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4/10/2021 Codinome, Francis Newton - por Eric Hobsbawm - revista serroterevista serrote

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CODINOME, FRANCIS NEWTON – por Eric Hobsbawm

Este ensaio de Eric Hobsbawm (1917 – 2012) foi publicado originalmente na revista serrote #6.

Devo meus anos como jornalista de jazz à peça Look Back in Anger, de John Osborne, que obrigou o establishment cultural britânico de meados dos anos
1950 a registrar a existência daquela forma musical tão evidentemente querida dos novos e talentosos Angry Young Men. Quando, ao precisar de dinheiro,
eu vi que Kingsley Amis escrevia no The Observer sobre um assunto do qual ele obviamente entendia não mais, e talvez menos, do que eu, liguei para um
amigo que trabalhava no New Statesman. Ele agendou um encontro com o editor, Kingsley Martin, então no apogeu de sua glória, que disse “Por que
não?”, explicou que concebera seu leitor padrão como um funcionário público de 45 anos, e me encaminhou para a comandante da segunda metade
(cultural) da revista, a formidável Janet Adam Smith. Seus interesses iam de montanhismo a poesia, mas não incluíam jazz. Assinando como Francis
Newton (tomando emprestado o nome de um trompetista de jazz comunista que tocou na versão de Billie Holiday para “Strange Fruit”), eu escrevi para o
New Statesman mais ou menos uma coluna por mês, por aproximadamente dez anos.

Eram bons tempos para escrever sobre jazz. Não apenas a coluna me dava algum alívio das convulsões pessoais e políticas do ano de 1956, aquele ano de
crise comunista,1 como era a primeira vez desde 1935 que os músicos de jazz americanos podiam ser ouvidos ao vivo na Inglaterra. Até aquele momento, o
típico fã de jazz britânico, bem informado pela Melody Maker e por minúsculos jornais de debate, sobrevivera essencialmente numa dieta à base de discos
de 78 rpm, apaixonadamente analisados por jovens do andar de cima dos “clubes de ritmo” dos anos 1930. Um surpreendente número desses discos fora
produzido nos EUA para o mercado britânico, mas os aficionados barra-pesada, especialmente o pequeno porém pioneiro grupo de entusiastas de blues,
também haviam criado suas próprias redes de importação de discos americanos. Eu ficara nas franjas dessa comunidade de experts desde o início dos anos
1930, graças a meu primo Denis Preston, que mais tarde se tornaria uma figura inovadora na área da produção musical; mas, até o exemplo de Kingsley
Amis ter me dado coragem, eu sofria de uma admiração paralisante que me impedia de entrar em seus debates. Jovens e absolutamente provincianos,
suburbanos e musicalmente analfabetos, eles eram mais críticos apaixonados e propagandistas do que músicos propriamente ditos.

Na época em que Francis Newton havia nascido, esses aficionados tinham criado um ambiente jovem, pop e bastante original para o jazz tradicional, que
reproduzia versões do jazz de New Orleans e do country blues, até então gêneros muito mais conhecidos na Inglaterra do que nos EUA. Em uma de
minhas primeiras colunas, registrei a súbita lucratividade do jazz tradicional “e mesmo do último refúgio contra a bancarrota, o canto do blues”, como
demonstravam as lucrativas, porém nada notáveis, imitações de “Reckless Blues”, de Bessie Smith, e a versão marginal e líder nas paradas de Huddie
Ledbetter para “Rock Island Line”, cantada por um surpreso e inocente guitarrista britânico, Lonnie Donegan. “O que significava isso?”, era a minha
pergunta. Agora sabemos que significava o início do rock britânico, os Beatles e os Rolling Stones, prestes a transformar a indústria pop americana no
início dos anos 1960. Esse fenômeno nunca arrebatou a minha geração, ou a da maioria dos músicos de jazz, e muito menos os músicos de estúdios
altamente profissionalizados que precisaram transformar produtos iletrados e amadorísticos em música.

Mas o que Francis Newton significava para mim? A atração que eu sentia não se explicava tanto pela oportunidade de resenhar as performances e os
discos de jazz que agora chegavam em enxurrada, ou mesmo pela tentativa de encaixar essa música extraordinária na sociedade do século 20. Era a chance
de entender os músicos e seu mundo: em resumo, “a cena do jazz”. Eu morava no fim do West End, e dar aulas em Birkbeck me deixava livre a maior parte
do dia, então era possível combinar minha profissão com os hábitos noturnos e nada madrugadores da “cena”. Meu quartel-general era o Downbeat Club,
na Old Compton Street, a alguns minutos a pé da minha casa, uma espelunca que, como tantos outros músicos modernos e seus satélites de Londres, eu
usava como base para os momentos fora do expediente. Embora alguns músicos eventualmente tocassem naquele lugar, que às vezes também contratava
um pianista, o Downbeat era mais um clube que uma casa de shows, ao contrário do novo empreendimento de Ronnie Scott, então começando numa Lisle
Street ainda não orientalizada, aonde se ia não para beber ou fofocar, mas para ouvir. Havia também algumas espeluncas no Soho onde se podia fazer tudo
isso ao mesmo tempo. Lembro mais vivamente dos clubes que dos shows, nos quais músicos visitantes ganhavam o seu pão de cada dia, embora apenas
nos EuA eu iria conhecer a glória de uma “cena” jazz baseada primordialmente nos clubes. Devo ter sido um dos últimos a ouvir a grande banda de
Ellington, visivelmente à vontade em seu habitat natural, fazendo um típico show de clube, “derretendo”, como eu descrevi, “uma dura plateia de
advogados, médicos, jornalistas e lobistas quarentões de São Francisco a ponto de eles se parecerem com noivas de antigamente”. Suponho que isso e o
encontro com o trágico pianista Bud Powell em seu quarto de hotel em Paris, catatônico exceto quando diante do teclado, são as mais vívidas lembranças
dos meus anos jazzísticos.

Logo se tornou óbvio que havia uma lacuna substancial, tanto de gosto quanto de contexto, entre aqueles de nós – a maioria dos que escreviam sobre jazz,
mas também músicos bem-sucedidos – que se entusiasmaram com a música nos anos 1930 e 1940 e o pequeno corpo de músicos ingleses sérios e
profissionais que tocavam e formavam o único público existente para o jazz “moderno” antes de Miles Davis fazer sentir seu impacto. Escrever sobre jazz
nos anos 1950 significava, basicamente, tentar entender o bebop ou ao menos aprender a lidar com ele (mesmo Philip Larkin, um conservador amante do
jazz, acabou sentindo que precisava dar um passo nessa direção), mas eu não sei até que ponto tive sucesso, a não ser pela admiração por Thelonius Monk
e a paixão instantânea pelo talento supremo e inteligente de Dizzy Gillespie, o mais impressionante trompetista do mundo, a quem não faltava nenhum
dom, a não ser a disposição de revelar a própria alma, como Charlie Parker havia feito. Minha admiração por Miles Davis baseava-se em seus discos, e não
em nenhuma performance a que eu tivesse assistido.

Eu desfrutava da companhia dos músicos, e eles me aceitaram como uma excentricidade na “cena” (nenhum milieu é mais tolerante que o dos músicos de
jazz), às vezes como uma espécie de dicionário ambulante, capaz de dar respostas a suas perguntas (quando não musicais). Lembro de uma feita pela
namorada de um saxofonista tenor, que queria saber se era certo acreditar em Deus. Mas alguém não músico seria capaz de entender a essência de
músicos criativos, por mais que convivesse com eles? Afinal, como um deles me disse (creio que foi o saxofonista tenor Sonny Stitt), “as palavras não são
meu instrumento”. Para um não músico branco se aproximar dos artistas negros era ainda mais difícil. Até o grande êxodo dos músicos americanos nos
anos 1960, quando a “cena” do jazz entrou em colapso nos Estados Unidos, poucos deles viviam na Europa. É verdade que não parecia se fazer muita
diferença entre brancos e negros no Downbeat Club, e a jovem Cleo Laine ficava perfeitamente confortável descrevendo-se como uma “crioula cockney”,
mas os músicos afro-americanos visitantes tinham consciência da questão racial mesmo na tolerante Europa, assim como, quase com certeza, tinham
também os que vinham das colônias britânicas no Caribe, como o talentoso e aventureiro sax alto Joe Harriott, que era um componente importante da

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“cena” moderna. Ainda assim, nas excursões, que eram seu meio de vida permanente, os americanos costumavam ouvir perguntas de admiradores
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brancos sobre o tema, e músicos experientes, que dependiam inteiramente do circuito branco, notadamente os cantores de blues, tinham uma narrativa
genuinamente informativa pronta.

Na condição de único acadêmico a escrever sobre jazz, e sob auspícios culturais de classe alta, Francis Newton naturalmente acabou servindo de guia
turístico para os intelectuais estrangeiros no fervilhante Soho. Ele também se viu atraído para a boemia cultural avant-garde britânica, que fazia
interseção com a “cena” jazz não bop. George Melly e “Trog” (Wally Fawkes, o clarinetista da Escola Humphrey Lyttelton) já estavam produzindo a Flook,
sua tira de quadrinhos satírica e socialmente perspicaz, publicada, quem diria, no Daily Mail. Ainda guardo o cartão de sócio do Muriel Colony Club, na
Dean Street, que alguém – mais provavelmente Colin MacInnes – me impingiu, porém aquele agrupamento alcoólico não era a minha, nem o jazz era a
deles, embora uma vez eles tenham tido uma música de fundo decente, tocada por um agradável pianista caribenho. Encomendaram-me quase
imediatamente um livro. Falando claramente, encarnar Francis Newton reforçou meus contatos com aqueles de quem os músicos dependiam, os agentes,
programadores e todo o resto do mundo empresarial pop, no qual o jazz era uma pequena parte. Suas opiniões privadas sobre “o talento” divergiam
amplamente daquelas emitidas em público.

Vi-me então membro de uma rede global de amantes intelectuais do jazz. Uma vez que, fora da Inglaterra, esses ainda julgavam partilhar uma fé próxima
ao underground, se é que não mais perseguida, eles – e especialmente os escritores – formavam uma rede internacional surpreendentemente efetiva de
confiança e ajuda mútuas. Nos Estados Unidos, isso não foi tão longe quanto no Japão, onde, como eu iria descobrir naqueles bares minúsculos, os
acadêmicos mais formais – e quem pode ser mais formal que um reitor japonês? – se abriam com uma inconcebível franqueza, simplesmente porque um
convidado que eles nunca tinham visto antes era amante de jazz. Logo percebi que a solidariedade do jazz, que caminhava a par da promoção de Kafka no
primeiro estágio da Primavera de Praga, era igualmente intensa na Tchecoslováquia. Quando as trilhas sonoras de Miles Davis e do Modern Jazz Quartet
para os filmes da nouvelle vague apareceram, nos anos 1950, esperava-se que os intelectuais franceses se engajassem no jazz moderno, mas, como de
hábito, eles não deram muita atenção para os críticos de jazz não franceses.

No território americano, a solidariedade do jazz consistia mais em ajudas concretas. Os críticos locais de jazz faziam tudo o que podiam para ajudar um
desconhecido chegado de Londres, desde reservar um quarto de hotel no Greenwich Village até encaminhá-lo a um crítico depois do outro para que o
guiassem na “cena” de alguma cidade menos conhecida. Ajudou ainda o fato de muitos divulgadores de jazz e blues terem origem na esquerda dos anos
1930 e 1940, com destaque para o maior de todos os descobridores de talentos do jazz, John Hammond Jr., com seu corte de cabelo militar, cujas opiniões
iriam ter grande influência sobre mim.

Foi apenas em minha primeira viagem aos Estados Unidos, onde todas as escolas e todos os artistas sobreviventes podiam ser ouvidos ao mesmo tempo,
que eu percebi a sorte que Francis Newton havia tido: essa era uma época de ouro para o jazz, em grande parte porque os ultraboppers dos anos 1940
haviam se reunido e renovado o mainstream musical. E foi só em minha segunda viagem, em 1963, que percebi o quão rápido o tsunami do rock’n’roll
havia levado tudo embora. O Birdland havia fechado as portas. Durante quase todos os 20 anos seguintes, o jazz mal existia para os jovens, a não ser no
meio universitário, como parte de uma cultura elevada e de adultos – algo como a música clássica, só que com menor número de adeptos. O público que
restava interessado nas performances ao vivo sofria a oposição emergente de uma nova “forma livre” de jazz, musicalmente radical. O paradoxo é que,
com isso, o movimento mais radical e racialmente militante do jazz foi politicamente isolado de suas bases constitutivas afro-americanas.

Nessa época, minha vida estava mudando. Minha esposa, Marlene, alega que a pedi em casamento num show de Bob Dylan. O casamento e os filhos
pequenos, inevitavelmente, puseram fim aos hábitos noturnos desregrados de Francis Newton, embora não às resenhas de shows e discos. Mas já não era
tão divertido, a não ser na impactante e perturbadora primeira visita à Inglaterra de Ray Charles, que ouvi pela primeira vez entre os poucos brancos em
um canto de um grande baile de rock’n’roll em Oakland, na Calfórnia, em meio a um grupinho de brancos, quando ele ainda era conhecido apenas do
público negro. Eles não dançaram muito enquanto Ray Charles cantava. Agora não só uma grande estrela pop, mas também um santo inovador, o quarto
na linha sucessória formada por Lester Young, Billie Holiday e Charlie Parker, e certamente um monstre sacré, ele “trabalhava” a plateia no Finsbury Park
Astoria, com sua “santificada” voz de blues, num estilo que combinava efeitos do showbiz com emoção e muita alma. Ainda fico arrepiado ao lembrar de
mim ouvindo aquele homem corcunda, magro, infeliz e cego, enquanto ele arrebatava a plateia ao dizer “eu já fui cego, mas agora consigo ver”. Aquela
noite, além do meu espetacular fracasso em reconhecer o potencial dos Beatles (nunca tive tempo para os Stones), permanece como a última lembrança
dos anos de Francis Newton cobrindo a “cena” para os leitores do New Statesman.

1. Referência à revolução húngara de 1956 contra o domínio soviético. [N. do T.]

ERIC HOBSBAWM (1917) é autor de clássicos da historiografia contemporânea, como a tetralogia A era das revoluções, A era do capital, A era dos
impérios e A era dos extremos. Sua obra sempre andou de par com a militância no Partido Comunista inglês, o que tornou Hobsbawm um dos principais
pensadores críticos do marxismo, assinando inclusive a organização da monumental História do marxismo. A paixão pela música também inspirou seu
trabalho acadêmico, notadamente com A história social do jazz e Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz.

Tradução de RODRIGO LACERDA

Uma resposta para Codinome, Francis Newton – por Eric Hobsbawm

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