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Fut-business: como o capitalismo descaracteriza o esporte do

povo

No começo do ano mais uma temporada do chamado “Mercado da Bola” se abre


para os principais campeonatos de futebol do mundo. Ainda que a mídia
capitalista bombardeie com entusiasmo as contratações milionárias e os salários
gigantescos de jogadores, cada vez mais o capital se apodera da paixão de
milhões de trabalhadores do mundo inteiro para produzir espetáculos financeiros
restritos a uma minoria que lucra nas costas de atletas, torcedores e toda a
comunidade esportiva. Se essa é a forma que o futebol assumiu na sociedade
capitalista, por qual futebol lutamos para uma nova sociedade?

Gabriel Borges

Foto: Jornal A Verdade

O futebol é o esporte mais eminentemente popular que existe e a paixão


por ele é uma marca registrada da nossa classe trabalhadora. No entanto, diante
da sociedade governada pelos grandes capitalistas, nossa paixão se torna nicho
de mercado, nossos jovens talentos se tornam matéria-prima barata pra ser
exportada para o exterior e agregar lucro para empresários do futebol e times
milionários, o nosso campeonato brasileiro carece de estrutura ao mesmo tempo
que se elitiza ao elevar custos de ingressos, acabar com as populares
arquibancadas e perseguir as torcidas organizadas – histórico foco de resistência
e defesa de um futebol realmente popular - enquanto ainda é tomado pela
corrupção de grandes cartolas como João Havelange e José Maria Marin,
intimamente ligados com o que há de mais atrasado na política. No final do
último ano ainda, o Congresso Nacional aprovou um projeto que cria a opção
para os clubes brasileiros se tornaram sociedades-empresariais, marcando de vez
a transformação das equipes de futebol de associações civis não-lucrativas em
verdadeiros negócios para a burguesia.
Como mostra um estudo feito pela consultora BDO em 2011, só no Brasil
os clubes movimentaram cerca de 2,8 bilhões de reais em receitas apenas no
início da década. Hoje, segundo dados da Transfermarkt, na janela de verão de
2019 o futebol europeu sozinho movimentou mais de 1,9 bilhão de dólares (algo
em torno de 8,2 bilhões de reais). Isso se reflete em contratações milionárias de
jogadores a cada temporada, eventos esportivos cada vez mais luxuosos (e
excludentes) e um lucro anual estratosférico para os grandes empresários do
futebol, mesmo com o mundo passando por uma recessão econômica brutal
desde que o sistema capitalista entrou em crise em 2008.

Apesar de os grandes veículos de comunicação apresentarem esse


cenário de forma romantizada e bastante eufórica, é importante mostrar o
quanto essa ordem é devastadora tanto para o esporte em si, quanto para a
juventude esportista que se torna refém de empresários que lhes vendem um
sonho de riqueza e ostentação, mas que na verdade poucas vezes se converte
em realidade (ou mesmo quando se torna, quanto tempo dura?). Como diz
Mickaël Correia em seu “Uma História Popular do futebol”:

“No caso do futebol, há uma história oficial, entoada pelas


grandes competições que estão nas mãos de instituições como
a FIFA. É uma história ao serviço do futebol enquanto cultura
de massas mas sobretudo enquanto divertimento mercantil.
Dá destaque aos feitos desportivos dos grandes clubes de
elite, das seleções nacionais e de alguns jogadores
profissionais como Cristiano Ronaldo. E atira para debaixo do
tapete as relações com regimes autoritários, a corrupção que
gangrena este desporto e os valores sexistas, racistas e
homofóbicos veiculados em certas tribunas ou por
responsáveis de federações nacionais. Esta história destaca
um futebol de elite, sempre com a mesma lenga-lenga: ‘O
futebol é apenas desporto, não é política’”

De fato, pode-se dizer que o futebol é um bem da classe trabalhadora


roubado pelos capitalistas para se transformar em negócio. É fato sabido que a
popularização do futebol se deu nas massas operárias, marca presente na
história de importantes clubes do Brasil e do mundo. No entanto, se de um lado
a classe trabalhadora em suas iniciativas coletivas e com fins de lazer construía
seus clubes, do outro, os patrões também criavam os seus, buscando esmagar os
clubes populares e submetê-los a uma lógica de espetáculo financeiro e
maximização de lucros. O engolimento dos clubes populares pela lógica
capitalista não destruiu o cenário de resistência. Dentro dos próprios times havia
revolta contra a corrupção dos dirigentes, contra os apoios a regimes ditatoriais
e a reprodução de práticas racistas e sexistas dentro de campo. O historiador já
citado defende como a própria invenção do drible foi um ato de resistência
contra a violência gratuita e impune cometida por jogadores brancos contra
jogadores negros:

“É assim que se vai desenvolver o drible no Brasil, que os negros


praticam para se esquivarem às agressões físicas dos jogadores
brancos. O drible, a finta, que é hoje uma prática essencial no
futebol brasileiro, traz consigo a própria condição do
colonizado: para existir, no campo como na sociedade, deve
escapar à violência do colono.”.

A Democracia Corintiana nos anos da ditadura militar brasileira é outro


grande exemplo da revolta dos jogadores contra os cartolas do futebol que
apoiaram e sustentaram os gorilas fascistas que matavam e torturavam o nosso
povo.

Fotos: Jornal A Verdade

No mundo imperialista e de domínio hegemônico pelos capitais


estadunidense e europeu que se ergueu nas últimas décadas com o recuo do
campo socialista, a lógica dos países centrais e periféricos do sistema mundial
capitalista se reproduz também no futebol. Não é a toa que, apesar da nossa
seleção brasileira, ou mesmo a argentina, terem uma gama enorme de incríveis
talentos futebolísticos, isso não se reflete em superioridade dos seus
campeonatos nacionais. Hoje, nenhum outro campeonato no nível dos clubes
movimenta tanto dinheiro como a UEFA Champions League e os campeonatos
nacionais dos principais países capitalistas da Europa: Alemanha, Inglaterra,
Itália, Espanha e França. Aliás, “campeonato nacional” é mesmo um termo
bastante escorregadio, já que os clubes são verdadeiros aglutinadores de nações.
Para os jogadores que encantam o público no seu país de origem (periférico) não
demora muito para serem negociados para jogar nos times europeus – a
promessa muitas vezes vazia de sucesso para o jogador filho da classe
trabalhadora, em contradição com o lucro garantido do empresário que está por
trás dele. A seleção brasileira campeã da última Copa América é um grande
exemplo: de todos os jogadores titulares escolhidos por Tite, apenas Everton
“Cebolinha” atua no Brasil, embora esse cenário deva mudar na próxima janela
de transferências devido ao desempenho do jogador.

Na Copa do Mundo de 2018 não foi diferente: mesmo a França sendo


uma seleção central na ordem capitalista futebolística no mundo hoje, a maioria
de seus craques possuem nacionalidade compartilhada com países africanos
explorados cruelmente pelos franceses. Na ausência de oportunidades no país de
origem dos seus pais, esses jovens jogadores das favelas de Paris ingressam na
seleção francesa, muitas vezes não por orgulho nacional, mas por melhores
condições de carreira. Isso que só mencionamos casos bem sucedidos: se
fôssemos mencionar aqueles que vão para Europa (ou pro Oriente) como
promessa e não conseguem sucesso, ficando longe de suas famílias,
abandonados por empresários e sem condições de voltar pra casa, esse texto já
grande não acabaria mais.

Um dos poucos exemplos de resistência a essa dinâmica cosmopolita do


futebol sob o neoliberalismo vem sendo o Atlético Bilbao, clube da região basca
no território espanhol. Fundado em 1898, a partir de 1912 a equipe bilbaína
adotou a política de contratar apenas jogadores bascos de sua base para disputar
o campeonato nacional. Foi, no entanto, na ditadura fascista de Franco que essa
política ganhou força: sob esse regime, as expressões culturais das minorias
nacionais espanholas foram brutalmente reprimidas e proibidas para se criar
uma artificial nacionalidade espanhola única. Bascos, assim com catalães,
resistiram às proibições de inúmeras maneiras, mas no futebol a política do
Atlético Bilbao de jamais esconder os símbolos de sua cultura e valorizar os
atletas locais ficou mundialmente famosa. Segundo o torcedor Urko:

A filosofia basca é a base do clube. Sem sua filosofia o


Athletic seria uma equipe a mais, como o Barça, o
Valencia ou o Madrid. Se contratam jogadores de outras
partes da Espanha ou estrangeiros, a gente deixaria de ir
ao estádio. O Athletic não seria o Athletic. Digamos que
em Bilbao e Bizkaia (a província) quando você nasce, te
colocam uma camisa do Athletic. É como se fosse uma
parte da família. Se conhece a seus pais, tios e avós… logo
conhecem o Athletic também. É como uma religião. É um
sentimento difícil de explicar, tem que levar no coração
para poder sentir”

A forma de resistência do futebol basco é amplamente aprovada por seus


torcedores também por ir contra a hegemonia das equipes centrais do futebol
espanhol, já engolidas pelo neoliberalismo. E o resultado disso é bastante
vitorioso: com 8 campeonatos nacionais, 24 copas, 2 supercopas e nenhum
rebaixamento, o Atlético Bilbao é uma das equipes mais tradicionais da Espanha.

Foto: reprodução/Medium.

O futebol popular praticado fora das vias institucionais, a pelada de


domingo, o golzinho de chinelo no meio da rua, o time dos sem-camisa contra os
com-camisa, esse sim é o mais legítimo representante do lazer e da coletividade
da classe trabalhadora. Quando a burguesia dominou e institucionalizou o
futebol, coube ao povo tanto resistir por dentro dos clubes, como também
praticar o esporte de forma marginal. Mas isso ainda está longe de representar
toda a potencialidade que o esporte tem para promover saúde, lazer e mesmo
identidade com seu povo. O futebol “globalizado”, elitizado, predatório
perpetuado por instituições como a FIFA e os grandes clubes é um reflexo de
uma sociedade dominada pelo capital e pelos capitalistas. Apenas com uma
sociedade socialista, em que o esporte seja de fato esporte e não um negócio, a
paixão de nosso povo deixará de ser nicho de mercado e nossos jovens talentos
deixarão de ser fonte de lucro pra terceiros ou vítimas da meritocrata promessa
de luxo e ostentação.

Em entrevista ao repórter brasileiro Jayme Sautchuk, o futebolista e


médico albanês Petrit Dibra, mostra como funcionava o futebol naquela nação
socialista que existia ao longo do século passado:
“O que nós consideramos mais valioso são os valores morais
que temos. O nosso respeito é pelo nosso povo e pelo nosso
partido. Eu não posso aceitar aquele ganho provisório de
enormes somas de dinheiro como ocorre, por exemplo, no
Brasil. A diferença básica é esta: aqui na Albânia o jogador tem
sua profissão, tem seu futuro assegurado, enquanto nos países
capitalistas, o jogador é profissional e ganha enquanto pode
jogar. Caso ele ganhe enormes fortunas, ele tem duas
alternativas: ou ele investe aquele dinheiro e se torna um
capitalista, passando então para o lado dos exploradores, ou,
então, ele gasta tudo e fica com o futuro incerto. Basta citar o
caso do Garrincha”.
À direita, o futebolista e médico albanês, Petrit Dibra. Foto: Jornal A Verdade

O futebol dos cartolas e que serve a políticos e especuladores não


interessa à classe trabalhadora. Lutemos pelo socialismo e transformemos o
esporte em benefício para a nossa gente!

Fontes:

Citações de Mickaël Correa: http://www.jornalmapa.pt/2018/10/08/quando-o-


futebol-faz-uma-finta-ao-capitalismo/
Entrevista de Petrit Dibra: SAUTCHUK, Jayme. O socialismo na Albânia: um
repórter brasilero no país de Enver Hoxha. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/0B8swU2MBNYv0cklockVFVnJLX1k/view?
fbclid=IwAR2WmN4H_w8xP3b698386510sCVztX1m90Uzn-
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Athletic Bilbao, um time que mantém as tradições de seu povo pelas categorias
de base: https://medium.com/@laracpereira/athletic-bilbao-um-time-que-mant
%C3%A9m-as-tradi%C3%A7%C3%B5es-de-seu-povo-pelas-categorias-de-base-
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Imagens reproduzidas da internet.

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