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MARTE

As ruas de Valor eram acolhedoras para aqueles que viviam do favor dos demais. Ali cresciam
órfãos, ladrões, criminosos e mendigos, e também viviam veteranos sem mais nada pelo que
lutar. Alguns chamavam um lugar em especial, onde a maioria se reunia para compartilhar o
pouco que tinha, de "Ninho de Rato". E lá vive Marte, um desses órfãos que teve a infância
descartada por Valor. Sua vida, desde que se lembra, tem sido pegar o que não é seu e correr o
máximo que podia - e era bom nisso. Conseguia fugir dos guardas como ratos fogem de cães,
pelas ruas que conhecia muito bem, passando por pedestres despercebidos e vielas
labirínticas. Não era uma corrida honrada, ele com seus velhos trapos esfarrapados e os
guardas de armaduras, carregando suas espadas e escudos, e sabia muito bem aproveitar essa
vantagem. Certa vez quase foi atingido por uma flecha, e teve que ficar no Ninho por um bom
tempo até esquecerem de sua existência novamente: aprendeu que roubar de nobres era mais
perigoso do que da plebe. Mas se era bom em fugir, melhor ainda era em furtar. Seu nome
completo era "Marte Mão-Leve", e assim ficou conhecido no Ninho quando já era jovem.
Conseguia roubar de tudo e muitas vezes a vítima só percebia quando já era tarde demais.
Segundo ele, era simples se você conseguia distrair e ter a agilidade necessária para pegar o
que queria nesse meio-tempo.

Teria se tornado apenas um bandido comum se certa vez não tivesse roubado um misterioso
anel no Mercado Central, tirando-o do dedo de seu dono e este só percebendo quando ele
corria. Era dourado, com uma pedra de um intenso carmesim - a princípio achou que era um
rubi, mas depois que observou melhor concluiu que aquilo era muito mais que um simples
rubi. Certamente valeria bastante ouro no mercado oculto de Valor. Conseguiu vender por
algo que o manteria longe do perigoso trabalho por pelo menos uma semana, e sabia que com
isso tinha conseguido um bom negócio... Até um dia ser abordado de surpresa por um senhor
já idoso. Era o dono do anel. A princípio pensou em fugir, mas o velho foi rápido em impedi-lo -
uma experiência nova para Marte.

- Onde está o anel? O que fez a ele!? - Marte só pensava em como ele o teria encontrado, se
havia guardas atrás dele ou se finalmente tinham conseguido pegar o Mão-Leve.

- Não há ninguém buscando você garoto, mas terá se não me devolver o que roubou. Onde
está ele?! - As mãos do velho apertavam seu braço com uma incrível força. Sobrenatural.

- Eu... Eu o vendi. - A ira foi visível, mas quase que instantaneamente o velho se acalmou.

- Para quem?

- Não tem como saber, o vendi no Outro Mercado. Pode ter sido para qualquer um. - O velho o
soltou, e Marte viu nisso uma chance de correr para longe, talvez até o próximo reino,
abandonar Valor, o Ninho, sua antiga vida. Mas a proposta veio antes.

- Olha garoto, se você me conseguir o anel de volta, darei a você algo que vale cem vezes mais
ouro que você ganhou. Você pode me achar no Mercado Central quando o tiver. - E foi
embora, deixando Marte ir.
Cem vezes o valor do anel... Teria que falar com Risco no Ninho sobre isso. Risco era servo de
um nobre e fugiu depois que este ameaçou dizer que mandaria o pai o matar se não
encontrasse o urso de pelúcia dele. Ele não encontrou o maldito urso e então teve que salvar-
se. Era um dos poucos que conseguia contar e fazer algumas contas básicas e com certeza
sabia quanto é trinta vezes cem. Marte não acreditou. Aquilo o manteria por dois anos,
poderia ser rico! Um nobre... Fantasiou andando a cavalo, tendo uma espada, um castelo, uma
princesa... Só faltava uma coisa. Onde o anel estaria agora? Venderá ele no Outro mercado,
onde se consegue vender qualquer coisa a qualquer preço. Remo era o nome do seu
contrabandista, para quem geralmente levava coisas que valiam muito ouro. Perguntou sobre
o anel a ele, mas antes de responder, Remo perguntou qual era o interesse. Marte era esperto
suficiente para saber que se Remo soubesse o motivo, conseguiria o anel de volta para ele
mesmo. Não entregaria sua fortuna tão fácil assim.

- O dono dele me encontrou e me ameaçou entregar pra Guarda se eu não o devolver.

- Hahaha! Então o Mão-Leve finalmente foi pego? Ok, eu o vendi para um homem estranho na
Alçada. Ele é um mago e tem uma loja de alquimia chamada Caldeirão Negro aqui em Valor.
Não acho que ele vá te devolver, pareceu bem surpreso em eu vender aquilo a ele.

A Alçada... É um bairro de Valor perigoso para um ladrão. Não há uma rua que não tenha um
guarda vigiando, e as casas têm grades altas. O Caldeirão Negro era uma loja comum, com uma
única entrada direta, uma saída estreita aos fundos e fregueses regulares. A estratégia de
Marte de furtar e correr não dará certo ali. Vira o mago que Remo falou abrir e fechar a loja, e
ir para casa depois disso. Nenhuma ida ao Mercado, à praça, um passeio, nada. E pior ainda:
não tinha o anel consigo. Ambas casa e loja pareciam impenetráveis. Tentou durante a noite
arrombar a saída, mas a tranca não se abria com uma gazua comum. Os muros da casa eram
altos e a grade pontiaguda na parte superior. Precisaria de ajuda. Mas de quem? Não podia ir
pedir ajuda a alguém do Ninho, mancharia sua reputação. Não poderia ser de Remo, ainda
mais porque ele já falou que Marte é o ladrão e ele o negociador. Não concordaria em ajudar.
Talvez... Se o velho, o verdadeiro dono do Anel, o ajudasse a entrar na loja, poderia procurar e
encontrá-lo. O velho propôs conversar com o tal feiticeiro, mas Marte disse que ele não o
devolveria por um pedido. Não foi fácil convencer um senhor de idade a ser cúmplice de um
crime, mas era a única maneira de recuperar o seu anel. Se não estiver na loja, só poderá estar
na casa do Mago, e isso já ajudaria Marte em alguma coisa. O plano era simples: O velho
entraria na loja e distrairia o vendedor enquanto Marte sem ser notado, vasculhava os fundos
em busca do objeto que o faria rico. Foi até fácil entrar e passar pelo feiticeiro distraído, só que
quando chegou aos fundos Marte se deparou com uma pilha de barris e caixas, enfileiradas de
forma a criar um labirinto. O Caldeirão Negro parecia ser maior por dentro do que por fora. Ao
checar o último corredor, encontrou uma porta trancada. Arrombou-a após quebrar várias
gazuas e quando a abriu, viu uma bizarra mão negra aberta e nela não tinha somente o anel
mágico que procurava, mas outros 3 que retirou e guardou todos no bolso. Após tirar o último,
e afastar-se, a mão misteriosamente fechou-se com força, mudando sua coloração negra para
uma branca-violeta. Saiu o mais rápido possível até a saída e encontrou o mago solitário no
balcão. Percebeu que demorará demais e que seu parceiro teve que ir embora - e agora estava
sozinho. Não tinha como ir até a saída sem ser notado, e ali era a Alçada, aonde tinha mais
guardas do que todos os outros oitos bairros de Valor juntos - correr não era algo inteligente a
se fazer. Teria que fazer uma distração. Voltou para os fundos e derrubou uma grande caixa
com algumas coisas retorcidas dentro. O barulho foi alto. Se escondeu atrás de um barril no
corredor principal e esperou o mago ir até onde estava a caixa e sua sujeira esparramada no
chão para correr até a saída.

- Ei, você! - Quando o mago gritou Marte já dobrava a esquina para fora da Alçada. Virou por
várias ruas, correndo como nunca tinha corrido antes. Conseguiu distanciar mais alguns
metros até ser parado por um guarda à sua frente.

- Aonde vai com tanta pressa, garoto? - Era o fim. O pegaram. Marte não conseguirá pensar
numa resposta que o livrasse, e pensou ter ouvido alguém chamar seu nome há algumas ruas.

- Ah Marte! Finalmente o encontrei, seu servo mixuruca! - Uma voz anciã soou atrás dele e o
guarda o soltou.

- Desculpe-me senhor, esse garoto é seu?

- Sim, sim, eu e meu servo que você teve o favor de encontrar viemos nos encontrar com um
amigo aqui, mas então quando minha visita acabou percebi que o pivete tinha desaparecido!
Com certeza levará uma boa lição por conta disso. De qualquer modo, obrigado.

- Disponha senhor - disse o guarda, distanciando-se.

- Não sou seu servo. - Resmungou Marte.

- Foi o que eu pensei no momento para te tirar dessa situação. Achou o anel?

- Sim.

- Então vamos sair daqui.

Na casa do velho, Marte mostrou os anéis roubados. Era muito mais o que o tal cúmplice
esperava, e sua animação em ver que Marte conseguirá achar os 4 foi mais do que visível.

- Agora, me dê a recompensa. - Falou Marte com firmeza. O idoso foi até uma estante na sala e
de lá, trouxe um livro em perfeito estado de conservação.

- Aqui está.

- O que é isso?

- Um livro.

- E quanto vale? - O rosto do velho assumiu uma expressão de comiseração.

- Bem, em ouro, vale 100 vezes mais que o anel, como eu havia dito a você. Não minto quanto
a essa parte... Mas o quanto você ganharia lendo-o, isso meu jovem, é algo de valor
incalculável.

Marte olhou para o livro, folheou-o e olhou para o velho.

- Mas eu não sei ler.

- Eu poderia ensiná-lo - rebateu.

- Por que faria isso?


- Você recuperou muito mais que apenas o anel que roubou de mim. Também achou os outros
motivos pelo qual eu vim até Valor. Tenho procurado eles há muito tempo, mas não esperava
encontrar 3 deles aqui. No final das contas, ganhei muito mais com você me furtando. Te devo
muito mais que apenas uns 300 de ouro que você conseguiu no Outro Mercado.

Marte olhou para o livro. Pensou em seus sonhos que poderia realizar vendendo-o. Pensou
tendo seu castelo, seus servos, sua princesa, e pensou se aquilo era possível. Um valor
incalculável. Passará a vida inteira correndo e agora tinha um livro e a chance de saber o que
havia escrito naquelas estranhas páginas.

- E... Quando começarei a ler?

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