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Nº USP: 10764381
Turno vespertino
A epístola que vem a seguir trata-se de um diálogo direto com Dom Francisco onde
se expressa uma opinião bastante crítica do autor com relação aos herdeiros de
Vasco da Gama até aquele momento. Ele se mostra grandemente indignado com o
fato de nunca ter sido ordenada qualquer escrita em memória dos grandes feitos de
Vasco da Gama, alegando que isso seria uma imensa irresponsabilidade e
fundamentando sua crítica com descrições de tais feitos e fazendo comparações
com grandes figuras da história clássica. Ao fim, em sua última recomendação ao
destinatário, Couto mostra claramente seu objetivo com essa fonte, que concerne ao
fato de que ela seja como uma espécie de cartilha que perpetue na casa da
Vidigueira para que os herdeiros futuros possam se inspirar no exemplo de seu
fundador.
A narrativa, por sua vez, possui uma forma e um conteúdo bastante diferentes das
etapas iniciais da fonte. Aqui, o autor deixa de lançar um olhar crítico e passa a
descrever os acontecimentos da viagem de Vasco da Gama de forma quase épica e
heroica, vindo de encontro coerentemente com seu objetivo de estabelecer uma
relação de modelo a ser seguido entre ele e seus herdeiros. No primeiro capítulo ele
narra os prelúdios do que viria a ser a grande expedição de Vasco, mostrando,
também em forma de exaltação, como o rei Manuel conseguiu levar adiante a ideia
de procurar uma rota nova para as Índias mesmo com a oposição de muitos
membros de sua corte.
2
FALCON, Francisco J. C., Tempos Modernos. Ensaios de História e Cultura. Descobrimentos,
mentalidades e cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp.199-207.
3
CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas. São Paulo: Martin Claret, 2012. – (Coleção a obra prima de cada
autor; 33), canto primeiro. pp, 18.
aspectos bastante interessantes para se compreender aquela sociedade, sendo
esses a dilatação da fé católica em função do combate ao Islã que dominava uma
vasta região ao sul da Península ibérica. Essa afirmação é dotada de sentido ao
levar-se em consideração o papel da Reconquista, isto é, da luta contra o Islã, na
constituição de um mito unificador da Cristandade ibérica que resultou na formação
de uma ideia de nação com uma missão histórica de expandir a religião cristã por
todo o mundo4. Além da formação desse ideário de um destino revelado por Deus
aos ibéricos, a Reconquista teve suas consequências materiais bastante claras no
que concerne a um novo conceito de exercício de poder e de organização da
sociedade sempre voltados para a guerra contra o mouro e o fortalecimento da
Cristandade, o que fica claro no tratado de Couto em momentos bastante
específicos como a seguir:
4
RUCQUOI, Adeline, História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995, cap II: A
Reconquista como mito unificador. pp. 215-216.
5
BARBOSA, F°, Rubens, Tradição e Artifício. Iberismo e barroco na formação americana. Belo
Horizonte/Rio de Janeiro: Ed. UFMG/UFPERJ, 2000. cap. VI, Absolutismo e neotomismo na Ibéria
do século XVI. pp. 259-278.
esse ponto de vista, pois mostra que seu conservadorismo na ideia de manter as
rotas comerciais até as Índias pela via egípcio-mameluca e pelo Levante pode não
ter se dado apenas por uma questão de essa rota ser bastante estável e construída
historicamente como uma alternativa que visava justamente um caminho pacífico
para o Oriente6, mas como uma estratégia política de limitar os poderes reais
crescentes. Ademais, uma expansão cosmopolita até a Índia através da circum-
navegação da África significava romper com o monopólio que as repúblicas italianas
mantinham sobre as especiarias orientais, e daria a Portugal um novo contorno de
nação comercial independente das tradicionais negociações com os italianos 7. À
altura de uma construção de hegemonia sobre cada vez mais produtos, a Coroa
assumia uma política econômica centralizadora quer por domínio absoluto das
riquezas, quer por concessões de exploração com porcentagens sobre o lucro dos
arrendatários, quer por impostos alfandegários 8. A passagem desse tratado que
narra esses conflitos é, então, fundamental para extrair importantes características
de práticas e interesses de grupos governantes do Império português na época de
Vasco da Gama e como seu papel e importância não escapam da mentalidade do
cronista.
Outra linha de força muito importante no meio político português que aparece no
tratado é a Ordem de Cristo, no momento anterior à partida de Vasco da Gama
quando ele precisa fazer um juramento perante Deus e o Rei. Dessa forma, a
narrativa de Diogo do Couto não deixa de, por um lado, apresentar o caráter de
missão divina atribuído à expedição de Vasco da Gama, mas também a total
inserção dos poderes eclesiásticos, em especial as Ordens religiosas, dentro do
aparato do Estado português, o que também não se desvincula das tendências e
interesses envolvidos na complexa relação de forças em Portugal 9. É ainda nessa
região do tratado que se mostra com força uma outra mentalidade do período como
forma de justificativa místico-religiosa das expedições atlânticas: a procura do Preste
João. Como mostra Boxer (1969):
6
GODINHO, Vitorino Magalhães, A Expansão Quatrocentista Portuguesa. Lisboa: Publicações D.
Quixote, 2007. cap. III, Os Turcos Otomanos e a gênese da expansão europeia. pp. 71-88.
7
BOXER, Charles Ralph, O Império marítimo português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1969.
Cap I: O ouro da Guiné e o Preste João. pp 39.
8
BOXER, Charles Ralph, O Império marítimo português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1969.
Cap XIV: Mercadores, monopolistas e contrabandistas. pp 307-315.
9
PALOMO, Federico, A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700. Lisboa: Livros Horizonte, 2006,
pp. 30-55.
Mas em Portugal, como em toda a parte, acreditava-se
indubitavelmente que esse misterioso rei-sacerdote, uma vez
localizado em definitivo, seria um aliado inestimável contra os
Muçulmanos, quer fossem eles Turcos, Egípcios, Árabes ou
Mouros. No que diz respeito aos Portugueses, esperavam
encontrá-lo numa região africana, onde poderia ajudá-los contra
os Mouros. (p. 37-38)
Apesar disso, Diogo do Couto não deixa de lançar luz a um elemento fundamental
nas relações entre cristãos e muçulmanos que é o intercâmbio tecnológico e
científico entre ambos, característica essa que, em linhas gerais, fundou o projeto de
navegação em dimensões maiores uma vez que irradiada para o Atlântico 11. Nesse
sentido, o diálogo entre Vasco da Gama e o piloto de Melinde é uma excelente
representação da própria história das Grandes Navegações.
10
Idem referência 6, pp 75-88.
11
GODINHO, Vitorino Magalhães, Os Descobrimentos e a Economia Mundial. Lisboa: Presença,
1981-19803. 4 v. Introdução.
entre a Cristandade e os mais encarniçados inimigos e contribuidores de sua
história. Diogo do Couto enquanto autor é também digno de nota, pois ao se
esmiuçar as suas escolhas, suas impressões, suas críticas e seu estilo de
expressão, abre-se uma perspectiva de análise sobre o que era o homem português
naquele período e quais eram seus espaços de experiência e horizontes de
perspectiva, ou, em outras palavras, como se dava sua inserção naquele tempo
histórico em meio a determinadas mentalidades e concepções de mundo.
Bibliografia
BARBOSA, F°, Rubens, Tradição e Artifício. Iberismo e barroco na formação
americana. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Ed. UFMG/UFPERJ, 2000. cap. VI,
Absolutismo e neotomismo na Ibéria do século XVI. pp. 259-278.
BOXER, Charles Ralph, O Império marítimo português (1415-1825). Lisboa:
Edições 70, 1969. Cap I: O ouro da Guiné e o Preste João. pp 39.
CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas. São Paulo: Martin Claret, 2012. – (Coleção a obra
prima de cada autor; 33), canto primeiro. pp, 18.
COUTO, Diogo do. Tratado dos feitos de Vasco da Gama e seus filhos na Índia
(manuscrito 1559). Edição Cosmos, Lisboa:1998 – Epístola e cap. 1-6.