer alusão
a uma crítica ao Rei, por mais que se julgue irregulares certas práticas de governo.

“Dos teus versos será, como em espelho;/ Que as cores toma, e


que reflecte a imagem;/ Os impios Chefes de uma igual
conducta;/ A elle se verão, sendo arguidos;/ Pela face brilhante
da virtude;/ Que nos defeitos de um castiga a tantos” (pp. 29-30)

Assim Doroteu encerra sua epístola. Novamente ele utiliza de um recurso linguístico
que denota verossimilhança, embora dessa vez se trate de um espelho. No entanto, o
espelho e a pintura têm uma diferença que faz todo sentido à luz de uma consideração
crucial: se na pintura se observa o outro, no espelho observa-se a si próprio. Além de
uma história verossímil com a realidade, Doroteu evoca os versos de Critilo como uma
espécie de censura, em que o governador se olha e é arguido “pela face brilhante da
virtude”. A imagem do Critilo censor se confirma em uma das últimas estrofes da
epístola: “elles dirão, voltando-se a Critillo: Quanto devemos, ó Censor facundo”.

Acabada a Epístola de Doroteu, agora se coloca sob foco as duas partes introdutórias
posteriores, bem menores, e que apenas recolocam algumas ideias já expostas na
Epístola, mas que estarão presentes no corpo das Cartas Chilenas.

Na dedicatória aos Grandes de Portugal, como o próprio nome diz, um suposto tradutor
da obra de Critilo para o português, geralmente considerado como Gonzaga, deixa claro
que a obra é, sobretudo, destinada ao Rei e aos seus maiorais, conforme ele diz em:

“[...] logo assentei comigo, que Vv. Ex.cias havião de ser os


Mecenas, a quem as dedicasse [...] são por isso aquelles, a
quem se deve consagrar todos os escriptos, que os podem
conduzir ao fim de um acertado Governo.” (p. 31)

A sátira de Critilo cumpre, pois, a função de instruir e de aconselhar. Ainda nessa parte,
é feito um paralelismo entre o teatro e a sátira metafórica a fim de mostrar duas formas
distintas de se oferecer um modelo de boa-governança: “um, quando vemos acções
gloriosas, que nos despertão o desejo da imitação; outro, quando vemos acções indignas,
que nos excitão o seu aborrecimento”.
Um último detalhe interessante na Dedicatória é a própria assinatura do autor: “o seu
menor criado”. Trata-se de mais uma corroboração à ideia aqui defendida sobre como se
processa a ligação do texto com o Rei. Esse sujeito que instrui, que aconselha o Rei, que
age como pintor e censor da realidade que vive, representa a si próprio como apenas o
menor dos criados do Rei, denotando um absoluto respeito ao decoro típico de um vassalo
que não questiona a autoridade de seu senhor.

O prólogo é também narrado pelo tradutor de Critilo, mas desta vez revelando que teve
contato com o próprio quando “arribou a certo porto do Brasil, onde eu vivia, um galeão,
que vinha das Américas hespanholas. Nelle se transportava um mancebo, cavalheiro
instruído nas humanas Letras”. Nesse diálogo direto entre Tradutor-Gonzaga e o público
leitor, é exposto o motivo pelo qual as Cartas teriam sido traduzidas do espanhol:

“Logo que li estas Cartas, assentei comigo que as devia traduzir na


nossa lingua; não só porque as julguei merecedoras deste obséquio
pela simplicidade do seu estylo, como também pelo beneficio, que
resulta ao publico, de se verem satyrisadas as insolencias deste
Chefe, para emenda dos mais que seguem tão vergonhosas pisadas”
(p. 33)

A ideia da sátira como benefício ao público aqui se sustenta mais uma vez, bem como um
pouco mais a frente o tradutor-Gonzaga recomenda ao leitor: “Lê, diverte-te”.

É notório, pois, ao longo da análise dos três textos, que existem três personagens
diferentes em jogo, mas que desempenham funções que se complementam. Há Doroteu-
Cláudio, certamente a figura mais destacada do presente trabalho por desenvolver uma
linha de pensamento estruturada como comentador das Cartas Chilenas; Há o próprio
Critilo-Gonzaga, que embora não tenha sido autor de nenhuma das partes introdutórias, é
a figura que transita por todas as seções do texto; e ainda há o tradutor-Gonzaga, que
cumpre o papel ficcional de trazer as cartas de Critilo para a América Portuguesa como
se estas realmente estivessem vindo do Chile onde teriam sido escritas, mas que,
sobretudo, é o único que estabelece um diálogo direto com o leitor e elucida uma questão
de extrema importância se for levado em conta que a obra foi pensada e executada em
espaço mineiro: o que motivou as Cartas Chilenas a serem escritas?

3. Conclusão

Além da simplicidade do estilo, o tradutor-Gonzaga evoca um segundo motivo para trazer


as Cartas a público: “para emenda dos mais que seguem tão vergonhosas pisadas”. Em
suma, se afirma que Fanfarrão Minésio não é apenas um indivíduo, mas um fenômeno
que se repete, independente do espaço (chileno ou mineiro), como é dito em: “Há muitos
fanfarrões no mundo, e talvez que tu sejas também um deles”. Trazendo para campos
concretos, os textos introdutórios das Cartas realizam dois movimentos: 1) apresentam
um problema com todas as suas nuances, que são os abusos de poder dos governadores
locais; 2) instruem o público acerca destes males, utilizando de recursos como a apelação
ao ridículo para trazer todo esse universo político para o “gosto do popular”, ao mesmo
tempo que instruem também ao Rei sobre que medidas poderiam ser cabíveis para
resolver o problema. Com base nesses dois movimentos, como inserir o documento no
campo político-social e intelectual vigente nos últimos meados do século XVIII?

As ideias que permeiam os textos abordados dialogam com esse contexto no sentido de
que se pode depreender que são ideias que se opõem a figura do governador por este não
possuir nenhuma virtude que justifique seu posto. No entanto, essa oposição se dá num
quadro diferente daquele que Jancsó chama de “nova variante da cultura política
dominante”, primeiramente por não poder ser detectado no documento nenhuma proposta
radicalmente distinta do que era praticado até então, tampouco algum ideal revolucionário
contra o sistema colonial na província de Minas. Muito pelo contrário, Cláudio e Gonzaga
estão atuando com esses escritos por dentro do universo legal: não há crítica, mas
conselho; não há insubmissão, mas respeito ao lugar ocupado pelo Rei; não há indicativos
de emancipação, mas preponderância de termos como “vassalo” e “criado”. Em outras
palavras, as Cartas Chilenas estão inseridas em uma lógica de conservar a cultura política
dominante, com uma ou outra reforma para combater o despotismo. Segundo o próprio
Jancsó, essa nova cultura política emergia de dentro da política tradicional, de forma que
as primeiras manifestações de oposição se davam dentro dos limites e conforme os ritos.
Se as Cartas são conservadoras, no entanto, diz Jancsó, “expressavam no acre da sátira,
um sentimento de impotência política de viés tradicional, uma variante corrosiva do ‘viva
ao Rei, morra o mau governo’ circunscrita à República das Letras [...]”16.

Portanto, se as Cartas não podem ser consideradas como parte vívida da Ilustração
revolucionária que despontava após a Independência dos EUA ou da Arcádia portuguesa
que questionava o absolutismo na arte17, tampouco podem ser consideradas como
estritamente escolásticas. É, pois, de suma importância compreender o pensamento
gonzaguiano como mais complexo e contraditório do que as categorias fazem crer18, além

16
JANCSÓ, István, op. cit., p. 400.
17
HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit., pp. 179-181.
18
POLITO, Ronald, op. cit., p. 291.
de uma adaptação ao espaço colonial de uma série de ideias nascidas na Europa, como o
próprio arcadismo e a Ilustração.

4. Anexos:
4.1 Dedicatória aos Grandes de Portugal

“Ilmos. e exmos. senhores,

Apenas concebi a ideia de traduzir na nossa língua e de dar ao prelo as Cartas Chilenas,
logo assentei comigo que V.Exas. Haviam de ser os Mecenas a quem as dedicasse. São
V.Exas. aqueles de quem os nossos soberanos costumam fiar os governos das nossas
conquistas: são por isso aqueles a quem se devem consagrar todos os escritos, que os
podem conduzir ao fim de um acertado governo.

Dois são os meios porque nos instruímos: um, quando vemos ações gloriosas, que nos
despertam o desejo da imitação; outro, quando vemos ações indignas, que nos excitam o
seu aborrecimento. Ambos estes meios são eficazes: esta a razão porque os teatros,
instituídos para a instrução dos cidadãos, umas vezes nos representam a um herói cheio
de virtudes, e outras vezes nos representam a um monstro, coberto de horrorosos vícios.

Entendo que V.Exas. se desejarão instruir por um e outro modo. Para se instruírem pelo
primeiro, têm V.Exas. os louváveis exemplos de seus ilustres progenitores. Para se
instruírem pelo segundo, era necessário que eu fosse descobrir o Fanfarrão Minésio, em
um reino estranho! Feliz reino e felizes grandes que não têm em si um modelo destes!

Peço a V.Exas. que recebam e protejam estas cartas. Quando não mereçam a sua
proteção pela eloquência com que estão escritas, sempre a merecem pela sã doutrina que
respiram e pelo louvável fim com que talvez as escreveu o seu autor Critilo.

Beija as mãos de V.Exas.

O seu menor criado...”

4.2 Prólogo

“Amigo leitor, arribou a certo porto do Brasil, onde eu vivia, um galeão, que vinha das
Américas espanholas. Nele se transportava um mancebo, cavalheiro instruído nas
humanas letras. Não me foi dificultoso travar, com ele, uma estreita amizade e chegou a
confiar-me os manuscritos, que trazia. Entre eles encontrei as Cartas Chilenas, que são
um artificioso compêndio das desordens, que fez no seu governo Fanfarrão Minésio,
general de Chile.

Logo que li estas Cartas, assentei comigo que as devia traduzir na nossa língua, não só
porque as julguei merecedoras deste obséquio pela simplicidade do seu estilo, como,
também, pelo benefício, que resulta ao público, de se verem satirizadas as insolências
deste chefe, para emenda dos mais, que seguem tão vergonhosas pisadas. Um D. Quixote
pode desterrar do mundo as loucuras dos cavaleiros andantes; um Fanfarrão Minésio
pode também corrigir a desordem de um governador despótico.

Eu mudei algumas coisas menos interessantes, para as acomodar melhor ao nosso gosto.
Peço-te que me desculpes algumas faltas, pois, se és douto, hás de conhecer a suma
dificuldade, que há na tradução em verso. Lê, diverte-te e não queiras fazer juízos
temerários sobre a pessoa de Fanfarrão. Há muitos fanfarrões no mundo, e talvez que tu
sejas também um deles, etc. ...

Quid rides ? mutato nomine, de te Fabula narratur...

Horat. Sat lª, versos 69 e 70."


Referências Bibliográficas:

APARÍCIO, João Paulo da Silva. Governar no Brasil colonial: a administração de Luís


da Cunha Meneses nas capitanias de Goiás (1778-1783) e de Minas Gerais (1783-1788).
– 1. Ed. – São Paulo: Hucitec, 2015.

BLUTEAU, Raphael. Diccionario da Lingua Portugueza ... Lisboa: Officina de Simão


Thaddeo Ferreira, 1789, 2.v.

CÂNDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos (1750-


1880). – 15ª edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2014.

FURTADO, Joaci Pereira. Uma república de leitores. História e memória na recepção


das Cartas chilenas (1845-1989). São Paulo: Hucitec, 1992.

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SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a sombra. Política e administração na América


portuguesa no século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

VILLALTA, Luiz Carlos. O que se lê e o que se fala. Língua, instrução e leitura. In:
SOUZA, L. M. (org.). História da vida privada no Brasil.- v.1. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.

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