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I- Introdução
Ao longo da sua vida, Theodor Adorno cultivou uma forte ligação às artes, em particular à
música; fez mesmo estudos musicais avançados —nomeadamente junto de Alban Berg, um dos
elementos da Segunda Escola de Viena— que lhe garantiram uma ligação privilegiada com as
vanguardas musicais do século XX. Atento às principais transformações ao nível da literatura —a
Becket, Proust, Joyce, Kafka, entre outros—, Adorno não se mostra tão sensível ao trabalho das
vanguardas ao nível das artes plásticas: encontramos, assim, o paradoxo de Adorno defender
teoricamente uma modernidade radical, mas fazê-lo —no final da década de sessenta— a partir
de obras que, embora modernas, estão já reconhecidas e consensualmente aceites como
clássicos dessa modernidade: Picasso, por exemplo. Mas isto é, talvez, consequência de um
paradoxo mais profundo: o da existência de um limite intrínseco para a modernidade, um limite
constituído pela própria historicidade das obras; a historicidade, que em determinado momento
lhes garante a qualidade de “novo”, é a mesma que as condena à condição de “clássicos”.
Como mostra Marc Jimenez 1 , a estética de Adorno está marcada por uma defesa
intransigente das vanguardas estéticas, defesa que remete para o contexto político dos anos
trinta, período em que a defesa das vanguardas era correlativa à luta contra os totalitarismos
políticos. Mas este comprometimento político não é sinónimo de uma subordinação da
radicalidade da criação artística a finalidades que lhe sejam extrínsecas, nem a cedência à
pretensão de resultados políticos imediatos que conduzisse a uma cedência na radicalidade da
investigação artística. Apesar de conceber a arte como uma espécie de “promessa de
felicidade”, Adorno não pensa que a criação artística deva ceder à facilidade de um qualquer
ideal de comunicação imediata e universal; as obras de arte não devem subordinar-se à
categoria de comunicação.
A defesa de uma modernidade radical passa, antes do mais, por uma exigência de
aprofundamento das linguagens específicas de cada forma de arte, uma exigência de
investigação radical e sem compromissos de qualquer espécie com a comunicabilidade de uma
mensagem ou a satisfação das expectativas do público. Embora a intervenção política das obras
de arte permaneça como horizonte de fundamentação da modernidade artística, para Adorno, a
obra deve definir-se apenas por respeito à sua própria radicalidade, mesmo que tal signifique
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Hoje, num período em que a globalização económica e cultural parece por vezes funcionar
como um rolo compressor de todas as especificidades ou dissidências culturais, as teses de
Adorno ganham particular pertinência: trata-se de oferecer um modelo que talvez permita
compatibilizar a emergência das sociedades contemporâneas com a preservação, senão mesmo
a radicalização, das linguagens e das representações de mundo particulares. Isto é, que permita
conciliar as sociedades da informação, as sociedades tendencialmente globais —mas que
tendem a reproduzir uma estreita representação de mundo e a apresentá-la como universal, em
detrimento de representações de mundo alternativas e diferenciadas—, com a existência de
pólos de diferenciação das culturas ou dos indivíduos. Uma diferenciação que se faz a partir de
uma cultura da exigência, do rigor e da radicalidade de investigação.
Por outro lado, e contrariamente aos modelos estéticos definidos por Adorno, a arte já
não se submete hoje à exigência de modernidade radical, pelo menos nos termos em que se
colocava até à década de 60, com a ininterrupta sucessão de vanguardas artísticas, naquilo que
constituiu a tradição do novo (segundo a caracterização de Harold Rosenberg, e que em Adorno
1
Marc Jimenez, Qu’est-ce que l’Esthétique?, Gallimard, Paris, 1997, p. 386.
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a) Arte e História
« Tornou-se manifesto que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser evidente,
tanto em si mesma como na sua relação ao todo, e até mesmo o seu direito à existência. A
perda do que se poderia fazer de modo não reflectido ou sem problemas não é
compensada pela infinidade manifesta do que se tornou possível e que se propõe à
reflexão. O alargamento de possibilidades revela-se em muitas dimensões como
estreitamento. (...) Não se sabe se a arte pode ainda ser possível; se ela, após a sua
completa emancipação, não eliminou e perdeu os seus pressupostos.», (p. 11) 2
2
Todas as citações remetem para a obra Teoria Estética, de T. Adorno, obra citada.
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assim como a sua própria existência enquanto actividade cultural autónoma e relevante que são
postos em causa 3 .
Mas mais do que isso, e alargando a reflexão de Adorno, podemos interrogar-nos acerca
da identidade da própria arte: diante de um prolongado movimento de expansão das fronteiras
de cada disciplina particular que acompanhou o desenvolvimento das vanguardas modernistas,
assim como tudo aquilo que de mais artisticamente relevante se lhe seguiu, torna-se por vezes
difícil referir cada prática artística a uma dada esfera de pertença. E no entanto, apesar do
processo de desconstrução da noção de arte levado a cabo pelos próprios artistas ao longo do
último século, a prática artística reclama ainda uma vinculação ao espaço simbólico da “grande
arte”, isto é, ao espaço fundador definido pela tradição. Tal significa que a relação entre a arte e
a sua tradição deve hoje ser pensada em moldes distintos daquilo que acontecia quer ao nível
da arte clássica, quer ao nível dos clássicos da modernidade: não é possível exigir um
movimento de filiação por simples continuidade, nem por simples e imediata relação de
divergência. Em suma, o que está em causa é a identidade daquilo a que, não obstante todas as
transformações, nós persistimos em designar como “Arte”.
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Lembremos os ataques de que, ao longo da última década, a arte contemporânea tem sido vítima. E
estes são tanto mais relevantes quando partem, por vezes, não de pensadores conservadores (que
poderiam ser remetidos à categoria de reaccionários), mas de autores que nos habituaram a uma postura
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sociedade mais humana, mas, ao contrário, a uma sociedade que nega os próprios valores de
humanidade; Auschwitz —como símbolo mais expressivo da barbárie totalitária— surge aqui
como um nome possível para esta desumanização do humano. A arte em particular não parece
ter sido capaz de se opor de um modo eficaz à deriva totalitária do próprio projecto da
modernidade: a incapacidade da arte da primeira metade do século XX para impedir a ascensão
dos regimes totalitários implica um repensar do lugar e a da função da arte no interior das
sociedades modernas.
O pensamento de Adorno responde, assim, por uma tentativa de repensar a modernidade
face às suas próprias aporias; repensar a modernidade não segundo uma perspectiva
estritamente pessimista, mas fazendo apelo àquilo que na modernidade pode constituir um
modelo de superação dessas aporias: a arte, precisamente. A arte é um domínio que, ao longo
do último século, se mostrou capaz de submeter a sua própria actividade à radicalidade de um
questionamento e reinvenção permanentes. A arte de vanguarda, que conquistou por si mesma
o direito à sua autonomia, constitui hoje (ou deve constituir) um campo privilegiado de
experimentação crítica.
Repare-se que, ao apelar para a noção de arte de vanguarda como modelo de saída para
as aporias da modernidade, Adorno não parece questionar o carácter problemático da noção de
vanguarda face à própria modernidade: o conceito de vanguarda é um conceito cuja matriz
militarista não oculta um implícito desejo de violência; a mesma violência irracional que,
esquecida dos limites da própria racionalidade crítica, transformou o projecto moderno de
emancipação num projecto de poder e de domínio; a mesma violência que conduziu aos campos
da morte, sejam eles os de Hitler ou de Estaline. Esta crítica não obsta a que reconheçamos no
pensamento de Adorno um particularmente sugestivo modelo de articulação da arte e da história,
salvaguardando ao mesmo tempo a autonomia da arte e a sua eficácia social e política.
Para Adorno, é a própria ideia de autonomia da arte que deve ser objecto de
questionamento; só através deste questionamento se poderá aceder a uma noção de autonomia
que não a encerre em si mesma: isto porque pensar a arte no interior da exigência de autonomia
corresponde, de algum modo, à recondução da arte a um modelo de relação com o mundo e
consigo mesma que é de cariz teológico; era este mesmo modelo que estava subjacente à sua
anterior subordinação. A pretensão de fundar a prática artística exclusivamente na noção de
autonomia corresponde a transferir para a esfera da arte —como se esta fosse um todo fechado
sobre si mesmo— exigências análogas às formuladas no modelo anterior:
crítica inovadora, como é o caso, por exemplo, de Jean Baudrillard; a este propósito veja-se BARRER,
Patrick (ed.), (Tout) l’Art Contemporain est-il Nul?, Éditions Fabre, Lausanne, 2000.
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« Pela sua ruptura inevitável com a teologia, com a pretensão absoluta à verdade da
redenção, secularização sem a qual ela jamais se teria desenvolvido, a arte condena-se a
outorgar ao ente e ao existente uma promessa, que, privada da esperança num Outro,
reforça o sortilégio de que se quis libertar a autonomia da arte. De uma tal promessa é já
suspeito o próprio princípio de autonomia: ao pretender pôr uma totalidade exterior, uma
esfera, fechada em si mesma, esta imagem é transferida para o mundo em que a arte se
encontra e a produz.», (p. 12)
A ideia de autonomia da arte assenta, de algum modo, na noção de uma
autodeterminação da arte através da sua recondução a uma essência original; isto é, assenta na
ideia de que é possível identificar uma origem absoluta, uma autenticidade originária, a partir da
qual a essência da arte se pudesse deduzir. Isto significaria prender a arte a uma concepção de
fundamento que seria ainda de cariz teológico, pois a noção de origem é o fundamento de todas
as representações teológicas de mundo.
Ora, como mostra Adorno, a essência da arte não é redutível às determinações de uma
origem; a natureza da arte é, pelo contrário, histórica e processual:
«A arte tem o seu conceito na constelação de momentos que se transformam
historicamente; fecha-se assim à definição. A sua essência não é dedutível da sua origem,
como se o primeiro fosse um fundamento, sobre o qual todos os seguintes se erigem e
desmoronam logo que são abalados. A crença segundo a qual as primeiras obras de arte
são as mais elevadas e as mais puras é romantismo tardio;», (p. 12)
é entendida como um processo. Cada obra de arte é, em si mesma, um processo, não podendo
ser reduzida às determinações recebidas por uma doação originária, à qual a recepção devesse
adequar-se.
Está aqui implicitamente posta em causa a noção de autenticidade sustentada por Walter
Benjamin; para Adorno, e ao contrário do defendido por Benjamim, o sentido ou a realidade da
obra não podem ser aferidos por referência a qualquer existência ou sentido originários; a obra e
a criação artística são, por natureza, abertas ao futuro: expostas ao futuro, pretender cristalizar a
sua identidade num qualquer momento privilegiado —a origem— é negar quer a sua
historicidade, quer a sua riqueza semântica e ontológica.
É também a noção de recepção como reconstituição das intenções do autor que aqui está
questionada: pretender reconduzir o sentido ou a realidade da obra à intenção do autor é
cristalizar a sua realidade num determinado momento —origem—, restringindo-lhe a sua
historicidade e, por isso, a sua realidade.
Ao sustentar uma noção de obra de arte como resultado de um permanente devir
histórico, como uma realidade em transformação e aberta ao futuro, Adorno abre caminho para
uma defesa da noção de vanguarda artística. Só é possível pensar a arte enquanto vanguarda
se não se fizer depender a sua natureza de nenhum momento originário, mas, ao contrário, se
se entender a obra de arte como uma realidade de carácter processual e aberta no tempo: a arte
é em si mesma um processo; um processo aberto que não é possível delimitar no tempo. Isto
permitirá também que a noção de vanguarda artística não caia na pretensão de um qualquer
corte radical e absoluto com o passado ou a tradição. Pretender delimitar no tempo um momento
fundador privilegiado, e situar no passado esse momento fundador, significa restringir a
identidade e o alcance artístico ou semântico das próprias obras. Inversamente, pensar a obra
como processual e aberta implica admitir ou que nenhum fundamento é possível —porque o
fundamento se desconstrói no próprio movimento que processualmente o instala—, ou diferir
esse fundamento para um depois que, por definição, nunca se irá realizar totalmente. Se a obra,
como o futuro, está em aberto, não é sequer possível instanciar sobre ela um movimento
teleológico tendente a garantir-lhe a sua identidade, o seu sentido ou a sua eficácia.
Esta questão colocada por Adorno é hoje tanto mais pertinente quanto, ao longo das
últimas duas décadas, surgiu um conjunto de autores de matriz hegeliana —como o alemão
Hans Belting, ou o norte-americano Arthur C. Danto— que, precisamente, procuraram pensar a
arte contemporânea à luz da noção de fim da arte. Ao afirmar o carácter aberto da criação
artística, Adorno impede a redução da arte a um qualquer paradigma, findo o qual seria legítimo
afirmar a decadência ou a morte da arte. Impede também que uma qualquer vanguarda artística
pretenda esgotar nas suas realizações e valores implícitos a natureza da obra: qualquer obra
particular está sujeita aos limites específicos da sua historicidade.
inovação e situar-se numa outra dimensão. O Novo abstracto pode estagnar, transformar-
se em algo de “sempre semelhante”.», (p. 35)
O objectivo de Adorno é aqui claro: retirar a obra de quaisquer mecanismos institucionais
de controlo e garantir-lhe o carácter de permanente questionamento crítico do mundo e do tempo
em que se insere. A eficácia crítica da obra de arte não pode, segundo Adorno, perder-se pela
sua institucionalização; tratar-se-ia de retirar à obra os instrumentos internos de resistência à
dominação, sob a aparência de os conservar
Esta defesa do novo não comporta, no entanto, uma recusa simplista da tradição; ao
contrário, o novo é entendido como condição de realização dessa mesma tradição:
« O Novo não constitui nenhuma categoria subjectiva, mas brota forçosamente da
própria coisa, que de outro modo não pode tomar consciência de si, livrar-se da
heteronomia. O Novo obedece à pressão do Antigo que precisa do Novo para se realizar.
(...) O Antigo tem unicamente o seu refúgio na ponta do Novo; nas rupturas, não na
continuidade.», (p. 34)
Isto é, o novo não é entendido como aquilo que sobrevém à ruína ou ao corte absoluto
com a tradição, como aquilo que só é alcançável por uma recusa cega do anterior. Ao contrário,
o novo afirma-se pela ruptura que instala face à tradição, mas, por isso mesmo, não é pensável
nem pode existir sem ela. A realização da tradição —ou do antigo— não é feita pela manutenção
conservacionista dos valores do passado, mas, ao contrário, pela produção de rupturas que
vivifiquem essa tradição; isto é, que se lhe acrescentem, questionando-a e reformulando-a.
b) Arte e realidade
A relação entre arte e realidade surge, em Adorno, com alguma dose de produtiva
contradição interna. Apesar de recusar uma relação de identidade mimética entre a obra de arte
e a realidade, Adorno pede à obra que se construa como um correlato autêntico da experiência
moderna de mundo: esta experiência é, para si, a experiência da catástrofe. Partindo de uma
caracterização desencantada da modernidade histórica —aquela que teria produzido quer
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Auschwitz quer a dominação totalitarista que é, segundo Adorno, característica das sociedades
capitalistas—, Adorno pensa a arte segundo uma simultânea exigência de autonomia e de
implicação com essa realidade.
Implicação porque nada autoriza a arte a esquecer o carácter problemático da própria
realidade (« Para subsistir no meio dos aspectos mais extremos e sombrios da realidade,
as obras de arte, que não querem vender-se como consolação, deviam tornar-se
semelhantes a eles. Hoje em dia, a arte radical significa arte sombria, negra como a sua
cor fundamental.», p. 53); mas autonomia porque a natureza da arte exige que esta relação não
assuma nem um carácter imediatamente mimético ou ilustrativo, nem uma subordinação a
princípios que não sejam os seus. Segundo Adorno, a relação da obra de arte com a realidade
empírica —a realidade material— é, ou deve ser, uma relação de autonomia:
« As obras de arte destacam-se do mundo empírico e suscitam um outro com uma
essência própria, oposto ao primeiro como se ele fosse igualmente uma realidade.», (p.
12)
A arte constitui-se a si mesma como uma realidade autónoma, uma realidade que não
está dependente de uma relação de reprodução mimética face ao real. Vimos antes como a
noção de autonomia é objecto de questionamento por parte de Adorno; esta autonomia não
deve, pois, ser entendida como uma absoluta não relação face ao real —em que a obra de arte
constituiria uma realidade absolutamente sem relação com a realidade empírica—; por outro
lado, tal relação também não deve ser entendida como uma relação imediata —uma relação que
suscitasse da parte da arte uma pretensa acção directa sobre o real, na tentativa de o
transformar—.
Isto é, a arte não é uma representação imediata do real, mas também não lhe é exigível
que inverta a relação, transformando-se, de um modo imediato, em modelo crítico do próprio
real. É por isso que a possibilidade de acção política da arte não pode ser pensada de um modo
simplista, subordinando o seu sentido ou a sua eficácia prática ao “conteúdo” político ou social
imediato de uma obra ou de um movimento artístico.
A relação entre arte e mundo é complexa, não sendo redutível a pretensões unívocas de
adequação ou transformação.
« Só quando se sente ao mesmo tempo o Outro da arte como um dos primeiros
estratos da experiência é que esta pode sublimar-se e resolver a implicação com a
matéria, sem que o ser-para-si da arte se transforme em alguma coisa de indiferente. A
arte é para si e não o é; subtrai-se-lhe a sua autonomia, mas não o que lhe é
heterogéneo.», (p. 17)
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Esta relação de autonomia face à realidade não significa a defesa de uma completa
subordinação das arte à busca de uma identidade absoluta consigo mesma —tal como, por
exemplo, é possível reconhecer na teoria do Modernismo e da arte Moderna em geral proposta
por Clement Greenberg—. Isso corresponderia a um fechamento da arte sobre si mesma,
definindo a sua identidade de um modo absolutamente homorreferencial. Adorno recusa o ideal
da “arte pela arte”; esta noção suporia reduzir a arte a uma busca da sua própria natureza,
cortando em absoluto os laços que a prendem à realidade exterior, à não-arte. Ora, ao contrário,
a autonomia da arte define-se como uma relação de dependência face ao seu Outro; isto é, a
autonomia da arte só é compreensível face à existência da não-arte, da realidade do mundo
material.
De algum modo, é como se a não-arte estivesse inscrita na natureza da arte; como se,
para se ultrapassar a si mesma e romper com o seu isolamento interior, a arte tivesse de ver a
realidade material inscrita na sua natureza, pelo menos enquanto relação.
Isto vem pôr a claro a natureza paradoxal da arte: Adorno mostra que a arte constitui uma
realidade autónoma face à realidade comum, mas que, ao mesmo tempo, essa autonomia se
define a partir de uma relação de inultrapassável dependência: a arte é sempre parte integrante
da realidade que representa.
Apesar desta relação de implicação, a autonomia da arte é garantida por uma lógica
interna perante a qual responde: a arte não se afirma por uma relação de dependência mimética
face ao real, e, por isso mesmo, a experiência do real que é produzida pela arte não traduz uma
apreensão objectiva do real:
« O objecto na arte e o objecto na realidade empírica são algo de inteiramente
diferente. O objecto da arte é a obra por ela produzida, que contém em si os elementos da
realidade empírica, da mesma maneira que os transpõe, decompõe e reconstrói segundo a
sua própria lei.», (p. 289)
Sublinhemos aqui a formulação de Adorno: a obra de arte não é nem pode pretender ser
uma cópia ou uma duplicação mimética do real; o que quer que diga, a obra de arte di-lo
«segundo a sua própria lei.». Isto é, a realidade do objecto na arte não é o real imediatamente
apreendido, ao qual a arte devesse responder pela produção de representações de carácter
mimético; para Adorno, a relação de representação ao nível da arte não é —ou não deverá ser—
de ordem mimética. A arte não copia o real, desconstrói-o e reconstrói-o, segundo os seus
próprios termos.
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A arte é entendida segundo uma relação negativa com o real; não o espelha de um modo
imediato, mas também não produz uma realidade paralela capaz de se constituir como lugar de
fuga ao real: interage com ele de um modo não imediato.
E é aqui que reside, para Adorno, a mais-valia da obra de arte: a arte tem a capacidade de
fornecer, de um modo transfigurado, uma verdade e uma realidade que ultrapassa a percepção
imediata da realidade; uma verdade que é irredutível à razão instrumental:
«A arte torna-se conhecimento social ao apreender a essência; não fala dela, não a
copia ou imita de qualquer modo. Fá-la aparecer contra a aparição, mediante a sua própria
complexão.», (p. 289)
Ao transpor a ordem do real para o plano do seu próprio encadeamento discursivo, a arte
garante um acréscimo da consciência do real ou da sociedade. Mas este acréscimo é dado pelo
carácter reconfigurador da sua representação do real: ao traduzir as questões do real objectivo
para a sua linguagem, a arte não as deturpa, realiza-as, confere-lhes uma outra dimensão;
subtrai a realidade aos limites da estrita necessidade lógica e abre-a ao possível:
«Quanto mais profundamente se decifram as obras de arte, tanto menos o seu
antagonismo permanece absoluto em relação à práxis; também elas são um outro
enquanto seu elemento primeiro, seu fundamento, a saber, esse antagonismo, e expõem a
sua mediação. São menos e mais do que a práxis.», (p. 270)
Segundo Adorno, a radicalidade das linguagens artísticas constitui uma mais-valia para a
reconstrução da realidade em termos práticos: enquanto reconstrução representacional, a obra
ultrapassa os limites da própria realidade, potenciando, assim, uma efectiva capacidade de
intervenção revolucionária da obra sobre a sociedade.
É por isto que a arte adquire em Adorno um papel sócio-político privilegiado. No entanto,
este papel não é entendido por Adorno na tradicional acepção da arte politicamente
comprometida. À arte comprometida pede-se, normalmente, que se constitua como um
instrumento de transformação prática e efectiva da realidade sócio-política: a arte politicamente
comprometida deverá servir de instrumento para a realização de determinados fins políticos. No
entanto, uma exigência de comprometimento político definida a partir destes termos implicaria a
existência de uma relação imediata entre a arte e o real; isto é, implicaria a existência de uma
relação directa entre um nível e o outro; só uma relação directa permitiria que uma acção num
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dos níveis se repercutisse directamente no outro, mas tal implicaria que a arte e o real
estivessem no mesmo plano de realidade. Só o carácter imediato da relação entre arte e real
permitiria exigir à arte uma efectiva capacidade de transformação política. Mas, como vimos, a
arte não se relaciona com o real de um modo imediato: arte experiencia o real através da
mediação da sua própria lógica interna: está, por isso, num plano distinto do plano do real. Em
consequência, e embora partilhando uma noção de arte politicamente comprometida, Adorno
tem a consciência da natureza mais complexo da relação entre arte e política.
« Com a organização progressiva de todos os domínios culturais, cresce o apetite
de assinalar à arte, teórica e até mesmo praticamente, o seu lugar na sociedade. (...) A
época da arte estaria resolvida, seria tempo de realizar o seu conteúdo de verdade, que é
identificado sem mais ao seu conteúdo social: o veredicto é totalitário.», (p. 280-281)
É constante a preocupação de Adorno em reconhecer às artes uma autonomia criativa e
cultural que lhes permita responder pela sua natureza particular e pelos seus próprios fins e
objectivos. A impossibilidade de uma acção política imediata por parte da arte não a condena, no
entanto, a uma inutilidade sócio-política. Contra o comprometimento sócio-político imediato das
artes —o engagement—, Adorno propõe a exigência de radicalização das linguagens
particulares de cada forma de arte.
«As perturbações vanguardistas das reuniões da vanguarda estética são tão
ilusórias como a crença de que elas são revolucionárias e que a revolução é uma forma
do belo: a amusia não se situa por cima, mas abaixo da cultura, e o engagement muitas
vezes não é senão falta de talento ou concentração, um abrandamento da força.», (p. 281)
O empenhamento político imediato dos artistas —ou a confusão entre as vanguardas
estéticas e as vanguardas políticas— não produz nem um acréscimo da eficácia política das
obras de arte, nem, sobretudo, um acréscimo da qualidade —em termos estritamente adornianos
deveríamos dizer da verdade ou da autenticidade— das obras.
Segundo Adorno, ao pretender encontrar uma finalidade imediata para a sua acção —seja
esta de transformação política, de denúncia social, moral ou outra—, a arte perde a força
específica que lhe era garantida pela radicalidade do aprofundamento das suas linguagens, uma
radicalidade que não se coaduna com a subordinação da investigação artística a fins que lhe são
exteriores.
Pretender subordinar a inventividade artística a finalidades de ordem política, social ou
cultural que lhe sejam extrínsecas acarreta um empobrecimento interior das práticas artísticas:
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« Nenhuma obra de arte, porém, pode socialmente ser verdadeira se não for também
verdadeira em si mesma; inversamente, a consciência socialmente falsa não pode tornar-
se algo de esteticamente autêntico.», (p. 277)
Segundo Adorno, a operatividade social das obras de arte depende da intransigência do
seu compromisso interior, da radicalidade da sua linguagem formal. Não é o facto do seu
conteúdo temático poder ser eventualmente válido do ponto de vista social —ou outro— que lhes
garante uma efectiva operatividade social. Do mesmo modo, uma obra de arte socialmente não
autêntica também não poderá aspirar a uma autenticidade estética; isto é, o estético não poderá
definir-se contra o social.
Mas o comprometimento social e político de um artista só se poderá tornar socialmente
produtivo se, na sua actividade, o artista não ceder a um ideal de comunicação imediata, em
detrimento da radicalidade da sua investigação. Isto porque, para Adorno, o conteúdo de
verdade de uma obra não pode ser reduzido ao seu conteúdo temático imediatamente expresso.
A verdade da obra de arte constitui-se por um conjunto de mediações e não é redutível à
tentativa de produção de significações imediatas. De algum modo, é como se o mais interior da
obra de arte —a sua mais profunda radicalidade estética— coincidisse com o mais exterior: no
mais fundo da realidade e individualidade da obra encontrar-se-ia inscrito o mais universalmente
partilhável; na sua mais profunda individualidade e subjectividade encontrar-se-ia a sua maior
eficácia social e objectiva; na sua maior radicalidade formal encontrar-se-ia a sua maior
radicalidade de questionamento social e político.
Segundo Adorno, é a radicalidade da investigação de cada arte ao nível das suas
linguagens específicas que potencia a sua universalidade; isto é, a sua capacidade para
ultrapassar o estrito contexto histórico e cultural da sua produção assegura-lhes uma eficácia
muito superior à que obteriam se se colocassem quaisquer objectivos imediatos. Não é o sentido
intencionalmente definido na obra que lhe confere uma mais-valia capaz de lhe garantir a
universalidade. A universalidade não é alcançada através de uma cedência às expectativas da
maioria; a universalidade é o resultado da radicalidade da investigação e da especificidade das
linguagens de cada forma de arte: na maior especificidade está inscrita a maior partilhabilidade.
Repare-se que aquilo que Adorno quer evitar é subordinar a criação artística à busca de
“belos conteúdos semânticos”, de “boas intenções políticas”, que não sejam obtidos através de
uma efectiva investigação formal, ao nível das linguagens específicas; ao contrário, Adorno
afirma que, qualquer que seja a motivação política do artista, esta intenção só se cumpre através
de um processo de aprofundamento e radicalização das linguagens específicas da arte.
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É o respeito pela identidade e natureza específica da arte e das suas linguagens que
garante à arte uma verdadeira autonomia face ao todo das estruturas e condicionamentos
sociais ou culturais imediatos:
« Hoje, o momento sociocrítico das obras de arte tornou-se oposição à realidade
empírica enquanto tal, porque esta se tornou ideologicamente desdobrada de si mesma,
substância da dominação. Que a arte, por seu turno, não seja indiferente a tal respeito e
não se torne um jogo gratuito e decoração do mecanismo social, depende da medida em
que as suas construções e montagens são ao mesmo tempo desmontagens, integrando
em si, desorganizando-os, os elementos da realidade que livremente se associam em algo
de diferente.», (p. 285-286)
É a autonomia da arte e a sua recusa em assumir comprometimentos políticos imediatos
que potencia a sua força crítica específica: em vez de procurar opor-se imediatamente às
estruturas sociais estabelecidas —ou procurar integrar-se nelas de um modo acrítico— a arte
deve, por respeito a si mesma, definir-se pela desconstrução interna dessas estruturas. Isto
significa, sublinhe-se, não a interiorização de uma finalidade cultural que lhe fosse exterior, mas
uma exigência de prossecução autónoma de uma finalidade específica: a arte responde, antes
do mais, pela arte, e é sob esse critério preferencial que deve ser julgada.
Segundo Adorno, procurar produzir, experienciar, julgar ou pensar a arte por referência ao
seu conteúdo manifesto de significação —ao seu conteúdo semântico, político, ético ou
religioso— é subordinar a arte a exigências que lhe são exteriores e que não podem ser
entendidas como determinantes; a qualidade estética de uma obra não deve depender da
eficácia política ou moral da sua “mensagem”. Mas tal não implica, note-se, uma separação entre
a dimensão formal e a dimensão semântica das obras; isto é, não significa separar forma e
conteúdo —em que o estético estaria do lado da forma e o político ou o ético do lado do
conteúdo—. Pelo contrário, tal exige a mútua implicação dos dois níveis: uma obra de arte só
poderá ser política ou socialmente revolucionária se esteticamente o for. No limite, uma obra de
arte que se defina exclusiva ou preferencialmente a partir do seu conteúdo político, pode
eventualmente possuir verdadeira relevância ou existência política, mas não possuirá relevância
ou existência artística.
A alternativa não poderá estar entre um formalismo estético absolutamente fechado sobre
si —que conduza à ideologia da arte pela arte—, nem num comprometimento imediato da obra
com um determinado ideário socio-político, de que é exemplo o chamado Realismo Socialista.
Forçar a dicotomia entre a forma e o conteúdo é, para Adorno, não compreender que a verdade
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e essência da arte diz respeito às duas dimensões e que o progresso artístico e social da arte só
poderá ser aferível por referência a ambos os domínios.
A forma —submetida a uma permanente exigência de radicalidade absoluta— é também
um conteúdo; um conteúdo social e politicamente mais eficaz do que a pretensão de transmitir
uma “mensagem” para consumo político imediato. Segundo Adorno, não é legítimo, em nome de
princípios de ordem política ou outra, escapar ao intransigente compromisso da obra de arte com
a sua radicalidade específica.
Esta radicalidade deve ser entendida como uma exigência de aprofundamento e
complexificação das linguagens específicas de cada forma de arte, e um agudo criticismo face a
si mesmas. Isto traduz uma estreita ligação entre forma e conteúdo: produzir arte não decorre
apenas da produção de novos conteúdos de significação, mas do desenvolvimento simultâneo
de novas formas de o expressar. Em arte, como na reflexão conceptual, aquilo que se diz não é
independente do modo como se diz: o aprofundamento do domínio da linguagem específica de
cada tipo de arte —a sua forma— potencia a força do seu conteúdo de significação.
Segundo esta exigência, uma obra de arte que não satisfaça este intransigente
compromisso consigo mesma tende, de acordo com Adorno, a cair no kitsch:
« O kitsch não é, como desejaria a fé na cultura, um simples dejecto da arte
originado mediante uma acomodação desleal, mas espreita as ocasiões de emergir da
arte, que constantemente reaparecem. (...) A arte tornou-se vulgar pela condescendência:
quando, sobretudo através do humor, invocou a consciência deformada e a confirmou.
(...) Do ponto de vista social, o vulgar é, na arte, a identificação subjectiva com o
envilecimento objectivamente reproduzido.», (p. 268)
Adorno pensa o kitsch como a vulgaridade que se introduz na obra de arte pela quebra do
compromisso interno de radicalidade que a arte deve manter consigo mesma. Ao traduzir, de um
modo imediato e sem desconstrução crítica, a vulgaridade da realidade comum, o kitsch opera
uma traição à própria natureza da arte. Tal acontece, segundo Adorno, quando o artista
prescinde da sua radicalidade criativa e efectua concessões às expectativas culturais das
massas; expectativas essas que, numa sociedade culturalmente empobrecida, são
inevitavelmente baixas.
consequente atitude de investigação artística. A crítica de Adorno ao que designa por kitsch na
arte possui como referente imediato a formas de arte que emergiram na década de 60; com Pop
Art, a arte redescobre a força estética e conceptual do banal, em total oposição aos ideais de
pureza artística do modernismo e de Adorno. Independentemente da pertinência desta referência
imediata —é questionável se a Pop Art corresponde a uma concessão da arte ao gosto da
maioria, ou se não é antes o resultado de um processo de investigação e radicalização das
linguagens específicas da própria arte—, podemos invocar o exemplo recente do trabalho de
artistas como Paul McCarthy, ou Jeff Koons, para mostrar como a radicalidade da investigação
artística exigida por Adorno pode agir através de uma apropriação literal de um imaginário formal
do mais evidente e assumido kitsch: nestes artistas, o kitsch —radicalizado até ao grotesco—
não nasce de uma qualquer concessão ao gosto da maioria, mas de uma apropriação e
desconstrução crítica desse mesmo gosto, através de uma consequente investigação de novas
linguagens artísticas.))
Adorno procura aqui distinguir entre diferentes níveis de leitura das obras de arte: uma
leitura de superfície e uma leitura mais profunda. Partindo do sentido literal das obras, uma
leitura de superfície de muitas obras de arte da modernidade poderia apressadamente concluir
pela não existência nelas de um “sentido”. Mas tal advém de uma incorrecta percepção do que
significa realmente sentido ao nível das obras de arte.
Poder-se-á tomar o “sentido de superfície” como o encadeamento linear dos enunciados
semânticos: aquilo que, entendido na sua acepção restrita, cada encadeado frásico ou formal
poderia significar; aquilo que a obra representa ou mostra objectivamente —as realidades
representadas—.
Mas este é um nível elementar do conceito de sentido; para Adorno, a realidade do
“sentido” das obras deve ultrapassar este enunciado linear das proposições: como vimos, as
obras de arte não podem ser reduzidas a veículos de transmissão de conteúdos semânticos. Isto
implica que também não é possível reconduzir a interpretação das obras de arte a uma
hermenêutica profunda que recuse a experiência de percepção imediata, em nome da busca de
um sentido oculto que só fosse acessível por um processo de interpretação de significações
ocultas. Assim, a compreensão de uma obra de arte deverá ter em conta os dois níveis que
intrinsecamente compõem as obras: forma e conteúdo.
Mas outra questão, mais profunda, retira as obras de arte ao imperativo imediato do
sentido: a sua lógica interna não é redutível aos princípios da lógica formal. A racionalidade da
obra de arte não coincide com a racionalidade lógico-verbal —o modelo de racionalidade da
“razão instrumental”—:
«A lógica das obras de arte deriva da lógica formal, mas não se identifica com ela:
eis o que se revela no facto de as obras -e a arte aproxima-se assim do pensamento
dialéctico- suspenderam a própria logicidade e poderem, no fim, fazer desta suspensão a
sua ideia; para aí aponta o momento de disrupção em toda a arte moderna.», (p. 159)
Por vezes, os comentadores de Adorno acusam-no injustamente de afirmar o carácter
irracional da experiência estética. Importa sublinhar aqui que não se trata, de modo nenhum de
caracterizar a experiência estética como do âmbito do irracional, mas de afirmar que a arte
implica um outra dimensão de racionalidade; uma racionalidade que não é aqui redutível à estrita
racionalidade lógico-verbal. Neste sentido, a experiência estética surge em Adorno como um
conhecimento de carácter não conceptual, reafirmando a possibilidade de uma relação com o
real que não se reduza àquela que configurada pela racionalidade lógica. Mas não se trata de
desprezar esta forma de racionalidade, mas de alargar os limites da experiência humana.
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Adorno quer, ao mesmo tempo, garantir a legitimidade racional das linguagens artísticas e
preservar-lhes a sua autonomia. Adorno apela, por isso, a um modelo de racionalidade que não
se reduza ao encadeamento linear dos enunciados da razão: a lógica interna das obras de arte
obedece a princípios que, embora comensuráveis com os da racionalidade lógico-verbal —a
“arte do absurdo” não é irracional—, não se lhe reduzem.
Por exemplo, a “arte do absurdo” —e este é o caso mais radical— não traduz uma
perspectiva irracional da realidade, possui, isso sim, outra forma de racionalidade; uma
racionalidade que é em parte passível de ser traduzida para os enunciados da razão discursiva,
mas que não lhes é redutível: aquilo que é dito artisticamente só artisticamente pode ser, de
facto, verdadeiramente dito. Aquilo que é dito pela arte pode ser objecto de uma interpretação ao
nível da linguagem lógico-verbal, mas não lhe é redutível; nunca a interpretação da obra de arte
se substitui à experiência da obra.
Sublinhemos, no entanto, que esta autonomia das linguagens da arte relativamente ao
modelo lógico-verbal de significação não implica uma incompatibilidade entre a arte e a
dimensão conceptual; pelo contrário, para Adorno, a arte e a filosofia partilham um conteúdo de
verdade que é comum:
« As grandes obras de arte não podem mentir. (...) A filosofia e a arte convergem no
seu conteúdo de verdade: a verdade da obra que se desdobra progressivamente é apenas
a do conceito filosófico. », (p. 151)
Apesar de Adorno procurar salvaguardar a autonomia da obra de arte face à dimensão
lógico-verbal, não podemos deixar de notar uma recondução da obra de arte ao domínio estrito
da verdade conceptual:
«O conteúdo de verdade das obras não é o que elas significam, mas o que decide
da verdade ou falsidade da obra em si, e só esta verdade da obra em si é comensurável à
interpretação filosófica e coincide, pelo menos segundo a ideia, com a verdade filosófica.
(...) a genuína experiência estética deve tornar-se filosofia ou, então não existe.», (p. 152)
Esta implicação entre arte e filosofia deve, apesar de tudo, ser entendida menos como
uma redução da arte à filosofia —segundo um modelo hegeliano—, do que como uma efectiva
partilha de espaço comum; isto é, aquilo que Adorno pretende demonstrar é o carácter
conceptual da natureza da arte: apesar de mediada pela experiência sensível, a obra de arte não
se esgota numa relação intuitiva e imediata com o real.
«A arte é uma intuição de algo não intuitivo, é semelhante ao conceito sem
conceito. (...) A arte opõe-se tanto ao conceito como à dominação mas, para tal oposição,
precisa, como a filosofia, dos conceitos.», (p. 115)
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É segundo esta ambivalência que deve ser pensada a relação entre a arte e a reflexão
conceptual. Apesar de pensar o mundo através de uma linguagem que não é imediatamente
conceptual, a investigação artística não traduz uma representação a-conceptual da realidade; tal
significaria reduzir a arte a uma simples dimensão de representação formal. Ao contrário, Adorno
afirma que a natureza da arte é, embora não de um modo imediato, de ordem conceptual.
Esta relação complexa da arte com o seu “sentido” —que, ao mesmo tempo, é e não é de
ordem conceptual— implica que se deva pensar em diferentes moldes a relação entre a obra de
arte e o seu “conteúdo de significação”: não apenas este não é redutível ao enunciado estrito de
um sentido lógico-discursivo, como não é pensável no interior de uma relação de comunicação.
O nível de existência das obras de arte não é o da comunicação. Não é possível pensar as obras
de arte no interior de uma relação de transmissão de uma mensagem —ou de um conteúdo de
significação— entre um emissor e um receptor: o artista não pode ser entendido como um
emissor de conteúdos de significação, e o espectador não pode ser entendido como o receptor
—o decifrador—, do mesmo modo que as linguagens artísticas não podem ser reduzidas à
simples dimensão de instrumentos de transmissão de mensagens.
Pensar as obras de arte no interior de uma relação de comunicação imediata de um
“conteúdo de verdade” seria subordinar a radicalidade da investigação artística à dimensão de
simples divulgação didáctica de conteúdos —de que Adorno acusa, por exemplo, Bertold
Brecht—. Esta tentativa de uma divulgação imediata de um conteúdo e a tentativa de aproximar
as obras de arte do público, incorre no risco de produzir uma subordinação da arte ao gosto
dominante, com o consequente abrandamento da radicalidade da investigação e do
aprofundamento das linguagens específicas de cada forma de arte.
O perigo de uma perda de especificidade e de autenticidade das obras de arte se
subordinadas a uma relação de comunicação é tanto mais relevante quanto as sociedades
contemporâneas parecem construir-se a partir do imperativo da comunicação:
«Hoje, a razão premente para a ineficácia social das obras de arte que não cedem à
propaganda fruste é que elas, para resistir ao sistema omnipotente de comunicação, são
obrigadas a desembaraçar-se dos meios de comunicação, que talvez as aproximassem
das populações.», (p. 272)
A questão da relação entre arte e comunicação torna-se, segundo Adorno, mais premente
no interior de uma sociedade subordinada ao imperativo da comunicação, uma comunicação
acrítica que tende a reproduzir as estruturas sociais de dominação. É a necessidade sentida pela
arte de se diferenciar enquanto linguagem no interior da sociedade de comunicação que conduz,
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e) Conclusão crítica
1) Se é certo que Adorno procura fundar a autonomia da arte face à dimensão sócio-
política —sem que tal autonomia seja alcançada ao preço da sua inutilidade social ou da sua
inocuidade política—, também é verdade que Adorno não parece capaz de pensar para a arte
uma relação com a sociedade que não seja a da permanente conflituosidade. À força de
pretender atribuir à arte um papel relevante no progresso social e político do ser humano, Adorno
parece esquecer que a dimensão política é apenas uma das muitas dimensões do humano.
Apesar da incontornável força política da arte, o desenvolvimento autónomo das linguagens
específicas de cada forma de arte e de cada autor não têm necessariamente de conduzir ou
implicar a um questionamento sócio-político. A experiência estética é dotada de múltiplas
valências, e cada época poderá legitimamente privilegiar uma delas, sem que tal corresponda a
uma traição à natureza da arte: a natureza da arte não é una, mas plural.
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2) Por outro lado, ao dicotomizar em termos tão absolutos arte e cultura —acusando esta
última de ser expressão institucional de um sistema social que induz a dominação do homem
pelo homem—, Adorno não tem em atenção a necessária independência de cada forma de arte
ou de cada obra face ao seu contexto histórico político específico: não é possível pensar o valor
de uma obra ou de um artista a partir da sua posição relativa face a determinado contexto
político particular; tal corresponderia a subordinar a obra de arte a critérios de ordem não
artística. Além de que, e quaisquer que sejam as aporias da realidade contemporânea de que a
cultura institucional possa ser expressão, essa é apenas uma parte da realidade cultural da
contemporaneidade; cada vez mais a contemporaneidade é, tanto ao nível do todo da cultura,
como ao nível da arte em particular, atravessada por um incontornável pluralismo.
que não se lhe adequem. Ao invés de definir parâmetros de verdade ou de realidade para a obra
de arte, parece-nos preferível admitir o carácter intrinsecamente plural das realidades e das
práticas artísticas.
Bibliografia:
- ADORNO, Theodor W., Teoria Estética, trad. Artur Mourão, Edições 70, Lisboa, 1993.
- ADORNO, Theodor W., Experiência e Criação Artística: Paralipómenos à “Teoria Estética”,
trad. Artur Mourão, Edições 70, Lisboa, 2003.
- ADORNO, Theodor W., Sobre a Indústria da Cultura, Angelus Novus, Coimbra, 2003.
- ADORNO, Theodor W., Poesia Lírica e Sociedade, Angelus Novus, Coimbra, 2003.
- ASSOUN, Paul-Laurent, A Escola de Frankfurt, trad. Helena Cardoso, Publicações Dom
Quixote, Lisboa, 1989.
- GÓMEZ, Vicente, El Pensamiento Estético de Theodor W. Adorno, Frónesis, Ediciones
Cátedra, Madrid, 1998.
- HOLMES, Michelle, «Post-aesthetic ethics: a critical discussion of Theodor Adorno’s theory of
artistic non-identity», in Critical Quarterly, vol. 46, no. 3.
- JIMENEZ, Marc, Para Ler Adorno, trad. Roberto Ventura, Livraria Francisco Alves Editora, Rio
de Janeiro, 1977.
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- JIMENEZ, Marc, Adorno et la Modernité: vers une esthétique négative, Éditions Klincsieck,
1986.
- JIMENEZ, Marc, Qu’est-ce que l’Estétique?, Gallimard, Follio, Paris, p. 382-395.
- PADDISON, Max, Adorno, Modernism and Mass Culture, Kahn & Averill, London, 1996.