Você está na página 1de 15

01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

31 DE JULHO DE 2019 / 1 COMENTÁRIO

“O Legado do Blues e o
Feminismo Negro” de Angela
Davis
A seguir está traduzido a introdução do livro “Blues Legacy and Black
Feminism” (O Legado do Blues e o Feminismo Negro em tradução livre) de
Angela Davis, publicado originalmente em inglês, em 1998, pela Vintage Books,
ainda sem publicação em português. Tradução de Andrey Santiago.

O Legado do Blues e o Feminismo Negro é um exame do trabalho de três


mulheres artistas que tiveram papéis decisivos na formação da história da
música popular nos Estados Unidos da América. É uma investigação sobre os
caminhos em que elas gravavam suas performances e divulgavam antes
desconhecidas tradições de consciência feminista nas comunidades negras da
classe trabalhadora. A conexão que eu tento fazer entre o legado do blues e o
feminismo negro não está sem suas contradições e descontinuidades; tentar
colocar a consciência feminista como definimos hoje em dia em pessoas como
Gertrude “Ma” Rainey, Bessie Smith e Billie Holiday seria absurdo, e nem muito
interessante. O que é mais interessante – e provocador – sobre o corpo de
trabalho que cada uma dessas mulheres deixou para trás são as insinuações de
atitudes feministas que emergiram de suas musicas pelas fissuras dos discursos

https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 2/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

patriarcais. Enquanto eu tento situar as suas performances gravadas, o


material primário com o qual trabalho, em relação aos desenvolvimentos
históricos da década de 1920, 1930 e 1940, eu estou mais preocupada em como
as performances dessas mulheres aparecem sob o prisma do presente, e o que
essas interpretações podem nos dizer sobre as passadas e presentes formas de
consciência social.

Gertrude “Ma” Rainey (1886 – 1939) e sua banda.

Dada as longas histórias da escravidão e da segregação nos Estados Unidos, é


compreensível que a consciência social negra foi determinada em grande parte
pela raça. Essa unidimensionalidade também se reflete com frequência nos
trabalhos que tentam recapitular essas histórias. Enquanto nas últimas duas
décadas um impressivo corpo de literatura estabeleceu os antecedentes
históricos para o feminismo negro contemporâneo, ainda continua uma
escassez de pesquisa sobre o caráter de classe do feminismo negro histórico.
Enquanto o trabalho de escritoras negras do século 19 e 20 foram cada vez mais
sendo publicizados por meio de projetos como o da Biblioteca Schomburg,

https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 3/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

esforços para reconstruir as tradições do feminismo negro tendem a focar


somente em textos como estes. Em grande medida, portanto, o que é
constituído como tradições feministas negras tendem a excluir ideias
produzidas por e dentro de comunidades pobres e da classe trabalhadora,
onde as mulheres historicamente não tiveram os meios ou acesso para publicar
textos escritos. Mas algumas mulheres negras pobres tiveram acesso a editores
de textos orais. De fato, na década de 1920, muitas mulheres negras foram
procuradas – e muitas vezes exploradas por gravadoras em franca expansão.

Mulheres negras foram as primeiras a


gravar blues. Em 1920, a versão de
Mamie Smith da canção “Crazy Blues”
de Perry Bradford, sua segunda
gravação com a produtora Columbia,
foi tão popular que 75 mil cópias da
musica foram vendidas no primeiro
mês de sua disponibilização. Um dólar,
o valor de cada música, era uma
pequena fortuna naquele período para
a maioria das pessoas negras que
compravam “Crazy Blues”. As vendas
Mamie Smith e a orquestra que a
descontroladas da música marcaram o
acompanhava.
sucesso da estreia de uma cantora
negra de blues, que por sua vez abriu
as portas para dezenas de outras artistas negras, que eram procuradas por
representantes da indústria fonográfica como entradas em um mercado negro
anteriormente ignorado e inexplorado. Mulheres como Alberta Hunter, Ida Cox,
Ethel Waters, Lucille Hegamin, Edith Wilson, Victoria Spivey, Rosa Henderson,
Clara Smith, Trixie Smith, Sippie Wallace e muitas outras artistas menos
https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 4/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

conhecidas puderam ser ouvidas durante a década de 1920, não apenas nos
cinemas, teatros e clubes, mas também em produtoras como Paramount e
Columbia – ambos lançaram campanhas de “músicas de raça” – e Black Swan,
a única gravadora de propriedade negra do período. No auge da era clássica do
blues, que vagamente durou a década de vinte, centenas de mulheres tiveram a
oportunidade de gravar seus trabalhos.

O fato de mulheres terem prioridade sobre homens como artistas em


gravadoras atesta as redutivas estratégias de marketing da então embrionica
indústria musical, estratégias que veremos hoje refletidas nos esforços da
indústria de categorizar ou, de fato, segregar culturalmente – diferentes
gêneros musicais que de na verdade reivindicam um diverso publico ouvinte.
As tentativas das empresas para construir e explorar um novo mercado negro
foram elaboradas em torno da suposição de que, como os sucessos iniciais
eram com o blues feminino, somente as mulheres podiam ser artistas de
sucesso. Entre 1923 e 1926 – quando Bessie Smith e Gertrude “Ma” Rainey
respectivamente gravaram suas primeiras canções – poucos homens, além de
Papa Charlie Jackson (que também fez duetos com Rainey), foram contratados
pela Paramount e Columbia, as duas maiores empresas do período. [2] No
entanto, quando o blues masculino começou a fazer sucesso em 1926, sua
crescente popularidade iniciou um padrão que acabou por marginalizar as
cantoras de blues depois que a era clássica do blues começou a declinar com a
quebra do mercado de ações em 1929. A década de 1930 tornou-se uma era
generalizada de exploração de cantores de blues negros, que foram procurados
agressivamente por gravadoras famintas por lucros que lhes pagaram quantias
insignificantes por suas performances gravadas, algumas das quais continuam
a ser publicadas em discos compactos hoje. A história de Robert Johnson é
apenas o exemplo mais dramático desse fenômeno. Ao mesmo tempo, muitas
vezes cantoras de blues negras altamente mercantis, incluindo Bessie Smith, a
https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 5/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

“Imperatriz do Blues”, estavam lutando para encontrar trabalho em outros


gêneros, como o teatro e a emergente indústria do cinema.

Bessie Smith (1894 – 1937)

Embora o período de ascendência das mulheres negras cantoras de blues fosse


relativamente curto, essas mulheres conseguiram produzir um vasto corpo de
textos musicais e um rico legado cultural. Pode-se esperar que, como a era
clássica do blues coincidiu com o Renascimento do Harlem, essa articulação
musical da cultura afro-americana teria sido amplamente tratada pelos
escritores e intelectuais da época. No entanto, porque mulheres como Bessie
Smith e Ida Cox apresentaram e incorporaram sexualidades associadas à vida
negra da classe trabalhadora – que fatalmente foi vista por alguns estrategistas
da Renascença como antitéticas aos objetivos de seu movimento cultural – sua
música foi designada como “baixa” cultura, por outro lado, por exemplo, para
empreendimentos como escultura, pintura, literatura e música clássica (através
dos quais os espirituais poderiam ser reformados). Consequentemente, poucos
escritores – com a notável exceção de Langston Hughes, que muitas vezes se

https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 6/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

viam em desacordo com seus contemporâneos – estavam dispostos a


considerar seriamente as contribuições que as artistas de blues faziam para a
política cultural negra. Em seu exame do romance de 1930 de Hughes, Not
Without Laughter (Não Sem uma Risada), Cheryl Wall argumenta que Hughes
não foi apenas “o primeiro escritor a representar a figura da mulher do blues na
literatura, mas nenhuma representação comparável apareceria na ficção de
mulheres negras em décadas futuras.” [3] De fato, nos primeiros trabalhos de
escritores contemporâneos de mulheres negras de primeira geração, retratos
ficcionais de mulheres de blues foram criados por Toni Cade Bambara, Gayl
Jones, Sherley Anne Williams e Alice Walker. Mary Helen Washington intitulou
sua segunda coleção de contos de mulheres negras Any Woman’s Blues (Blues
de Qualquer Mulher), e Sula de Toni Morrison, “uma artista sem uma forma de
arte”, poderia muito bem ter sido uma mulher do blues se tivesse encontrado
sua voz. Alexis De Veaux escreveu uma poética biografia de Billie Holiday, e
Jessica Hagedorn escreveu um extenso poema, “Sometimes You Look Like Lady
Day” (As Vezes Você Parece com Lady Day).

Billie Holliday (1915 – 1959)

https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 7/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

Estas foram algumas das escritoras de cor que ajudaram a moldar minha
consciência de gênero, cujas obras despertaram minha curiosidade sobre as
figuras que inspiraram personagens tão maravilhosamente irreverentes e
tocantes. Eu me perguntava como essas “antepassadas” poderiam diferir das
mulheres negras que estávamos começando a reivindicar como ancestrais nas
lutas de gênero que encontramos quando montamos nossa oposição radical ao
racismo. O que podemos aprender com mulheres como Gertrude “Ma” Rainey,
Bessie Smith e Billie Holiday que talvez não possamos aprender com Ida B.
Wells, Anna Julia Cooper e Mary Church Terrell? Se começássemos a apreciar as
blasfêmias [4] das mulheres de blues ficcionalizadas – especialmente suas
políticas ultrajantes de sexualidade – e o conhecimento que poderia ser
extraído de suas vidas sobre as possibilidades de transformar as relações de
gênero dentro das comunidades negras, talvez pudéssemos nos beneficiar de
uma olhada nas contribuições artísticas das mulheres originais do blues.

Quando eu comecei a pesquisar a literatura sobre as mulheres do blues e do


jazz, eu descobri que, com algumas excepções significativas, a vasta maioria se
colocava ou como biografia ou como estudos técnicos dentro de disciplinas
como música ou musicologia. Eu não estou sugerindo que essas investigações
das vidas desses artistas ou de suas musicas não seja interessante. Entretanto,
o que eu queria saber mais era sobre o modo em que seus trabalhos
abordavam as questões sociais mais urgentes e como eles ajudaram a dar
forma aos modos coletivos de consciência negra. Já que a maioria dos estudos
sobre blues tem tendido a falar implicitamente de homens apenas, aqueles que
se engajaram nas implicações sociais dessa musica tem esquecido ou
marginalizado as mulheres.

Quando decidi olhar atentamente para a música produzida por Ma Rainey,


Bessie Smith e Billie Holiday, o que eu esperava encontrar era uma forte
https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 8/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

consciência de raça em um cenário de construções patriarcais predominantes


de gênero. Esta é certamente a impressão que se obtém do material biográfico
das três cantoras. Na verdade, o título original do meu estudo era Gertrude
“Ma” Rainey, Bessie Smith e Billie Holiday: Música das Mulheres Negras e
Consciência Social. No entanto, quanto mais eu ouvia suas performances
gravadas – de músicas compostas tanto pelas próprios artistas quanto por
outras -, mais eu percebia que sua música poderia servir como um terreno rico
para examinar uma consciência feminista histórica que refletisse as vidas da
classe trabalhadora e suas comunidades negras. O fato de suas representações
estéticas das políticas de gênero e sexualidade serem informadas e
entrelaçadas com suas representações de raça e classe tornam seus trabalhos
ainda mais provocativos.

O que dá ao Blues tão fascinantes possibilidades de sustentar a emergente


consciência feminista é o modo em que ele constrói as suas aparentes relações
antagônicas como oposições não-contraditórias. Uma narradora feminina que
representa uma cantora de blues enquanto totalmente subserviente ao desejo
masculino pode simultaneamente expressar um desejo autônomo e uma
recusa a se deixar ser maltratada pelo seu amante que a tenta levar um
desespero psicótico. Ma Rainey e Bessie Smith, ambas recordaram versões da
música “Oh Papa Blues” de Herbert and Russell, essas são as letras que Rainey
canta:

Just like a rainbow I am faded away Como um arco-iris eu desapareci

My daddy leaves me ‘most every day Meu papai me abandona quase todo dia

But he don’t mean me no good, why? Mas ele não tem nenhuma intenção
ruim a mim, porque?
Because I only wish he would
Porque eu apenas queria que ele tivesse
https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 9/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

I’ve almost gone insane Eu quase fiquei louca

I’m forever tryin’ to call his name Estou pra sempre tentando chamar seu
nome
Oh, papa, think when you away from
home Oh, pai, pense quando estiver longe de
casa
You just don’t want me now, wait and
see Voce só não me quer agora, espere e
veja
You’ll find some other man makin’ love
to me, now Voce irá achar outro homem que irá
fazer amor comigo, agora
Papa, papa, you ain’t got no mama now.
[6] Pai, pai, você não tem nenhuma mãe

A música de Bessie Smith se chama “Oh Daddy Blues” e essa são os seus
primeiros e últimos versos:

Just like a flower I’m fading away Como uma flor estou desparecendo

The doctor calls to see me most every O doutor me chama para me ver quase
day todo dia

But he don’t do me no good Why? Mas ele não me faz nenhum bem,
porque?
Because I’m lonesome for you
Porque eu estou solitária por você
And if you care for me, then you will
listen to my plea E se você liga para mim, então escutará
meu apelo
Oh, daddy, think when you all alone
Oh, pai, pense quando estiver
totalmente sozinho
You know that you are getting old

Voce sabe que esta ficando velho


You’ll miss the way I baked your jelly roll
https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 10/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

Then, daddy, daddy, you won’t have no Voce vai sentir falta do jeito que eu
mama at all. cozinhava seu rocambole

Então, papai, papai, você não vai ter


nenhuma mãe

Eu devo pontuar que essas transcrições


são minhas. Uma grande parte do projeto
de produzir este estudo foi a transcrição
de trabalhos inteiros de Rainey e Smith,
252 músicas no total, algumas das quais
são extramente difíceis de escutar.
Quando eu comecei este aspecto da
minha pesquisa, discos compactos ainda

Vinil de Gertrude “Ma” Rainey


não tinham começados a ser vendidos
massivamente, e eu estava trabalhando
estritamente com reproduções de vinil.
Quando os seus trabalhos foram regravados em CD [8], o trabalho de
transcrição ficou consideravelmente mais fácil, mesmo assim, muita das
gravações originais que foram reproduzidas no CD se deterioraram tanto que
sua renderização se tornava praticamente inaudível em alguns momentos. A
segunda seção deste estudo, após meu exame crítico do trabalho de Rainey,
Smith e Holiday, contém minhas transcrições de todas as gravações existentes
de Rainey e Smith. As transcrições estão incluídas aqui porque ambas as
mulheres do blues frequentemente improvisaram mesmo quando cantavam
letras pré-compostas que nem sempre eram suas. Este processo de revisão
obviamente teve um impacto significativo nas gravações às quais temos acesso
hoje, e é com base nessas gravações – essas versões frequentemente revisadas
das letras que apareceram nas folhas de chumbo das quais Rainey e Smith
https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 11/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

trabalharam, que eu tenho trabalhei minhas próprias análises das músicas


enquanto elas eram executadas. Assim, enquanto outras transcrições existem
em inúmeros estudos da música e dos próprios artistas, minhas próprias
escutas revelaram inúmeras imprecisões nessas transcrições. Por essa razão,
optei por trabalhar com transcrições em primeira mão, que, sem dúvida,
contêm suas próprias imprecisões e pelas quais assumo total responsabilidade.
Como as letras completas das canções de Rainey e Smith não estão disponíveis
em nenhum outro lugar, eu as incluí neste livro para facilitar mais pesquisas
sobre este material. Eu não incluí as transcrições das gravações da Billie
Holliday porque a matéria popular que constitui seu corpo de trabalho
permanece prontamente disponível hoje. Além disso, sua originalidade
consiste não tanto no que ela cantava, mas em como ela cantava as canções
populares de sua época.

No período contemporâneo, o qual é marcado pelo reconhecimento popular da


politização da sexualidade, o blues constitui um lugar excepcionalmente rico
para a investigação feminista. Os temas sexuais predominantes que definem o
conteúdo da forma de blues apontam o caminho para uma consideração da
política histórica da sexualidade negra. Considerando os rígidos tabus sobre as
representações da sexualidade que caracterizaram a maioria dos discursos
dominantes da época, os blues constituem um local discursivo privilegiado.

Neste livro, eu me esforço para explorar as implicações feministas das


performances gravadas de três mulheres: uma que se coloca no começo da
tradição do blues clássico, outra que puxa a forma do blues para o seus limites
e começa a utilizar músicas populares como um veículo do blues, e mais uma,
que ao se distanciar do blues e estabelecer os vocais do jazz com um gênio
único e uma originalidade ímpar que ainda não foi superada, continua
solidamente ancorada na tradição do blues. Todas as suas performances
https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 12/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

iluminam as políticas de gênero e sexualidade nas comunidades da classe


trabalhadora negra.

Quer ouçamos essas músicas hoje principalmente por prazer ou para fins de
pesquisa – o que não é sugerir que o prazer não tem suas dimensões críticas ou
que a pesquisa não tem seus prazeres – há muito a ser aprendido em seus
corpos de trabalho sobre expressões cotidianas da consciência feminista. Essas
expressões cotidianas da consciência feminista são o que tento acentuar neste
livro. Nesse sentido, meu estudo é muito menos ambicioso do que um trabalho
como Black Pearls (Pérolas Negras), de Daphne Duval Harrison. Enquanto a
bela investigação de Harrison retoma amplamente a clássica tradição do blues,
a minha se limita a três artistas, duas das quais – Ma Rainey e Bessie Smith –
definiram decisivamente a era clássica do blues, e uma delas – Billie Holiday –
que inaugurou o período moderno do jazz, gravando sua primeira música logo
após Bessie Smith gravar sua última música. O trabalho de Harrison examina as
mulheres de blues da década de 1920 como figuras pivô na afirmação das
ideias e ideais das mulheres negras de uma perspectiva da classe trabalhadora
e pobre. Revela seu papel dinâmico como porta-vozes e intérpretes dos sonhos,
duras realidades e tragicomédias da experiência negra nas primeiras três
décadas deste século; seu papel na continuação e desenvolvimento da música
negra na América; suas contribuições para poesia e performance do blues.
Além disso, amplia a base de conhecimento sobre o papel das mulheres negras
na criação e desenvolvimento da cultura popular americana; ilustra os seus
modos e meios para lidar com sucesso com a discriminação e exploração
relacionadas com o gênero; e demonstra um modelo emergente para a mulher
que trabalha – que é sexualmente independente, autossuficiente, criativa e
criadora de tendências. [9]

https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 13/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

Eu espero que meu estudo irá complementar o estudo de Harrison no sentido


em que ele tenta acentuar as contribuições feministas de duas mulheres
elementares da era clássica do blues, como também da mulher mais
significante do jazz, uma história de vida turbulenta que tem ofuscado
persistentemente as importantes contribuições que ela fez como uma artista.

As mulheres contemporâneas de blues e jazz vêm de diversas origens étnicas e


raciais, e certamente o público dessa música reside não apenas dentro, mas
muito além das fronteiras da cultura negra. Com a globalização da distribuição
de música – de fato, com desenvolvimentos como a produção de CDs não
autorizada em alguns países – o escopo da música negra e suas implicações
culturais historicamente amplas não podem mais ficar confinados às
comunidades afro-americanas. Nesse contexto, interpretações feministas dos
legados do blues e jazz femininos podem contribuir para uma compreensão da
consciência feminista que cruza fronteiras raciais e de classe. [10] Espero que
os leitores deste livro também leiam, por exemplo, as interpretações feministas
dos corridos (baladas tradicionais mexicanas) de Marfa Herrera-Sobek. Além do
domínio da cultura musical, muitas feministas de cor estão repensando
historiografias feministas mainstream, não simplesmente para esculpir um
lugar para mulheres de cor, mas para contestar a própria validade dos discursos
empregados por vários daqueles trabalhos. Ao mesmo tempo em que vejo meu
próprio trabalho ligado a esses vários projetos, espero que os argumentos que
proponho neste livro façam uma intervenção específica nos debates populares
atuais sobre a legitimidade das mulheres dos feminismos de cor, dos
feminismos negros em particular.

Vinte e cinco anos depois dos debates da segunda onda sobre o que conta
como feminismo, as suposições populares de que as origens históricas do
feminismo são brancas obstinadamente persistem em muitas comunidades
https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 14/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

negras, apesar do ativismo e pesquisa feministas (e mulheristas) significativas.


A tendência de colocar mulheres como Anita Hill como traidoras da raça é um
subproduto dramático da ideia recalcitrante de que as mulheres negras que
falam contra os homens negros estão seguindo os passos das feministas
brancas. O fato de que um debate produtivo sobre a problemática política de
gênero (e na verdade o conservadorismo global) da Marcha de um Milhão de
Homens não surgiu – e que feministas como Kimberle Crenshaw, Marcia
Gillespie, Paula Giddings, Joana Jackson McCabe, Gina Dent, e eu fui
duramente criticado por querer mesmo iniciar tal debate – são ainda mais
exemplos de visões difundidas em comunidades negras que a raça deve
sempre ter precedência, e que a raça é implicitamente o gênero masculino.

A Marcha de um Milhão de Homens aconteceu em 16 de outubro de 1995, o evento foi descrito


como sendo exclusivo para homens afro-americanos.

Um livro como o Legados do Blues e o Feminismo Negro não irá tornar popular
o feminismo nas comunidades negras. No entanto, espero que demonstre que
existem várias tradições feministas afro-americanas. Espero que demonstre
que as tradições feministas não são apenas escritas, mas são orais também, e
que essas oralidades revelam não apenas traços afro-americanos reescritos,
mas também o gênio com o qual antigos escravos forjaram novas tradições que

https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 15/20
01/12/2023, 15:42 “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” de Angela Davis – TraduAgindo

simultaneamente contestavam o seu passado escravo e ainda assim


preservavam algumas das tradições dos ricos produtos culturais da escravidão.
Segundo o crítico cultural Stuart Hall, a cultura popular negra

[Em] sua expressividade, sua musicalidade, sua oralidade, em


sua rica, profunda e variada atenção à fala, em suas inflexões ao
vernáculo e ao local, em sua rica produção de contranarrativas
e, sobretudo, em seu uso metafórico do vocabulário musical …
permitiu que surgissem, dentro dos modos mistos e
contraditórios mesmo de alguma cultura popular dominante,
elementos de um discurso que é diferente – com outras formas
de vida, outras tradições de representação. [13]

Espero, portanto, que as análises que apresento aqui persuadam os leitores de


que é possível interpretar o trabalho dessas três proeminentes artistas do
passado afro-americano de um modo em que mostre que elas auxiliaram a
forjar legados, legados do blues, legados da classe trabalhadora negra, do
feminismo negro. Finalmente, espero que este estudo inspire os leitores a ouvir
as gravações de Ma Rainey, Bessie Smith e Billie Holiday, tanto por prazer como
para fins de pesquisa, e que ocasionará estudos interdisciplinares adicionais
das contribuições artísticas e sociais das mulheres do blues e do jazz.

https://traduagindo.com/2019/07/31/o-legado-do-blues-e-o-feminismo-negro-de-angela-davis/ 16/20

Você também pode gostar