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Roubo Ébrio

Um conto curto que se passa em Landora, a capital de Valansia.

Igor Téuri
Chegou a hora! Pensou Gil enquanto tocava o amuleto de Artheus debaixo de sua
camisa. Com uma garrafa de vinho vazia na mão, o meio-elfo se afastou do chafariz no centro
da enorme praça do Largo da Moeda. Cambaleando como se estivesse bêbado, ele andava
fingindo tropeçar nos paralelepípedos soltos no chão da praça, seguindo em direção a loja de
suprimentos na esquina.
Essa precisava ser a última vez que furtava a loja usando o disfarce do bêbado,
pensou. Já estava ficando conhecido pelos guardas da loja. Qualquer item de prata renderia
umas boas moedas para pesar em seu bolso, que estava cada vez mais vazio. Algumas pessoas
passaram por ele, desviando do bêbado. Era fim de tarde, momento em que as lojas no centro
da praça estão fechando. Pessoas preocupadas em terminar um dia de trabalho cansativo são
mais fáceis de roubar, essa foi uma lição que aprendera desde pequeno.
Ele se aproximou da construção de dois andares, cuja placa em cima da porta exibia
os dizeres "Recarga do Aventureiro”. Gil percebeu que um homem grande e careca fechava a
porta. O jovem acelerou o passo, mas chegou em frente a porta no momento em que ela foi
fechada pelo homem troncudo a trancava pelo lado de fora.
– Ei seu guarda, tá muito cedo pro cê fechar a loja – disse o jovem usando o dialeto
embolado típico dos bêbados – Eu vim pra comprar um odre!
– Cai fora moleque! – respondeu o guarda enquanto passava trombando em Gil – o
patrão hoje não quer mais clientes. Se quer vinho, vai comprar na Pocilga. É naquele beco ali.
Sai da frente!
– Eu quero vinho de Ilfrin – disse o jovem apelando para sua atuação, ao retirar
atabalhoadamente a última peça de ouro de seu saco de moedas – Eu tenho dinheiro pra pagar.
Os olhos do careca brilharam ao ver a moeda. Gil quase sorriu ao perceber que tinha
chamado atenção do guarda. Só precisava entrar na loja e surrupiar rapidamente um item
qualquer para debaixo de sua capa enquanto comprava um odre de vinho. Era uma tarefa que
poderia fazer de olhos fechados.
O homem olhou ao redor, observando a praça quase vazia ao crepúsculo.
Subitamente, Gil sentiu o ar sair de seus pulmões. O careca o empurrou com força para o chão,
tomando de sua mão a moeda e sua bolsinha. Sem contar, colocou-as dentro das calças e
começou a andar em direção ao beco lateral à loja.
– Algibeira de bêbado não tem dono. Vaza logo daqui antes que uma patrulha da
guarda passe aqui e eu te denuncie por atrapalhar o sossego – disse o guarda ao se afastar.

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Gil, se odiou por um instante. Como pôde ter sido tão estúpido! “Não se mostra o
osso aos cães”, seu pai diria. A lembrança do pai fez com que seu peito se enchesse de ódio.
Ficou alguns instantes no chão recuperando o ar e decidiu seguir o guarda. Sairia dali com algo,
sua família dependia disso. Virou o beco escuro a tempo de ouvir a pequena porta lateral da loja
se fechar. O beco estreito fedia a urina e o chão era de terra batida, enlameado pela chuva do
início da tarde. Por que um guarda contratado estaria entrando no porão da loja no fim do
expediente? Decidiu sentar-se no fim do beco em um local que tivesse visão da porta. Poderia
fingir ser um pedinte e ver a hora que todos tivessem saído. Então, poderia arrombar uma
porta ou janela e entrar no local se certificando que não teria ninguém. O mais sensato seria
considerar sua missão como mal sucedida, e fazer um furto simples em outro lugar amanhã.
Mas a simples imagem do guarda tomando seu dinheiro fez seu sangue ferver. Aquele que
rouba usando da força é o pior tipo de ladrão. O roubo deve servir como ferramenta da justiça, e
não o contrário.
Sentou-se na esquina e preparou-se para esperar. Quase meia hora depois, já
sonolento no beco escuro, viu uma figura encapuzada movimentar-se silenciosamente pela
viela. A figura caminhava próxima a parede, olhando ao redor. Mesmo no completo escuro, Gil
conseguia distinguir a figura na escuridão, brilhando em tons de calor. Uma dádiva do pouco
sangue élfico que corria em suas veias. Fingiu estar desmaiado pela bebida. A pessoa passou
por ele como se não o notasse, seguindo em direção a porta lateral da loja. Ao chegar no local,
bateu na porta seis vezes, usando um ritmo não natural. Quando a abriu alguns segundo
depois, a figura deu uma última olhada ao redor antes de entrar. Gil conseguiu ver um rosto
feminino. Um rosto que ele conhecia bem. Juper, uma ladra que tinha crescido em fama
recentemente. Uma ladra que agora pertencia à Irmandade do Punhal. Gil sabia que uma boa
informação podia significar dinheiro. Mas vender informação sobre a maior guilda de ladrões
de Landora não parecia uma boa ideia. Ainda mais para um ladrão de um grupo independente
como o dele.
Verificando os arredores e mordido pela curiosidade, ele se aproximou da porta. Pela
fresta da porta, viu que luzes iluminavam o interior. Usando um pequeno espelho que sempre
guardava em seu conjunto de ferramentas, introduziu-o no vão lateral da porta de modo que
tivesse angulação para tentar observar que se passava lá dentro. O ângulo era ruim, mas pôde
ver que haviam várias pessoas no local. Reconheceu Haglad, o mercador e dono da loja. Ele
dizia algo indistinguível e entregava um saco para Juper. Haviam outras pessoas no local,
provavelmente guardas, pois o careca estava entre eles.
Gil não hesitou. Se Haglad e os guardas estavam ali, era sua chance perfeita. Se
afastou rápida e silenciosamente da porta, se dirigindo até a porta principal da loja. Olhou ao
redor, vasculhando a praça.Haviam algumas pessoas caminhando rápido em direção às
tavernas e estalagens que começavam a acender em vida na noite; um grupo de cães de rua que
se divertia numa orgia em praça pública; e um funcionário do outro lado da praça acendendo
com uma tocha as lanternas dos postes de iluminação pública. Abaixou o capuz para não
chamar atenção e andou de forma confiante em direção a porta principal da loja, como se o
local lhe pertencesse. Aprendera desde cedo que se agisse como se pertencesse ao local,

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demorava mais a ser alvo de desconfiança. Apanhou suas ferramentas de ladrão. Precisava ser
rápido e arrombar a porta como se estivesse abrindo-a normalmente com uma chave.
Enfiou a gazua na fechadura, e com movimentos rápidos que repetira milhares de
vezes, forçou enquanto girava a alavanca. Precisou forçar bastante, já que a fechadura parecia
de boa qualidade. Após alguns segundos, sentiu o delicioso estalido da porta sendo aberta.
Disfarçou a euforia e abriu a porta, entrando na loja escura que já havia furtado inúmeras vezes
sob o disfarce do bêbado. Sua infravisão lhe permitiu ver as prateleiras repletas de
equipamentos e suprimentos de viagem. Não poderia levar nada grande, o volume chamaria
atenção. Buscou primeiro na caixa debaixo do balcão principal. Estava vazia. Era óbvio! Haglad
não seria inocente para deixar os lucros de suas vendas na própria loja durante a noite.
Focou então focou em pegar itens pequenos que pudesse esconder debaixo de suas
roupas. Pegou alguns conjuntos de cadeados e algemas, além de um livro vazio que magos
chamavam de grimório, e que costumavam comprar por um bom preço. Também pegou um
pacote de carne seca de um conjunto de ração de viagem, precisaria disso. Juntou tudo e estava
saindo quando lembrou-se de algo. A linda adaga de prata que vira anteriormente na loja.
Tinha se enamorado da possibilidade de furtá-la, mas chamaria muita atenção fazê-lo durante
o dia. Era a oportunidade perfeita. Foi até a lateral da loja e procurou na prateleira de armas.
Seus olhos reluziram ao ver que a arma ainda se encontrava lá. Pegou-a junto da bainha,
escondendo dentro de sua bota direta.
Aproximou-se de uma das janelas da loja, observando o lado de fora. Abriu um pouco
a janela e arremessou com toda sua força o pedaço de carne seca para o centro do largo da
moeda, próximo ao chafariz. Atraídos pelo cheiro, os cachorros que ali estavam começaram a
latir e correr atrás da carne. Aproveitou a bagunça para sair do local, tomando o cuidado de
colocar o capuz e deixar a porta encostada, porém destrancada. O guarda careca pagaria por
tê-lo roubado. Atravessou a praça, evitando o funcionário que ainda acendia as lanternas.
Tomou o rumo da Baixada do Piolho. Apesar dos percalços, sua pequena incursão tinha sido
muito mais frutífera do que esperava.
– Obrigado Artheus por mais um roubo bem sucedido. Pai oculto dos ladrões, que traz a justiça
através do furto. Manterei seu disfarce, assim como tu me manténs. – murmurou uma prece enquanto
seguia com seus passos quietos pelas ruelas enlameadas e sujas de esgoto.
Gil era devoto de Artheus, o deus da justiça que a maioria considerava averso aos
ladrões. Ele duvidava muito que um deus que tinha trazido ordem ao mundo através de um
roubo, não abençoasse aqueles que roubam de mercadores e nobres que têm muito mais
dinheiro do que precisam. Andando entre os casebres da Baixada do Piolho, refletiu sobre o que
vira no porão da loja. A Irmandade do Punhal provavelmente estava envolvida em algo mais
sujo que o comum. Contudo, a imagem fixa em sua mente era a de Juper, sua ex-amiga de
infância. Sacudiu a cabeça, concluindo que esses tempos ficaram enterrados no passado. Ser
ladrão em Valansia significava se habituar a ver amigos morrerem Seja de forma literal ou
metafórica. E Juper estava morta para ele.
Ele não poderia estar mais enganado.

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