Você está na página 1de 248

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/327668231

Rock, cidades e cenas musicais

Chapter · September 2018

CITATIONS READS

0 101

1 author:

Érica Magi
São Paulo State University
14 PUBLICATIONS   10 CITATIONS   

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Making funk and making a living in Brazil: The KondZilla phenomenon View project

All content following this page was uploaded by Érica Magi on 07 November 2018.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


NAS TRILHAS DO ROCK

NAS TRILHAS DO ROCK


“O cenário da origem: o pós Segunda Guerra, seus dilemas e con-
tradições; os desafios e desigualdades trazidos pela industrialização
tardia; a potência de expressões culturais, sobretudo as musicais, EXPERIMENTALISMO E MERCADO MUSICAL
surgidas no meio juvenil das grandes cidades, primeiramente as do
norte do mundo, e que foram se espalhando em seguida para os
seus quatro cantos. O personagem principal: mais que um gênero
musical, mais que um conjunto de atitudes e comportamentos pró-
prios à juventude, mais que um segmento do mercado cultural - o
rock, que do alto de seus quase 70 anos bem vividos, nos provoca a
examinar sua longa, intensa e multifacetada trajetória. Se já nasceu
teenager, foi construindo sua maioridade na efervescência do entre
décadas de 60-70, mesclando em medidas variadas rebeldia e pa-
dronização, sofisticação estética e inserção mercadológica, a vida
no flower power e no mainstream. Nas trilhas do rock: experimenta-
lismo e mercado musical vem se juntar a um surpreendentemente
raro conjunto de iniciativas que, entre nós, tem se preocupado em
pensar esse fenômeno cultural. Seus ensaios o enfrentam como
objeto daqui e de acolá, conjugando com fineza analítica as dimen-
sões estéticas do rock com as particularidades das sociedades e
dos sistemas que lhes dão à luz.”

Profa. Dra. Marcia Tosta Dias, docente da UNIFESP e autora do livro “Os donos
da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura“ (2008)

Apoio Institucional da Prefeitura de Goiânia

PREFEITURA
DE GOIÂNIA
RAINER GONÇALVES SOUSA
Cultura (ORGANIZAÇÃO)
NAS TRILHAS DO ROCK
EXPERIMENTALISMO E MERCADO MUSICAL
Rainer Gonçalves Sousa
(organização)

NAS TRILHAS DO ROCK


EXPERIMENTALISMO E MERCADO MUSICAL

Goiânia-GO | Kelps, 2018


Copyright © 2018 by Rainer Gonçalves Sousa

Editora Kelps
Rua 19 nº 100 – St. Marechal Rondon
CEP 74.560-460 – Goiânia-GO
Fone: (62) 3211-1616
E-mail: kelps@kelps.com.br
homepage: www.kelps.com.br

Programação visual
Victor Marques

Capa
Raphael Berthoud
(raphaelberthoud.com)

Revisão
Camila Ligeiro Medeiros
(camilaligeiro@gmail.com)

CIP – Brasil – Catalogação na Fonte


Tainá de Sousa Gomes CRB-1 (1º Região) 3134

SOU Sousa, Rainer Gonçalves.


tri Nas trilhas do rock: experimentalismo e mercado
musical./ Rainer Gonçalves Sousa (org.). – Goiânia:
Kelps, 2018.
246 p.
ISBN: 978-85-400-2556-1
1. Ensaio. 2. Rock. 3. Música. I. Titulo.
CDU: 78.08

DIREITOS RESERVADOS

É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de


qualquer forma ou por qualquer meio, sem a autorização
prévia e por escrito do autor. A violação dos Direitos
Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo
184 do Código Penal.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2018
Prefácio

“Sem a música para enfeitá-la, a passagem do tempo seria


apenas uma sucessão chata de data ou prazos para a gente
cumprir compromissos e pagar as contas”
(Frank Zappa)

A disponibilidade de livros sobre rock não é restrita, no entanto,


parte considerável das obras encontra-se em língua inglesa. Nos últi-
mos anos, a visível expansão do mercado editorial permitiu que um
amplo conjunto de obras ficasse à disposição do público, e algumas
delas chegaram a alcançar relativo sucesso editorial. Entretanto, pre-
dominam os livros de cunho biográfico e jornalístico cujo foco, muitas
vezes, encontra-se na descrição de polêmicas sobre a vida pessoal do
artista. No Brasil, sobretudo, os trabalhos acadêmicos sobre o gênero
ainda são poucos, visto a preeminência de pesquisas e bibliografias
dirigidas ao samba e a MPB.
Desse modo, a presente coletânea, resultado do I Colóquio “Nas
trilhas do Rock: Experimentalismo e Mercado Musical”, realizado em
2016 na Unesp (campus de Franca) pelo Grupo de Estudos Culturais
(GECU), tem a intenção de preencher parte dessa lacuna, colocando
em discussão a famigerada forma musical que historicamente ganhou
notabilidade ao questionar e debater os limites da ordem social e/ou
artística: o rock! Inspirados tanto pela essência crítica do rock quanto
pela necessidade de avançar nos estudos sobre o gênero no país, as
pesquisadoras e pesquisadores que contribuíram com a coletânea ti-
veram o objetivo de ampliar as possibilidades de reflexão e questiona-
mento a respeito desse importante fenômeno sociocultural.
Dividido em duas partes, a primeira dedica-se ao rock interna-
cional entre as décadas de 1960 e 1970. O artigo do jornalista Rodrigo
Merheb, “O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and
roll e o nascimento do rock moderno”, empenha-se em compreender
a carreira de Bob Dylan demonstrando as profundas diferenças entre
os rocks da década de 1950 e 1960. Para tanto, mapeia as questões his-
tóricas e estéticas que possibilitam entender de que forma tais trans-
formações ocorreram a partir do envolvimento de grupos sociais,
do interesse da indústria fonográfica e dos movimentos organizados
do período. No segundo artigo, “Rock e Vanguarda nos anos 60: uma
dialética possível”, o historiador José Adriano Fenerick destaca como a
tríade contracultura, experimentalismo e rock marcou os anos 1960, a
partir de uma análise comparativa de dois álbuns ícones do fim desta
década: o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), dos Beatles,
e o We’re in it for the Money (1968), do grupo Frank Zappa and The
Mothers of Invention. Já a historiadora Vanessa Pironato Milani de-
dica-se à problemática de gênero. Em “She’s Leaving Home: o processo
de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a
contracultura”, a autora desvela as dinâmicas das relações de gênero
na contracultura, visando entender como tais dinâmicas afetaram a
trajetória de algumas bandas do período, baseando-se, primordial-
mente, em algumas composições dos Beatles. O historiador Ricardo
Sinigaglia Arruda, por meio da análise da canção “Battle of Evermore”,
gravada pela banda Led Zeppelin, no álbum IV (1971), expõe as resso-
nâncias da contracultura na Inglaterra, distinguindo-as na passagem
dos anos 1960 para a década seguinte. Além disso, o autor sublinha
as referências musicais e extramusicais que estruturam a narrativa da
canção abordada, demonstrando referências que vão desde a folk mu-
sic até o best-seller “O Senhor dos Anéis”, no artigo intitulado “Saltan-
do para as montanhas sombrias: Led Zeppelin, Tolkien e Contracultura
(1966-1974)”. Fechando essa primeira parte, o historiador Rainer Gon-
çalves Sousa em “‘What is this that stands before me?’: Black Sabbath,
contracultura e teratologia (1970-1978)”, propõe uma nova abordagem
a respeito do ponto de vista musical e narrativo do grupo britânico
Black Sabbath por meio de um diálogo com as questões fundamentais
da contracultura.
A segunda parte da coletânea dedicada ao rock nacional inicia-
-se com o ensaio da socióloga Daniela Vieira dos Santos, “Tropicália,
Rock e Experimentalismo”, no qual a autora realiza uma análise das
canções “Eles” (1968) de Caetano Veloso e “Dom Quixote” (1969) da
banda de pop rock Os Mutantes, a fim de revelar os diversificados sen-
tidos dos projetos tropicalistas no Brasil dos anos 1960. Cleber Sberni
Junior em “O caminho das pedras: rock e MPB na revista Rolling Sto-
ne edição brasileira (1972)”, sinaliza o modo pelo qual as primeiras
edições brasileiras da revista Rolling Stone divulgavam e criticavam o
rock produzido no Brasil do começo da década de 1970. Para tanto, o
historiador mescla as considerações de críticos renomados da revis-
ta com a trajetória artística de bandas como Os Mutantes, O Terço,
Módulo 1000 e Rita Lee. O rock que se delineia em fins dos anos 1970
e início da década posterior é tema do terceiro artigo dessa segunda
parte. Em “A formação da identidade punk no Brasil e o começo do fim
do mundo (1976-1982)”, Pedro Felipe Minhoni analisa as origens e a
organização do movimento punk no Brasil a partir da investigação
do festival “O começo do fim do mundo”, um evento importante tan-
to para o reconhecimento das sociabilidades quanto para a investiga-
ção de outras problemáticas que permitiram a chegada desse gênero
musical em terras brasileiras. Paulo Gustavo da Encarnação no artigo
“‘Nasci em 62’: algumas notas sobre uma breve história social de alguns
roqueiros brasileiros dos anos 80”, analisa a canção “Nasci em 62”, gra-
vada pela banda Ira!, além de expor a história social dos roqueiros
brasileiros da década de 1980, ao traçar a trajetória de bandas e nomes
relevantes da cena rock brasileira desses anos. Por fim, em “Rock, cida-
des e cenas musicais”, orientada pelo questionamento acerca da forma-
ção das cenas de rock brasileiras da década de 1980, a socióloga Érica
Magi mapeia uma série de eventos e personagens que foram de suma
importância para que determinadas tendências musicais do rock nor-
te-americano e britânico circulassem, principalmente, pelas cidades
do Rio de Janeiro e São Paulo.
Como o leitor poderá perceber, os diversificados temas que
compõem a presente coletânea buscaram no rock o elemento chave
para a compreensão de aspectos relacionados às mudanças sociais que
permearam o Brasil e os países europeus e norte-americanos entre as
décadas de 1950 a 1980. É claro que a problemática não se esgota, no
entanto, coloca-se como ponto de partida aos estudos que buscarão se
empenhar no tema.
Por fim, gostaríamos de dedicar o livro a um dos fundadores do
rock and roll que infelizmente nos deixou durante o processo de reali-
zação da coletânea: Chuck Berry! Artista negro estadunidense que ao
romper as barreiras do racismo vigente na sociedade norte-americana
do pós-guerra inventou um modo de fazer musical que inspirou muitos
outros roqueiros. Conforme declarou John Lennon, “se você quiser dar
um nome ao rock’n’roll, você poderia chamá-lo de Chuck Berry”.

Daniela Vieira dos Santos (Unicamp)


José Adriano Fenerick (Unesp)
Rainer Gonçalves Sousa (IFG)
SUMÁRIO

Parte 1
ROCK INTERNACIONAL

O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o


nascimento do rock moderno......................................................................13
Rodrigo Merheb

Rock e Vanguarda nos anos 60: uma dialética possível............................41


José Adriano Fenerick

She’s Leaving Home: o processo de feminilização nas canções dos


Beatles, o movimento feminista e a contracultura.....................................55
Vanessa Pironato Milani

Saltando para as montanhas sombrias: Led Zeppelin, Tolkien e


Contracultura (1966-1974)...........................................................................83
Ricardo Sinigaglia Arruda

“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e


teratologia (1970-1978).............................................................................101
Rainer Gonçalves Sousa
Parte 2
ROCK NACIONAL

Tropicália, Rock e Experimentalismo.........................................................135


Daniela Vieira dos Santos

O caminho das pedras: rock e MPB na revista Rolling Stone edição


brasileira (1972)..........................................................................................153
Cleber Sberni Junior

A formação da identidade punk no Brasil e o começo do fim do mundo


(1976-1982).................................................................................................... 177
Pedro Felipe Minhoni

“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social de al-
guns roqueiros brasileiros dos anos 80....................................................193
Paulo Gustavo da Encarnação

Rock, cidades e cenas musicais................................................................223


Érica Ribeiro Magi
Parte 1

ROCK INTERNACIONAL
O Fantasma da Eletricidade:
Bob Dylan, o fim do rock and roll e
o nascimento do rock moderno.

Rodrigo Merheb *

Os três álbuns lançados por Bob Dylan em um período de ape-


nas quatorze meses, entre 1965 e 1966, constituem a fundação sobre a
qual se construiu uma das mais importantes vertentes da música po-
pular moderna. Os experimentos com uma nova poética, largamente
influenciada pela literatura beat e sonoridades estranhas ao ouvinte de
rádio comum, criaram um sólido vínculo do rock com a contracultu-
ra. A música se convertia em uma das vozes mais potentes de grupos
formadores de um pensamento crítico contra os valores tradicionais
da sociedade norte-americana.
Aquilo que se conhece até hoje como rock remete a um este-
reótipo construído de homens brancos portando uma guitarra. O
marco original dessa imagem surge, simbolicamente, com a revira-
volta provocada por Bob Dylan e as sofisticadas gravações lançadas
pelos Beatles na mesma época. O crítico Robert Christgau definiu
rock como “o rock and roll reinventado de forma autoconsciente
como arte”. Ou seja, um produto muito mais cerebral do que o rock
and roll dos anos 1950, que formulou o vocabulário definitivo para

* Graduado em Comunicação Social e autor do livro O Som da Revolução: Uma História Cultural do
Rock (1965-1969). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012..

13
Rodrigo Merheb

o entretenimento de adolescentes e que se caracterizava por ser es-


sencialmente dançante e racialmente integrado. Esse texto tentará
examinar como se deu essa transição e como Bob Dylan criou na sua
obra uma síntese dos mais importantes elementos constituintes do
encontro entre o rock e a contracultura.
Bob Dylan articulou a mudança de trovador de protesto para
ídolo pop em meio a tumultos e polêmicas. Nos shows, a plateia se per-
mitia gritar abertamente sua hostilidade. Numa das apresentações na
Inglaterra, em maio de 1966, ouviu-se claramente um “Judas” vindo da
audiência. As excursões eram verdadeiros circos com Dylan ventilan-
do cinismo contra jornalistas, quartos de hotéis lotados e drogas em
profusão. Então, sem nenhum som e fúria, tudo aquilo cessou. Após
um acidente de motocicleta na primavera de 1966, Dylan interrompeu
sua agenda de shows e discos, enquanto o impacto de tantas rupturas
reverberava com ímpeto crescente entre seus contemporâneos.
Num tempo em que os campos de atuação política eram rigoro-
samente delimitados, a guinada empreendida por Bob Dylan rumo ao
pop radiofônico seria previsivelmente controversa. Dylan foi o primei-
ro representante de uma geração de boêmios universitários, nascidos
na classe média americana, com formação cultural além da música
popular que se dispunha a disputar um lugar no mesmo mercado que
os Beatles, mas que aderia a essa estratégia um desafio franco às regras
estabelecidas pela indústria do disco. Sua música agora buscava o su-
cesso em larga escala, enquanto ampliava o próprio escopo de criativi-
dade sem nenhuma contradição entre essas duas ambições.
Com apenas 24 anos, Bob Dylan desfrutava da posição con-
fortável de ser o maior compositor em atividade de músicas engaja-
das. Pouco tempo depois de chegar à Nova York, ele se convertera,
junto com Joan Baez, num dos ícones da “Nova Esquerda” quando a
cena folk precisava de renovação, de um compositor que traduzisse o

14
O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o nascimento do rock moderno

espirito do tempo em canções de forte apelo emocional, para que o


movimento se tornasse peça relevante na campanha pelos Direitos Ci-
vis que ganhava as ruas. Além de atuar como militante efetivo, Dylan
atualizara a pauta do cancioneiro político, colaborando para a música
folk reforçar sua fisionomia combativa.
A música folk tinha fortes ligações com a esquerda norte-a-
mericana desde que vivenciara uma espécie de renascença nos anos
1940. Alguns de seus próceres eram ligados ao Partido Comunista
e haviam sido perseguidos pelo macarthismo, o que dava ao gênero
um forte sentido de unidade. Quando uma série de pautas progres-
sistas emergiu durante a administração Kennedy, o movimento se
posicionou em bloco, com vários de seus talentos saindo da retórica
para o ativismo aberto.
A coletânea Anthology off American Folk Music, compilada pelo
cineasta experimental Harry Smith no início dos anos 1950, foi fun-
damental para formar uma nova geração de jovens interessados em
explorar as entranhas de uma música enraizada em fontes eminente-
mente populares. Fonogramas de cantores e instrumentistas obscuros
de regiões rurais exibiam em suas estruturas harmônicas simples, uma
diversidade temática e de estilos que não tinha mais remota semelhan-
ça com o tipo de material que se ouvia nas principais rádios do país.
Era uma música diferente até mesmo da vertente do folk que
chegara ao mainstream. Grupos como o Kingston Trio atingiam enor-
me popularidade suavizando canções de domínio público e se man-
tendo neutros em assuntos políticos. Mesmo o trio Peter, Paul and
Mary, reconhecido pelo engajamento, se apresentava sempre trajado
a rigor com arranjos convencionais que não causavam estranhamento
ao grande público.
Havia, entretanto, uma frente de novos cantores e compositores
(Dylan, Dave Van Ronk, Phil Ochs) que cultivava uma preocupação
com a autenticidade, desde a maneira de se vestir, próxima do homem

15
Rodrigo Merheb

comum de classe operária, até as interpretações que buscavam tradu-


zir fielmente o caráter arcano e ancestral do repertório encontrado nos
arquivos. Para Dylan, se embrenhar nessa tradição significava preser-
var a fidelidade ao que era cantado. Havia nessa opção uma dimensão
estética, mas também filosófica, que ele explicita num trecho do seu
livro Crônicas:

Não havia nada condescendente nas canções folk que eu canta-


va. Elas não eram amistosas, nem plenas de brandura. Não des-
ciam redondo. Acho que se poderia dizer que não eram comer-
ciais. Não era só isso, meu estilo era errático e pesado demais
para caber no rádio e para mim as canções eram mais impor-
tantes do que um simples entretenimento ligeiro. Eram minhas
preceptoras e guias para um estado alterado de consciência da
realidade, uma república diferente, uma república livre.

Mesmo apostando na modernização, Dylan manteve a postura


de um transmissor cultural quando começou a compor e quando
finalmente decidiu eletrificar seu trabalho. Uma de suas principais
inspirações para redesenhar a música folk foram as inovações fo-
mentadas pela Bossa Nova em relação ao samba no Brasil, conforme
relatado em Crônicas.
Vinha da Inglaterra, entretanto, o principal incentivo para as
suas investidas estilísticas. Após a chegada triunfal dos Beatles aos
Estados Unidos no início de 1964, uma nova safra de bandas vinha
ganhando espaço gradativo em um mercado altamente competitivo.
Mesmo as mais autorais destas bandas haviam se nutrido fartamen-
te da música americana de origem afro descendente, especialmente o
rhythm and blues e o rock and roll, que chegavam às rádios.
Essa safra britânica era formada por garotos que não se im-
portavam em decifrar a estrutura do que estava pronto para depois

16
O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o nascimento do rock moderno

aderirem novas peculiaridades. Essa dinâmica causou um abalo con-


siderável entre os músicos americanos. Se no rhythm and blues, instru-
mentos de sopro eram quase obrigatórios, na Inglaterra tudo girava em
torno da eletricidade. Uma banda inglesa começava invariavelmente
com um garoto aprendendo a tocar guitarra. Os Beatles, por exemplo,
escolheram seu nome como uma corruptela de beetles (besouros), em
uma espécie de homenagem aos Crickets (grilos), o duo de baixo e
bateria que acompanhava Buddy Holly, um dos pioneiros do rock and
roll, morto aos 22 anos, cujas canções influenciaram fortemente toda
uma linhagem de compositores britânicos.
Eventualmente, o órgão elétrico, tão típico do rhythm and blues,
predominava, como na releitura dos Animals para House of Rising Sun
que tanto impressionou Bob Dylan. Essa balada em forma de crônica
moral que circulava em centenas de versões diferentes pelo sul dos
Estados Unidos e cuja origem alguns pesquisadores localizavam na
Inglaterra, fora gravada pelo próprio Dylan em seu primeiro álbum
apenas com violão, seguindo uma versão recolhida por seu amigo
Dave Van Ronk. Foi a partir desse registro que nasceu a intervenção
elaborada pelos Animals. Um caso típico de influências que se sobre-
põem, já que a gravação reforçou para Dylan a necessidade de matizar
a forma como suas canções seriam apresentadas.
Mas foi com os Beatles que Bob Dylan estabeleceu de fato uma
interlocução criativa. Naquela altura, o abalo na indústria provocado
pelo quarteto de Liverpool forçou o mercado a rever regras que pare-
ciam escritas em pedra. As gravações de singles de música pop desde
que o rock and roll saira de cena em 1959, envolviam orquestras, coros,
além de compositores especializados, já que o interprete dificilmente
criava seu próprio repertório. Phil Spector, o mais notório produtor
desse período, era a estrela por trás de seus discos, mesmo sem cantar
uma nota.

17
Rodrigo Merheb

Em contrapartida, Os Beatles não apenas tocavam seus próprios


instrumentos, como compunham aquilo que cantavam. O custo de
produção caía significativamente e tornava acessível para adolescentes a
possibilidade de montar sua própria banda na garagem de casa. A maio-
ria dessas tentativas amadoras sequer gerava um primeiro disco (várias
não passavam do primeiro), mas demonstravam o nascimento de um
público interessado para além da atenção dedicada pelo ouvinte casual.
Ademais, era notória a evolução dos Beatles, como compositores,
a cada disco. Nas gravações, eles procuravam soluções inventivas, tes-
tando todos os limites oferecidos pelos estúdios, que na Inglaterra eram
tecnologicamente inferiores aos similares americanos. Na música folk,
ao contrário, nenhuma distração deveria se interpor entre o ouvinte e
a mensagem transmitida. O acompanhamento, quase sempre esparso,
consistia basicamente em violão e harmônica de boca, às vezes adorna-
do por um piano. A economia de recursos que servira para Dylan exer-
citar seu virtuosismo precoce como letrista, se transformara num me-
canismo de restrição que atendia principalmente a motivações políticas.
Ao mesmo tempo em que diversificava a sonoridade de seus
álbuns, Dylan deixava as letras tópicas para trás. A obrigação de in-
terpretar fatos reais, com abordagem quase jornalística, dava lugar a
um fluxo de palavras com abstrações imagéticas que desconstruíam o
ritmo e a percepção da realidade convencional.
Dylan se iniciou como compositor adotando como espelho a
obra de Woody Guthrie, uma lenda da canção de protesto, mas a mú-
sica era apenas uma de suas referências. Como vários jovens de sua
geração, ele se apaixonara por On The Road de Jack Kerouac, e por
extensão, pelos principais escritores e poetas da literatura beat. Dylan
guardava uma predileção especial por México City Blues, que o pró-
prio Kerouac definira como um livro jazzístico. Uma construção de
versos de longas linhas cuja prosódia sugeria uma construção análoga

18
O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o nascimento do rock moderno

ao bebop, subgênero da ala mais vanguardista do jazz. Kerouac habi-


tualmente rompia o limite da poesia na página e promovia leituras na
rua acompanhadas por instrumentistas.
Durante esse período transicional, em que se preparava para
desembarcar da música folk, Dylan iniciou uma amizade sólida com
Allen Ginsberg, um dos protagonistas da literatura beat ao lado de
Kerouac e Wiliam Burroughs. Ginsberg aparecia no clip de Subterra-
nean Homesick Blues, faixa de abertura de Bringing It All back Home
– com notória influência de Kerouac – e também estava presente no
documentário Don’t Look Back, que retratava a excursão à Inglaterra
na primavera de 65, de onde Bob Dylan retornaria para a histórica
apresentação com guitarras elétricas no Festival de Newport, provo-
cando vaias e conflitos entre facções da comunidade folk, marcando
figurativamente o começo da era do rock.
Em que pese ambos os grupos terem vindo predominantemente
da classe média, e partilhassem do desprezo pelo pensamento con-
servador, havia notórias diferenças filosóficas entre os poeta beats e a
turma da música folk quanto ao gosto musical, mas também em rela-
ção às atitudes políticas. De várias maneiras, essa divisão prefigurou as
discordâncias entre os hippies e os militantes de esquerda no auge da
contracultura, poucos anos depois. Enquanto os entusiastas da can-
ção de protesto pregavam um engajamento ortodoxo e disciplinado
nas principais pautas progressistas, os beats (mesmo aqueles que eram
ligados familiarmente à esquerda como Allen Ginsberg) experimen-
tavam sexo, drogas, violência e misticismo mais como busca de trans-
cendência pessoal do que de transformação social. Jack Kerouac, por
sinal, com o passar do tempo, se tornaria cada vez mais reacionário
politicamente até morrer em 1969.
O bairro Greenwich Village que concentrava a maior parte dos
bares e cafés onde se apresentavam os menestréis da música folk, era

19
Rodrigo Merheb

reconhecidamente o principal reduto boêmio norte-americano des-


de o começo do século XX. Para os beats, porém, aquela região já
estava gentrificada quando o movimento surgiu logo após a Segun-
da Guerra Mundial na Universidade de Columbia. Eles viviam nas
áreas tomadas pelo tráfico e pela prostituição onde podiam alugar
espeluncas baratas, já que obter um salário regular não estava em
suas escalas de prioridades.
Mesmo após a publicação de On The Road, que transformou
Jack Kerouac em celebridade, gerando uma superexposição midiáti-
ca com a disseminação da expressão derrogatória “beatniks” que eles
odiavam, o grupo se fechou em uma confraria a qual só conseguia
acesso quem cultivasse os mesmos valores. Além do mais, por volta
do início dos anos 1960, quando a música folk também migrou para o
mainstream, os principais nomes daquela literatura já haviam mudado
para Califórnia ou levavam uma vida itinerante.
Apesar de se encontrar em declínio, o prestígio da literatura beat
permanecia enorme. Seus escritores mais destacados haviam criado
uma forte identidade pública que se confundia com os personagens
retratados nos livros. Em vários aspectos, a autodesignação do hipster,
ainda nos anos 1940, como um antecipador de tendências, já criava
um escudo restritivo entre quem partilhava das mesmas ideias e o res-
to do mundo. Esse culto ao outsider como contraveneno a uma socie-
dade de pensamentos e ideais considerados medíocres tornou-se um
manual prático para jovens artistas rebeldes e antiacadêmicos.
No poema Uivo, Allen Ginsberg mencionava “hipsters de cabeça
ardendo pela ancestral conexão com o dínamo estrelado na maquina-
ria da noite”. Se a palavra hoje tem uma conotação destorcida, sinôni-
mo de superficialidade e inconsistência, sua origem torna compreen-
sível a escolha poética de Ginsberg. Toda lógica existencial do hipster
que ganha proeminência como personagem boêmio das metrópoles
logo após a Segunda Guerra Mundial, era baseada numa mimetização

20
O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o nascimento do rock moderno

dos códigos de linguagem dos negros. Não da maioria que ainda era
oprimida por uma sociedade racista, mas da parcela de jazzistas mais
arrojados que desafiavam a sociedade com sua arte e seu estilo de vida
insubmisso. Os hipsters trafegavam no submundo de onde traziam
para superfície costumes e gírias de uma fauna que a um só tempo
fascinava e horrorizava o cidadão de valores tradicionais.
O mais bem-acabado arquétipo do hipster na literatura certa-
mente foi criado por Jack Kerouac em On The Road, na figura do seu
alter ego Sal Paradise. Num dos trechos, ele resume a má consciência
que resulta de uma identificação tão latente com a cultura e o modo de
vida do oprimido enquanto tem que carregar geneticamente a culpa
do opressor:

Num entardecer lilás caminhei com todos os músculos doloridos


entre as luzes da 27 com a Welton no bairro negro de Denver, de-
sejando ser um negro, sentindo que o melhor que o mundo bran-
co tinha a me oferecer não era êxtase o suficiente para mim, não
era vida o suficiente, nem alegria, excitação, música, escuridão,
não era noite o suficiente. Parei num pequeno quiosque onde um
homem vendia chili apimentado em embalagens de papel; com-
prei alguns e comi percorrendo ruas escuras e misteriosas. Dese-
java ser um mexicano de Denver, ou mesmo um pobre japonês
sobrecarregado de trabalho, qualquer coisa menos aquilo que eu
tão aterradoramente era, um branco desiludido.

A expressão Hip, vinda de hepi, que significa “abrir os olhos de


alguém”, fora trazida pelos escravizados da África Ocidental e seu uso
nos Estados Unidos data do início do século XVII. Mas o significado
adquirido ao longo dos anos veio da sinergia cultural entre os bran-
cos descendentes de europeus e os afro-americanos em meio à vio-
lência racial que se impunha nos Estados Unidos. Como descreveu
John Leland em Hip-The History, “o hip prosperou na justaposição e

21
Rodrigo Merheb

no pastiche. Conectando o desigual e o contraditório”. Há inegavel-


mente um aspecto de apropriação cultural nesse jogo no qual o opres-
sor assimila a linguagem e a cultura do oprimido para reinventar sua
própria identidade. Ainda de acordo com Leland, no seu pior aspecto
o hipsterismo pode ser entendido como “supremacia branca posando
de apreciação”. Apesar de resultar de um tensionamento racial tipi-
camente americano, o culto de estudantes de artes na Inglaterra pela
música negra dos Estados Unidos nos anos 1960, não deixava de ser,
a seu modo, uma forma de hipsterismo que não passava pelo simula-
cro, mas preservava o aspecto de maçonaria entre os que dividiam os
mesmos gostos.
Quando o escritor Norman Mailer criou uma espécie de biogra-
fia literária do hipster no seu texto-manifesto intitulado “The White
Negro” em 1957, a expressão já classificava bem mais que meia dúzia
de aspirantes a escritores. Mailer explicava o hipster como resultado
do encontro entre o existencialista americano e o negro, produzindo
um novo tipo de intelectual urbano disposto a explorar todos os li-
mites da experiência, como único projeto de vida possível, a partir da
constatação de que uma explosão nuclear podia ser eminente e que
os valores cultivados pelo cristianismo ocidental eram, na melhor das
hipóteses, hipócritas. Dizia Mailer:

Se o destino do homem do século XX é viver com a morte, da


adolescência até a senilidade prematura, a única resposta sal-
vadora é aceitar os termos da morte, viver com a morte como
perigo imediato, se divorciar da sociedade, existir sem raízes,
mergulhar naquela jornada não mapeada nos imperativos re-
beldes do ser.

O artigo de Mailer não tinha pretensões cientificas, eram obser-


vações romanceadas a partir de suas impressões pessoais. Ainda as-
sim ele foi taxado de racista especialmente por intelectuais negros que

22
O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o nascimento do rock moderno

naquele momento iniciavam a luta pelos Direitos Civis, como meio


de inserção maior do negro num modo de vida de classe média que
passava em grande medida por sua descaracterização como marginal.
De fato, as motivações de Mailer pareciam explicitar um feti-
chismo típico de quem, a despeito de reverenciar, não consegue se
livrar da mera paródia reducionista e estereotipada. Por outro lado,
seu texto tem valor inestimável para a compreensão de fenômenos
que seriam naturalizados como modo de vida alternativo uma dé-
cada depois. A valorização da experiência, fosse ela mística, sexual
ou estética, antecipava tópicos fundamentais da contracultura que
começava a ser desenhada na figura de ícones do rock como John
Lennon e Bob Dylan.
Em dezembro de 1965, Dylan posou para uma foto, planejada
para ser a capa do seu próximo álbum, na frente da livraria City Lights
do poeta Lawrence Ferlinghetti, em São Francisco. Dylan aparecia la-
deado por Robbie Robertson, guitarrista do The Band, o grupo que o
acompanhara em sua primeira turnê eletrificada e que depois construi-
ria sua própria marcante discografia, e com alguns literatos como Allen
Ginsberg e Michael Mc Lure. O álbum em questão, Blonde on Blonde,
o último da trilogia elétrica, acabou exibindo apenas uma foto fora de
foco do próprio compositor, mas Dylan parecia empenhado em emitir
sinais claros sobre em que direção se inclinava sua sensibilidade. Nos
shows e entrevistas, as antigas camisas de flanela haviam sido substi-
tuídas por roupas de couro e óculos escuros de um autêntico rock and
roller redivivo dos anos 1950. O comportamento projetava a feição de
um poeta cínico, cuspindo frases em alta velocidade, destemido em seus
excessos e condescendente com o resto da humanidade.
Dylan carregava nessa nova persona uma síntese dos componen-
tes principais da sua formação artística: o rock and roll e a literatura beat.
E não somente nos modos e nas aparências. Subterranean Homesick
Blues deixava todas as pistas sobre como seriam os fluxos de consciência

23
Rodrigo Merheb

tão típicos das construções de Kerouac se musicados por Chuck Berry,


já que a melodia derivava inteiramente de Too Much Monkey Business.
O hipster se recompunha numa leitura moderna, portando uma guitar-
ra. Por maior que fosse o sucesso editorial de Burroughs, Ginsberg e
Kerouac, eles jamais poderiam competir com a massificação em larga
escala que a música pop produzia. Dylan trazia para o âmago da socie-
dade a subversão e o confronto que pulsavam no underground.
Como despedida da comunidade folk, Dylan escreveu Positively
4th Street, uma ácida carta-canção que parecia um desabafo direcio-
nado não a alguém em particular, mas a toda a coletividade que de-
plorava a guitarra elétrica como rendição ao comercialismo vulgar.
Além disso, em entrevistas, ele fazia questão de ressaltar com mor-
dacidade o quanto a música folk se tornara um beco sem saída estéti-
co. Não é mera coincidência que naquele instante o Movimento pelos
Direitos Civis entrasse em sua fase de institucionalização e absorção
pela maioria da sociedade. A Lei enviada ao Congresso pela Admi-
nistração Johnson (Civil Rights Acts) abrangia os principais tópicos
reivindicados pelas lideranças, supostamente unindo várias correntes
de pensamento num único sentimento de solidariedade.
Mas, longe dos gabinetes, a realidade dos guetos e das ruas era
de violência policial ininterrupta, alto desemprego e drogas devastando
famílias. A etapa da resistência pacífica defendida por Martin Luther
King Jr. perdia fôlego, enquanto novos ativistas afrodescendentes perce-
biam que as hostilidades dirigidas à sua raça não acabariam por causa
de um conjunto de normas escritas. A doutrina da reação proporcional
ganhava sopro entre novos líderes que se organizavam em milícias e
células de resistências.
O fato de Malcolm X, o principal propagandista do olho por
olho, ter sido assassinado apenas sete meses após a promulgação da
Lei dos Direitos Civis, e do próprio Martin Luther King Jr ter sido

24
O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o nascimento do rock moderno

fatalmente baleado três anos depois apenas reforçava a necessidade de


se inaugurar um ciclo mais radical de lutas sociais, protagonizado pe-
los próprios negros que viam com crescente desconfiança brancos que
se arvoravam em porta vozes de sua causa. O Black Power não enxer-
gava possibilidade de assimilação sem que cada quadra de violência
praticada pelos brancos recebesse uma reação equivalente.
Várias letras de Bob Dylan a essa altura enfatizavam, ainda que
de maneira oblíqua e metafórica, a impossibilidade de transformações
reais numa sociedade corrupta na origem, na qual as elites dirigentes,
por meio de instituições, exerciam o controle de forma brutal para
preservar suas instâncias de poder. Embora a guitarra representasse
uma ruptura com a militância clássica, mesmo na fase em que o co-
mentário social era mais explícito, descontadas as canções que arre-
gimentavam a luta (Blowin The Wind, The Times They Are a Chan-
gin, Chimes of Freedom), seu pessimismo temperado de indignação
já transparecia em gravações como Lonesome Death of Hattie Carroll,
With God on Our Side e A Hard Rain is a Gonna Fall. Dylan se arris-
cava à incompreensão geral, mas recusava a acomodação, sem perder
o olho nas possibilidades comerciais. Como salienta Mike Marquese
em Wicked Messenger: Bob Dylan and the 60´s,

Em retrospecto, a desilusão política prematura de Dylan refle-


tia não apenas os desgastes da revolta e reação, mas também
o acúmulo de experiências e identidade numa sociedade de
consumo. Para Dylan e muitos outros, um nível de consciência
parecia rapidamente superado por outro. Se você ficasse num
nível tempo demais corria o risco de se tornar tão obsoleto e
inautêntico quanto a moda do ano passado.

O papel da crítica nesse processo deve ser considerado. A in-


cursão de Dylan pela eletricidade foi rejeitada pelos puristas, mas
não pelos críticos. A combinação de credibilidade e êxito comercial

25
Rodrigo Merheb

encorajou novos compositores e cantores com aspirações artísticas a


se dedicarem à música pop sem qualquer constrangimento, com liber-
dade para inserirem em seus trabalhos qualquer tipo de referência até
mesmo alheia à área musical. Todo o capital crítico que Dylan amea-
lhou nos seus quatro primeiros discos foi levado em conta nas avalia-
ções da trilogia elétrica. A partir daí, começa a surgir uma imprensa
especializada para julgar o rock em seus próprios termos, como uma
forma de expressão autônoma, não como um apêndice de outros gê-
neros ou de alguma causa política.
Algumas diferenças daquela nova leva de músicos em relação
aos seus antecessores dos anos 1950 merecem destaque. Enquanto os
precursores do rock and roll eram garotos mal saídos da adolescência
que vinham dos mais baixos extratos da sociedade, de onde busca-
vam ascender socialmente, com pouca educação formal e constituíam
um núcleo miscigenado de representantes negros – Chuck Berry (aos
trinta anos, uma exceção nesse grupo), Little Richard, Fats Domino
– e brancos (Elvis Presley, Buddy Holly, Jerry Lee Lewis, Eddie Co-
chran), os protagonistas do rock sessentista vinham em grande maio-
ria da classe média, tocavam para uma plateia inconfundivelmente
branca e não se imaginavam como agentes de entretenimento, mas
como artistas capazes de tecer comentários a respeito de uma socie-
dade em turbulência e de abrir novas fronteiras de exploração musical
utilizando recursos tecnológicos modernos.
Esse jovem com aspirações à transgressão via em Bob Dylan um
modelo a ser seguido. Alguém que, a despeito de não ter uma vida inte-
lectual muito disciplinada, frequentemente citava personagens da alta
cultura como Rimbaud, Blake e Shakespeare (a transmutação de Robert
Zimmermann no pseudônimo Bob Dylan já produzia uma associação
imediata com o poeta Dylan Thomas) e parecia em desafio permanen-
te contra qualquer forma de autoridade, fosse ela representada pela

26
O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o nascimento do rock moderno

imprensa, por líderes políticos ou até mesmo pelo seu público. Dylan
parecia capaz de sistematizar a desordem, sempre um passo adiante
das expectativas gerais que ele notoriamente manipulava.
Se na década de 1950, a rebeldia era considerada uma fase de
desajuste intermediário entre a infância e as responsabilidades da
idade adulta, os jovens que articulavam o rock dos anos 60 não es-
condiam a pretensão de serem reconhecidos por sua arte. Vários de-
les tinham formação universitária (Jim Morrison, Janis Joplin, Paul
Simon, Lou Reed) ou, no caso dos ingleses, uma parcela considerá-
vel frequentara escolas de arte públicas, graças a uma política edu-
cacional socialdemocrata no Reino Unido estabelecida logo depois
da Segunda Guerra. Por sinal, as principais bandas inglesas daquele
período (Beatles, Rolling Stones, The Who, The Kinks, Cream, Yard-
birds, Pink Floyd) contavam com pelo menos um integrante prove-
niente destas instituições.
Quando o rock and roll se massificou em 1955, a intelectualidade
americana não lhe deu qualquer importância. Não apenas a qualidade
musical parecia rudimentar, mas seus nomes mais conhecidos eram
garotos de idade pouco maior do que seu público e vinham todos do
Sul, uma parte dos Estados Unidos que a esquerda da costa leste via
com desconfiança dado seu patriotismo, sua religiosidade e sua heran-
ça escravocrata.
Mesmos os beats que, em tese, poderiam entender a rebeldia
por trás da música, sentiam pouca afinidade com o rock and roll.
Apesar da forte musicalidade e do componente rítmico de suas po-
esias, o interesse dos beats era incorporar em sua obra aspectos do
bebop que desconstruíam formas ortodoxas com instrumentistas ex-
traordinários como Miles Davis, Charlie Parker e Dizzy Gillespie.
Depois, aquelas crônicas de ansiedade sexual e inadequação dificil-
mente teriam alguma ressonância com escritores já passados dos 30

27
Rodrigo Merheb

anos. Aos devotos da música afro-americana, o rock and roll era


apenas mais uma bastardização industrializada pela grande fábrica
de entretenimentos americana.
A ascensão do rock and roll como trilha oficial da juventude em
1955 coincide com um ciclo de prosperidade econômica americana,
marcada por crescimento populacional de 70% em apenas dez anos,
além de aparências e comportamentos padronizados em meio a uma
ideologia francamente conservadora. A classe média tomava o rumo
dos subúrbios e se fechava em círculos de prosperidade dentro de
casas rigorosamente iguais. Estas comunidades não viam com bons
olhos pessoas solteiras ou divorciadas. Um contrato para aquisição de
residência poderia ser desfeito se o comprador fosse negro.
Por volta de 1953, a televisão se popularizara a ponto de haver um
aparelho em ¾ dos lares americanos. Cada vez mais os entretenimentos
se voltavam para o universo familiar. Isso levou, naturalmente, a um in-
cremento na indústria de publicidade e abriu várias janelas de oportuni-
dade para consumo, já que ao contrário da Europa que trabalhava com
conteúdo determinado pelo interesse público, a TV americana optou
pelo modelo privado com emissoras que precisavam vender anúncios
para se financiar.
A despeito desse panorama conformista, algumas clivagens se
faziam notar no núcleo do próprio sistema: desde 1954, a Suprema
Corte Americana decidira que qualquer forma de segregação em es-
colas públicas era inconstitucional. O presidente Dwight Eisenhower
precisou mandar a Força Nacional para uma escola do Sul a fim de
cumprir a integração à força. Havia um descompasso evidente entre
o entendimento legal e a maneira como a sociedade reagia a questões
elementares de direitos humanos. O ódio racial manifestado por meio
de crimes continuava latente, especialmente nos estados sulistas, onde
o rock and roll nascera como um combinado de formas musicais híbri-
das praticadas pelas classes populares.

28
O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o nascimento do rock moderno

Foi nesse cenário de conformismo e apatia, com focos de in-


surgência, que o rock and roll e a literatura beat emergiram atingin-
do públicos distintos, mas trazendo a questão negra para o centro da
cena. O rock and roll se consolidava como produto da autonomia de
uma subcultura teenager emergente, demarcada dos treze aos deze-
nove anos, seguida pela imediata idade adulta, o que num país onde a
maioria da população se casava muito cedo significava constituir sua
própria família.
Grande parte desse segmento teen oriundo de uma classe média
opulenta vivia sob cuidados dos pais, mas aceitava trabalhos de meio
período, cuja remuneração quase sempre servia para gastos pessoais,
já que raramente se solicitava que eles participassem do orçamento
doméstico. Muitos tinham seu próprio automóvel ou motocicleta. Era
uma emancipação baseada na mobilidade e em centros de convivência
como as escolas de segundo grau, onde em 1955 se graduaram 80% dos
americanos em idade escolar. A indústria de consumo se mobilizou
rapidamente para oferecer produtos especializados, especialmente na
área de entretenimento. O cinema foi mais rápido, enchendo a tela com
filmes sobre delinquência juvenil e gerando ídolos como James Dean e
Marlon Brando, que, além de tudo, confrontavam os padrões de mas-
culinidade tradicional expostos em Hollywood.
A música popular que tocava nas principais emissoras de rádio
não era dirigida a grupos sociais ou faixas etárias específicas. Mesmo
os cantores negros eram obrigados a abrandar sua música com or-
namentos de violinos e suprimir qualquer traço que remetesse à sua
cultura. Crooners de jazz de primeira linha como Nat King Cole, tam-
bém um exímio pianista, precisavam seguir uma cartilha rigorosa se
almejassem atingir uma plateia além da população afro-descendente.
As rádios que veiculavam o rhythm and blues – a forma mais
industrializada e dançante do blues urbano – e outros subgêneros fora
do mainstream tinham alcance pequeno e audiência limitada. Aos

29
Rodrigo Merheb

poucos, no entanto, surgia um núcleo de ouvintes fiéis, no começo


antenados e formadores de opinião que atraia mais gente pela pro-
paganda de boca e comunicação aberta. Conforme observa Charlie
Gillett em The Sound of The City:

Se os primeiros ouvintes eram aqueles com padrões relativa-


mente altos para julgar música, os que vieram depois incluíam
muitos cujos gostos eram mais instintivos, que gostavam do rit-
mo dançante ou o efeito emocionante de um sopro quente do
saxofone, pessoas que podem ter achado a voz rude dos canto-
res um tanto pitoresca e atraente como novidade.

Bob Dylan estava entre aqueles cuja formação foi profundamente


afetada pelos sons que vinham dessas rádios independentes:

No extremo norte, à noite, você poderia encontrar essas esta-


ções de rádio sem nome no dial, que tocavam coisas pré-rock
and roll-country-blues. Dava para ouvir Slim Harpo ou Light-
nin Hopkins e grupos de gospel, os Dixie Hummingbirds, os
Five Blind Boys of Alabama. Eu estava tão ao norte que nem
sabia onde ficava o Alabama. Então em horas diferentes havia
o blues. Você podia ouvir Jimmy Reed, Wynonie Harris e Little
Walter. Então tinha uma estação em Chicago. WSM? Tocava
toda a música caipira.

O primeiro profissional de comunicação a perceber que havia


um fenômeno em andamento foi o DJ Alan Freed de Cleveland (por
conta de sua enorme importância, o museu do Rock and Rol Hall of
Fame é sediado nessa cidade no Estado de Ohio), que fazia um pro-
grama de música clássica. Alertado por um amigo, ele foi a uma loja
de discos do centro da cidade e ficou surpreso ao ver garotos bran-
cos dançando e comprando discos de rhythm and blues, descobrindo

30
O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o nascimento do rock moderno

grupos vocais e cantores completamente diferentes de tudo que se ou-


via nas maiores rádios.
Em junho de 1951, Alan Freed começou um programa noturno
especializado em rhythm and blues chamado Moondog Rock and Roll
Party. Até então, rock and roll era uma gíria do povo negro, dissemi-
nada em algumas canções, para designar o ato sexual, às vezes de ma-
neira subjacente, disfarçada em metáfora para dança e movimento. O
que contribui para inúmeros debates sobre qual seria o primeiro rock
and roll gravado.
Essa distinção não pertence à versão de Bill Halley para “Rock
Around The Clock” que, entretanto, demarca o início de uma era pelo
sucesso gigantesco que abriu caminho para outros lançamentos. A pa-
lavra rock nessa gravação era esvaziada do seu conteúdo sexual para
fazer referência apenas à celebração da dança. Halley era especialista
num subgênero batizado de western swing, que misturava elementos
da música caipira com a sonoridade das antigas big bands do jazz. A
essa receita, Bill Halley acrescentou a batida derivada do rhytmn and
blues. Porém, seu estilo visual antiquado fazia dele um candidato im-
provável a ídolo de adolescentes, parecia mais o pai deles. Além disso,
seu desconforto no papel de rock and roller era visível. Um de seus
lemas era de que jamais incluiria em seu repertório uma música que
não pudesse ser tocada na igreja.
Maybellene, lançado por Chuck Berry quase simultaneamente ao
sucesso imenso de Rock Around The Clock, funciona melhor como um
compêndio dos principais elementos musicais e temáticos do gênero. A
melodia vem de um clássico do country e western, Idris Elba, e a letra,
além de envolver carros, narrava uma crônica de romance e infidelidade
com tinturas inter-raciais nas entrelinhas. Chuck Berry pode não ter
inventado o rock and roll, mas criou o arcabouço sólido que sustentaria
todas as variações.

31
Rodrigo Merheb

O tempo em que o rock and roll dominou amplamente as para-


das americanas não durou mais do que de três anos, de 1955 a 1958.
Modismos musicais raramente tinham uma sobrevida maior, mas tra-
gédias pessoais e delitos criminais de alguns de seus principais nomes
precipitaram o fim. Igualmente decisiva foi a campanha implacável
mobilizada por educadores, religiosos e pessoas da própria indústria
do disco que se sentiam profundamente incomodados por uma mú-
sica praticada por representantes da ralé da sociedade. Em síntese,
brancos pobres e negros. E em nenhum lugar essa campanha foi mais
aguerrida do que no Sul.
Em uma entrevista publicada em 2015 para divulgar o álbum
Shadow of The Night, no qual interpretava canções da era pré-rock and
roll, Dylan emitiu suas impressões sobre o tipo de ameaça que repre-
sentava aquela miscigenação musical:

Eles tocavam esse tipo de música que era preta e branca. Extre-
mamente incendiária. As roupas pegavam fogo. Era uma mis-
tura de cultura negra e cultura caipira. Quando eu ouvi Chu-
ck Berry pela primeira vez eu não pensei que ele fosse negro.
Pensei que ele fosse um caipira branco. Mal sabia que ele era
um grande poeta também. (...) havia algum poder elitista que
tinha que se livrar de todos esses caras e exterminar o rock and
roll pelo que era e pelo que representava, especialmente por ser
uma coisa preta e branca. Amarrada e hermeticamente fechada.
Se você separa as peças, você mata.

A despeito de todas as análises que enxergam o rock and roll


como uma usurpação, era exatamente a mistura musical que facilita-
va a integração no palco e na plateia um dos fatores mais incômodos
em um período no qual os negros não podiam exercer qualquer pa-
pel além da subordinação. Na mesma entrevista, Dylan aborda essa
questão:

32
O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o nascimento do rock moderno

– Você quer dizer que a mistura de raças musicais que tornou


tudo perigoso?
– Bem, preconceito racial estava presente há algum tempo,
então sim. E aquilo era extremamente ameaçador para os pa-
triarcas, eu acho. Quando eles finalmente reconheceram o que
era, tiveram que desmantelar, e foi o que aconteceu, começando
com o escândalo da payolla e coisas como aquela. O elemento
negro foi transformado em soul music e o elemento branco vi-
rou pop britânico.

O “escândalo da Payolla” a que Dylan se refere levou os mais re-


nomados DJs em atividade a serem acusados pelo Congresso Ameri-
cano por suborno. Esses profissionais tinham o poder de transformar
em sucesso gravações de selos obscuros. A ofensiva juntou do mesmo
lado o moralismo de políticos que condenavam o rock and roll com os
interesses comerciais das grandes gravadoras que se ressentiam dos
selos independentes favorecidos pelos DJs, a quem acusavam de rece-
ber propina para divulgar determinados discos. O caso mais emble-
mático foi exatamente o de Alan Freed. As majors relançavam canções
de cantores negros na voz de imitadores brancos em discos que Freed
se recusava a tocar, o que o deixou seriamente marcado pelo tamanho
da sua influência e alcance. Depois de condenado, apesar de nunca
admitir sua culpa, Freed foi demitido, indiciado por crimes fiscais e
nunca mais arranjou trabalho em outra emissora de ponta. Morreu
em 1965, vítima de alcoolismo, pobre e completamente esquecido.
Nenhum dos fundadores do rock and roll voltou a obter êxi-
to comparável ao dos primeiros anos. Quase sempre apareciam em
shows nostálgicos com a imagem congelada naquele tempo específico.
Menos Elvis Presley, considerado uma estrela maior do que o gêne-
ro, grande demais para ser desperdiçado num modismo passageiro. A
operação para mudar sua imagem expunha todos os detalhes de uma
espécie de iniciação simbólica na vida adulta, com o mercado atuando

33
Rodrigo Merheb

para limpar um ídolo de suas impurezas e vendê-lo como alguém cre-


denciado a agradar os pais dos garotos que o amavam.
Intervir na imagem ligada intrinsecamente à sexualidade foi o
primeiro passo. Se a batida da música era considerada agressiva e as
letras transmitiam um forte conteúdo anti-autoridade, igualmente in-
comodava a exposição de vulgaridades deplorada pela classe média,
especialmente quando Elvis se apresentava na televisão. A televisão
demarcava o que era aceitável da porta da rua para dentro de casa. E,
para Elvis, não fazia diferença mexer os quadris no palco ou em frente
às câmeras.
O ídolo foi retirado de cena para servir numa base americana na
Alemanha. Em retrospecto, a maioria dos pesquisadores delimita aí a
domesticação de um talento instintivo e visceral. Num tempo de va-
lores patrióticos em alta, as forças armadas eram suficientemente ad-
miradas para que um ex-general de guerra, Dwight Eisenhower, fosse
eleito para dois mandatos consecutivos. Nenhuma outra instituição
teria o mesmo poder legitimador, já que o exército ditava o padrão de
masculinidade no qual a violência sublimava exatamente a sexualida-
de crua e aberta que Elvis encarnava.
Quando retornou, o primeiro compromisso profissional de El-
vis foi uma participação no programa de televisão de Frank Sinatra,
o que equivalia a uma estampa de aprovação paterna, já que Sinatra,
um cantor vinte anos mais velho, se referira ao rock and roll como a
“mais brutal, feia, degenerada, viciosa forma de expressão que eu tive
o desprazer de ouvir”. Um discurso semelhante ao de pais, educadores,
políticos e líderes religiosos que denunciavam o ritmo pelo país afora.
Além disso, nos anos de juventude, Sinatra fora um ídolo da enver-
gadura de Elvis sem cantar uma música “degenerada”, e agora, proje-
tando uma imagem de maturidade, continuava atendendo a padrões
estabelecidos de bom gosto.

34
O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o nascimento do rock moderno

A derrocada do rock and roll não significou um enfraquecimento


da música produzida para adolescentes. Ao contrário. O mercado con-
tinuou aquecido, a fórmula se diversificou e as técnicas de gravação se
sofisticaram. O lapso de quatro anos entre a volta de Elvis do exército e
a chegada dos ingleses aos Estados Unidos representa o tempo de ma-
turação de uma nova leva de cantores e compositores que iria seguir a
trilha deixada pelas informações e desbravamentos iniciados por Bob
Dylan e pelos Beatles.
A disseminação das drogas alucinógenas entre os músicos ori-
ginou uma música psicodélica que talvez seja a única linguagem re-
almente original que o rock pode reivindicar, visto que os primeiros a
enfrentarem o desafio de criar um som que traduzisse estados altera-
dos de percepção tinham basicamente a literatura para se ancorarem,
especialmente os escritos de Aldous Huxley e Timothy Leary. Em To-
morrow Never Knows, os Beatles abriram uma nova vereda partindo
do livro A Experiência Psicodélica de Leary, que era dedicado a Huxley,
morto em 1963 e autor de As Portas da Percepção e Céu e Inferno–
dois ensaios sobre drogas psicoativas. Nesse desenvolvimento, o rock
ficou mais distante de suas fontes originais do country e do rhythm and
blues. Em diferentes momentos de sua história, a cada inflexão forjada
para tensionar a forma, esse distanciamento se repetiria – particular-
mente na Inglaterra, na Alemanha e em algumas cenas específicas de
Nova York e São Francisco.
O ano de 1966 foi o último ano da supremacia dos singles sobre
os LPs, até o início da era digital. Os disquinhos compactos exigiam
uma carpintaria específica para capturar a atenção do ouvinte em pouco
mais de dois minutos. A música tocava no rádio e seu consumo era ime-
diato e acessível a qualquer adolescente. Bob Dylan implodiu a receita
quando lançou Like a Rolling Stone como single com seus seis minutos
intocáveis e chegou ao topo das paradas. A partir de Sgt. Pepper, criou-se

35
Rodrigo Merheb

o conceito do álbum como um evento no qual cada detalhe deveria ser


trabalhado, desde a apresentação gráfica até a transcrição das letras. O
LP, então, ganhou predominância definitiva como veículo adequado
para quem pretendia criar uma obra, não apenas fazer sucesso.
Esse período de transformações musicais viu o nascimento de
uma contracultura que era em larga medida pautada pelos ideais da
geração beat, acrescida do uso de LSD e do recrudescimento da luta
política em escala universal. A sociedade começava a assimilar formas
de comportamento consideradas desviantes. Conforme aponta Tho-
mas Frank no seu livro The Conquest of Cool, o mundo corporativo
também se remodelava com novos profissionais apostando numa re-
novação do dialeto publicitário, em busca de um novo público que se
identificasse com os ideais de rebelião, ainda que vivenciassem tudo
de forma apenas tangencial. E o rock se estabeleceu como a face mais
assimilável dessa revolução de comportamento, o veículo que iria ma-
pear seus principais preceitos para consumo externo.
Quando Bob Dylan posou para a fotografia com os poetas em
São Francisco, a cidade começava a se projetar como principal polo
da contracultura exatamente pelo nexo da literatura com a música,
mais precisamente dos beats com o rock. O hipster se transfigurou
em hippie, enfatizando a descendência. A cena literária no norte da
Califórnia, que era vigorosa desde os anos 1940, se adensou ainda
mais quando os beats começaram a migrar para lá, puxados por Allen
Ginsberg. Foi em São Francisco que Ginsberg fez a histórica leitura
do poema Uivo na Galeria Six. A vida boêmia no bairro de North
Beach serviu como cenário para Os Subterrâneos – primeiro livro de
Kerouac após On The Road.
Esse ambiente começou a ser reconfigurado quando Ken Kesey, o
autor de Um Estranho no Ninho, passou a liderar uma comunidade dedi-
cada a explorar os efeitos do LSD, com o dinheiro ganho nas vendas do
seu Best seller. Essa visão se expandiu para um novo estilo de vida que

36
O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o nascimento do rock moderno

tomou conta de uma região da cidade, a Haight-Ashbury, e de lá partiu


para se desdobrar num fenômeno em escala mundial, tendo a música
e não a literatura como carro chefe. Nos testes de ácido em cerimonias
coletivas de ingestão de LSD, as viagens lisérgicas eram realçadas senso-
rialmente por meio de músicas e imagens, não pela palavra escrita.
Em pouco tempo, a chamada Bay Area seria a sede de cente-
nas de bandas que exportariam para o mundo o som e a identidade
visual do movimento hippie. O período em que São Francisco viveu
sua fase underground durou pouco mais de um ano. A partir do cha-
mado “Verão do Amor”, em 1967, a Haight-Ashbury foi invadida por
uma multidão de desconhecidos atrás de uma utopia que rapidamente
deu lugar à degradação inexorável. Enquanto isso, os Beatles, com Sgt.
Pepper, traziam o psicodelismo para o consumo de massas, criando
uma unanimidade que cobria um arco abrangendo desde o grande
público até renomados vanguardistas.
Poucas semanas depois, o Festival de Monterrey iniciou o fo-
mento de uma estrutura profissional no qual o rock era gerenciado
como um negócio que envolvia grandes eventos e grandes vendagens.
Enquanto os espaços de contestação eram gradualmente suprimidos e
a repressão sobre a ala mais radical da contracultura se intensificava, o
rock se repartia em múltiplos subgêneros atingindo o público de quase
todas as faixas etárias e classes sociais.
Durante o Verão do Amor, em 1967, em que rock e contracul-
tura se fundiram num único fenômeno sócio cultural, Bob Dylan
se fez notar pela ausência. Sem gravar ou fazer shows há um ano,
ele se recolhera no interior para compor e cantar com o The Band
músicas que iam na contramão do rebuscamento psicodélico e que
intimavam o espírito da antologia de Harry Smith sem nenhum
compromisso mercadológico. Dylan só retornaria no final do ano
com John Wesley Harding, um álbum primordialmente acústico que
em vários aspectos se desenhava como um anti-Sgt. Pepper na base

37
Rodrigo Merheb

instrumental desprovida de ornamentações sobre um ciclo de can-


ções que misturavam o antigo testamento e ingredientes de america-
na no mesmo território alegórico.
Essa iniciativa de reconectar o rock às suas fontes primitivas de
maneira não nostálgica, mas emocionalmente efetiva, situava Dylan
mais uma vez na proa de uma tendência que seria seguida já no ano
seguinte em álbuns como Music from Big Pink, do The Band; o disco
de estreia do Creedence Clearwater Revival; Sweetheart of Rodeo, dos
Byrds; Astral Weeks, de Van Morrison; o Álbum Branco, dos Beatles; e
Beggars Banquet, dos Rolling Stones. O rock começava a se multifacetar
em tantas divisões que se tornava impossível apontar uma única diretriz
hegemônica, mas Dylan, mais uma vez, oferecia um mapa a ser seguido.
Deslocado de seu contexto apropriado, no entanto, esse purismo seria
um dos componentes do chamado rock clássico, que impôs um imaginá-
rio excludente a quem não fosse branco e heterossexual. Naturalmente,
músicos que não se encaixavam nesse perfil ou que não se identificavam
com os limites estéticos apresentaram alternativas arrojadas. A capaci-
dade de se fortalecer na diversidade de ritmos e gêneros demonstrou
em diferentes épocas a vitalidade da música pop. Essas fusões, por sinal,
representam mais fielmente o caráter daquele rock and roll pioneiro que
nasceu sob a égide da integração, não da separação.
Tendo em vista seu propósito de se abster de toda agitação psi-
codélica que mobilizava cenas em São Francisco, Los Angeles e Lon-
dres, acrescido das suas opções musicais, é possível afirmar que Dylan
se via como um guardião da tradição musical que formou sua sensi-
bilidade quando era ainda um adolescente no meio-oeste americano.
O primeiro álbum da trilogia elétrica, Bringing It All Back Home (Tra-
zendo Tudo de Volta para Casa), aludia abertamente a uma retomada
de gêneros musicais tipicamente americanos apropriados pelos ingle-
ses, mas sem desconsiderar as inovações engendradas pelas bandas

38
O Fantasma da Eletricidade: Bob Dylan, o fim do rock and roll e o nascimento do rock moderno

britânicas. Embora seja catalogado como um disco psicodélico, es-


pecialmente pelo conteúdo imagético fragmentado e elusivo, Blonde
on Blonde guardava poucas semelhanças com as sonoridades ecléticas
arriscadas por bandas como Beatles, Beach Boys e Byrds na mesma
época. O fato de Dylan ter gravado seu sétimo álbum inteiramente em
Nashville, a capital da música country, já prenunciava a nova direção
que se confirmou com John Wesley Harding.
Em que pese os muitos exercícios estilísticos e tentativas erráti-
cas de atualizar seu som para modismos correntes, Bob Dylan, em sua
carreira, nunca se afastara daquilo que o compositor Gram Parsons
chamou de “música cósmica americana” e o pesquisador Greil Marcus
nomeou de “república invisível”, que seria a base de onde o rock and
roll retirou seu fundamento musical e sua identidade de resistência ao
oficialismo cultural dominante.

Bibliografia
CHARTERS, Ann. The Portable Beat Reader. Nova York: Penguin
Books, 1992.

DYLAN, Bob. Crônicas. São Paulo: Planeta, 2004.

GILLETT, Charlie. The Sound of City. Londres: Souvenir Press, 1970.

KEROUAC, Jack. On The Road. Porto Alegre: LPM, 2004.

LOVE, Robert. Bob Dylan: The Uncut Interview. AARP, fevereiro/


março, 2015.

MARQUESE, Mike. Wicked Messenger: Bob Dylan and the 60´s. Nova
York: Seven Stories Press, 2008.

WILENTZ, Sean. Bob Dylan in America. Nova York: Doubleday, 2010.

39
Rock e Vanguarda nos anos 60:
uma dialética possível

José Adriano Fenerick *

Nos anos 1960, ocorreu uma aproximação de campos, até então


vistos como antagônicos, tal como a Vanguarda e a música pop (cultu-
ra pop), que, historicamente, se constituíram como extremos daquilo
que Andreas Huyssen (1986) denominou de a “grande divisão”: ou
seja, de um lado a arte autônoma modernista (e as vanguardas) e de
outro a cultura de massa. Assim, na década de 1960, o rock, expressão
da cultura de massa, aproximou-se da música de vanguarda mais ra-
dical do século XX, em suas várias facetas.
O chão social e político por onde o rock dos anos 1960 circulou,
formado pela contracultura – pela “nova esquerda”, pelos movimentos
estudantis, pela luta pelos direitos civis nos EUA, pela campanha do
desarmamento nuclear, etc. – propiciou, em larga medida, o inusitado
encontro da cultura de massa com a vanguarda. A exaltação da subje-
tividade, presente na contracultura, e a orientação para a emancipação
social, típica da nova esquerda e dos movimentos sociais da época,
criaram um ambiente muito propício para experimentações musicais
e artísticas, das quais o rock acabou se tornando a linha de frente.

* Professor do Departamento de História – UNESP-Franca e autor do livro Nem do morro, nem da cidade:
as transformações do samba e a indústria cultural (1920-1945). São Paulo: Annablume/FAPESP, 2005.

41
José Adriano Fenerick

Assim, o rock – mais que o jazz, o cinema e a literatura –, tornou-


-se uma espécie de porta-voz de toda uma geração, particularmente da
juventude que não rejeitava, ao contrário, desejava uma música mais
experimental e menos convencional no âmbito da música pop. Nem
todo o rock produzido no período, entretanto, pode ser considerado
“experimental” ou “vanguardista” (ou com elementos de vanguarda
presentes nas músicas). Como se sabe, uma vertente da contracultura
preocupou-se mais em reabilitar as antigas tradições do blues e da mú-
sica folk norte-americanas. Por exemplo: em São Francisco, a “capital”
da contracultura hippie, uma série de bandas de rock que surgiram no
período eram basicamente bandas de blues com uma orientação psi-
codélica no instrumental e, por vezes, nas letras das canções (bandas
como: Big Brother and the Holding Company, Country Joe and the
Fish, Canned Heat, Jefferson Airplane etc.).
O acid-rock, o rock psicodélico, ligado à contracultura hippie,
embora calcado na ideia de “expansão da mente”, nem sempre levou
às últimas consequências a experimentação musical que a orientação
para a subjetividade criativa do artista poderia sugerir. Contudo, seria
em Londres (e não em São Francisco), nos estúdios da Abbey Road,
que surgiria a forma definitiva do rock psicolélico, a “ópera hippie” por
excelência: o Sgt. Pepper’s, dos Beatles.
Lançado em 1 de junho de 1967, na Inglaterra, o álbum Sgt
Pepper’s Lonely Hearts Club Band, em larga medida, sintetizava as pre-
ocupações da geração Flower Power, ao mesmo tempo em que con-
solidava as experimentações musicais, iniciadas em discos anteriores,
dos próprios Beatles. Concebido não propriamente como um disco de
rock, e sim como uma obra de arte conceitual, todo o álbum, da capa
às faixas gravadas, flertavam com elementos das vanguardas artísticas
do pós-Segunda Guerra.
Neste ponto, cabe uma observação: Sgt. Pepper’s não é um álbum
temático (como The Wall, do Pink Floyd ou Tommy, do The Who); é

42
Rock e Vanguarda nos anos 60: uma dialética possível

um álbum conceitual. A Arte Conceitual surgiu por volta de 1961,


ligada às atividades do grupo Fluxus de Nova York, que contava com
as participações, entre outros, de John Cage e Yoko Ono. O crítico e
historiador britânico Paul Wood, embora indique e saliente as várias
possibilidades de definição de “arte conceitual”, comenta que há con-
vergência de opiniões sobre o assunto em ao menos um ponto: “[...] a
‘obra’ está na ideia. Ela não tem de ser fisicamente realizada para obter
o status de uma ‘obra de arte’. E, além disso, se ela fosse fisicamente re-
alizada, a realização não teria de ser feita pela mão do artista” (Wood,
2002, p.37).
Neste sentido, e talvez apenas neste, é que se pode pensar em
Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band como um “álbum conceitual” e
não como um “álbum temático” – a rigor, não há um “tema central”
em Sgt. Pepper’s, não há uma unidade temática entre suas canções,
embora o álbum funcione como uma obra completa e coerente. Isso
ocorre, a unidade do álbum, devido a uma única ideia: a dissolução
dos Beatles diante da banda de um fictício Sgt. Pepper. Ou seja, não
são mais os Beatles os artistas realizadores da obra, mas seus alter-e-
gos. Esse é o conceito que rege o disco e que é explorado tanto na capa
como nas canções do álbum.
Soma-se a isso que Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band é o fim
definitivo da Beatlesmania e das longas turnês de shows dos Beatles.
O álbum, agora, é que é o show (ao vivo). Um show da banda do Sgt.
Pepper. A apresentação ao público dos alter-egos ocorre já na embala-
gem do álbum, pois os Beatles estão retratados duas vezes na capa do
disco: estão presentes tanto como suas figuras de cera (de terno, que
foram tomadas emprestadas do museu de Madame Tussaud) como
eles próprios, usando roupas militares coloridas. Esse segundo gru-
po são os músicos ingleses transformados em membros da Banda dos
Corações Solitários do Sgt. Pepper. Musicalmente, também anunciam

43
José Adriano Fenerick

que não se trata de um álbum dos Beatles nos versos do refrão da faixa
título, que abre o LP:

We’re Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band/


We hope you will enjoy the show
(Nós somos a Banda dos Corações Solitários do Sgt. Pepper/ E
esperamos que vocês gostem do show)

Para reforçar a ideia de um show “ao vivo”, foram colados alguns


ruídos no início da faixa que abre o lado 1 do LP, criando a sensação
de uma orquestra afinando os instrumentos antes da apresentação, e
alguns ruídos de plateia, imitando a ovação do público, em determi-
nados momentos ao longo dessa canção. Além disso, um pouco antes
de terminar a primeira faixa é apresentado o nome de mais um perso-
nagem fictício: “The one and only Billy Shears”, o cantor da próxima
faixa. Assim, a banda do Sgt. Pepper trazia a sua primeira atração solo,
o cantor Billy Shears (nome do alter-ego de Ringo Starr, e único perso-
nagem da banda de Pepper tratado nominalmente ao longo de toda a
obra – os Beatles entenderam que a arte da capa, a canção introdutória
e a apresentação de Ringo seriam suficientes para estabelecer o concei-
to e dispensaram a nomeação para os outros alter-egos).
Vale destacar ainda que a primeira faixa é colada na segunda,
sem intervalo. Mas o recurso da colagem não é apenas utilizado nesse
ponto, ele está presente ao longo do álbum estabelecendo, no todo e
em partes, uma grande colagem, em alguns casos, inclusive, feita ao
acaso. Isso, em larga medida, só pôde ser feito graças às horas (meses)
de estúdio dedicadas à gravação de Sgt. Pepper e à maneira como os
Beatles passaram a entender o estúdio de gravação – que deixa de ser
visto como um lugar de mero registro fonográfico.
Segundo Friedlander, “[...] os Beatles usaram a tecnologia do es-
túdio de gravação como se fosse um outro instrumento, [necessitando

44
Rock e Vanguarda nos anos 60: uma dialética possível

assim cada vez mais das] inestimáveis contribuições do produtor-ar-


ranjador George Martin” (Friedlander, 2002, p.124). Os rapazes de
Liverpool já haviam entendido, há algum tempo, que um estúdio de
gravação podia ser utilizado de uma outra maneira, que não a tradi-
cional (gravação de canções e registro de sons, apenas). Desde a pri-
meira reverberação (feedback) descoberta ao acaso por John Lennon e
utilizada no início da canção I Feel Fine (1965), lançada em compacto,
até a gravação de Tomorrow Never Knows, do LP Revolver (que ante-
cede ao Sgt. Pepper’s), tanto a utilização do estúdio como as canções
dos Beatles foram se complexificando (uma coisa, inclusive, estando
ligada a outra).
Cada vez mais a fórmula padrão de sucesso do pop-rock (canções
de 32 compassos, harmonia tradicional baseada em tríades tonais, etc.)
foi cedendo lugar às canções mais complexas: as letras “adolescentes”
das primeiras composições do grupo tornavam-se cada vez mais in-
trospectivas e reflexivas; a harmonia tonal tradicional do pop-rock se
colocava em paralelo às experimentações modais (Tomorrow Never
Knows, por exemplo, é gravada em cima de um único acorde, sem a
dinâmica tonal, se aproximando assim da música modal); à instru-
mentação tradicional do pop-rock (baixo, bateria e guitarra) uniam-se
outros timbres (cítaras, tablas, quartetos de cordas, metais etc.) e cada
vez mais o estúdio servia como mais um instrumento, fazendo solos
de guitarras tocarem ao contrário (de trás para frente) e/ou simulando
“sons oceânicos” (como na canção Yellow Submarine). Assim, mesmo
antes de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, os Beatles já vinham
fazendo uma série de experimentações musicais e vinham cada vez
mais utilizando o estúdio da Abbey Road como um laboratório sono-
ro. Entretanto, ao contrário dos trabalhos anteriores, em que as expe-
rimentações são esporádicas e pontuais, o que ocorre em Sgt. Pepper
é todo um LP pensado e desenvolvido para ser um álbum de estúdio.

45
José Adriano Fenerick

Neste álbum, o que antes era marginal passou para o centro, o que era
esporádico passou a ser a razão da existência do disco.
Ao longo de todo o álbum, uma série de técnicas composicio-
nais, provenientes das vanguardas musicais (desde a colagem até a mú-
sica eletroacústica) compõem um caleidoscópio de sons, perpassando
universos sonoros díspares: desde o vaudeville até a música indiana. O
show preparado pela banda do Sgt. Pepper é um verdadeiro show de
variedades: da sonoridade de vaudeville da década de 1920 (When I’m
64) às imagens “surrealistas” inspiradas em Alice no país das maravilhas
de Lewis Carroll e nos sonhos do filho de Lennon, Julian Lennon (Lucy
in the sky with diamonds); da atmosfera burlesca de circo (Being for the
benefit of Mr. Kite) à música sublime do norte da Índia (Within You Wi-
thout You); do retrato do banal, tradicional e entediante do cotidiano
suburbano da classe média britânica (Good morning, Good morning) à
descrição da jovem (drop-out) que foge da casa dos pais, demarcando
a falta de comunicação entre as gerações (She’s leaving home); sons de
cítaras e cacarejos de galinhas, harpas e guitarras elétricas pesadas, sons
de relógio despertador e violinos, o latido de cachorro e a alta frequência
inserida no fim do LP e que apenas cachorros ouvem (na prática, para
os seres humanos: o silêncio), o pulso constante e regular da canção po-
pular e o acaso e o indeterminado tomados emprestados das vanguar-
das eruditas musicais do pós-Segunda Guerra, da música eletrônica e
da música modal; o moderno rock’n’roll e as arcaicas formas clássicas
da música indiana (ragas e talas). Tudo se juntou em Sgt. Pepper’s. Esse
álbum dos Beatles alargava praticamente ao infinito o campo da canção
pop, propondo uma estética altamente inclusiva. Todo som (musical,
ruidoso ou até mesmo o próprio silêncio) passaria a ser utilizável em
uma canção popular após Sgt. Pepper’s.
Os Beatles, até então, nunca haviam gravado duas versões de
uma mesma música para o mesmo LP. A simples sugestão de Neil

46
Rock e Vanguarda nos anos 60: uma dialética possível

Aspinall para que eles fizessem uma segunda gravação da canção “Sgt.
Pepper’s Lonely Hearts Club Band” como uma espécie de encerramen-
to do show “ao vivo” em que estava se transformando o álbum, os esti-
mulou enormemente. E fizeram a gravação, numa versão modificada
e mais curta. A canção, no álbum, funciona como o último número
a ser apresentado pela banda do Sgt. Pepper, colando-se à primeira
canção de forma conceitual (e entre elas, todas as outras canções do
LP, um grande show de variedades). Se na primeira canção, que abre o
LP, a banda do Sgt. Pepper esperava agradar a audiência, na “reprise”,
ela espera ter agradado, pois o show estava por terminar. Os versos
iniciais da “reprise” são semelhantes aos do refrão da canção de aber-
tura do LP, apenas o verbo “to enjoy” (gostar, apreciar, divertir-se) está
no passado, pois o concerto está em seu final. Dizem os versos iniciais
dessa canção:

We’re Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band/


We hope you have enjoyed the show
(Nós somos a Banda dos Corações Solitários do Sgt. Pepper/ E
esperamos que vocês tenham gostado do show)

O show (LP), entretanto, não termina com a reprise de Sgt.


Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Existe um bis: a canção “A day in the
life”, que fecha o álbum e, de certo modo, resume o grau de experimen-
tação alcançado pelos Beatles nesse momento, indicando também a
maneira como foram trabalhadas em Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club
Band a colagem de sons, o estúdio de gravação e as técnicas prove-
nientes das vanguardas musicais do período.
No que tange às referências tomadas das vanguardas musicais,
é possível encontrar em “A day in the life” uma intenção de citação a
John Cage. Lennon e Mccartney optaram por separar 24 compassos nos
quais não colocariam – ao menos era a ideia inicial – “nada”, deixando-os

47
José Adriano Fenerick

vazios de sons, ressaltando o “silêncio”. A relação com a obra 4’33’’ (Si-


lence), de Cage, nesse sentido, não é direta, mas existe. Nas palavras de
George Martin (Martin, 1995, p.87), a justificativa para o número de
compassos separados denota também o caráter aleatório do processo de
composição dessa canção:
Por que 24 compassos? Por que não?
Os aspectos “vanguardistas” e as características de colagem al-
cançaram também a letra da canção. A primeira parte de “A day in
the life” foi composta apenas por John Lennon, a partir de fragmentos
de notícias retiradas do jornal britânico Daily Mail com os quais ha-
via criado “imagens poéticas” non senses, “surreais” (como por exem-
plo: “são necessários quatro mil buracos para preencher o teatro Al-
bert Hall”). A segunda parte (Woke up, got out of bed... Acordei, caí
da cama...) é de Paul McCartney. Entretanto, a canção inicial de John
estava em 4/4 e a parte que Paul escreveu iniciava-se em 4/8. Estava
criado um problema: como juntar essas duas partes distintas (em an-
damento e em métrica rítmica) em uma mesma canção? A solução
encontrada foi “colar” as partes distintas da canção por meio de um
“ruído” inusitado: um crescendo aleatório de uma orquestra sinfônica.
A gravação com a orquestra desses 24 compassos se deu em
meio a um verdadeiro happening, que estava ficando em moda na
década de 1960. Quarenta e um músicos da Orquestra Sinfônica de
Londres foram “despejados” em Abbey Road, nos estúdios da EMI,
trajando casacas e narizes de palhaços, empunhando violinos com
patas de macaco amarradas no arco e usando óculos coloridos. In-
censos espalhados pelo estúdio, um balão preso ao fagote que inflava
e murchava na cadência da música, e a presença de vários convida-
dos e amigos do grupo (incluindo Mick Jagger, dos Rolling Stones),
tudo compunha o happening contracultural preparado pelos Beatles
para a ocasião. No entanto, apesar do caos sonoro provocado pela

48
Rock e Vanguarda nos anos 60: uma dialética possível

música aleatória criada pelos 24 compassos, o final da música se dá


com um acorde em Mi, feito por dois pianos em uníssono. E este é
o ponto: apesar de usarem técnicas de vanguarda por todo o álbum,
na canção que encerra não apenas o disco, mas também o conceito
de Sgt. Pepper’s, os Beatles não levam adiante a radicalidade da van-
guarda. Todos os ruídos presentes em Sgt. Pepper’s, ao final, são re-
solvidos tonalmente no acorde de Mi maior. A adesão dos Beatles à
contracultura, ao Flower Power, impediu Sgt. Pepper’s de mergulhar
no caos sonoro sem que houvesse, ao fim, uma solução apaziguado-
ra. Afinal, os Beatles aderiram de forma inconteste à ideologia da
não violência e da solução mediada dos conflitos.
Não é o que ocorrerá, por exemplo, com Frank Zappa.
O álbum We’re Only in It for the Money, de Zappa, tal como Sgt.
Pepper’s, é também um trabalho ligado à contracultura e às vanguardas
musicais, porém, de um modo diferente. Lançado em 1968, o terceiro
álbum do grupo Frank Zappa and The Mothers of Invention trata-se
de uma paródia do Sgt. Pepper’s e, ao mesmo tempo, uma crítica à pró-
pria contracultura, ao menos na vertente representada pelo álbum dos
Beatles. Tal como o Pepper’s, o Money também começa com ruídos.
Mas, no caso do disco do Zappa não se trata de simular, por meio de
colagens, o ruído de uma orquestra se preparando para tocar, mas de
um procedimento de música eletroacústica mais abstrato, descoberto
por Frank Zappa de modo incidental. Durante a gravação do disco,
nos estúdios da Verve Records, entre 1967 e 1968, o músico perce-
beu que, quando as pessoas conversavam, certas notas reverberavam
no piano que estava no estúdio. Ao controlar esse procedimento, por
meio do sistema de gravação do estúdio, Zappa criara um procedi-
mento novo de música eletroacústica, que ele denominou de “piano
people”. Por meio desse procedimento é que ruídos de vozes e uma
série de sons eletroacústicos permeiam todo o álbum.

49
José Adriano Fenerick

O aspecto crítico de We’re Only in It for the Money (Nós só


estamos nisso por dinheiro), explicitado no próprio título do ál-
bum, se traduz também na capa, caracterizada pela inversão pa-
ródica e pelo escracho. Se, em Sgt. Pepper’s os Beatles aparecem à
frente de uma colagem com personalidades diversas, numa pose
simpática, levemente irônica, com uniformes de músicos de banda,
os Mothers of Inventions aparecem vestidos com roupas femini-
nas (vestidos, saias etc.), um deles numa cadeira de rodas, com ex-
pressões de deboche. O nome “Beatles” (a logomarca da banda de
Liverpool) aparece escrito com flores na capa do Sgt. Pepper’s, ao
passo que o nome “Mothers” aparece escrito com frutas e legumes.
A inversão paródica do Sgt. Pepper’s e a crítica à contracultura, no
entanto, se estende também para as canções. A segunda faixa do
álbum, Who needs The Peace Corps?, é a história de um garoto que
pretende se tornar hippie e ir para San Francisco. A crítica paródica
da letra vem do contraste entre a idealização da contracultura “Paz
e Amor” e seus aspectos mais contraditórios. Diz assim um trecho
da letra, em tradução livre:

Toda cidade precisa ter um lugar


onde falsos hippies se encontram
Calabouços psicodélicos
surgindo em cada rua
Vá a San Francisco!...

Primeiro eu vou comprar uns colares


E depois talvez uma bandana de couro
Para por ao redor da minha cabeça
Algumas penas e sinos
E um livro sobre doutrina hindu

50
Rock e Vanguarda nos anos 60: uma dialética possível

Vou perguntar ao Gabinete do Comércio


Como chegar até Haight Street
E vou fumar um bocado de droga
Eu vou andar descalço
Eu terei um brilho psicodélico
Nos olhos todo o tempo
Eu irei amar todo mundo
Irei amar a polícia enquanto eles me enchem de porrada no
meio da rua

Eu vou dormir...
Eu vou, eu vou ir para uma casa
É isso que irei fazer
Eu vou para uma casa
Onde há uma banda de rock & roll
Porque todas as bandas moram juntas
E eu irei me juntar a uma banda de rock & roll
Eu serei seu gerente nas excursões
Eu ficarei com eles
E pegar chato
Mas não me importarei
Porque...

No entanto, a posição de Zappa diante da contracultura era am-


bígua. Por um lado, ele se identificava com o aspecto “freak” (doidão),
como esclarece, em 1966, em seu disco de estreia, Freak Out. Dizia
Zappa:

Em um nível pessoal, Freaking Out é um processo pelo qual um


indivíduo se livra de padrões obsoletos e restritivos de pensa-
mento, moda e etiqueta social de modo a expressar criativamen-
te seu relacionamento com o ambiente próximo e a estrutura
social como um todo. (…) Em um nível coletivo, quando qual-
quer número de ‘Freaks’ se reunir e se expressar criativamente

51
José Adriano Fenerick

por intermédio de música ou dança, (…) chamar-se-á a isso de


freak out. Os participantes, já emancipados de nossa escravidão
social nacional, vestidos com seu traje mais inspirado, realizam,
como grupo, qualquer potencial que tenham para livre expres-
são. Nós gostaríamos de encorajar qualquer um que ouça essa
música a se juntar a nós (…) Tornar-se membro das Mutações
Unidas (…) Freak Out!

Por outro lado, Zappa não adere à ideologia Flower Power da


contracultura. Para ele, os hippies não passavam de hipócritas. Na visão
de Zappa, os hippies estavam longe de protagonizar um movimento de
rebeldia emancipador do indivíduo, pois apenas cumpriam rituais pré-
-fixados que iam desde a escolha das roupas até o consumo de certas
drogas. Tratava-se, na visão do músico, de um coletivo que não realizava
nenhuma ação de oposição política efetiva e que se encerrava em uma
espécie de niilismo social baseado na negação de suas próprias ações
como grupo social e político. Neste sentido, Zappa apresentava, em Mo-
ney, um contraponto à visão florida de Pepper’s, criticando, inclusive, o
aspecto mais destacado da contracultura Flower Power: a libertação da
mente. Em What’s the ugliest part of your body, Zappa diz o seguinte:

Qual é a parte mais feia do seu corpo?


Qual é a parte mais feia do seu corpo?
Alguns dizem ser seu nariz
Alguns dizem ser seus dedões
Mas eu acho que seja sua mente

(What’s the ugliest part of your body?


What’s the ugliest part of your body?
Some say your nose
Some say your toes
But I think it’s your mind)

52
Rock e Vanguarda nos anos 60: uma dialética possível

Além disso, Zappa ainda via os hippies, apesar das aparências,


como um movimento altamente integrado na sociedade de consumo
dos EUA, muito mais voltado para a moda que para a emancipação
social. Assim, a paródia de Zappa ao Sgt. Pepper’s, do ponto de vista
ideológico, está ligada também ao seu entendimento sobre todo o rock
que surgia nos anos 1960. Isto é, à compreensão da situação do músico
diante da Indústria Cultural.
Sgt. Pepper’s, em larga medida, é também uma tomada de po-
sição dos Beatles diante da Indústria Cultural. Poucos músicos da
cultura pop haviam sido tão reificados quanto os Beatles durante a
febre da beatlemania. E o Sgt. Pepper’s, para os garotos de Liverpool,
representou uma tentativa de romper com essa reificação desenfreada,
trazendo uma mudança na estrutura da indústria da música da época,
com suas infindáveis turnês e apresentações em programas de televi-
são. Por essa época, John Lennon havia dito que não queria mais ser
“pulga amestrada de circo” da indústria da música, e o Sgt. Pepper’s foi
o ponto final dessa estratégia de mercado.
Os Beatles, agora, se apresentavam como artistas que ofereciam
uma obra ao público, e não mais como meras “pulgas amestradas” da
música pop. Neste sentido, a utilização, por parte dos Beatles, de ele-
mentos provenientes das vanguardas no Sgt. Pepper tinha uma meta
precisa: elevar o Rock à categoria de arte autônoma, de arte moderna.
O acorde final de A day in the life impedia a música (e o álbum todo)
de terminar em um caos sonoro ao mesmo tempo que indicava que o
Rock agora, após Sgt Pepper, era uma forma de arte elevada. No caso
de Zappa, o elemento de vanguarda não buscava tratar a música pop
como uma categoria de “arte elevada”, de arte moderna autônoma. Ao
contrário, para ele, a música pop continuava sendo música pop, um
produto estritamente voltado para o mercado, e não se confundia nem
com a arte moderna e nem com a vanguarda.

53
José Adriano Fenerick

Zappa, assim, entendia que o músico de rock estava tão forte-


mente ligado à sociedade de consumo quanto o movimento hippie,
e seria hipocrisia esconder isso. Ao contrário, para ele, tratava-se de
desnudar esse aspecto do rock e mostrar que “todos estavam nesse ne-
gócio por causa do dinheiro”, e não exatamente por ideais mais nobres.
No entanto, ao despir o aspecto de mercadoria do rock engajado na
contracultura, Money não propõe nenhuma conciliação mistificado-
ra com o ouvinte e os elementos de vanguarda utilizados se colocam
como elementos de tensão.
Zappa mantém a negatividade da vanguarda e, dialeticamente,
a introduz no universo da música pop. Portanto, Money, ao contrário
de Pepper’s, não propõe uma forma apaziguada de música pop. Propõe
uma forma altamente negativa (crítica) de música pop.

Bibliografia
FRIEDLANDER, Paul. Rock’n’Roll: uma história social. Rio de Janeiro:
Record, 2002.
GREENE, Doyle. Rock, Counterculture and the Avant-Garde, 1966-
1970. Jefferson, NC, USA: MCP, 2005.
HUYSSEN, Andreas. Después de la gran división: Modernismo, Cultu-
ra de Massas, Pós-modernismo. Buenos Aires: AHE, 1986.
MARTIN, George. Paz, Amor e Sgt. Pepper. Os bastidores do disco mais
importante dos Beatles. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
SOLER, Manuel de la Fuente. Frank Zappa em el Infierno. El rock como
movilización para la dissidência política. Madrid: Biblioteca Nueva, 2010.
WATSON, Ben. Frank Zappa: The negative dialetic of poodle play. NY:
St. Martin’s Press, 1995.

WOOD, Paul. Arte Conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

54
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o
movimento feminista e a contracultura

Vanessa Pironato Milani *

Introdução
O rock dos anos 1960, que esteve ligado à contracultura jovem e
aos movimentos políticos de esquerda, foi predominantemente pautado
por práticas masculinas, reforçadas pela indústria da música. As práti-
cas machistas do rock sessentista foram herdadas de seu antecessor, o
rock’n’roll dos anos 1950, vez que a masculinidade era reafirmada nas
performances ao vivo, nas letras das canções – em sua maioria machis-
tas –, e na forma com que roqueiros se vestiam (jaqueta de couro, terno
e imagem de Teddy Boy). Ademais, pode-se perceber a exclusão das
mulheres da cena principal do rock, analisando os nomes e as bandas
que alçaram o posto de destaque no cenário musical, tornando-se ído-
los ao permearem o imaginário social como responsáveis pela ascensão
do gênero, tais como Chuck Berry, Little Richard, Jerry Lee Lewis, Fats
Domino, Elvis Presley, Beatles, Rolling Stones, entre outros.
O grau mais alto que a mulher desfrutava no universo do rock,
nos primeiros anos da década de 1960, era a de fã, expectadora de
seus ídolos masculinos – muitas vezes o símbolo sexual da juventude

* Graduada em História pela Faculdade de Ciências e Letras – FCL – UNESP/Assis (2012) e Mestra
(2015) em História pela mesma Faculdade, tendo sido bolsita do CNPq.

55
Vanessa Pironato Milani

feminina. No entanto, para Kathyn Buckingham (2016, p.4), relegá-


-la ao simples papel de fã é uma forma de oprimi-la e desacreditá-la,
visto que, para as mulheres se autorrealizarem no cenário do rock
era preciso se sujeitarem ao papel de musa, prostituta ou groupie. E
ao definir a mulher como objeto passivo, o rock, segundo Chapple
e Garofalo (1989, p.354) estava refletindo a imagem que a socieda-
de norte-americana tinha do feminino. E além de passiva, ela era
vista como símbolo sexual e potencial público consumidor do rock,
o qual não era apenas uma música, mas também parte de uma “in-
dústria cultural em permanente crescimento e altamente lucrativa”
(CHAPPLE e GAROFALO, 1989, p.14). A mulher era tida, portanto,
como coadjuvante no cenário do rock e mera consumidora daquilo
que homens cantavam, produziam e lançavam, posto que a indústria
da música também era um ambiente dominado por eles. E embora
no início dos anos 1960 tenham surgido bandas com mulheres, o
papel que desempenhavam ainda era de submissão aos demais inte-
grantes da banda, além de cantarem um discurso pautado nos ideais
masculinos (MARTIN, 1995, p.70). Esse sexismo na música seria a
“discriminação e degradação sistemática das mulheres, a recusa de
conceder-lhes poderes iguais aos dos homens” na sociedade (CHA-
PPLE e GAROFALO, 1989, p.353).
A indústria da música também teria contribuído para manter o
status do rock como algo masculino, estereotipando-o, e fazendo com
que ele perpetuasse “a ideia de que as mulheres são inferiores e impo-
tentes diante da força, vitalidade e energia que o rock exige” (HART-
MAN; SCHMID, 2014, p.57). Tal como a indústria musical, o jorna-
lismo também perpetuou o machismo presente na sociedade, uma vez
que, na maioria de suas matérias a respeito de artistas femininas, o
foco dado era sobre a “atratividade física delas” e não aos seus traba-
lhos. E esta atitude é uma forma de subjugar as mulheres ao poderio

56
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a contracultura

masculino que é creditado aos homens pela sociedade (HARTMAN;


SCHMID, 2014, p.62).
Assim, tal exclusão obrigou as mulheres a lutarem para encon-
trar seu lugar e seu espaço na cultura do rock (BUCKINGHAM, 2016,
p.1). Foi um processo paulatino, que teria viabilizado não somente
a inserção das mulheres como cantoras, mas também uma femini-
lização no universo do rock, fazendo com que as bandas compostas
somente por homens adotassem novas posturas, tanto em relação às
letras das canções quanto às suas vestimentas e atitudes artísticas.
A força motriz para que ocorresse essa mudança no rock, segundo
Chaple e Garofalo (1989, p.354) foi “o aparecimento na sociedade
norte-americana, de um movimento feminista dotado de alguma
força”, que teria provocado “algumas poucas mudanças na visão cor-
rente do rock acerca das mulheres”, possibilitando que elas partici-
passem efetivamente do rock. Além deste crescente fortalecimento
do movimento feminista, a adoção de posturas menos machistas por
parte da contracultura, especialmente dos hippies, visto a aproxima-
ção do rock com este movimento, também teve sua influência no
universo do rock. Ademais, na segunda metade da década de 1960,
quando o rock alcançou o seu auge – com a explosão dos Beatles, o
sucesso dos festivais (Monterey, Woodstock, Newport Festival) e as
bandas psicodélicas de São Francisco ascenderam no cenário musi-
cal –, ele passou a ter mais motivos e inspiração para não perpetrar o
machismo que o acompanhou desde seu nascimento. Como afirma
Jerry Rodnitzky (1999, p.59): “Se as feministas queriam alcançar as
gerações futuras, a música foi claramente a melhor ferramenta da
contracultura”, visto a crescente presença que ela teve na vida dos
jovens, especialmente daqueles ligados a este movimento.
O que chamamos de feminilização do rock, portanto, é mais do
que o surgimento de uma cantora ou uma integrante de uma banda

57
Vanessa Pironato Milani

composta majoritariamente por homens, ou mesmo uma banda ape-


nas com mulheres, mas sim a mudança de visão em relação à mulher
no rock, bem como seu status nas letras das canções, as posturas no
palco e o tratamento que receberam da indústria da música. Esta
mudança alcançou mais que o simples cantar em uma banda de rock,
visto que no início dos anos 1960 as mulheres já haviam deixado
de ser apenas retratadas nas canções e passaram a cantar por meio
dos grupos vocais femininos. No entanto, tal fato não pode ser vis-
to como totalmente positivo, pois esses grupos de garotas eram, em
sua maioria, ainda tratados como objetos sexuais (CHAPPLE e GA-
ROFALO, 1989, p.360). Além disso, as mulheres cantavam através
da figura masculina, pois dependiam da aprovação dos homens que
dominavam a indústria da música e as demais mídias. O parâmetro
de qualidade e as figuras de inspiração eram todas masculinas e as
mulheres não tinham em quem se espelhar no rock. Elas “não po-
deriam crescer realmente enquanto não olhassem para o espelho e
descrevessem elas mesmas” (RODNITZKY, 1999, p.62).
O rock, portanto, não teria sido tão rebelde e aberto a toda
contracultura como ele se autorrepresentava, pois reforçava os pa-
peis estereotipados de homens e mulheres. Aqueles deveriam en-
fatizar a agressividade, força e intensidade, e estas a tranquilidade,
passividade, sedução e domesticidade, como explicitam Caroline
Hartman e Letizia Schmid (2014, p.55). Essa dualidade entre mascu-
lino e feminino pode ser vista também na questão sonora, na utili-
zação de determinados instrumentos em detrimento de outros e nas
passagens eletrônicas ou acústicas das canções do rock. A justaposi-
ção instrumental do masculino e do feminino teria ocorrido no rock
progressivo (prog), segundo Edward Macan (1997). Desta maneira,
a alternância de passagens eletrônicas (masculinas) e acústicas (fe-
mininas) criara uma dialética, pois enquanto a primeira sugere um

58
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a contracultura

som dinâmico, tecnológico e futurista, a segunda origina um som


meditativo e pastoral (MACAN, 1997). Além disso, essa dialética
simbolizava a tentativa de encerrar oposições culturais, como na-
tureza e tecnologia, modos patriarcal e matriarcal da organização
social, antigos e modernos modos de vida, etc., que a contracultura
desejou ver reconciliadas. As passagens eletrônicas que utilizavam
elementos mais tecnológicos e modernos foram associadas ao mas-
culino pelo fato da tecnologia ter sido sempre considerada um do-
mínio do homem, pois “as mulheres têm sido socialmente condicio-
nadas a se afastarem dela [tecnologia]” (MACAN, 1997).
No entanto, ainda na segunda metade dos anos 1960, quando
o prog havia conquistado seu espaço no universo do rock, tanto este
quanto a contracultura ainda lidavam com dualidades que diziam
combater e mantinham características da sociedade patriarcal que
condenavam. Eram, em sua maioria, atividades masculinas, com prá-
ticas que reforçavam a objetificação da mulher e a heroicização dos
homens. Tal situação começou a esboçar mudanças com as mulhe-
res tomando a frente das lutas, passando a reivindicar mais espaço de
ação nos movimentos sociais e exigindo que suas demandas também
fossem ouvidas e entrassem nas pautas de luta. Com isso, o movimen-
to feminista foi se fortalecendo na sociedade como um todo, fazen-
do com que a contracultura incorporasse a luta das mulheres, assim
como os grupos de esquerda, como a New Left.
A contracultura, portanto, foi um dos pontos de ruptura cultu-
ral que ocorreu na sociedade sessentista. Esta, segundo Martin Feijó
(2009, p.4) foi “o nome que recebeu a rebelião de jovens na segun-
da metade da década de 1960 do século XX”, os quais eram, em sua
maioria, brancos de classe média que buscavam uma vida mais expe-
rimental, diferente do estilo de vida que tiveram seus pais (MACAN,
1997). E na busca por novas formas de vida, o rock acabou servindo

59
Vanessa Pironato Milani

de trilha sonora e inspiração para os jovens contraculturais, uma vez


que “foi, sobretudo na música, que a contracultura forjou sua iden-
tidade”1 (MACAN, 1997). Assim, os jovens que vinham da geração
do baby-boom, pós-Segunda Guerra Mundial, criaram um novo tipo
de música e negaram a sociedade de consumo e da alta tecnologia
(FEIJÓ, 2009, p.4). Portanto, desde o início das lutas sociopolíticas,
tanto a dos Direitos Civis quanto a do Black Power (PERONE, 2004,
p.68) e também no movimento feminista, a música esteve presente.
E a música que vinha se fortalecendo entre os jovens era o rock, pois
representava a busca pelo novo, por novas sonoridades, novos estilos
de vida e novas atitudes, sempre buscando se contrapor à sociedade
das décadas anteriores e também à época em que viviam tais jovens.
Desta maneira, adolescentes de diferentes localidades, espe-
cialmente nos EUA (manifestações contra a guerra do Vietnã, luta
pelos Direitos Civis) e na França (maio de 68), além da Tchecoslová-
quia, onde ocorreu a Primavera de Praga, se engajaram em manifes-
tações sociopolíticas, insurgindo-se contra sociedades conservado-
ras, consumistas e inseridas em guerras (como a do Vietnã e a Guerra
Fria). Lutavam contra estruturas sociais que não condiziam com os
ideais da juventude e buscavam viver uma realidade distinta daquela
que havia vivido seus pais. O envolvimento dos EUA em uma guer-
ra contra o Vietnã, o massacre de civis vietnamitas e o alistamento
obrigatório para envio de tropas para lutar em tal confronto, fez com
que jovens norte-americanos saíssem às ruas para protestar contra
aquilo que vivenciavam em seu país. Já na França, a revolta juvenil
era anticapitalista, recusando, assim, o modelo social do capitalis-
mo tecnocrático que se impunha cada vez mais por todo o globo.
Na Tchecoslováquia, o problema não era o capitalismo, e sim o so-
cialismo soviético. Os revoltosos desejavam um socialismo menos
1 “was above all in the realm of musical style that the counterculture forged its selfidentity” (No original)

60
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a contracultura

opressor, com liberdade de expressão, um “socialismo humanizado”,


como se dizia. Tal manifestação ficou conhecida como Primavera
de Praga, quando Alexander Dubcek, o então Secretário-Geral do
Partido Comunista Tcheco, assumiu o governo e tentou implantar
reformas em todas as instâncias da sociedade. Porém, a revolta foi
duramente reprimida por tropas soviéticas. E não foram somente
os países supracitados os protagonistas de revoltas, manifestações e
confrontos, mas também outros países, como Itália, Alemanha, Bra-
sil e México, cada qual com seu alvo contestatório.
No entanto, apesar de todos esses movimentos sociopolíticos,
em sua maioria, defenderem uma sociedade mais justa socialmente
e igualitária sexualmente, pregando a liberdade sexual, na prática,
a realidade foi outra (pelo menos em seu início), visto que muitos
mantiveram posições conservadoras e machistas. Às mulheres ca-
biam atividades ‘de bastidores’, como arrecadar mantimentos e/ou
dinheiro para o movimento, além de serem responsáveis pela pro-
dução de materiais de divulgação, ou seja, atividades que não exi-
giam esforço nem força física – pois estas eram tarefas destinadas
aos homens, supostamente os únicos detentores de força para o en-
frentamento, para “fazer a revolução”. As mulheres deveriam apenas
aplaudir as ações “heroicas” dos homens. E o machismo que podia
ser percebido na sociedade, mesmo entre grupos de esquerda, estava
também presente no rock, influenciando e sendo influenciado pelos
movimentos sociopolíticos da década de 1960, pois ao mesmo tem-
po em que serviu de inspiração para muitos embates contestatórios
da juventude, também se valeu de ideais da contracultura. Segundo
destaca Rodrigo Merheb (2012, p.14), “a experimentação com novas
tecnologias, sonoridades e letras de comentário ou incitamento à re-
belião garantiu ao rock seu lugar na história como linha auxiliar dos
movimentos sociais que confrontavam o establishment”.

61
Vanessa Pironato Milani

O machismo presente nos movimentos, bem como a ascensão


e início do fortalecimento do movimento feminista, contestando o
machismo presente nos grupos contraculturais, pode ser ilustrado
no relato feito por Bettina Aptheker, aluna de Berkeley e envolvida
na liderança do Free Speech Movement. Após a prisão arbitrária do
estudante Jack Weinberg, em 1964, Aptheker fez um discurso in-
flamado, que foi ouvido por diversas pessoas que estavam acostu-
madas a verem homens tomando a frente da luta. Sobre a sensação
de tal feito, ela mesma descreve que “foi um momento de grande
libertação pessoal para mim. Ele me deu um gosto de poder – não
no sentido de poder sobre algo, mas no sentido de auto– empode-
ramento”2 (BROWN, 2014, p.183). Ademais, tal discurso “teve um
forte impacto sobre muitos espectadores mulheres”, pois apesar dos
valores progressistas defendidos pelo FSM, o movimento perma-
neceu dominado pelos homens3 (BROWN, 2014, p.184). Além de
expor as situações de machismo que frequentemente as mulheres
eram expostas nos grupos de esquerda, tal acontecimento também
ilustrou o início do fortalecimento das lutas feministas, as quais
trariam novas roupagens à contracultura. Vivenciando as lutas re-
volucionárias, “as mulheres estavam descobrindo que homens que
lutavam pela paz e pela igualdade racial não necessariamente acre-
ditavam em igualdade sexual” (JACKSON, 2016, p.115). Fato que
reforça tal assertiva foi a resposta dada por Stokely Carmichael –
líder do movimento Student Nonviolent Coordinating Committee
(SNCC) – diante da pergunta de qual seria a posição das mulhe-
res no SNCC, que para ele seria a posição “de bruços” (JACKSON,
2016, p.115).

“was a moment of great personal liberation for me. It gave me a taste of power – not in the sense of
2

power over but in the sense of self-empowerment”. (No original).


had a powerful impact on many women viewers. Aptheker recalls that despite the progressive values
3

espoused by the FSM, the movement remained male-dominated. (No original).

62
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a contracultura

Diante das constantes demonstrações de machismo tanto da so-


ciedade em geral quanto dos movimentos contraculturais e de esquer-
da, as mulheres se uniram e o movimento feminista ganhou força. Em
1965, Betty Friedan – ativista feminista – liderou a criação da organi-
zação norte-americana denominada National Organization of Women
(NOW), que tinha como objetivo combater a discriminação sexual
existente na sociedade como um todo (JACKSON, 2016, p.116). Ade-
mais, a luta das mulheres não visava apenas modificar o pensamento
dos homens, para que deixassem de enxergar as mulheres como sexo
frágil e objetos de desejo, mas também a consciência das próprias mu-
lheres, que conviviam e eram criadas sob o julgo masculino e práti-
cas machistas de subjugação feminina que acabavam por reproduzir.
Não à toa, nos anos 1960, quando a pílula anticoncepcional surgiu,
muitas mulheres foram contra sua prescrição para universitárias sol-
teiras (JACKSON, 2016, p.110). A ideia de liberdade sexual ainda era
restrita aos homens e, no máximo, às mulheres casadas, as quais po-
deriam adquirir a pílula anticoncepcional. Por isso, o fortalecimento
do movimento feminista foi importante na busca pela modificação do
pensamento machista.
Assim, é possível considerar que o contexto sociopolítico vivido
na segunda metade da década de 1960 contribuiu para a redefinição
de uma estrutura de sentimento, embora esta década tenha lidado
com uma dualidade em relação ao comportamento feminino, pois ao
mesmo tempo em que deu ênfase na feminilidade, também exerceu
certo controle sobre a sexualidade e personalidade femininas (BU-
CKINGHAM, 2016, p.5). Apesar de pregarem o amor livre, a menta-
lidade machista ainda se mantinha em muitos movimentos sociopolí-
ticos, como nas comunidades hippies, e também no rock, por meio de
canções que continham letras machistas ou que subjugassem a mu-
lher. Como afirmam Jair Araújo e Sylvia Monastérios (2011, p.49), “os

63
Vanessa Pironato Milani

questionamentos feministas que nasceram na época da contracultura,


lutavam contra a ideia do lar como único espaço de ação da mulher e
o tratamento do gênero feminino como minoria”.
No entanto, apesar do fortalecimento do movimento feminista,
no início dos anos 1970 as mulheres ainda enfrentavam o machismo
no rock e nos movimentos contraculturais, como se pode perceber por
meio de um artigo publicado no International Times, escrito por Barry
Miles (1971,p. 11), no qual ele afirma que:

O movimento, a revolução, o underground, a subcultura ou


o que quer que seja, simplesmente reproduziu todas as atitu-
des patriarcais autoritárias em relação às mulheres que existem
na sociedade burguesa ‘reta’”. Considerando que o movimen-
to é supostamente dedicado à libertação de todas as pessoas, à
criação de uma sociedade com igualdade para todos e ao des-
mantelamento de todas as estruturas autoritárias, só se pode
desesperar do autoritarismo exibido pelo próprio movimento
na objetificação dessas pessoas [...] A cultura do rock desenvol-
veu sua própria doença: “The Chick Groupie Consciousness”.
A desumanização das mulheres, considerando-as como objetos
sexuais e donas de casa4

O autor, portanto, coloca em questão o discurso de jovens que


diziam combater as estruturas sociais com as quais seus pais cresce-
ram, mas no fundo só as reproduziam. A prática seria outra em rela-
ção à mulher, ao seu papel na contracultura, nas comunidades hippies,
bem como na revolução social e cultural que se buscava. Ainda havia
The movement, revolution, underground, sub-culture or whatever, has simply reproduced all the
4

authoritarian patriarchal attitudes toward women that exist in ‘straight’ bourgeois society. Considering
that the movement is supposedly dedicated to the liberation of all people, the creation of a society
with equality for all and the dismantling of all authoritarian structures, one can only despair at the
authoritarianism exhibited by the movement itself in the objectification of those persons in the
movement […] Rock culture has evolved its own sickness: it is the Chick Groupie Consciousness. The
dehumanization of women by regarding them as sex-objects and housekeepers. (No original).

64
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a contracultura

resistência em enxergar a mulher como um ser igual ao homem, do-


tada das mesmas capacidades, e o dualismo “elas e nós” não levava a
lugar nenhum, de acordo com Barry Miles (1971, p. 11). Para ele, em
uma crítica mais efusiva à hipocrisia do discurso contracultural em
relação à liberdade das pessoas, em especial das mulheres:

Você não pode libertar ninguém se tiver um escravo em sua


própria casa ou se você for um escravo. Não há nada mais pa-
tético do que o pomposo autodenominado revolucionário de-
clamando sobre a libertação de povos escravizados, enquanto
sua esposa ou namorada está em casa cozinhando para ele e
lavando os cinzeiros para que, quando ele e seus amigos revo-
lucionários voltem para casa, eles possam ter uma confortável
conversa de “homem” e inflar seus egos à vontade. É por isso
que a libertação das mulheres é TÃO fundamental5

Em contrapartida, na capa do International Times (25/03/1971),


no qual está presente o texto supracitado, apresenta-se o retrato de uma
mulher segurando uma arma e com os seios à mostra, sem nenhuma
referência textual. Esta imagem, no entanto, poderia estar relacionada
ao conteúdo do texto de Barry Miles, no qual defende o movimento
“Women’s Liberation” e demonstra que as mulheres ainda tinham muito
pelo que lutar e estavam prontas para defenderem seus direitos e bus-
carem seu espaço na sociedade a qualquer custo, de qualquer maneira.
Mas poderia também fazer referência à luta armada que crescia entre
alguns setores contraculturais e, insinuar que as mulheres também esta-
vam participando das lutas, inclusive de arma em punho, prontas para
atuarem ativamente na revolução que se buscava entre a juventude.
5
You can’t liberate anyone if you have a slave in your own house or if you are slave yourself. There is
nothing more pathetic than the pompous self-styled revolutionary declaiming on the liberation of
enslaved peoples while his wife or girl-friend is at home cooking for him and washing the ashtrays so
that when he and his revolutionary friends come home they can have comfortable ‘man’ talk and inflate
their egos at ease. This is why women’s liberation is SO fundamental.

65
Vanessa Pironato Milani

Ademais, nas páginas internas do jornal também se encontram


elementos que se relacionam com a ascensão dos movimentos socio-
políticos que defendiam o confronto direto e a ação violenta para con-
quistar seus ideais. Nesse sentido, na página 7 do jornal, apresenta-se a
imagem de uma mulher seminua que é encarada por um rapaz, o qual
está sendo segurado por dois homens que se assemelham aos motoci-
clistas dos Hells Angels, inclusive um deles veste capacete com a suásti-
ca. A mulher apresenta um olhar semelhante ao de desprezo e soberba
em direção ao rapaz imobilizado, como se a ação dos dois “capangas”
fosse um mando seu após sofrer uma investida ou um assédio. Mais
uma vez mostra-se que a figura feminina vinha conquistando pouco
a pouco seu espaço, pois estava pronta para participar das ações revo-
lucionárias nas ruas, como protagonista, segurando em armas ou não,
defendo ações violentas ou não.
Na parte inferior da referida imagem, encontra-se o seguinte
dizer: “Choque. Horror. IT 100 apresenta a quente revolução com
um público de bilhões”6. Verifica-se, portanto, uma referência direta
ao momento em que os movimentos sociopolíticos estavam partin-
do para o confronto direto, valendo-se de atividades violentas para
enfrentarem o establishment. Inclusive nesta edição do IT há um tex-
to escrito por Eldridge Cleaver (ativista político e membro do Par-
tido dos Panteras Negras), em que ele defende o confronto direto e
violento, afirmando que “o único resgate, único caminho aberto para
nós é o da guerra total contra o sistema de opressão contra os quais
nossa geração tem lutado”7.
Dois meses depois de apresentar os mencionados elementos em
relação à luta das mulheres e aos movimentos e modos de vida con-
traculturais, bem como a crítica ao machismo presente nestes últimos,
Shock. Horror. IT 100 presents hot revolution with a cast of billions!” (No original).
6

“The only redeeming path left open to us is the path of total war against the system of oppression
7

against which each succeeding generation of our people have struggled” (No original)

66
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a contracultura

o IT publicou a edição 104 (19/05/1971) com uma capa que prova-


velmente chocou parcelas da sociedade. Trata-se da imagem de duas
mulheres nuas e deitadas, insinuando o início ou fim de uma relação
sexual entre elas, em uma clara referência ao lesbianismo (sobre o qual
a edição de março já havia tratado quando retratou uma moça segu-
rando um cartaz com os dizeres: I am a lesbian and I am beautiful).
Expôs-se, assim, uma liberdade sexual da mulher que até então ela
não desfrutava, além de ser um ponto de embate ao establishment. Os
jovens, em especial as mulheres, tentavam se libertar das amarras do
passado conservador, preconceituoso e sexista que haviam herdado
de seus pais e que, em muitos aspectos, ainda perdurava na sociedade.
Nesse sentido, nesta mesma edição, na página 12, há um desenho de
um homem e uma mulher, nus, libertando-se de correntes presas às
suas mãos com uma enorme estrela ao fundo e os dizeres na parte in-
ferior da página: “Irmãos gays libertem-se” e “Irmãs unam-se! Esma-
guem o sexismo”8. Todo arcabouço de imagens e falas faziam alusão
à luta pela liberdade sexual mais plural, igualitária para todos, e não
apenas para homens – como ocorria em grande parte dos movimentos
sociopolíticos nos quais as mulheres eram relegadas ao papel secundá-
rio e homossexuais não estavam nas pautas iniciais de liberdade.
No entanto, em 1970, um ano antes destas publicações no Inter-
national Times – que oscilavam entre a crítica ao machismo nos mo-
vimentos e as ilustrações a respeito da inserção das mulheres na luta
revolucionária e uma maior liberdade sexual –, o mesmo jornal havia
publicado um artigo de Arlene Brown intitulado “Has anyone reading
this article met a woman bass play”, no qual ela questiona o machismo
no meio musical, especialmente no rock, desafiando os leitores a en-
contrarem mulheres que tocam algum instrumento em bandas de rock
e afirmando que quem se colocar a pensar poderá encontrar uma ou

“gay brothers free ourselves” e “Sisters unite! Smash sexism”. (No original)
8

67
Vanessa Pironato Milani

duas, não muito mais que isso. No artigo, ela discute o pouco espaço
dado às mulheres no universo do rock, embora elas já estivessem ocu-
pando outros espaços das artes, como pintura, literatura, teatro, etc. E,
apesar de reconhecer as mudanças que o rock trouxe para a juventude
revolucionária, como a ênfase no prazer sexual, na diversão, o rela-
xamento mental, etc., a autora não deixa de criticar a imagem reacio-
nária no que diz respeito à liberdade das mulheres e sua relação com
os homens, para quem elas deveriam servir sexualmente (BROWN,
1970, p.13).
Portanto, no início dos anos 1970, as mulheres ainda não ti-
nham seu espaço garantido no mundo do rock, ainda não estavam
confortáveis com os papéis a elas relegados, pois, como afirma David
Simonelli (2013, p.186) “o Rock, no começo dos anos 1970, ainda era
um meio dominado pelos homens e suas normas sexuais refletiam as
da sociedade que eles representavam”9. Logo, o processo de feminili-
zação do rock estava em crescente desenvolvimento e paulatinamente
as mulheres iam conquistando seus espaços, lutando contra a menta-
lidade machista da sociedade, combatendo ranços socioculturais que
naturalmente excluíam as mulheres da vida cultural, social e política.
Como observado nas análises a respeito das imagens e conteúdos dos
artigos presentes no jornal International Times, a situação das mulhe-
res, no final dos anos 1960 e início da década de 1970, ainda era dúbia.
Mesmo que fossem apresentadas em imagens de luta ou de liberdade
sexual, vários artigos, inclusive escrito por mulheres, criticavam a pos-
tura dos movimentos sociopolíticos, bem como do rock, pois continu-
avam a manter uma postura machista, excluindo as mulheres ou defi-
nindo-as como objetos sexuais. Isso demonstra que, embora tenham
conquistado espaço na sociedade pautada pelo pensamento machista,
ainda havia muito a conquistar.

“Rock in the early seventies was still male-dominated médium, and its sexual norms reflected those of
9

the society it depicted” (No original).

68
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a contracultura

Desta maneira, tendo em vista o caráter machista que acompa-


nhou o rock desde seus primórdios, a ascensão da contracultura e o
fortalecimento do movimento feminista, o presente texto apresenta
uma análise da banda composta por homens, The Beatles, que criou
“uma sinergia inquebrantável com os anos 1960”, como afirma Rodri-
go Merheb (MERHEB, 2012, p.455), para evidenciar, por meio de al-
gumas canções selecionadas desta banda, as mudanças que ocorreram
em suas composições em relação às mulheres. Com isso, busca-se de-
monstrar a relação intrínseca entre os acontecimentos socioculturais
da metade dos anos 1960 e início da década de 1970, com o crescente
processo de feminilização do rock.

As mulheres nas canções dos Beatles


No início dos anos 1960, quando os Beatles surgiram no cenário
musical do rock e ainda se apresentavam como The Silver Beatles, nem
a contracultura dos anos 1960 nem o movimento feminista haviam
ascendido na sociedade, e suas primeiras composições, assim como
as vestimentas que utilizavam em suas apresentações, reforçavam a
ideia de que o machismo visto na sociedade também estava presente
na atitude das bandas de rock.
A ideia do rock como sendo algo másculo, forte, agressivo,
portanto, ligado à ideia de masculino, podia ser visto nas jaquetas de
couro que os garotos de Liverpool adotaram bem como o penteado
semelhante aos chamados Teddy Boys, com topetes para trás, botas,
óculos escuros e posando para as fotos sempre com a cara sisuda e
empunhando os instrumentos musicais (guitarra e baixo) como uma
arma. Quando excursionaram em Paris, por exemplo, os Beatles en-
contraram Jurgen Vollmer, amigo que tinham feito em Hamburgo,
usando calças boca de sino e, apesar de gostarem do visual, Lennon
afirmou que “isso seria considerado muita frescura [em Liverpool]”

69
Vanessa Pironato Milani

e eles não queriam “parecer afeminados ou coisa que o valha”, pois


seus “auditórios eram cheios de caras. “Tocávamos rock com roupas
de couro, e as baladas de Paul atraíam garotas cada vez mais”, afir-
mava Lennon (DAVIES, 1968, p.114). No entanto, quando já haviam
adotado o nome The Beatles, as jaquetas e topetes Teddy Boys deram
lugar aos ternos e ao corte de cabelo um pouco mais longo do que o
“normal” para rapazes ingleses daquele período, ficando conhecido
como “corte Beatle”. Portanto, na primeira metade dos anos 1960, os
quatro rapazes de Liverpool ainda mantinham o status masculino do
rock, tanto em suas vestimentas quanto em suas canções.
Neste sentido, destacamos um dos primeiros grandes sucessos
da banda, a composição “She Loves You”, uma canção em ritmo de
balada dançante, lançada como lado A de um compacto simples em
1963. Os versos: “Ela te ama/Sim, sim, sim/ Você pensa que perdeu o
seu amor/Mas eu a vi ontem/É em você que ela está pensando”10 e “Ela
disse que você a magoou muito/Ela quase perdeu a cabeça/Mas agora
ela diz que sabe/Que você não tinha a intenção”11, retratam a mulher
como sendo passiva e compreensiva diante das atitudes do homem,
mesmo que ele a tenha magoado. De forma complacente e destituin-
do o homem de qualquer culpa, a mulher acaba perdoando seu com-
panheiro, que “não teve intenção” de magoá-la. Em uma sociedade
pautada pelas concepções patriarcais, o homem é sempre eximido de
culpa, que, por sua vez, recai sempre sobre mulher, que deve perdoar
seu parceiro, não importa o que ele tenha feito, pois no fim, ele o fez
por culpa da mulher.
Outro exemplo de canção dos Beatles durante a primeira me-
tade dos anos 1960 e que trata a mulher de forma subjugada é “She’s

“She loves you/Yeah, yeah, yeah/You think you’ve lost your love/Well, I saw her yesterday. It’s you she’s
10

thinking of ” (No original)


“She said you hurt her so/She almost lost her mind/But now she says she knows/You’re not the hurting
11

kind” (No original)

70
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a contracultura

a Woman”, de 1964. Ela fora gravada com um estilo ainda muito


influenciado pelo rock’n’roll que havia inspirado os garotos de Liver-
pool, e que também apresentava práticas machistas. Lançada como
lado B do single que tinha a canção “I Fell Fine” no Lado A, há ver-
sos como: “As pessoas me dizem que ela só está brincando/Mas eu
sei que ela não é disso”12; “Ela detesta me ver triste e choroso/Ela se
sente feliz só de me ouvir dizer que eu nunca a deixarei”13; “Dedica
todo o seu tempo e o seu amor a mim”14; “Ela é uma mulher compre-
ensiva/Ela é uma mulher que ama o seu homem”15. Nesses trechos
da canção, pode-se perceber como o imaginário social ainda era
pautado pelo machismo, voltado para a ideia de que a mulher que
merecia o amor e respeito do homem era aquela que não brincava
com os sentimentos de seu parceiro, que não ‘era disso’, sendo fiel a
ele. Caso não fosse assim e a mulher buscasse a liberdade sexual e a
não dependência em relação ao homem, não era bem vista ou quista
pela sociedade, pois os homens preferiam uma mulher cordial e ser-
vil aos seus desejos, e as demais mulheres aceitavam as imposições
feitas a elas e se opunham a atitudes diferentes.
Ademais, em tal canção, todo o sentimento feminino é voltado
para o homem, estando a mulher à sua sombra e em segundo plano. O
importante era que seu companheiro estivesse feliz, pois assim ela tam-
bém estaria, já que sua vida estava condicionada à do homem, e ela era
complacente com isso, não podendo almejar nada além. Percebe-se que
era um papel imposto pela sociedade e que o rock, aqui representado
por uma banda composta somente por homens, apenas externalizava a
dinâmica das relações.
12
“People tell me that she’s only fooling/I know she isn’t”. (No original)
She hates to see me cry/She is happy just to hear me say/That I will never leave her”. (No original)
13

14
“Gives me all her time as well as loving”. (No original)
15
“She’s a woman who understands/She’s a woman who loves her man”. (No original)

71
Vanessa Pironato Milani

E uma das composições que mais apresentaram elementos de


um pensamento machista é “Run For Your Life”, lançada em 1965,
no álbum Rubber Soul. Ela apresenta a ideia de superioridade mas-
culina, com a qual o homem tem o poder de decidir sobre a vida da
mulher, inclusive matando-a caso suas atitudes não fossem de seu
agrado. Os versos iniciais já demonstram tal assertiva:

Bem, eu preferiria te ver morta, garotinha/ do que com outro


homem/É melhor você manter a consciência, garotinha/ou não
vou saber onde estou/ É melhor você correr pela sua vida, se
puder, garotinha.../Te pegar com outro homem/É o fim, garo-
tinha/Bem, você sabe que eu sou um cara mau/E que eu nasci
com uma mente ciumenta16.

Além de representar a ideia de que a mulher tem seus senti-


mentos e atitudes submissas ao seu companheiro, justifica-se a atitude
violenta do homem que chega a assassiná-la por conta de sua “mente
ciumenta”. A atitude dele não seria recriminada e, sim, a dela. Desta
forma, mais uma vez a culpa recai sobre a mulher que não poderia ser
vista com outros homens e a atitude de seu companheiro seria mini-
mizada e justificada por um problema de nascença: “nasci com uma
mente ciumenta”17, ou seja, é natural do homem, é inato a ele, ele não
tem culpa por suas ações masculinas. Posteriormente, John Lennon
afirmou em entrevistas concedidas em meados dos anos 1970, que se
arrependeu de ter feito a canção e que a considerava sua pior compo-
sição. Tal mudança de visão pode ter decorrido da vivência de seu re-
lacionamento com Yoko Ono, a qual sempre defendeu a luta das mu-
lheres, e também das mudanças que ocorriam na sociedade, advindas
do fortalecimento do movimento feminista. E essas mudanças teriam
“Well I’d rather see you dead, little girl/Than to be with another man. You better keep your head, little
16

girl/Or I won’t know where I am”. (No original).


“I was born with a jealous mind”. (No original).
17

72
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a contracultura

refletido não só no pensamento de John Lennon, mas nas convicções


da banda como um todo.
Neste contexto, no ano de 1967, quando da ascensão e fortale-
cimento da luta feminista, os Beatles lançaram, em seu icônico álbum
Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band, a canção “She’s Leaving Home.”
Trata-se de um relato dos pais que descobrem que a filha única de-
les fugiu de casa, deixando apenas um bilhete. A canção altera a fala
em primeira pessoa, dos pais – interpretados por John Lennon – com
a fala em terceira pessoa – feita por Paul McCartney –, que narra o
acontecido. É como se os pais tentassem se justificar e recriminar a
atitude da filha (“nós dedicamos quase toda a nossa vida/ sacrificamos
quase toda a nossa vida/demos a ela tudo que o dinheiro podia com-
prar.../Por que ela seria tão egoísta conosco?/Como ela pôde fazer isto
comigo?...nós nunca pensamos em nós/nem uma vez, pensamos em
nós/nós batalhamos durante toda nossa vida para vencer”18), ou fizes-
sem um mea culpa, pois davam dinheiro, mas não carinho e atenção
necessários à filha (“o que foi que fizemos de errado?/ nós não sabía-
mos que estávamos errados/ diversão é a única coisa que o dinheiro
não compra”19). Já os versos em terceira pessoa justificariam a atitude
da filha, a qual, finalmente estaria livre para viver sua própria vida e
buscar atenção, visto que ela foi embora “após viver sozinha/Por mui-
tos anos”20. Na atitude da filha, pode-se perceber o conflito de geração
característico de meados dos anos 1960, visto que os jovens buscavam
uma nova forma de vida, diferente daquela que tiveram seus pais. Para
estes, o consumismo do pós-guerra era suficiente para a felicidade,
para se ter uma vida satisfatória, como fica explícito na canção quando
18
“We gave her most of our lives/ Sacrified most of our lives/ We gave her everything money could
buy…/ Why would she treat us so thoughtlessly?/How could she do this to me?... We never thought of
ourselves/ Never a thought of ourselves/ We struggled hard all our lives to get by”. (No original).
19
“What did we do that was wrong?/We didn’t know it was wrong/ Fun is the one thing that money can’t
buy” (No original).
20
“after living alone/For so many years”.

73
Vanessa Pironato Milani

afirmam: “demos a ela tudo que o dinheiro podia comprar”. No entan-


to, a filha queria atenção dos pais e, mais, ela queria diversão e diver-
são é a única coisa que o dinheiro não compra.
Ademais, os versos da canção destacam a emancipação femi-
nina, tanto em relação aos pais quanto à sua vida amorosa. Ao mes-
mo tempo em que a canção narra o feito de uma mulher que foge da
casa dos pais para viver sua vida, ser livre e se divertir, também de-
monstra que ela tem uma vida amorosa livre ao destacar que ela está:
“Esperando dar a hora do compromisso que marcou/Pra encontrar
um rapaz da concessionária”21, ou seja, era ela quem havia marcado
o compromisso, indicando uma possível maior autonomia da mulher
em relação aos relacionamentos amorosos, e seu parceiro é um sujeito
indefinido na canção, afirmando apenas que trata-se de um “rapaz da
concessionária”, o que pode estar ressaltando o amor livre tão presente
na época de lançamento da canção.
Para além da questão musical, na época de lançamento do
Sgt Peppers, a vestimenta dos Fab Four também havia se modifica-
do. O novo estilo aproximava-se do movimento hippie, com rou-
pas despojadas, coloridas e menos formais. Cada beatle assumiu o
seu próprio corte de cabelo, o seu próprio estilo, a individualidade
predominou no lugar da padronização. Era um dos indícios de que
os Beatles se aproximavam dos ideais contraculturais e passavam
a questionar os padrões sociais e culturais da época. Com isso,
questionavam também o funcionamento da indústria cultural, es-
pecialmente a fonográfica, a qual desejava lucrar em cima de uma
estandardização dos artistas. Os Beatles inovaram musicalmente
e culturalmente, em uma época em que tal feito não era comum
no meio artístico, visto a força que a indústria fonográfica havia
adquirido na sociedade.

“Waiting to keep the appointment she made/Meeting a man from the motor trade” (No original)
21

74
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a contracultura

E no álbum seguinte, o White Album, lançado no icônico ano


de 1968, os Fab Four continuaram inovando com a composição de
músicas que retratavam as mulheres de forma diferente em relação aos
primeiros álbuns da banda. Na composição de John intitulada “Julia”,
ele faz homenagem à sua mãe, já falecida, de uma forma diferente,
trocando o tom patriarcal por uma visão fraternal. Julia, ao invés de
ser representada de forma impositiva, como mulher “do lar”, que tem
o dom e a obrigação de ser uma boa mãe, é retratada de forma idílica,
carinhosa e saudosista, pois é lembrada com carinho e saudade, como
percebe-se no verso “Quando não consigo cantar o que sinto/Posso
apenas expressar o que penso, Julia”22. E todos os demais versos de
John Lennon são para exaltar sua mãe de forma afetiva.
A outra canção em destaque neste álbum é “Blackbird”, compos-
ta por Paul McCartney, para quem a visão machista também é deixa-
da de lado quando o foco é trazer à canção a figura de uma mulher
guerreira, protagonista de ações revolucionárias. Ao compô-la, Paul
estaria pensando na situação racial dos EUA e a escreveu como um
encorajamento para as mulheres negras oprimidas, segundo consta no
livro de Steve Turner (2009, p.260). Desta maneira, os versos “Pegue
essas asas quebradas e aprenda a voar” e “Pássaro negro, voe, pássaro
negro, voe”23 podem ser lidos como um incentivo e apoio às lutas dos
negros, das mulheres negras, por liberdade, dadas as crescentes mani-
festações que ocorriam nos EUA, especialmente após o assassinato de
Martin Luther King, em abril de 1968. Ademais, o termo “blackbird”,
que era usado de forma pejorativa nos mercados de escravos, no pas-
sado (TURNER, 2009, p.261), passara a ser adotado de forma positiva
nos anos 1960 pelos movimentos engajados na luta dos direitos hu-
manos, o que ajuda a reforçar a ideia de que Paul estaria pensando em
“When I cannot sing my heart/I can only speak my mind, Julia” (No original).
22

“Take these broken wings and learn to fly” e “Blackbird, fly, blackbird, fly” (No original).
23

75
Vanessa Pironato Milani

uma canção que tivesse relação com os movimentos raciais da época,


especialmente o das mulheres negras, um dos grupos mais oprimidos
da sociedade.
Por último, destacamos um single, lançado em 1969, intitulado
“The Ballad Of John And Yoko”, escrito por John Lennon. A canção
apresenta o roteiro do casamento e lua de mel de John Lennon e
Yoko Ono, que contou com vários destinos internacionais, focan-
do-se nas dificuldades que enfrentaram, especialmente em relação
ao preconceito por parte da imprensa e dos fãs em relação à Yoko, e
também na luta empreendida pelos dois em nome da paz mundial.
Desta maneira, o verso “Do jeito que as coisas estão indo, vão é me
crucificar”, retrata bem a crítica feita ao cantor por grande parte dos
fãs e da imprensa, que não aceitaram o desfazimento de seu antigo
casamento com Cynthia para unir-se à Yoko Ono, uma mulher que
enfrentava vários preconceitos por ser vanguardista, multiartista e
de origem oriental. Em relação à promoção da paz mundial, o casal
promoveu o Bed In, no qual davam entrevistas na cama enquanto
expunham cartazes com frases pacifistas. Fato que pode ser ilustrado
no verso: “Conversamos em nossas camas por uma semana/O jornal
disse “digam o que estão fazendo na cama?/Eu disse “só queremos
ter um pouco de paz”.
Portanto, o que se percebe é que na canção há uma relação
mútua do casal, tanto no roteiro de viagem quanto no protesto feito
na cama. As ações são descritas na primeira pessoa do plural (nós),
demonstrando a unicidade do casal, feitas em conjunto e não sobres-
saindo o desejo do homem sobre o da mulher. Ela está ao lado de
seu marido e não mais à sombra dele. A mulher, no caso especial de
Yoko, passa a fazer parte da vida profissional do marido, não sendo
mais relegada ao ambiente do lar, em uma posição passiva diante
do homem. E este é um dos fatos que fizeram com que Yoko fosse

76
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a contracultura

rejeitada por grande parte da imprensa e mesmo pelos fãs, que ainda
olhavam para as mulheres por um viés doméstico, jamais aceito pela
artista, que também era japonesa, o que reforçava o preconceito da
sociedade machista ocidental.

Considerações finais
Diante do contexto histórico-cultural dos anos 1960 e das aná-
lises de algumas canções dos Beatles lançadas ao longo da carreira da
banda, percebe-se uma mudança na forma com que a mulher é retra-
tada nas canções da banda. Fato que pode ter acompanhado as modi-
ficações que ocorriam na sociedade, guiadas pelo fortalecimento das
lutas feministas, e, no caso específico dos Beatles, pela aproximação
da artista Yoko Ono, após iniciar relacionamento amoroso com John
Lennon. Seu engajamento na luta feminista, além de sua visão van-
guardista em relação à música, trouxe novas possibilidades de compo-
sição para o quarteto de Liverpool.
Ademais, quando a banda se aproximou dos ideais da contracul-
tura, que vinha assimilando as lutas feministas, sua postura foi modi-
ficada. As composições apresentaram letras menos conservadoras, e o
quarteto abriu-se para experimentos musicais, incorporando elemen-
tos vanguardistas, além da música oriental, muito por influência de
George Harrison. A forma Teddy Boy de se vestir, bem como o conser-
vadorismo dos ternos, e os cortes de cabelo todos iguais, foram subs-
tituídos por um novo visual, com roupas mais despojadas, coloridas e
individualizadas, cada um vestindo o que bem entendesse e adotando
penteados próprios. Assim, os quatro rapazes de Liverpool, de uma
forma ou de outra, passaram a questionar os padrões impostos pela
sociedade e pela indústria fonográfica. Com isso, assumiram um dis-
curso menos machista, acompanhando o coro que vinha da crescente
mobilização feminina, na luta por uma sociedade mais igualitária.

77
Vanessa Pironato Milani

“She’s Leaving Home”, por exemplo, além de apresentar uma


nova visão a respeito da mulher, também demonstra uma mudança
na postura dos Beatles, que assumem a posição feminina na mú-
sica, abandonando, pelo menos nesta canção, o discurso machista.
Eles assumiram o discurso feito em terceira pessoa, argumentando a
favor das atitudes da personagem (a filha que sai de casa), elencan-
do os motivos que ela teria para deixar os pais. Já em “Blackbird”,
a figura da mulher não é mais a de fragilidade e dependência, mas
de engajamento presente nas lutas sociais e raciais, acompanhando
o crescimento das lutas feministas. A mulher, antes representada
como passiva, como objeto de desejo, passa desempenhar uma ati-
tude mais ativa, como militante. Portanto, de mera coadjuvante do
sentimento do homem, de seus desejos e impulsos, a mulher passa a
ser protagonistas das canções, assumindo papel de destaque em suas
ações, em seus desejos e atitudes.
Sendo o rock um ambiente tradicionalmente masculino e con-
tando com o machismo também das mídias e da indústria fonográfica,
perceber demonstrações de uma nova visão a respeito das mulheres,
bem como a valorização de suas lutas, nas composições da banda de
maior destaque dos anos 1960 e que teve repercussão mundial, é sig-
nificativo na busca pelo entendimento do processo de feminilização
que teria ocorrido no meio musical do rock. Não só a participação de
figuras de destaque, como Janis Joplin, Grace Slick, Yoko Ono, Nico,
e também Maureen Tucker, entre outras, no rock, teria ajudado a mo-
dificar o imaginário a respeito das mulheres, mas também a modifica-
ção de posturas e comportamentos de bandas compostas somente por
homens, como os Beatles, que assimilaram as mudanças que ocorriam
na sociedade e passaram a representar as mulheres de outra forma, se
não em todas, pelo menos em algumas canções.

78
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a contracultura

Bibliografia

BUCKINGHAM, Kathryn. The Evolving Presence of Feminism and


Women in Rock and Roll. Story of a Phoenix. 2014, p. 1-16.

BROWN, Shelina. Scream from the Heart: Yoko Ono’s Rock and Roll
Revolution. In: WHITELEY, Sheila; SKLOWER, Jedediah (orgs). Cou-
ntercultures and popular music. Farnham; Burlington, VT: Ashgate,
2014, p. 171-186.

BROWN, Arlene. Has anyone reading this article met a woman bass
play, International Times, London, p. 13, 27 ago. – 10 set., vol. 1, Issue:
86, 1970.

CHAPPLE, Steve e GAROFALO, Reebee. Rock e Indústria. História e


política da indústria musical. (trad. Manuel Ruas). Lisboa: Ed. Cami-
nho, 1989.

CLEAVER, Eldridge. On method time and revolution, International


Times, London, p. 9, 25 mar. – 8 abr., vol. 1, issue: 100, 1971.

DAVIES, Hunter. A vida dos Beatles. Rio de Janeiro: Expressão e Cul-


tura, 1968.

DE ARAÚJO, Jair Araújo; MONASTÉRIOS, Sylvia. Educação, femi-


nismo e contracultura: o pensamento de Betty Friedan. Revista Saber
Acadêmico, nº 12: junho/2011, p. 49-53, Programa de Pós Graduação
em Educação, Arte e Cultura. Universidade Presbiteriana Mackenzie.
São Paulo: Disponível em: <www.uniesp.provisorio.ws/revista/revis-
ta12/pdf/artigos/10.pdf>. Acesso em: 22 de mar. 2017.

FEIJÓ, Martin. Cultura e Contracultura: relações entre conformis-


mo e utopia. Revista FACOM, nº 21. 1º semestre de 2009, pp. 04-13.

79
Vanessa Pironato Milani

Disponível em: <http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/fa-


com_21/martin.pdf>. Acesso em: 20 mai. 2017.

FRANK, Thomas. The Conquest of the Coll: business culture, counter-


culture and the rise of hip consumerism. Chicago: University of Chica-
go Press, 1998. Kobo edition.

HARTMAN, Caroline; SCHMID, Letizia. Girly Boys and Boyish Girls:


Gender Roles in Rock and Roll Music. Rutgers Dialogues 9, 2014, p.
55-70. Disponível em: < http://dialogues.rutgers.edu/all-journals/vo-
lume-9/152-girly-boys-and-boyish-girls-gender-roles-in-rock-and-
-roll-music/file>. Acesso em: 28 mai. 2017.

HEATH, Joseph; POTTER, Andrew. Rebelarse vende, El negocio de la


contracultura. Barcelona: Taurus, 2005.

International Times, London, p. 7, 25 mar. – 8 abr., vol. 1, issue: 100,


1971.

International Times, London, p. 12, 19 mai. – 2 jun., vol. 1, issue: 104,


1971.

JACKSON, Andrew G. 1965: o ano mais revolucionário da música. São


Paulo: LeYa, 2016.

MACAN, Edgar. Rocking the classics: English progressive rock and the
counterculture. New York/Oxford: Oxford University Press, 1997.
Kobo edition.

MARTIN, Christopher R. The Naturalized Gender Order Of Rock and


Roll. JOURNAL OF COMMUNICATION INQUIRY, 1995, p. 53-74.
Disponível em: < https://deepblue.lib.umich.edu/bitstream/hand-
le/2027.42/66933/10.1177_019685999501900104.pdf?sequence=2&i-
sAllowed=y>. Acesso em: 01 jun. 2017.

80
She’s Leaving Home:
o processo de feminilização nas canções dos Beatles, o movimento feminista e a contracultura

MERHEB, Rodrigo. O som da revolução: uma história cultural do rock,


1965-1969. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

MILES, Barry Miles. International Times, London, p. 11, 25 mar. – 8


abr., vol. 1, issue: 100, 1971.

PERONE, James. Music of the counterculture era. Connecticut: Gre-


enwood Press, 2004.

PINTO, Céli Regina. J. Feminismo, História e Poder. Revista de Socio-


logia e Política, v. 18, nº 36, jun 2010, p. 15-23. Disponível em: < http://
www.scielo.br/pdf/rsocp/v18n36/03.pdf>. Acesso em: 28 mai. 2017.

RODNITZKY, Jerry L. Feminist Phoenix: The Rise and Fall of a Femi-


nist Counterculture. Westport, Connecticut: Praeger Publishers, 1999.

SIMONELLI, David. Working Class Heroes: Rock Music and British so-
ciety in the 1960s and 1970s. Plymouth: Lexington Books: 2013.

SOUSA, Rodrigo F. de. De Port Huron aos Weathermen: Students for


a Democratic Society e a nova esquerda Americana, 1960-1969. 2007.
288f. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de Histó-
ria do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Fede-
ral Fluminense, Niterói, 2007.

TURNER, Steve. The Beatles: a história por trás de todas as canções.


São Paulo: Cosac Naify, 2009.

81
Saltando para as montanhas sombrias:
Led Zeppelin, Tolkien e Contracultura (1966-1974)

Ricardo Sinigaglia Arruda *

O presente capítulo tem por objetivo proceder a uma análise


histórica da canção Battle of Evermore1 , presente no quarto álbum
da banda de rock Led Zeppelin, popularmente conhecido como Led
Zeppelin IV2, lançado em 8 de novembro de 1971. A banda era forma-
da, à época, por Jimmy Page, guitarrista e produtor; Robert Plant, vo-
calista; John Paul Jones, baixista e tecladista e John Bonham, baterista.
Desmembrando o título da canção, tem-se que battle sugere a
ideia de uma batalha, e que evermore equivale a algo eterno. À procura
do que seria essa “batalha da eternidade”, recorre-se à letra da canção
na tentativa de desvendar a mensagem pretendida pelo Led Zeppelin.
Tem-se, assim, que nas duas estrofes iniciais, o cantor e narrador
apresenta as personagens, como pode-se observar:

A rainha da luz pegou seu arco


E, então, ela se virou para ir
O príncipe da paz abraçou a escuridão

* Graduado em História pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP/Franca) e mestrando em


História pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (UNIFESP/Guarulhos).
“Led Zeppelin IV”. New York: Atlantic. LP, 1971.
1

2
O álbum não possui título, pois o guitarrista e produtor da banda Jimmy Page queria que a música
falasse por si só em protesto contra as críticas de revistas especializadas como a Rolling Stone.

83
Ricardo Sinigaglia Arruda

E andou sozinho à noite


Oh, dance na escuridão da noite
Cante para a luz da manhã
O Senhor do Escuro cavalga com vigor esta noite
E o tempo nos dirá tudo3

Percebe-se, nesta parte, que a única personagem que não foi


apresentada pelo narrador é aquela que entoa os primeiros versos da
segunda estrofe. Ao contrário dos demais, referenciados pelos prono-
mes em terceira pessoa (ele/ela), esta personagem se expõe ao utili-
zar-se de comandos em segunda pessoa (tu) e no modo imperativo.
A responsável por lhe dar voz na canção é Sandy Denny, cantora de
folk rock britânico, que esteve à frente da banda Fairport Convention –
cujo álbum de maior sucesso chama-se Liege e Lief, lançado em 1970.
É também na segunda estrofe que o vilão, o Senhor do Escuro,
é apresentado. Este é o mais conhecido vilão de Tolkien, Sauron, cuja
aparição na obra O Senhor dos Anéis se dá logo na abertura do livro:

Três Anéis para os Reis-Elfos sob este céu,


Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores,
Nove para Homens Mortais, fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono
Na terra de Mordor onde as sombras se deitam.
Um anel para a todos governar, Um Anel para encontrá-los,
Um Anel para todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra de Mordor onde as sombras se deitam4 (TOLKIEN,
2000)5
3
“Queen of Light took her bow/And then she turned to go/The Prince of Peace embraced the gloom/And
walked the night alone/Oh, dance in the dark of night/Sing to the morning light/The dark Lord rides in
force tonight/And time will tell us all”.
4
Chamamos a atenção para o fato de que a tradução de Dark Lord para o português aparece como “Se-
nhor do Escuro”.
5
Não há numeração de página para este trecho no livro O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel, de
Tolkien, traduzido pela editora Martins Fontes.

84
Saltando para as montanhas sombrias: Led Zeppelin, Tolkien e Contracultura (1966-1974)

Além dele, também os Espectros dos Anéis são apresenta-


dos no nono verso da canção, em referência aos nazgûl ou “Nove
Homens Mortais fadados ao eterno sono”, que se tornam escravos
de Sauron pela forja do Um Anel. Para o biógrafo da banda, Mick
Wall (2009, p.284-285) Eowyn e Aragorn, personagens centrais de
O Senhor dos Anéis: O retorno do Rei – e que aparecem na Batalha
dos Campos de Pelennor – também foram contemplados na canção
como Queen of Light e Prince of Piece, respectivamente. No entanto,
não há referência a estas nomenclaturas na obra mencionada, so-
bretudo em O retorno do Rei, nem tampouco na fala do vocalista
quando expõe, em entrevistas, quais foram as suas referências para a
composição da música.
Na sequência da canção, após a introdução das personagens, o
narrador relata a história no tempo presente, como se estivesse parti-
cipando da guerra. Isso fica mais claro na quarta estrofe quando Ro-
bert Plant e Sandy Denny cantam juntos e passam a sensação de que o
narrador de fato estava presente no conflito juntamente com a perso-
nagem que faz a fala dramática:

Oh, jogue seu arado e enxada


Não basta trancar as suas casas
Lado a lado nós esperamos o poder
Do mais escuro de todos eles

Eu ouço o estrondo dos cavalos


Descendo no vale abaixo
Estou esperando pelos anjos de Avalon
Esperando pelo brilho oriental6 7

Esta seria a quarta estrofe e não a que está acima.
6

Oh, throw down your plow and hoe/Rest not to lock your homes/Side by side we wait the might/Of the
7

darkest of them all/I hear the horses’ thunder/Down in the valley blow/I’m waiting for the angels of
Avalon/Waiting for the eastern glow

85
Ricardo Sinigaglia Arruda

Neste último trecho introduz-se Avalon, ilha britânica onde, se-


gundo Geoffrey of Monmouth, em seu livro History of the Kings of Bri-
tain, escrito em 1138, a espada Escalibur fora forjada (MONMOUTH,
199, p.153) e o Rei Arthur ingressara na linha sucessória dos Reis da
Grã-Bretanha. A partir desta referência, percebe-se que o Led Zeppe-
lin, assim como as bandas de folk rock britânico, optou pelo resgate
de lendas britânicas pré-modernas para compor Battle of evermore,
(SIMONELLI, 2013, p. 128), algo que se evidencia especialmente nas
estrofes quinta e sexta:

As maçãs do vale abrigam


As sementes da felicidade
O solo é rico em cuidado delicado
Retribua, não se esqueça, não, não

Dance na noite escura


Cante para a luz da manhã
As maçãs se tornam marrons e pretas
A face do tirano é vermelha8

Maçã é a tradução para Avalon, em celta. Segundo Jean Cheva-


lier (1984, pp. 688-689) é neste local que, na lenda, eram enterrados os
reis britânicos e seria lá que o Rei Arthur esperou para libertar bretões
e galeses do julgo estrangeiro. Na cultura celta, as maçãs estariam liga-
das à magia, à revelação e à ciência; em alguns contos britânicos, seu
consumo servia de prólogo para contar uma profecia. (CHEVALIER,
1984, p. 688-689)
Fica muito claro pelas estrofes seguintes que a batalha descrita
se dá sempre na luta do bem contra o mal e na oposição entre claro e
escuro:
The apples of the valley hold/The seas of happiness/The ground is rich from tender care/Repay, do not
8

forget, no, no/Oh, dance in the dark of night/Sing to the morning light/The apples turn to brown and
black, the tyrant’s face is red.

86
Saltando para as montanhas sombrias: Led Zeppelin, Tolkien e Contracultura (1966-1974)

Oh, na guerra é comum chorar


Pegue sua espada e voe
O céu é preenchido com o bem e o mal
Os mortais nunca saberão9

No entanto, a canção é finalizada com a vitória do bem sobre o


mal, como fica claro:

Finalmente o sol está brilhando


As nuvens de tristeza passam a deslizar
Com as chamas do dragão da escuridão
A luz do sol cega seus olhos10

A partir da análise desses elementos, questiona-se o porque da
banda ter usado esses elementos para a construção de Battle of Ever-
more. E a compreensão deste universo trazido pelo Led Zeppelin –
que mistura um ambiente pré-moderno, mítico e baseado em literatu-
ra fantástica – passa pela compreensão do próprio rock e do momento
histórico no qual se inseria.
Nesse sentido, o rock seria uma forma cultural11 composta
por uma diversidade de gêneros musicais que diziam respeito à visão
de mundo da contracultura dos anos 1960 (MERHEB, 2012, p.10),
tendo servido para a formação da identidade desta, sobretudo pela
oposição ao que se considerava pop music. Por esse motivo, contra-
punha-se ao rock and roll da metade da década de 1950 e início dos
anos 1960, o qual, para os membros da contracultura, servia ao lucro
9
Oh the war is common cry/pick up you swords and fly/The sky is filled with good and bad/That mortals
never know.
10
At last the sun is shining, the clouds of blue roll by/With flames from the dragon of darkness/The sunlight
blinds his eyes.
11
Devido à sua diversidade, não podemos tratar o rock como um gênero musical, pois em sua formação
temos o folk rock, o blues, experimentações, música de vanguarda e outros gêneros que compõe. A
escolha por forma cultural, seguindo os passos de Rodrigo Merheb se dá pois permite perceber o rock
em sua amplitude.

87
Ricardo Sinigaglia Arruda

das grandes gravadoras e estava integrado à indústria cultural e à lógi-


ca de mercado.
Pela antiga lógica, o rock não era expressado pelo artista, mas
atuava em prol do capitalismo, a partir do que as gravadoras queriam
vender. Em contraposição, a contracultura trazia a perspectiva de que
o rock era uma música anti-comercial e feita pelos músicos, portanto,
despadronizada, sendo composta por diversos gêneros. Tal visão, con-
tudo, foi criticada por parte da historiografia, pois as músicas de rock
vendiam tanto quanto as de rock and roll e participavam das paradas
de sucesso das rádios. (SIMONELLI, 2013, pp.101-102)
A contracultura seria, portanto, uma diversidade de grupos de
jovens os quais possuíam uma faixa etária que ia da puberdade até me-
ados dos vinte anos e que faziam oposição à sociedade conservadora de
seus pais (HOBSBAWM, 1995, p.318). Segundo o musicólogo Edward
Macan (1997, p.15-16), “a contracultura consistia grandemente de jo-
vens de classe média e brancos que conscientemente rejeitavam a modo
de vida de seus pais em favor de caminhos mais experimentais” e que
viviam em uma sociedade permeada pelo estado de bem-estar social.
Entretanto, a contracultura se dividia basicamente em dois gru-
pos distintos. O grupo da Nova Esquerda prezava pela mudança polí-
tica e social e fazia oposição ao capitalismo. Seu auge se deu em 1968,
sobretudo no “Maio de 68” francês, quando jovens de diversos países
saíram às ruas para se manifestarem, muitas vezes pelo uso da violên-
cia, contra o poder instituído e o capitalismo. O grupo hippie, por sua
vez, buscava o estabelecimento de um novo modo de vida, no qual a
crença na mudança social passava pela transformação de cada indiví-
duo a partir do despertar de uma nova consciência e espiritualidade
(MACAN, 1997, p.16).
Apesar do rock ter se preocupado com os movimentos políticos
de 1968, como nas músicas Revolution I, dos Beatles e Street Fighting
Man, dos Rolling Stones, o foco aqui utilizado se dará a partir dos

88
Saltando para as montanhas sombrias: Led Zeppelin, Tolkien e Contracultura (1966-1974)

hippies, pois os elementos usados na composição de Battle of Evermore


têm relações mais próximas com este modo de vida.
Rodrigo Merheb (2012) elaborou um capítulo dedicado ao pú-
blico hippie do underground londrino, que segundo o jornalista, era
uma cópia daquilo que havia no distrito de Haight-Ashbury, na Cali-
fórnia. Segundo ele, os membros desses diversos clubes que formavam
o underground criaram uma escola em Notting Hill, denominada Lon-
don Free School, para combater as formas de socialização da sociedade
capitalista.
Entre as semelhanças entre os hippies londrinos e californianos
estava o uso do LSD na busca de uma identidade e unidade a estes gru-
pos. Para Merheb (p. 2012, p.174), o rock tentava transmitir de manei-
ra sonora o que sentia alguém sob o efeito da droga, a exemplo do que
faziam os artistas americanos como Jefferson Airplane, Janis Joplin
and the Holding Company, Grateful Dead, etc., e, do lado britânico,
as bandas ligadas à psicodelia12, como o Procol Harum, o Pink Floyd,
o Soft Machine, o Fairport Convention, dentre outras. Inclusive, é nas
canções desse tipo de banda que começam a ser exploradas as obras de
John Ronald Reuel Tolkien e Lewis Carroll13.
Neste contexto, a sociedade conservadora passa ser rechaçada
não apenas pelo uso LSD, mas também pela busca por religiões e fi-
losofias orientais e a aceitação de uma vida comunitária. Também os
cabelos compridos dos homens e toda a moda adotada pelos hippies
eram formas de criticar o materialismo da sociedade capitalista e o
conservadorismo.
Sendo assim, as temáticas das letras das bandas de rock tam-
bém entravam em convergência com aquilo que a contracultura utili-
zava para fazer oposição ao establishment14. Os Beatles, por exemplo,
Nome dado ao efeito do LSD na mente humana atribuído por Aldous Huxley em seu livro The Doors
12

of Perception.
Autor de Alice no País das Maravilhas.
13

O establishment é um termo utilizado para se referir ao conservadorismo.


14

89
Ricardo Sinigaglia Arruda

compuseram canções ligadas às religiões orientais, como Tomorrow


Never Knows, do álbum Revolver, cuja referência utilizada por John
Lennon estava no Livro Tibetano dos Mortos (SIMONELLI, 2013,
p.106). Outros temas bastante frequentes nas músicas eram a astro-
logia, principalmente com a crença da entrada na “Era de Aquário”,
como se percebe em Sunshine of your love, do Cream. (SIMONELLI,
2013, p.103); a infância, como em Penny Lane, dos Beatles; e o “amor li-
vre”, presente nas letras de Janis Joplin e Jim Morrison (KURLANSKY,
2007, p. 249), que fazia parte da temática jovem hippie, com as que-
bras de tabus em relação ao sexo, sobretudo pela utilização de pílula
anticoncepcional pelas mulheres e a busca do sexo sem preocupações,
com a rejeição do que pensava a sociedade conservadora.
Entre as temáticas da contracultura britânica, encontra-se tam-
bém o universo abarcado pelos livros de Tolkien (MERHEB, 2012,
p.193-194; SIMONELLI, 2013, p.103), pois, segundo Simonelli (2013,
p.213), as obras de literatura fantástica circulavam entre os hippies por
apresentarem características anti-industriais, espaços intocados pelo
materialismo da vida contemporânea, e situações nas quais os mais
fracos, como os pequenos hobbits, poderiam vencer o mal, como Sau-
ron. Deste modo, a busca pela inserção de mitologias nas letras das
canções integrava a nova cultura, uma vez que tanto as obras de lite-
ratura fantástica quanto os mitos traziam senso de comunidade e de
espiritualidade, que haviam sido perdidos na modernidade.
Logo, nota-se que a utilização do mito do Rei Arthur e da obra
de Tolkien em Battle of Evermore tem relação direta com a contracul-
tura e uma de suas identidades, o rock. No entanto, o Led Zeppelin não
foi uma banda dos anos 1960 e esteve preocupado com problemas de
sua própria década, a de 1970. Como o próprio Jimmy Page afirmou:
“Que se danem os anos 1960! Vamos desbravar uma nova década...
Era essa a nossa missão” (TOLINSKI, 2012, p. 117). Tal declaração vai
ao encontro do que afirma Simon Frith (1998, pp. 99-122), quando

90
Saltando para as montanhas sombrias: Led Zeppelin, Tolkien e Contracultura (1966-1974)

estabelece que o significado de uma música e todos os seus elementos


só ganham sentido quando inseridos em um meio social específico.
Em termos históricos, ao contrário do estado de bem-estar so-
cial que marcou a década de 1960 e possibilitou o aparecimento da
contracultura, as décadas finais do século XX foram caracterizadas
por crise econômica e pela pulverização dos valores da juventude. Eric
Hobsbawm (1995, p.395-396), nesse sentido, afirmou que a instabili-
dade das décadas que compreendiam os anos de 1970 a 1990 fez com
que o capitalismo andasse de forma mais lenta, ainda que nesse perío-
do não tenha se estagnado por completo. Em termos gerais, houve um
colapso caracterizado pelo desemprego em massa, pobreza, mendi-
cância e aumento da desigualdade social. Problemas que ocorriam por
causa da transnacionalização da economia, que gerou concorrência
por emprego não mais circunscrita ao Estado-nação, e pelo aumento
da mecanização industrial (HOBSBAWM, 1995, p.397-402).
Todavia, em que pese a mudança social, a solução para a crise
não era encontrada, pois a prática política continuava sendo a mesma
do período de Estado de bem-estar social, inclusive na Grã-Bretanha
– local que teve governo conservador nos primeiros anos da década de
1970, diferente de outros países europeus. Nesse contexto, a descrença
nos modelos partidários levou diversos jovens a abandonarem a luta
contra o capital e a se engajarem nas lutas dos “novos movimentos so-
ciais” – contra o machismo, por exemplo – e em causas ambientalistas,
o que resultou em uma pulverização das esquerdas (HOBSBAWM,
1995, p. 406-407).
David Simonelli (2013, p.207-208) também sustentou que a dé-
cada de 1970 fora um período de crise na Inglaterra, cujo início deu-se
ainda em 1967, com as demissões em massa ocorridas sob comando
do Partido Trabalhista, mas que agravou-se apenas em 1973. Neste
novo período da economia capitalista, também o rock passou por
transformações, deixando de atrelar-se à cultura jovem para aliar-se

91
Ricardo Sinigaglia Arruda

aos altos lucros da indústria fonográfica.


Percebe-se, nesse momento, a desmobilização da contracultu-
ra, não apenas a inglesa. Em suas memórias, Tariq Ali indicou que, a
partir de 1969, a razão para este esfacelamento poderia ser atribuída à
fragmentação da esquerda, às discussões e agressões entre as feministas
radicais e socialistas, e mesmo à divisão entre os próprios jornais de
esquerda e outros grupos que pertenciam à contracultura. (ALI, 2008,
p.345-346). A pulverização dos valores da contracultura, no período,
liga-se ao desaparecimento dos valores anticapitalistas presentes na co-
munidade hippie e no processo de desmobilização da Nova Esquerda.
Entretanto, é necessário ressalvar que nem todos os envolvidos
no modelo de vida hippie estavam preocupados em mudar o próprio
comportamento para que disso surgisse uma revolução social, como
no caso de Charles Manson15, que estava preocupado em ver mensa-
gens subliminares em letras de músicas (MERHEB, 2013, p.403). A
Nova Esquerda, por sua vez, acreditava que poderia fazer a revolução
a partir dos meios de comunicação de massa e do rock.
Durante um dos maiores festivais hippie ocorrido nos EUA, o
Woodstock, Abbie Hoffman16 subiu ao palco do The Who para pe-
dir ajuda para libertar John Sinclair17 da prisão (MERHEB, 2012,
p.367-369), ao que foi atingido com uma guitarra nas costas por Pete
Townshend. Este fato, para Merheb, ilustra bem o que acontecia à épo-
ca na Nova Esquerda: a desmobilização de suas bases, acompanhada
pela separação entre o rock e os valores sociais defendidos por indiví-
duos que faziam oposição ao capital. (MERHEB, 2012, p.426)
15
Charles Manson invandiu, junto com sua comunidade hippie, a casa de Roman Polanski em 1969 e
assassinou diversas pessoas que ali estavam, exceto Polanski que viajava a trabalho. Manson fez isso
porque enxergava mensagens no Álbum Branco dos Beatles.
Abbie Hoffman foi um dos líderes do movimento YIPPIE! uma parte da contracultura que combinava o
16

modelo de vida alternativo hippie com questões políticas, que resultou na tentativa de levitar o Pentágono
nos EUA ou jogar notas de US$ 5,00 na Bolsa de Valores de Nova York.
17
John Sinclair foi estudante e ativista político da Universidade de Berkeley, além de empresário da ban-
da MC5.

92
Saltando para as montanhas sombrias: Led Zeppelin, Tolkien e Contracultura (1966-1974)

O distrito de Haight-Ashbury, o paraíso hippie dos anos 1960,


antes mesmo do fim nas crenças utópicas de mudança social, estava
tomado por traficantes de drogas já em 1967, durante o festival do
“Verão do Amor”, o que provocou horror no beatle George Harrison
quando visitou o local (MERHEB, 2012, pp. 254-255). A situação não
só se agravou, como os alteradores de consciência que passaram a ser
usados, principalmente a partir de 1969, não eram aqueles que possi-
bilitavam a síntese cultural hippie, mas aquilo que estes condenavam
por tornar as pessoas violentas: a cocaína e seus variantes.
John Lennon, por exemplo, compôs, em 1969, Cold Turkey, para
falar sobre sua experiência com essas drogas. A canção Mama told me
(not to come), de Randy Newman também é um comentário sobre o
lado obscuro do vício em drogas. A constante busca por iluminação
espiritual e a fuga de hippies para comunidades rurais são expressões
de pessoas que fugiam do efeito do vício em drogas nas áreas onde
floresceu a contracultura hippie. (PERONE, 2004, pp. 128-129; pp.
149-153)
O impacto da pulverização da contracultura durante os anos
1970 foi a transformação do rock em gêneros musicais reconhecíveis.
Segundo Edward Macan, a música com características próximas ao
blues, tocado por Jimi Hendrix, Cream e Yardbirds teria dado origem
ao Heavy Metal18, a exemplo de bandas como Deep Purple. As temáti-
cas deste gênero musical estariam mais alinhadas aos prazeres sexuais
e ao hedonismo da contracultura hippie.
Outro gênero musical que teve suas origens a partir da contracul-
tura foi o Rock Progressivo, representado por bandas como Yes e Pink
Floyd, cujas temáticas se afastavam das drogas e do álcool, utilizando
elementos de diversas mitologias, da literatura fantástica e da ficção cien-
tífica. Os compositores de rock progressivo também adotaram traços da
18
Macan também colocou o Led Zeppelin como uma banda de Heavy Metal, todavia não concordamos
com tal visão, o que o leitor entenderá adiante.

93
Ricardo Sinigaglia Arruda

música folk para construírem ambientes pré-modernos, utilizando diver-


sos instrumentos acústicos na criação desses ambientes. Um dos traços
deste gênero musical foi a utilização de suítes em suas composições para
tentar dar forma musical consolidada ao rock, ao contrário das experi-
mentações dos anos 1960, como se percebe em Atom Heart Mother, do
Pink Floyd. Além disso, outra mudança trazida pelo rock progressivo foi
a importância dada ao teclado, que passou a ser tão protagonista quanto
a guitarra. Entre os modelos mais populares estavam o órgão Hammond,
o Mellotron e o sintetizador Moog, que propiciavam um som mais or-
questral para as bandas, inclusive por terem sido utilizados de acordo
com técnicas da música clássica europeia (MACAN, 1997, p.32-36).
Nesse contexto, verifica-se que Battle of Evermore estabelece di-
álogos com o Rock Progressivo usando elementos desse gênero para
dialogar com os anos 1970. No entanto, é preciso entender de que for-
ma se dá esse diálogo e questionar quais eram as intenções dos músi-
cos da banda quando pensaram nesta canção. Tem-se, por exemplo,
que, enquanto a literatura fantástica e os mitos eram utilizados como
uma utopia para a construção de uma nova sociedade (MACAN, 1997,
p.80), na canção do Led Zeppelin, eles ganham novos ares.
De volta à obra de Tolkien, percebe-se que no mundo criado
pelo escritor britânico era visível a valorização da natureza como am-
biente calmo, exceto quando os ents, árvores que andam e falam, des-
truíram a fábrica de Sauruman. De maneira geral, as personagens não
malignas procuravam aconchego na natureza e ficavam alegres em
contato com ela, o que fez com que os livros O Hobbit ou O Senhor dos
Anéis funcionassem de forma apolínea19 para a contracultura, dada
sua ligação à não-agressividade.
No tocante à canção Battle Of Evermore, o que chama atenção
é a escolha da banda por duas personagens malignas: o Senhor do
Segundo Edward Macan, quando a música psicodelica se desmembrou, o Heavy Metal ficou com o lado
19

dionisíaco da contracultura, caracterizado pela agressividade e temas ligados ao sexo, no qual há a predomi-
nância da guitarra elétrica e do blues; enquanto o Rock Progressivo ficou com o lado apolíneo, caracterizado
por uma proximidade com a música folk e com o lado mais ligado à natureza pastoril e aos mitos.

94
Saltando para as montanhas sombrias: Led Zeppelin, Tolkien e Contracultura (1966-1974)

Escuro e os Espectros dos Anéis. O Led Zeppelin, portanto, opta pela


agressividade do vilão da história de Tolkien, por algo que ameaça.
Além do mais, Avalon também não se apresenta como o espaço no
qual Excalibur foi forjada, mas como um ambiente de guerra, no qual
o tirano cavalga e as maçãs que carregam as sementes da felicidade
mudam de forma para marrom e negra, cores ligadas à escuridão.
Por fim, a canção, como afirmamos acima, mostra a luta do bem
contra o mal, do dragão contra a luz do oriente, na qual esta, que é
provavelmente o Sol, supostamente vence. Todavia, não há ganhado-
res. É uma batalha eterna, como sugere o título da canção, pois o mal
sempre apareceria e o bem teria que combatê-lo. Esta oposição, no en-
tanto – que promove contradições na composição musical –, faz refe-
rência à arte barroca, que historicamente se caracteriza pela tentativa
de moralizar a sociedade por meio da exposição de suas contradições,
sobretudo por apresentar seus vícios e virtudes. Durante o século XVI,
por exemplo, as contradições foram utilizadas para convencer fiéis de
que a Contra-Reforma existia para combater os defeitos das Reformas
Protestantes (ROSENFELD, 2014, p. 58).
Além disso, a canção pertence ao gênero épico, visto que o nar-
rador fala de um mundo objetivo, ainda que imaginário, com persona-
gens e locais emancipados de sua subjetividade. Logo, ele abre espaço
para falas externas – como os trechos que foram cantados por Sandy
Denny –, apesar de o objetivo não ser o de fazer com que a história se
desenvolva naturalmente por personagens, mas de contá-la.
E mesmo neste intuito a canção segue rumos diferentes, pois,
normalmente, na narrativa épica, a história é contada no pretérito, ao
passo que em Battle Of Evermore a maior parte da narração se dá no
presente, já que apenas a apresentação das personagens é feita no passa-
do. Todavia, este aspecto não invalida a aproximação do gênero literá-
rio, pois, segundo Rosenfeld (2014, pp. 21-22) o purismo não é possível
na obra de arte, de forma que esse fator não teria impacto significativo

95
Ricardo Sinigaglia Arruda

na presente análise no sentido de destruir uma forma consolidada.


O fato de a narração estar no presente faz, na verdade, com que
transpareça a subjetividade do narrador, ainda que de forma distan-
ciada, pois verifica-se que o mundo objetivo continua existindo, de
forma que passado e presente se misturem, trazendo para a canção a
característica de eternidade (ROSENFELD, 2014, pp. 24-26). Todavia,
no gênero épico, o narrador já conhece o fim da História – como os
cristãos do século XVI, apoiadores da Contra-Reforma, para os quais
tudo era um plano preconcebido por Deus – ao que pode-se inferir
que a luta entre bem e mal da canção do Led Zeppelin IV é sempre algo
previsto, parte de algo que já foi dado a acontecer.
Mas, e a forma musical? Qual o sentido da musicalidade de Batt-
le of Evermore? Para responder essas perguntas é preciso verificar que
a canção está dentro do sistema tonal, no qual a harmonia gira em
torno de uma nota musical tônica, o que é próprio do período barroco
(CARPEAUX, 2001, p. 35). Ao contrário do sistema modal, no qual
o músico escolhe a escala (módulo) que melhor combinaria com a
cadência da música, o sistema tonal está fechado em um padrão, pois
ele busca resolver a música. Segundo Edward Macan (1997, p. 51-52),
a música modal capturava melhor a psicodelia, por ser um sistema
menos hierárquico de música, mas também porque é um modelo de
pensar a música que predominou num período anterior ao advento
da modernidade e que quase caiu em desuso durante o século XIX.
As músicas vindas do Oriente, a música folk e o blues costumam uti-
lizar o sistema modal. Contudo, como o rock progressivo recuperou
a música clássica europeia, trouxe consigo o sistema tonal também,
utilizando-se do barroco como estilo musical de referência como se
percebe em Red, do King Crimson. A possibilidade criativa do sis-
tema tonal é mais reduzida nessa circunstância. No caso de Battle of
evermore, ela se inicia com uma escala cromática descendente, tam-
bém característica do barroco europeu (MACAN, 2009, p. 192) e se

96
Saltando para as montanhas sombrias: Led Zeppelin, Tolkien e Contracultura (1966-1974)

resolve, já ao fim da introdução, no sistema tonal. Nesta condição, a


tônica da canção está em Sol.
Mas, como poderíamos entender o barroco no Led Zeppelin?
Robert Plant, na entrevista que deu à Record Mirror, disse que quando
compôs a canção queria que a Inglaterra voltasse a ser um local pací-
fico, como Albion – nome dado à Grã-Bretanha à época de seu pri-
meiro rei, Brutus. Todavia, a Grã-Bretanha estava em crise no início
dos anos 1970, pois a política estava em crise com o fim do estado de
bem-estar social e aumento da violência urbana (Cf. TURNER, 2013).
Logo, Battle of Evermore é uma alegoria para a crise que acontecia na
Inglaterra durante a década de 1970, momento marcado também pelo
fim da contracultura. E é pelo apanhado desta conjuntura que verifica-
-se como o barroco, por suas contradições, bem como o tonalismo e a
utilização de escala cromática descendente sinalizam a crise, trazendo
sentido à totalidade da canção. O Led Zeppelin, na verdade, utiliza as
técnicas do Rock Progressivo, inclusive as que se remetem ao folk, para
negá-lo, apesar do título da canção anunciar a impossibilidade de uma
vivência sem crise. No entanto, para a banda, a batalha é eterna.
No final da canção, Robert Plant canta “traga-o de volta”20,
uma repetição de “traga o equilíbrio de volta”21, cantado no penúl-
timo verso, que poderia ser a busca do narrador pelo passado, no
qual existia as promessas de paz e amor e uma nova moral social.
Tal qual Tokien, que era contra a guerra e escreveu cartas para seu
filho pedindo que voltasse para a casa (CARPENTER, 2006, p. 75),
Robert Plant era contrário à crise e queria sua superação. Assim, tal-
vez, o “traga-o de volta” na voz do vocalista do Led Zeppelin possa
servir como uma negação das batalhas eternas e do próprio desejo
de querer trazer o passado criativo de volta, podendo ser, inclusive,
uma negação do sistema fechado da tonalidade, pedindo para que a
“Bring it Back”
20

“Bring the balance back”


21

97
Ricardo Sinigaglia Arruda

criatividade volte. Todavia, esse passado não voltará, ao que a canção


expressa resignação com tal melancolia.
Concluímos, portanto, que Battle of Evermore é uma canção que
diz respeito a um rock dos anos 1970 e que negou a situação em que se
encontravam a sociedade, o rock e a contracultura à época. O Led Zeppe-
lin expôs a própria pulverização social pela qual passava a juventude dos
anos 1970, mas de forma resignada, pois tinha a visão de que aquela ba-
talha seria eterna e que o momento de equilíbrio nunca chegaria.

Bibliografia
ALI, T. O poder das barricadas: uma autobiografia sobre os anos 60.
São Paulo: Boitempo, 2008.
CARPEAUX, Otto Maria. O livro de ouro da História da Música: da
Idade Média ao século XX. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
CHEVALIER, Jean. Diccionario de los símbolos. Barcelona: Editorial
Herder, 1986.
CRISTELLI, Paulo. J.R.R. Tolkien e a crítica à modernidade. São Paulo:
Alameda, 2013.
CUMMING, D. Led Zeppelin and Carlo Domeniconi: Truth without
authenticity. Tese. Montreal: McGill University, 2005.
FAST, Susan. In the houses of the holy: Led Zeppelin and the power of
rock music. New York and London: Oxford University Press, 2001.
FRIEDLANDER, P. Rock and roll: Uma história social. Rio de Janeiro:
Record, 2012. 7º edição.
GAGNEBIN, J. M. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34,
2006.

98
Saltando para as montanhas sombrias: Led Zeppelin, Tolkien e Contracultura (1966-1974)

GILMORE, M. Ponto final: Crônicas sobre os anos 1960 e suas desilu-


sões. São Paulo: Companhia das letras, 2010.
GOFFMAN, K.; JOY, D. Contracultura através dos tempos: do mito de
prometeu à cultura digital. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
HEADLAM, D. Does the song remains the same? Questions of au-
thorship and identification in the music of Led Zeppelin. In: MAR-
VIN, E. W.; HERMANN, R. Concert music, rock and jazz. Rochester:
Rochester: University of Rochester Press, 1995.
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos: O breve século XX: 1914-1991. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991.
KURLANSKY, Mark. 1968: o ano que abalou as estruturas. Rio de Ja-
neiro: José Olympio, 2005.
MACAN, E. Rocking the classics: English progressive rock and the coun-
terculture. New York/Oxford: Oxford University Press, 1997.
______. Bring the Balance Back. In: CALEF, Scott(org.). Led Zeppelin
and Philosophy: All will be revealed. Chicago: Carus Publishing Com-
pany, 2009
MERHEB, R. O som da revolução: Uma história cultural do rock, 1965-
1969. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
MONMOUTH, Geoffrey of. History of the Kings of Britain. Cambrid-
ge, Ontario: In Parentheses Publications, 1999.
PERONE, J. Music of the counterculture era. Connecticut: Greenwood
Press, 2004.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2014.
SHUKER, Roy. Vocabulário de música pop. São Paulo: Hedra, 1999

99
Ricardo Sinigaglia Arruda

SIMONELLI, D. Working Class Heroes: Rock Music and British society


in the 1960s and 1970s. Plymouth: Lexington Books: 2013.
WALL, M. Led Zeppelin: Quando os gigantes caminhavam sobre a Ter-
ra. São Paulo: Lafonte, 2009.
TOLINSKI, B. Luz e Sombra: Conversas com Jimmy Page. São Paulo:
Globo, 2012.
TOLKIEN, J.R.R. O Hobbit. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
______________. O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. São Pau-
lo: Martins Fontes, 2000.
_____________. O Senhor dos Anéis: As duas torres. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2000.
____________. O Senhor dos Anéis: O retorno do Rei. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2000.
TURNER, Alwyn. Crisis? What Crisis? Britain in the Seventies. Great
Britain: Aurum Press, 2013.
WARNER CHAPPELL MUSIC. Led Zeppelin 4th álbum: Off the re-
cord. Essex: Internationnal Music Publications, s/d.

100
“What is this that stands before me?”:
Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

Rainer Gonçalves Sousa *

Onde estava o Black Sabbath?


A relação existente em o rock e a contracultura, embora pareça
simples de se determinar, demanda grande esforço de percepção, ten-
do em vista as várias pautas e perspectivas abarcadas pelo movimento
contracultural. Na passagem para a década de 1970, principalmente,
nota-se uma dificuldade em estabelecer esses laços, sobretudo por
dois motivos: primeiro, porque a contracultura fora incorporada pela
cultura de massa; e, depois, porque o rock, com o tempo, passou a ser
representado por uma miríade de subgêneros.
Nesse contexto, quer-se abordar nesse texto a obra da banda
britância Black Sabbath e sua relação com os discursos contracultu-
rais. Para tanto, destaca-se, inicialmente, que o Sabbath é definido
não apenas como o primeiro conjunto de heavy metal do mundo, mas
também, desde seu álbum homônimo de estreia – de 13 de feverei-
ro de 1970 – como a banda que rompe com a geração do rock que o
antecede. Definição esta corroborada pelo jornalista Mick Wall que,
em recente biografia da banda, define os quatro garotos de Birmin-
gham como um grupo que possuía um timing “sempre errado”, pois
* Graduado e mestre em História pela Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia (UFG) e coautor do
livro História da Música Popular Brasileira para vestibulares e ENEM. Goiânia: Kelps, 2017.

101
Rainer Gonçalves Sousa

apareceram “muito tarde para o verão do amor, [e] muito cedo para o
genocídio roqueiro do glam” (2014, p. 13).
No que tange à primeira parte dessa definição temporal (“muito
tarde para o verão do amor”), verifica-se não somente uma tentativa
de contraponto da banda em relação à década de 1960, mas também a
existência de uma outra proposta para o rock. O Sabbath não só apare-
ceria depois de Woodstock, mas também seria uma banda que rompe-
ria com as mensagens de esperança e utopia transformadoras daqueles
que, por meio da estética hippie, das drogas letárgicas e do pacifismo,
até então colocavam a contracultura próxima ao rock.
Talvez, em um exercício comparativo, seria possível comungar
dessa noção pelo contraste do próprio Black Sabbath com os vários
artistas que estiveram em Woodstock. O vocal de Ozzy não lembra o
de Joe Cocker. A guitarra de Toni Iommi tem diferenças gritantes com
a de Jimi Hendrix. O baixo de Geezer Butler não contava com o swing
de um Sly Stone. E, apesar de muito vibrante, a bateria de Bill Ward
não segue o ritmo acrobático e festivo de Keith Moon.
Por meio dessas diferenças, a ideia de cisão entre o Sabbath e
os seus antecessores já poderia se sustentar e, desse modo, fortalecer
a noção de que o Black Sabbath não era mais um grupo de rock, mas
a primeira banda de heavy metal da história. No entanto, mesmo que
fosse possível ignorar todos os elementos de ordem musical, ainda as-
sim haveria como chegar à mesma conclusão sobre a banda, observan-
do as capas de seus álbuns, o visual dos integrantes do grupo e as letras
das canções que gravaram.
Os tons sombrios, a suposta bruxa da capa do primeiro disco, os
crucifixos e as menções aterradoras ao Diabo seriam os tais elemen-
tos que configurariam esse outro caminho de entendimento sobre o
Sabbath. Na obra “Heavy Metal – The music and its culture”, Deena
Weinstein faz uma demarcação ainda mais clara dessa perspectiva ao
dizer que o heavy metal

102
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

criou uma ruptura com os ideais da juventude da contracul-


tura. A palavra-chave dos anos 1960, “amor” (LOVE), foi ne-
gada pelo seu binário oposto, “mal” (EVIL). Cores derivadas
dos tons de terra e do arco-íris mudaram para o preto. Roupas
feitas de tecidos naturais deram lugar ao couro. Agrupamentos
heterossexuais perderam espaço para clubes masculinos. A co-
munidade juvenil foi rompida. (p.18, 2000).

Por meio dessas considerações, pode-se entender que o heavy
metal foi uma manifestação não só posterior, mas também oposta ao
que se tinha até a década de 1960, e o Black Sabbath, por sua vez, se-
ria o primeiro representante dessa outra proposta estética e musical.
Uma vez que o conceito de “contracultura” é específico para retratar
determinada época, o heavy metal, mesmo trazendo um caráter críti-
co e contestador, se coloca como uma grande novidade posterior que
também mobilizaria milhares de jovens, mas que estaria fora do arca-
bouço contracultural um dia proposto.
Todavia, por mais que haja uma leitura coerente e clara sobre
esses elementos distintivos entre o heavy metal e a contracultura, é
necessário perceber que uma diferenciação radical não seria possí-
vel. Isto porque, em primeiro lugar, a grande mobilização causada
pela contracultura teria continuidade na década de 1970; e depois
porque, em decorrência disto, é preciso reconhecer que os músicos
do Black Sabbath, em alguma medida, vivenciaram o movimento
sessentista antes de formarem o próprio conjunto, não estando dele
tão distantes mesmo que o choque do novo som viesse a produzir
diferentes reações.
Em certo sentido, seria possível pensar o posicionamento do
Black Sabbath em relação à contracultura tal qual o historiador Johan
Huizinga fez ao pensar as passagens da Idade Média para o período
moderno. Segundo ele,

103
Rainer Gonçalves Sousa

a transição do espírito de uma Idade Média decadente para o


humanismo foi bem menos simples do que somos inclinados
a imaginar. Acostumados a opor o humanismo à Idade Média,
podemos facilmente acreditar que foi necessário desistir de
um para aceitar o outro. Achamos difícil uma mente cultivan-
do as antigas formas de expressão e pensamento do medievo
enquanto aspira, ao mesmo tempo, a sabedoria e a beleza da
Antiguidade. Sim, é isso mesmo que nós devemos imaginar. O
classicismo não veio como uma revelação repentina, ele cres-
ceu entre a vegetação exuberante do pensamento medieval. O
humanismo foi uma forma antes de ser uma inspiração. Por
outro lado, os modos característicos do pensamento medieval
não desapareceram até muito tempo depois do Renascimento.
(p. 307, 1987)

Poder-se-ia aqui até fazer a ressalva de que o trato com perío-


dos tão longos, como a Idade Média e a Idade Moderna, não deveria
ser equiparado ao recorte temporal bem mais modesto que se pre-
tende analisar aqui. Contudo, mesmo reconhecendo a brevidade do
século XX – dado o seu notável volume de transformações – é pos-
sível entender o Black Sabbath enquanto um grupo que, inserido na
passagem das décadas de 1960 e 1970, se notabiliza por um diálogo
profundo com os movimentos de contracultura.

O que foi a contracultura?


Para avançar no problema proposto, busca-se uma definição de
contracultura já oferecida na própria década de 1960, quando o his-
toriador Theodore Roszak publica, em 1969, o livro The Making of a
Counter Culture – Reflections on the Technocratic Society and Its You-
thful Opposition. Na parte introdutória do texto, o autor afirma que a
tecnocracia seria a forma social sobre a qual a juventude, de alguma

104
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

forma ligada aos movimentos de contracultura, passa a se colocar con-


tra os “imperativos inquestionáveis” que, sob o pretexto dos discursos
de “modernização, atualização, racionalização e planejamento”, assu-
mem uma “influência autoritária” nos aspectos mais íntimos da vida,
como o “comportamento sexual, criação dos filhos, saúde mental, re-
creação e etc” (1969, p. 5 e 7).
Colocado desse modo, percebe-se que Theodore assume uma
perspectiva estritamente histórica sobre o conceito, entendendo que
a contracultura é proveniente de um mundo posterior aos abalos da
Segunda Guerra Mundial, em que as demandas de reconstrução do
capitalismo se embasam na tecnocracia para formular uma resposta
segura a uma sociedade marcada pelo trauma desse conflito. Não por
acaso, o autor diz que, a despeito do debate entre liberais e conserva-
dores, ou radicais e reacionários, a tecnocracia passaria desapercebi-
da, já que ela não chega a ser vista como “um fenômeno político em
nossas sociedades industriais avançadas” (ROSZAK,1969, p.9).
Seguindo uma linha de compreensão distinta do mesmo concei-
to, Ken Goffman e Dan Joy (2007, p.4) acreditam que a contracultura
não pode ser vista como uma experiência histórica específica, ligada a
alguma geração ou a algum contexto. Deslocando o conceito do tem-
po, os autores afirmam que a contracultura

floresce sempre e onde quer que alguns membros de uma socie-


dade escolham estilos de vida, expressões artísticas e formas de
pensamento e comportamento que sinceramente incorporam
o antigo axioma segundo o qual a única verdadeira constante é
a própria mudança(...) é um fenômeno perene, provavelmente
tão velho quanto a civilização e possivelmente tão velho quanto
a própria cultura

Nesse sentido, é também interessante apontar como a obra “O


que é contracultura”, de Carlos Alberto Messeder Pereira, detecta as

105
Rainer Gonçalves Sousa

distintas compreensões do mesmo conceito. Mesmo sendo uma obra


com pretensões de sintetizar brevemente o assunto, faz tal diagnóstico
de modo muito claro ao dizer que

De um lado, o termo contracultura pode se referir ao conjun-


to de movimentos de rebelião da juventude de que falávamos
anteriormente e que marcaram os anos 60(...) Trata-se, então,
de um fenômeno datado e situado historicamente e que, em-
bora muito próximo de nós, já faz parte do passado(...) De
outro lado, o mesmo termo pode também se referir a alguma
coisa mais geral, mais abstrata, um certo espírito, um certo
modo de contestação, de enfrentamento da ordem vigente, de
caráter profundamente radical em face da cultura convencio-
nal (1992, p. 14)

Ao destacar a presença desses dois tipos de definição sobre o


que é a contracultura, nota-se que a sua orientação ahistórica usa uma
série de termos para definir a validade dos seus argumentos. Nesse
sentido, afirma que há “sempre” uma contracultura latente em algum
tipo de cultura, a que se segue o uso de termos como “contestação”,
“enfrentamento” e “mudança”.
Na medida em que esses termos são transformados em ações
práticas ou em novos discursos, percebe-se que “contestar”, “enfren-
tar” e “mudar” abrem caminho para um infinito conjunto de soluções.
Ou seja, uma definição trascendente da contracultura acaba se base-
ando em premissas extremamente vagas, que não chegam a contabili-
zar que as reações a um determinado tipo de cultura podem se exaurir
ao longo do tempo. Além disso, cabe destacar que, mesmo no auge
de sua própria existência, tais movimentos de oposição podem sair
em defesa da retomada de valores que não abrem caminho para uma
ruptura, mas para a conservação de um status quo posto em risco em
determinado período histórico.

106
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

Colocadas essas questões, acredita-se que o recorte histórico


para a contracultura cabe como uma referência ao mesmo tempo ne-
cessária, mas que também não encerra a sua própria existência em
uma data. Partindo da premissa que a contracultura se desenvolve por
meio de um conjunto de temas e manifestações, próprios da década de
1960, pode-se fazer avanços e recuos temporais que demonstram: 1)
o diálogo desse movimento com tempos anteriores; 2) a reverberação
dessas ideias em outras épocas; 3) o esvaziamento de seus conteúdos
originais com o decorrer dos anos.
Em uma discussão sobre o mesmo tema, o autor James E. Pero-
ne retoma o argumento dos historiadores Peter Braunstein e Micha-
el Doyle, que apontam um processo de “deshistoricização” do termo
contracultura. Segundo eles, o termo passa por um processo de po-
pularização que acaba por colocar a contracultura em um nebuloso
conjunto de acontecimentos que, desprovidos de um lastro com seu
contexto original, se transforma mais em “referências abreviadas, do
que atalhos para o pensamento, e finalmente, em bordões de comer-
cial da Pepsi” (2004, p.7).
Para dar exemplo desse tipo de situação, Perone aponta que,
no momento em que aquele livro era produzido, a canção “American
Woman”, considerada uma das mais importantes canções contrárias
ao conflito da Guerra do Vietnã, é sistematicamente utilizada em co-
merciais de moda. Do mesmo modo, “London Calling”, do grupo The
Clash – um dos ícones do punk rock – aparece como canção de fundo
para uma propaganda de carros da Jaguar. Por meio desses casos, Pe-
rone assinala que a partir do momento que “as ramificações sociopo-
líticas contraculturais de um trabalho artístico perderam seu impacto
com o tempo, o trabalho artístico pôde se tornar muito mais parte de
uma cultura popular genérica” (2004, p.7).
Estabelecida essa última compreensão sobre a contracultura,
acredita-se que a carreira do Black Sabbath pode ser analisada mediante

107
Rainer Gonçalves Sousa

as seguintes questões: o Black Sabbath possui alguma proposta de rup-


tura com a contracultura?; a estética soturna e as imagens de terror as-
sociadas à banda são suficientes para justificar tal ruptura?; e, por fim,
qual seria o universo estético e temático que aproximaria a banda aos
movimentos de contracultura?

Black Sabbath e a contracultura: um primeiro caminho


Uma primeira tentativa de estabelecimento dessa relação entre
o Black Sabbath e o movimento contracultural pode ser observada na
obra “Music of the Counterculture Era” de James E. Perone. No referi-
do livro, ele trabalha com um recorte temporal estratégico, escolhen-
do o período entre 1960 – marcado pelo protesto de quatro estudantes
negros em Greensboro – e o ano de 1975, que coincide com o encer-
ramento da Guerra do Vietnã (2004, p. ix).
Crê-se que o seu recorte temporal é estratégico, visto que o au-
tor acredita que o trabalho específico com a música de natureza con-
tracultural teria uma ressonância temporal maior. Segundo Perone,
as canções dos movimentos trabalhistas das décadas de 1930 e 1940,
dos movimentos antiescravagistas do meio do século XIX, bem como
do movimento punk e do rap, localizados entre as décadas de 1970 e
1980, são manifestações precedentes e reminiscentes do período em
que ele desenvolve todo seu trabalho de pesquisa.
Feita tal determinação, o autor realiza a categorização das can-
ções a serem trabalhadas ao longo dos quinze anos que aborda. Op-
tando por uma organização temática, ele divide as canções em quatro
grandes grupos: “Música e o Movimento Anti-Guerra”, “Música e os
Oprimidos”, “Música e as Políticas Radicais” e “Música e Outros Pro-
blemas Sociais e Estilos de Vida”.
No que tange aos britânicos do Black Sabbath, ele os inse-
re na primeira categoria a ser trabalhada no livro: “Música e o

108
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

Movimento Anti-Guerra”. Para exemplificar a relação da banda


com o tema, dedica atenção especial à canção “War Pigs”, do álbum
Black Sabbath, gravado em 1970. Em sua análise, ele frisa que essa
música formula uma narrativa em que os generais de guerra seriam
bruxas, magos ou o próprio Satã (2004, p.60).
A partir da interpretação da guerra como fruto de um processo
de alienação, políticos e militares seriam os responsáveis pela mani-
pulação, em favor de seus interesses restritos, de uma massa de pes-
soas que morrem nos campos de guerra. Ao fim, construindo uma
reviravolta para a situação apresentada, a letra de War Pigs aborda a
chegada do próprio apocalipse bíblico. Nele, os políticos e militares
– os “porcos da guerra” – seriam punidos por Deus e sumariamente
condenados ao domínio satânico (2004, p. 60).
Mediante esses elementos de terror e violência, o próprio Pe-
rone faz questão de destacar que o Black Sabbath seria uma banda
indispensável para se compreender os elementos fundamentais que
viriam a definir o heavy metal enquanto gênero musical derivado do
rock (2004, p. 60). Com isso, o autor faz uma leitura que concilia o he-
avy metal com a própria contracultura. Por outro lado, percebe-se que
seu foco se acentua claramente no conteúdo das canções, colocando
em segundo plano as questões musicais e performáticas da banda.
Essa perspectiva, de fato, abraça a própria compreensão que o
autor faz do desenvolvimento da contracultura. Ele acredita, tal qual o
historiador Terry H. Anderson, que esse movimento pode ser definido
por meio de diferentes termos, não possuindo “organizações, líderes,
ideologias ou causas sociais específicas” (2004, p. 1). Mais à frente,
retoma essa perspectiva definindo a contracultura como uma “coleção
de causas”, que apesar de alguns esforços de definição mais restritiva,
era no fim das contas “muito amorfa” (2004, p. 44).

109
Rainer Gonçalves Sousa

Diante de uma coleção de causas bastante variada e apresentada


de um modo não muito pré-definido, verifica-se a imposição de um
enorme desafio a quem pretende mapear com quais temas contracul-
turais os grupos musicais dessa época dialogaram ao longo de suas
trajetórias. A guerra, o preconceito racial, a defesa de minorias, o uso
de drogas ou a busca por experiências religiosas não-ocidentais até
se destacaram com maior força em determinados grupos musicais e
cantores, mas jamais estabeleceram uma limitação temática para eles.
Para respaldar essa perspectiva, pode-se recorrer à análise da ex-
tensa discografia de bandas usualmente ligadas à contracultura, como
os Beatles ou os Rolling Stones. No entanto, dado o recorte escolhido
neste artigo, é possível constituir essa mesma percepção com a banda
incialmente colocada “para fora” dos movimentos de contracultura,
ou seja, o próprio Black Sabbath.
Para empreender essa análise, os oito primeiros discos da banda
serão utilizados, cobrindo um período que vai de 1970 até o ano de
1978. Em ordem cronológica, busca-se a análise de algumas das can-
ções gravadas nos discos: “Black Sabbath” (1970), “Paranoid” (1970),
“Master of Reality” (1971), “Volume 4” (1972), “Sabbath Bloody Sabba-
th” (1973), “Sabotage” (1975), “Technical Ecstasy” (1976) e “Never Say
Die” (1978).
Na canção “Wicked Word” (1970), tem-se uma recusa geral so-
bre um conjunto de situações que transformariam o mundo em um
lugar ruim. Para além de uma desilusão com a realidade presente, a
canção descreve situações contraditórias que reforçam sua negativida-
de. Em uma primeira referência à própria Guerra do Vietnã (“pessoas
do outro lado do mar estão contando os mortos”), a letra contrapõe a
dimensão da violência do conflito com o fato de que as pessoas conti-
nuam “indo para o trabalho para ganhar seu próprio sustento”.

110
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

Continuando na construção desses opostos, ele se desloca para


a esfera do campo político, dizendo que as determinações dos gover-
nantes são importantes para “escolher quem deve morrer”. Isso por-
que, ao mesmo tempo em que eles são capazes de “colocar um ho-
mem na lua facilmente”, há uma série de pessoas na Terra “morrendo
de velhas doenças”. Pautados por tais situações de contraste, pode-se
perceber que esta canção já se coloca em espectro bastante amplo da
própria contracultura, quando a consideramos sob a perspectiva de
um movimento originário da própria recusa da noção de progresso
que pautaria as sociedades tecnocráticas.
Dada a recusa do modelo imposto para a adoção de um outro
estilo de vida, o Black Sabbath também ficou conhecido pela compo-
sição de canções que tematizavam o consumo de drogas, que inclu-
sive fora bastante recorrente entre todos os membros da banda. No
período aqui definido, destacam-se duas canções: “Sweet Leaf” (1971)
e “Snowblind” (1972), ambas contendo a combinação de um relato ex-
periencial imbricado por metáforas e, ao mesmo tempo, uma defesa
positiva sobre o consumo de maconha e cocaína.
Na primeira canção, o uso da “doce folha” é equiparado a uma
experiência amorosa. Se isolada a primeira estrofe, pode-se facilmente
afirmar que se trata de uma canção romântica que descreve a alegria e
o arrebatamento de um encontro inesperado. Afinal, quem não teria
essa impressão ao ouvir os versos: “Quando te encontrei pela primeira
vez, eu não percebi/ Não posso te esquecer, para a sua surpresa/ Você
me apresentou à minha mente/ E me deixou esperando, por você e a
sua bondade/ Eu te amo, você sabe disso!” ?
Já em “Snowblind”, o uso do discurso romântico dá lugar a uma
sequência de sensações descritas. Entre elas, o uso da cocaína se co-
loca como uma felicidade que se introduz pelas veias (“Sentindo-me

111
Rainer Gonçalves Sousa

feliz em minhas veias”), fazendo sentir “alguma coisa explodindo na


minha cabeça”. A partir disso, projeções de imagens se alternam com
digressões que seriam ativadas pelo efeito da droga, de forma que,
mesmo sentido os “olhos cegos”, ele se diz capaz de ver “flocos de neve
brilhando nas árvores”. Logo depois, pede para que “deixem o sol do
inverno brilhar”, “deixe-me sentir o frio da madrugada” e “encha meus
sonhos com flocos de neve”.
Ao mesmo tempo que constroem imagens positivas sobre o
uso de ambas as drogas, tanto “Sweat Leaf” como “Snowblind”, tam-
bém partem para uma crítica sobre as pessoas que desconhecem e
reprovam o uso de entorpecentes. Na primeira, destaca que as pes-
soas que se recusam a experimentar maconha são as mesmas que
“te entristecem e te excluem”. Já na segunda, temos uma reprovação
mais agressiva, já que o usuário de cocaína descrito na canção pede
que estes “não digam que isto está me fazendo mal”, pois “vocês são
os verdadeiros perdedores”. Ao fim, reafirma sua escolha ao dizer
que “é aqui onde eu sinto e pertenço”.
Diante desses dois documentos, percebe-se que o Black Sabbath
também destacou o uso das drogas como meio de construção de um
outro modo de pertencimento no mundo, buscando um estilo de vida
visivelmente recusado pela maioria das pessoas. Nesse aspecto, cabe
destacar que:

(...) o uso de drogas não foi um pré-requisito para participação


no “movimento” [da contracultura], ele foi disseminado e visto
como uma forma de rebelião contra a sociedade conservadora,
ganhando quase uma significação religiosa pela busca de um
sentido na vida, e uma via de ruptura para uma mudança revo-
lucionária. (PERONE, 2004, p. 112)

112
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

A sonoridade do Sabbath e a contracultura


Em outra esfera que verticaliza a relação da banda com a con-
tracultura, acredita-se que as opções musicais do Black Sabbath tam-
bém devem ser colocadas em destaque no desenrolar dessa análise.
Em sua primeira década, o rock foi um fenômeno musical que se des-
tacou como o principal estilo responsável pela consolidação daquilo
que muitos autores viriam a definir como a ascensão de uma chamada
“cultura jovem”.
Em suas considerações sobre o desenvolvimento do gênero, o
historiador Paul Friedlander destaca que, em seus primórdios, o rock
and roll

não era musicalmente complexo – ele continha elementos de


rhythm and blues, blues e gospel misturados com quantidades
variadas de country e rock(...) Havia uma acentuação nos tem-
pos dois e quatro dos compassos (um-DOIS-três-QUATRO)
(...) Os jovens reagiam emocionalmente à música, movendo
seus corpos em vibrações que acompanhavam o movimento
dos artistas. As letras contavam histórias adolescentes sobre
amor, dança, música e sexo – somente histórias simples sobre
o cotidiano (2003, p. 46).

Nesta descrição, o autor realiza uma caracterização em que de-


fende uma ideia de simplicidade estética e temática desse gênero mu-
sical. De fato, essa percepção não se restringe à interpretação de Frie-
dlander, já que paralelamente o folk era também entendido como um
tipo de canção orientado por um universo musical e temático oposto.
Apesar de não ser uma leitura unânime, muitos dos fãs desse outro gê-
nero musical viam que o diálogo com a canção folclórica, a predomi-
nância dos instrumentos acústicos e as letras politicamente engajadas

113
Rainer Gonçalves Sousa

colocavam o folk como um gênero musical “sério” e o rock’n’roll en-


quanto uma canção de mero entretenimento.
Contudo, essa cisão parcial e aparente acabou perdendo sua for-
ça ao longo da década de 1960. Nesse período, a percepção do rock
como um gênero dançante, adolescente ou padronizado, deu lugar a
um conjunto de novos grupos que o entendiam como uma forma ar-
tística ligada à inovação e ao experimentalismo. Ao mesmo tempo, o
universo de letras inicialmente pueril passou a se ligar aos problemas
que já foram aqui sistematizados por Perone.
Sobre o aspecto musical, Peter Wicke enfatiza que, ao fim da
década de 1960, um conjunto bastante significativo de bandas de
rock passou a realizar uma expansão das fronteiras que esteticamen-
te definiriam o rock enquanto gênero musical até aquele momento.
Empregando exemplos musicais dos Beatles, Rolling Stones e Pink
Floyd, destaca que as canções desses artistas, ao mesmo tempo que
ganharam importante projeção, traziam o emprego de colagens mu-
sicais e a aproximação com gêneros não ligados ao espectro de influ-
ências fundamentais do rock (1990, p. 92).
Colocada a questão do experimentalismo, percebe-se uma con-
vergência desse outro modo de se fazer rock com debates de grande
relevância ligados à época. Afinal, a busca por um outro modo de vida
abria um campo de possibilidades de ação que ia desde a formação de
comunidades rurais interessadas em romper com o ordenamento eco-
nômico capitalista, passando pela defesa de relações afetivas abertas e
chegando até a experiência com diferentes tipos de drogas. Posto isso,
a busca por outros modos de vida também teria seu alcance na própria
forma de se pensar outras possibilidades de fazer rock naquele tempo.
Nesse ponto, a busca por bases musicais ligadas ao blues e o
emprego de distorções de guitarra, executadas em alto volume, são
dois dos elementos que marcam a sonoridade produzida pelo Black

114
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

Sabbath ao longo da década de 1970. Isso chega a ser reiterado pela


própria crítica musical da época, na qual se destaca um artigo de
Gordon Fletcher, escrito para a revista Rolling Stones, afirmando
que o grupo se relacionava com os problemas da década de 1970 –
descrita como “impessoal” – “tanto quanto os bluesman do Delta
e seus seguidores em Chicago se relacionavam com o seu tempo”
(WALL, p. 109, 2014).
Apesar do conhecimento de que essa comparação entre tempos
históricos e cenas musicais distintas está acompanhada por uma série
de problemas, percebe-se que a ênfase inicial nesses dois elementos
musicais é sistematicamente reiterada em uma extensa gama de mate-
riais interessados em definir as origens do heavy metal enquanto um
gênero musical. Assim como o rock, o metal teria um interesse especial
pelo blues, mas acrescentaria a ele uma gama de elementos sonoros
considerados agressivos e poderosos, que poderiam ser claramente
notados em outros conjuntos de grande sucesso, como o Led Zeppelin
e o Deep Purple.
Além desses elementos, há na guitarra a execução recorrente
dos chamados powerchords e do uso de um intervalo musical chama-
do de trítono. Segundo Walser, os powerchords “produzem sinais po-
derosos que ficam sempre abaixo da frequência sonora que é enviada
aos amplificadores” (1993, p. 43). Em contrapartida, se intervalados
no modo do trítono, esses mesmos acordes produzem uma disso-
nância sonora capaz de sugerir uma ideia de instabilidade e irreso-
lução, que promoveria uma sensação de desconforto popularmente
chamada, desde a Idade Média, de “diabolus in musica” (GROUT;
PALISCA, 1988, p.99, 747).
Esses elementos dados como primordiais ao heavy metal são
claramente identificáveis nas canções gravadas pelo Black Sabbath.
Já na primeira canção do disco de estreia o riff da canção é criado

115
Rainer Gonçalves Sousa

como o somatório desses elementos (powerchords + trítono), o que


vem a marcar uma outra série de canções que também se destacam na
trajetória do Sabbath. Iron Man (1970), Into the void (1971), Sabbra
Cadabra (1973), Symptom of the Universe (1975), Dirty Women (1976)
e Breakout (1978) seriam alguns dos exemplos musicais que utilizam
essa mesma proposta nos primeiros segundos da canção.
Dada a repetição dessa característica, entende-se de que modo
as primeiras tentativas de interpretação sobre a música proposta pelo
Black Sabbath estariam em contraponto com alguns dos elementos
que caracterizavam a contracultura na década anterior. Segundo Ja-
notti Jr., essa cisão representaria uma “fragmentação, onde o pensa-
mento utópico se esfacela”, produzindo o que ele chama de “destroços
de 1968, em que a união hippie é substituída por uma profusão de
estilos dentro do rock” (1998, p. 99).
No entanto, questiona-se o que seria esta união hippie, pois, as-
sim como não se pode definir que o movimento hippie sistematize as
questões políticas de uma época – dada a existência de outros movi-
mentos com perspectivas e ações completamente distintas –, também
não há como afirmar que em termos musicais, ou estéticos, ele tenha
conseguido abarcar o que os músicos, intérpretes e bandas do período
contracultural produziam.
Na esteira desse questionamento, verifica-se que algumas can-
ções do Black Sabbath possuem outros conjuntos de características
que podem afastar a banda da rigidez classificatória que a define como
a primeira banda de heavy metal da história. Logo, não há como ates-
tar que o grupo intencionalmente se contrapunha ao que musical-
mente marcou a década de 1960, visto que nenhum dos integrantes da
banda jamais alegou que o desenvolvimento de sua sonoridade tenha
advindo do abandono ou contraponto daquilo que marcou o som da
geração “paz e amor”.

116
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

Em uma matéria sobre o uso do trítono e suas relações com o


desenvolvimento do heavy metal, o jornalista Finlo Roher traz o de-
poimento de Toni Iommi para debater a frequente presença desse in-
tervalo na trajetória do gênero musical. Nesta entrevista, o guitarrista
afirma que quando começou a elaborar as primeiras composições para
o Black Sabbath a presença do trítono era “apenas algo que parecia
soar da maneira correta(...)[e que] não pensava que iria conseguir fa-
zer uma música demoníaca” (2006).
A partir desta afirmação, percebe-se que a busca por um outro
tipo de elemento estético-musical, mesmo que passível de uma análise
em oposição ao que era feito até a década de 1960, não sugere que os
integrantes da banda estivessem interessados em romper com as ex-
periências musicais que antecederam o início de suas carreiras. Entre
elas, podemos destacar a adoção de técnicas de estúdio nada usuais,
“com ênfase em efeitos especiais, com vozes e instrumentos eletroni-
camente alterados e trocas rápidas entre os canais estéreo” (PERONE,
2004, p. 24).
Desse modo, em “Planet Caravan”, do álbum “Paranoid” (1970),
vê-se um exemplo bastante próximo desse conjunto de ações expe-
rimentais que passaram a ser usuais ao próprio Black Sabbath: em
termos sonoros, a base melódica tem uma sonoridade característica
das baladas românticas e se completa ao fim com um solo de guitarra
aberto, bastante próximo das possibilidades de improvisação do jazz;
os vocais de Ozzy Osbourne, marcados por uma forte reverberação e
uma cadência muito suave descrevem uma viagem espacial psicodéli-
ca em que “a lua, entre árvores prateadas, amanhece em paz” e a terra
é “uma chama púrpura, de neblina safira, sempre em órbita”.
No álbum “Sabbath Bloody Sabbath” outra interessante can-
ção em que a psicodelia e a agressividade se combinam em um
resultado um tanto quanto peculiar é “Who are you?”. Enquanto a

117
Rainer Gonçalves Sousa

letra retoma uma questão de ordem política ao encenar a conversa


entre um líder e um terceiro que percebe os seus engodos, chaman-
do-o de “Grande Irmão” (em direta referência ao romance “1984”
de George Orwell) em termos musicais, a canção se vale do uso do
trítono, mas não da forma habitual, executado por uma guitarra
com volume alto. Tanto na introdução, quanto em outras passagens
da faixa, o trítono surge a partir da utilização de um teclado moog,
que atua como um sintetizador sonoro que produz sons eletroni-
camente modificados, cuja execução é marcada por notas extensas
e sobrepostas, de forma a produzir uma sonoridade exótica e im-
possível de ser alcançada em qualquer outro instrumento utilizado
pelas bandas de heavy metal.
De fato, o uso do moog e do órgão hammond tornou-se a grande
marca musical dos subgêneros do rock que costumeiramente são re-
lacionados ao experimentalismo. A título de curiosidade, destaca-se
que, para a gravação do disco “Sabbath Bloody Sabbath”, a banda con-
vocou o tecladista Rick Wakeman para realizar a execução desses ins-
trumentos. Wakeman teve boa parte de sua carreira ligada à banda de
rock progressivo Yes e ao desenvolvimento de uma carreira-solo corri-
queiramente ligada à composição de discos temáticos tendo como fim
a construção de narrativas fantásticas.
Historicamente, cabe destacar que o emprego desse tipo de re-
curso já ocorria ao longo da década de 1960, principalmente na reali-
zação de trilhas sonoras para comerciais. Um grande entusiasta dessa
prática foi o músico Raymond Scott (1908-1994), responsável pela
criação de uma empresa de pesquisas interessada no uso eletrônico
da música, chamada “Designers and Manufacturers of Electronic Mu-
sic and Musique Concrète Devices and Systems” (Criadores e Produto-
res de Música Eletrônica e Música Concreta Dispositivos e Sistemas)
(HOLMES, 2016, p. 210).

118
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

Particularmente, Scott se dedicou a fazer o uso desses instru-


mentos musicais e da música eletrônica em um sentido distinto da-
quele que era até então empregado. Segundo Thimothy D. Taylor,

por um longo período após o surgimento da música eletrônica


em comerciais, nos anos 1950 e nos anos 1960, os compositores
de música para comercial tiveram que confrontar a percepção
do público desse tipo de música como estranha, ideal apenas
para representar o irreal e o horrível (2012, p. 389)

No entanto, Scott tinha como um dos seus principais projetos a


reconstrução da percepção do público sobre a música eletrônica, que,
para ele, poderia provocar outras percepções de humor que superavam
a já consolidada sensação de estranheza. Ao invés da costumeira refe-
rência do moog como um instrumento ligado a coisas como “guerra
nuclear” ou “música do espaço sideral”, Scott desejava que o som ele-
trônico pudesse vir a realçar a ideia de que um tipo de “som especial”
se projetasse ao produto anunciado, no rádio ou na TV (2012, p. 392).
No caso da referida faixa do Black Sabbath, e para muitas outras
bandas, a estranheza ou a ideia de projeção para realidades extraterre-
nas era um dado que, proveniente da cultura de massa da época, seria
valorizado no processo composicional da canção. Sendo assim, em
“Who are you?”, percebe-se que a execução do trítono a partir do mini
moog, combinado com a sonoridade do órgão hammond, conseguem
representar o medo e à estranheza presentes em sua narrativa.

As imagens teratológicas e os seus sentidos


Feitas essas considerações, resta debater se as imagens de hor-
ror ou as narrativas distópicas da banda realmente estavam subme-
tidas a um projeto estético e temático oposto ao da contracultura.

119
Rainer Gonçalves Sousa

Ainda que definidoras de uma singularidade própria do que viria a


ser o próprio heavy metal e, mesmo sendo uma banda que explicita a
relação do diabo com a música para uma dimensão também visual,
pode-se entender que a busca pelas forças ocultas ou contrárias ao
cristianismo também se vincula ao projeto de ruptura e crítica ob-
servado desde a década de 1950 e 1960.
No tocante a essa seara específica que marca a trajetória da
banda inglesa, há um conjunto relativamente farto de interpretações
que explicam o teratológico como característica fundamental não
só para o Black Sabbath, como para uma série de outras bandas que
– para além do recorte aqui trabalhado – também terão o hábito de
falar de cenas macabras, rituais de ocultismo, da aterradora aparição
do demônio ou de criaturas que provocam medo.
Em termos gerais, essas imagens são sintetizadas pela teratolo-
gia, conceito que engloba toda e qualquer imagem ou descrição em
que a anormalidade, o horror ou o exagero são utilizados. Nesse sen-
tido, não só a ideia do grotesco, mas a da monstruosidade e do demo-
níaco também estão inclusas. No caso específico do Black Sabbath, a
aproximação com esse universo se deu principalmente pelo interes-
se de Geezer Butler pelas narrativas de horror ficcional como as do
escritor Dennis Wheatley ou dos filmes estrelados por Boris Karloff
(COPE, 2010, pg. 34).
Para além das preferências pessoais da banda, salienta-se que
o período de produção musical do Black Sabbath também foi mar-
cado por uma série de eventos em que o interesse pelo oculto e o
terror tiveram grande repercussão midiática. Entre eles, destacam-
-se os assassinatos cometidos por Charles Manson, relacionados a
uma apropriação distorcida da canção “Helter Skelter” dos Beatles;
a fundação da Igreja de Satã, primeira instituição abertamente sa-
tânica do mundo, liderada por Anton LaVey; e o sucesso de alguns

120
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

blockbusters de terror como “O bebê de Rosemary” (1968) e “O


exorcista” (1973). (ibid, ibidem, p. 83).
Na construção dessa relação entre o Black Sabbath com um
contexto de grande relevância em que se destaca a estética do terror
ou a temática satânica, pode-se dizer que a banda faz uma apropria-
ção de fenômenos culturais massivos para desenvolver um aspecto
temático e estético fundamental para ela. Nas bandas dos anos 1960
há também essa apropriação deste universo pop: como os Beatles
e as diversas referências a celebridades mundiais na capa de “Sgt.
Pepper’s Lonely Hearts Club Band” (1967); ou os Rolling Stones, com
a menção às várias “informações inúteis” transmitidas pelo rádio em
“I can’t get no (Satisfaction)” (1965).
Se esse elemento de uso da cultura de massa foi responsável
por aproximar o Black Sabbath da contracultura das bandas citadas
acima, percebe-se um outro ponto de distanciamento no que tan-
ge às narrativas envolvendo monstros, demônios e situações horror.
Não raro, as histórias que emolduram a formação das imagens tera-
tológicas são costumeiramente ligadas à celebração de algum tipo de
distopia. No caso do quarteto de Birmingham, a ascensão de alguma
espécie de domínio diabólico ou a destruição do mundo aparecem
em diversas de suas canções gravadas.
Por sua notável relevância, as narrativas distópicas e, ao mesmo
tempo, teratológicas das canções do Sabbath foram analisadas de for-
mas distintas na literatura disponível sobre o assunto. Ao debater o que
define como “dimensão verbal” do heavy metal, Deena Weinstein relata
que a alusão a termos como “anjo”, “inferno”, “sagrado” e “santo” con-
gregam entre si uma evocação a figuras de poder, o “poder das forças do
caos e o poder de conjurar e jogar com essas forças” (2000, p. 33).
Assim, o autor constrói duas grandes categorias que tipificam
as letras de heavy metal: de um lado, as letras que possuem “temas

121
Rainer Gonçalves Sousa

dionisíacos”; e de outro, as que trazem “temas caóticos”. Sobre essa últi-


ma categoria, ele explica que as canções trazem um “forte envolvimento
emocional com tudo que desafia a ordem e a hegemonia da vida cotidia-
na: monstros, o submundo e o inferno, o grotesco e o horrível, desastres,
mutilação, carnificina, injustiça, morte e rebelião” (2000, p. 35).
Por sua vez, em uma análise das várias dimensões estéticas que
envolvem o heavy metal, Robert Walser destaca que as narrativas de po-
der entram na seara das relações de gênero, afirmando já no início do
seu texto que o metal reafirma uma longa tradição que confunde poder
com patriarcalismo (1993, p.1). O autor desenvolve essa tese mostrando
que o poder da figura masculina e o controle da figura feminina – en-
quanto elemento ameaçador desse poder – aparece em diversas mani-
festações ligadas ao gênero musical. Especificamente, talvez tentando
mostrar que tal conflito está presente desde a gênese do heavy metal,
Walser faz menção direta às canções “Paranoid” e “Iron Man”, presentes
no segundo álbum gravado pelo Black Sabbath (p. 116, 1993)1.
Contudo, ao fazer considerações sobre o misticismo e o horror
nas canções do heavy metal, Robert Walser expande as suas possibili-
dades de compreensão trazendo dois interessantes apontamentos. Em
um primeiro momento, ele afirma que “as letras estão menos preo-
cupadas com a celebração de rituais satânicos do que com a explo-
ração das tensões entre realidade e sonho, o mal e o poder.” (1993,
p. 152). Além disso, o autor destaca que “o heavy metal não pode ser
simplesmente descartado como estranho e aberrante; a significância
Nas duas canções citadas como exemplo, devemos levar em consideração que o autor não faz ne-
1

nhum tipo de análise mais detida ao conteúdo das mesmas. Sendo assim, cabe aqui frisar que, mesmo
caracterizando inicialmente uma figura masculina que termina com sua mulher, “Paranoid” fala de
um sujeito também desconexo e incompreendido em diversas situações de sua vida, mostrando-se
visivelmente fragilizado por essa constante inadequação de si para com o mundo. Já em “Iron man”,
cabe retomar o diálogo das bandas desse período com ícones presentes na cultura pop do seu tempo.
Nesse caso, vale salientar que a canção pode ter sofrido a influência do personagem criado por Stan Lee
e Larry Lieber, dois aclamados autores de história em quadrinhos, no ano de 1963. Em sua origem, o
Iron Man aparece como um herói de comportamento moral dúbio e originado em um conflito que se
ambienta no Vietnã, luga de conflitor referenciado em outras canções da banda.

122
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

das imagens de horror, loucura e violência no heavy metal estão inti-


mamente relacionadas com as contradições fundamentais de seu mo-
mento histórico” (p. 162, 1993).
No que tange a esse período, Walser afirma que ele está ligado
“ao lado negro do estado de segurança do capitalismo moderno: guer-
ra, ganância, patriarcado, subserviência e controle. As letras de muitas
bandas de heavy metal articulam uma variedade de fantasias de em-
poderamento nesse contexto” (1993, p. 163). De tal modo, essas ima-
gens teratológicas não podem ser vistas como um mero escapismo, se
dirigindo a uma realidade fantástica com o interesse de negar os pro-
blemas que permeiam o tempo em que essas bandas estão inseridas.
Trabalhando de modo específico com a trajetória do Black Sa-
bbath, Andrew L. Cope entende que, mesmo excluindo a figura femi-
nina da grande maioria de suas composições, ao falar sobre “Satã, o
oculto, o sobrenatural e fenômenos relacionados à morte, os horrores
da guerra, o bem contra o mal, pesadelos e monstros/criaturas fantás-
ticas”, a banda constrói “uma imagem quase religiosa que sugere um
ethos anticristão (e, portanto, anti-hegemônico)” (2010, p. 82-83).
Vê-se que a interpretação de Cope abre caminho para um novo
diálogo com os “outros estilos de vida” trabalhados como categoria de
música contracultural por James E. Perone. Além do consumo de dro-
gas, a busca por um outro modo de vida também advém de uma crítica
à tradição cristã ocidental, que tem variações que vão desde a crítica
dos valores que filosoficamente constroem o cristianismo até a busca de
tradições religiosas orientais. De forma concomitante, desde a década
de 1960, existem artistas que declaram publicamente a adoção de outras
religiões, promovendo seus valores na concepção de letras e/ou chegam
a inserir instrumentos orientais na composição de algumas músicas.
Para além dessas questões de ordem religiosa e patriarcal, a
instabilidade gerada pelas imagens teratológicas também remete à

123
Rainer Gonçalves Sousa

possibilidade de um discurso crítico, baseado na utilização de seres


aberrantes e das narrativas de horror na construção de uma série de ale-
gorias. No sentido a ser aqui empregado, cabe esclarecer que as alegorias
não são definidas pela a utilização de um leitor implícito das canções do
Black Sabbath ou de outros grupos musicais. Na verdade, a percepção
de um sentido alegórico se define previamente por uma distinção ne-
cessária entre a alegoria e a percepção de uma narrativa fantástica.
Segundo Tzvetan Todorov, a percepção do sentido alegórico se
organiza por meio da separação de dois elementos fundamentais. O
primeiro seria o entendimento de que a alegoria abre caminho para
a existência, ao menos, de dois sentidos para um mesmo texto. E, em
segundo lugar, que a existência de um duplo sentido para esse texto
seria evidenciada nele próprio. Sendo assim, a alegoria não poderia
depender “da interpretação (arbitrária ou não) de um leitor qualquer”
(1980, p. 35).
Por meio dessa definição, verifica-se que algumas das imagens
teratológicas presentes nas letras do Black Sabbath assumem justa-
mente o sentido alegórico, sendo então possível notar que alguns de-
mônios, e sua consequente ação aterradora, são um meio para se falar
da própria ação humana. Na já citada “War Pigs” (1970), o sentido
alegórico das imagens teratológicas se verifica quando os generais são
equiparados a “bruxas presentes em uma missa negra”. Na parte final
da canção, os “porcos da guerra” que disputam o poder entre si nada
mais são do que os militares e os políticos que se envolveram no mo-
vimento de ruína e destruição.
Em “Lord of this world” (1971), o mundo surge como um lugar
dominado por uma figura diabólica. O homem não consegue se encon-
trar consigo mesmo, sendo incapaz de “encontrar a chave que caiba na
fechadura de seu coração” e, mesmo tendo a alma “doente”, jamais “en-
contrará uma cura”. Dada essa situação de agonia, a voz que descreve a

124
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

narrativa utiliza a figura divina para afirmar que o mundo foi feito “por
alguém lá de cima”, mas que “você escolheu o caminho do mal, ao invés
do amor” e, assim, “você me fez mestre do mundo onde você existe”.
Nessa canção, o dualismo entre “Deus” e o “Diabo” entra em
jogo para, mais uma vez, defender a ideia de que a tormenta e a agonia
do homem são frutos de suas próprias ações concretas. Apesar de falar
de um mundo criado por um ser celestial, constrói um cenário distó-
pico não em um terceiro lugar, em um inferno, mas no próprio mundo
em que o homem desenvolve as suas ações. O dilema da existência de
seres sobrenaturais ganha uma posição secundária, dando destaque
a um cenário de dor e desespero induzido pela figura humana, pelo
sujeito que se volta ao “Senhor desse mundo” (ou seja, o diabo), toda
vez que expõe “sua ganância mundana e orgulho”2.
Já na canção “Under the sun/Every day comes and goes” (1972),
as imagens de horror e a distopia são colocadas em contraponto ao
discurso salvacionista oferecido pelas instituições políticas e religio-
sas. Ainda no começo da canção, fortemente marcada por um riff
composto em trítono, a letra traz uma negação de qualquer tipo de
explicação religiosa do mundo, seja aquela oferecida pelos cristãos
(“Não quero fanáticos por Jesus me dizendo sobre as coisas da vida”),
ou pelo ocultismo (“[Não quero] Nenhum mago negro me dizendo
para jogar a minha alma fora”).
O ceticismo manifestado pela recusa de guias espirituais vem se-
guido pelo descrédito às pessoas que “tentam comandar a nação”, que
são vistas como pessoas frustradas que “escondem sua verdadeira face”.
Dado o diagnóstico, o narrador presente na letra coloca todas essas pes-
soas em uma “corrida de ratos” desprovida de sentido, já que “atrás de
cada flor nasce uma erva daninha, em seu mundo de faz de conta”.
2
A história contada nessa canção ganha maior sentido quando confrontada com “Master of Reality”
(Mestre da Realidade), título que nomeia o álbum onde a faixa foi originalmente registrada. Em certo
sentido, a canção ganha destaque por ter grande proximidade com o tema de “Lord of this World”.

125
Rainer Gonçalves Sousa

Nessas duas imagens teratológicas, a proposição de uma vida


livre de amarras político-religiosas aparece em uma alegoria na qual
os ratos e as ervas daninhas apontam para uma referência clara sobre o
que se pensa sobre o real. De tal maneira, acaba-se por concordar que
a menção a essas imagens valida, de alguma forma, a perspectiva de
Todorov, que se coloca em discordância com a ideia de que as alego-
rias fossem reduzidas à condição de um dispositivo textual contrário
à literalidade (1980, p. 34).
Por fim, menciona-se uma última canção em que o sentido das
imagens teratológicas se organiza em direção à discussão de elemen-
tos de ordem cotidiana. Em “The Writ” (1975), faixa que encerra o dis-
co Sabotage, o início da canção é marcado por um conjunto de risadas
que marcam o fim da canção anterior, “Am I Going Insane?”, sucedido
por um choro intenso.
Nessa passagem de estados emocionais, os temas oferecidos
também sofrem uma mudança: de uma canção que fala de um per-
sonagem que se desespera e desconfia da própria loucura, migra-se
para outra em que um sujeito parece estar em conflito com um tercei-
ro. Entre maledicências e críticas, o eu-lírico da canção fala sobre um
alguém que trouxe e vendeu “palavras mentirosas”. Contudo, ao invés
de lidar com um problema social, a canção, na verdade, trata de um
problema interno da banda.
De acordo com Mick Wall, o quarteto vivia grandes problemas
com Patrick Mehan Junior, que havia sido o empresário da banda até o
momento da gravação daquele disco. Segundo o biógrafo, o empresário
colocou a banda em uma situação legal bastante embaraçosa, na qual os
integrantes quase não tinham bens em seu próprio nome, apesar des-
tes terem sido comprados com o lucro obtido dos discos e turnês. Até
estarem cientes de toda a situação, eles acreditavam que os contratos
assinados eram somente “um pedaço de papel que nos permitia fazer a
porra de um disco”, recorda Ozzy Osbourne (2014, p. 118)

126
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

Acerca do mesmo problema, Geezer Butler diz que o disco ga-


nhou o nome Sabotage por conta desse imbróglio (2014, p. 119). De
forma adicional, a provocação do título do álbum seria completada
com a faixa de encerramento, em que o próprio título da canção (“A
intimação”) traz uma menção indireta a toda guerra judicial travada
com Mehan. O desabafo a respeito daquele conflito de interesses che-
ga a ser trazido de forma literal, quando o narrador da letra pergunta:
“Que tipo de pessoas você pensa que nós somos? Outro palhaço que
não passa de uma estrela do rock para você. Só para você”.
Na esteira de um primeiro “acerto de contas” por meio daque-
la canção, Ozzy Osbourne fala de abutres que “sugam o seu ouro” e
questiona se eles continuarão a fazer isso “agora que você está acaba-
do”. Não satisfeito com a provocação misturada com autoindulgência
do verso anterior, a letra assume um tom de ameaça ao dizer que “a
busca havia começado, então é melhor você correr... e encontrar para
si um outro caminho”. Além disso, cabe também destacar que o refrão
da letra faz a pergunta “Você é o Satã? Você é homem?” e determina
a pertinência do seu próprio questionamento afirmando que “Você
mudou muito desde que isso começou (Sim! Começou) ”.
Mesmo ciente de que essa canção traz um problema que atingiu
pessoalmente os integrantes do Black Sabbath, tem-se aqui uma ques-
tão que marca a trajetória de muitos outros artistas do meio musical.
Não por acaso, o próprio Mick Wall afirma que a banda havia sido
enganada “da mesma forma que inúmeras outras bandas na indústria
musical dos anos 1960” (2014, p. 119). Deste modo, trata de um pro-
blema de grande importância para vários artistas daquela época, reve-
lando que as aves carniceiras e os demônios seriam bem mais reais do
que poderia vir a sugerir uma leitura isolada da canção.
Curiosamente, a mesma canção que fala de uma profunda de-
cepção com o modo que os negócios poderiam se encaminhar no

127
Rainer Gonçalves Sousa

mundo da música, também abre uma centelha de esperança ao dizer


que “Um rosto sorridente significa tudo para mim. Estou tão cansa-
do de tristeza e miséria (...) Mas tudo vai dar certo. Se não, acho que
vou enlouquecer”. Tal verso poderia ser interpretado de forma a trazer
uma oposição entre uma desilusão e uma expectativa utópica, fazendo
um contraponto narrativo entre imagens tristes e alegres.
Entretanto, na busca por outra forma de compreensão da pró-
pria canção citada e, retomando a questão do posicionamento do
Black Sabbath em relação à contracultura, destaca-se a fala de Sheila
Whiteley, que no texto “Countercultures and Popular Music” (respon-
sável por fazer uma panorama sobre uma coletânea de textos ligados
ao tema) é categórica ao afirmar que as manifestações musicais des-
se período “não envolveram simplesmente o utópico, mas também o
distópico”, interpretando situações de violência e a morte prematura
de vários artistas como “uma luz mais escura” na agenda subjacente
daqueles tempos (2014, p. 5).
Mais do que uma variante distinta da contracultura, essas situa-
ções e canções distópicas – aqui, no caso, as que foram registradas pelo
Black Sabbath – podem ser também entendidas de forma complemen-
tar, já que as distopias (enquanto formas narrativas)

chamam a atenção para um potencial de desenvolvimento das


circunstâncias e das condições da vida atual, não ao neutralizar
sistematicamente as experiências atuais, mas ao atribuir-lhes
um forte peso na negação de possibilidades do agir (RUSEN,
2010, p. 137).

Em consonância com a perspectiva acima relatada, temos no


artigo “Images of human-wrought despair and destruction: social
critique in British apocalyptic and dystopian metal”, de Laura Wie-
be Taylor, uma aproximação mais clara da perspectiva de Rusen, no

128
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

momento em que – ao falar sobre a distopia no heavy metal inglês – a


autora diz que as

imagens de destruição e desespero são muitas vezes as semen-


tes da possibilidade utópica, particularmente quando tais nar-
rativas localizam a culpa por resultados opressivos e apocalíp-
ticos na sociedade humana e deixam espaço para a chance de
evitar esse desastre [sendo assim](...) a distopia, como forma
narrativa, não é uma completa negação ou ataque à possibili-
dade utópica; a expressão utópica encontra-se em um contínuo
entre utopia e anti-utopia, entre o ativismo e o pessimismo re-
signado, entre as formações abertas que criam potencial para a
esperança e textos fechados que sugerem que a esperança já foi
perdida (2009, p. 89-90).

Posto isso, chega-se à conclusão de que as imagens teratológicas


trabalhadas nas canções do Black Sabbath, mesmo que colocadas sob
o fundo de letras visivelmente distópicas, não podem ser simplificadas
como um tipo de propostas estética avessa à canção contracultural da
década de 1960. Assim, mesmo que posteriormente o heavy metal ve-
nha a assumir algum modo de distanciamento temático e estético mais
claro em relação à geração de 1960 – seja na chamada New Wave of
British Heavy Metal ou na Bay Area Thrash –, percebe-se que “LOVE”
and “EVIL” estão mais próximos entre si do que incialmente se imagina.

Considerações finais
Encerrada a discussão aqui apresentada, percebe-se que o deba-
te sobre a contracultura necessita de uma série de reconsiderações que
ultrapassam a problemática do recorte temporal. Mesmo que haja um
consenso sobre seu início e seu fim, deve-se notar que existem conjun-
tos musicais e temas que merecem uma atenção maior.

129
Rainer Gonçalves Sousa

No caso do Black Sabbath, nota-se a existência de uma leitu-


ra que predominantemente coloca o conjunto musical britânico para
fora do movimento de contracultura, à revelia de estarem na mesma
geração de outros artistas que surgiram um pouco antes deles. Mesmo
concordando que a banda traz elementos que musicalmente rompem
com as formas convencionais do rock até aquele período, percebe-se
que há um diálogo com elementos da época que impede de simplificar
o Sabbath à condição de inventores de um gênero musical inédito.
Nesse sentido, os exemplos musicais primeiramente analisados
foram de grande importância para que se demonstrasse os dois movi-
mentos de ruptura e permanência. A mesma banda que se singulariza
pelo uso de novas afinações e a reutilização sistemática do trítono é
responsável por falar sobre os absurdos que envolviam a Guerra do
Vietnã ou defender o consumo de entorpecentes, como a maconha e a
cocaína. Tem-se aqui a clareza da existência de uma “transição do es-
pírito”, conforme assinalaram Johan Huizinga – ao falar da passagem
do período medieval para o moderno – ou Peter Braunstein e Michael
Doyle, que especificamente trataram de um processo de deshistorici-
zação da contracultura.
Por fim e, não menos importante, realizou-se, neste trabalho,
mais um movimento de verticalização na obra do Black Sabbath ao
falar sobre as imagens teratológicas e as narrativas distópicas pre-
sentes nas letras compostas pelo grupo. Ao contrário de sugerir uma
simples negação da utopia e a busca por um universo fantástico –
predominantemente marcado por monstros e demônios – apartado
das questões do presente, primou-se por canções que empregam a
teratologia e a distopia como elementos que, embora não descrevam
um futuro imaginado, sinalizam em favor da elaboração de uma ou-
tra realidade.

130
“What is this that stands before me?”: Black Sabbath, contracultura e teratologia (1970-1978)

Bibliografia
COPE, Andrew L.. Black Sabbath and the rise of heavy metal music.
Farnham: Ashgate, 2014.

FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: uma história social. Rio de Ja-
neiro: Record, 2003.

GOFFMAN, Ken & JOY, Dan. Contracultura através dos tempos: do


mito de Prometeu à cultura digital. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.

GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V., História da Música Ociden-


tal. Lisboa: Gradiva, 1988.

HOLMES, Thom. Electronic and Experimental Music: technology, mu-


sic and culture. New York: Routledge, 2016.

HUIZINGA, Johan. The waning of the middle ages. Londres: Penguin


Books, 1987.

JANOTTI JR., Jeder. 666 The Number of the Beast: alguns apontamen-
tos sobre a experiência simbólica a partir das letras, crânios, demônios
e sonhos do heavy metal. In: Textos de cultura e comunicação. Salvador:
Facom/UFBA, n. 39, dez. 1998. p. 97-112.

PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura. Brasília:


Editora Brasiliense, 1992.

PERONE, James E. Music of Counterculture Era. Westport: Greenwood


Press, 2004.

ROSZAK, Theodore. The making of a counter culture: reflections on


the technocratic society and its youthful opposition. New York: Anchor
Books, 1969.

131
Rainer Gonçalves Sousa

ROHRER, Finlo. The Devil’s Music. BBC News Magazine. Londres.


2006.

RÜSEN, Jörn. História Viva: teoria da história: formas e funções do


conhecimento histórico. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
2010.

WHITELEY, Sheila; SKOWLER, Jedediah. Countercultures and Popu-


lar Music. Farnham: Ashgate, 2010.

TAYLOR, Laura Wiebe. Images of human-wrought despair and des-


truction: social critique in British apocalyptic and dystopian metal.
In: Heavy Metal Music in Britain. Farnham: Ashgate, 2009, p. 89-110.

TAYLOR, Timothy D.. The avant-garde in the family room: american


advertising and the domestication os electronic music in the 1960’s
and 1970’s. In: The Oxford handbook of sound studies. Oxford: Oxford
University Press, 2012, p. 387-408.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo:


Editora Perspectiva, 1980.

WALL, Mick. Black Sabbath: a biografia, São Paulo: Globo Livros,


2014.

WALSER, Robert. Running with the Devil: power, gender and madness
in heavy metal music. Middleton: Wesleyan University Press, 1993.

WICKE, Peter. Rock Music: culture, aesthetics and sociology. Cambri-


dge University, 1990.

WEINSTEIN, Deena. Heavy Metal: the music and its culture. Boston:
Da Capo Press, 2000.

132
Parte 2

ROCK NACIONAL
Tropicália, Rock e Experimentalismo*

Daniela Vieira dos Santos **

A combinação entre tropicália, rock e experimentalismo sintetiza


a força do movimento musical que celebrou 50 anos em 2017. Divisor
de águas no sentido sócio-político e histórico da música popular brasi-
leira, o tropicalismo realizou não somente uma ruptura estética e com-
portamental – como afirmam vários estudiosos1 – porém, um rearranjo
da tradição. Resgatou aspectos da cultura nacional que estavam alheios
ao campo hegemônico da MPB e, igualmente, incorporou a esta cultu-
ra referências até então distantes da realidade do país. O resultado da
associação tornou-se um modelo para o que viria a ser produzido, no
entanto, em que pesem os elementos esteticamente comuns que possi-
bilitam identificar a obra como tropicalista, o movimento não se define
por meio de uma coerência estética, tampouco, ideológica2.
As particularidades da obra representam projetos estéticos mui-
tas vezes divergentes. O movimento musical que despontou no Brasil
* O artigo congrega questões elaboradas em meus trabalhos de doutorado e mestrado, no entanto, atua-
liza a discussão a partir de novas hipóteses.
** Doutora em Sociologia pela Unicamp, com pós-doutorado junto ao CRESPPA-CSU/CNRS (Paris),
com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Autora do livro: Não vá se
perder por aí: a trajetória dos Mutantes. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2010.
Para uma leitura de parte da fortuna crítica sobre o tropicalismo, ver: Favaretto (1996); Hollanda
1

(1980). Napolitano; Villaça (1998); Naves (2001); Paiano (1994; 1996); Ridenti (2000); Schwarz (1992);
Tatit (2002; 2004); Vasconcellos (1977); Veloso (1997); Calado (1997).
Sobre o caráter heterônimo do movimento tropicalista, consultar: Napolitano; Villaça, 2008.
2

135
Daniela Vieira dos Santos

em fins da década de 1960 e que se convencionou chamar de tropi-


calismo, conciliou diversas referências musicais a fim de se legitimar
no nascente campo da MPB3. Apenas para citar um exemplo que,
no entanto, será a linha condutora da argumentação desenvolvida, a
problemática sobre o nacional parece estar no cerne das mudanças
motivadas na e a partir da tropicália. Todavia, é preciso reconhecer a
tropicália como um movimento que manteve, entre os seus integran-
tes, particularidades que dão força as suas obras. Ou seja, não há pos-
sibilidade, na análise da forma artística – e, de igual modo, nas parti-
cularidades político-ideológicas que ela anuncia –, de buscar apenas
coesão entre os integrantes do tropicalismo. Havia divergências e elas
precisam ser ressaltadas.
Portanto, através do vínculo entre tropicália, rock e experimen-
talismo, ressalta-se o sentido social das canções “Eles” (Caetano Velo-
so/Gilberto Gil) e “Dom Quixote” (Mutantes), focadas por meio de al-
gumas dissonâncias político-ideológicas que trazem, ainda que ambas
estejam estruturadas pela matriz tropicalista e pelo experimentalismo
musical que caracteriza, de igual modo, esse movimento. Mas, antes
de entrar especificamente nas análises, é preciso esclarecer alguns
pressupostos que nortearão o argumento do artigo.
É importante descrever o que se compreende aqui por experi-
mentalismo musical, uma vez que a apreensão desse conceito não se
define como sinônimo de vanguarda. Na reflexão sobre a tropicália,
pensa-se sobre as suas canções na chave do experimentalismo, dife-
rente de interpretações canônicas sobre o movimento4. De acordo
com vários analistas, ela se caracterizaria como o último movimento
de vanguarda no Brasil.

Sobre as disputas internas na MPB, ver Paiano (1994), Napolitano (2001), Ghezzi (2011). Para uma
3

apreciação das características fundantes da tropicália, ver Favaretto (1996).


Para um contraponto ao argumento do artigo, ver Favaretto (1996); Zan (1997).
4

136
Tropicália, Rock e Experimentalismo

O conceito de vanguarda, tal como caracterizado por Peter Bür-


ger (2008), compreende as obras vanguardistas como aquelas que efe-
tivam a “autocrítica da arte”. Para o autor, a vanguarda pressupõe um
ponto de vista problematizador e crítico da instituição arte ao expri-
mir o vínculo entre autonomia e inconsequência, com o objetivo de
fazer com que a arte retornasse à “práxis vital”. Os tropicalistas rea-
lizaram, sim, uma “autocrítica da arte”, em particular, da música po-
pular brasileira do período. Contudo, ela só se materializou por meio
da mediação dos meios de comunicação de massa, espaço este não
ocupado historicamente pelas vanguardas. Nessa medida, um ponto
fundamental que distancia o tropicalismo da alcunha vanguardista
ancora-se na sua realização a partir da lógica do mercado5.
Os trabalhos experimentais podem ser entendidos, então, como
obras que buscam trazer novidades dentro de um campo específico
da música e, no caso da tropicália, da música popular brasileira, po-
rém, não são sinônimos de vanguarda. Essas novidades, para exempli-
ficar, podem ser tanto a inclusão de materiais considerados “arcaicos”,
quanto a incorporação ou criação de elementos “modernos”, como o
uso na música popular de referências provenientes das vanguardas
eruditas do século XX.
É necessário compreender, na criação de obras experimentais,
a existência de elementos conflitantes com o mercado, pois este não
lhe é alheio. E a Tropicália deve ser interpretada nesse sentido: se, por
um lado, as obras vanguardistas incorporaram o experimentalismo,
de outro, as obras experimentais, não necessariamente podem ser ca-
racterizadas a partir do conceito de vanguarda, o qual está vinculado
à produção musical desenvolvida no campo da chamada “alta” cultu-
ra6. Em síntese, não há possibilidade de vanguarda na música popular,
5
Na mesma linha argumentativa sobre a impossibilidade da vanguarda na música popular, pois conci-
liada com o mercado, ver: Fenerick (2007).
6
Ver Santos (2010).

137
Daniela Vieira dos Santos

pois o experimentalismo da tropicália, a “mistura tropicalista” da qual


fala Favaretto (1996), esteve afinado com vários gêneros da música
pop, dentre os quais o rock.
A relação do movimento com este gênero associado à juventude
e à rebeldia estruturou, em certa medida, parte dos seus experimenta-
lismos musicais. No entanto, o rock que serviu de modelo à tropicália
diverge, por uma série de motivos, daquele informado pelas canções
da Jovem Guarda, já que seus integrantes fizeram uma apropriação
seletiva do comportamento do rock norte-americano, vinculando-se
mais aos estereótipos que envolveram o rock dos anos 1950 do que
propriamente ao seu conteúdo. Talvez, por esse motivo, não existiu na
Jovem Guarda uma inserção política no debate cultural da época. Mas,
segundo constata Marcia Tosta Dias (2000), o iê-iê-iê obteve recordes
de vendagem, inserindo-se nas primeiras “manifestações de sucesso”
do gênero rock no mercado brasileiro.
Como é do conhecimento da maioria, Caetano Veloso (1997)
fez várias declarações afirmando como ele percebeu aspectos interes-
santes no iê-iê-iê, os quais poderiam contribuir à mudança de alguns
fundamentos da música popular. Contudo, os seus integrantes foram
desvalorizados dentro do tenso campo da MPB que se instituía. Tem-
-se como hipótese que a carência de capital cultural na Jovem Guarda
inviabilizou ao grupo uma participação mais engajada das suas mú-
sicas no acalorado Brasil dos anos 1960. Porém, a “rebeldia inocente”
revelada nas suas canções, assim como o estilo de roupas que eles in-
corporaram, foram importantes ao tropicalismo.
Este movimento trouxe à música popular os elementos que o
mainstream da MPB desvalorizou na Jovem Guarda. Com isso, deslo-
cou o novo material rejeitado pelos músicos e artistas engajados para o
cenário principal de realização e debate das músicas naquele momen-
to: os festivais. Além disso, a Jovem Guarda, embora tenha realizado

138
Tropicália, Rock e Experimentalismo

algumas modificações comportamentais, não propôs nenhuma altera-


ção sonora. Todavia, o iê-iê-iê pode ser interpretado como a “ponta de
lança” que somente com o tropicalismo ganhou maturidade musical,
visto que a tropicália combinou a mudança de um novo ethos com-
portamental com a possibilidade de ampliação dos limites musicais.
Como reconheceu Erasmo Carlos: “Hoje eu vejo... tem críticos, ouvi
outro dia na tevê, que dizem que a Jovem Guarda não inovou nada
musicalmente. Eu concordo com eles. Musicalmente, não, talvez não.
Mas modificou em termos de comportamento, cabelo grande, roupa
mais descontraída e tal. Antes não tinha disso aqui, não”7.
Tanto a Jovem Guarda quanto o tropicalismo buscaram referên-
cias no rock e assimilaram performances visuais diferentes daquelas
que compunham o campo da chamada música engajada. No entanto,
uma das referências do rock trazidas pela tropicália encontra-se nos
Beatles pós-Sgt. Pepper’s, o que também explica a predileção ao expe-
rimentalismo. Assim, ousa-se dizer que enquanto os integrantes do
iê-iê-iê são considerados a versão brasileira da beatlemania, ou seja,
os Beatles do início da década de 1960, os tropicalistas e, em especial,
os Mutantes, podem ser vistos como a representação brasileira daqui-
lo que os Beatles pós-Sgt. Pepper’s propuseram internacionalmente.
Esse pressuposto sustenta-se pela notável preocupação com a pesqui-
sa musical, a qual se vincula igualmente à perspectiva experimental
que orientou a tropicália. Na acertada aclimatação do elemento es-
trangeiro – para usar a expressão de Sérgio Buarque de Holanda –
eles transformaram o sentido social das canções, propondo uma outra
interpretação sobre o Brasil, especialmente, sobre questões ligadas ao
engajamento e às perspectivas de revolução social e democrática –
problemática cara às canções da MPB8.

Cf. BAHIANA, 1980, p. 79.


7

Para uma análise sobre a MPB e a sua relação com a esquerda brasileira cf. Ridenti (2000); Napolitano
8

(2001); Garcia (2007).

139
Daniela Vieira dos Santos

A preocupação com a forma artística, no sentido de explorar as


suas possibilidades a fim de inovar (e nisso consiste o experimenta-
lismo musical), releva-se obviamente pela audição das músicas e na
performance dos artistas. Porém, algumas declarações dos tropicalis-
tas contribuem para demonstrar o quanto a pesquisa sonora e a busca
pela qualidade musical eram tarefas conscientes que orientavam as
suas ações. As falas de Gilberto Gil, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias
documentam esta afirmação. Em 1966, Gil declarou:

A nossa música para enriquecer-se, tornar-se popular, precisa


ser moderna, isto é, aproveitar o que já foi feito de bom, criando
sobre essa base, e mais sólidos conhecimentos musicais, coisas
novas. [...] A nossa música pode até ter pretextos políticos, mas
como elementos normais, espontâneos, sem que o compositor
faça esse tipo de música somente porque está na moda. Os ca-
minhos são muitos, mas o trilho é um só: qualidade (GIL, 1966,
p. 121)9.

Segundo Arnaldo Baptista, “a pesquisa de sons é muito impor-


tante. Vale tanto ou mais que letras e melodias”. Para Sérgio Dias, “em
nossas mãos, a guitarra não produz apenas sons metálicos, irritantes.
Levamos muito a sério os arranjos de nossas músicas” (ELES..., 1968,
p. 12). As falas supracitadas colocam em evidência um comprometi-
mento com a pesquisa musical que buscava novas sonoridades, ex-
pressivas da maturidade que a canção popular assumia, bem como
a perspectiva de distinção social (no sentido dado por Bourdieu) e,
junto a isso, de busca por legitimidade dentro do nascente campo da
chamada MPB.
Se a MPB que se instituía ao longo da década de 1960 apre-
sentava, segundo a hipótese aqui levantada, diferenciados projetos
GIL, Gilberto. [Entrevista]. In: KALILI, Narciso. “A nova escola do samba”. Realidade. São Paulo, p.
9

121, abr. de 1966.

140
Tropicália, Rock e Experimentalismo

nacionais-populares10 para que o tropicalismo se consolidasse dentro


desse campo e se sobressaísse na luta simbólica, mas, igualmente, po-
lítico-ideológica, era preciso declarar o luto – tomando de empréstimo
o conceito freudiano11 – aos pressupostos que orientaram as manifes-
tações culturais nacionais-populares. Foi necessário, assim, incorporar
aspectos da política cultural nacional-popular, embora o sentido social
das suas canções expressasse perspectivas divergentes e conflitantes a
esse ideário. Parte das críticas ao nacional-popular12 – e é importante
reconhecer que elas se dirigem a um espectro mais amplo, o da perspec-
tiva ideológica da esquerda brasileira – podem ser observadas por meio
das canções “Eles” (Caetano Veloso) e “Dom Quixote” (Mutantes).

Eles, a crítica tropicalista à esquerda dos anos 1960


A canção “Eles” compõe o primeiro álbum solo de Caetano, de-
nominado “Caetano Veloso”, gravado em 1967 pela Philips, mas lan-
çado em 1968. Na análise desse disco homônimo, as experimentações
são notáveis, sobretudo em relação aos arranjos musicais assinados
por Júlio Medaglia, Damiano Cozzella e Sandino Hohagen, além da
produção musical sob a batuta do maestro Rogério Duprat. Diante
dessa equipe, o caráter experimental das canções coloca-se em evidên-
cia. O álbum apresenta 12 músicas, sendo a emblemática “Tropicália”
a faixa de abertura, enquanto a canção “Eles” é a décima segunda faixa
10
CF. Santos (2014)
Segundo Freud, tanto o luto quanto a melancolia decorrem de uma sensação de perda objetiva (de uma
11

“pessoa querida”) ou abstrata (“pátria, liberdade, ideal”). Se para alguns indivíduos a perda resulta no
luto, em outros se observa a melancolia. Ao contrário da melancolia, o luto não apresenta um estado pa-
tológico, pois será superado. Dada a perda do objeto ou coisa amada, a libido se desvincula desse objeto,
“[...] as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são focalizadas e superinvestidas
e nelas se realiza o desligamento da libido” (FREUD, 2011, p. 49), dando liberdade e desinibição ao ego. A
perda do luto é reconhecível, enquanto na melancolia não se tem consciência do que “realmente morreu”
a partir da sua perda.
12
Sobre o nacional-popular, ver: Garcia (2007); Napolitano (2001); Chauí (1984;2001); Candido
(2004); Ridenti (2000); Morelli (2008).

141
Daniela Vieira dos Santos

do disco, no lado B. Mas qual a importância dessa canção? Acredita-se


que ela reitera e faz uma crítica não velada à problemática aberta pela
canção “Tropicália” no que se refere à postura do narrador quanto aos
problemas ideológicos da esquerda da época.
Ela realiza algumas combinações non-senses, contribuindo para
certo aspecto satírico e irônico. Representa não só uma crítica à bur-
guesia, tema presente em “Panis et Circenses”, mas associa setores da
esquerda à burguesia, além de criticar a temática do chamado “dia que
virá”13. Do ponto de vista musical, a canção incorpora variadas refe-
rências estéticas, que perfazem a relação com as canções engajadas e,
de modo geral, com o campo da esquerda14.
“Eles” apresenta uma longa narrativa, na qual a dicção de Ca-
etano se assemelha a de um repentista nordestino. A canção mistura
o ritmo do coco aos acordes da guitarra, utilizando-se também de cí-
tara e tabla, dois instrumentos indianos. Sabe-se que a introdução de
instrumentos indianos na música pop ocidental foi feita pelo beatle
George Harrison. Portanto, em conjunto com a referência da banda
inglesa, a canção mistura a sonoridade ocidental com a instrumen-
tação do oriente, manifestando a incorporação de procedimentos da
contracultura e da cultura internacional-popular. Todavia, a filiação
ao internacional-popular não exclui os elementos da cultura nacional,
fortemente combinados com outros referenciais.
A forma estética inicia-se com o brevíssimo solo da guitarra,
que denota certo suspense de algo que estaria por vir. Após um sutil
ruído, a instrumentação do solo ganha uma sonoridade indiana com
a entrada da percussão feita através da tabla, na qual também se nota
o uso da cítara e da guitarra, que logo vão perdendo a intensidade,
como se a canção estivesse terminando. Não obstante, o andamento
se acelera e a música muda de clima, seguindo uma levada pop, em
Sobre o assunto cf. Galvão (1976).
13

Conferir a canção no link: https://www.youtube.com/watch?v=CgfP9cCCjao. Acesso em 01/08/2017.


14

142
Tropicália, Rock e Experimentalismo

conjunto com a sonoridade da cítara, o ritmo do coco, e o uso de cho-


calhos, além das constantes intervenções do órgão elétrico que realiza
os ruídos, provavelmente tocado por Arnaldo Baptista. Ao término de
cada estrofe, o diálogo da guitarra com o aumento desproporcional
do órgão imprime perceptível sensação de suspense e tensão, alusivo
ao contexto sócio histórico da época. Ao término dos versos “Alegres
ou tristes/ São todos felizes durante o Natal”, o deboche apresenta-se
tanto pelas intervenções mais vigorosas dos instrumentos elétricos,
com primazia para o som do órgão, quanto pela dicção do narrador,
cuja escuta atenta demonstra como a sua entonação realiza-se com
riso, dado o aumento da tessitura melódica ao cantar a palavra natal.
A canção segue nessa levada pop, em que a referência psicodéli-
ca é notável, no entanto, isso não retira o aspecto “regional” da men-
ção aos ritmos nordestinos. Em geral, após todas as citações ao “dia de
amanhã” da primeira parte da canção percebe-se alguma colagem e/
ou a distorção da guitarra que não passa despercebida ao ouvinte. Para
demonstrar o quanto “Eles” não fazem parte das classes populares,
ocorre uma pausa após a entoação da palavra “táxi”. Percebe-se a par-
tir daí o aumento da tessitura vocal do narrador que novamente sofre
um break nesse verso: “Eles desde já querem ter guardado todo o seu
passado no dia de amanhã”. Caetano utiliza-se da viola, um dos ins-
trumentos comuns às canções de protesto, para poder fazer a crítica a
essas músicas, ou melhor, à representação político-ideológica a que se
associam. Na sequência, ganha leve destaque o ritmo nordestino que
em breve se mistura com outro solo psicodélico.
Nos últimos versos: “Está sempre à esquerda a porta do banhei-
ro/E certa gente se conhece no cheiro”, a matéria histórica cantada
indica quem são “Eles”. Em confronto com o projeto da esquerda, a
canção demonstra com picardia o quanto para o narrador esse setor,
além de integrar a burguesia, ou uma parcela da classe média inte-
lectualizada, coloca-se como esclarecido do que seria bom ou não. O

143
Daniela Vieira dos Santos

modo de vida dessa classe enuncia-se pelas seguintes atitudes: tomar


táxi, preocupação familiar e com dinheiro, o uso do espaço social da
sala de jantar em detrimento do quintal, dentre outros exemplos que
a canção enseja. As críticas destinadas às canções engajadas se clarifi-
cam pelas afirmações à convicção esperançosa com o futuro, além do
caráter dicotômico (bem ou mal) do modo como as questões foram
se encadeando no desenrolar da canção. Os versos “Eles têm certeza
do bem e do mal / Falam com franqueza do bem e do mal /Creem na
existência do bem e do mal / O florão da América o bem e o mal /Só
dizem o que dizem/ O bem e o mal Alegres ou tristes/ São todos felizes
durante o Natal” expressam esse viés da canção.
Antes de finalizar, Caetano profere a frase: “Os Mutantes são de-
mais”, pois foi a banda que realizou o acompanhamento musical. A
afirmação se configura como uma homenagem à banda, pois deve-se
lembrar que os Mutantes foram, de certo modo, menosprezados pela
MPB. Ademais, ao contrário de Veloso, a banda não tinha um projeto
estético político consciente de intervenção nesse campo. Desse modo,
a declaração final do cancionista não expressa apenas o experimenta-
lismo dos Mutantes, mas sua caracterização pela postura contracultu-
ral e desbundada que reitera a afronta à canção com os pressupostos
da MPB e aos diferentes matizes do nacional-popular.

“Palmas para Dom Quixote que ele merece”


Ainda nessa linha de diálogo não amistoso com a MPB, embora
de maneira jocosa, encontra-se a canção “Dom Quixote”, dos Mutan-
tes15. Ela integra o segundo álbum da banda, lançado em 1969 pela
Polydor, e contou com a produção de Manuel Barembein e com ar-
ranjos do maestro Rogério Duprat. “Dom Quixote” foi apresentada
no IV Festival da TV Record e teve alguns versos alterados devido à

A canção pode ser consultada em: https://www.youtube.com/watch? v=3GZh5e97eiw


15

144
Tropicália, Rock e Experimentalismo

censura. De acordo com a crítica da época: “[...] no ritmo dos versos


de Rita e no bom humor do arranjo do maestro Rogério Duprat, está
a força dessa música. A crítica é muito bem colocada. Dom Quixote,
agora, não precisa mais lutar com armadura e espada. Por quê? Ora, a
televisão está aí mesmo” (QUEM..., 1968, p. 29).
Conforme declarou Rita Lee: “Eu de Theremim na mão, vestida
de Dulcineia, cantando Dom Quixote. Teve até abaixo-assinado pra
gente cair fora. Depois de proibirem o É Proibido Proibir, parece que
o único jeito de balançar tudo era fazer o que estávamos fazendo. Era
divino, maravilhoso”16. Em que pese a crítica satisfatória à música, a
baixa popularidade dos Mutantes no campo da MPB fez com que ob-
tivessem o último lugar na preferência do júri popular, embora esti-
vessem certos da classificação. Como assinalou Sérgio Dias, a intenção
era a de ironizar a MPB: “tirávamos um sarro da MPB, tínhamos raiva
deles porque eles nos atacavam, e então gravávamos versões engraça-
das de clássicos da MPB. [...] Eu andava na rua com minha guitarra
sem estojo, para que as pessoas vissem que era uma guitarra [...]”17.
Em “Dom Quixote”, a banda faz uma alusão debochada ao gran-
de nome da canção engajada do período, Geraldo Vandré. Como des-
crito pela imprensa a propósito do segundo LP: “Dom Quixote cita
música clássica num vocal bem trabalhado e termina com acordes de
‘Disparada’ e a buzina do Chacrinha”. Quando os versos “palmas para
Dom Quixote que ele merece” são proferidos, ouve-se as palmas na
música. Além do mais, essa canção sintetiza muitos dos procedimen-
tos estéticos da produção dos Mutantes.
A começar pelo arranjo musical, tem-se as intervenções orques-
trais junto com as distorções da guitarra. Ouve-se também alguns
ruídos, indicativos da ovação de uma determinada plateia, como se
executassem a canção ao vivo para o público, como num festival. No
16
Ver: O Rock e Eu (1975, p. 22).
17
Cf. PAPPON, 1987, p. 68.

145
Daniela Vieira dos Santos

que se refere às referências musicais, a junção da orquestra com as


guitarras, do pop com o erudito, fazem alusão à canção dos Beatles
“Sgt. Pepper ́s Lonely Heart Club Band”, na qual, além da orquestra,
a colagem dos ruídos e das falas de um público à espera do show são
mais evidentes18. Além dessa referência, a canção materializa as carac-
terísticas particulares da cena musical brasileira da época, utilizando-
-se em grande medida da paródia, da alegoria, do deboche e do bom
humor sarcástico.
Esses aspectos aparecem no início da canção, quando, antes de
ser entoada, escuta-se um “ahh” denotando preguiça. Já o caráter ale-
górico pode ser percebido na figura do próprio Dom Quixote: persona-
gem literário que lutava contra os “moinhos de vento” e acreditava na
possibilidade de trazer ao mundo mais humanidade. Essa figura criada
por Cervantes pode ser interpretada como uma irônica metáfora para
os músicos ligados às “canções de protesto”, que apostavam na música
como possibilidade de transformação social, de revolução. Nesse sen-
tido, a letra composta por Arnaldo Baptista e Rita Lee coloca-se como
uma resposta àqueles artistas vinculados à chamada “linha dura da
MPB”, os quais acreditavam na música como uma via conscientizadora
e, nessa linha, como algo que pudesse modificar a vida dos trabalhado-
res urbanos e rurais para a revolução que estava em vias de acontecer19.
Tal diálogo pode ser percebido nos seguintes versos: “Vem de-
vagar/ Dia há de chegar/ E a vida há de parar”, isto é, colocam “o dia
que virá” presente em várias das canções engajadas não como o dia da
revolução, porém, como a estagnação da vida. Ao tocarem os primei-
ros acordes da música “Disparada”, de Geraldo Vandré, seguida por
uma risada extremamente debochada, ouve-se, em seguida, o som de
buzina em alusão ao Chacrinha. Tocava-se a buzina no programa do
apresentador popular quando os calouros eram desclassificados.
Sobre esse disco dos Beatles ver: FENERICK; MARQUIONI (2008).
18

Ver: Contier (1998).


19

146
Tropicália, Rock e Experimentalismo

No ambiente dos festivais ao qual alude a canção, ambientado


através das palmas e da ovação do público, os Mutantes “desclassifica-
vam” Geraldo Vandré, a canção engajada, e, consequentemente, a pro-
posta político-cultural do nacional-popular. Ainda no que diz respeito
à letra, a psicodelia do grupo pode ser vista por meio do lado non-
sense e contracultural que estrutura frases como: “Mascando o Qui-
xote”, “Moinho sem vinho”, “Sua chance em chicote”. Entretanto, ela
faz aproximações entre o arcaico e o pop nos versos “Meu vinho, meu
Crush”. Isto é, eles colocam em paralelo o vinho, uma bebida existente
desde a idade antiga, com um refrigerante americano popularizado na
década de 1970. A percepção de sucesso mediante os meios de comu-
nicação de massa e o sentimento de mudança também estruturam o
sentido social da canção.
Contudo, ao contrário de “Eles” – estruturada conscientemente
por Veloso –, “Dom Quixote” não apresenta um projeto consciente de
intervenção no campo da música popular brasileira. Ambos, no entan-
to, declararam o luto aos diversificados projetos nacionais-populares
que informaram a MPB dos anos 1960. “Eles” e “Dom Quixote” apre-
sentam aspectos ligados ao chamado internacional-popular, apesar do
sentido inscrito na canção dos Mutantes pautar-se, em larga medida,
pelo bom humor, enquanto a perspectiva que sustenta a canção “Eles”
ridiculariza e ataca o projeto da esquerda de maneira mais incisiva e,
de saída, declara guerra a esse projeto, por meio de uma interpretação
desvelada com o solo inicial da canção que aponta para as músicas de
faroeste. A canção dos Mutantes, por sua vez, pauta-se pelo desbunde
e certa preguiça, ou melhor, descomprometimento. Basta lembrarmos
o “ahh” preguiçoso que inicia a canção.
Isso posto, fica claro o declínio da crença na possibilidade da re-
volução baseada em preceitos político-partidários, bem como a aber-
tura, não apenas musical, para um novo tempo em que as ideologias
se esgarçam e se fragmentam.

147
Daniela Vieira dos Santos

Bibliografia
BAHIANA, A . M; WISNIK, J. M; AUTRA N, M . A n os 70. Rio de
Janeiro: Europa Empresa Gráfica e Editora Ltda, 1979-1980.

BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Cosacnaify, 2008.

BROWN, Nicholas. “Tropicália, pós-modernismo e a subsunção real


do trabalho sob o capital”. In: CEVASCO, Maria Elisa; OHATA, Mil-
ton (Orgs.). Um crítico na periferia do capitalismo: reflexões sobre a
obra de Roberto Schwarz. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 295-393.

CALADO, Carlos. Tropicália: A história de uma revolução musical.


Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004. (Coleção Ouvido Musical).

CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo:


Perspectiva, 1968. (Coleção Debates).

CANDIDO, Antonio. “Uma Palavra Instável”. In: ______. Vários escri-


tos. São Paulo, Duas Cidades/ Ouro sobre azul, 2004, p. 215-225.

CHAUÍ, Marilena. “Considerações sobre o nacional-popular”. In:


_______. Cultura e Democracia. São Paulo: Cortez Editora, 2001,
p.85-136.

______. O nacional e o Popular na Cultura Brasileira (Seminários).


São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.

CONTIER, Arnaldo. “Edu Lobo e Carlos Lira: O nacional e o popular


na canção de protesto (os anos 60)”. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v.18 no 35, 1998, p. 13– 52.

DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e


mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo, 2000.

148
Tropicália, Rock e Experimentalismo

ELES nem ligaram para as vaias que receberam no festival do 9. Estão


bem mais preocupados em fazer boas músicas. Eles são Os Mutantes.
Jornal da Tarde, São Paulo, p. 12, 10 jul.de 1968.

FAVARETTO, Celso. Tropicália – Alegoria, Alegria; prefácio de Luiz


Tatit. São Paulo: Ateliê Editorial, 1966.

FENERICK, José Adriano. Façanhas às próprias custas: a produção


musical da vanguarda paulista (1979– 2000). São Paulo, Ed. Annablu-
me, FAPESP, 2007.

FENERICK, José Adriano; MARQUIONI, Carlos Eduardo. “Sgt.


Pepper ́s Lonely Hearts Club Band: uma colagem de sons e imagens”.
In: Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, UFU,
2008.

FREDERICO, Celso. “A Política Cultural dos Comunistas”. In: MO-


RAES, João Quartim (Org.). História do Marxismo no Brasil, v. III Te-
orias. Interpretações. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.

FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

GALVÃO, Walnice Nogueira. “MMPB: uma análise ideológica”. In:


______. Saco de Gatos: ensaios críticos. São Paulo: Duas Cidades,
1976, p.93-119.

GARCIA, Miliandre. Do teatro militante à música engajada: a experi-


ência do CPC da UNE. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2007.

GHEZZI, Daniela Ribas. Música em transe: o momento crítico da


emergência da MPB (1958-1968). 2011. 390f. Tese (Doutorado em
Sociologia). IFCH, Unicamp, Campinas, 2011.

149
Daniela Vieira dos Santos

GIL, Gilberto. [Entrevista]. In: KALILI, Narciso. “A nova escola do


samba”. Realidade. São Paulo, p. 121, abr. de 1966.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, van-
guarda e desbunde, 1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1980.
MORELLI, Rita. “O campo da MPB e o mercado moderno de música
no Brasil: do nacional– popular à segmentação contemporânea”. Re-
vista ArtCultura, Uberlândia, v.10, n.16, p. 83– 97, 2008.
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político
e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume:
Fapesp, 2001.
NAPOLITANO, Marcos; VILLAÇA, Mariana Martins. “Tropicalismo:
As relíquias do Brasil em debate”. Revista Brasileira de História, São
Paulo, v.18, no 35, p. 53-75, 1998.
O Rock e Eu, 1975, p. 22.
PAIANO, Enor. O berimbau e o som universal: lutas culturais e indús-
tria fonográfica nos anos 60. 1994. 241f. Dissertação (Mestrado em
Comunicação) – ECA, USP, São Paulo, 1994.
PAPPON, Thomas. Mutantes, o elo perdido. BIZZ, São Paulo, 1987, n°
19, p.65-69.
QUEM pode ganhar esse festival? Jornal da Tarde, São Paulo, p. 29, 18
nov. de 1968.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Re-
cord, 2000.
______. “Intelectuais e Artistas Brasileiros nos anos 1960/70: ‘entre a
pena e o fuzil’”. Revista ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 14, jan. –jun.
2007a, p. 185-195.

150
Tropicália, Rock e Experimentalismo

SANTOS, Daniela Vieira. Não vá se perder por aí: a trajetória dos Mu-
tantes. São Paulo: Annablume, 2010.

______. As representações de nação nas canções de Chico Buarque e Ca-


etano Veloso: do nacional-popular à mundialização. Tese [Doutorado
em Sociologia]. IFCH/Unicamp, Campinas, SP, 2014.

SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1992.

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia da Letras, 1997.

ZAN, José Roberto. Do Fundo de Quintal à Vanguarda. 1997. Tese


(Doutorado em Sociologia) IFCH/UNICAMP, Campinas, 1997.

151
O caminho das pedras:
rock e MPB na revista Rolling Stone edição brasileira (1972)

Cleber Sberni Junior *

A revista Rolling Stone edição brasileira


A Rolling Stone editada no Brasil no início da década de 1970
foi uma revista especializada em música, comportamento e contra-
cultura, e os gêneros musicais predominantes em suas páginas eram o
rock internacional, o rock produzido no Brasil e a MPB de influência
tropicalista. Sediada no Rio de Janeiro, a publicação era distribuída
para todo o Brasil, vendida em bancas de jornal das principais cidades
do país1. Os parâmetros que norteiam as linhas editorias e referências
culturais e musicais da Rolling Stone estão identificados com o univer-
so da contracultura que, no Brasil, mistura-se ao clima tenso dos anos
de recrudescimento da ditadura militar no início da década.
A edição brasileira da Rolling Stone possui um vínculo forte com
uma cultura estrangeira, sinalizando para uma cultura jovem mun-
dializada, assim como também está em sintonia com o universo da
contracultura, que pode ser caracterizado por manifestações culturais
e pela produção artística do início da década de 1970, que se utiliza
de uma série de obras e linguagens (artes plásticas, música, cinema,
* Doutor em História e Cultura Social, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Franca).
Nesse sentido, pode-se apontar que a revista chegava até as bancas pela empresa Fernando Chinaglia
1

Distribuidor, portanto, com a utilização de aparatos formais de distribuição; além de possuir vendedo-
res informais que circulavam por pontos do Rio de Janeiro para vendê-la.

153
Cleber Sberni Junior

poesia), em contraposição às correntes principais, oficiais ou não, de


produção da cultura, e guiada pelos caminhos marginais.
Frederico Coelho, em seu livro Eu, brasileiro, confesso minha
culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e
1970, afirma que existe a necessidade do entendimento das “formas
assumidas pela ideia de marginalidade” no início da década de 1970
(2010, p. 197), e quanto a uma caracterização, o autor afirma:

“[...] entender o que foi a marginalia é desmistificar os rótulos frou-


xos ou pejorativos relativos às ações como o ripismo, o udigrudi e
o desbunde, tão utilizados no Brasil da época – e até hoje – para
desqualificar manifestações que não fosse ‘oficiais’, ‘de esquerda’ ou
‘consagradas’. O que deve ser entendido, repetido, é a diferença en-
tre ser passivamente marginalizado em um determinado espaço
de ação social e estar estrategicamente se colocando à margem do
que acontece nos canais ditos ‘normais’, negando-se a fazer parte
desses com o intuito de efetivar práticas” (2010, p. 207).

Quanto à movimentação cultural, Frederico Coelho afirma a


existência de uma estratégia de atuação nos diferentes veículos, utili-
zada por intelectuais, jornalistas e artistas, como Luiz Carlos Maciel,
Torquato Neto, Hélio Oiticica e muitos outros, ligados à produção cul-
tural, criando uma rede de informações.
A Rolling Stone faz parte dessa rede de informações criada, loca-
lizando-se em posições marginais ao sistema político cultural instituí-
do e ao circuito cultural massivo. Nesse sentido, identifica-se a contra-
cultura como uma estratégia de atuação, comportamento e forma de
provocação, e por que não, resistência, em um momento tenso: o fim
da década de 1960 e os primeiros anos da década de 19702.
Essas manifestações são comumente identificadas de forma reducionista e mecânica com a contra-
2

cultura internacional, ou ainda como pós-tropicalismo, e apresentam simplificações e estereótipos.


Assim, não se limitam a uma reprodução para referenciais culturais, mas se colocam como posições
estratégias de atuação.

154
O caminho das pedras: rock e MPB na revista Rolling Stone edição brasileira (1972)

Ao todo, foram veiculadas 37 edições3, que traziam artigos


originais e textos traduzidos da Rolling Stone norte-americana. Im-
pressa em papel-jornal, a revista tinha suas páginas ilustradas por
farto material gráfico e fotográfico. A produção musical era aborda-
da em seus diversos aspectos e a publicação repercutia a música em
seus processos de criação, produção e circulação, mesmo não de-
senvolvendo ou sistematizando uma crítica centrada em elementos
técnico-musicais. Como título especializado em jornalismo musical,
o papel desempenhado pela publicação apontava para a promoção
das atividades da cena musical carioca, para a valorização do rock
de modo geral, e seus diálogos com a MPB, e para a atividade da
indústria fonográfica.
Tratada como objeto e fonte histórica, busca-se relacionar os prin-
cipais temas abordados pela revista e o seu contexto de referências. Ob-
serva-se que a publicação foi um veículo de divulgação das tendências
mundializadas e cosmopolitas e se prestava a dar suporte ao anúncio de
apresentações, ao registro e comentário da produção musical contem-
porânea, além de informar o público e defender posicionamentos.
Segundo Maria Del Carmen Grillo, em El estúdio de revistas
como objeto historiográfico para La história de las redes intelectuales,
no trato dos periódicos e das formas de caracterização de uma fonte
periódica, deve-se observar a existência de uma forte relação entre as
publicações e seus autores. Esses aspectos são revelados no teor dos
textos e abrem questões que ajudam a delinear os contornos mais es-
pecíficos da publicação estudada. Assim, é possível localizar em um
jornal ou revista a formação de uma rede de intelectuais que utiliza o

O número zero saiu em dezembro de 1971, como exemplar promocional, em busca de possíveis
3

anunciantes. A ele, seguiram-se mais 36 edições regulares e comercializadas em bancas de jornal. Em


seu momento inicial, a revista chegava às bancas quinzenalmente com uma tiragem que totalizava
25.000 exemplares. Em meados de 1972, a publicação passa a ser um periódico semanal, com a tiragem
diminuída para 10.000. Atualmente, o conteúdo integral dos exemplares de Rolling Stone pode ser
consultado na internet pelo Projeto Pedra Rolante – Hemeroteca Digital Rolling Stone Brasil, que pode
ser acessada pelo endereço eletrônico: https://www.pedrarolante.com.br/.

155
Cleber Sberni Junior

veículo para divulgar os assuntos e os temas debatidos, defendendo


causas e abraçando ideologias (2010, p. 5).
Como afirmado há pouco, a Rolling Stone contava com textos
originais e serviu de suporte para a atuação de jovens jornalistas,
sendo fundamental nas trajetórias desses profissionais. O corpo edi-
torial era formado por Luiz Carlos Maciel como editor e Ezequiel
Neves como redator. Joel Macedo, que atuou durante boa parte da
existência da publicação como correspondente no exterior, a partir
de dezembro de 1972 foi o responsável pelo departamento de jor-
nalismo. A então estudante de jornalismo Ana Maria Bahiana era
a assistente do editor; Lapi ocupou as funções de diretor de arte e
ilustrador; e as fotografias ficaram a cargo de Geraldo Melo. O jor-
nalista Okky de Souza, recém-chegado de uma temporada na Ingla-
terra, fazia a tradução dos textos de autores estrangeiros publicados
na Rolling Stone norte-americana. Jefferson “Dropé” Tomassi fazia o
papel de repórter volante, além de ajudar na distribuição da revista
e sua venda nas ruas, bem como na realização de serviços operacio-
nais. Na direção editorial, durante toda sua curta existência, mante-
ve-se a dupla editor e redator.
A este processo de formação do grupo inicial, acrescenta-se ain-
da outra lista extensa, volátil e oscilante de colaboradores, que contava
com Tárik de Souza, José Emílio Rondeau, Jamari França, Maurício
Kubrusly, Álvaro Cardoso Gomes, Walda Menezes, Monica Hirst, Car-
los Gouveia, Therezinha Russo, Cláudio Lysas, Fernando Lemos, Car-
los Ferreira, Paulo Machado, Ronaldo Tapajós, Carlos Alberto Sion,
Théo P. Drummond, Affonso Seabra, Ibanez Filho, Peninha Schmidt,
Ademir Lemos e Marinaldo Guimarães; além de artistas e escritores
como Capinam, Paulo Coelho, José Simão, Odete Lara, Chacal, Hélio
Oiticica e Antônio Bivar; e, ainda, músicos como Gabriel O’Meara,
Jorge Mautner, Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix. Esta longa lista indica uma

156
O caminho das pedras: rock e MPB na revista Rolling Stone edição brasileira (1972)

aproximação da revista com os artífices da cena cultural e musical bra-


sileira do princípio da década de 1970.
Verifica-se, portanto, que o corpo de colaboradores4 era carac-
terizado por um grupo de jovens jornalistas, escritores e músicos que
produziam textos comprometidos com a divulgação do trabalho de
artistas identificados com a MPB e com o rock produzido dentro e fora
do país. A Rolling Stone falava de seu tempo e tratava dos aconteci-
mentos que marcavam a música direcionada à juventude, nos quais o
rock e o pop não eram presenças exóticas ou estranhas, mas sim pron-
tamente incorporados ao repertório de referências da publicação.
Também é importante notar que as páginas da revista serviram
de suporte para a atuação desses jovens jornalistas ou como labora-
tório de projetos, forjando uma rede de profissionais com histórias
e ideias compartilhadas. Assim, a Rolling Stone foi importante tanto
para os projetos coletivos do grupo – vide o Jornal de Música5, su-
cessor de Rolling Stone – quanto para as trajetórias individuais desses
jornalistas junto à imprensa periódica de grande alcance.
A curta existência da revista, no entanto, pode ser caracteriza-
da por três fases6. A primeira data de sua inauguração, em fevereiro
4
Maria del Carmen Grillo afirma que é necessário um mapeamento do corpo de colaboradores e mem-
bros da equipe do periódico, que englobava vários profissionais, tais como: redatores, ilustradores,
fotógrafos, correspondentes, colaboradores especiais e tradutores (2010, p. 15). É muito difícil precisar
as relações econômicas entre a Rolling Stone e o corpo de colaboradores. Assim, não se sabe ao certo
se as matérias eram pagas ou se as colaborações eram apenas voluntárias, funcionando apenas como
contribuições intelectuais.
5
Com perfil independente e constituído a partir de uma gestão coletiva, a publicação chegou às bancas
em novembro de 1974, como encarte na revista mensal colecionável Rock a História e a Glória, ambos
criados por Tárik de Souza, Ezequiel Neves e Ana Maria Bahiana. A publicação possuía, assim, uma
dupla personalidade, e durou três anos. Com característica de título especializado em música, possuía
longos textos e entrevistas. No Jornal de Música, a cena nacional tinha um peso grande, com matérias,
resenhas de discos e entrevistas, trazendo ainda perfis de artistas emergentes, lançamentos indepen-
dentes, shows e cartas dos leitores. Portanto, sua atividade muitas vezes era a de destacar aquilo que não
tinha espaço suficiente nas páginas da grande imprensa.
6
Para classificarmos o funcionamento do periódico em três fases, levamos em consideração a sua tra-
jetória de existência, e observamos sua periodicidade, a tiragem, a situação jurídica e relação com a
matriz norte americana.

157
Cleber Sberni Junior

de 1972, e sua periodicidade quinzenal. Em um segundo momento,


a revista tornou-se semanal e aconteceram mudanças no quadro da
sociedade comercial, com a exclusão de dois sócios. E, por fim, iden-
tifica-se uma última fase marcada pelas modificações no formato da
publicação (tamanho e cores) e no título da revista Rolling Stone, que
recebe o acréscimo do subtítulo “Pirata”7.
No Brasil, a Rolling Stone era publicada pela empresa Camelopar
Produções Gráficas Ltda8, responsável pelas tratativas com a matriz
dos Estados Unidos, comprometendo-se a pagar os royalties para a
republicação de uma versão do periódico no país. Em meio às difi-
culdades de distribuição e financiamento da revista, o pagamento de
royalties à matriz deixou de ser efetuado, e, em pouco tempo, o ma-
terial deixou de chegar. As dificuldades financeiras enfrentadas pela
Rolling Stone ao longo de sua curta existência acabaram por findar
suas atividades precocemente. Observa-se que, naquele momento,
não existia um mercado vigoroso para o rock por aqui, como também
este mercado não se formou na década de 1970, surgindo apenas em
meados da década seguinte.
A partir da Rolling Stone é possível entrever a chegada ou ten-
tativa de estabelecimento do rock no mercado brasileiro, em alguns
aspectos mesclando-se com a música brasileira e produzindo novas
sonoridades, como os Novos Baianos, ou a produção de bandas iden-
tificadas mais diretamente com o rock, como Mutantes, Módulo 1000
ou O Terço. Nesse sentido, a revista era uma espécie de vanguarda das
novas tendências musicais que iam do rock ao pop e à MPB.

Segundo Maria del Carmen Grillo, o nome do periódico é o “signo” do seu programa de pensamento e
7

ação, e revela a “missão da revista”. Habitualmente quando se coloca um subtítulo, existe ou sinaliza-se
para alguma mudança (2010, p. 10).
A sociedade empresarial de Rolling Stone era formada por quatro sócios estrangeiros identificados como
8

diretores e administradores: Stephen Banks, Stephane Gilles Escat, Theodore George e Michael Killin-
gbeck. O sócio-proprietário Mick Killingbeck é apontado como o mais ativo. Contudo, a Camelopar
Produções Gráficas Ltda não prosperou e ocorreu a saída de dois sócios.

158
O caminho das pedras: rock e MPB na revista Rolling Stone edição brasileira (1972)

Panorama musical e indústria fonográfica: rock e MPB


em Rolling Stone
Mesmo que o mercado de bens simbólicos atravessasse um mo-
mento de afirmação e desenvolvimento no país, e a indústria fonográ-
fica vivesse um momento de expansão e segmentação, o rock ainda
não havia sido absorvido pelo mercado e não obtinha um respaldo
mais efetivo da indústria fonográfica, comparado com a MPB9, mes-
mo que ambos estilos musicais fossem destinados ao público jovem.
Márcia Tosta Dias, em Os Donos da voz – Indústria fonográfica
brasileira e mundialização da cultura, afirma que é necessário obser-
var alguns fatores para caracterizar as particularidades do processo
de expansão da indústria fonográfica brasileira no início da década
de 1970. São eles: a consolidação das gravadoras e do mercado fono-
gráfico; o advento do LP como principal suporte de música vendido
e em processo de substituição dos compactos; a presença significati-
va da música estrangeira nas paradas de sucesso; e a articulação da
indústria cultural em diferentes mídias para a construção da carreira
dos artistas. E é neste momento que as gravadoras constituíram elen-
cos estáveis com os nomes hoje clássicos da MPB, tais como Chico
Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Betânia e
tantos outros. Verifica-se que a consolidação do mercado fonográ-
fico esteve em sincronia com a afirmação da MPB como um pro-
duto cultural valorizado, ocupando lugar de destaque na hierarquia
cultural brasileira, identificada com a modernidade e o refinamento
cultural (DIAS, 2008, p. 59).
9
O conceito de MPB, para Marcos Napolitano, é impensável sem a ideia de uma cultura política marca-
da pelo nacional-popular de esquerda. “A busca de uma expressão que fosse, ao mesmo tempo, nacio-
nal e cosmopolita, popular e sofisticada marcou a gênese da MPB ‘moderna’, em meados dos anos 1960,
tornando-a o centro da reorganização da própria tradição musical brasileira. (...). Esses dilemas foram
vividos sob o signo de escolhas que pareciam autoexcludentes, e estiveram presentes como um todo:
tradição e ruptura, engajamento e vanguarda, nacionalismo e cosmopolitismo, populismo e revolução,
folclore e erudição, cultura popular e indústria cultural” (2006, 126-127).

159
Cleber Sberni Junior

Assim, gravadoras como Odeon, Philips, Som Livre, Continen-


tal primaram pela formação de elencos estáveis “que vendam discos
com regularidade”, o que pode ser mais seguro e mais lucrativo do
que investir no mercado de sucessos que necessita ser “constantemen-
te alimentado e, por mais que utilize fórmulas consagradas, não tem
retorno totalmente garantido” (DIAS, 2008, p. 61).
Na mesma direção, Marcos Napolitano afirma que o panorama
fonográfico sofreu grande mudança a partir de 1969, quando o mer-
cado brasileiro passou a consumir canções compostas e produzidas no
próprio país, e o LP passou a ser o principal suporte para circulação de
músicas. Se na década de 1950 o disco era um subproduto da atividade
dos músicos e compositores, já na década de 1970, ele determinava
o mercado. Essa mudança representou a personificação da criação e
da performance musical, ligada à necessidade de rotular as músicas
na forma de ‘movimentos culturais’, visando uma relação mais segu-
ra com o público consumidor. “Essa nova rotulação foi fundamental
para reorganizar o mercado musical, na medida em que a própria cria-
ção musical se redimensionava” (NAPOLITANO, 2001, p. 83 – 84).
Napolitano afirma, ainda, que, no início da década de 1970, a
“grande tendência do mercado, com a crise dos festivais da canção” e
com o cerceamento da criação musical pela censura, “era a música jo-
vem, o pop e o rock, que garantiam um espaço maior na preferência de
uma boa parte da juventude”. Segundo o autor, a partir do “Tropicalis-
mo, diga-se, o pop e o rock passaram a fazer parte, inclusive, dos vários
idiomas musicais que caracterizavam a música brasileira” (2014, p. 179).
Neste momento, deve-se assinalar como características da MPB
tanto a valorização cultural junto ao público e à crítica especializada,
quanto a dispersão dos gêneros musicais predefinidos, o que contribui
para um movimento de diálogo e incorporação dos elementos estran-
geiros na música brasileira, permitindo um trânsito muito mais fluído
com o rock, por exemplo. Há abertura para uma pluralidade de escutas

160
O caminho das pedras: rock e MPB na revista Rolling Stone edição brasileira (1972)

e gêneros com a incorporação de influências do pop-rock de maneira


diferente, levando a uma tensão entre a tradição local e a experimen-
tação cosmopolita.
As transformações no cenário da produção musical e da indús-
tria fonográfica, apontadas por Tosta Dias e Napolitano, levantam
questões sobre o mercado musical que podem ser aferidas pela leitura
da Rolling Stone, que mesmo tendo uma trajetória curta, registra em
suas páginas ações da indústria fonográfica, tais como: a afirmação
da MPB como produto valorizado na hierarquia cultural brasileira;
a movimentação em torno do rock nacional, internacional e MPB; os
lançamentos de discos e as notícias do meio musical. Ou seja, particu-
laridades do processo de expansão da indústria fonográfica brasileira
no início da década de 1970.
Nesse sentido, destaca-se a coluna O Toque, de Ezequiel Neves,
considerada a mais importante da publicação, que fora responsável
pela veiculação de inúmeros artistas do rock internacional e também
do rock nacional, entre os quais se destacam Sá, Rodrix e Guarabyra;
Jards Macalé; Jorge Mautner; Caetano Veloso; Novos Baianos; Os Mu-
tantes, Módulo 1000; O Terço; A Bolha; Hermeto Pascoal; Milton Nas-
cimento; Lô Borges; Gilberto Gil; Walter Franco; Rubinho e Mauro
Assunção; Jorge Ben; Ruy Maurity Trio; Gal Costa; Rita Lee; Roberto
Carlos; Fábio, entre outros. Em sintonia com a música jovem, com as
tendências mundializadas e cosmopolitas, e com os diálogos travados
entre o rock internacional, a MPB e o rock brasileiro, ela trazia o en-
foque sobre um grupo heterogêneo de artistas, traçando sua trajetória
artística e promovendo lançamento de discos.
Em O Toque, o processo industrial vinculado à indústria fono-
gráfica ficava bastante evidente, pois Ezequiel Neves destacava a va-
lorização das capas, dos encartes e das embalagens dos LPs, trazendo
para a revista uma prática inovadora e marcante que se compatibilizava
com as tendências das gravadoras de aprimorarem os seus produtos. O

161
Cleber Sberni Junior

destaque das obras fonográficas ganhava novos contornos com a edi-


ção dos primeiros álbuns com discos duplos, encartes coloridos com
fotos e letras impressas, capas duplas, entre outros elementos que de-
notavam refinamento e cuidado da indústria em relação à veiculação
de produtos destinados à juventude, fomentando, portanto, a identifi-
cação do artista e de sua obra com o suporte e o formato musical.
Deste modo, o trabalho elaborado das gravadoras em relação
aos álbuns tinha consequência direta para a valorização dos artistas,
sobretudo os identificados com a MPB, o que também pode ser en-
tendido como uma estratégia da indústria fonográfica de afirmação
do LP no início da década de 1970. Ressalta-se, no entanto, que os
compactos tinham também grande importância para o cenário da re-
vista e eram fundamentais para as bandas de rock, sobretudo para as
iniciantes, que travavam difíceis relações com a indústria fonográfica.
Ao longo da publicação da Rolling Stone, a cena musical nacio-
nal e internacional foi esmiuçada em impressões e comentários que se
debruçavam sobre todo tipo de notícia no campo da música. A publi-
cação, desta forma, garantia espaço, por exemplo, tanto para eviden-
ciar a intensa produção de Caetano Veloso e Gilberto Gil no perío-
do, com o lançamento dos discos Transa, Araçá Azul e Expresso 2222
(todos de 1972) – ou a atuação de Caetano como produtor do álbum
Drama, de sua irmã, Maria Bethânia – quanto para garantir espaço
para as atividades de Jards Macalé com seu disco homônimo de 1972,
ou Jorge Mautner, com seu Para Iluminar a Cidade, do mesmo ano.
Em relação ao movimento de aproximação da MPB com o rock,
as opiniões dos articulistas da revista também variavam. Se, de um lado,
a produção do rock rural de Sá, Rodrix & Guarabyra, Passado, Presente
e Futuro (Odeon, 1972) recebe críticas positivas como bom exemplo
de harmonização entre elementos nacionais e estrangeiros, de outro, o
Clube da Esquina de Milton Nascimento e Lô Borges (Odeon, 1972) é
taxado na publicação de pretensioso e erudito, pois deixa escapar a es-
pontaneidade em prol de uma perspectiva mais elaborada e complexa.

162
O caminho das pedras: rock e MPB na revista Rolling Stone edição brasileira (1972)

De qualquer forma, percebe-se que diversos tipos de álbuns pas-


sam a ter espaço na revista, como Acabou Chorare (Som Livre, 1972),
dos Novos Baianos, ou Fa-Tal Gal a todo vapor de Gal Costa (Phillips,
1972), promovendo não apenas as músicas, mas os artistas e produ-
tores dos LPs. Verifica-se, de maneira emblemática, a promoção de
diálogos da MPB com o rock por meio da incorporação de elementos
e referências da linguagem musical deste na música brasileira. Nesse
sentido, os álbuns citados (Fa-Tal – Gal a Todo Vapor, Clube da Esqui-
na e Acabou Chorare) revelam um repertório que passa por um movi-
mento de reelaboração e síntese, apresentando trabalhos inovadores e
que soam como o rock brasileiro.
É importante salientar que artistas como Novos Baianos, Mil-
ton Nascimento e Gal Costa interessavam à Rolling Stone pelos diá-
logos musicais que estabeleciam, transitando entre o rock e a MPB, e
também por serem filiados ao universo de referências da contracul-
tura. Assim, alguns dos trabalhos mais inventivos e criativos neste
momento são de artistas identificados com a MPB que, tocando rock,
foram além de bandas como A Bolha e Módulo 1000, ou mesmo os
Mutantes, que produziam suas músicas de maneira fiel aos estilos
originais estrangeiros.
Na Rolling Stone, o artigo “Novos Baianos: outra transação”, por
exemplo, traz as considerações de Joel Macedo sobre o show desta
banda no Teatro Teresa Raquel, no qual argumenta pela identificação
do rock brasileiro:

[...] era um swing alucinante e o som do rock nacional esta-


va finalmente achado. E eu só não direi que se tratava de um
samba-rock, por que os Novos Baianos também fazem dele, um
maxixe rock, um baião rock, ou um bolero rock, música enfim.
[...] (MACEDO, RS 02 – Rio, 15 de fevereiro de 1972, p.05).

163
Cleber Sberni Junior

O artigo foi escrito antes do lançamento de Acabou Chorare, o


segundo grupo dos Novos Baianos, lançado pela Som Livre. Mas, ain-
da sim, pela descrição do jornalista, percebe-se claramente a mensa-
gem de que a música da banda é produzida a partir de misturas que
procuram criar uma sonoridade cheia de fusões musicais e referências
a gêneros brasileiros tocados sob a influência do rock.

O que se viu na histórica madrugada de 16 de janeiro foi o en-


contro de várias culturas, a unificação de várias estreias e lin-
guagens musicais, naquilo que daquele dia em diante passou
a ser o som brasileiro do desbunde universal. Uma mistura de
ponto de macumba com hard rock, xaxado, baladas de Roberto
Carlos, samba enredo e muita queimação, da parte das tumbas,
baterias, maracás, agogôs e pandeiros. [...] (MACEDO, RS 02 –
Rio, 15 de fevereiro de 1972, p.05).

De maneira geral, os textos publicados na Rolling Stone reprodu-


ziam juízos positivos sobre um novo repertório de sons nacionais que
incorporavam as fusões entre o rock e a tradição musical brasileira. A pu-
blicação, desta forma, abria um canal para a divulgação da tímida pro-
dução fonográfica do rock nacional e expunha as relações entre artistas
e gravadoras, demonstrando um mercado ainda pouco favorável para as
bandas e cantores de rock, visto que os castings das gravadoras destinados
ao mercado jovem quase não contemplavam este gênero musical.
De todo modo, vislumbra-se a importância da revista no acompa-
nhamento de bandas de rock como Mutantes, O Terço, Módulo 1000 e
A Bollha, que se rendiam mais fortemente às influências internacionais.
Ao divulgar estas produções no início da década de 1970, a Rolling Stone
embrenhava-se pelas trilhas do rock, que ainda seguiria por caminhos
marginais ao mainstream fonográfico por um bom tempo.

164
O caminho das pedras: rock e MPB na revista Rolling Stone edição brasileira (1972)

O caminho das pedras: rock brasileiro e indústria


fonográfica nas páginas da Rolling Stone
Entre os assuntos mais constantes ao longo da publicação da
Rolling Stone está a valorização de bandas à procura de espaço junto
ao público e, fundamentalmente, junto às gravadoras. Na edição nú-
mero 20 do periódico, as considerações de Ezequiel Neves voltam-se
para as questões relativas à atividade de novas bandas em São Paulo10,
ao que faz comentários referentes à indústria fonográfica e suas estra-
tégias de recrutamento, lançamento de artistas de rock e a formação
de elencos: “Muitos desses grupos já gravaram compactos, mas acho
que só compacto não dá pé”. E emenda: “O Mona por exemplo... O
grupo está estalando de quente e não apareceu nenhuma gravadora
interessada nos garotos [...]” (NEVES, RS 20 – Rio, 12 de setembro de
1972, p.02).
Outra questão que repercutia bastante nas páginas da publi-
cação era a promoção e divulgação dos artistas identificados com o
rock. Assim, colunas como O Toque tratavam sistematicamente sobre a
movimentação e atividade de diversas bandas, ao que Ezequiel Neves
afirmava:

Por estas e por outras é que, cada vez mais, acredito que as gra-
vadoras (em sua maioria) fazem o possível para atrapalhar, para
sabotar mesmo a carreira dos contratados. [...]. Atenção garo-
tos! Não marquem touca. Me procurem com seus disquinhos e
discões. Parece que o anonimato é a última coisa que vocês pre-
tendem, caso contrário não teriam batalhado pra gravar suas
canções (NEVES, RS 26 – Rio, 24 de outubro de 1972, p.02).

10
Nesse texto, Ezequiel Neves produz uma longa lista de grupos que estão fazendo show na cidade de São
Paulo e que possuem alguns compactos lançados, como Lee Jackson, Alpha Centauri, Eyes, Porão 99,
Escória, Mako Shark, Koumpha, Buttons, Memphis, Fush, Made in Brazil, Néctar, Sunday, Mona, U. S.
Mail, Strip Tease de Plantas Carnívoras, Blow-up, Urubu Roxo, Stillo Set, e Coristas do Inferno

165
Cleber Sberni Junior

Percebe-se, pelo excerto, que o colunista da revista tornava-se


quase cúmplice dos novos aspirantes a roqueiros, disponibilizando-se
para ajudar na divulgação de suas produções para o público por meio
do envolvimento no processo de construção da cena musical do rock
brasileiro. Na medida em que tecia comentários sobre novos artistas
ou grupos estreantes no mercado, Neves aproveitava o ensejo para
também provocar as gravadoras, sinalizando sua insatisfação com o
que estava sendo produzido.
Deste modo, usava a sua coluna para criar oportunidades de
divulgação de bandas e se posicionar como um agitador cultural que
apoiava os novos grupos e chamava atenção das gravadoras para a qua-
lidade do que estava sendo produzido. Sobre este aspecto, escreveu:

Saiu pela Phillips um compacto simples (mas muito complicado)


do O Terço. O grupo é brasileiro, mas o som que fazem é heavy
britânico. Eles são competentes pacas, mas ainda não resolveram
as transas das letras em português. [...]. Acho que se eles tive-
rem oportunidade de gravar um LP farão a coisa com uma classe
incrível. As improvisações instrumentais são o forte do grupo,
coisa que só pode ser feita mesmo num álbum. E tomara que gra-
vem um logo (NEVES, RS 23 – Rio, 03 de outubro de 1972, p. 2).

Percebe-se que o posicionamento adotado em O Toque ia além


de mera crítica, tangenciando também a criação musical e as relações
entre a indústria fonágrafica e os artistas. Ezequiel Neves chamava
atenção para a relação entre a música e o suporte material, bem como
para a própria política de lançamento das gravadoras, fazendo suges-
tões de investimentos musicais (no caso, em um LP de O Terço).
Deste modo, tratava dos aspectos da produção musical como
processo industrial e comercial, e, levando em consideração as mu-
danças do período que consolidou o LP como veículo e suporte para

166
O caminho das pedras: rock e MPB na revista Rolling Stone edição brasileira (1972)

a circulação, fruição e materialização da obra musical, posicionava-se


de maneira sincronizada com o mercado e a indústria fonográfica.
Mas as relações entre as bandas de rock e as gravadoras nem
sempre garantiam um acesso ao disco, visto que os grupos almejavam
uma inserção no mercado e um processo de profissionalização que
nem sempre se concretizava. É o que se observa, por exemplo, pelo
trajeto da banda O Faia: o grupo possuia um repertório de composi-
ções próprias tocadas em suas apresentações e esperavam poder gra-
vá-las em um álbum, conforme verifica-se no artigo “Rock no Brasil”,
de Ana Maria Bahiana:

Depois desses seis meses de apresentações quase contínuas, O


Faia está cheio de planos pra partir pra várias. O plano maior
mesmo é a gravação de um disco, que eles consideram funda-
mental para a complementação do seu trabalho. O disco con-
fere um certo status ao artista, facilita muito as transas de di-
vulgação, eles dizem, e, além disso, é o melhor meio de mostrar
a mais gente o trabalho e o som do grupo (BAHIANA, RS 30
– Rio, 21 de novembro de 1972 p. 9).

Observa-se que, no artigo, a questão da inserção das bandas de


rock na indústria fonográfica aparece desdobrada em dois pontos: em
primeiro lugar, o “disco confere um certo status ao artista”; e, em se-
gundo, o disco é identificado como “o melhor meio de mostrar a mais
gente o trabalho e o som do grupo”. Estas são questões que podem
caracterizar as difíceis relações entre artistas e gravadoras.
Para Bahiana, o disco qualifica o trabalho do artista, colocan-
do-o num patamar superior, servindo quase que como uma chancela
da indústria fonográfica e, por consequência, um tipo de legitimação
da produção musical. Para além da questão do disco como legitima-
dor da obra do artista, ele tem a importante função de promover a

167
Cleber Sberni Junior

circulação da obra musical que, materializada em um compacto ou LP,


pode ser levada a diversos locais, adquirida pelo público e servir ainda
para radiodifusão, constituindo-se como um vigoroso veículo11.
Todavia, na mesma medida em que a Rolling Stone apoiava
a cena musical do rock brasileiro, não o fazia de modo imparcial.
Pelo contrário, também realizava críticas negativas às diversas pro-
duções, como se percebe em O Toque, no qual Ezequiel Neves es-
creveu que “o rock tupiniquim, a julgar pelos últimos lançamentos
no gênero, Não fale com as Paredes, do Módulo 100012, e no País dos
Bauretz, dos Mutantes, vai de mal a pior” (NEVES, RS 08 – Rio, 16
de maio de 1972, p.04). Ainda sobre o álbum Não fale com Pare-
des13, do Módulo 1000:

O disco do Módulo não resiste nem a uma análise superficial.


A gente mata a charada (?) deles num minuto: a única coisa
que sabem fazer é caricaturar grupos ingleses, também muito
ruins, como Black Sabath e o Uriah Heep. [...] (NEVES, RS 08
– Rio, 16 de maio de 1972, p.04).

O colunista continua sua crítica afirmando que o grupo se revela


sem criatividade, repetitivo e que não vai além de reproduzir as suas
matrizes e “caricaturar” bandas de rock inglesas:

Na Rolling Stone edição 35, uma nota afirma que o grupo O Faia estava nos estúdios da RCA gravando
11

um compacto com a produção de Raul Seixas (RS 35 – Rio, 29 de dezembro de 1972 – EDIÇÃO PI-
RATA, p. 7). Porém, a gravação nunca foi finalizada, e as músicas nunca saíram. Raul Seixas, em 1973,
deixaria a sua posição de produtor e se lançaria como cantor e o conjunto O Faia acaba não gravando
nenhum LP, e o seu único registro de estúdio é a gravação do compacto acompanhando Zé Rodrix em
“Casa no Campo”, lançado pela Odeon.
A banda foi formada no Rio de Janeiro e, no início da década de 1970, os integrantes eram Luis Paulo
12

Simas (órgão, piano e vocais), Eduardo José Leal Neto (guitarra solo), Daniel Cardona Romani (gui-
tarra, violão e vocais), e Candinho – Candido Souza Farias – (bateria).
Faixas do Disco: 1.Turpe Est Sine Crine Caput (Módulo 1000), 2.Não Fale com Paredes (Módulo 1000,
13

Victor Martins), 3. Espelho (Módulo 1000), 4. Lem. Ed. Êcalg (Módulo 1000), 5. Olho por Olho. Dente
por Dente (Módulo 1000), 6. Metrô Mental (Módulo 1000), 7. Teclados (Módulo 1000), 8. Salve-se
Quem Puder (Módulo 1000), 9. Animáia (Módulo 1000).

168
O caminho das pedras: rock e MPB na revista Rolling Stone edição brasileira (1972)

Os 32 minutos de duração de Não Fale com Paredes equivalem


a uma lição de não fazer som heavy. É uma babaquice total ficar
repetindo interminavelmente os mesmos riffs. Isso acentua a
falta de talento, a incompetência mesmo, dos componentes do
grupo como instrumentistas e compositores. [...]. (NEVES, RS
08 – Rio, 16 de maio de 1972, p.04).

Segundo Nelio Rodrigues, a gravação do álbum pela pequena


Top Tape foi possibilitada pela amizade e afinidade musical entre os
membros do Módulo e Ademir Lemos14, produtor da gravadora, que
deu plena autonomia para a banda executar os seus números no estú-
dio da Musidisc, na Lapa, Rio de Janeiro, em 1971 (2014, p. 164).
As duras críticas dispensadas ao Módulo 1000, pela “falta de ta-
lento” e “incompetência” dos instrumentistas e compositores, também
foram dirigidas aos Mutantes, embora a banda paulista já tivesse uma
trajetória consistente. Inclusive, justamente pelo tempo de estrada é
que Neves apreciou de forma negativa o álbum Os Mutantes e seus
cometas no país dos Bauretz15:

O caso dos Mutantes é diferente. Eles têm um background ex-


celente, têm talento, são instrumentistas versáteis e composito-
res razoáveis. Isso tudo está presente no seu No País dos Bau-
retz, mas não consegue salvar o disco. [...] Os Mutantes estão
correndo um sério risco: têm plena consciência de seu talento
e versatilidade, mas não sabem como domá-los. E isso os joga
14
Colaborador de Rolling Stone, o produtor era também o discotecário responsável pela edição da série
de coletâneas intitulada Ademir do Le Bateau, e estava entre os discos que mais vendiam da Top Tape
(2014, p. 164).
Faixas do Disco: 1. Posso perder minha mulher, minha mãe, desde que eu tenha o rock and roll (Arnal-
15

do Baptista, Rita Lee, Liminha), 2. Vida de cachorro (Rita Lee, Arnaldo Baptista, Sérgio Dias), 3. Dune
Buggy (Rita Lee, Arnaldo Baptista, Sérgio Dias), 4. Cantor de mambo (Élcio Decário, Arnaldo Baptista,
Rita Lee), 5. Beijo exagerado (Rita Lee, Arnaldo Baptista, Sérgio Dias)/ Todo mundo pastou (Ismar S.
Andrade “Bororó”), 6. Balada do Louco (Arnaldo Baptista, Rita Lee), 7. A hora e a vez do cabelo nascer
(Liminha, Mutantes), 8. Rua Augusta (Hervé Cordovil), Mutantes e seus cometas no país dos Bauretz
(Ronaldo Leme, Liminha, Mutantes), 10. Todo mundo pastou II (Ismar S. Andrade “Bororó”).

169
Cleber Sberni Junior

ao encontro da dispersão. Dispersão essa que acaba não sig-


nificando nada. Que é justamente o que significa No País dos
Bauretz (NEVES, RS 08 – Rio, 16 de maio de 1972, p.04).

Para Ezequiel, diferentemente do Módulo 1000, os Mutantes


vinham de uma trajetória que abarcava os tropicalistas e os eventos
ocorridos na segunda metade da década de 1960, posicionando-se em
outro patamar. Ele os via como músicos talentosos, embora acreditas-
se que naquele momento não conseguiram concentrar suas qualida-
des como instrumentistas e compositores para produzirem o álbum
comentado.
Outro tema que pode ser considerado como destaque na Rolling
Stone é a influência do rock internacional entre as bandas de rock bra-
sileiras, sobretudo o rock progressivo inglês. Esse ponto despontava
como certo incômodo nos textos de Ezequiel Neves, que afirmava que
O Terço era uma banda brasileira, mas fazia um rock estilo “heavy bri-
tânico”. Sobre o Módulo 1000, o colunista afirmava ainda que a banda
fazia reprodução das matrizes, as bandas de rock inglesas.
Em diversas oportunidades, as referências às bandas de rock
progressivo inglesas foram captadas na coluna O Toque, e, em um tex-
to ambíguo, na Rolling Stone número 27, de 31 de outubro, Ezequiel
Neves refere-se negativamente ao trabalho do grupo inglês Yes e nota-
damente ao rock progressivo, e, ao final, emenda:

O Yes está fazendo escola por aqui. Já vi uns três grupos paulis-
tas tocando igualzinho a eles. Achei divertido, pois não tenho
preconceito nenhum contra esses carbonos. Confesso mesmo
que acho a coisa bem melhor que o original – mais subdesen-
volvida e mais realista. Aliás me esbaldei com as yesadas feitas
pelos Mutantes [...] (NEVES, RS 27 – Rio, 31 de outubro de
1972, p.02).

170
O caminho das pedras: rock e MPB na revista Rolling Stone edição brasileira (1972)

A passagem acima nos ajuda a observar as próprias opiniões


ambíguas de Ezequiel Neves. Aqui, ele aponta uma forma de aprecia-
ção sobre a criação musical de alguns grupos de rock, aqueles identifi-
cados com o rock progressivo. Mas essa opinião é construída com um
toque de cinismo que, em várias passagens, caracteriza bandas como
Mona, O Terço, Módulo 1000 e agora, Os Mutantes, como fortemente
influenciadas pelos grupos ingleses. Para ele, que não via essa apro-
ximação com bons olhos, as produções nacionais não passavam de
“carbono”, denotando uma visão bastante negativa sobre a produção e
criação musical desses conjuntos musicais.
Ainda sobre o assunto das influências musicais, ou dos “carbo-
nos”, Ezequiel Neves produz um olhar diferente em outra crônica, ago-
ra sobre o segundo álbum solo de Rita Lee: Hoje é o Primeiro Dia do
Resto de Nossas Vidas16, e escreve um texto positivo:

Estou meio confuso. Não sei como comentar o LP de Rita Lee


chamado de Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida. Quer
dizer, estou ouvindo o disco com uma alegria incrível, curtindo
demais, mas ao mesmo tempo estou curioso querendo saber
onde é que ela quer chegar. Meu ouvido está cheio de comi-
chões com tantos sonzinhos intrigantes, tantas mixagens curti-
dinhas e pinkfloydices tupiniquins. Tudo isso no bom sentido é
claro (NEVES, RS 21 – Rio, 19 de setembro de 1972, p.02).

Hoje é o primeiro dia do resto de sua vida é bem recebido por Eze-
quiel Neves, que depois de utilizar o neologismo “yesadas” para criticar
a música dos Mutantes, referindo-se à banda Yes, agora usa o termo
Faixas do Disco: 1. Vamos tratar da saúde (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Liminha), 2. Beija-me amor
16

(Arnaldo Baptista, Élcio Decário), 3. Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida (Arnaldo Baptista,
Sérgio Dias), 4. Teimosia (Rita Lee, Liminha, Arnaldo Baptista), 5. Frique comigo (Arnaldo Baptista,
Ronaldo Leme, Sérgio Dias, Rita Lee), 6. Amor em Branco e Preto (Rita Lee, Arnaldo Baptista), 7.
Tiroleite (Arnaldo Baptista, Sérgio Dias, Rita Lee, Liminha), 8. Tapupukitipa (Arnaldo Baptista, Rita
Lee), 9. De novo aqui meu bom José (Arnaldo Baptista, Sérgio Dias, Rita Lee, Liminha), 10. Superfície
do Planeta (Arnaldo Baptista).

171
Cleber Sberni Junior

“pinkfloydices tupiniquins” para fazer alusão ao rock progressivo da ban-


da Pink Floyd. Essas expressões foram usadas para indicar as referências
sonoras que aparecem ao longo do álbum e que marcaram a influência do
rock progressivo sobre as bandas brasileiras. Ezequiel Neves afirma que:

O disco é todo ele um desbunde. [...]. O som do disco é um


sonzão, muito condizente com os recados subliminares e Green
Grass dos Mutantes. [...] O título do LP sugere uma opção ao
desbunde bem-humorado e juvenil (o que é fantástico nesses
tempos de cucas prematuramente envelhecidas). Fico torcendo
que essa nova vida dos Mutantes seja longa. Aliás, longuíssima
(NEVES, RS 21 – Rio, 19 de setembro de 1972, p.02).

O disco de Rita Lee teve uma participação fundamental dos Mu-


tantes, que tocaram em todas as faixas, com Arnaldo Batista à frente
do processo de gravação nos recém-inaugurados estúdios da Eldora-
do. Porém, mesmo que se desejasse uma longa vida aos Mutantes, o
álbum marcava a saída de Rita Lee da banda, tornando-se um marco
na transição da cantora em direção a uma carreira solo.
Verifica-se, portanto, que apesar de serem considerados a referên-
cia mais marcante do rock brasileiro em 1972, com uma carreira que re-
monta à década de 1960, ao tropicalismo e aos festivais da canção, tendo
lançado cinco LPs pela Philips-Phonogram, os Mutantes encaravam um
momento paradoxal em que eram alvo das críticas destacadas na Rolling
Stone, especialmente depois do lançamento do já citado “Os Mutantes e
seus cometas no país dos Bauretz” e da saída de Rita do grupo.
Nesse sentido, a Rolling Stone 33, de dezembro de 1972, por
exemplo, traz a matéria não assinada intitulada “Rita e os Mutantes:
duas jogadas”, em que afirma que “Rita Lee e os Mutantes se separa-
ram mesmo, pelo menos por uns tempos. Mas continuam transando
muitas em dois lances diferentes” (RS 33 – Rio, 12 de dezembro de
1972, p.06-07):

172
O caminho das pedras: rock e MPB na revista Rolling Stone edição brasileira (1972)

Rita está ouriçadíssima, juntando meninas fantásticas para o


seu grupo só de mulheres, o maior barato, transação inédita por
essas bandas. [...] O negócio é uma mistura de rock com teatro,
tudo muito na base do circo, com música, representações, luzes,
animais, um completo stage show que sempre foi o toque de
Rita (RS 33 – Rio, 12 de dezembro de 1972, p.06-07).

O texto tinha como enfoque o desligamento de Rita Lee dos Mu-


tantes em um momento que procurava dar início a uma carreira autô-
noma, afastada artisticamente da banda. Para tanto, questionava quais
seriam os novos rumos traçados pelo grupo, agora tido como um grupo
de rock ainda mais identificado com as matrizes estrangeiras do hard rock
e progressivo, que estava prestes a estrear uma nova aparelhagem de som
e participar de uma série de concertos ao ar livre no estado e São Paulo:
“Os Mutantes continuam na deles, curtindo agora uma de banda de rock
da pesada” (RS 33 – Rio, 12 de dezembro de 1972, p.06-07).A trajetória e o
repertório dos Mutantes sofrem modificações profundas depois da saída
de Rita Lee. As características musicais da banda expõem esse processo
de mudanças, em que se acentuam os temas cada vez mais próximos da
linguagem musical do rock progressivo, deixando de lado os elementos e
referências da música brasileira presentes em seus primeiros álbuns.
Em 1973, Arnaldo Batista17 também deixa o grupo e o guitar-
rista Sergio Dias assume o posto de líder da banda, que ainda segui-
ria até o final da década pautado em uma sonoridade musical advin-
da do rock progressivo. A banda rompe, em 1973, o contrato com a
gravadora Phillips, que lançava os seus álbuns desde 1968 pelo selo
Polydor, depois de negado o lançamento do álbum já gravado O A
e o Z. Os Mutantes migram para a Som Livre e, em 1974, lançam o
seu primeiro disco pela gravadora, já sem Arnaldo e Rita e depois de

Arnaldo Batista parte também para carreira solo em um período turbulento repleto de contratempos. Em
17

1974, lança o álbum Lóki?, pela Philips-Phonogran, que contou com a participação de Rogério Duprat, Limi-
nha, Dinho Leme e Rita Lee. Arnaldo receberá alcunha de “maldito” ao mesmo tempo em que suas obras serão
prestigiadas por críticos e por um grupo restrito de admiradores. Contudo, não alcançará o grande público.

173
Cleber Sberni Junior

várias mudanças na formação da banda. Contudo, lançam apenas dois


LPs por essa gravadora: Tudo foi feito pelo Sol, em 1974, e Ao Vivo, em
1976, mas não atingem grande repercussão.
Em 1974, Rita Lee e o seu novo grupo, o Tutti Frutti, lançam um
álbum pela Philips, o último da artista na gravadora: Atrás do porto
tem uma cidade; depois disso, ela transfere-se para a gravadora Som
Livre, pela qual alcança grandes vendagens e se afirma como um dos
principais nomes do rock produzido no Brasil.
Márcia Tosta Dias recupera alguns dos momentos que marcam
esse processo e tece uma relação entre a saída de Rita Lee da banda
com interesses de sua gravadora, a Philips-Phonogram:

A interação de vários setores da indústria cultural, a grande


simbiose de valores culturais industrializados e mundializados
e sua definitiva consolidação no Brasil dos anos 70, são exem-
plarmente observados na estratégia de marketing que lançou
a cantora brasileira Rita Lee, então vocalista do grupo musical
Mutantes, em carreira solo. [...] A estratégia viria a colaborar
para o fim do grupo nos anos subsequentes e a ascensão de Rita
como grande nome do rock brasileiro, tal como planejara Mi-
dani (DIAS, 2008, p.67).

Tal planejamento refere-se ao interesse de André Midani (pre-


sidente da Philips, a então gravadora dos Mutantes), ainda em 1970,
de investir na carreira solo de Rita Lee. Tosta afirma também que a
forma elaborada apresentada pelo show e o álbum fonográfico Build
Up (lançado por Rita em 1970 enquanto ainda era parte integrante dos
Mutantes) expressam um movimento de sincronicidade de atuação da
estrutura e organização da indústria fonográfica brasileira na época,
sinalizando a existência de um aprimoramento do trabalho de promo-
ção das gravadoras na década de 1970.
Contudo, pela leitura dos textos da Rolling Stone e, em especial,
pelas observações de Ezequiel Neves em O Toque, percebe-se uma

174
O caminho das pedras: rock e MPB na revista Rolling Stone edição brasileira (1972)

outra visão da indústria fonográfica da época. Pelo menos em relação


ao rock brasileiro, as gravadoras ainda tinham estratégias tímidas e
pouco elaboradas para os grupos e artistas, que ainda estavam à som-
bra do rock internacional no que se referia às criações musicais.
Por esse motivo, o caso de Rita Lee pode ser visto como um
ponto fora da curva na cena do rock brasileiro. Mas, ao mesmo tempo,
sinaliza para as mudanças em relação à música jovem, já em 1973, que
despontou com as grandes vendagens emplacadas pelos estreantes Se-
cos e Molhados e, posteriormente, pela afirmação da carreira de Raul
Seixas. Artistas que serão considerados a partir da valorização do rock
como criação musical e expressão artística, vez que buscaram certa
originalidade e misturas com a MPB na construção do rock brasileiro.

Bibliografia

BAHIANA, Ana Maria. Rock no Brasil. Rolling Stone, Rio de Janeiro,


p. 09, n. 30, 21 de novembro de 1972.
COELHO, Frederico. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pe-
cado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
DIAS, Márcia Tosta. Os Donos da Voz: Indústria Fonográfica Brasileira
e Mundalização da Cultura. São Paulo: Boi Tempo, 2008. 2 ed.
GRILLO, Maria Del Carmen. El estúdio de revistas como objeto histo-
riográfico para La história de lãs redes intelectuales. Colóquio interna-
cional de História e Ciências Sociais. Colima: Universidade de Coli-
ma, 2010. Publicação em Cd-rom.
MACEDO, Joel. Novos Baianos: outra transação. Rolling Stone, Rio de
Janeiro, p. 05, n. 02, 15 de fevereiro de 1972.

175
Cleber Sberni Junior

NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e


indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume, 2001.
__________. História & música: história cultural da música popular.
Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
_________. A historiografia da música popular brasileira (1970 –
1990): síntese bibliográfica e desafios atuais da pesquisa histórica. In:
Uberlândia: ArtCultura, v. 8, n. 13, p. 135 – 150, jul – dez. 2006.
________. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo:
Contexto, 2014.
NEVES, Ezequiel. O Toque. Rolling Stone, Rio de Janeiro, p. 04, n. 08,
16 de maio de 1972.
________. O Toque. Rolling Stone, Rio de Janeiro, p. 02, n. 20, 12 de
setembro de 1972.
________. O Toque. Rolling Stone, Rio de Janeiro, p. 02, n. 21, 19 de
setembro de 1972.
________. O Toque. Rolling Stone, Rio de Janeiro, p. 02, n. 23, 03 de
outubro de 1972.
________.. O Toque. Rolling Stone, Rio de Janeiro, p. 02, n. 26, 24 de
outubro de 1972.
________. O Toque. Rolling Stone, Rio de Janeiro, p. 02, n. 27, 31 de
outubro de 1972.
RODRIGUES, Nelio. Histórias Secretas do Rock Brasileiro dos anos
1960 e 1970. Rio de Janeiro: Grupo 5W, 2014.
ROLLING STONE. Rita e os Mutantes: duas jogadas. Rolling Stone,
Rio de Janeiro, p. 06-07, n. 33, 12 de dezembro de 1972.

176
A formação da identidade punk no Brasil
e o começo do fim do mundo (1976-1982)

Pedro Felipe Minhoni *

Introdução
Nos dias onze e doze de novembro de 1982, na cidade de São
Paulo, mais precisamente nas instalações do SESC Pompéia, acontecia
um dos maiores festivais de música punk já vistos em território nacio-
nal e no mundo. Idealizado por Bivar1 e Calligari, O Começo do Fim
do Mundo reuniu 20 bandas ao longo dos dois dias de festival e levou
milhares de pessoas, ditas punks ou não, a experimentarem os valo-
res e símbolos da identidade punk, além do contato com as músicas
deste gênero, e ao final contou com a gravação e prensagem de disco
homônimo para os grupos que se apresentaram. No entanto, qualquer
possível sensação de ordem e fluência em um evento caracterizado
pela “energia” e jovialidade do público foi negada ao festival, pois, em
virtude de uma confusão que já se desencadeava nos perímetros do es-
paço do evento, ao término do último show, a polícia entrou em cena
e colocou um ponto final no já iminente Começo do Fim do Mundo.
O contato físico e verbal com os policiais gerou arranhões e
cicatrizes em muitos, o que não era diferente do que acontecia em
* Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (Franca).
BIVAR, Antonio. O que é punk. São Paulo: Brasiliense, 2006.
1

177
Pedro Felipe Minhoni

outros eventos do movimento. Contudo, a maneira como terminou


o festival e as notícias sobre o ocorrido ganharam notoriedade nos
principais meios de comunicação da época, de maneira a aumentar a
carga pejorativa sobre tudo que tangia o punk.
Partindo de uma suposta ruptura de sentido nesse conflito – a
de uma divisão entre o que era ser punk para quem agitava na frente
do palco e o punk construído na repressão policial e nas páginas de re-
vista – pretende-se investigar como foram os primeiros contatos com
o gênero musical e o crescimento e estruturação do cenário artístico
representativo de sua identidade para entender de que forma se cons-
tituiu o mencionado festival e porque teve um fim tão conturbado.

Botas, fuzis e capacetes


Delimitar o surgimento do punk é um tanto quanto complica-
do, visto que o termo se remete a antigas referências, como a Medida
por Medida, de Shakespeare, ou a filmes como Juventude Transviada,
com James Dean2, mas normalmente seu emprego é voltado para
o social, para definições de uma camada marginalizada da popu-
lação – a imagem do encrenqueiro, do agressivo. Essa ideia é uma
característica “forte” do punk, um uso comum, um sentimento que
se faz perceptível em diversas instâncias do movimento (inclusive
no tempo do festival) mas que se faz sensível a variáveis temporais
e regionais, consideradas as devidas ressalvas – dificilmente o en-
crenqueiro de Shakespeare usava coturnos e moicano, e o punk do
filme de Dean assemelhava-se mais à figura de um “playboy” –, pois
chamar alguém de punk não necessariamente é se referir ao movi-
mento punk.
Sendo assim, cabe perceber de onde (e se existiu um “aonde”) tal
aglutinação surgiu e, como não pode ser diferente, discutir as origens
Ambos citados por Bivar na sua linha de construção e “genealógica” do conceito de punk. p.38.
2

178
A formação da identidade punk no Brasil e o começo do fim do mundo (1976-1982)

do movimento. Passando pela criação da revista punk3 e pelo palco


sagrado do CBGB4, a cena nova-iorquina se valia, principalmente, de
gravuras e do visual cartunesco e tosco de bandas como Ramones e os
Dead Boys. Em contrapartida, no contexto britânico, numa travessa
da kings road (mais precisamente na world’s end), Malcom McLaren e
Vivienne Westwood inauguravam a SEX5 – “lojinha” e laboratório de
posicionamento político e estético onde surgiu o grupo Sex Pistols e
a imagem de Sid Vicious. Brigas por autoria a parte, que não é o foco
deste texto, é importante notar como o universo punk estabelecia co-
nexões com conteúdos, imagens, estéticas e sentimentos que só chega-
ram ao Brasil a partir de 1976.
Internamente, o país dividia-se de acordo com a chegada de
informação sobre o assunto6, mas, como o foco do texto se dá sobre o
festival, a cena de São Paulo se sobressai – pela maior notoriedade e
por ter contado com a maior quantidade de bandas, fanzines e mate-
rial relacionado – o que não a limita como sendo a única negociante
e produtora nesse diálogo sobre o punk no Brasil.
Ao contrário do que a marginalidade do gênero pudesse sugerir,
o primeiro contato do brasileiro com a temática possui algumas pecu-
liaridades, sobretudo porque o choque da estética dos cabelos arrepia-
dos, das roupas simplórias e destruídas com os símbolos – ou a crítica
A revista Punk, por muitos citada como um fanzine, devido ao seu formato cheio de colagens, foi fun-
3

dada por John Holmstrom, Legs McNeil e Ged Gunn em janeiro de 1976. Sem alguma explicação maior
em torno do seu surgimento, a utiliza como constante argumento de seu pioneirismo. in McNEILL, L.,
McGAIN, G. Mate-me, por favor: uma história sem censura do punk, Porto Alegre: L&PM, 1997.
Constantemente lembrado como celeiro de diversas bandas “fundadoras” do movimento e que teve mui-
4

to dos relatos de shows discorridos nos livros e nas edições da Punk. MCNEILL, L., McGAIN, G. Mate-
-me, por favor: uma história sem censura do punk, Porto Alegre: L&PM, 1997.
5
McLaren, mentor do grupo Sex Pistol’s, é associado à criação da estética punk do grupo tanto por sua
afinidade com o movimento situacionista francês como pelos seus experimentos estilísticos (e de sua
esposa) em sua loja, a SEX. in. SIMONELLI, David. Working Class Heroes Rock Music and British
Society in the 1960s and 1970s. Lexington Books. 2013.
6
Quando perguntado aos entrevistados sobre a “origem” do movimento, há briga entre eles, principal-
mente do povo de Brasília que teve um acesso mais rápido aos álbuns lançados fora do país. MOREI-
RA, Gastão Botinada: A origem do punk no Brasil. 110 minutos, 2006 – Brasil.

179
Pedro Felipe Minhoni

a eles – foi difundida por meio dos grandes veículos de comunicação


do país. Em depoimento, João Gordo, vocalista da banda paulista Ra-
tos de Porão, surgida em 1981, relembra:

Mas tive que voltar ao dentista e o filho da uta demorou pra me


atender. Sem ter o que fazer, reli a matéria (revista Veja). Curti
tanto que acabei arrancando as páginas e levando pra casa. Na
mesma época, passou um clipe dos Pistols no Fantástico. Quer
dizer, o principal agente por eu ter me transformado em um
punk foi o próprio sistema, foi a revista Veja e a Rede Globo.7

A fala, extraída do livro de Essinger, entrega um modelo de con-


tato com o punk que foi corriqueiro na época, dada a importância das
abundantes matérias de revista e televisão. Os assuntos variavam da
já citada moda punk (o que usar para ser reconhecido como um) até
as origens do estilo musical no próprio país, delimitando as bandas
que, em teoria, seriam representantes tupiniquins do gênero: Joelho
de Porco, Banda do Lixo e a Made in Brazil.
Todavia, essa espécie de exclusividade sobre o tema não durou
muito tempo e logo, com o avanço da popularidade das bandas e a busca
pelo acesso e contato com tudo que lhe fosse relacionado, o punk preci-
sou se promover de outras formas. Para fortalecer o movimento nacional,
buscou nos fanzines e nas fitas K7 formas de destaque, que claramente
não eram exclusivas do movimento8, mas foram bastante exploradas. Os
fanzines, grande parte oriundos dos próprios punks, continham argu-
mentos, posições, indicações de bandas e matérias com novidades e ou-
tras coisas de interesse do assunto. Como argumenta Milani:

ESSINGER, Silvio. Punk: anarquia planetária e a cena brasileira. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 98-100.
7

Trata-se do depoimento de João Gordo, vocalista da banda paulista Ratos de Porão, surgida em 1981 e
ainda ativa.
A fita k7 foi oficialmente lançada pela Phillips em 1963; o fanzine, por sua vez, é um formato não
8

profissional de revista, de entusiasta para entusiasta, e conta com assuntos e convenções de assunto
próprio como de super-heróis e afins.

180
A formação da identidade punk no Brasil e o começo do fim do mundo (1976-1982)

A prática era corrente desde os primeiros punks e se fortaleceu


mais tarde com o hardcore, sob a denominação da expressão do
it yourself– faça você mesmo. Assim, os punks dos mais diver-
sos rincões do país poderiam se utilizar de camisetas e fitas K7
de suas bandas tão logo as formassem. E não demorou para que
começasse a se constituir um mercado próprio para o consumo
de estilo punk no Brasil, fazendo circular essas mesmas cami-
setas e fitas, mas também buttons, pôsteres e discos através dos
correios ou de algumas poucas lojas físicas, tendo nos fanzines
o principal veículo de divulgação9

Percebe-se alguns sinais de rebeldia já nas primeiras tentativas


de abordar o assunto e produzir conteúdo, em paralelo com uma
das principais filosofias do punk, o DIY (do it yoursef, o faça você
mesmo), que, se não unificou todos os punks do mundo, certamente
fez com que o movimento tivesse acontecido e se desenvolvido, tan-
to aqui como no exterior10. Outro ponto importante, que veio junto
com o DIY, foi a ressaca do sucesso de bandas como os Pistols e Clash
– com seu punk glamourizado e altamente midiático – que proliferou
o levante de uma outra faceta do punk, o hardcore, representante
completo dessa filosofia, trazendo a marginalidade de volta ao que
se iniciou de forma marginal11.
É nesse mesmo espaço de tempo que começam a surgir as pri-
meiras bandas punk rock/hardcore na cena nacional, que mais tarde vi-
riam a compor a lista de participantes do festival analisado. Inocentes,

Sobre o mercado de consumo de estilo punk no Brasil ver: MILANI, Marco A. Os Fanzines na
9

divulgação do punk rock brasileiro – 1981 a 1995. In. Congresso de Estudos do Rock, 1., 2013
10
Essa “descoberta” de que não existe fórmula mágica para que as coisas aconteçam é nítida nas forma-
ções de bandas e álbuns lançados, principalmente nas cenas de São Paulo/ABC e dos Estados Unidos.
O’HARA, Craig. A filosofia do punk: mais do que barulho. Radical Livros. 2005.
11
Comumente associado ao surgimento de bandas como Discharge (Punk’s not dead 1981), Black Flag,
Dead Kennedys, dentre outras. Em tradução direta, núcleo duro, se refere ao núcleo dos ideais punk,
à crítica e ao posicionamento político, que divergiam, entre outras coisas, das atitudes recentes de
bandas como The Clash e Pistol’s, que firmaram contrato com grandes gravadoras.

181
Pedro Felipe Minhoni

Restos de Nada, Cólera, AI-5, Ratos de Porão, Olho Seco, em tempos


distintos – alguns iniciando por volta de 79 e outros no começo dos
80 –, já se organizavam nos poucos espaços disponibilizados para os
punks em São Paulo, além de enfrentarem as primeiras empreitadas de
gravação12. Formavam assim, nesse convívio do movimento, os shows,
as conversas e a atmosfera que possibilitava o contato entre a infor-
mação do que era novo (bandas e músicas de fora do país que eram
repassadas pelas gravações do rádio com o “jeitinho” das k7)13 e as
manifestações nacionais, várias delas nascidas e difundidas dentro do
próprio grupo (por meio dos fanzines).
Contudo, quando colocadas em paralelo, as diversas cenas do
punk trazem vários elementos em comum em suas realidades, entre
reivindicações e revoltas, obviamente, cada qual à sua maneira e com
seus próprios mecanismos de tensão. No entanto, quando se pensa
no jovem de camadas mais pobres, percebe-se o punk e sua identida-
de de forma una e simultânea (sujeito descentrado).14 A demarcação
da identidade histórica desses sujeitos, que só faz sentido quando é
analisada perante um sistema classificatório inserido em determinada
época, gera tensões entre os agentes da prática social e em sua relação
com o significado de símbolos e costumes, possibilitando entender de
que forma se alinhavam ao movimento nacional. Deste modo, ques-
tiona-se: como as representações de cada vertente do termo punk con-
vergiram no contexto abarcado pelo festival?
12
Constantemente citado nos documentários, a dificuldade para a gravação e prensagem era recorrente,
mas não exclusiva do movimento. O período é congruente às atividades do selo Barato e Afins (Marcia
Tosta Dias). Aqui, no caso, grande parte das gravações contou com a presença de Fabião, dono da então
Punk Rock Discos.
13
Não se deve esquecer um outro fator importante para o sucesso das k7 no meio punk, o preço. A che-
gada de certos discos, não necessariamente significava acesso a eles. Sendo assim, as k7 estabeleceram
a conexão de maneira mais rápida por meio da regravação de programas de rádio e da fácil transição
dentro do grupo.
14
Muito da noção de descentralização do sujeito, com o diálogo contemporâneo entre as identidades,
pode ser entendido, de maneira geográfica, dentro dos argumentos sobre globalização, bem como
pelas noções de diáspora, sincretismo e hibridismo em: HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e
Mediações Culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

182
A formação da identidade punk no Brasil e o começo do fim do mundo (1976-1982)

O próprio material aqui selecionado já sustenta um possível bi-


partidarismo de origem, pois uma parte do que era informação/pro-
dução era oriunda do “sistema” e a outra advinha do próprio movi-
mento punk. Essa divisão é um dos “requisitos básicos” para que se
possa perceber e demarcar uma possível identidade15. É justamente
esse jogo binário, essa relação de poder que embasa a ótica aqui pro-
posta, como argumenta Tomas: “Questionar a identidade e a diferença
como relações de poder significa problematizar os binarismos em tor-
no dos quais as mesmas se organizam”.16
Sendo assim, a passagem dos anos 70 para os 80, a crise eco-
nômica, o caminhar para o fim da ditadura militar, a insatisfação
popular, a violência, o hardcore, e tudo o mais que estava sob tutela
do punk (os símbolos e sentimentos dessa identidade) no país, leva
ao questionamento do que, de fato, consistia o movimento.

Pânico em SP!!
A relação entre Brasil e o material procedente dos polos “funda-
dores” do movimento punk17, em uma perspectiva globalizada, pode
vir a sofrer diversas inferências dependendo das informações distribu-
ídas. No entanto, é ingênuo esperar que houvesse qualquer espécie de
filtro ou exercício de opinião em um período marcado pela ditadura
militar. As mensagens de rebeldia e insatisfação, quando oriundas dos
grandes meios, traziam posicionamentos taxativos que delimitavam o
caráter e aglutinavam atitudes:

15
“As afirmações sobre diferença também dependem de uma cadeia, em geral, oculta, de declarações
negativas sobre (outras) identidades. Assim como a identidade depende da diferença, assim como a
diferença depende da identidade.” SILVA, Thomas Tadeu (organizador). Identidade e diferença – a
perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 75.
16
Tomaz Tadeu SILVA (organizador). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petró-
polis: Vozes, 2000.
17
Entenda-se por Estados Unidos e Inglaterra – Londres, mais especificamente – embora a real definição
da origem não agregue em nada a proposta da discussão.

183
Pedro Felipe Minhoni

A partir dos anos 80, os punks não cessaram de dizer que essa
explosão discursiva estaria criando uma imagem “distorcida” em
relação ao que eles seriam verdadeiramente(...)A televisão, os jor-
nais, as revistas, o rádio e, posteriormente, o mercado, tentavam
colonizar o punk dando-lhe um lugar previamente codificado,
onde ele não representaria um incômodo ou uma possibilidade
de questionamento dos modos de vida padronizados.18

Ou seja, quanto mais se falava sobre um punk agressivo/passi-


vo, mais se colaborava para sua definição, para uma cristalização do
que seria o punk para os meios de comunicação. Todavia, tal rigidez
normativa não se compatibilizava com o DIY, com o faça você mes-
mo, com as atitudes que visavam a quebra das antigas estruturas, com
a morte aos ídolos, com o “derrubar com tudo, para depois, recons-
truir com dignidade”19. Mesmo que não houvesse unanimidade entre
as atitudes dos partícipes do movimento, tais elementos podiam ser
encontrados nas representações de vestimenta, penteado e atitudes
punks disseminadas, a exemplo da ausência de solo de guitarra em
uma música curta e agitada.
E, mesmo que reportagens deturpassem a imagem dos punks,
tratando-os a partir da marginalidade, da pobreza, da sujeira e da rai-
va, entre outros elementos, o arcabouço de elementos que os unia fazia
sentido na conjuntura jovem da época, dando respaldo para o signi-
ficado de tudo o que era representado. Na parte sonora, por exem-
plo, a descomplicação do rock progressivo tornou-se um dos principais
atrativos estéticos do punk rock, por sua simplicidade intrínseca. Por
necessitar de muito pouco, tanto em termos teóricos quanto em rela-
ção ao material de estrutura, fazia com que fosse possível que jovens
pudessem montar suas próprias bandas de acordo com sua realidade.
MORAES, Everton de Oliveira: “Deslocados, Desnecessários’: O ódio e a ética nos fanzines punks
18

(Curitiba 1990 – 2000) p. 22.


Frase proferida por Zorro, da banda M-19, em MOREIRA, Gastão Botinada: A origem do punk no
19

Brasil. 110 minutos, 2006 – Brasil.

184
A formação da identidade punk no Brasil e o começo do fim do mundo (1976-1982)

Isso era algo que se relacionava diretamente ao “faça você mes-


mo” que pautava o movimento, já que a maioria dos adeptos eram
jovens de situação financeira modesta, interessados em reproduzir e
produzir suas próprias canções e protestos. Salvo as devidas propor-
ções – a juventude inglesa e a população moradores de albergues20 – a
crise econômica, as repressões estatais e a insatisfação já não eram
mais uma dúvida ou exclusividade de alguns, de modo a influencia-
rem diretamente no processo de simultaneidade entre matéria e rea-
lidade vivida no jogo de construção das representações punk no país.
Essa mudança de olhar é crucial. A passagem de uma atitude de
consumo, para se tornar parte do processo de produção, exercendo força
sobre a concepção do próprio significado de punk, pelo menos em ter-
ritório nacional, é o que separa essa espécie de “segunda” fase da análi-
se.21 Uma demonstração da vertente “produtora” pode ser encontrada na
elaboração de fanzines, por exemplo, que mesmo não sendo exclusivos
do movimento punk – surgiram através de interessados em ficção cientí-
fica, mas podem ser submetidos em relação a qualquer assunto – foram
uma das ferramentas mais incisivas e demonstrativas do movimento nas
negociações de sentido. A mesma ruptura proposta pelas mudanças na
sonoridade e no vestuário em relação aos seus respectivos paradigmas,
foi utilizada na forma escrita por meio do formato fanzine, vez que servia
como instrumento para disseminação de opiniões, de curiosidade sobre
as bandas, de explicação sobre conceitos, de regulação e represálias diante
de algumas atitudes que fossem avessas às propostas pelo movimento22,
20
SIMONELLI, David. Working Class Heroes Rock Music and British Society in the 1960s and 1970s.
Lexington Books. 2013
21
Segunda fase se partimos do pressuposto de uma primeira, receptiva, que não dialoga com o meio. As
primeiras matérias, as que chegaram com a “delimitação” do que era o punk (a moda, por exemplo).
22
O lucro é uma delas. A “repressão” acontecia tanto em relação a outros fanzines que geravam lucro
– que só era justificável se fosse para cobrir os gastos de impressão – como também em relação às ban-
das do movimento (não só nacional). Muitas das famosas argumentações de “traição do movimento”
surgem de fanzines: dentre os acusados podemos encontrar Ratos, Cólera, Exploited, entre outros.
MILANI, Marco Uma Leitura Vertiginosa: Os Fanzines punks no Brasil e o discurso da união e cons-
cientização (1981-1995) pg 36-50.

185
Pedro Felipe Minhoni

tudo isso em um formato possível para a realidade do fanzineiro e de


quem mais quisesse produzir.
Além da estampada diferença com os grandes meios de veicula-
ção, que se dá tanto em teor como estrutura de publicação e produção
(eram artesanais), quanto nas mensagens (a opinião que valia era a
do remetente), os fanzines acabavam se encaixar muito bem na práti-
ca de comunicação interna do movimento. Essa rede continha outros
meios, como shows e gravações de fita k7, mas os fanzines eram res-
ponsáveis, inclusive, pela intercomunicação com membros de outros
grupos punks de fora do país, intermediando a troca de discos, por
exemplo, como observa Milani:

Fica claro, portanto, que o consumo de estilo dos punks, como


um meio de obtenção da união e conscientização, deveria es-
tar restrito a esse mercado específico constituído no início da
década de 1980 pelos próprios punks. Um mercado que fun-
cionasse com baixíssimas margens de lucro, e circulasse seus
produtos dentro de uma rede de socialização restrita, mantida
pelos punks por sua própria iniciativa. Essa rede se baseava em
um grande número de indivíduos que divulgavam os produtos
– camisetas, discos, shows e etc. – motivados por relações afeti-
vas e pelo discurso de união e conscientização. Os fanzines, por
sua vez, eram o meio de excelência para estabelecer as relações
necessárias entre os membros dessa rede (2013, p. 40).

Se, em um primeiro momento, o punk rock oriundo das ruas de


Londres ou de Nova York dominava o mundo com calças rasgadas e
quatro acordes por música, as manchetes nacionais buscavam achar
o equivalente tupiniquim citando e respaldando grupos como Banda
do Lixo, Joelho de Porco23 e a Made in Brazil24. Além da ruptura com
Considera por “muitos” a primeira banda de punk nacional. ESSINGER, Silvio. Punk: anarquia plane-
23

tária e a cena brasileira. São Paulo. Editora 34. 1999, p. 30-55.


A revista POP, por sua vez, relega a essas bandas o “surgimento” do punk em terras nacionais.
24

186
A formação da identidade punk no Brasil e o começo do fim do mundo (1976-1982)

o padrão musical percebido no país25 à época, os primeiros grupos de


dentro do movimento queriam expor a sua realidade e regionalida-
de – o bairro da Carolina, a rivalidade São Paulo/ABC –, dando um
sentido à própria experiência do que era ser punk em São Paulo, prin-
cipalmente por meio da música. E é nesse contexto, e meio a notórias
dificuldades para gravação, que a cena punk tem com o festival um dos
ápices para o movimento paulista, sendo o disco homônimo26 um dos
principais da história do movimento.
Contudo, embora em seu auge, poucas bandas receberam tra-
tamento cordial das grandes gravadoras ou da televisão, comparadas
a outros artistas famosos do período. Pelo contrário, as aparições em
programas de televisão eram escassas – somente grupos como Olho
Seco e Cólera romperam essa barreira na época – e muitas vezes com
representantes aceitos pelos selos27, e não das bandas da cena. O punk
em São Paulo, portanto, se constituiu na marginalidade.

Agressão e Repressão!
Fica clara a diferença de tratamento quando se verifica o que
se era produzido pela mídia e o que era de origem interna do movi-
mento: percebe-se a intenção de estabelecer uma diferença perante o
que era “bom” e o que era punk. Desta forma, preparava-se o cidadão
que, em teoria não teria contato direto com o movimento, a respeito
da experiência de ser punk, ditando como seriam suas atitudes e seu
modo de vida. Em contrapartida, o jovem proveniente do movimento
continuava marginalizado. E essa marginalização, seja pelo interesse
Grande parte da revolução associada ao punk rock foi a sua simplificação do rock progressivo, a volta da
25

juventude e da rebeldia ao rock. Se em território internacional os alvos de tal crítica podem ser associados a
grupos como Deep Purple e Led Zeppelin, no Brasil, a música, ou pelo menos grande parte dela, era crista-
lizada nas vozes da MPB, sem contar a iminente ameaça da discoteca.
O compacto Grito Suburbano (Olho Seco, Inocentes e Cólera) e o álbum Violência e sobrevivência (Lixo-
26

mania) são datados como o primeiro registro do punk no país e o primeiro de uma banda solo, respecti-
vamente. O começo do fim do mundo, contudo, conta com a maior carga de bandas participantes.
27
O Made in Brazil foi considerado uma banda punk pela revista POP.

187
Pedro Felipe Minhoni

político, estético ou moral, torna-se homogeneizadora, mantendo


uma ótica prejudicial para o pensamento de noção de identidade do
movimento, como argumenta Hall:

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente,


é uma fantasia. Ao invés disso à medida em que os sistemas de
significação e representação cultural se multiplicam, somos con-
frontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante
de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos
nos identificar – ao menos temporariamente (2006, p. 13).

Observar o que era oriundo do movimento punk, por sua vez,


demonstra uma mudança na relação de significado/experiência, vez
que o movimento começa a negociar o que julgava ser relevante pe-
rante os valores ou significados que lhe interessavam. No momento
em que o movimento punk nacional toma posição por meio do dis-
curso de bandas, fanzines e festivais, é que se constitui o embate, o
binarismo dessas fontes:

A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com


relações de poder. O poder de definir identidade e de marcar a
diferença não pode ser separado das relações mais amplas de
poder. A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes
(SILVA, 2000, p. 81).

Assim, perante o processo nacional de criação/estabelecimento


de uma identidade para o movimento punk, o que se nota é a possibi-
lidade da convergência de dois sistemas classificatórios distintos, cada
um exercendo sua intenção, sua força sobre o significado do outro.
Enquanto a Revista POP falava sobre festas/moda e como ser um punk
badalado, as bandas suburbanas e periféricas surgiam com nomes
agressivos, críticos e descontentes. Da mesma maneira que matérias

188
A formação da identidade punk no Brasil e o começo do fim do mundo (1976-1982)

de jornal incriminavam e caracterizavam o punk como encrenquei-


ro e vândalo (o que é até “relativo” ao termo), o movimento tomava
posicionamento, respondendo a essas críticas e defendendo parte da
abordagem de quem participava efetivamente do grupo28.

Nossa compreensão dos conceitos depende da nossa capaci-


dade de vê-los como fazendo parte de uma sequência. Aplicar
esses conceitos à vida prática, ou organizar a vida cotidiana de
acordo com esses princípios de acordo e diferença, envolve,
muito frequentemente, um comportamento social repetido,
isto é, um conjunto de práticas simbólicas partilhadas.

Essa noção de ordem, que ironicamente é oposta ao movimento,


formava o cenário no qual se dava o conflito entre o firmamento e a
desestabilização de significados, gerando o questionamento sobre o que
seria uma atitude, uma realidade, uma experiência, uma música punk.
Contudo, essa proposta conta com algumas frestas que, se pre-
enchidas, poderiam fornecer uma visão mais próxima do ocorrido.
Muito do material aqui relacionado advém do movimento punk, e,
dada a diversidade de fanzines, bandas e manifestações trazidas, fica
evidente que não há uma noção de unidade, de um movimento co-
eso, mas sim de divergência de opiniões. Assim, o aprofundamento
da análise sobre o material do movimento poderia ampliar o enten-
dimento de questões corriqueiras e citadas, como o conflito ABC x
city29, ou ainda se existia alguma diferença regional entre essas pu-
blicações. O mesmo pode ser aplicado ao material midiático: qual o
posicionamento dos principais veículos na época?30 Até que ponto a
ditadura poderia ter influência no teor das matérias; ou para quem ou
qual parcela da sociedade seria interessante tal conflito?
28
Carta de resposta de Clemente em resposta a matéria de Luiz Fernando Emediato, no Estadão.
Existia uma rixa entre quem era da cidade e do ABC. Os da “city” eram considerados ricos pelos do ABC.
29

30
Segundo O’Hara, a mídia sempre construiu uma versão negativada do punk.

189
Pedro Felipe Minhoni

Desse modo, faz-se necessário perceber a amplitude das estru-


turas existentes nessa negociação punk, estabelecendo um estudo mais
profundo sobre o ocorrido e trazendo de forma concomitante os polos
de fomento do punk31. Isso seria interessante não apenas para perce-
ber o país como um possível foco para o movimento – seriam três,
então, nessa briga –, mas também para esclarecer o que foi absorvido/
traduzido de cada um deles e que tipo de filtros e processos cada uma
das informações sofreu ou teve que passar para chegar até o usuário.
No mínimo, dada a existência de uma base mais sólida sobre o debate
estético e musical do punk, tanto em influência como em comparação
com outros gêneros, seria possível estabelecer uma diferença e uma
demarcação da identidade do movimento nacional.

A geração abandonada
O começo do fim do mundo foi uma representação da identida-
de punk nacional. Na mesma proporção em que foi possível observar
uma organização nunca vista antes dentro do movimento punk – pelas
demonstrações de posicionamento político do grupo, pela quantidade
de bandas participantes, pela “paz” entre city/ABC, pela cobertura e
divulgação do festival, pelo material relacionado ao grupo, além do
prensado dos participantes do festival – houve o choque com sua re-
presentação cristalizada, na concepção de movimento agressivo, de-
sorganizado e nocivo à sociedade, por meio das lentes de uma mídia e
de uma ditadura militar pouco interessadas nessa manifestação.
Desse embate, o que sobrou, em grande parte, foi a dispersão do
movimento ou um amortecimento da onda punk no país, genericamen-
te representado pelo estereótipo de violência e marginalidade, levado
Como sugere Clemente: “o visual da galera da Carolina era igualzinho o visual dos Ramones ... Se eles
31

não tivessem inventado o movimento lá, nós tínhamos inventado ele aqui!” MOREIRA, Gastão Boti-
nada: A origem do punk no Brasil. 110 minutos, 2006 – Brasil.

190
A formação da identidade punk no Brasil e o começo do fim do mundo (1976-1982)

em conta muito antes de qualquer outro questionamento pregado pelo


movimento. Assim, olhar para as convergências entre os dois sistemas
classificatórios possíveis, pode revelar muito mais do que vieram a ser
as experiências, as angústias e os anseios da época. Inclusive, enquanto
O Começo do fim do mundo pode ser tido como uma das principais
manifestações do punk no mundo, também ocupa lugar como ponto de
partida para a abordagem taxativa e repressora o movimento.
Então, partindo da resposta de Clemente Nascimento em uma
entrevista durante O começo do fim do mundo, fica a indicação de um
olhar, uma perspectiva para estudos de material relacionados ao tema.
É preciso que, percebidos os sistemas classificatórios, haja uma pre-
paração para as possíveis armadilhas de homogeneização: “Você quer
saber o que é punk?? Então afunda ai no meio que você vai saber!!”

Bibliografia
BIVAR, Antonio. O que é punk. São Paulo: Brasiliense, 2006.

CAFAIA, Janice. Movimento punk na cidade: a invasão das bandas


SUB. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.

ESSINGER, Silvio. Punk: anarquia planetária e a cena brasileira. São


Paulo. Editora 34. 1999

HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Org.


Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

___________. A identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Ja-


neiro: DP&A Editora, 2006.

McNEILL, L., McGAIN, G. Mate-me, por favor: uma história sem cen-
sura do punk, Porto Alegre: L&PM, 1997, Vol.1.

191
Pedro Felipe Minhoni

___________. Mate-me, por favor: uma história sem censura do punk,


Porto Alegre: L&PM, 1997, Vol.2.

MILANI, Marco A. A Bricolagem nos fanzines punks. Simpósio Nacio-


nal de História Cultural; Escritas, Circulação, Leituras e Recepção. 7.
São Paulo, 2014. Anais Eletrônicos. São Paulo, USP.

___________. Os Fanzines na divulgação do punk rock brasileiro –


1981 a 1995. In: Congresso de Estudos do Rock, 1., 2013, Cascavel.
Anais eletrônicos.

MORAES, Everton de Oliveira. “Deslocados e desnecessários”: O ódio e


a ética nos fanzines punks. Curitiba, 1990-2000.

MOREIRA, Gastão Botinada. A origem do punk no Brasil. 110 minu-


tos, 2006 – Brasil.

O’HARA, Craig. A filosofia do punk: mais do que barulho. Radical Li-


vros. 2005.

SILVA, Tomaz Tadeu (organizador). Identidade e diferença – a perspec-


tiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

SIMONELLI, David. Working Class Heroes Rock Music and British So-
ciety in the 1960s and 1970s. Lexington Books. 2013.

192
“Nasci em 62”:
algumas notas sobre uma breve história social de alguns
roqueiros brasileiros dos anos 80

Paulo Gustavo da Encarnação *

Introdução
“Não tenho culpa por ser filho de pai rico, e porque as coisas
foram mais fáceis para mim. Nunca tive que vender livros na rua, fei-
to o Tavinho Paes. Ou porque não passei fome como o Léo Jaime”
(ARAUJO, 1997, p. 357), declarou em 1984 Agenor de Miranda Arau-
jo Neto, o Cazuza, então vocalista da banda Barão Vermelho. Mas será
que a condição social de Cazuza foi um caso isolado no repertório de
bandas e cantores do rock nacional dos anos 80? Qual a origem social
de alguns roqueiros oitentistas? Que escolas frequentaram? Será que
estudaram música? E qual importância da história social para com-
preensão e interpretação das canções roqueiras?
O objetivo deste texto é traçar uma breve história social dos
roqueiros dos anos 801, ou seja, buscar elementos e dados, por meio
de periódicos e de biografias de bandas, que possibilitem compreen-
der como foi o processo de formação sócio-cultural-econômico dos
* Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (Assis).
1
O início do denominado rock nacional dos anos 80 é associado a partir dos lançamentos, entre 1982 e
1983, dos discos das bandas Blitz (As aventuras da Blitz) e Barão Vermelho (Barão Vermelho), e os dos
roqueiros Lobão (Cena de Cinema), Lulu Santos (Tempos modernos) e Ritchie (Vôo de Coração).

193
Paulo Gustavo da Encarnação

músicos antes de navegarem pelas águas, nem um pouco calmas, da


indústria fonográfica. Para tanto, algumas perguntas são chaves para
recompor a trajetória dos músicos, como: Quem são? Como se prepa-
raram? O que fizeram? Por fim, interpreta-se a canção “Nasci em 62”
como uma síntese de como se sentiam parte dos roqueiros e, possivel-
mente, alguns jovens dos anos 80 no cenário político e social da época,
análise que contribui para exemplificar a importância de uma história
social para compreensão e interpretação da canção.
Para a reflexão sobre uma breve história social dos roqueiros
dos anos 80, as seguintes bandas foram selecionadas, com seus res-
pectivos vocalistas e instrumentistas: Barão Vermelho: Cazuza (este
seguiu carreira solo a partir de 1985) (vocal), Roberto Frejat (guitar-
ra), Dé (contrabaixo), Maurício Barros (teclados) e Guto (bateria);
Biquíni Cavadão: Bruno Gouveia (vocal), Miguel Flores (teclados),
Birita (bateria), Coelho (guitarra) e Sheik (contrabaixo); Blitz: Evan-
dro Mesquita (vocal e guitarra), Ricardo Barreto (guitarra), Antonio
Pedro Fortuna (contrabaixo), Willian Forghieri (teclados), Márcia
Bulcão (vocais), Fernanda Abreu (vocais) e Juba (bateria); Camisa
de Vênus: Marcelo Nova (vocal), Karl Hummel (guitarra), Gustavo
Mullen (guitarra), Robério Santana (contrabaixo) e Aldo Machado
(bateria); Capital Inicial: Dinho Ouro Preto (vocal), Fê Lemos (ba-
teria), Flávio Lemos (contrabaixo) e Loro Jones (guitarra); Engenhei-
ros do Hawaii: Humberto Gessinger (vocal e guitarra), Carlos Maltz
(bateria) e Pitz (contrabaixo); Ira!: Nasi (vocal) Edgard Scandurra
(guitarra), André Jung (bateria) e Gaspa (contrabaixo); Kid Abelha:
Paula Toller (vocal), Leoni (contrabaixo), Bruno Fortunato (guitar-
ra) e George Israel (saxofone); Legião Urbana: Renato Russo (vocal),
Dado Villa-Lobos (guitarra), Marcelo Bonfá (bateria) e Renato Rocha
(contrabaixo); Nenhum de Nós: Thedy Corrêa (vocal e contrabaixo),
Carlos Stein (guitarra) e Sady Hömrich (bateria); Os Paralamas do

194
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

Sucesso: Herbert Vianna (vocal e guitarra), Bi Ribeiro (contrabaixo)


e João Barone (bateria); Plebe Rude: Philippe Seabra (vocal e guitar-
ra), André Mueller (contrabaixo), Gutje (bateria) e Jander Bilaphra
(vulgo, Ameba) (guitarra e vocais); RPM: Paulo Ricardo (vocal e con-
trabaixo), Fernando Deluqui (guitarra), P.A. (bateria) e Luiz Schiavon
(teclados); Titãs: Arnaldo Antunes (vocal), Paulo Miklos (sax e vo-
cal), Marcelo Fromer (guitarra), Sérgio Britto (teclados e vocal), Tony
Bellotto (guitarra), Nando Reis (contrabaixo e vocal), Charles Gavin
(bateria), Branco Mello (vocal); Ultraje a Rigor: Roger Moreira (vocal
e guitarra), Leôspa (bateria), Maurício (contrabaixo) e Carlinhos (gui-
tarra). E os cantores: Ritchie, Lulu Santos e Lobão.
O processo de escolha das bandas e cantores foi pautado pelo
critério mercadológico, ou seja, em razão de terem obtido maior des-
taque midiático, com trabalhos que repercutiram mais largamente
entre o público-alvo, e por apresentarem, de certa maneira, uma car-
reira contínua e com vários álbuns ao longo dos anos. É importante
salientar que a seleção de diferentes cantores, músicos e bandas, não
projeta ou afirma que eles formaram um grupo homogêneo e nem que
participaram de um projeto musical articulado, com propostas bem
definidas e matrizes e diretrizes discutidas em conjunto.
Ao traçar uma história social e cultural dos músicos roqueiros dos
anos 80, especialmente daqueles que se destacaram no universo roquei-
ro e tiveram maior repercussão na mídia, buscam-se elementos empíri-
cos que possibilitem, por meio de aproximações e de distanciamentos,
a caracterização de particularidades e habitus semelhantes, mapeando
os esquemas de percepção e avaliação do mundo e de ação no mundo
próprio de um conjunto de agentes sociais, cujas formações, experiên-
cias, costumes e posturas foram adquiridos em posições análogas em
campos específicos. Segundo Pierre Bourdieu (1996, p.59-73), o con-
ceito de habitus constitui-se em um “sistema de disposições duráveis

195
Paulo Gustavo da Encarnação

e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem


como estruturas estruturantes”, funcionando “como princípios gerado-
res e organizadores de práticas e de representações que podem ser ob-
jetivamente adaptadas a seu objetivo sem supor que se tenha em mira
conscientemente estes fins e o controle das operações necessárias para
obtê-los.”. Para o sociólogo, não há habitus pessoal idêntico a outro, mas
proximidades, formas assemelhadas quando levadas em consideração
as posições sociais dos agentes em campos específicos, o tempo e as tra-
jetórias que esses percorreram para ocupá-las, o que permite, portanto,
falar em habitus coletivo. Somente assim se constituirá uma história so-
cial, que permite melhor entender e analisar os produtos culturais, longe
do essencialismo, de ideografias e determinismos sociais.

Jovens, homens e brancos: alguns aspectos do rock bra-


sileiros dos anos 80
O rock, desde o seu início e de maneira universal, sempre esteve
ligado à juventude urbana, quer no caso dos músicos roqueiros, quer
do seu público. Não foi, portanto, o rock nacional dos anos 80 a exce-
ção. A idade média dos músicos das 15 bandas e 3 cantores aborda-
dos por esta pesquisa – totalizando 70 músicos entre instrumentistas
e cantores – situa-se entre 23 e 24 anos quando do lançamento de seus
primeiros discos. As exceções ficam por conta dos músicos da ban-
da baiana Camisa de Vênus (Marcelo Nova, Gustavo Mullen, Robério
Santana), de alguns integrantes da Blitz (Evandro Mesquita, Ricardo
Barreto, Antonio Pedro Fortuna e Juba), do músico do Ultraje a Rigor
(Leôspa) e os cantores Ritchie e Lulu Santos. Todos esses apresenta-
vam idades na faixa dos trinta anos à época do lançamento de seus
respectivos primeiros álbuns. Embora no rock brasileiro da época se
encontrasse exceções em relação à idade dos músicos, vale ressaltar
que os cantores Ritchie e Lulu Santos não iniciaram seus primeiros

196
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

acordes roqueiros nos anos 80. Ambos participavam, na década de


1970, de uma banda roqueira denominada Vímana2. Lulu Santos in-
clusive tentou iniciar uma carreira discográfica pela gravadora Poly-
dor3, porém sem obter sucesso. Outro músico que apresentava idade
acima de média era o baixista Antonio Pedro Fortuna que já havia
tocado com Os Mutantes.
O rock, em geral, desde o surgimento, apresenta uma segun-
da característica: é constituído, maiormente, por músicos do sexo
masculino. Segundo Roberto Muggiati (1981, p.73), no universo
do “Superstar System” da música, 99% do rock é feito por músicos
e cantores homens, salvo as exceções como Janis Joplin, Carole
King e Melanie. No caso brasileiro, a situação não foi diferente.
Há notadamente Celly Campello, que manteve carreira em fins
dos anos 50 e início de 1960, Wanderléia, Silvinha, Vanusa, Mar-
tinha e outras oriundas da denominada Jovem Guarda; e Rita Lee,
que foi vocalista de Os Mutantes e posteriormente seguiu carreira
solo. Mas, em relação ao conjunto de bandas do rock nacional dos
anos 80 selecionadas, apenas três mulheres figuraram no univer-
so masculino: Fernanda Abreu, Márcia Bulcão, ambas vocais da
Blitz, e Paula Toller, vocalista do Kid Abelha. Porém, no catálogo
de bandas do rock brasileiro oitentista constam algumas mulheres
que inclusive foram instrumentistas. Ademais, havia bandas que
continham ou frisavam a participação apenas de mulheres, como
a Sempre Livre, Garotas do Centro – que chegou a contar com
oito integrantes femininas no início da banda, mas posteriormen-
te a baterista foi substituída por um homem –, e a Mercenárias,
Em meados dos anos 1970, os dois músicos mencionados, mais Lobão e o baixista Fernando Gama,
2

montaram uma banda de rock progressivo, o Vímana, que contou com o apoio de Luiz Paulo Simas,
que conseguiu um contrato com a Som Livre, gravadora das organizações Globo. Mas o álbum ficou
engavetado e a banda se diluiu em fins da década de 1970.
Em 1978, as empresas Polydor e Phonogram se fundiram, resultando na PolyGram (DIAS, 2000, p.43).
3

A Polydor, portanto, era um selo da PolyGram.

197
Paulo Gustavo da Encarnação

embora essa contasse em seu início com a participação do bateris-


ta Edgard Scandurra, o qual integrava a banda paulistana Ira!, en-
tretanto, como guitarrista. A dificuldade de se encontrar bateris-
tas mulheres na época foi mote para as reclamações de roqueiras
das bandas citadas acima, como pode-se averiguar na reportagem
de Junia Nogueira de Sá, publicada em 8 de junho de 1984 na Fo-
lha de S. Paulo:

Elas [Mercenárias] são Ana Maria (guitarra), Sandra (baixo),


Rosália (vocal) e, acreditem, Edgard na bateria. Não, não se
trata de uma estranha moça que usa sapatos 44. (...) O mais
complicado nesses grupos, todas concordam, é exatamente en-
contrar uma baterista. Será que as garotas que sonham com o
estrelato consideram, machistamente, que bateria é coisa de ho-
mem? Que coisa mais antiga...

Não pretende-se aqui resolver a questão, por sinal pertinente,


levantada pela repórter Nogueira de Sá que questiona se a falta de
bateristas mulheres tem relações com o “machismo”, conceito que
associa-se tanto ao núcleo masculino, que possivelmente discrimi-
nava as meninas que iniciavam a aprendizagem de bateria, quanto
ao núcleo feminino, que supostamente associava o instrumento ex-
clusivamente ao universo masculino. Vale destacar que pela leitu-
ra dos verbetes do livro ABZ do rock brasileiro (1987), de autoria
do poeta e músico Marcelo Dolabela os verbetes, dentre os mais de
2.500 roqueiros citados, é possível apimentar mais a lacuna exposta
pela jornalista de Sá: são raras as mulheres que se aventuraram no
ofício das baquetas que constam no “dicionário” do rock brasileiro
que abrange músicos desde os anos 1950 a 1980. Ademais, as que
constam ficaram restritas ao universo underground e, mais, nunca
chegaram a gravar um disco.

198
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

Ao comentar sobre o rock internacional, sobretudo o inglês e


americano, Muggiati (1981, p.74-5) destaca que foram a nova consci-
ência e os movimentos feministas que denunciaram a segregação das
mulheres dentro do rock. A partir dos anos 1970, percebe-se a ascensão
da mulher nesta cena musical com a presença da voz feminina, como
Carole King, por exemplo, que ficou por vários meses em primeiro lu-
gar com seu álbum Tapestry, e Grace Slick, que liderava os vocais do
Jefferson Airplane, além de começar a cair o tabu de que as mulheres
só deviam tocar instrumentos denominados “femininos”, como piano,
harpa etc. Talvez o tabu sobre os instrumentos de corda como a gui-
tarra e o contrabaixo tenha sido colocado à prova, apesar de permane-
cerem alguns resquícios em relação à bateria, principalmente no caso
brasileiro, até o contexto dos anos 1980. Entretanto, é interessante notar
que se o rock não atraia muitas mulheres em seu cerne e a bateria não
era o instrumento preferido pelas roqueiras brasileiras, por outro lado,
a presença feminina no circuito não passou despercebida aos olhares
dos organizadores de dois espaços alternativos para o rock da época,
que criaram locais exclusivos para apresentações de bandas e cantoras
roqueiras. O Lira Paulistana4 dedicou uma tarde ao projeto “Jogo de
Damas” e o Circo Voador5 abriu o espaço “Noites das roqueiras”.
Embora o rock também tivesse raízes da cultura negra, posto que
é fruto da “miscigenação” da música americana, ou seja, do rhythm &
blues dos guetos negros das grandes cidades, mais o country, a música
O Teatro Lira Paulistana foi idealizado por Wilson Souto Júnior, que contou com o apoio do adminis-
4

trador de empresas Valdir Galiano. O espaço ocupava cerca de quatrocentos metros quadrados de um
antigo depósito de móveis na Rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, Zona Oeste da cidade de São Paulo.
Essa rua é hoje uma referência no comércio de instrumentos musicais. O teatro foi inaugurado em
outubro de 1979 com a peça É fogo, paulista! e contou com a apresentação da orquestra Gota D’Água.
Concebido por Perfeito Fortuna, membro da trupe teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, mais o apoio
5

do engenheiro Márcio Galvão e do cenógrafo Maurício Sette, o centro cultural Circo Voador tinha
como objetivo incentivar e apresentar as mais diversas expressões artísticas. Depois da tentativa frus-
trada de montar a lona na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, e de ficar quase três meses na
Praia do Arpoador, com apoio e a intercessão da então primeira do estado, Zoe Freitas Chagas, o Circo
Voador pousaria, em 23 de outubro de 1982, na Lapa, contando novamente com o intermédio da se-
nhora Chagas.

199
Paulo Gustavo da Encarnação

rural do “branco pobre” e o western do Oeste (FRIEDLANDER, 2003),


o que se observa do ponto de vista étnico é que a maioria dos músicos
que figurava, e figura, no mainstream do rock internacional é branca.
Característica étnica que se repete entre os músicos do rock brasileiro
dos anos 80, pois, dentre o universo de bandas e cantores abordados
neste texto, apenas um músico roqueiro é negro: Renato Rocha, baixista
da Legião Urbana. Fora desse universo tratado neste texto, há mais um
afrodescendente que conseguiu seguir carreira no período, o vocalis-
ta e guitarrista Clemente, da banda punk rock Inocentes. É interessante
notar como demonstra Muggiatti (1981, p.30-1) que as duas grandes
explosões da música jovem – o rock and roll em meados dos anos 1950
e seu derivado o rock da década de 1960 – têm também raízes negras,
e é a classe média branca que assumirá a cultura negra como forma de
questionamento da cultura americana. Uma das grandes contribuições
da cultura afrodescendente para a música popular americana, o jazz,
praticado desde fins do século XIX em Nova Orleans, só se tornaria
conhecida no país e na Europa a partir dos anos 1920 por meio de uma
orquestra de brancos: a Original Dixieland Jazz Band (ODJB). Imitação
dos músicos jazzistas negros, a banda era aceita nos grandes salões e
teatros porque não havia nenhum negro adentrando o espaço “branco”.
Mas não somente o jazz foi fantasiado e empacotado pelos brancos e
vendido ao público branco. Como ressalta Muggiati (1981, p.36), a cópia
musical se institucionalizaria em meados da década de 1950, ressurgin-
do as covers (coberturas), ou seja, cópias exatas de canções já gravadas,
e na maioria dos casos eram cópias que cantores brancos faziam de can-
ções negras: “Bill Haley, cabelos louros caindo em chuca-chuca na testa,
se torna uma das maiores estrelas do rock and roll quando grava com os
seus Comets uma “cover” de Shake, Rattle and Roll (anteriormente gra-
vada pelo negro Joe Turner), que será um dos discos mais vendidos em
1954”. O rock and roll passa a ser comercializado e difundido quando

200
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

cantores e músicos brancos (re)gravam canções e se projetam no merca-


do fonográfico americano. O guitarrista Jimi Hendrix, que viria a con-
quistar a carreira na década de 1960 e início da década de 1970, foi um
dos poucos a quebrar com esses dados dramáticos e conseguir vencer
num universo musical dominado por músicos brancos.

“Todo mundo é filho de alguém, todo mundo tem um pe-


zinho no Poder”6
Do ponto de vista social, é possível dizer que os integrantes das
bandas e cantores roqueiros dos anos 80 abordados neste texto se
dividiam em dois segmentos sociais: um, majoritário, composto por
filhos de famílias de classe média alta e urbana, geralmente ligadas a
setores administrativos oficiais ou da iniciativa privada, e outro, me-
nor, integrado por filhos de núcleos familiares de classe média baixa
e urbana, ligado a setores de prestação de serviços e cargos subalter-
nos no funcionalismo público. No primeiro segmento havia filhos de
militares, como Loro Jones (Capital Inicial), Paulo Ricardo (RPM),
Lulu Santos, e o Paralamas Herbert Vianna – cujo pai, Hermano
Paes Vianna, era responsável pelos voos da Presidência no governo
de Ernesto Geisel –, além do inglês Ritchie, filho de militar de alta
patente do exército britânico; diplomatas, como o legionário Dado
Villa-Lobos, inclusive nascido em Bruxelas devido a função do pai,
Dinho Ouro Preto (Capital Inicial), e, o Paralamas Bi Ribeiro, cujo
pai, Jorge Ribeiro, era chefe do cerimonial da Presidência durante
o governo de Geisel; professores universitários, como os irmãos Fê
e Flávio Lemos (ambos do Capital Inicial) cujo pai era docente da
UnB, André Mueller (Plebe Rude), e os Titãs Arnaldo Antunes e
Tony Bellotto, este filho dos professores de História Heloisa Liberalli
Declaração feita por Herbert Vianna, vocalista e guitarrista do Os Paralamas do Sucesso ao Jornal do
6

Brasil, 14/06/1983.

201
Paulo Gustavo da Encarnação

Bellotto e Manuel Lello Bellotto, docentes, respectivamente da PUC


e da UNESP/Assis; funcionários públicos de alto escalão como o
legionário Renato Russo; e empresários do setor artístico-cultural,
como Cazuza, filho de João Araújo, diretor da gravadora global Som
Livre, e o titã Branco Mello, cuja mãe era a agitadora cultural Lu
Brandão; políticos, como Roberto Frejat (Barão Vermelho), filho de
José Frejat deputado federal pelo PDT à época e o titã Sérgio Britto,
filho de Almino Afonso, então antigo líder do PTB e ministro do
trabalho do governo de João Goulart, cassado e exilado após o Golpe
militar e civil de 1964.
A presença de filhos de políticos no universo do rock nacional
foi inclusive capa do caderno “Ilustrada”, da Folha de S. Paulo, em 28
de agosto de 1985. Além de Roberto Frejat e Sérgio Britto, a matéria
jornalística destacava os roqueiros Supla, filho de Eduardo Suplicy,
candidato do PT à época à Prefeitura de São Paulo e Neuzinha Bri-
zola, filha do então governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola. Mas
será que a profissão-roqueiro causou preocupação de reverberações
políticas negativas aos pais, principalmente aos nacionalistas?

Certa vez, o deputado [José Frejat], antes de uma entrevista


que daria à revista “Veja”, consultou, preocupado, o filho: “E se
eles, sabendo que eu sou nacionalista, me perguntarem sobre
o rock e sobre o fato de ter um filho roqueiro?” Roberto ensi-
nou: “O rock é uma música universal, no mundo atual; com o
desempenho dos meios tecnológicos, não dá mais para man-
ter a rigidez das fronteiras nacionais”. A explicação pegou.
José Frejat chega a comparar esta universalidade à da “música
clássica”. E sublinha: “O rock do Barão Vermelho é um rock
já nacionalizado”. Em outras palavras, a frase é repetida por
Eduardo Suplicy e Almino Afonso – que ressaltam o fato do
novo rock “ser cantado em português” e ter “um ritmo ligado
à música brasileira”. “Antigamente, o máximo que tínhamos

202
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

eram cópias e versões, como as que eram cantadas por Cely


Campello”, diz Eduardo, que já foi fã de Bob Dylan, Joan Baez
e Nat King Cole. “A música deles alcança várias gerações”,
acrescenta Almino Afonso.

O capital social7 das famílias dos roqueiros muito provavelmen-
te contribuía para que a rebeldia deles, muito antes de alcançarem a
posição de ídolos do rock brasileiro, fosse tolerada ou, quando fosse o
caso, limitadamente punida pelas autoridades. Para se ter clareza des-
sa afirmativa, basta recorrer à memória, respectivamente, dos músicos
Loro Jones e Fê Lemos (Capital Inicial) sobre uma festa organizada
por um grupo de amigos em um sítio em Sobradinho, cidade-satélite
de Brasília. Denominada Rockonha, a festa foi invadida pela polícia:

A primeira Rockonha foi legal, mas a segunda foi aquela rou-


bada. Antes da festa a polícia já estava pronta para invadi-la.
[...] De repente, tinha guarda gritando: ‘Mão na cabeça’, e foi
aquele negócio de liberar as coisas ali mesmo no chão. Foi todo
mundo de ônibus para o batalhão de choque de Sobradinho.
No caminho ainda tinha gente dispensando coisa pela janela.
Chegando lá, ficou todo mundo em fileira no pátio do batalhão
e os menores foram para um auditório. Eu saí porque sou filho
de militar. A organização da polícia foi tanta que até os carros
que ficaram na festa tinham como chegar aos seus donos. [...]
Os menores foram separados em um ônibus e foram para um
ginásio. Depois houve uma triagem, separando os filhos de mi-
litar, diplomata, político e de funcionário público (apud, MAR-
CHETTI, 2001, p. 49).

7
Capital social é definido por Pierre Bourdieu (2007, p. 67) como o conjunto de recursos atuais ou
potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas
de interconhecimento e de inter-reconhecimento ou, em outros termos, à vinculação a um grupo,
como conjunto de agentes que não somente soa dotado de propriedades comuns (passíveis de serem
percebidos pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também soa unido por ligações
permanentes e úteis”.

203
Paulo Gustavo da Encarnação

A certa tolerância e a limitada punição pela ordem vigente da


época em relação aos jovens filhos de diplomatas, militares e políticos,
podem ser constatadas também pelos dizeres de Herbert Vianna, que
além de citar “as festas”, que pode-se também associar de certa maneira
à Rockonha, descreve outra situação: “Todo mundo é filho de alguém,
todo mundo tem um pezinho no Poder, a garotada vai crescendo, aos
15 anos pega de carro (sic), vai preso, o pai vai lá e solta. [...] Tem festas
lá que são interrompidas pela polícia que leva ônibus para carregar a
garotada para o distrito, tudo filho de militar, diplomata, político, não
dá em nada e tudo se repete” (Jornal do Brasil, 14/06/1983).
Mas o rock universalmente nem sempre foi feito exclusivamente
por filhos de classe média alta. Os ingleses das bandas The Beatles e
Rolling Stones, especificamente, advêm de vínculos familiares do pro-
letariado. No caso das bandas do rock brasileiro oitentista, aqui abor-
dadas, o exemplo dos músicos britânicos encontra similaridade. Nem
todos os roqueiros nasceram em berços esplêndidos, como é caso dos
músicos Nasi e Edgard Scandurra, ambos do Ira!, que com os cachês dos
primeiros shows ajudavam os pais. Havia ainda bandas nacionais que se
projetaram nos anos 80 e cujos integrantes apresentam origem e situa-
ções sociais bem mais desfavorecidas, como as bandas Cólera, Inocen-
tes, Garotos Podres, Ratos de Porão e o cantor Leo Jaime, por exemplo.
Uma grande parcela dos 70 músicos de rock dos anos 80 foca-
lizados neste texto adquiriu ferramentas e suportes para incrementa-
rem os seus futuros e respectivos capitais culturais8 em escolas da rede
privada de ensino, sobremaneira no nível secundário, hoje chamado
ensino médio. A escola pública apresentava já os sinais da deterioração

Segundo Pierre Bourdieu (2007, p. 74), “capital cultural pode existir sob três formas: no estado incor-
8

porado, ou seja, sob a forma de disposições duráveis do organismo; no estado objetivado, sob a forma
de bens culturais – quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas, que constituem indícios ou
a realização de teorias ou de críticas dessas teorias, de problemáticas, etc.; e, enfim, no estado institu-
cionalizado, forma de objetivação que é preciso colocar à parte porque, como se observa em relação ao
certificado escolar, ela confere ao capital cultural – de que são, supostamente, a garantia – propriedades
inteiramente originais”.

204
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

que se avolumariam entre os anos 1980 e 1990, tornando-se pouco


atrativa para os filhos dos segmentos sociais que buscavam adquirir
ou reforçar capital cultural pela via escolar. Não seria diferente para os
jovens e adolescentes que trilhariam o caminho da carreira roqueira,
ou, como bem ilustra o depoimento do legionário Marcelo Bonfá: “Ti-
nha gente de todos os lugares do Brasil. Todo mundo parecia alieníge-
na, cada um vindo de um lugar diferente. No começo, os professores
faltavam muito, e o ensino público já era ruim” (MARCHETTI, 2001,
p. 18). O legionário viria posteriormente a mudar do ensino estadual
para a rede privada. E foi nessa fase escolar que muitos dos músicos de
rock dos anos 80 firmaram amizades e travaram contatos que futura-
mente seriam válidos para o campo musical. Sady Hömrich e Carlos
Stein (ambos do Nenhum de Nós) conheceram-se ainda nos tempos
da primeira série escolar do colégio lasallista Nossa Senhora das Do-
res, perto do Theatro São Pedro, em Porto Alegre. No mesmo colégio,
quatro anos mais tarde, conheceriam o futuro vocalista da banda, Tedy
Corrêa. Maurício de Barros e Guto (ambos do Barão Vermelho) eram
colegas no Colégio Imaculada Conceição, no Rio de Janeiro. Ainda
na cidade maravilhosa, Herbert Vianna estudou no Colégio Militar e,
anos mais tarde, frequentaria o Colégio Bahiense juntamente com o
amigo dos tempos de Brasília e também futuro Paralamas, Bi Ribeiro.
Havia também o caso notável e paradigmático dos Titãs, pois dos oito
futuros integrantes, seis frequentaram as salas do Colégio Equipe em
São Paulo9. O primeiro a se matricular foi Sérgio Britto, em 1975, e
depois vieram Arnaldo Antunes, Paulo Miklos, Branco Mello Marcelo
Fromer – os dois últimos estudariam na mesma sala – e Nando Reis
(MARMO, 2003, p.23).
9
O Colégio Equipe foi fundado em 1971 como curso pré-vestibular, tendo sua primeira sede o ex-colé-
gio de freiras, na Rua Caio Prado, centro, sendo transferido algum tempo depois para a Bela Vista, São
Paulo. Um ano depois da fundação, o Equipe passaria a ser escola também e, durante a década de 1970
e início dos anos 1980 foi reduto para os filhos tanto dos intelectuais quanto da militância de esquerda
paulistana. O colégio era conhecido por ser um espaço de resistência cultural contra a repressão militar
e por ter, consequentemente, um centro acadêmico organizado e atuante.

205
Paulo Gustavo da Encarnação

Muitos dos roqueiros seguiram os próximos passos para a for-


mação educacional e cultural, ou seja, iniciaram ou concluíram um
curso superior. Paulo Ricardo formou-se em jornalismo pela ECA/
USP, onde foi colega de Rui Mendes, Cao Hambúrguer e William
Bonner. Renato Russo também se formou em jornalismo, obtendo
o diploma na UnB. Marcelo Fromer e Branco Mello frequentaram
o curso de Letras da USP, mas abandonaram antes de completar o
segundo ano. Na mesma Universidade, Nasi frequentou o curso de
História. Paulo Miklos iniciou, ao mesmo tempo, Filosofia na PUC
e Psicologia, numa faculdade de Mogi Mirim, entretanto, após al-
gumas aulas, abandonou ambos os cursos. Investiu posteriormente
suas fichas no curso de música da ECA/USP, porém abandonou-o
no segundo ano. Na PUC/RS estudaram dois integrantes e colegas
do Nenhum de Nós, Tedy Correa, que cursou Engenharia Civil, e
Sady Hömrich, que fez Engenharia Química. Na PUC carioca estu-
davam três futuros membros do Kid Abelha: Paula Toller, em Co-
municação Visual e Desenho Industrial, Leoni e Carlos Beni, que
cursavam Direito. Na UFRRJ estudavam dois futuros integrantes do
Paralamas, Bi Ribeiro, aluno de Biologia, e João Barone, graduando
em Zootecnia. Cazuza abandonou na primeira semana a faculdade
de Comunicação. Seu companheiro de banda Roberto Frejat cursou
apenas o primeiro ano de Geografia. O tecladista do Biquíni Cava-
dão, Miguel Flores, abandonou a faculdade de Medicina para seguir
carreira com a banda.
Mas o curso de graduação que mais atraiu os então futuros
roqueiros dos anos 80 foi o de Arquitetura. Cursaram e concluíram
aquele curso André Mueller, pela UnB, Leôspa, na Mackenzie, Car-
los Stein, na UFRGS, onde viria a conhecer e participar, por pouco
tempo e com mais três colegas de curso, da banda Engenheiros do
Hawaii: Humberto Gessinger, Carlos Maltz e Pitz. Não concluíram

206
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

o curso: Roger Moreira, com três anos de graduação no Mackenzie,


Tony Bellotto, após estudar por dois anos em uma faculdade de Santos
e Herbert Vianna, que também abandonaria uma faculdade na cidade
do Rio de Janeiro.

“A gente está aprendendo música ao fazer música”10


Boa parte dos músicos roqueiros tratados neste texto teve a
oportunidade de viajar ou morar no exterior. Alguns casos são fru-
tos de conjunturas familiares. Sérgio Britto, quando criança, morou
no Chile devido ao exílio de seu pai, tendo, consequentemente, par-
te de seu alfabetizado em castelhano. Havia os casos de filhos de
diplomatas, como Dinho Ouro Preto, que morou em Genebra. En-
tretanto, viagens de estudo ou a passeio também foram realizadas.
Cazuza viajou a Paris pela primeira vez com dezessete anos e poste-
riormente decidiu morar em São Francisco, nos Estados Unidos. Em
1979, decidiu estudar fotografia na Califórnia, de onde voltou sem o
canudo e com a intenção de trabalhar como fotógrafo freelance para
a gravadora RGE – a qual pertencia às Organizações Globo, também
proprietária da gravadora Som Livre, onde seu pai era diretor. Tony
Bellotto viajou para os Estados Unidos com quinze anos. No país
do Tio Sam estiveram também Renato Russo, morando em Nova
Iorque com seus pais entre os sete aos dez anos de idade, e os amigos
e futuros integrantes do Ultraje a Rigor, Roger Moreira e Leôspa,
que foram em 1979 para São Francisco. Mas o país que mais atraiu
os jovens que se inscreveram no rol de ídolos do rock nacional da
década de 1980 foi a terra dos famosos quatro garotos de Liverpool,
a Inglaterra. Para a terra dos Beatles se dirigiram: Bruno Gouveia
(Biquíni Cavadão), em viagem de estudos por dois anos; os irmãos
Lemos (ambos do Capital Inicial), acompanhando o pai durante seu
10
Declaração feita por Renato Russo, vocalista da Legião Urbana, para o Jornal de Brasília, 04/05/1984.

207
Paulo Gustavo da Encarnação

estudo de pós-graduação em Biblioteconomia; André Mueller e Gu-


tje (ambos da Plebe Rude) e Paulo Ricardo. Nessas oportunidades,
os futuros roqueiros citados, entraram em contado com culturas di-
ferentes, e principalmente com o pop-rock inglês e americano, sobre-
tudo o punk e a new wave, o que lhes proporcionou ampliar, desde
cedo, seus capitais culturais e musicais.
Mas não era apenas com estudos que os músicos roqueiros se
ocupavam tempos antes de ingressarem nos grandes palcos. Uma
parcela adentrou o mercado de trabalho, alguns para se sustentarem,
outros para sentirem os primeiros sabores de uma desejada inde-
pendência econômica. O titã Charles Gavin, além de cursar Admi-
nistração pela PUC/SP, trabalhou na empresa Panasonic, operando
computadores. Na Bahia, dois futuros integrantes do Camisa de Vê-
nus trabalhavam com comunicação social. Marcelo Nova era DJ do
programa Rock Special na FM Aratu, onde aproveitava o espaço para
vincular na programação canções punk rock, e Robério Santana tra-
balhava na mesma empresa, mas na área de TV. Outro integrante do
Camisa de Vênus, Gustavo Mullen, era bancário. Segundo Marce-
lo Nova, “Karl (guitarra) vendia pulseiras, levantava ao meio-dia...
um vagabundo”. Em Brasília, Renato Russo trabalhou como profes-
sor na Cultura Inglesa e foi radialista do Ministério da Agricultura.
No Rio de Janeiro, Ritchie lecionava o idioma inglês, dando aulas
particulares e na escola de idiomas Berlitz, tendo entre seus alunos
o multi-instrumentista Egberto Gismonti, a cantora Gal Costa e o
saxofonista Paulo Moura. Outro roqueiro a exercer a profissão de
professor de inglês foi Roger Moreira, do Ultraje a Rigor, que lecio-
nou o idioma em curso pré-vestibular e para executivos, bem como
o futuro Paralamas, João Barone. Herbert Vianna trabalhou como
despachante de carga em uma empresa aérea e também em um escri-
tório de arquitetura. Na revista Som Três, lançada em 1979 e editada

208
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

por Maurício Kubrusly, foi criada a coluna Jornal do disco, para a


qual escreveram Lulu Santos e Paulo Ricardo – este ficaria conhecido
pelos pôsteres biográficos das bandas Led Zeppelin, Rolling Stones
e Black Sabbath – (BRYAN, 2004, p.50). Lulu Santos trabalhou tam-
bém na gravadora Som Livre como produtor de trilhas sonoras para
as novelas da TV Globo. Segundo o jornalista Ricardo Alexandre
(2002, p.39), a função de Lulu Santos era de selecionar dezenas de
músicas possíveis para os enredos e submeter suas sugestões aos di-
retores dos folhetins. Na mesma gravadora, antes de mudar-se para
São Francisco, nos Estados Unidos, Cazuza também trabalharia, por
um curto período, no departamento de imprensa, o qual era coor-
denado pelo crítico Ezequiel Neves e futuro incentivador e produtor
do Barão Vermelho.
Os músicos roqueiros dos anos 80 que frequentaram cursos re-
gulares de música foram poucos. Os que passaram por aulas de piano
foram Miguel Flores, que iniciou os estudos aos onze anos de idade e
aos dezessete já participaria da banda Biquíni Cavadão; Renato Russo
(Legião Urbana) iniciou os estudos aos cinco anos de idade. Flávio
Lemos (Capital Inicial) que estudara piano clássico, mas, segundo o
músico, em depoimento a Marchetti (2001, p.15), “um pouco antes
de ir embora [para a Inglaterra], deixei o clássico de lado e comprei
partituras dos Beatles e do Led Zeppelin”. Maurício Barros (Barão
Vermelho) estudou na Escola de Música ProArte, no Rio de Janeiro.
Porém, o músico que mais supostamente se dedicou à música foi Luiz
Schiavon (RPM), o qual, desde os cinco anos de idade, estudara músi-
ca e continuara seus estudos no conservatório Mário de Andrade, em
São Paulo. Não há informações, por exemplo, se alguns dos músicos
citados, como no caso de Renato Russo, continuaram a estudar piano.
Entretanto, Russo viria a tocar futuramente outros instrumentos, a sa-
ber, guitarra e contrabaixo. O exemplo se repete com Flávio Lemos,

209
Paulo Gustavo da Encarnação

que seria reconhecido na década de 1980 por tocar contrabaixo, e não


piano. Três futuros integrantes do Barão Vermelho frequentaram a
Escola de Música ProArte, no Rio de Janeiro: Roberto Frejat (violão,
guitarra), Dé (contrabaixo) e Guto Goffi (bateria).
Alguns roqueiros desenvolveram aprendizados com músicos que
participavam da cena musical da época. Branco Mello e Marcelo Fromer
tiveram, na adolescência, aulas de violão com Luiz Tatit, futuro integran-
te da Banda Rumo. Ritchie daria aulas de inglês para o saxofonista Paulo
Moura em troca de aulas de flauta. Leoni, baixista do Kid Abelha, apren-
deu a tocar o instrumento com Fernando Gama11. Paula Toller, vocalista
da mesma banda, foi aluna de canto de Vera Maria do Canto Mello. Ou-
tro músico do Kid Abelha, Carlos Beni, primeiro baterista da banda, foi
aluno de Lobão. Este iniciou a aprendizagem do instrumento, segundo
ele próprio, aos três anos de idade e inclusive, se dedicaria, também, ao
violão clássico, como aluno da escola Guerra Peixe.
Muitos músicos da geração oitentista aprenderam supos-
tamente o instrumento com amigos, colegas, com professores de
música, e aprenderam também com os pais, mães e familiares. Co-
elho (do Biquíni Cavadão) iniciou a aprendizagem de violão aos
treze anos, passando a tocar guitarra aos quinze. Aos dezoito anos
já integrava a banda. Na adolescência, Bruno Gouveia cantava no
Colégio São Vicente e sua primeira banda foi o Biquíni Cavadão.
Lulu Santos começou a tocar guitarra aos treze anos e viria a se tor-
nar profissional e gravar seu primeiro compacto solo no início dos
anos 1980. Bi Ribeiro, baixista do Os Paralamas do Sucesso, apren-
deu a tocar o instrumento com seu amigo e futuro companheiro de
banda Herbert Vianna. O guitarrista e vocalista Vianna, segundo
o jornalista Jamari França (2003, p.15), “desde cedo dedicava-se ao
Fernando Gama participou como baixista da banda Vímana. Com sua dissolução, teve uma partici-
11

pação rápida nos Mutantes, entre fevereiro a junho de 1978. Viria a ser músico de estúdio também,
tocando com Roberto Carlos, Chico Buarque e Tom Jobim.

210
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

violão e tocou sua primeira composição para a mãe, dona Teresa,


aos três anos de idade”.
Há, entretanto, os casos de Antônio Pedro e Willian Forghie-
ri, ambos da Blitz, que já tocavam profissionalmente antes de partici-
parem das gravações da banda. Pedro participara dos Mutantes e da
banda O Terço. Forghieri tocara com a Gang 90 & As Absurdettes e
a banda Herva Doce. Lobão tocara bateria, como já ressaltamos, com
Marina, Luiz Melodia e Zé Ramalho e, também com a Blitz, da qual foi
um dos fundadores. Entretanto, nesse caso, o músico preferiu seguir
carreira solo, transferindo de instrumento e assumindo os vocais.
Vários músicos roqueiros dos anos 80 estavam antenados com
os rumos e as tendências do rock longe das fronteiras brasileiras, prin-
cipalmente os dois mais influentes polos roqueiros: os Estados Unidos
e a Inglaterra. E tinham como referências – dentre outros gêneros,
inclusive brasileiros –, dois estilos que ressoavam seus acordes no uni-
verso musical do rock, isto é, o punk e seu derivado menos agressivo
e muito mais comportado, a new wave. Em meados dos anos de 1970
as bandas de rock progressivo, tal como a banda londrina Pink Floyd,
apresentavam-se em shows gigantescos e superproduzidos. Bem dis-
tante da simplicidade e da interação com o público que marcavam os
primeiros anos do rock. Em meio a esse cenário de grandes holofotes
e mega shows, nos Estados Unidos, inicia-se o que se denominaria ga-
rage bands ou pré-punk, ou seja, um rock básico, cru, sem sofisticação
e com letras simples e diretas. Mas o que chamaria atenção, no ano de
1976, seriam os jovens que chocariam a sociedade com suas aparên-
cias e letras diretas, sobretudo de protesto. O punk mostrava sua face
e seus primeiros acordes.
Segundo Friedlander (2003), existem duas explicações que apon-
tam o surgimento e a natureza violenta do punk na Inglaterra. A primei-
ra enfatiza o declínio da economia britânica como o principal impulso,

211
Paulo Gustavo da Encarnação

uma vez que crescia constantemente o desemprego entre a parcela jovem


nas periferias e nos guetos, bem como a falta de oportunidades no siste-
ma educacional. Os jovens foram percebendo que não havia um futuro
promissor, advindo daí um dos lemas punk: no future. A outra tese de-
fende, principalmente, ao estilo e atitude, a escola de arte como cordão
umbilical do movimento, uma vez que vários integrantes, como Glen
Matlock, dos Sex Pistols, Paul Simonon, Joe Strummer e Mick Jones, do
The Clash, e empresários e tutores das bandas como Malcom Mclaren
(Sex Pistols), trouxeram e misturaram conhecimentos da escola ao mo-
vimento punk: “A escola de arte e suas discussões sobre choque de valo-
res, performance enquanto arte, teorias situacionistas de subversão e de
moda se manifestaram no punk rock” (FRIEDLANDER, 2003, p.354-5).
A etimologia da palavra punk, segundo Muggiatti (1981, p. 112),
vem de “droga, coisa sem valor, ruim, podre, desgraçado, doente”. Mu-
sicalmente é marcado por apresentar uma simplicidade, tendo em suas
canções, sobretudo, três acordes. Não há preocupação em criar arran-
jos para os vocais, bem como os solos de guitarras, quando executados,
são curtos e simples. As canções em sua maioria são curtas e rápidas,
e apresentam, muitas delas, menos de três minutos. O punk é marcado
também pela atitude. Os adeptos e divulgadores do estilo têm como
um dos principais lemas o do-it-yourself (faça você mesmo), ou seja,
enfatizam que música qualquer um é capaz de fazer, basta ter atitude.
O punk rock viria a ser referência para futuras bandas do rock
nacional dos anos 80, tais como Capital Inicial, Ira!, Legião Urbana,
Plebe Rude, Camisa de Vênus, dentre outras. O baixista da Plebe Rude,
André Mueller, inclusive, quando esteve na Inglaterra, por volta de
1978, gravava as últimas novidades do cenário punk e enviava algumas
fitas para o amigo e futuro membro do Capital Inicial, Fê Lemos. Os
irmãos Flávio e Fê, quando passaram por terras britânicas, trouxeram
vários discos e fitas com canções punks. Flávio Lemos (Capital Inicial)

212
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

conheceu Renato Russo (Legião Urbana) numa conversa sobre o novo


estilo: “Conheci o Renato na Cultura Inglesa porque, quando voltei,
fui estudar lá. Conheci ele através do Fê, que um dia estava na biblio-
teca conversando com ele sobre punk. Nos encontrávamos muito na
Cultura Inglesa porque lá era um dos poucos lugares que chegava a
New Musical Express” (MARCHETTI, 2001, p.15).
Cabe aqui um importante parêntese para destacar a importância
da história social para compreensão dos habitus e na formação dos
roqueiros. Ao comentar sobre as habilidades musicais dos roqueiros
dos anos 80, Renato Russo afirmara: “Não é preciso estudar 10 anos os
conceitos musicais do poeta John Cage para se fazer rock. A gente não
é músico. A gente está aprendendo música ao fazer música” (Jornal de
Brasília, 04/05/1984). Embora o legionário ressaltasse, corretamente,
certa “simplicidade” e a dinâmica “livre” na operação propriamente
de compor e tocar rock, é necessário complementar a sua afirmativa,
pois os futuros roqueiros brasileiros dos anos 80 dispunham de capi-
tal cultural próprios e de capital econômico familiar que lhes serviam
de recursos para mantê-los antenados com as tendências do universo
do rock internacional, como viagens ao exterior, aquisição e consumo
de discos e revistas importadas – discografia e publicações que nem
todos os futuros roqueiros dos anos 80 tinham acesso ou habilidades
para consumi-las.
Outra fonte foi a new wave (“nova onda”), que mesclava o rit-
mo jamaicano do reggae com a discoteca. No Brasil, o estilo serviu de
referência, por exemplo, para os Titãs, Os Paralamas do Sucesso, Blitz,
Kid Abelha e Biquíni Cavadão. Ao comentar como conheceu Herbert
Vianna dos Paralamas do Sucesso e sua importância no processo de
formação do Biquíni Cavadão, Bruno Gouveia deixa pistas sobre as
canções que gostava de ouvir no início da década de 1980 e que eram
referências na época:

213
Paulo Gustavo da Encarnação

(...) em poucos minutos notei que ele [Herbert Vianna] estava


super antenado com grupos que eu tinha acabado de conhe-
cer em minha viagem de estudos por dois meses na Inglaterra.
Falamos de Madness, Echo and The Bunnymen, Eurythmics,
Men At Work, com prazer e felicidade, talvez, de notar que o
outro também conhecia estas bandas.

O trecho destacado da fala de Bruno Gouveia serve também como


complemento às observações anteriores sobre o comentário de Renato
Russo acerca da suposta simplicidade para se fazer rock. A somatória do
capital cultural dos futuros roqueiros dos anos 80 pertencentes a famí-
lias de classe média alta (como a formação escolar e os conhecimentos
adquiridos em viagens ao exterior, incluindo o domínio da língua in-
glesa) com o capital econômico de seus núcleos familiares (que possi-
bilitava viagens aos EUA e à Inglaterra ou a compra de revistas e discos
importados) e o capital social (círculo de amigos composto por pessoas
que também viajavam ao exterior e comumente tinham hábito de enviar
ou presentear com novidades discográficas ou revistas especializadas),
criava, sem dúvida, oportunidades para que aqueles jovens se mantives-
sem afinados com que havia de mais novo no cenário pop internacional.
Situação que, em muito, contribuía aos experimentos com o rock, dife-
rente daqueles que partiam de uma condição de consumo colateral com
relação aos produtos midiáticos do rock internacional.
Mas não foi só o punk e a new wave que os músicos do rock na-
cional dos anos 80 se inspiraram ou teriam como referências musicais.
Os componentes do Ultraje a Rigor tinham em comum, por exemplo,
o gosto por The Beatles, Rolling Stone, Beach Boys e Erasmo Carlos.
Na banda Titãs, Branco Mello ouvia quando criança muito Frank Sina-
tra, Glenn Miller, Chuck Berry, The Doors, Raul Seixas, Luiz Melodia,
Caetano, Roberto Carlos e Bossa Nova com o pai. Paulo Miklos ouvia
Led Zeppelin, Deep Purple, Beatles, Roberto Carlos e Tropicália.

214
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

Eu não tenho muito para dizer... ?: uma interpretação de


“Nasci em 62”
A maioria desses jovens roqueiros nasceu na década de 1960.
Os músicos cresceram em um meio social constituído entre a re-
pressão e a mordaça; entre a falta de envolvimento social-político e a
depredação-tecnicização do ensino secundário e superior. Estavam
desprovidos de debates da esquerda, da utopia, do sonho com a re-
volução e na crença de mudanças que envolvia toda uma geração de
intelectuais, artistas, músicos, políticos e estudantes que presencia-
ram os acontecimentos nos anos 1950 e 1960. A universidade, nos
anos 1960 e 1970, era um espaço de circulação de ideias, de cultura
alternativa, de reuniões estudantis, de sociabilidade, de produção
intelectual acadêmica, de pensamento crítico sobre o país, tornan-
do-se um polo de referência, bem como um espaço de articulação e
mobilização na luta contra a ditadura. A partir dos anos 1980, com
o início da abertura política, segundo Abramo (1994, p.76-78), o ce-
nário se caracteriza pela entrada de outros personagens sociais, pelo
fortalecimento da sociedade civil e pela abertura de novos espaços de
atuação cultural e política. Paralelamente, verifica-se o deslocamen-
to da importância do movimento estudantil frente aos movimentos
sociais, pois a universidade e o movimento estudantil deixam de ser
o ponto principal de vivência social e cultural, de construção de la-
ços e visões de mundo. E, como conclui Abramo (1994, p. 79): “Nos
anos 80, parte da presença juvenil passa do movimento estudantil
para o mundo da produção e do consumo cultural: música, cinema,
vídeo, artes plásticas”. Mas o cenário sócio-político-econômico da
década de 1960 e 1970 não significava, e nem determinou, que os
jovens oitentistas não possuíssem críticas, e/ou mesmo, que eram
meros alienados e cultuadores de um gênero estrangeiro. A questão
é que os sonhos, os desejos, as raízes culturais, os símbolos, ídolos e

215
Paulo Gustavo da Encarnação

as referências não eram mais os mesmos que os da geração de 1968.


Se a geração de 1960 sonhava com o socialismo, jovens roqueiros
indagavam a não constatação do regime sonhado anteriormente.
É difícil, primeiramente, tentar retratar via canção um painel, um
quadro de uma geração, visto que pode ressoar como homogeneidade,
reducionismo e singularismo. Entretanto, a canção “Nasci em 62”, da
banda Ira! pode contribuir para que se tenha um retrato de como era e
como se sentia uma parte dos jovens – e não apenas de roqueiros – da
década de 1980 a respeito das diferenças e divergências geracionais.

Nasci em 6212

Eu não vi Kennedy morrer


Eu não conheci Martin Luther King
Eu não tenho muito para dizer... ?
Nasci em 62, nasci em 62
Eu não conheci os políticos
Mas conheci a mentira
Li tudo nos livros
Aprendi na escola
Eu não vi Kennedy morrer
Eu não conheci Martin Luther King
Eu não tenho muito para dizer... ?
Nasci em 62, nasci em 62
Eu posso morrer hoje
Meu dinheiro nada vale
Eu não quero segurança
Eu não vi Kennedy morrer
Eu não conheci Martin Luther King
Eu não tenho muito para dizer... ?
Nasci em 62, nasci em 62

SCANDURRA, Edgard. Nasci em 62. Intérprete: Ira!. In: IRA!. Clandestino. São Paulo: WEA, p1990.
12

1 disco sonoro. Lado B, faixa 5.

216
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

“Nasci em 62” é composta por poucas notas e marcada pela


simplicidade harmônica. Sustentada por guitarras, baixo e bateria,
a canção alterna pouco, inclusive na letra, que contém três estro-
fes. O refrão, cantado logo de início, é mantido pela batida rápida
e pelo 4/4 característico do rock13. Contrabaixo e bateria conduzem
e se destacam nos versos que ficam em duas notas nos três primei-
ros versos, repetindo a tonalidade da música que acompanha a re-
petição do canto no verso “Nasci em 62”. Os versos são diretos e
só apresentam uma rima: “morrer” e “dizer”; e são sugestivos para
que se compreenda o contexto histórico em que estavam inseridos
e, consequentemente, como se viam os autores. Os versos “Eu não vi
Kennedy morrer/ Eu não conheci Martin Luther King” explicitam
e deixam claro, como se fossem um cartão de visita, que os jovens
nascidos na década de 1960 não participaram dos eventos mencio-
nados, nem tinham a mesma formação política e cultural de parte
de militantes sessentistas, ou seja, eram de outra geração e traziam
outros habitus. Eles não vivenciaram intensamente as lutas políticas,
o contexto romântico revolucionário, a busca e o resgate da cultura
nacional. A canção, portanto, era um recado, uma afirmação, um re-
gistro de identidade. Possivelmente, muitos jovens nascidos nos anos
1960 eram comparados e cobrados para que tivessem ou exercessem
a mesma atitude e conduta sócio-político-cultural de uma parcela de
jovens que viveram as transformações de 1968, por exemplo.
Para se ter uma ideia do que se ressalta, basta verificar a matéria
“O triunfo da nova caretice”, de Joaquim Ferreira dos Santos, publicada
no Jornal do Brasil, em 10 de maio de 1985. Nela, apresenta um qua-
dro comparativo de cidades, atitudes, condutas, posturas, carreiras,
Batida: o ritmo é o padrão de batida presente na maioria das formas de comunicação; são as pulsações
13

e suas variações de tempo. Frequentemente, os ritmos são recorrentes ou repetitivos – como o bati-
mento cardíaco – e seguem um padrão constante. Na música, os padrões rítmicos geralmente determi-
nam a carga emocional das canções, motivo pelo qual a música lenta, por exemplo, é classificada como
mais sentimental. Ver mais em SHUKER, 1999.

217
Paulo Gustavo da Encarnação

opiniões, filmes, símbolos e sentimentos segundo a preferência dos


jovens de 1968/1970 e os de 1985. Traça a dicotomia entre gerações
de maneira até exagerada – como a cocaína, droga que se proliferaria
e teria alto índice de consumo sobretudo a partir da década de 1980:

1968/1970 1985
Mauá São Paulo
Suicídio Musculação
Hippies Trabalhar duro
Carreira de cocaína Carreira profissional
Andrajos Butique
Contra tudo A favor
Angústia Maior pique
Garganta Profunda Exterminador do Futuro
Viver em comunidade Morar sozinho
Grupo de teatro Carreira solo
Muito doido Careta
Droga Energia
A pomba da paz Cartão de crédito

Comparações como as do quadro acima podem ter sido frequen-


tes entre os que nasceram em 1962. Mas será que os jovens roqueiros
oitentistas não tinham nada a dizer? A canção “Nasci em 62” fornece
uma resposta que se liga, justamente, à pergunta “Eu não tenho nada a
dizer...?”, que – embora na interpretação de Nasi soasse com tom afir-
mativo – sugere que os nascidos em 62 tinham, sim, algo a dizer. Mes-
mo que não tenham visto e participado dos acontecimentos da década
de 1960, nem conhecido os mencionados políticos, eles tinham conhe-
cimento a respeito, pois aprenderam na escola, nos livros, e tinham algo

218
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

a criticar, a dizer. Aliás, a segunda estrofe deixa isso bastante explícito,


pois os versos passam a não mais serem cantados, mas pronunciados,
falados, e a música muda do andamento inicial e se sustenta pelas tôni-
cas do contrabaixo. A canção pode ser interpretada como uma síntese
de como se sentiam parte dos jovens dos anos 80, ou seja, jovens que
cresceram num regime ditatorial e embora não tivessem visto e parti-
cipado das discussões e movimentos políticos que marcaram os anos
1960, queriam ser ouvidos tanto quanto a geração anterior.

Considerações finais
Por meio deste texto buscou-se tratar e refletir historicamente
sobre uma breve história social de algumas bandas e cantores do rock
nacional dos anos 80, sobretudo, dos que ganharam maior destaque
no cenário midiático. A partir de perguntas chaves como sobre sua
procedência, preparação e legado, refletiu-se e construiu-se um qua-
dro social que apresenta características e informações sobre a idade
média dos roqueiros, que girava em torno dos 23 e 24 anos de idade;
e sobre a predominância de músicos do sexo masculino no universo
roqueiro; a disparidade entre roqueiros brancos em relação a afro-
descendentes, embora o rock também tivesse raízes da cultura negra,
como foi ressaltado.
Do ponto de vista social, os integrantes das bandas e cantores
roqueiros dos anos 80 se dividiam em dois segmentos sociais: um, ma-
joritário, composto por filhos de famílias de classe média alta e urbana,
ligadas, geralmente, a setores administrativos oficiais ou da iniciativa
privada; e outro, menor, integrado por filhos de núcleos familiares de
classe média baixa e urbana, ligado a setores de prestação de serviços
e cargos subalternos no funcionalismo público. Mas, vale destacar que
nem todos os roqueiros nasceram em berços esplêndidos, como al-
guns músicos da banda Ira!, por exemplo.

219
Paulo Gustavo da Encarnação

Por meio do conceito de capital (cultural, social e econômico)


cunhado por Pierre Bourdieu refletiu-se e relacionou-se informações
sobre viagens ao exterior, as escolas e faculdades que frequentaram e
a importância desses fatores no incremento de seus futuros e respecti-
vos capitais culturais. Como foi enfatizado, os futuros roqueiros brasi-
leiros dos anos 80 dispunham de capital cultural próprios e de capital
econômico familiar que lhes serviam de recursos para mantê-los ante-
nados com as tendências do universo do rock internacional, como via-
gens ao exterior, aquisição e consumo de discos e revistas importadas.
Fator que lhes proporcionava informação sobre o que acontecia no
cenário roqueiro mundial. O capital social das famílias dos roqueiros
muito provavelmente contribuía para que a rebeldia deles, muito antes
de alcançarem a posição de ídolos do rock brasileiro, fosse tolerada,
como no mencionado episódio da Rockonha.
Grande parte dos roqueiros nasceu nos anos 1960. Portanto,
eles cresceram em meio à repressão política e ao silêncio; ao arrefe-
cimento do engajamento político; à tecnização do ensino secundário
e superior, e à desvalorização da escola pública; à perda e descrença
da força e importância do movimento estudantil; à crise econômica,
com inflação galopante e concentração de renda; ao arrastado e incer-
to processo de redemocratização política; à padronização da cultura e
do comportamento devido ao avanço da TV.
Por meio dessas informações, buscou-se construir um quadro
que possibilitasse, dadas as aproximações e distanciamentos, a ca-
racterização de particularidades e habitus semelhantes, mapeando os
esquemas de percepção e avaliação do mundo e de ação no mundo
próprio de um conjunto de agentes sociais. Tais conceitos ajudaram
na compreensão dos supostos motivos, comportamentos, trajetórias
e práticas dos músicos retratados, auxiliando na reflexão sobre cer-
tos comportamentos em detrimento de outros. Desse modo, a história

220
“Nasci em 62”: algumas notas sobre uma breve história social
de alguns roqueiros brasileiros dos anos 80

social foi utilizada como importante mecanismo para compreensão


dos habitus e da formação dos roqueiros, permitindo um melhor en-
tendimento e análise dos produtos culturais, longe do essencialismo,
de ideografias e determinismos sociais.

Bibliografia
ABRAMO, Helena Wendel. Cenas juvenis: punks e darks no espetáculo
urbano. São Paulo: Página Aberta, 1994.

ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta: o rock e o Brasil dos anos de 1980.


São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2002.

ARAUJO, Lucinha. Cazuza: só as mães são felizes. [depoimento a Re-


gina Echeverria]. São Paulo: Globo, 1997.

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas:


Papirus, 1996.

______. Escritos sobre educação. Maria Alice Nogueira e Afrâncio Ca-


tani (orgs.). Petrópolis, R.J.: Vozes, 2007.

BRYAN, Guilherme. Quem tem um sonho não dança: cultura jovem


brasileira nos anos 80. Rio de Janeiro: Record, 2004.

DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e


mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo/Fapesp, 2000.

DOLABELA, Marcelo. ABZ do rock brasileiro. São Paulo: Estrela do


Sul, 1987.

FRANÇA, Jamari. Os Paralamas do Sucesso: vamo batê lata. São Paulo:


34, 2003.

221
Paulo Gustavo da Encarnação

FRIEDLANDER, Paul. Rock and roll: uma história social. Rio de Janei-
ro: Record, 2003.

MARCHETTI, Paulo. O diário da turma 1976-1986: a história do rock


de Brasília. São Paulo: Conrad, 2001.

MARMO, Hérica; ALZER, Luiz André. A vida até parece uma festa:
toda a história dos Titãs. Rio de Janeiro: Record, 2003.

MUGGIATI, Roberto. Rock, o grito e o mito: a música pop como forma


de comunicação e contracultura. Petrópolis, Vozes, 1981.

SHUKER, Roy. Vocabulário de música pop. São Paulo: Hedra, 1999.

Fontes documentais
FRANÇA, Jamari. Os Paralamas do Sucesso: o som que veio de Brasí-
lia para ficar além do rock. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 14/06/1983.
Caderno B, p. 8.

GONÇALVES, Marcos Augusto. Pais políticos, filhos roqueiros. Folha


de S. Paulo. São Paulo, 28/08/1985. Ilustrada, p. 35.

JORNAL DE BRASÍLIA. Punks à vista – A civilização chega à capital


do poder. Jornal de Brasília. Brasília, 04/05/1984.

SÁ, Junia Nogueira de. As engraçadinhas chiques e as que ameaçam


cuspir. Folha de S. Paulo. São Paulo, 08/06/1984. Ilustrada, p. 45.

SANTOS, Joaquim Ferreira dos. O triunfo da “nova caretice”. Jornal


do Brasil. Rio de Janeiro, 10/05/1985. Caderno B, p. 36.

SCANDURRA, Edgard. Nasci em 62. Intérprete: Ira!. In: IRA!. Clan-


destino. São Paulo: WEA, p1990. 1 disco sonoro. Lado B, faixa 5.

222
Rock, cidades e cenas musicais

Érica Ribeiro Magi *

Introdução
A cidade moderna como espaço físico e fonte material da pro-
dução cultural e artística é um problema analítico debatido nas Ci-
ências Humanas em suas diferentes áreas. Música popular e erudita,
literatura, artes plásticas, vida intelectual e teatro podem ser pensados
por meio de suas relações com os espaços da cidade. Ela configura-se
como um elemento na elaboração artística e, ao mesmo tempo, uma
representação simbólica e ideológica condensada nas obras. É mate-
rial e produto no processo de feitura das obras. As grandes cidades são
cada vez mais centros de produção e de vivência cultural “singular” e
cosmopolita, com investimentos pesados em museus, festivais de ci-
nema, festivais de música popular e erudita que atraem um expressivo
contingente de turistas e tornam evidente o quão imbricada é a relação
entre cidade e cultura.
No Brasil, o debate sobre cidades e produção cultural tem cres-
cido nos últimos vinte anos e abarca trabalhos que passam por grupos
de intelectuais (PONTES, 1998, 2016), pela história da Sociologia e
suas particularidades em São Paulo e em Buenos Aires (JACKSON e
BLANCO, 2014), pelo desenvolvimento do modernismo artístico dos
* Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo e autora do livro Rock and roll é o nosso traba-
lho: a Legião Urbana do underground ao mainstream. São Paulo: Alameda, 2013.

223
Érica Ribeiro Magi

anos 1920 nessas duas capitais sul-americanas (MICELI, 2013) e, por


fim, pela modernização econômica e ambição de modernidade cultu-
ral condensada no teatro, na arquitetura e artes plásticas em São Paulo
na década de 1950 (ARRUDA, 2001). Apesar das diferenças entre os
objetos e contextos históricos, esses trabalhos partilham um procedi-
mento comum: pensam a produção cultural e intelectual articuladas
às cidades de onde emergiram, porque delas se nutriram, foram be-
neficiadas e constrangidas por seus respectivos sistemas econômico,
político e social.
Richard Morse (1995), historiador norte-americano estudioso
da literatura latino-americana, propôs uma categorização das cidades
enquanto “arenas culturais”, o que significa investigar como o espaço
urbano é “experimentado e expresso” (MORSE, p. 205, 1995) nas obras
literárias. O Rio de Janeiro, de Machado de Assis, São Petersburgo, de
Dostoievski, Paris, de Baudelaire, e Buenos Aires, de Jorge Luis Borges,
são as capitais analisadas na chave comparativa para compreender, entre
outras questões, como a modernidade e a modernização nessas cidades
foram expressas por cada um dos escritores. O resultado é um panora-
ma sobre as particularidades no desenvolvimento de processos comple-
xos em cidades centrais e periféricas do romantismo à modernidade.
Assim, compreende-se junto aos autores citados acima, que
nenhum domínio artístico e intelectual forma-se e emerge-se da
mesma maneira em qualquer que seja a cidade. E no rock isso não
poderia ser diferente. Como em qualquer domínio, ele teve e tem de
lidar com as constrições da estrutura social de determinado local e
período histórico.
Quando se levanta a questão sobre a relação entre produção
musical e cidades, é preciso travar um extenso debate, trazendo à
baila algumas questões que estão em constante construção, per-
ceptíveis na tentativa de pensar as composições e trajetórias dos

224
Rock, cidades e cenas musicais

músicos e bandas articulados ao espaço urbano. Como é realiza-


da essa articulação? Quais questões analíticas são propostas? Will
Straw (1991, 2013, 2015) elaborou o conceito de “cena” no intui-
to de compreender o desenvolvimento e mudanças estilísticas de
gêneros musicais internacionais (rock, música eletrônica, rap) em
determinadas cidades. Para ele, sumariamente, significa dizer que
sociabilidades particulares originam linguagens artísticas também
particulares no interior de um movimento de apropriações de lin-
guagens estrangeiras e de (re)elaboração dessas num espaço espe-
cífico, dotado de condicionantes culturais, econômicos e políticos.
As dinâmicas social, política e econômica, os arranjos da indústria
cultural e a trajetória dos artistas e agentes intermediários (jorna-
listas, radialistas, produtores musicais) envolvidos imprimem uma
dicção própria à cena musical.
Mesmo que não utilize o conceito de “cena”, Sara Cohen (2015)
realiza o mapeamento da “criação musical” (“music-making”, como
diz a autora) do rap e do rock na cidade de Liverpool, na Inglater-
ra. A antropóloga acompanhou os músicos e bandas pela cidade,
fez mapas de suas rotas de caminhada, locais de shows e bairros
frequentados. Dessas etnografias pode-se entender quais setores
da cidade eram permitidos aos rappers andarem livremente e rea-
lizarem os seus shows sem a interferência de policiais. A ideia de
que a cidade como um todo não pertence a todos os seus residentes
de forma equânime está posta e pode ser verificada em qualquer
grande cidade, atravessada por estruturas raciais, de classe social
e de gênero. Outra questão trazida pela autora é a compreensão de
como o ambiente urbano é vivido pelos músicos, atravessando suas
vidas e tomando corpo nas suas obras, produzidas concomitante-
mente às influências estrangeiras no domínio artístico.

225
Érica Ribeiro Magi

Frente ao debate nacional e internacional sobre produção ar-


tística e cidades, este artigo expõe e tenta discutir argumentos de-
senvolvidos em minha tese de Doutorado1 sobre as cenas do rock
paulista e carioca nos anos de 1980, sobretudo, no que diz respeito
à importância de compreender o rock brasileiro por meio de suas
cenas dentro do contexto de consolidação do gênero na indústria
cultural brasileira. É nos anos 1980 que o gênero forma espaços de
produção e de divulgação nas gravadoras e na grande imprensa do
Rio e São Paulo com a participação fundamental de agentes interme-
diários (jornalistas, produtores musicais e radialistas) na emergência
de novas bandas e artistas nas capitais2. Pode-se dizer que as cenas
de rock (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre e Salvador)
que foram diretamente influenciadas pelos estilos do punk, pós-punk
e new wave e, de modo desigual, pela tradição da música popular
brasileira, conseguiram ascender do underground para o mainstream
trazendo produções musicais particulares e conectadas as suas cenas
de origem.

Manchester e a sua Factory (1978-1982)


O empresário, jornalista e apresentador de programas musi-
cais da televisão inglesa, Anthony Howard Wilson (1950-2007), que
atendia por Tony Wilson, parecia compreender o poder transforma-
dor que a música poderia ter em uma cidade e no modo de vida
das pessoas. Manchester, ao norte da Inglaterra, de paisagem indus-
trial e cinzenta, foi o cenário de uma importante cena de rock a par-
tir do final dos anos 1970, onde Tony Wilson atuou decisivamente
MAGI, Érica Ribeiro. “Metrópoles em Cenas: o Rock em São Paulo e no Rio de Janeiro nos anos 1980”.
1

Tese defendida no Departamento de Sociologia da FFLCH – USP, com o financiamento da FAPESP, em


dezembro de 2016. Este artigo é extraído do primeiro capítulo da tese.
Discuto a consolidação do rock brasileiro nos anos 1980 em meu livro: MAGI (2013)
2

226
Rock, cidades e cenas musicais

oferecendo condições de trabalho para os jovens, filhos da classe


trabalhadora, com ambições artísticas. O filme 24 Hour Party Peo-
ple3 retrata esse contexto de emergência de novas bandas que seriam
idolatradas para muito além do Reino Unido. Tony Wilson, inter-
pretado por Steve Coogan, é o narrador e personagem principal do
filme, que diz: “Suddenly, everything came together: the music, the
dancing, the drugs, the venue, the city. I was proved right. Manches-
ter was like Renaissance Florence. Everyone came to the Haçienda.
It was our cathedral”4.
A força da fala de Tony Wilson está na ideia do “renascimen-
to” de Manchester provocada pela movimentação de bandas e pelo
público na criação de novos espaços de sociabilidade. Manchester
era uma cidade portuária, assim como a terra dos Beatles, Liverpool,
e recebia em primeira mão os discos de rock, soul, blues e country,
vindos dos Estados Unidos. Tony Wilson, enquanto um agente cul-
tural intermediário, contribuiu para emergência dessa cena de rock
que ficaria conhecida para além do Reino Unido, com bandas como
Joy Divison, Happy Mondays, The Stone Roses, New Order e Cer-
tain Radio. Em 1978, Tony e seu amigo Alan Erasmus alugaram o
Russell Club por dois meses para a apresentação de bandas da cida-
de. O local foi (re)batizado com o nome “The Factory”5, e os shows
buscavam atrair os estudantes universitários da grande Manchester
(HOOK, 2015, p.147). Pouco tempo depois, Tony e Erasmus criam
o selo independente de gravação chamado “The Factory Records”.
3
24 Hour Party People (“A Festa nunca termina”). Direção: Michael Winterbottom. Reino Unido, 2002.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=C3imq0ZZcYA>
4
Tradução minha para o parágrafo: De repente, tudo veio ao mesmo tempo: a música, a dança, as dro-
gas, o cenário, a cidade. Eu estava certo. Manchester era como a Florença renascentista. Todo mundo
foi ao Haçienda. Ele era a nossa catedral.
5
“Factory” foi o nome também do estúdio de criação de Andy Warhol, fundado em 1962 em  Manhat-
tan,  Nova Iorque, e esteve em atividade até 1984.

227
Érica Ribeiro Magi

A então decadente Manchester começava a ser referência de


rock, dança, eletrônica e diversão. O design6 dos cartazes de divulgação
dos shows na Factory e do logotipo da Factory Records utilizaram-se
ironicamente dos símbolos de Manchester: a fábrica e a poluição:

Logotipo da “Factory Records” criado


por Peter Saville em 1978

Haveria ainda um outro empreendimento musical em Manches-


ter e de bastante impacto: The Haçienda, uma casa noturna fundada,
em 1982, por Tony, em sociedade com os integrantes do New Order. A
casa tornou-se um dos lócus de desenvolvimento mais relevantes e in-
fluentes da música eletrônica na Europa, onde estavam sendo criadas as
condições de emergência e de visibilidade para o trabalho autoral dos
rapazes vindos da classe trabalhadora da cidade e arredores. Manches-
ter, a “cidade industrial” – para usar a expressão de Raymond Williams
(2011) – que fora construída para servir como local de trabalho, com as
residências dispostas ao redor das indústrias (WILLIAMS, 2011, p.362),
e também atuou como um dos centros da Revolução Industrial, viu-se
Fonte da imagem: <http://www.oliver-wood.co.uk/fac.htm>
6

228
Rock, cidades e cenas musicais

com novas tintas em fins do século XX: como o local de uma cultura de
rock, música eletrônica, casas noturnas e de lojas de discos.
A Factory Records selecionava quais grupos seriam gravados,
tendo recusado, inclusive, a banda Smiths, do vocalista e letrista Ste-
ven Patrick Morrissey (1959-) e guitarrista Johnny Marr (1963-). Pou-
quíssimo tempo depois, entretanto, a banda atingiria os primeiros lu-
gares de execução na rádio BBC com seu o primeiro LP, lançado em
1984 pelo selo independente Rough Trade, sediado em Londres. Já o
Joy Division foi formado em 1976 por Bernard Sumner (guitarrista) e
Peter Hook (baixista) em Salford, região metropolitana de Manches-
ter, e acabou em maio de 1980 após o suicídio do vocalista Ian Curtis
(1956-1980). A banda lançou os álbuns Unknown Pleasures, em 1979,
e Closer, em 1980, ambos pela Factory Records. Os membros rema-
nescentes juntaram-se à guitarrista e tecladista Gillian Gilbert e cria-
ram a banda New Order, a qual se consagrou com uma sonoridade
que unia o pós-punk e a música eletrônica.
Straw (2013, p.15) considera ainda que Manchester, no decor-
rer dos anos 1980 e 1990, foi “uma das cidades ocidentais mais im-
portantes no campo da música popular massiva, o berço altamente
influente dos hibridismos entre o pós-punk e as formas de música
dance”. O autor canadense aponta outro dado interessante: apesar da
cidade conter uma alta concentração de estudantes universitários,
a cena musical foi criada por jovens situados fora das instituições
formais de ensino, isto é, por aqueles sujeitos “destinados” a ocu-
parem empregos de baixa qualificação num contexto de decadên-
cia da indústria e de crise da economia inglesa. O desenvolvimento
do punk rock e do pós-punk ingleses deu-se pelas mãos de filhos da
classe trabalhadora, sem acesso ao estudo superior e ao aprendizado
formal de música.

229
Érica Ribeiro Magi

O rock em São Paulo e no Rio de Janeiro: sujeitos e


espaços de sociabilidade e formação cultural
Esse rápido passeio por Manchester poderia ter sido por Nova
York, Liverpool, Londres, Berlim, Montreal, Seattle ou São Francisco,
pois ele tenta evidenciar a relação intrincada entre centros urbanos,
metrópoles ou cidades em processo de metropolização, e suas produ-
ções de rock. O gênero musical surgiu no pós-2a Guerra Mundial
nos Estados Unidos, e articulou-se rapidamente aos meios de comu-
nicação de massa e tecnológicos de gravação: o rádio, a televisão, o
compacto e o long-play (LP). É um dos símbolos potentes da moder-
nização das formas de comunicação e da difusão dos produtos cultu-
rais na sociedade capitalista, tendo as metrópoles como o seu palco
principal e um espaço a ser conquistado pelos jovens músicos.
Localizar determinada produção de rock no espaço geográfico
e social que lhe deu sentido significa estar atento ao surgimento de
lugares específicos que ajudaram a construir sociabilidades e perfor-
mances, tais como o Haçienda, em Manchester, o CBGB7, em Nova
York, e o Cavern Club8, em Liverpool, o Madame Satã, em São Paulo, e
o Circo Voador, no Rio de Janeiro; e também às relações entre músicos,
empresários, produtores e críticos e de que forma as linguagens artís-
ticas criadas tencionam-se com a cidade, com uma tradição de música
popular chancelada como “nacional” e com as influências estrangei-
ras. É estar atento às condições sociais de produção e de emergência
de determinada cena de rock, que rendem discos, sociabilidades, ima-
gens e valores específicos.
Trazer estas questões para compreender o rock produzido nas
cidades de São Paulo e Rio de Janeiro nos anos 1980 é instigante. Se, de
um lado, em sua história e nas relações com o espaço urbano há uma
CBGB era o local de apresentação das bandas punks de Nova York.
7

Cavern Club era o local onde tocavam os Beatles na cidade de Liverpool.


8

230
Rock, cidades e cenas musicais

dependência do rock inglês e americano, de outro, existe uma forte


tradição da música brasileira, que pode ser tão fundamental quanto
opressora sobre os jovens candidatos a músicos – os recém-chegados
ao campo da música popular urbana9. E é instigante exatamente por-
que essas questões não foram “resolvidas” da mesma maneira nas duas
capitais, tão próximas geograficamente, mas distantes na realidade so-
ciocultural, na relação com os gêneros da música popular brasileira e
com o rock internacional10.
O rock brasileiro desse período conquistou e consolidou espaços
de trabalho na indústria fonográfica e de crítica na grande imprensa
de São Paulo e Rio de Janeiro, o que significa que não existiam parâ-
metros estéticos e de gravação constituídos no interior das grandes
gravadoras e muito menos consensos ou diretrizes entre os produtores
musicais que se aventuraram na produção dos discos de rock. (MAGI,
2013). Desde a década de 1970, as gravadoras vinham segmentando
sua linha de produção musical (VICENTE, 2014; DIAS, 2000). Tinha-
-se o “samba”, a “MPB”, a “música internacional”, a “música cafona”, a
“música sertaneja”, mas o rock nacional ficou de fora, embora existis-
sem muitas bandas com trabalho autoral espalhadas por São Paulo e
Rio de Janeiro. O rock não era visto como potencialmente lucrativo
ou mesmo importante, sob o ponto de vista simbólico, pela maioria
dos diretores artísticos das gravadoras. Não por acaso, poucos artistas
ficaram famosos e conseguiram estabelecer uma carreira no período,
como Rita Lee e Raul Seixas.
Assim, é pertinente destacar que, a partir do fim da década de
1970, nas mencionadas capitais, diferentes cenas de rock foram sur-
gindo sem que tivessem conhecimento uma da outra. Cada local
foi ganhando uma dicção própria em consonância com a cidade de
9
Uso o termo “campo da música popular urbana” de acordo com a formulação elaborada por FERNAN-
DES (2010).
10
Para uma discussão aprofundada ver: MAGI (2017).

231
Érica Ribeiro Magi

origem, com as tensões em relação à música popular brasileira e ao


rock internacional e com as condições de produção dos discos e vei-
culação locais. Demorou-se por volta de quatro a cinco anos para que
estes cenários musicais, formado por bandas com repertórios já esta-
belecidos, começassem a entrar em contato.
No entanto, muito se questiona sobre a produção dessas bandas,
pois o enfoque analítico acerca das cenas de rock paulista e carioca
adentra o mérito da veiculação e promoção da música popular no Bra-
sil dos anos 1980 até hoje, visto que as noções de “música popular bra-
sileira” e “rock brasileiro” carregam consigo disputas simbólicas e ex-
clusões de variados estilos musicais. A hipótese é de que um produto
cultural para ser chancelado como “brasileiro” necessita, em primeiro
lugar, estar inserido no polo de produção hegemônico ou ficará para a
história conhecido como “regional”.
O desejo de ser cosmopolita, de ouvir os discos que estavam sain-
do na Inglaterra e Estados Unidos, é perceptível também entre os jovens
críticos de música da grande imprensa. Entre esses profissionais, cita-se
um de seus mais notáveis e polêmicos: Pepe Escobar (1954-), formado
em jornalismo pela Universidade de São Paulo (USP), que começou a
trabalhar na Folha de São Paulo como tradutor e, logo, tornou-se crítico
de literatura e música do Caderno Ilustrada. Em 1984, ele fez um pedi-
do à gravadora WEA sem nenhuma gentileza11:

11
Fonte: “Kid faz tic tic sem pudor”. Matéria assinada por Pepe Escobar na Folha de São Paulo, Caderno
Ilustrada, 22/07/1984, p. 57.

232
Rock, cidades e cenas musicais

Pepe Escobar não estava somente expondo os seus interesses


culturais, ele estava falando a partir de um público paulistano, pre-
ocupado e orgulhoso por ser ou tentar ser cosmopolita, ainda que
vivendo num Brasil em processo de redemocratização, crise econô-
mica, inflação e dificuldades burocráticas e financeiras no acesso a
produtos (livros, discos, filmes, instrumentos musicais) importados.
O crítico certamente adquiria as revistas de música inglesas New
Musical Express e Melody Maker, tal como as demais figuras interes-
sadas em rock de São Paulo que serão tratadas no decorrer da tese, e
por isso poderia cobrar o lançamento dos últimos álbuns no país. A
ameaça de jogar “uma bomba no Jardim Botânico”, no Rio de Janeiro,
é uma brincadeira cheia de sentido, pois os discos demoravam para
chegar às lojas brasileiras. Pepe sentia-se obrigado a “ensinar” a gra-
vadora o que ela deveria lançar e por qual selo, pois, evidentemente,
a considerava desinformada e “fora do seu tempo”. Existia no país um
“delay” (atraso) de dois a três anos em relação aos lançamentos do rock
internacional. Discos foram sendo ouvidos em São Paulo, Brasília e
Rio de Janeiro por meio de cópias em fitas cassetes dos discos trazidos
por alguém que tinha viajado às capitais da Europa e Estados Unidos.
Críticos da imprensa, amigos e até comissários de bordo faziam as
vezes de “profetas” (WEBER, 2000) do rock: traziam os sons, revistas
e pôsteres do momento, e com eles um estilo de vida diferente do que
existia ao seu redor.
O “profeta”, então, passa a ter autoridade em sua voz, uma
voz que conquista, aos poucos, legitimidade no espaço social. Pepe
Escobar, escrevendo para a Folha de São Paulo, era um dos profetas
do rock no Brasil dos anos 1980. Ele não estava sozinho no tra-
balho de acúmulo e verbalização desse conhecimento. O Caderno
Ilustrada estava modernizando suas pautas por meio do trabalho

233
Érica Ribeiro Magi

de jornalistas como o Pepe Escobar, Matinas Suzuki Jr., Fernando


Naporano e Miguel de Almeida, que acompanhavam de perto a
cena de rock de São Paulo. No caso de Naporano, a situação ganha
novas tintas: ele também era o vocalista do grupo Maria Angélica
Não Mora Mais Aqui. Adiante vê-se outros exemplos de “jornalis-
tas – músicos” na cena do rock paulista e como essa dupla jornada
no rock repercutiu simbolicamente.
Interessante assinalar que o acúmulo e a verbalização de infor-
mações e conhecimento sobre rock, na cidade de São Paulo, não era
um movimento que vinha exclusivamente de cima para baixo – do
grande Jornal para o público. Os críticos da Folha de São Paulo men-
cionados não estavam escrevendo sobre discos e bandas totalmente
estranhos para uma parcela dos leitores. O fanzine SPALT (São Paulo
Alternativo) é um exemplo da movimentação, do interesse, das trocas
e diálogos em torno do rock fora da grande imprensa. É um exemplo
da existência de uma cena de rock que abrangia público, lojas de dis-
cos, fotógrafos, bandas, críticos, espaços físicos, discos independentes
e escrita de materiais diversos.
O SPALT existiu de 1983 a 1984, e foi uma ideia de Rene Fer-
ri e Antonio Albuquerque, proprietários da loja de discos Wop Bop.
Queriam produzir um fanzine sobre a música de São Paulo, e propu-
seram à designer Fernanda Pacheco12 (1959-) a edição da publicação.
O nome – São Paulo Alternativo – já dizia a que vinha: privilegiar as
bandas e os artistas ainda sem espaço consolidado no rádio, na TV e
nas gravadoras.
Assim como Pepe Escobar exigia em matéria na Folha de São
Paulo que fossem lançados no Brasil os discos dos Smiths e do Echo
and the Bunnymen, o jovem jornalista e músico Thomas Pappon
Atualmente, a designer é conhecida como Fernanda Villa-Lobos. Ela casou-se com Dado Villa-Lobos,
12

guitarrista da Legião Urbana, em 1984.

234
Rock, cidades e cenas musicais

(1960-), escrevendo para o SPALT em Fevereiro de 1984, cobrava do


leitor informações sobre bandas, discos e produtores musicais con-
temporâneos. Tal cobrança foi escrita de modo sistemático, seguindo
o procedimento exigido dos candidatos a estudantes universitários13:

13
Fonte: Fanzine SPALT. Edição: Fernanda Pacheco. Nº 06, fevereiro de 1984. p.07.

235
Érica Ribeiro Magi

Thomas Pappon formou-se em Rádio e TV na ECA-USP, e,


como outros jornalistas-músicos, ascendeu a cargos na imprensa pau-
listana e teve as suas próprias bandas. Filho de pai alemão, tinha aces-
so aos discos de rock recém-lançados na Europa e os multiplicava em
dezenas de cópias de fitas cassetes para serem distribuídas entre os
amigos. Também podia encontrar discos importados em algumas lo-
jas do centro de São Paulo, em especial a “Wop Bop”, a “Baratos Afins”
e a “Punk Rock Discos”14.
O “Vestibular New Wave” tinha vinte questões de múltipla es-
colha e abarcava o rock anglo-americano e paulista contemporâneos.
Nada de perguntas sobre Beatles, Raul Seixas, Rita Lee, Pink Floyd,
Lou Reed, Elvis Presley, Jovem Guarda, Raul Seixas, etc. Apenas ar-
tistas e bandas jovens como os seus críticos, caracterizados de acordo
com o nome da revista: New Wave.15
No Brasil, New Wave era um termo usado para referir-se às ban-
das surgidas na esteira do punk rock, que foram influenciadas pelo es-
tilo. Em São Paulo, as bandas Gang 90 & As Absurdetes e Metrô e Ma-
gazine são consideradas pioneiras da New Wave no início dos anos 80.
Contudo, usava-se com frequência também o termo “pós-punk” para
falar de bandas tidas como mais “sérias” e politizadas, como Gang of
Four, Joy Division, The Smiths, Echo and The Bunnymen.
A despeito das particularidades do uso do termo New Wave nos
Estados Unidos, na Inglaterra e no Brasil, é fundamental entender que
as bandas identificadas com esse estilo e ao pós-punk objetivavam,
como os punks, distanciarem-se do rock progressivo – estilo que exigia
As três lojas de discos surgiram a partir da metade de meados dos anos 1970: A Wob Bop em 1974; a
14

Baratos Afins em 1978 e a Punk Rock Discos em 1979.


Nos Estados Unidos o rótulo “new wave” foi utilizado “por gravadoras, DJs e jornalistas para diferen-
15

ciar a ‘New Wave’ da música punk” (SHUKER, p. 203, 1999). De fato, musicalmente, as bandas consi-
deradas da New Wave, como B52’s e The Police, guardavam algumas diferenças em relação ao punk:
canções mais melódicas, dançantes e misturadas com o ska e o reggae.

236
Rock, cidades e cenas musicais

técnica musical aprimorada e contrato com grandes gravadoras, pois


tinha uma produção cara. Nesse sentido, o “Vestibular New Wave”,
elaborado por Thomas Pappon, na época baterista dos Voluntários
da Pátria e que em pouco tempo seria crítico da revista Bizz (Editora
Abril), coloca em evidência, no contexto musical brasileiro, um gosto
musical formado por referências musicais cosmopolitas, dando des-
taque a novas bandas brasileiras, além, é claro, de ser um guia para
formar e informar o gosto do leitor.
Pappon conecta as bandas de São Paulo e de Brasília, que naque-
le momento estavam fazendo shows pela capital paulistana, ao mundo
e aos seus contemporâneos do punk, da new wave e do pós-punk nos
EUA e na Inglaterra. Estar em São Paulo significava partilhar de uma
sociabilidade e experiências com a cidade e as suas modernas lingua-
gens artísticas, entre elas, o rock. Percebe-se, então, a importância de
atitudes como a escrita para fanzines e jornais, bem como a partici-
pação em bandas que se apresentavam em casas noturnas precárias,
num contexto político dominado por um regime militar e periférico
do ponto de vista econômico.
Um outro personagem que também desempenhou um papel
de “profeta” do rock, desta vez no Rio de Janeiro, é o Dj José Rober-
to Mahr16 (1950-). No início dos anos 1980, ele trabalhava como co-
missário de bordo da companhia Varig, e aproveitava as viagens para
comprar discos de rock e de música eletrônica. Esses discos transfor-
maram-se em dezenas de fitas cassete e foram distribuídos em bares e
lojas. Em 1984, Mahr criou um programa chamado “Club New Wave”
apresentado, de início, na rádio Estácio de Sá FM – RJ. O programa
logo seria rebatizado com o nome de “Novas Tendências”, com o qual
ganhou visibilidade. Em 1986, ele começou a ser transmitido na rádio
16
Dados biográficos extraídos de seu site oficial:<http://jrmahr.com/#top>

237
Érica Ribeiro Magi

que ocupava um lugar privilegiado na memória do público carioca de


rock: a Fluminense FM, da cidade de Niterói, que será tratada nova-
mente pelo seu papel na cena do rock carioca a partir de 01 de março
de 1982, quando ressurgiu no ar repaginada e “maldita”.
O “Novas Tendências” teve uma trajetória importante no rádio,
sendo transmitido por diferentes emissoras de São Paulo e Rio de Ja-
neiro entre 1984 e 1997. José Roberto Mahr também trabalhou como
DJ em casas noturnas do Rio, como a Papagaio, Mamão com Açúcar,
Metrópolis e Crepúsculo de Cubatão. Em entrevista ao jornalista Silvio
Essinger, ele nos conta sua experiência tocando os “sons do momento”
nessas casas e o seu acesso privilegiado aos discos naqueles anos:

Tocava o que achava que deveria tocar, o que era diferente, e


deixava fluir. A época somava uma leva muito boa de grupos
ingleses e americanos, um ecletismo muito grande. E quase
ninguém tinha aqueles discos.

[...]

— Viajando o tempo inteiro para a Europa e os Estados Unidos,


chegava a hora em que eu tirava o uniforme, botava uma mo-
chila e ia para as lojas de discos. Mais até do que nos artistas, eu
focava nos selos. E mais ainda nos alternativos e independentes
— diz ele, que, numa dessas, ficou até amigo de Geoff Travis,
todo-poderoso do selo inglês Rough Trade, que lançava, entre
outros grupos, os Smiths. – Eu pegava os discos lá na fonte.17

A profissão de comissário de bordo lhe proporcionou mais


do que o acesso aos discos “direto da fonte”, mas também a vivên-
cia de uma cultura musical e visual antes desta ser amplamente
Fonte: “José Roberto Mahr, a caixa preta da noite carioca”. Matéria assinada por Silvio Essinger. Jornal
17

O GLOBO (edição digital). 26 de Novembro de 2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cul-


tura/musica/jose-roberto-mahr-caixa-preta-da-noite-carioca-14648864#ixzz4F0wspqTI>

238
Rock, cidades e cenas musicais

conhecida e reverenciada por uma parcela da juventude de São


Paulo e Rio de Janeiro.
No ano de 2015, foram realizadas duas importantes exposições
em Niterói para os interessados na história do rock no Brasil dos anos
1980: uma sobre a história da rádio Fluminense FM, e a outra sobre o
acervo de pôsteres e cartazes de José Roberto Mahr, chamada “80/80”
– com a exposição de exatamente 80 “quadros” da década de 1980.
Não é um exagero dizer que era possível se sentir fora do país ob-
servando vagarosamente aqueles rostos e nomes sem a intermediação
da tela de um computador ou celular. O visitante estava de frente a
oitenta imagens originais de uma cultura musical anglo-americana e
contemporânea ao Brasil dos anos 1980. Três décadas mais tarde, essa
cultura ganhou uma exposição, porque ela teve o êxito de fazer senti-
do para uma parcela da juventude urbana brasileira.
Os “profetas” dessa cultura, como os citados José Roberto
Mahr, Pepe Escobar, Thomas Pappon, entre outros profissionais da
comunicação ligados à música, tiveram um papel fundamental na
construção de um gosto musical cosmopolita em meio a um con-
texto precário economicamente e de relativo atraso da indústria cul-
tural brasileira. O “profeta” é o sujeito que anuncia uma doutrina
religiosa, segundo Max Weber (2000, p. 303), é carismático e oferece
perspectivas e valores ao seu público em função de seu “dom pesso-
al”. Ele anuncia e propaga uma ideia aos outros sem a necessidade
do uso da força física e de remuneração financeira direta dos ou-
vintes. O músico, crítico, radialista, fotógrafo está produzindo uma
linguagem através da qual valores, perspectivas e símbolos culturais
vão se constituindo no cotidiano.
Havia um único cartaz de divulgação do programa “Novas Ten-
dências”, reproduzido aqui juntamente com outros dois registros pre-
cários da exposição real:

239
Érica Ribeiro Magi

Cartaz do programa “Novas Tendências” (sem data). Exposição “80/80”.


05 de Junho de 2015, Centro Cultural dos Correios, Niterói-RJ.

Ao escrever no cartaz do programa “os sons que não rolam


nas outras FMs” explicitamente está se dizendo: Você, ouvinte, irá
conhecê-los e ouvi-los apenas comigo. Contrário à lógica de progra-
mação das rádios comerciais da cidade (SILVA, 2013) a de tocar os

240
Rock, cidades e cenas musicais

mesmos artistas e suas “músicas de trabalho”18, o Novas Tendências


arriscava apresentar músicas fora de uma lista fechada e negociada
com as gravadoras. O fato de ser um programa “independente”, isto
é, sem nenhuma vinculação com a rádio transmissora, dava condi-
ções objetivas a essa empreitada. Contudo, José Roberto Mahr não
foi o pioneiro nessa prática. A rádio Fluminense FM – A Maldita,
que entrou no ar reformulada em Março de 1982, tinha como prin-
cípio executar uma lista enorme de músicas na programação, de não
repeti-las durante o dia, e de não tocar as “músicas de trabalho” das
novas bandas. (SILVA, 2013).
Mahr trazia ainda na bagagem de suas viagens pela Europa e
Estados Unidos pôsteres e cartazes de divulgação dos discos e shows.

Pôsteres das bandas: The Smiths, U2 e The Stone Roses. Exposição 80/80. 05 de Ju-
nho de 2015, Centro Cultural dos Correios, Niterói-RJ.

O seu acervo de oitenta documentos impressos expressa uma


forma de conhecimento sendo acumulada e, enfaticamente, osten-
tada. Orgulho este que viu-se com Pepe Escobar, exigindo o lan-
çamento de discos contemporâneos ingleses no país, com Thomas
18
Música de trabalho é a música escolhida pela gravadora em conjunto ou não com o artista, para a
promoção do disco nas rádios e canais de televisão.

241
Érica Ribeiro Magi

Pappon, elaborando o “Vestibular New Wave”, e com Bi Ribeiro ao


rememorar a sua ignorância em relação às últimas novidades do
rock, quando vivia no Rio no início dos anos 1980. Ser um sujeito
erudito, um conhecedor do cânone literário e musical, característi-
cas presentes na formação intelectual e artística de artistas da MPB,
como Chico Buarque e Caetano Veloso, e participar de seus círculos
de sociabilidade, em geral não se configuravam como demandas po-
líticas e simbólicas para esses jovens.

Considerações finais
As cenas de rock de São Paulo e Rio de Janeiro eram partes visíveis
dessas metrópoles e de suas dinâmicas culturais: espaços de sociabilida-
de específicos reunindo pessoas ao redor do rock19, da audição e troca
de discos, e da composição de canções. Verifica-se, nesse contexto, a
construção de todo um aparato de atividades – cartazes, pôsteres, mú-
sicas, casas noturnas, trocas e audições de discos importados, textos na
imprensa, programas de rádio, fanzines – elaboradas cotidianamente de
maneira a expressarem formas de inserção distinta no espaço urbano.
Também pela negação da música popular brasileira20 e pelo forte apelo
do rock anglo-americano sobre uma nova parcela da juventude, viu-se
uma tentativa de fazer emergir o “diferente” e o cosmopolita no campo
da música popular urbana e na grande imprensa por meio de diversas e
complementares atividades culturais.
Tentou-se, portanto, apresentar e analisar o trabalho cultural de
uma camada muito específica da classe média e alta do eixo Rio-São

Segundo Will Straw (2015, p.408): “A scene is that cultural phenomenon which arises when any
19

purposeful activity acquires a supplement of sociability and when that supplement of sociability
becomes part of the observable effervescence of the city”.
A tradição da música popular brasileira, construída em meio a debates estéticos e disputas entre os
20

diversos agentes do campo musical no período de 1930 e 1960, formou-se a partir de três “gêneros”: o
samba, a Bossa Nova e a MPB (NAPOLITANO, 2007).

242
Rock, cidades e cenas musicais

Paulo que emergiu na indústria cultural compondo rock, escrevendo


para a imprensa sobre o gênero aqui e no exterior, e produzindo discos
e programas de rádio. Uma camada de jovens profissionais e artistas que
desafiaram romper com a hegemonia dos ritmos nacionais no mainstre-
am, mas que, já no fim dos anos 1980, viram o rock apresentar baixos
números de vendas, evidenciando que o interesse por ele vinha de um
público definido: urbano, classe média e alta e das regiões sul e sudeste.

Bibliografia
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura – São
Paulo no meio século XX. Bauru: Edusc, 2001.

BLANCO, Alejandro; JACKSON, Luiz Carlos. Sociologia no Espelho –


Ensaístas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina
(1930-1970). 1a edição. São Paulo: Editora 34, 2014.

BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. 1a edi-


ção. Tradução: Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo:
Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007.

COHEN, Sara. “Cityscapes”. In: SHEPERD, John; DEVINE, Kyle. The


Routledge Reader on the Sociology of Music. New York: Routledge,
2015, pp. 231-244.

FERNANDES, Dmitri Cerboncini. A Inteligência da Música Popular:


A “autenticidade” no samba e no choro. Tese de Doutorado defendida
no Departamento de Sociologia da FFLCH-USP, 2010.

HOOK, Peter. Joy Division: Unknown Pleassures: a biografia definitiva


da cult band mais influente de todos os tempos. 1a edição. Tradução de
Martha Argel e Humberto Moura Neto. São Paulo: Seoman, 2015.

243
Érica Ribeiro Magi

MAGI, Érica Ribeiro. Rock and Roll é o nosso trabalho: a Legião Ur-
bana do underground ao mainstream. 1a edição. São Paulo: Alameda
Editorial: FAPESP, 2013.

________________. Metrópoles em Cenas: O Rock em São Paulo e no


Rio de Janeiro nos anos 1980. Tese defendida no Departamento de So-
ciologia, FFLCH, USP, 2017.

MICELI, Sergio. Vanguardas em Retrocesso. 1a edição. São Paulo:


Companhia das Letras, 2013.

MORSE, Richard. “As cidades ‘periféricas’ como arenas culturais:


Rússia, Áustria, América Latina”. In: Estudos Históricos. Volume 8, nú-
mero 16, pp. 205-225, 1995.

NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias: a questão da tradição


na música popular brasileira. 1ª edição. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2007.

PONTES, Heloisa. Destinos Mistos : Os críticos do Grupo Clima em São


Paulo 1940-1968. 1a edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

_______________. “Cidade, Cultura e Gênero”. In: Tempo Social, re-


vista de Sociologia da USP. Volume 28, número 01, pp.07-27. São Pau-
lo, Abril de 2016.

SHUKER, Roy. Vocabulário de Música Pop. Tradução de Carlos Szlak.


1ª edição. São Paulo: Hedra, 1999.

VICENTE, Eduardo. Da Vitrola ao Ipod: uma história da indústria fo-


nográfica no Brasil. São Paulo: Alameda Editorial, 2014.

DIAS, Marcia Tosta. Os Donos da Voz: indústria fonográfica brasileira


e mundialização da cultura. 1a edição. São Paulo: Boitempo Editorial/
Fapesp, 2000.

244
Rock, cidades e cenas musicais

STRAW, Will. “Cenas Culturais e as Consequências Imprevistas das


Políticas Públicas”. In: SÁ, Simone Pereira de Sá; JANOTTI JR., Jeder
(orgs). Cenas Musicais. 1a edição. São Paulo: Editora Anadarco, 2013.

_________________. “Some Things a Scene Might Be”. Cul-


tural Studies, volume 29, número 03, p. 476-485, 2015. DOI:
10.1080/09502386.2014.937947.

SILVA, Heitor da Luz. Rock & Rádio FM: Fluminense Maldita, Cidade
Rock e o circuito musical. 1a edição. Itajaí: Ed. Univalli; Niterói: Ed.
UFF, 2013.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia com-


preensiva. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. 1o vo-
lume. 4a edição. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2000.

WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: na História e na Lite-


ratura. Tradução: Paulo Henrique Britto. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.

245
Em apoio à sustentabilidade, à preservação
ambiental, a Pronto Editora Gráfica/ Kelps
declara que este livro foi impresso com papel
produzido de florestas cultivadas em áreas
degradadas e que é inteiramente reciclável.

Este livro foi impresso na oficina da Pronto Editora


Gráfica/ Kelps, no papel: Off-set 75g/m2, composto na fonte
Minion Pro, corpos 8, 11 e 12; e Roboto, corpos 16, 20 e 26.
Setembro, 2018

A revisão final desta obra é de responsabilidade dos autores

View publication stats

Você também pode gostar