Você está na página 1de 307

Copyright © 2020 por Anna Anchieta

Todos os direitos dessa edição reservados à autora.


Este livro contou com a organização e apoio da Associação Boreal.

É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, seja por meios


mecânicos, eletrônicos ou em cópia reprográfica, sem o consentimento prévio da
autora.

Editora-chefe: Becca Stupello


Edição: Yago Gunchorowski
Preparação: Becca Stupello
Revisão: Bea Goés Cruz
Capa: Gabes Regina
Diagramação: Nathália Lino
Ilustração de capa: Rebecca Braga
Ilustrações do miolo: Maria Eloise Albuquerque
Ilustração do mapa: Doug Batista

2ª edição, 2021
Sumário
A lenda da cidade de ouro e das luzes mágicas
Nota da autora
Playlist
Prólogo
Capítulo 1 – Caçador de memórias
Capítulo 2 – Tique-taque
Capítulo 3 – O segredo de Wendy
Capítulo 4 – Pela visão de um olho só
Capítulo 5 – Terra de estranhos
Capítulo 6 – Convidado
Capítulo 7 – Por trás das tendas
Capítulo 8 – Jantar teatral
Capítulo 9 – Mãos mágicas
Capítulo 10 – Mentiras herdadas
Capítulo 11 – Um segredo por outro
Capítulo 12 – Lacuna
Capítulo 13 – Fio branco
Capítulo 14 – Pó de fada
Capítulo 15 – A sombra da verdade
Capítulo 16 – Abandono
Capítulo 17 – Herdeiro de sangue, olho e mira
Capítulo 18 – A faca e o alvo
Capítulo 19 – Último espetáculo
Capítulo 20 – Culpado
Capítulo 21 – Jovem, não imortal
Capítulo 22 – Encontro de duas magias
Capítulo 23 – Um coração à frente do outro
Capítulo 24 – Perdido e encontrado
Epílogo
Agradecimentos
Convite para Nova Eldorado
Outros livros nesse universo
Sobre a Autora
Sobre a Associação Boreal
A todos que um dia já sonharam em fugir para a Terra do Nunca.
A lenda da cidade de ouro e das luzes
mágicas
Cidades perdidas existem ao redor de todo o globo,
interligadas por caminhos de energia mágica chamados de
Linhas Ley. Fenômenos de cores brilhantes que surgem no céu
noturno, como as auroras boreais, são manifestações físicas
dessa energia mágica. Mas não é apenas nos polos que elas se
manifestam, e são poucos os que sabem disso.
Há centenas de anos, exploradores que decifraram o mistério
das linhas ley acabaram seguindo uma poderosa aurora no céu
e se depararam com uma cidade isolada em um ponto remoto
das Américas. Repleta de riquezas e encantada por energia
mágica, o brilho do ouro abundante e da aurora no céu noturno
inspirou o batismo da cidade: assim nascia Nova Eldorado.
Mas o território não era abandonado; ali, habitavam povos
nativos, vivendo em sincronia com a natureza. O povo Bocaiúva
foi o principal deles a se opor à dominação dos exploradores.
Mas a cidade crescia e tomava cada vez mais espaço. E, assim
como o ouro foi se esgotando, a magia também entrou em
exaustão. O dia em que as pedras preciosas ficaram escassas
só não foi mais chocante do que o dia em que as luzes do céu
noturno se apagaram. A aurora desapareceu, e com ela a magia
do local.
A família fundadora, os Pendragão, sob a autoridade da coroa
e se sentindo mais proprietários do território do que os que
estavam ali antes, culpou pessoas de fora da cidade pelo
sumiço da aurora mágica e instaurou o mais radical ato de
ordem: estrangeiros não eram mais bem-vindos em Nova
Eldorado.
Aqueles que se opunham ao governo e se recusavam a fazer
parte da demarcação do território não eram cidadãos. Assim, os
povos nativos contrários e seus descendentes foram taxados
como estrangeiros pela coroa e passaram a sofrer a
culpabilização pelo sumiço da aurora. Desde então, as únicas
relações externas mantidas foram aquelas com outras cidades
perdidas, ligadas pela Linha Ley.
Décadas sombrias e sem magia dominaram a antiga cidade
brilhante. Todo tipo de cultura vinda de fora foi censurada, sem
que nada passasse pelas fronteiras – a não ser pela pirataria.
Mas nem tudo permaneceu assim por muito tempo.
Encontre a evolução dessa história ao longo da Coleção
Abraqueerdabra, onde a magia ainda é escassa nas primeiras
histórias, mas acaba sendo reanimada com a vinda de novos
reinados, e floresce nas histórias seguintes.
Nota da autora

Esta é uma versão nova, que se propõe a corrigir e modificar


questões que acabaram passando na primeira edição, e traz
mudanças que dão maior coerência à história em si e também à
mensagem por trás do livro: de representatividade positiva. As
principais questões se referem às modificações geográficas da
história, feitas para se alinhar melhor ao novo mapa de Nova
Eldorado, e também à retirada de elementos e personagens de
outras obras clássicas que não pertenciam ao universo de Peter
Pan, principalmente por fugirem do meu lugar de fala e
apresentarem problemas com estereótipos – assim, mantendo
apenas aqueles ligados à criação do J.M. Barrie e à minha
própria criação original.
Este é um livro feito para entreter e oferecer conforto,
contando sobre personagens que saem de contextos
complicados, mas acabam por encontrar o final feliz que
merecem; conforto esse que eu mesma sempre busquei e ainda
busco nas histórias que leio. Então, esta é uma segunda
tentativa em busca de alcançar esse propósito.
Obrigada pela chance de ter a sua leitura. Espero que goste!
Playlist
Confira a playlist feita pela autora, planejada para complementar
a experiência da leitura. Acesse-a através do QR Code, caso
esteja lendo pelo seu Kindle, ou então clique sobre o escrito
abaixo se estiver pelo celular.
CONFIRA A PLAYLIST DO LIVRO
“Como é triste! Eu ficarei velho e horrendo e medonho.
Ele jamais envelhecerá além deste dia de junho…
Se pudesse ser diferente!
Se eu permanecesse sempre jovem e o retrato
envelhecesse!
Por isso – por isso – eu daria tudo!
Sim, não há nada em todo o mundo que eu não daria!
Daria a minha alma por isso!”

O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde


Prólogo

De onde venho, todas as pessoas envelhecem, menos duas:


as mortas e as amaldiçoadas.
A primeira vez que ouvi falar de Peter Pan foi também a
primeira vez que vi o circo da cidade: A Terra do Nunca. Eu tinha
apenas 10 anos e ser uma criança eterna nunca havia sido uma
opção.
Nasci feito um segredo, escondido e abafado, dado para
alguém guardar em silêncio. Sem referência de família, era o
garoto perdido e sem encaixe, destinado a nunca pertencer a
lugar nenhum, porque lar era uma palavra sem significado e com
prazo de validade. Se fosse procurado no mesmo lugar duas
vezes, eu não estaria mais lá para ser descoberto.
Para alguém que nasce responsável por si mesmo, tudo que
eu podia querer era mesmo crescer.
Naquele dia, escapei da última casa onde estive abrigado.
Ninguém veio me procurar. Meu único familiar vivo não estava
por perto e os outros não se importavam o bastante. Eu era só o
menino sem sobrenome que ninguém sabia muito a respeito.
Fugia para a rua porque não entendia bem o tipo de perigo que
me ameaçava. E ninguém parou para me explicar.
Nada disso tinha valor enquanto corria pelas ruas de pedras,
sobre joelhos ralados e sandálias gastas, carregando claves de
malabares junto ao peito como tesouros. Não era do tipo “corra
para se esconder”. Sozinho na rua, corria pelo simples prazer da
liberdade. Adorava bancar o artista de rua como malabarista. Foi
como consegui ter as primeiras coisas por mim mesmo. Mas ser
artista também era o lugar de expressar minhas íntimas
fantasias: de me apresentar, de me tornar visível e de poder ser
reconhecido. Descobri a sensação de ser alguém dentro de um
aplauso.
Eu treinava para ser cada dia melhor e chegar a um lugar. Era
assim que eu sonhava com o circo antes mesmo de conhecê-lo.
Antes mesmo de Peter Pan aparecer. Antes de saber quem ele
era.
Era um dia banal demais para ter tanta importância. Corri com
passinhos curtos até o casebre sem muro onde passei algum
tempo abrigado. O toco de árvore descartado no fundo da casa
continuava lá há anos, eu o usava para ganhar altura e alcançar
a janela. Meu rosto imaturo aparecia espelhado na vidraça, a
pele negra refletindo a iluminação do dia quente, e o tapa-olho
um tom mais escuro ocultando o segredo que carrego do lado
direito. Quando batia no vidro rachado, um garoto mais velho
vinha atender sorrindo do outro lado da janela. No instante
seguinte, éramos dois correndo pelas ruas da cidadezinha tão
perdida no mundo quanto nós.
— Você não vai voltar a morar lá em casa? — Cristóvão
repetia a mesma pergunta de sempre, como se fosse mudar se
perguntado muitas vezes.
— Só se algo muito ruim acontecer. Foi o que meu pai disse.
— Eu dava a resposta que ele já conhecia, depois lhe estendia
as claves de madeira extras que levava para compartilhar. —
Toma! Se apresenta comigo. A gente pode ganhar umas
moedas com isso.
Daquela vez, Cristóvão deixou os ombros caírem e pegou a
oferta com um aperto murcho, uma careta malcontente.
— Eu não levo jeito nisso como você, Julian — ele reclamou.
Mas eu o arrastei para o cruzamento mais próximo, no centro
de comerciantes de Nova Eldorado. No meio da feira, das
barracas de artesanato e bancas de verduras, eu fazia o meu
palco. Em um momento estava tentando ganhar a atenção dos
que passavam. No outro, estava imerso na concentração do
malabarismo; entre arriscar uma jogada para cima e esperar de
mãos vazias que ela voltasse sem cair, para em seguida repetir
o risco.
Uma clave caiu e dispersou a atenção da multidão. Foi
Cristóvão quem errou. Eu parei para ajudar, não queria ele
acreditando que realmente era pior naquilo. A clave saiu rolando
pelo declínio da rua, quicando pelas pedras de paralelepípedo,
chutada pelos pés distraídos dos pedestres.
Esqueci Cris e o cestinho de moedas para trás enquanto
perseguia a clave fugitiva. Estava quase lá quando ela bateu em
calcanhares calçando sapatilhas verdes e parou. Eu agarrei a
clave, ao mesmo tempo o par de sapatilhas girou e apontou para
mim. Minha visão de um olho só subiu automaticamente e, de
repente, estava encarando uma fada. Vestido verde, maquiagem
de purpurina, asas de arame e plástico.
As vozes, as conversas, o berro dos feirantes — a vida
habitual que sempre me cercou havia me impedido de distinguir
um som distante, crescendo aos poucos. Uma canção delicada,
feita com rangido de sanfona e tilintar de xilofone. Estranha e
familiar ao mesmo tempo.
— Olá, pequenino.
Foi a única coisa que ela me disse, sorridente, enquanto me
estendia um panfleto. Hipnotizado, eu a encarei mudo. Minha
mão subiu sozinha para pegar a folha. “A Terra do Nunca te
espera”, estava escrito no anúncio.
Bastou meu toque reconhecer o papel para minha mente girar
em uma explosão de cores e imagens. Tendas, brilho, fantasias,
holofotes, balões, trapézios, tecidos. O rosto alegre da fada
mudou para preocupado. Devia achar que estava passando mal.
Eu também achava, porque ainda não sabia o que significa
aquilo de tocar objetos e ver coisas.
A avalanche de ideias cessou, como uma torneira fechada,
quando Cris apareceu correndo e me puxou pelo braço. Ele me
arrastou para irmos embora, parecia apavorado. Eu torcia o
pescoço para trás, tentando ver a fada deixada para trás com o
panfleto na mão.
— Vem, Julian! Corre!
A música, antes distante e suave, cresceu com um estouro
provocado por sons de trompas e pratos, engolindo o resto das
palavras. Os sons corriqueiros de Nova Eldorado deram lugar à
melodia alta e contagiante. Um sopro que se torna ventania e
nasce sem saber de onde. Que sacode pelos ossos e ameaça
carregar seu corpo para longe. A sensação bate na pele,
levantando arrepios, e você aprecia de olhos fechados a
refrescância. É assim que soava o circo.
Aqueles eram tempos difíceis. Num lugar como Nova
Eldorado, onde o sobrenatural podia acontecer, a magia havia
se tornado rara. Por décadas, a Aurora mágica desapareceu,
apagada da linha ley que conecta a energia mística de
diferentes cidades perdidas. Durante o governo de Ubaldo
Pendragão e seus antepassados, a sensação de secura era
ainda pior. Por isso a visão do circo desfilando entre as ruas era
algo que todos paravam para admirar, uma centelha viva do que
um dia foi o encanto da cidade. A Terra do Nunca tinha uma
fonte de magia diferente, que não era exatamente a extinta
Aurora. Algo que não era contado. Algo que permanecia seguro.
Mas que dava para sentir, só por eles passarem.
A fada se juntou ao resto da trupe, que atravessava como um
enxame colorido pela rua, deixando panfletos nas mãos das
pessoas e cartazes colados nos postes. Eu afundei os
calcanhares nas pedras, resistindo a continuar sendo arrastado.
— Ei, Cris, você não quer ficar pra ver?
Foi assim que fomos parar atrás de uma caçamba de entulho,
espiando escondidos. Cristóvão reclamou o tempo todo como
não deveríamos continuar ali. Eu deixei que sua voz se
confundisse com a música. Toda a minha atenção estava no
desfile do circo, que nunca tive oportunidade de ver.
Malabaristas davam um show com claves bem mais
brilhantes que as minhas, e um equilibrista pedalava sobre um
monociclo. Acrobatas com cabeças de animais jogavam uns aos
outros para cima, um número aéreo improvisado, enquanto
pernas-de-pau esguias atravessavam por cima de todos eles.
No fim da trilha de brilho colorido, vinha uma mulher vestida
de princesa, ao lado de um homem vestido de marinheiro. No
meio deles, o terceiro erguia um chapéu de pirata, coroando
uma cabeça cheia de dreads compridos e negros. Os olhos
azuis se ergueram. Em qualquer outro rosto, seriam
encantadores. Mas encaixados naquela estrutura óssea cheia
de ângulos formando pontas e sombras, eles estavam mais para
diabolicamente suspeitos. Na mão esquerda, ele carregava
facas de arremesso em cada espaço entre os dedos. Na direita,
se encaixava um gancho. Falso, eu sabia — só não por quanto
tempo até se tornar uma prótese real.
Ao meu lado, Cristóvão engoliu em seco e choramingou.
— Deuses! Se ele vê a gente aqui…
— Shhh! — Tento impedir que ele atraia o azar.
O trio acaba passando sem nos notar do outro lado da rua.
Quase no fim da fileira do desfile, a fada de sapatilhas verdes
apareceu de novo, girando com suas asas cintilantes sob o sol.
Dessa vez, não estava sozinha. Leve como ela, havia uma
criatura luminosa. Um garoto. Ele andava descalço e vestia
folhas enroscadas em seu suspensório, ligado a uma calça curta
cor de musgo. Todo em tons castanho e verde. O sorriso aberto
em seu rosto poderia conquistar qualquer um. Eu não sabia
olhar para outro lugar quando o vi.
— Tá vendo aquele garoto? — Cris disse, como se fosse
possível não ver o garoto. — Eu ouvi dizer… que ele é quem
escolhe os que podem se juntar à Terra do Nunca.
Não pude controlar meu coração de reagir sozinho.
— Ele? — Eu segui com o olhar, vendo a figura vestida de
folhas se pendurar no galho de uma árvore e pular metros à
frente, rindo com um som camuflado pela música. Não era uma
criança, porque era maior do que eu. Mas também não se
parecia com um adulto. Como ele tinha tanta influência sendo
ainda tão jovem?
— Pois é. Deve ser legal, né? — Cris perguntou. Um segundo
depois, se arrependeu. — Quer dizer, não. Não é legal. É o
circo. O circo não é legal.
Ele mal acreditava nas próprias palavras. Só dizia aquilo para
tentar me convencer. Porque eu não podia. Porque para mim era
proibido. Mas não importava o que ele dissesse, eu estava
obcecado. Enquanto a música se afastava, levando consigo o
desfile, as cores e o brilho, eu continuei seguindo o garoto com
os olhos. Assistindo àquele que eu sempre estive esperando,
mesmo sem saber quem era.
Esperando que aparecesse em minha janela. Que me
escolhesse. Me levasse para longe.
Eu estive esperando, assistindo meninos abandonados e
negligenciados serem levados por Peter, para viver com ele,
livres.
Sempre esperando pela minha vez.
Mas os anos se passaram, e eu só podia imaginar que devia
estar fazendo algo de errado. Algo para que Peter não me
quisesse.
Porque ele nunca veio.
Capítulo 1
Caçador de memórias

OITO ANOS DEPOIS


ANO 25 D.P, 5ª GERAÇÃO

Ninguém mais vê ou ouve falar do circo há meses. A Terra do


Nunca agora só aparece impessoal e sem magia através de
noticiários, estampada em manchetes criminais ou especulações
de fofoca.
Escorado no canto da parede de um bar, eu divido a atenção
entre um desses jornais e um homem decadente bebendo
sozinho no balcão. Faz 10 minutos que cheguei aqui, e ele ainda
não percebeu meus olhos obsessivos em suas costas.
As lâmpadas amarelas de sódio são péssimas para iluminar.
Acaba me ajudando a ser discreto nas sombras. Mas existe uma
mesa de sinuca entre mim e o homem no balcão, flutuando
numa neblina feita de fumaça de cigarro. Os jogadores da
partida com tacos na mão já começaram a olhar de lado para
mim. Não descarto a chance de parecer um esquisito, sendo o
único de pé na parede, sem uma única bebida nas mãos, em
roupas largas de moletom ao invés de algo mais social. E ainda
tem esse jornal velho.
Finjo indiferença quando desço os olhos para a folha
encardida e leio a mesma notícia pela décima vez só essa noite.
Não sei nem quantas vezes já olhei para ela ao longo dos
últimos seis meses:

“Capitão Gancho, o temível atirador de facas do


circo ‘A Terra do Nunca’, está morto.”.

O subtítulo traz a principal suspeita: auto envenenamento.


Depois da manchete, tenho o reflexo adquirido com o tempo
de engolir um nó duro e seco preso na garganta. Eu pulo o
corpo da notícia para ir direto ao autor daquelas palavras: Murilo
Basílio, jornalista e repórter. Sua foto em miniatura no canto da
página tem o mesmo rosto que o homem de costas no balcão.
Não foi à toa que o segui até aqui.
Mesmo incomodado pelo ar de nicotina, eu respiro fundo. A
lixeira do bar está ali comigo no canto, e eu empurro o jornal
para ela, que engole as folhas amassadas assim como faz com
latas vazias de cerveja, notas fiscais engorduradas e cartelas
rabiscadas da loteria. O jornal não vai fazer falta; ainda tenho
guardada uma pilha acumulada de outros iguais a ele.
O álcool servido no balcão já teve tempo o suficiente para
anestesiar os sentidos daquele homem. Eu abandono o canto da
parede e finjo o meu melhor sorriso quando toco no ombro dele.
— E aí, cara — digo como se tivéssemos familiaridade. Ele se
vira para mim estranhando; analisa fixo meu rosto, buscando me
reconhecer. O pagode no som em cima da prateleira camufla
minha voz, mas eu tento não falar tão alto. Seria uma conversa
para ficar mesmo entre dois. — Basílio, certo? Te conheço do
jornal. Sou muito fã das suas matérias.
Isso faz um sorriso brotar dos lábios dele, o que estica seu
rosto barbado. Ótimo. Ele mordeu a isca.
— Pelo menos alguém nessa cidade maldita. — O homem
soa amargo. Tenta compensar aprumando a coluna e estufando
o peito, como se não estivesse vivendo em decadência depois
de ser demitido. Mas ele soluça, bêbado, e seu disfarce
confiante desmancha com o cair dos ombros. Basílio toma de
volta o copo pela metade sem muita paciência. — Você é…
— Roger. — Ofereço meu segundo nome. Fica mais fácil
mentir assim, quando é uma meia-verdade. — Me chame de
Roger.
Ele solta um riso grogue, como se eu estivesse fazendo
charme.
— Como quiser.
O próximo olhar de Basílio para mim é de baixo para cima, de
um jeito que faz meu moletom parecer um pouco mais justo. Ele
checa se mais alguém está olhando antes de me convidar para
sentar. Eu nem considero recusar; foi para isso que vim até aqui.
— Então, o seu trabalho… Sabe o que eu mais admiro na
forma como você escreve? — Tento soar deslumbrado. — A sua
capacidade de investigação, de conseguir desvendar a
verdade… Nossa! É algo que eu invej-
— Aceita uma dose?
— Não, não. Na verdade, eu acompanho seu trabalho desde-
— Só uma dose — ele insiste, empurrando um copo
americano com algo dentro que cheira à cachaça. — Você não é
de menor, é?
Eu engulo seco, impaciente. Sorrir e parecer simpático exige
o dobro de esforço agora.
— Tenho dezoito — decido dizer a verdade nessa, num tom
mordido que traça uma linha invisível entre nós. Uma
advertência subliminar de que eu era responsável por mim e era
capaz de me defender, se necessário.
Ele se afeta pouco ou quase nada, se inclinando mais com o
cotovelo dobrado sobre o balcão, a bochecha esmagada na
palma da mão.
— Uau. Eu daria muito menos para esse rosto — ele diz com
um meio sorriso grogue, de quem acha que está sendo atraente.
Depois que você se acostuma a dar em cima de outros em
troca de segredos, acaba deixando de ser desagradável e passa
a ser entediante. De tão facilmente enganável, eu só sei olhar
para o homem salivando como algo patético.
Como ainda preciso fingir, eu pesco um copo vazio na ponta
do balcão e despejo metade da bebida de Basílio dentro dele.
Em seguida, estou estendendo o vidro barato para um brinde,
acompanhado de uma piscadela. A aprovação de Basílio vem
através de uma risada maliciosa, e ele encosta o próprio copo
contra o meu, tilintando. Viramos um gole ao mesmo tempo. Ele
toma tanto que faz até careta. Eu só finjo de lábios fechados e
limpo o que ficou em minha boca com as costas da mão.
— Então, sobre suas matérias… — Aproveito que ele está
hipnotizado, seja por estar encarando meus olhos bicolores ou
por seus pensamentos sórdidos, e avanço para o que preciso.
— Sabe, eu tenho uma preferida. É a melhor de todas. Aquela
sobre o circo.
A última palavra faz seu rosto enrugar.
— O circo? Mas isso foi… há quanto tempo?
— Seis meses. Quase sete. Mas mesmo assim, foi sua obra-
prima. — Não penso nada disso, mas preciso encher a bola
dele.
Ainda assim, Basílio murcha mais um pouco, não tão
empolgado quanto eu esperava. Ele debruça os cotovelos de
novo sobre o balcão, resmungando palavras confusas com
cheiro de álcool. Eu consigo pescar algumas delas.
— A merda- o que escrevi- na semana passada- pouco
importa, né? A Maria Flor ainda riu na minha cara antes de me
chutar pela porta, aquela vac…
— Está falando comigo?
— Hã? — Basílio gira de novo para mim, piscando tonto. —
Ah, não! Não. Mas só para que você saiba, garoto… Eu sou
uma farsa. Uma completa farsa.
Aquilo sai num desabafo. Parece a primeira coisa verdadeira
que o homem diz, não esperava me identificar com ele por isso.
Eu olho para baixo, vejo o piso descascado, e minha voz vacila.
— Você poderia… Não sei, talvez me contar um pouco de
como foi cobrir aquele episódio no circo? — Respiro. — O que
você viu? Com quem falou? Imagino como tenha sido…
Basílio contorce o rosto, como se pensar em seu antigo
trabalho fosse a última coisa que desejasse fazer.
— Não tem nada demais. Aquele cara se matou. Só isso. — A
indiferença dele provoca uma súbita raiva dentro de mim. Meu
aperto em torno do copo aumenta. — Por que você não esquece
isso e me oferece uma opção mais interessante? — Ele volta a
ter aquela voz arrastada.
Basílio pega uma mecha de meu cabelo pela ponta do dread
que bate na altura do ombro. Seu olhar viaja para baixo.
Inspeciona meus dedos, procurando alguma aliança. Eu me
seguro para não socá-lo aqui e agora. Preciso dar a ele o que
quer. Fingir já será o bastante, e como sou bom nisso…
Sobre o balcão, deslizo uma de minhas mãos até a dele,
perto do copo. No momento em que toco sua pele quente, solto
o ar pela boca, e minha visão perde o foco. A satisfação que
sinto não é a mesma que a dele. Mas isso só eu sei, porque ele
não vê o que eu vejo.
Um fato sobre mim é que um aperto de mão nunca é um
simples aperto de mão. Posso saber a história deste simples
copo americano — de onde veio, quem o usou, as bebidas que
serviu — com um toque. Meus dedos podem vasculhar o
passado, reviver memórias. E isso também funciona com
pessoas. Alguns chamariam de dom, porque nasci com isso.
“Anômalo”, é como se referem a isso na cidade. Mas eu chamo
de habilidade, porque aprendi a manipular com treino e tempo.
Enquanto meu rosto vazio encara Basílio, eu vejo suas
memórias como um telão, imagens vívidas que passam como se
fossem minhas.
Porque fiz ele pensar no circo, suas memórias sobre o lugar
são as primeiras da fila, brilham feito um filme que eu estive
ansioso para assistir. Tendas coloridas, luzes amarelas e
quentes, tudo sacudido pelo vento de uma noite em convulsão.
Na memória de Basílio, existem faixas amarelas esticadas por
todo canto, isolando a cena do crime. Curiosos cochicham do
lado de fora dos muros, onde Basílio também está. Artistas com
roupas espalhafatosas perambulam de cabeça baixa, evitando a
plateia; eles vão na direção contrária da polícia, que abandona o
circo carregando uma maca com um corpo coberto de plástico
preto. Com o movimento na terra irregular, um braço do cadáver
escapa para fora, pendurado no ar, e a plateia arfa de surpresa.
Na ponta dele não há uma mão, mas uma prótese de metal.
Um gancho.
A visão é mais forte do que eu imaginava e me faz cambalear.
Eu acordo como se estivesse num sonho ruim, piscando até
recuperar o foco e respirando mais forte. Preciso me controlar
para que o olhar desconfiado de Basílio não piore.
Ele para de brincar com meu cabelo e desvia a mão no
balcão para fora do alcance. O desespero me atinge, o puro
medo de chegar tão perto para continuar sem nada. Por isso me
inclino de corpo inteiro para ele, mais perto, me oferecendo.
— Topa… Ir para o banheiro? — Falo baixo para disfarçar a
voz trêmula.
Isso estimula Basílio, que ajeita os ombros e sorri. Ele checa
de novo para ver se ninguém está vendo.
— Você primeiro — ele sussurra de volta, como se a voz
baixa fosse um jogo.
Eu me levanto mais rápido do que havia calculado e caminho
para os fundos.
A música soa abafada dentro do cubículo que chamam de
banheiro naquele bar. Parece tão apertado quanto me sinto em
meu corpo agora. Os azulejos estão sujos, o teto infiltrado, e a
torneira não fecha de jeito nenhum, fazendo ping-ping-ping na
poça da pia entupida.
Apoiado na bacia de porcelana, eu ergo a cabeça entre os
ombros e vejo no espelho rachado como minhas olheiras
cresceram. A pele escura tem um tom apagado. As mechas de
dreads, pedindo por uma manutenção, me parecem uma porção
de tentáculos sombrios. Os olhos diferentes — um preto, outro
azul — mal se animam, opacos e distantes.
É pelo reflexo que vejo a porta abrir. Basílio entra sorrindo e a
fecha de novo com cuidado. Ele não diz nenhuma palavra a
mais quando me pega por trás e cheira a curva de meu pescoço,
rápido demais para que eu possa evitar. Sua barba me arranha.
Eu me contorço dentro de seu aperto, até que consigo girar e
ficar frente a frente. Prevejo quando ele tenta avançar para um
beijo, enquanto uma de suas mãos desce pelo fecho da minha
calça. Mas o seguro pelos braços e giro, trocando as posições.
Agora é ele quem está pressionado contra a pia e eu tenho o
domínio.
— Vamos fazer um jogo: eu toco você — sugiro com
interesse, mesmo que o homem não saiba a verdadeira
intenção.
Ele solta uma gargalhada. Sem resistência, suas mãos vão
parar atrás da cabeça, e ele se dá o capricho de fechar os olhos.
Pelo menos assim posso desmanchar a máscara e me permitir
contorcer a boca de desgosto.
— Sou todo seu — Basílio confirma.
Eu quase posso agradecer por ele ficar quieto, mas não tenho
tempo a perder. Deslizo as mãos por baixo da camisa dele,
fingindo interesse em subi-la. No momento em que toco os pelos
curtos de seu abdome, sou transportado de novo.
Fica mais difícil ter as memórias que quero quando ele não
está pensando no circo. O que tenho são os pensamentos
indesejados e sujos, coisas pegajosas difíceis de esquivar.
Escolher as memórias que quero ver não é uma habilidade que
domino tão bem.
— Sobre a história do circo… — eu digo, e ele geme irritado.
Mas funciona. As memórias daquele dia voltam, emergindo
como terra firme onde posso me agarrar e desenterrar os
tornozelos de um lamaçal de areia movediça. Vejo quando
Basílio consegue entrar no circo, para um furo de imprensa. A
trupe de roupas brilhantes e olhos opacos o evita como uma
praga contagiosa, desviando de seu caminho. Ele não consegue
conversar com quase ninguém. No entanto, reparo em como é
fácil para ele ter acesso aos lugares, indo e vindo entre as
tendas com a identidade de jornalista.
De repente, Basílio me agarra pelos pulsos e puxa minhas
mãos. A memória desaparece num sopro e estou encarando seu
rosto mal-humorado.
— Qual é? Vai ficar de palhaçada? — Ele não soa mais tão
tranquilo.
Tento me afastar, mas seu aperto consegue ser mais forte.
— É melhor você me soltar — ameaço entredentes.
— Muito engraçadinho, mas vai ser o seguinte: vamos fazer
do meu jeito agora.
Não é a primeira vez que eu preciso escapar de um aperto. A
desvantagem de Basílio é acreditar na minha ingenuidade.
Minhas mãos estão atadas, mas quando ele se inclina para mim,
eu o acerto com uma cabeçada. Um único golpe, duro e certeiro.
Não teria dado certo se eu não tivesse experiência nisso.
Ele resiste, zonzo. Então acerto de novo e empurro. O
homem desaba como uma fruta podre, se confundindo com o
chão sujo, e eu massageio meus pulsos livres. Diante do corpo
desacordado, meu primeiro reflexo é pensar em seus bolsos
cheios e vulneráveis. Eu não me orgulho disso. Mas ainda
assim, me vejo agachado perto dele, procurando por algo de
valor.
Basta abrir a carteira dele para que eu pense uma segunda
vez. Moedas douradas de eldo, o dinheiro de Nova Eldorado,
brilham aos meus olhos. Mas me sinto incapaz. Não gosto de
repetir o que fazia quando era mais novo, e mais burro, e mais
desesperado.
Eu enterro a carteira de volta no bolso dele, sem tomar nada.
Pego seus documentos que caíram para devolver também, mas
me detenho sobre um deles. Sua carteira de jornalista. As
memórias de Basílio que vi me voltam à mente, e a ideia que
tenho brota como uma semente rompendo o solo.
Se eu fosse um jornalista… Se eu me passasse por um,
haveria tantos novos lugares para acessar. Pararia de procurar
por farelos de investigação feita por outra pessoa e faria a minha
própria até descobrir o que aconteceu naquele dia. Até descobrir
como Gancho morreu de verdade.
Eu não teria paz até ter justiça.
Tenho o cuidado de limpar o sangue que escorreu do nariz de
Basílio com um pedaço rasgado de papel higiênico e torço para
que não se lembre de mim quando acordar. Não é mesmo muito
difícil me esquecer. E então deixo o bar, com mais determinação
do que quando entrei.
Capítulo 2
Tique-taque

Cresci em casas que não eram minhas, pulando de uma para


a outra enquanto os proprietários me toleravam por alguma
dívida que tinham com meu pai. Meus irmãos postiços eram as
crianças que viviam nessas famílias, por isso tenho muitos
deles. Quando chegava a hora de me mudar para a próxima
casa, os pais comemoravam aliviados. Mas os filhos… Os filhos
ainda mantinham contato, em segredo. Uma hora ou outra,
meus irmãos sempre me procuram; geralmente para pedir ajuda
para alguma roubada.
Cristóvão é o único que foge da regra. Talvez seja porque ele
se afastou dos pais logo cedo para morar sozinho. Barba Negra
era um homem conhecido por suas encrencas, e Cris só queria
viver fora delas, ignorando o sangue que herdou. É na casa dele
onde me refugio quando não tenho mais para onde ir.
A rua de Cris é feita de casas sem planejamento, coladas
umas nas outras, dividindo parede. Chego lá com uma corrida
de 10 minutos, porque conheço os atalhos certos. Eu testo a
maçaneta do portão e da porta principal. Ambas destrancadas.
Mas a casa está em silêncio e a luz da entrada apagada.
Estranho.
— Cris! — Eu chamo algumas vezes antes de entrar. Se
estivesse com mais alguém, que pelo menos me ouvisse antes e
não me fizesse pegá-lo com a calça na mão.
Quando empurro a porta, ganho uma surpresa ao escutar um
par de passinhos descalços correndo. Uma miniatura de gente
pula no meu colo, rindo e esmagando meu estômago com o
joelho. Eu demoro para reagir, congelado pelo susto.
— Peguei você, Jota! — Ágata se vangloria, como se fosse
ela estar escondida atrás da porta que me assustou. A garotinha
de 5 anos era mais uma criança perdida que o pai de Cris pegou
para tomar conta como dívida, mas jogou para o colo de
Cristóvão, assim como fez comigo.
Devagar, solto o ar e relaxo os ombros. O apelido que ela usa
ajuda a aliviar.
— Isso vai ter revanche. Ouviu, espertinha? — Bagunço a
nuvem fofa de seu cabelo crespo e cutuco cócegas nela, que
reage com gargalhadas mais fortes. Observo pela porta da
cozinha, de onde Ágata saiu, mas também não tem ninguém.
Vejo apenas papéis rabiscados com desenhos de giz-de-cera
debaixo da luz fraca da lâmpada velha. — Cadê o Cris, hein?
Ágata se segura ao redor do meu pescoço quando giro com
ela de volta para o corredor.
— Saiu! O namorado tava gritando com ele aqui…
Eu suspiro, imaginando mais uma das brigas deles. Cris,
aparentemente, ao menos teve a consideração de levar a
confusão lá pra fora. Mas com isso deixou Ágata sozinha e
ainda com a porta destrancada. Eu odeio ter que bancar o
responsável, mas precisaria dar um sermão mais tarde.
Com os bracinhos de Ágata ao redor dos meus ombros,
alguma coisa que ela carrega cutuca minha bochecha. Eu olho
de lado e percebo o que não reparei de primeira.
— O que é isso?
Eu e ela olhamos para o cata-vento de papel colorido. Nunca
vi aquilo antes. Não é um de seus brinquedos.
— Onde conseguiu? — Retomo a pergunta.
Enquanto carrego a menina até a sala, pelo corredor estreito
e apagado, Ágata pisca seus olhos grandes e castanhos para
mim.
— Presente! — Ela comemora animada, a brisa fria vinda da
janela gira o cata-vento. — Foi o moço, seu amigo. Ele me deu.
— Cristóvão?
Ágata sacode a cabeça e o cabelo farto.
— Não! O moço de máscara. — Sua resposta é tão inocente
que me dói. — Ele tá na sala. Pediu pra esperar o Jota.
O cata-vento dá outro giro, mas é pela minha coluna que o
vento parece passar, em um arrepio que sobe até a nuca.
Eu coloco Ágata imediatamente no chão, no mesmo momento
em que vejo uma silhueta adulta sentada no sofá. O meu sofá,
onde durmo toda noite. Aquilo alcança um nível além de invasão
de privacidade. A sombra cresce quando a pessoa se levanta, e
eu bato a mão no interruptor. A luz se derrama por todo o
cômodo, que não é lá muito grande.
Sobre o tapete de sisal no meio da sala está um homem.
Deixo de avaliar sua altura e seu porte, de calcular a força que
ele poderia ter, de estimar minha chance em uma luta corpo a
corpo, quando meus olhos caem em seu rosto. É exatamente
como Ágata disse. Ele usa uma máscara. Uma das coloridas, de
carnaval. Aquilo cobre seus olhos, e uma ponta alongada faz
sombra sobre seu nariz, feito o bico de um bicho.
Um chapéu coco cobre sua cabeça. O paletó de cauda azul e
verde, que cintila coberto de lantejoulas pregadas umas por
cima das outras, dá a ele um aspecto de escamas. Ao redor de
seus sapatos de pontas curvas se acumula um amontoado de
brilho, purpurina que cai da roupa e contamina tudo. No chão
atrás dele, se esconde uma caixa de papelão que também
nunca vi.
A coisa viva no meu peito se debate descontrolada, reagindo
em pânico.
— Ágata, para o quarto. Agora! E tranca a porta! — Grito
empurrando a garotinha, que perde o sorriso com minha
mudança de atitude.
Tenho sorte que ela é obediente. E assim que some da minha
vista, eu saco uma das duas facas que carrego no elástico da
cintura da calça. Refletindo a luz, a lâmina afiada aponta na mira
do diabo no meio da sala.
Metros de distância nos separam, mas ele parece comovido
com a ameaça, porque levanta as mãos para o alto em rendição.
Reparo como suas unhas são compridas, as pontas tão afiadas
que poderiam competir com a faca que empunho. Ele segura
uma bengala preta, adornada com a cabeça prateada de um
dragão.
— Julian? — Ele ousa falar antes de mim. A maneira como
invadiu meu único espaço seguro, manipulou uma criança para
abrir a porta, e ainda por cima sabe o meu nome verdadeiro, me
irrita e me aterroriza ao mesmo tempo.
— Vaza daqui! — Grito e avanço um passo, mostrando que a
lâmina é verdadeira.
Mas ele olha para a faca e olha de volta para mim, como se
nenhuma das coisas o amedrontasse. Pelo contrário… É como
se estivesse contemplando.
— Você aponta como ele. — O cara responde. Não sei se o
tom da sua voz é admiração ou pena. Só sei que me atinge mais
do que deveria.
— Vai embora, eu não tô brincando!
— Escute…
— Quem é você? — Minha voz sai rouca, transformada, cheia
da raiva que borbulha em meu peito. Aquela não era a pergunta
que eu deveria fazer, e me arrependo um segundo depois.
Vejo a única parte visível no rosto dele, a boca, se esticar
devagar. É quase um riso.
— Meu nome é Bravo. Eu sou… da Terra do Nunca.
Escutar aquilo em voz alta é muito pior do que quando era só
uma suposição. Sirenes e alarmes gritam dentro dos meus
ouvidos, e eu cambaleio para trás. Sinto meus joelhos fracos, o
punho trêmulo, e não consigo fazer nada para conter a onda que
nasce de dentro. É um pânico programado.
Eu atiro a faca, mas tenho tanto medo que fraquejo na mira.
O homem desvia para o lado, e a lâmina cai, tilintando no chão.
Eu me odeio pela precipitação, porque agora ele pode pegar a
faca e usar contra mim. No entanto, o cara pisa com a sola do
sapato sobre ela e a chuta de volta.
A lâmina para aos meus pés, uma ameaça morta. Não me
abaixo para alcançá-la. Deve ser uma armadilha, e isso me
deixa paralisado.
— Eu sei que está com medo. E sei que deveria mesmo estar.
— São as afirmações que saem da boca do estranho, e me
corrói a forma como ele tem tanto a dizer sobre o que “sabe” de
mim. — Eu conheci Jaime Gancho. E eu, provavelmente, sei
qual a história que ele contou para você.
Meu corpo reage fugindo para trás, mas eu bato de cabeça na
parede e minha visão relampeja com a pontada de dor.
— Ele nunca te levou ao circo. Disse que tinha inimigos lá, e
que eles fariam de tudo para te matar se descobrissem você.
Não é? — Sua pergunta é mera cordialidade. Ele sabe que está
certo. Ele sabe de tudo. — Mas acredite em mim. Sou o único
que sabe de você. E estou aqui pra oferecer o que você quer.
Quando ele se move de novo, é como uma gárgula ganhando
vida. Instintivamente, me encolho e escorrego pela parede. Mas
tudo que ele faz é levar a mão pontuda até o chapéu para tirá-lo.
Seu cabelo se revela azul esverdeado, da cor do paletó de
cauda, alinhado para trás com gel modelador.
— Se me der uma oportunidade, posso mostrar que valerá à
pena. — Ele continua com o chapéu junto ao peito. A ponta de
sua bengala se enfia na borda da caixa aos seus pés e a arrasta
para frente. O som do papelão contra o tapete parece o de uma
serpente. — Eu trouxe do circo algumas coisas antigas de
Gancho.
Ele me tem completamente com essa afirmação e deve saber
disso. Está testando meu controle. Minhas narinas inflam e eu
pisco mais rápido, de olhos ardidos. Eu poderia cair de joelhos
ali mesmo e enterrar o rosto entre as mãos, chorar até amanhã.
Mas eu não vou fazer isso.
— O que você quer? — Minha voz engrossa.
O ombro de Bravo sobe e desce, sua boca e seu queixo
enrugam. São sinais que tentam convencer que ele não tinha
pensado em nenhum interesse antes. Mas é claro que tinha.
— Apenas ajudar um antigo amigo. Que os Deuses o tenham!
— Bravo faz um sinal sagrado no final. — E claro… Conversar.
Com você.
A palavra “amigo” para se referir a Gancho não me
tranquiliza, mas me faz olhar diferente. Bravo percebe e sinaliza
para que eu me aproxime. Dá três passos para o lado, abrindo
caminho. Eu gasto alguns segundos olhando para a caixa aberta
que diz “frágil”, com um amontoado de tralha dentro. Então não
posso evitar avançar para cima dela, como um abutre numa
carcaça. Bravo apenas observa.
Eu preciso testar se é real. Preciso sentir em meus ossos.
Meto a mão lá dentro e pesco a primeira coisa que cabe em meu
aperto: uma garrafa de vidro com rolha, que guarda a miniatura
de um navio veleiro dentro. Com o toque, a memória dela me
inunda. Tenho a sensação de uma onda se quebrando sobre
mim, me empurrando com força para dentro do mar. Num
lampejo, eu vejo a garrafa enfeitar o topo de um baú,
transformado em mesa. Uma camada de poeira fina a cobre.
Vultos passam ao redor, pessoas que não posso identificar.
Apenas uma delas toca a garrafa, para tirar do caminho e
alcançar algo mais atrás. Não é uma mão; é um gancho.
Solto a garrafa como se agora me fizesse mal. Bravo me
observa atentamente ainda de pé, os dedos afiados cobrindo a
cabeça do dragão em sua bengala. Olho para cima sem levantar
a cabeça, acuado. Era como se fosse pego fazendo algo errado.
— Não se preocupe. Seu segredo está seguro comigo. —
Sua cabeça se move, o nariz pontudo da máscara aponta para
as minhas mãos. Será que não existe uma só coisa sobre mim
que ele não saiba?! Bravo parece ler minha expressão, porque
acrescenta: — Foi Gancho quem me contou. Nós fomos
próximos.
Eu me levanto devagar, porque cada coisa ao redor desse
cara precisa ser calculada. Não sei se posso confiar.
Tem alguma coisa fazendo tique-taque dentro da sala, e eu
desconfio que seja algo na caixa. Mas me distraio com os
detalhes de Bravo que agora posso ver, estando mais perto. Ele
gosta de joias. Seus dedos são repletos de anéis. As orelhas,
cheias de brincos brilhantes. E tem um colar comprido
pendurado em seu pescoço, o pingente na ponta imita um olho
com pupila vertical. E é verde também.
— Um dom como o seu… — Ele continua. — Vale muito.
Tenha cuidado. Porque Gancho tinha certa razão sobre seu rival.
Minha boca se retorce. Agora esse cara se acha no direito de
me ensinar alguma coisa?
— E eu não sei? — Minha pergunta sai num rosnado. — Até
arrancar a mão dele o desgraçado arrancou. E ainda empurrou
para um maldito animal comer.
A primeira vez que Gancho apareceu sem a mão, eu tinha
quinze anos e não sabia o que aquilo significava. Até que ele
contou sobre seus inimigos e o porquê nunca me levaria ao
circo. Peter Pan nunca mais foi o mesmo para mim.
— Então você o conhece. — Bravo me analisa atrás da
máscara.
— Não pessoalmente.
O homem concorda com a cabeça.
— Você tem sorte, rapaz. Muita sorte de que tenha sido eu a
te encontrar primeiro, a chegar até aqui, e não… Ele.
— O nome é amaldiçoado para que não diga? — É minha vez
de tentar rir da precaução dele, mas sou eu que estou nervoso.
— Ele é um mágico, menino. Nunca subestime um mágico. —
Bravo diz como se as paredes tivessem ouvidos. Uma pausa
segue e ele para pra pensar, antes de sussurrar: — Ele nunca
visitou a sua janela quando criança?
É o sussurro mais assombroso que já escutei.
Eu o encaro com olhos secos, sem piscar.
— Não.
Bravo suspira.
— Sorte a sua. Sorte a sua! — Ele repete dando uma volta
em torno da sala. Sua bengala faz cloc contra as tábuas, e eu
ainda posso ouvir o tique-taque insistente de algum lugar. — Ele
já foi mais piedoso antes, um longo tempo atrás. Mas nos dias
de hoje… Bom, esqueça. Não vim aqui para te assustar! Minha
entrega está feita. Foi o que consegui pegar do circo sem gerar
atenção, só para que saiba. E tem mais uma coisa…
Eu giro a tempo de flagrar sua mão pontuda sair de dentro do
bolso, trazendo algo pequeno. É um relógio dourado, com letras
maiúsculas no lugar dos números. Ele se pendura no ar por uma
corrente fina. E faz tique-taque sem parar.
— Isso também foi de Gancho. — Bravo revela. Me
impressiona que ainda funcione. — Estava com ele antes que o
encontrassem… Você sabe.
Meu pulso sanguíneo bate dentro do ouvido, uma concha
ecoando o mar ensurdecedor. Bravo deixa o relógio em cima da
TV de tubo e se vira como se não fosse nada para encaixar o
chapéu na cabeça. Estou vidrado na coisa dourada que brilha no
meio da mobília cinza.
— Por que só agora? — O desabafo que escorrega de mim.
Bravo solta um único riso, mesmo que não seja uma pergunta
feita para ter graça.
— Você é difícil de encontrar, criança. Custou todos os meus
esforços.
Quando desperto daquela sensação de sono acordado, Bravo
já está à caminho da porta, sem que eu precise ameaçá-lo de
novo com a faca ainda no chão.
Eu deveria agradecer, mas não quero. Ele ainda é do circo,
tudo nele me lembra o circo.
— Se tentar entrar nessa casa de novo, eu mato você.
A máscara de nariz comprido se vira sobre o ombro do paletó
de lantejoulas, os buracos de olhos vazios me encaram por um
longo momento.
— Sou uma oportunidade. Você tem um aliado agora, não
desperdice isso. — Ele parece muito sério para ser uma piada.
A porta abre e fecha num segundo, e Bravo desaparece
através dela. A trilha de purpurina no caminho me enoja, e quero
limpar toda aquela sujeira até eu me sentir limpo também. Mas
sou uma ilha estática que não sai do lugar.
O silêncio da sala zune em meus ouvidos, mas o tique-taque
me traz de volta à realidade. Meus passos até o relógio são
resistentes… vivo dentro de uma câmera lenta. Eu olho para o
relógio dourado, e ele olha de volta pra mim. Seus ponteiros não
são normais: se movem para trás, contam ao contrário. Pouco
me importa. Minha mão sobe devagar até ele.
Então, eu o toco.
Meu maior medo é assistir o momento da morte de Jaime
Gancho. Por mais que seja isso que eu precise ver. Talvez eu
esteja melhor no controle dessa habilidade louca, pois é outra
memória gravada no objeto que me aparece, como se fosse
selecionada por minha vontade.
Posso ver Gancho perfeitamente quando sua mão puxa o
relógio pela corrente para verificar as horas. Seus olhos são
nítidos e azuis, a cor da tempestade e da rigidez. Porque aquilo
permanece em sua mão, fora do bolso, posso ver o resto da
cena. Ele espera na poltrona de uma sala de cortinas fechadas,
conversando com outro homem. Eu reconheço tudo. Já estive
ali. Já morei ali.
Uma criança brota na porta do cômodo e corre até ele. Seus
dreads pretos ainda são curtos; seus olhos, bicolores — azul e
preto. Cá onde estou, sinto lágrimas quentes prestes a cair. O
menino para perto de Gancho, obediente com as mãos para
trás. Gancho não abraça; ele não é disso. Bagunça o topo do
cabelo da criança, depois faz uma brincadeira de cutucar a
ponta do nariz pequeno e do queixo imaturo. O menino abre um
sorriso feliz, e eu espremo meus olhos com a visão. Naquela
época, Gancho ainda tinha as duas mãos.
Ele nunca me chamou de filho, e eu nunca o chamei de pai,
por mais que quisesse. Era sempre Garoto, Criança — Moleque
quando ele se irritava. E eu o tratava pelo nome, tão impessoal
quanto ele queria que fosse. Mas era tudo que eu tinha, e doeu
perder. Ainda dói.
Ainda dói.
Capítulo 3
O segredo de Wendy

Vestir uma camisa social que levo duas tentativas para


abotoar do jeito certo faz parte do meu novo disfarce. Jota R.
Júnior é minha mais nova identidade há 2 meses: um jornalista
novato, colunista do ilustre Folha de Bangu e admirador inegável
da arte circense. Meu sistema ainda não digere bem a última
parte. Repito o texto em minha cabeça o quanto posso. Minto
para mim até que se torne verdade.
Jornalista. Colunista. Admirador.
A camisa não é algo que eu costumo ter no meu armário,
peguei de Cristóvão. Largado na cama, Cris me assiste
enquanto me arrumo no espelho atrás da porta do quarto dele,
com as roupas dele. É a pessoa que mais tem motivos para me
criticar. Mas quando decide falar, ele escolhe dizer:
— Você está se arriscando demais.
É a única coisa que não quero escutar dele.
— O que era mesmo que você dizia? “A vida, para ser vivida,
exige riscos”?
— Tsss! Isso foi sobre curtir uma noite de bebedeira e pular o
muro da cavalaria do Palácio. Não sobre ficar cutucando um
monte de gente sobre a morte do seu… pai. — Ele diz a última
palavra muito mais baixa. — Você já parou para pensar que sair
perguntando sobre isso para Nova Eldorado inteira pode chamar
a atenção da polícia? Da Guarda Real? Ou pior! Do Circo.
A sugestão me afeta, mas não demonstro. Não contei para
Cris que, no mês passado, aquele cara bizarro da Terra do
Nunca invadiu a casa dele para falar comigo. Mas, por si só, ele
já parece adivinhar até onde o Circo é capaz de ir.
— Polícia. — Repito com desprezo. — Eles nem querem
saber disso mais. Arquivaram o caso como se não fosse nada.
Além do mais, vou completar 2 meses com esse disfarce, e até
agora nada aconteceu. E não vai acontecer.
— Exato! Nada aconteceu. Você não descobriu nada! Por que
acha que vai ser logo agora indo atrás dessa…
— Wendy.
— É, Wendy. Tanto faz. Vai acabar com nada da mesma
forma. — Cris rola na cama bagunçada e apoia a cabeça na
palma da mão, de cotovelo dobrado. — Não é muito mais fácil
só rastrear aqueles objetos do Gancho na caixa com a sua
mágica?
— Já disse que não tem nada demais na caixa. — Suspiro.
Eu nem expliquei para ele de onde a caixa veio. — Já olhei um
por um.
— Tenta de novo.
— Não adianta.
— Mas você não tentou.
— Cris. — Digo seu nome da mesma forma que diria “Pare”, e
ele expira pesado. — Eu preciso ouvir o que ela tem pra dizer. E
você precisa entender.
No silêncio, prendo o cabelo em um nó enquanto ele me olha
pelo reflexo. Finjo que não vejo, concentrado na imagem, nos
dreads que há meses pensei em cortar. Os mantive pela
recordação: foi Gancho quem me ensinou a tecê-los, e desfazer
deles me pareceu como cortar um pedaço da história. Então
continuei tecendo para sempre me lembrar.
Assim que termino rápido, puxo a porta que sustenta o
espelho, desfazendo a vista de Cris, e saio sem uma despedida.
No caminho do portão, tapo o alto do rosto com a mão para
tentar enxergar o mínimo sob o sol forte da manhã. A tranca já
está aberta, então deixo como está quando piso na rua, a porta
de ferro apenas encostada. O horário marcado está fresco na
minha mente, repetido inúmeras vezes pela voz na minha
cabeça como um estímulo apara apertar mais o passo.
Mas, antes da primeira esquina, uma sensação estranha às
minhas costas desfaz minha concentração e diminui meu ritmo.
Sei reconhecer quando estou sendo seguido, então eu paro de
repente e me viro, já pronto para o flagrante.
Na rua ainda pouco movimentada, uma miniatura de gente
freia atrás de mim e solta um gritinho ao mesmo tempo que pula
para trás, evitando de trombar. Duas mãos pequenas cobrem a
boca, tarde demais para impedir o som de sair.
— O que pensa que está fazendo, Ágata? — Cruzo os braços
e verifico o longo caminho que ela percorreu me seguindo até ali
sem ser percebida. Ok… Talvez eu tenha ensinado alguma coisa
nessa vida a ela.
A menina para por dois segundos, congelada com olhos
enormes. Então segura as mãos atrás do corpo, se balançando
de um lado para o outro.
— Indo com você. — Ela planta no rosto inocente o mesmo
sorriso de quando quer pedir biscoito doce.
— E você sabe pra onde tô indo, espertinha? — rebato. Ela
abre a boca, mas eu a corto antes que tente mais alguma
jogada. — Sabendo ou não, a resposta é: nem pensar.
Ela ainda clama uma porção de “Por favorzinho!”, mas
termina em outro gritinho quando a tiro do chão e a carrego
pendurada debaixo do braço pelo mesmo caminho que
atravessamos até ali.
— Não posso me atrasar hoje. Outro dia te levo pra brincar na
praça, beleza? — Tento negociar por entre seus protestos
agudos.
De volta à beira do portão, é uma competição e tanto para me
fazer ser ouvido por cima dela. Eu levanto a voz, gritando para
que Cristóvão venha buscar a menina. A confusão se arrasta até
Cris aparecer e jogar Ágata sobre o ombro, carregando ela para
dentro com as perninhas se debatendo. Sozinho, enfim, suspiro
cansado. Dessa vez, passo a tranca de verdade para impedir de
acontecer de novo.
Os raios do sol estão mais altos e parecem me cutucar,
provocando um “você vai se atrasar”, e eu pego o caminho pela
segunda vez. Passos apressados não resolvem mais, então eu
esqueço o esforço de não estragar a camisa passada e corro.
Minha melhor alternativa é pegar atalho pelas vielas do morro
de uma comunidade próxima, o caminho mais curto para a ponte
entre a zona norte e a zona sul. Uma das vielas é bem
conhecida, chamam até pelo nome próprio: o Beco do Migué. É
onde quem sabe manipular magia oferece serviços mágicos a
um preço baixo; a uma qualidade duvidosa também, mas muita
gente vem mesmo procurar. Gancho dizia que me botava pra ser
criado em casa de conhecidos para ter quem ficasse de olho em
mim, assim eu não mexia com isso. Então conheço tudo só de
vista.
Por entre a via estreita e irregular, atravesso o mais rápido
que posso, desviando do trajeto lotado de bancas de
ambulantes e cavaletes de propaganda. Alguns comerciantes
gritam promoções a plenos pulmões, enquanto outros
cochicham pelos cantos, tentando conquistar clientes na base
da persuasão. Passo corrido por eles, ignorando qualquer
chamado.
Até que me vejo pisando num amontoado de tapetes e
toalhas estendidas pelo chão, expondo artefatos que prometem
ser mágicos, ungidos pela energia da aurora. Preciso de um
equilíbrio muito bem treinado para não pisar nem cair por cima
de nada. A poucos metros, vejo o chão de pedra aparecer de
novo e praticamente salto para ele, aliviado pelo solo firme. Mas
tão distraído com o que acontece embaixo, não presto atenção
no par de braços de atravessa em cima, bem na minha frente.
O trombo é feio, provocando uma confusão de protestos
descontentes e uma cacofonia de metal batendo no chão. Leva
um instante pra me orientar de novo, até me dar conta que são
moedas caindo e que me meti bem no meio de um negócio
sendo fechado. Um monte de gente começa a catar a prata do
chão, não sei se para ajudar ou não. Mas me vejo na obrigação
de parar e colaborar também, resgatando junto algumas
esculturas entalhadas de pedra sabão que tropecei na bagunça.
— Desculpa aí, foi mal. Se tiver quebrado… eu volto depois e
arrumo, tá? — Tento soar tão sincero quanto posso, carregando
desajeitado as coisas que derrubei.
Despejo tudo de volta sobre a toalha roxa de desenhos
dourados que já não está mais tão esticada assim, com as
moedas todas juntas também, espanando as mãos para garantir
que não fiquei com nada. Então me ergo de volta, me virando
pra continuar por onde ia. Mas é claro que não seria tão fácil
assim.
— Ei! Ei, menino! — Para a minha surpresa, não é um
comerciante zangado xingando, mas uma voz feminina
chamando. Até me faz duvidar se é comigo mesmo.
Por cima do ombro, vejo quem parece ser a dona da toalha.
Ela usa um vestido rodado longo que parece de época, para não
chamar de velho, cheio de camadas e retalhos geométricos em
rosa, azul e amarelo. Tem um corte chanel curvado ao redor das
orelhas e uma gota pintada em seu rosto carregado de
maquiagem, como uma lágrima que nunca vai embora. Quando
se abaixa para pegar as moedas recolhidas e guarda tudo num
saquinho enfiado pelo decote, percebo que, no alto de sua
cabeça, o que parecia uma tiara, na verdade é uma máscara
que descansa da cara. Já vi uma daquelas, entre alguns artistas
de teatro de rua.
— Vem cá! — Ela gesticula com um movimento das mangas
longas do vestido, dizendo para me aproximar. — Eu não te
conheço de algum lugar?
A mudança brusca do assunto das moedas e seus itens direto
para mim me assusta, e me vejo negando com a cabeça e
dando passos para trás antes de sequer tentar reconhecer seu
rosto.
— Não, não. Deve tá me confundindo…
— Pois venha cá! Quero ver mais de perto! — Ela insiste.
A mulher é muito mais habilidosa em desviar do caminho do
que eu e me alcança rápido demais. Próxima assim, tão cara a
cara, ela abaixa o olhar, mostrando o que realmente quer dizer
com “ver mais de perto”. Ela pega minha mão com suas unhas
pintadas uma de cada cor e começa a investigar as linhas da
minha palma. De primeira, penso que esteja procurando por um
rabisco apagado, talvez rastros de seu endereço, o que
explicaria como fui parar ali. Mas ela ergue o rosto como se
tivesse visto algo muito diferente. Seus longos cílios quase se
encontram, olhos estreitos e desconfiados.
— Você também mexe com magia, é? Nunca vi você por
aqui…
Meu pulso acelerado bate na garganta.
— Não, não tem magia nenhuma. — Tento puxar a mão de
volta, mas ela estreita o aperto.
Esticando a palma da minha mão bem aberta, ela traça as
linhas com a ponta da unha pintada. Ela parece saber o que faz,
concentrada em ver mais do que olhos normais; também parece
experiente nisso, afinal, as boas moedas que ganhou devem ter
sido recompensa de um excelente serviço. Metade de mim ainda
tenta escapar. A outra metade quer ficar para ver o que vai
acontecer.
— Você… — Há algo de reconhecimento no tom dela. —
Pode ler o passado.
— O quê? Não! Eu não…
O aperto dela se afrouxa, mas não me deixa ir. Está
visivelmente interessada.
— Um tipo de clarividência? — Ela me olha, mas enxerga
através de mim, distante. — Onde conseguiu? Como estudou
esse tipo de manipulação?
Sacudo a cabeça, afastando o enxame de dúvidas.
— Não sei como se chama isso. Só sei que é assim. — Eu
desisto de convencê-la do contrário. Só preciso ir embora daqui.
— Não trabalho com isso, então fica tranquila que não vim fazer
concorrência. Tô só de passagem, valeu?
Ela ainda parece perdida nos próprios pensamentos,
encaixando peças dentro da própria cabeça. Aproveito sua
distração para me soltar e começar a me afastar.
— Eu só vi uma habilidade dessas uma vez. Mas faz bastante
tempo. E… Não. Não é possível…
A voz dela é bem baixa em comparação com todo o som ao
redor, e não tenho mesmo tempo, nem muito interesse real, para
insistir para que conte melhor essa história. Deixo com seu olhar
distante e falando sozinha para dar o fora daqui.
Dou exatos dois passos à frente, até ser interrompido de
novo, com a mulher me seguindo, logo atrás.
— Me deixe ver de novo. Eu posso… Fazer uma leitura do
seu futuro, para compensar. Quem sabe não vejo algo
interessante.
Meus pés desaceleram sozinhos e giram meu corpo de volta
para onde estava antes.
— Mas não foi o que acabou de fazer? — Pergunto
desconfiado.
— Sobre ver o seu dom? Ah, não! Eu estava olhando para as
linhas do seu presente. Posso fazer um pouco mais… — Ela
estica o pescoço para frente. — Posso ler o seu futuro. Contar o
que virá a ser.
Eu abro a boca, mas não sei bem o que dizer. Fecho de novo
para engolir e umedecer a garganta subitamente seca.
— Não temos o dia todo, não é? — Ela cobra impaciente e
flexiona os dedos da mão aberta duas vezes, chamando.
Minha própria mão se ergue automaticamente, voltando ao
alcance da mulher. Existe algo de reconfortante em lidar com
outra pessoa com esse nível de magia, por isso me rendo.
Nunca pude conviver com alguém semelhante.
A palma dela esquenta as costas da minha, um aperto mais
cuidadoso dessa vez. Ela toma um fôlego profundo pelo nariz e
solta o ar devagar pela boca. Ela se concentra nas linhas da
minha mão com um silêncio imóvel. A mulher expressiva e cheia
de gestos de repente se torna uma estátua. E seus olhos… Uma
névoa toma conta deles. Ficam brancos, opacos. Ao mesmo
tempo está e não está aqui. No agora.
— Você esteve esperando por algo. — Seu comentário
repentino me alarma.
Eu abro e fecho a boca várias vezes, engasgado com as
palavras.
— Eu não espero mais nada. Não estive esperando nada há
muito tempo. — Minha resposta sai com certo orgulho ferido.
Leva um tempo para a mulher reagir de novo, como se vendo
mais coisas. Seu rosto se torna um pouco mais tenso.
— Ele virá. Exatamente o que você quer. — Sua voz assume
um tom monótono e distante. Ela parece estar falando de muito
longe, sussurrando. Eu preciso me inclinar para ouvir com todo o
barulho ao redor. — Quão tolo é por desejar o que não deveria,
mas o arrependimento é um remédio que chega atrasado. Mais
cedo do que espera… Por baixo de sua porta… Para dentro de
sua casa… Você será encontrado. Esteja atento e preparado
para tomar a decisão certa. Sua escolha será uma verdadeira
chave entre glória e ruína. E certamente… grandioso.
Eu estou encarando seus olhos esbranquiçados em silêncio,
sem reação. Até que a mulher volta a piscar, seus cílios pesados
batendo repetidas vezes, e seus olhos retomam a cor. A névoa é
soprada, levando a versão imperturbável da mulher. Ela mantém
o olhar sobre a palma da minha mão, ainda investigando o que
quer que ela acha que eu ainda esteja escondendo. Mas seu
aperto se afrouxou, então aproveito para puxar e me soltar.
Acordada, a mulher ergue a cabeça na minha direção.
— Pela sua cara, foi uma previsão assustadora. Eu disse que
alguém vai morrer? — ela pergunta humorada.
Agora quem está piscando confuso sou eu.
— Você… Acabou de falar.
— Ah! Sim. Mas eu não lembro. — Ela solta uma gargalhada
casual, como se ouvisse uma piada que gostasse. — As
previsões são feitas inconscientes, como num sonho. Um
segundo depois… Já esqueci! Acredito que essa é a maneira
divina dos Deuses de me impedir de ser uma fofoqueira. Caso
contrário, seria poder demais saber o destino e os segredos
futuros de todas as pessoas, não?
Ela se ergue e gargalha de novo, me convidando a rir junto.
Tudo que consigo formar é uma careta desconfortável.
— É… — resmungo afrouxando o colarinho da camisa
apertando no pescoço.
— Isso começou depois de um tempo. Magias fortes como as
nossas… Elas cobram um preço certa hora. Só, por favor, seja
mais esperto do que eu e tome cuidado. — A mulher ajusta a
cintura do vestido, distraída. — Esse é um conselho que eu
gostaria de ter escutado antes.
Ela diz o mesmo que Gancho dizia, assim que comecei a
treinar minha habilidade. Existem efeitos colaterais, ele próprio
me alertou. Eu já nem considerava uma possibilidade real,
depois de todo esse tempo.
— Bem… Eu… Obrigado — digo bruscamente, piscando para
o chão.
Mas minhas últimas palavras são engolidas pela comoção
que se ergue no beco. As vozes altas se transformam numa
baderna ainda maior, as pessoas por toda a longa viela
começam a correr, e as tendas e bancas improvisadas começam
a desaparecer, sendo puxadas junto com o fluxo. Eu demoro a
conectar as palavras gritadas umas por cima das outras, até
perceber que elas formam um coro de “A guarda!”, “O rapa!”,
“Os ratos!”. Por cima da confusão de cabeças, tenho uma visão
dos cavalos da guarda real galopando pela abertura do beco,
enquanto outros guardas a pé passam confiscando toda a
mercadoria que veem pela frente. Desde que Nova Eldorado
teve um passado ruim marcado por objetos mágicos
sequestrando a energia da aurora, esse tipo de prática vem
sendo duramente reprimido.
É melhor que eu corra, senão vai me custar muito tempo até
explicar que não estou envolvido com nada disso. Quando me
viro, nem tenho necessidade de me despedir da vidente que
cismou comigo. Ela evaporou junto com sua toalha cheia de
tranqueiras. O último vestígio que vejo dela é da barra do
vestido de retalhos saltando a escadinha íngreme de concreto
cru que leva para cima do morro, disparada feito um tiro. A
máscara de teatro é puxada para o seu rosto, cobrindo-o, até
que a mulher finalmente pula para dentro de uma porta de
alumínio de um dos casebres lá no alto e desaparece. A porta
bate com força e não abre mais.
Obrigado a descartar o caminho do atalho, que na verdade só
me tomou mais tempo, me esgueiro no caminho contrário,
deixando toda a bagunça do morro e da guarda para trás.
Discreto e pelas sombras, como faço de melhor, sem que
ninguém me veja.

Estou atrasado. Considerando o trabalho exaustivo que tive
para conseguir um horário de entrevista com Wendy Amado,
isso é muito grave. Tudo que posso fazer é correr e torcer para
ela ainda querer me receber.
Nova Eldorado é uma cidade costeira, mas só a área dos
ricos ao norte tem cheiro de mar, privilegiados pelo porto e pelas
praias. O sal impregnado no ar me faz lembrar que cruzei uma
importante linha, que aquele não é mais o meu mundo. Na frente
do casarão sustentado por colunas decorativas e paredes
limpas, eu paro recuperando o fôlego. Me livro das gotinhas de
suor da testa, solto o ar pela boca, ensaio um sorriso e toco a
campainha.
Dá para ouvir passos correndo do lado de dentro. Uma força
puxa a alavanca da maçaneta e a porta branca escorrega para
dentro. Porém, não vejo ninguém. Meu olhar desce ao mesmo
tempo que ouço um barulho: um latido. Tem um cachorro de
raça parado no vestíbulo, transpira através de sua língua
enorme e me vigia com olhos pidões. Leva alguns segundos até
eu me dar conta que o cachorro realmente atendeu a porta.
Alguém passa rápido pelos fundos do corredor, mas então
percebe a porta aberta e volta.
— Naná! — Uma voz feminina chama e se aproxima.
A dona dela é mais baixa do que eu, apesar do cabelo cheio e
volumoso, feito de cachos miúdos, lhe dar alguns centímetros a
mais. É castanho claro, e combina com sua pele marrom. Seus
lábios são naturalmente marcados, deixam a sensação de
guardar um segredo. Wendy Amado é mesmo tão bonita quanto
ouvi falar.
— Oh! Você…
— Estive na escola em que você dá aulas de história. —
Confirmo a lembrança que adivinho passar pela cabeça dela. —
Meu nome é Jota R. Tudo bem se não se lembrar.
Wendy sorri educada e faz um carinho em Naná, ordenando
que o cachorro vá para o quintal. Ela me estende a mão, um
cumprimento inocente e cordial. Encaro a ponta de seu braço
estendido e considero se deveria. Ela não tem culpa de não
saber. E eu não tenho culpa de não poder recusar. Pegaria mal.
Minha mão toca a dela num aperto breve. É o suficiente para
que eu veja a memória mais recente que rola em sua mente.
Wendy tem uma filha. A lembrança parece ter acontecido
minutos atrás, no andar de cima da casa. Ela aparece com a
mesma roupa de agora, jeans e suéter, e se senta na beira de
uma cama. Seu colo é feito de travesseiro por uma menina mais
nova que Ágata. Enquanto a criança repousa em seu cochilo da
tarde, Wendy lê uma história. Um conto sobre piratas e fadas.
Pelo tempo que deixou o circo e pelo tamanho da criança, não
parece ter nascido dela. Adotada então, ou enteada. Mas a
memória entrega como Wendy sente o mesmo forte afeto que
talvez sentiria por um filho de sangue.
O sentimento que tenho com isso mexe comigo, de uma
forma que não esperava. Estive há tanto tempo sem mãe, que
às vezes até esqueço de como é sentir falta de uma. A única
coisa que sei sobre a minha é que ela morreu por complicações
do parto. Nada mais.
A memória se apaga e sou deixado encarando o rosto em
forma de coração de Wendy ao desfazer do aperto.
— Que olhos curiosos você tem! Sabe… Você bem que me
lembra alguém. — Wendy analisa, batendo o indicador no
queixo. Sei que está olhando diretamente para o meu olho
direito, azul como o de Gancho.
Abaixo a cabeça rápido, fingindo ter algo no sapato.
— Deve ser impressão. Pode ser por conta de algum jornal
também — respondo entrando no papel que preciso interpretar.
— É verdade. O Jornal — ela diz, mas não soa muito
convencida.
Deixamos o tópico de lado para entrar na casa. Nos sentamos
em poltronas, que mais parecem tronos, ao redor de uma mesa
baixa de vidro. É a primeira vez que vejo um ar condicionado e
uma TV tão grande e fina na vida. Sinto meus sapatos
emprestados sujos demais em cima do tapete de pelos.
— Sobre o que mesmo será essa matéria? — Wendy
pergunta, servindo uma bebida fria de um jarro em dois copos.
Eu limpo a garganta com um tossido, desconcertado. Queria
ter feito a entrevista da porta mesmo. Como não posso voltar
atrás, tiro o gravador de voz do bolso e aperto a tecla vermelha
de gravar.
— Sobre… Figuras célebres de Nova Eldorado. — Tenho
calma para não tropeçar em nenhuma palavra decorada. —
Será construído um memorial para as personalidades mais
marcantes.
Wendy dá uma risada sem graça.
— Personalidade marcante — ela repete. — Isso é um pouco
demais, não?
— Não para a ex-estrela da Terra do Nunca. Eles te
chamavam de O Pássaro Wendy, não é?
O sorriso some do rosto de Wendy. É sugado por uma
máscara congelada que não sei ler, mas me diz que ela não está
mais se divertindo.
Devagar, Wendy olha por trás da poltrona, para a porta dupla
que dá acesso às escadas. Sigo seu olhar e percebo ela checar
se tem alguém por perto, escutando. Quando se vira de volta,
está muito mais séria.
— Se você veio até a minha casa falar sobre o circo, eu
sugiro que se retire. — Ela mantém a cordialidade, mas soa
severa.
Eu engulo.
— Não vou gastar muito do seu tempo. Só estou atrás de
alguns relatos. Fiz o mesmo com outros ex-membros da trupe
do circo também. Senhor Marujo, Princesa Tigrinha… Você deve
conhecê-los.
Wendy me dá uma longa e silenciosa olhada.
— E o que você quer saber? — ela pergunta. — Algo me diz
que não vai ser sobre a rotina de trabalho que eu tinha. Ninguém
quer saber sobre esses detalhes entediantes, não é?
Ela já percebeu onde quero chegar. Preciso agir mais rápido.
— Bom, todos sentiram sua falta quando deixou a Terra do
Nunca, há oito meses. E na mesma época que você saiu, o circo
também passava por outra… Situação.
Tenho a impressão de ver desaparecer toda a cor do rosto de
Wendy.
— Prefiro não discutir sobre isso. — Sua voz sai tensa.
— Mas é verdade que o episódio de morte de Jaime Gancho
coincide com a sua partida do circo?
— Isso não está para discussão — ela diz entredentes, se
levantando.
Eu pisco repetidas vezes, olhando-a de baixo.
De todos os entrevistados, nenhum reagiu dessa forma.
Senhor Marujo havia sido o próprio assistente de palco de
Gancho, enquanto Princesa Tigrinha era a personagem
interpretada por Lilian, a mulher que ficava amarrada na mira
enquanto as facas eram atiradas. Cada um teve sua própria
reação ao tocar no nome de Gancho. Senhor Marujo guardava
uma mágoa seca e silenciosa, enquanto Tigrinha desatou a
chorar lágrimas infinitas. Nenhum deles pareceu um gato
escaldado, como Wendy.
— Wendy, por favor. Eu não quero ser invasivo, não é isso.
Eu só quero ouvir a sua história.
— Eu não tenho nenhuma história para contar. — Ela solta
um único riso nervoso, rindo de si mesma. — Que ironia.
— Nem algum relato sobre essa época que viveu?
— Qualquer relato sobre isso, você pode ler nos jornais da
época. Eu não tenho nada a acrescentar. — Wendy cruza os
braços e me dá as costas para ir até a janela.
A sala cai em completo silêncio. Provavelmente ela espera
que eu saia e vá embora de uma vez. Mas não consigo me
mover sabendo que ela é a pessoa que pode me dar respostas.
Olho para baixo, para o gravador em minhas mãos, e vejo os
números do tempo correndo, memorizando o silêncio.
— Mas você concorda com o que os jornais disseram? —
Decido arriscar. — Concorda que foi uma morte por auto
envenenamento? Ou pode ter sido… Causado por alguém?
Wendy se vira de olhos arregalados, seus dedos apertam os
próprios braços.
— Por que você está me perguntando tudo isso?! — Sua voz
cresce e também está trêmula. — Foi Peter quem te mandou
aqui? Para ver o que eu falaria?!
Aperto o gravador mais forte. O nome me choca, mesmo que
não devesse, porque não é a primeira vez.
— Peter? O mágico? — Lembro de Bravo há um mês. O
homem também parecia acreditar em coisas ruins sobre ele. —
Por que acredita nisso?
Agora é ela quem parece ter levado um susto.
— Olha… — Wendy massageia a própria testa. — Isso foi um
erro. Eu tenho que pedir para que saia da minha casa, por favor.
— Me dê apenas mais…
Tento dizer, mas a pequena criança que vi na memória de
Wendy chega na porta, arrastando um urso de pelúcia. Ela
mastiga uma chupeta enquanto olha para a mãe e para mim, o
estranho na sala. Wendy corre e a pega pelo colo. Sobra uma
estreita passagem para eu passar e deixá-la em paz.
Faço o que ela quer. A última coisa que preciso é de uma
confusão que acabe arruinando o meu disfarce. Já passei dos
limites para aquele dia.
Desligo o gravador calado e sigo para o corredor que me
levará a porta. Enquanto passo pelo olhar julgador de Wendy,
penso duas vezes. Até três. Então paro e faço o que uma
pessoa moral não deveria fazer, mas esse não é quem eu sou.
Eu a toco.
A manga de seu suéter tem uma abertura no ombro, um corte
do próprio modelo. Finjo dar a ela um toque de perdão e
educação.
— Me desculpe por qualquer coisa — digo da melhor forma,
enquanto, com a mão em seu ombro, arranco a memória que ela
esteve me escondendo.
No fundo, eu espero ver o cadáver de Gancho. Espero ver
sangue, armas, veneno. Qualquer imagem que diga que Wendy
viu a morte de meu pai e sabe de tudo. Mas não é isso que ela
me dá.
A primeira memória que ela tem depois de discutirmos sobre
a Terra do Nunca é de um rapaz. Wendy memorizou
perfeitamente seu rosto simétrico. A pele de tom terroso dele e
suas sardas de sol. O cabelo curto ondulado em tons dourados
de castanho. Eles estão no escuro de uma tenda à noite. O
rapaz veste um casaco exótico, como toda figura do circo, mas o
dele é feito de folhas verdes de verão. Uma pena vermelha está
espetada atrás de uma de suas orelhas, que são mais pontudas.
A visão que Wendy tem sobre ele é tão romântica que quase
posso me apaixonar junto.
Até que ouço sirenes tocando do lado de fora. Luzes
vermelhas e azuis giram do outro lado da lona. Essa foi aquela
noite. Agora entendo porque Wendy está pensando nela.
Vejo o rapaz avançar e tampar sua boca com uma das mãos.
Ele segura o corpo pequeno de Wendy no fundo da tenda, os
escondendo. A garota não protesta, mas está de olhos
arregalados.
Antes que eu solte Wendy e deixe sua casa, vejo a mão que
cala sua boca escapar por um instante. Então ouço a única
coisa que ela diz durante a memória:
“Peter… O que você fez?”.

◆◆◆

Quando volto para casa, já é noite. Gastei todo o tempo até


ali andando sem rumo, perturbado pela imagem da memória de
Wendy.
Um bilhete na geladeira me diz que Cris saiu para levar Ágata
até a casa dos pais, que finalmente estão lá depois de tanto
tempo. É até melhor que não estejam em casa para não
perceberem a bagunça que estou.
No canto da sala, tenho um baú de palha, o estreito espaço
quadrado onde guardo minhas poucas posses. De um lado, uma
pilha modesta de roupas dobradas. Do outro, um amontoado de
folhas de jornais. Uma coleção reunida por anos, cada edição
com um fator em comum: manchetes e notícias antigas sobre o
circo.
Eu desenterro o monte pesado de jornais do baú, forçando
minha mente a formular um plano. Despejo as folhas
desordenadas em cima do sofá onde durmo e volto para fechar
o baú. Mas paro de pé, segurando a tampa e olhando para
dentro do cesto de palha. No fundo, esquecida com livros velhos
e antigos papéis rabiscados, uma única clave de malabares me
encara, sem brilho. Eu engulo. Parece ter sido ontem quando
Gancho me fez jogar as outras fora e eu guardei essa
escondida, por algum apego sentimental idiota.
A tampa do baú continua aberta enquanto me agacho,
esticando a mão para a clave. Meus dedos raspam na madeira
lisa, sem agarrar, apenas tocando. É o suficiente para que as
memórias do objeto sejam sopradas, contando uma velha
história.
Eu tinha 10 anos e era ingênuo ao ponto de mostrar ao meu
pai o que podia fazer com os malabares. Em sua visita à casa
da vez, demonstrei a ele o resultado de todo o meu treino. O
sorriso pequeno e orgulhoso em meu rosto chega a dar pena.
Bastou dois giros com as claves no ar, e Gancho esbravejou
meu nome como um trovão. Tudo desabou com o susto, menos
uma das claves; essa única clave. Eu fiquei segurando ela com
uma mão enquanto recebia o sermão de um Gancho enfurecido.
Ele já estava farto de ser importunado pela minha insistência de
ser levado ao circo, desde que fiquei obcecado por Peter Pan e
tudo o que ele representava. Desde que comecei a sonhar em
conhecê-lo e em poder ser como ele. Em poder estar com ele.
“Você não quer ser como aquele peste que só serve para
importunar e se colocar no meu caminho. Deixe de ser tolo!”
Gancho resmungou no fim.
Empurro o malabares para debaixo da pilha de roupas, me
desfazendo da memória. Me concentro de volta ao plano que
preciso elaborar. Sento no chão, ao pé do sofá e da minha
coleção completa de jornais. Com o gravador em mão, as vozes
dos ex-membros da trupe do circo se repetem inúmeras vezes.
Repasso meses de depoimentos enquanto procuro por algo que
não tenha visto antes nos jornais. Procuro por cada vírgula que
conte um pouco mais sobre Peter Pan.
Por anos, fiz recortes dedicados apenas a ele. Guardei um
amontoado de palavras ao redor de seu nome destacado,
rabiscado, circulado. Já li tudo mais do que gosto de admitir.
Mesmo sem querer, mesmo proibido, o garoto com quem sonhei
esteve sempre presente, de alguma forma. Seja pelas notícias
ou pelas histórias de meu pai.
Repito o que fiz por anos. Mas parece não existir quase nada
a não ser propagandas sensacionalistas do tipo “Todos crescem,
exceto um!” e “O incrível mágico de 100 anos!”. Tento me
lembrar da memória de Wendy. Nela, ele mal parece ter dezoito
anos, quanto mais cem. Pelo visto, esse mágico construiu a vida
em cima de mentiras. Algo em comum nós temos.
Estou concentrado debaixo da luz quente do abajur, a única
luz acesa. A iluminação da rua vaza por baixo da porta,
formando uma fresta fina na entrada escura. Por isso, eu vejo
quando algo perturba meu sossego. É alguma coisa na porta.
Tenho medo do que aquilo possa significar. Tento pensar que
pode ser Ágata aprontando. Mas averiguo a porta e não tem
ninguém. O portão a 10 metros está aberto, balançando de lá
pra cá com a brisa, sem sinal de quem possa ter aberto. Mas
existe algo, no chão. Um envelope, mas não parece se tratar de
uma cobrança. Ele é verde cintilante. O selo tem o desenho de
uma folha, um símbolo que não reconheço. Bato o portão e
entro de volta para enxergar melhor debaixo do abajur.
Puxo o conteúdo do envelope e um pedaço de papel mais
leve escorrega de dentro e cai flutuando. Mas não dou atenção a
ele. Meus olhos estão pregados no papel cartão gravado com
letras cursivas.
O recado nele é breve:
“Convite especial e exclusivo
Para uma viagem única à Terra do Nunca.
Aos curiosos em descobrir nossos segredos,
Abrimos nossas tendas.
Segunda à direita, e sempre em frente.”

E assinado, como uma provocação:


— Pan
Eu atiro o cartão com o envelope na parede, um som irritado
rompendo pela garganta. Mas a leveza do papel cria resistência
com o ar, e o convite cai devagar, flutuando de um lado para o
outro, até pousar com calma no chão. Um tremor raivoso cresce
de dentro de mim, e fico encarando o maldito cartão, apertando
as unhas nas palmas das mãos.
Algum dos entrevistados deve ter me entregado, o que não
impede de fazer com que a culpa seja toda minha. Deixei que
muitas pessoas tivessem ideia do que estou atrás, mesmo com
toda a droga de disfarce. Agora, o cara que é meu maior
suspeito não só sabe quem sou, mas onde eu vivo.
Tenho uma porção de vozes dentro da cabeça sussurrando
para que eu vá embora. Que não fique mais aqui. Foi assim que
sempre fiz, pulando de uma casa para a outra sem deixar
pegadas. Sem rastros de que um dia existi ali.
Eu caio sentado no sofá. As folhas amassadas pelo peso
causam ruído. Meu rosto afunda entre as mãos. No silêncio
perturbador da sala, eu aperto a testa entre as palmas e encaro
o chão como se pudesse desaparecer através dele.
Mas não. Não agora. Preciso concluir aquilo antes que seja
tarde, que tentem me calar. Custe o que custar.
Eu me agacho entre as pernas e apanho o cartão, um
passaporte gratuito para o circo. Uma cortesia com gosto
amargo. Minha cabeça imagina pele e sangue no lugar do
branco e vermelho no papel. Ir ao exato lugar onde sei que meu
pai foi morto, e ainda assistir ao grandioso espetáculo do cara
que o matou: esse é o desafio. Posso sentir o medo se
transformar em ácido no meu estômago. Me faz querer vomitar.
Mas Peter Pan me conhece muito menos se pensa que eu
vou recusar.
Capítulo 4
Pela visão de um olho só

Seria tão mais fácil se eu simplesmente tocasse o convite e


conseguisse rastejar pelas memórias de Peter Pan; encontrar
tudo o que ele fez, e como fez. Ter tudo para incriminá-lo a um
toque de distância. Mas é só um pedaço de papel brilhante no
fim das contas. Tento reviver repetidamente suas memórias,
mas não alcanço muito longe. Parece que esteve guardado há
muito tempo, deixado de lado no escuro. O que vem depois são
mãos enluvadas, atravessando a noite para deixar o convite
debaixo da porta.
Não ter controle sobre o que posso ou não ver só me mostra
como preciso me preparar melhor. Seguro a parte de mim que é
idiota e impulsiva para não acabar indo ao circo logo no dia
seguinte. Antes, preciso ter a arma aprimorada que vai fazer
Peter Pan se arrepender de sequer ter pensado em me enviar o
convite.
Levo três dias para isso.
Passo o tempo todo entre dezenas de objetos e entulhos.
Coisas feitas de plástico, metal, madeira, minério, vidro… Tudo
se acumula em pilhas ao meu redor, num verdadeiro castelo de
foco e ambição. Meu estômago só tem apetite para esse tipo de
fome. Eu toco cada objeto, cada peça, cada minúsculo pedaço
de matéria que possa guardar uma história. Treino o controle
sobre minha habilidade como treinaria um cão de caça.
Tenho que lidar com Cristóvão tentando me impedir o tempo
todo. E com Ágata esperneando por atenção. Às vezes, me
tranco no banheiro; às vezes, na lavanderia, que mal tem
espaço, e preciso me sentar em cima da lavadora velha.
Quando me sinto tonto com tantas memórias que não são
minhas, decido que é hora de descansar 5 minutos antes de ir
para o próximo. Mas só paro de fato quando começo a ter
apagões de cansaço. Um sinal precoce de exaustão, não um
efeito colateral para me preocupar. Continuo normal. Não passa
de cansaço.
No fim do terceiro dia, me arrasto até a porta do quarto de
Cris. Fico pela entrada mesmo, pendurado na maçaneta bamba.
Cristóvão está com o telefone de fio na orelha sem dizer nada.
Não sei se alguém desligou na cara dele ou se nem chegou a
atender. Assim que me percebe, Cris devolve o telefone pro
gancho e não me olha de cara boa. Ele já sabe que vou insistir
por uma roupa decente de seu armário para usar no dia
seguinte, e não concorda desde o primeiro momento que toquei
no assunto, dias atrás.
Estou tão exausto para discutir que nem tento. Termino de me
arrastar até a cama dele e me jogo no colchão ao seu lado. O
troço nem se sacode, de tão velho e duro. Eu gemo de dor,
porque me joguei forte demais. Temos um momento de silêncio.
Três segundos depois, eu e ele estamos gargalhando juntos,
porque é isso que fazemos com a pobreza que ainda não
podemos mudar. Só agora me dou conta do quanto Cris é
generoso por me deixar dormir no sofá, que é bem mais
confortável. O que me faz sentir um pouco culpado; nunca quis
tomar nada dele.
Troco de posição, rolando no colchão que parece uma tábua,
e esbarro no braço de Cris. A cama não é tão grande para
manter uma distância maior. Cristóvão age como se eu o tivesse
agredido com um soco. Ele se assusta e se afasta bruscamente.
Quase cai da cama, com um terror desconfiado em seu rosto.
— Que foi, porra? — Eu digo.
— Você não leu minha mente, né?
Enrugo o rosto, sobrancelhas afundadas.
— Eu não leio mentes. E nem encostei em você de propósito.
— Não faço questão de esconder meu tom ofendido.
— Tá! Desculpa. Eu só não entendo como funciona isso, ué!
Resmungo e rolo os olhos, porque já tentei explicar tantas
vezes.
— Um esbarrão acidental ou um toque muito rápido não me
faz capaz de ver nenhuma memória instantaneamente — digo
contrariado. — É tipo… Ler uma página. Ninguém lê uma só
olhando pra ela de relance. Você precisa pegar aquilo e se
concentrar, ler linha por linha, palavra por palavra, sílaba por
sílaba. E aí você interpreta isso. O que acontece é que, quanto
mais eu pratico, mais rápido consigo fazer isso. Igual a ler.
Cris não deixa de olhar de lado para mim.
— Quer dizer que se eu fizer isso… — Ele cutuca meu ombro
e tira correndo. — Você não vê nada?
Gargalho da cara dele.
— Eu já falei que sou eu que preciso tocar, idiota. — Então
espremo os olhos, me fazendo de desconfiado. — E por que
tanto medo, hein? Tá escondendo o que de mim?
Cristóvão se agita todo. Eu solto uma risada e faço o que
deixa ele ainda mais surtado: tento encostar nele, dessa vez do
jeito certo. Ele bate com o travesseiro no meu queixo, e eu xingo
por cima da confusão. Justo quando ele se levantava da cama,
eu agarro seu pulso.
Acabo vendo a memória que ele não queria que eu soubesse.
É uma briga entre ele e o ex-namorado. Uma das feias, em que
os dois gritam um com o outro.
Cristóvão puxa o pulso da minha mão, e a memória desfaz.
Mas foi o bastante para que eu ouvisse o tópico da discussão.
Entre palavrões e maldições, era o meu nome que eles
gritavam.
Fico sem expressão. Ele solta um barulho irritado e vai para a
janela, sem se dar o trabalho de vestir sua camisa jogada no
chão.
— Vocês terminaram por minha causa? — pergunto depois de
um minuto inteiro sem saber o que dizer.
De cotovelos dobrados, Cris enfia a cabeça entre os braços e
coça o cabelo raspado com força.
— Não foi sua culpa — ele diz com tanta certeza, mas eu só
consigo acreditar no contrário.
— Cris, porque você não me mandou embora? Eu não quero
atrapalhar sua vida.
— Porque eu não quero que você vai embora, cacete! Pra
onde mais você iria?
É a maneira dele de me jogar na cara que não tenho nada.
Não me ofende. Só me deixa com vergonha de ter ido ali pedir
mais uma das roupas dele.
— Eu… — Suspiro pesado e rolo de volta para deitar olhando
pro teto, as mãos cruzadas sobre a barriga. — Me desculpa. Me
desculpa ter envolvido você nisso. Nessa bagunça da minha
vida.
Essa é a hora que eu deveria dizer que sairia da casa dele no
dia seguinte, que ele teria sua vida normal de volta sem um
encosto para atrapalhar. Seria, se ele não tivesse razão. Eu não
tenho para onde ir.
De relance, percebo o rosto de Cristóvão se virar, me estudar
por cima do ombro.
— Se você quiser, posso conversar com ele… — insisto.
— Esquece! — Cris solta, e não sei se sua irritação é
direcionada a mim ou outra coisa. — Ele que é pirado com todo
aquele ciúme. Que se foda. Você fica.
Eu olho de lado.
— Ciúme? — repito e olho para a janela. Cris desvia, olhando
para fora, seu rosto oculto pelo reflexo do sol. — A gente é
quase irmão. Ele não sabe disso?
Espero em silêncio até perceber que Cris não vai responder.
Imaginei que ele concordaria de primeira, mas ele só fica lá,
quieto. Metade de mim se levanta, apoiado nos cotovelos. Eu
tento mexer com ele. Cristóvão ignora.
Um momento depois, ele deixa a janela para buscar a blusa
no chão e dar a volta no quarto.
— E aí, pelo menos tô feliz que você desistiu dessa ideia de
circo. — Ele comenta um tempo depois, como se a conversa de
antes não tivesse existido.
— Eu não desisti! Tava me preparando. Agora só preciso
de… — Não termino de dizer, sem graça de novo.
— Eu sei do que você precisa, Julian. Por acaso você me
deixa esquecer? — ele murmura da porta do guarda-roupa. Sem
ânimo, arranca algumas camisas passadas dos cabides e atira
em cima de mim. — Mas sabe, se você não quer me escutar,
pelo menos lembra do que dizia a única pessoa que você já
obedeceu nessa vida: não vá ao circo. Gancho trabalhou duro
pra te manter longe daquele lugar.
Usar a memória de meu pai contra mim é sempre um golpe
baixo. Engulo essa porque é Cris e não quero brigar com ele.
— É, mas ele não tá mais aqui, né? — Minha voz sai com
uma nota de maldade sádica.
Cris me dá um daqueles olhares de lado que escondem pena.
— Pensa no que você tá fazendo, não tem a mínima chance
de dar certo. Você vai mentir pra eles, na cara deles. Olha o
risco que vai passar, de ser desmascarado, de ter sua
identidade exposta. Isso na melhor hipótese, né! Porque a gente
sabe do que o Gancho te protegia: de ser morto.
Meu sangue esquenta sozinho. Cris faz parecer que estou
traindo meu pai, quebrando as regras dele simplesmente porque
quero.
— Eu não sou mais uma criança. Aquele garoto que ficou sob
cuidado do seu pai, não existe mais. Eu sei me virar agora. —
Tento me manter o mais frio possível, ainda que eu queira
revidar.
— Ah, é? E sobre o Dênis? — Cristóvão cruza os braços,
determinado a me fazer desistir. Ele não usaria o caso do irmão
desaparecido como exemplo em outro caso. — Ele também se
achava esperto o bastante para tentar uma gracinha no circo. E
ele se foi, Julian! A gente sabe que ele não está “desaparecido”.
Ninguém “desaparece” por 5 anos.
Eu fecho os olhos e ranjo os dentes. Quero apagar da minha
mente a imagem de Dênis, o garoto de 15 anos, que dividia a
casa do pai de Cris com a gente, mandado para morar de favor
como eu fui, como Ágata foi.
— Dênis não estava seguro nem aqui fora — argumento com
raiva. — Tinha uma confusão esperando por ele em cada canto.
Cristóvão não responde. Não tem como discordar.
Eu aperto as duas camisas atiradas em cima do peito e me
levanto da cama.
— Eu nunca estive tão perto de conseguir fazer o desgraçado
pagar. Não posso deixar que ele me apague antes disso,
entende? Não posso.
Tento tocar no ombro de Cristóvão para fazê-lo se virar de
novo para mim. Mas ele percebe antes e desvia depressa. Um
reflexo por medo do meu toque. Minha mão fica pairando no ar,
estática, e ele lança um olhar arregalado de arrependimento.
— Eu não quis… Eu só…
— Só não confia em mim a ponto de me achar um
aproveitador que invade a mente de qualquer um o tempo todo
— digo com uma raiva frustrada. Mas é raiva de mim mesmo.
Não é culpa dele. Nem é a primeira pessoa a se afastar com
receio do que posso fazer.
Cristóvão não me segue quando saio pelo corredor, e talvez
seja melhor assim. Porque é só isso que demonstro ser para os
outros: um parasita sanguessuga.
Eu me jogo sentado no sofá para pensar. Se passa um longo
tempo antes que eu ouça Cris fechar a porta do quarto. Devagar,
sem bater. Talvez ele não perceba que estaria bem melhor sem
mim. Não entendo como ele ainda possa me querer por perto.

◆◆◆

Eu calculo quanta luz ainda separa o dia da noite antes de


sair. Nem tão cedo para não conseguir encontrar o circo
fechado, mas nem tão tarde para que o público já tivesse ido
embora, me deixando sozinho lá.
Enfio minhas facas de arremesso por dentro dos coturnos que
calço, duas delas em cada um. Gancho normalmente não me
dava coisas que eram feitas para durar, para não deixar pistas,
mas aquela foi uma exceção.
Nem preciso tocar as lâminas para visualizar a cena gravada
no fundo da mente: foi no meu aniversário de onze anos. Um
encontro curto, numa das casas que me abrigavam de favor. Ele
passou os olhos tão rápido por mim, apenas para se certificar se
eu estava inteiro. Pensei que fosse embora sem fazer mais
nada, indiferente como sempre. Então ele me estendeu aquilo,
enrolado num amontoado de jornal amassado. Eu era só um
moleque tentando não tremer enquanto recebia o primeiro
presente de toda a vida. Quando abri, lá estavam as facas,
brilhando em prata, recém afiadas. Cortantes e frias. Olhei para
cima e encontrei os olhos secos dele em mim, enquanto dizia as
palavras que me acompanhariam pelo resto da vida:
“Se quer treinar alguma coisa, faça do jeito certo.” Ele se
referia aos malabares que me fez jogar fora antes. “Um filho em
nossa família é criado para ser melhor do que seu pai foi. Assim
como me tornei melhor do que o meu, você se tornará melhor do
que eu. Não falhe nisso.”
Era a primeira vez em anos que eu ouvia a palavra “pai” dele,
e ele simplesmente me atirou como se não fosse nada, como se
não provocasse um tornado dentro de mim.
Como Gancho não admitia ser questionado, eu refleti isso
tudo sozinho por um tempo. Eu deveria ser um melhor o quê?
Atirador de facas? Guardador de segredos? Desafio para os
inimigos? A parte mais difícil de se perder alguém, é que não se
tem a quem perguntar mais. Tive que aprender a ser todas
essas coisas. E torcer para que fosse o suficiente para ser
“melhor” do que o homem que veio antes de mim.
Atravessando o portão, estou tão concentrado que não
percebo uma presença se aproximar. Uma mão me detém pelo
ombro, e eu me viro para perceber que é apenas Cristóvão.
Ele me seguiu até ali com o mesmo rosto preocupado. Já
espero que ele tenha algo afiado na ponta da língua para me
impedir. Mas ele ergue a outra mão, que segura uma tira de
elástico escuro, com um triângulo arredondado feito de couro
sintético amarrado no meio. É o tapa-olho que eu precisava usar
nos raros casos que saía para encontrar Gancho, quando não
havia garantia de segurança.
Me surpreende o fato de Cris ter guardado isso. Depois que
perdi o enterro, porque simplesmente não podia dar as caras no
velório lotado de gente do circo, tive um surto de raiva e joguei
fora quase tudo que me lembrasse Jaime Gancho. Aconteceu
uma semana antes de começar minha obsessão com os jornais
que estampavam sua morte.
— Não deixe que eles saibam. — É a única coisa que Cris
exige.
Pego o tapa olho e passo a cabeça no meio do círculo de
elástico. A visão de meu olho direito se vai, e eu tenho a
sensação de diminuir, até virar uma miniatura de mim mesmo. É
como ser criança de novo, quando aprendi a usar isso para
tapar a herança genética inegável que me liga a Gancho. Não
existia outros olhos azuis perturbadores como os dele nessa
cidade.
— Você parece com mais medo do que eu — digo e tento
imaginar o que Cristóvão vê quando me olha com o tapa olho.
— Algumas vezes, eu sou mais prudente do que você. É
diferente.
— Você sempre teve mais a perder do que eu. Essa é a
diferença.
— Julian…
— Me permite te pedir uma última coisa? — interrompo antes
dele dificultar ainda mais.
— Sempre.
— Não espere por mim. Entendido?
A sugestão de que eu posso não voltar fica suspensa entre
nós. A boca de Cris forma uma linha tensa e sua cabeça
balança, negando em resistência. Mas não diz mais nada, e a
conversa morre ali.
Eu parto sozinho, com a visão de um olho só. É como se
tivesse muito menos chance de me distrair agora.
Capítulo 5
Terra de estranhos

Ninguém espera que um sonho tenha um sabor amargo


quando realizado. Sempre imaginei como seria o caminho até a
Terra do Nunca. Uma criança confabulando em segredo. Essas
invenções mentais infantis são tudo que tenho como referência
para me guiar.
A descrição no pedaço de jornal que trouxe é a mais vaga
possível: diz que o circo espera na beira da vasta floresta que
rodeia Nova Eldorado; que não pertence aos ricos, nem aos
pobres, que está em um lugar onde todos podem alcançar.
Orienta para que os visitantes sigam as luzes, mas que luzes? E
tem essa frase… A mesma que recebi na carta: “Segunda à
direita e sempre em frente”.
Não existe um caminho totalmente seguro para sair da região
sul de Nova Eldorado, mesmo que o novo governo de Arthur
tenha melhorado as coisas. Eu tomo o rumo da ponte, onde
certas gangues resistem. Não cumprimento ninguém, por mais
que conheça algumas cabeças. Logo estou atravessando a área
rural, que é o lugar mais neutro que posso pensar. O Sol desce
pelo oeste e eu o sigo, rumo à fronteira com a floresta sem fim
que nos engole nesse pedaço perdido de mundo.
Não acredito em fantasmas, mas tenho a sensação de que o
de Jaime Gancho me acompanha por todo o caminho. A parte
mais difícil em aceitar que ele morreu é que não registro isso
como realidade. Eu ainda espero que ele apareça e me
repreenda por estar fazendo isso. Ando pelas ruas olhando para
trás e vigiando cada esquina, para mostrar a ele que aprendi
com seus ensinamentos, que não sou mais um garotinho
desprotegido. Mas tudo o que vejo são pessoas de rostos que
não me dizem nada. Vejo suas costas passarem por mim,
indiferentes. Suspiro, e continuo em frente.
Numa alameda de árvores pintadas de cal, lâmpadas
aparecem amarradas ao redor dos troncos, subindo até se
perderem entre a folhagem que cobre o alto como um teto vivo
que respira, chiando com o vento. Elas se acendem em azul e
vermelho, roxo e amarelo, laranja e verde. Quase posso me
perder em tantas cores. Agora entendo quais as luzes o anúncio
quer se referir.
O vento me açoita como um golpe na coluna, sobe com um
arrepio. Há um campo aberto de trevos à frente. Raminhos
baixos de folhas verdes que se movem vivos com a mínima
brisa.
Eu caminho por entre formas abandonadas, destroços no
meio do caminho. Um balanço coberto por limo, ervas daninhas
escalando pelas barras de suporte; um escorregador em forma
de “L” enferrujado; uma bicicleta velha fundida no tronco de uma
árvore crescida em torno dela. Coisas esquecidas e engolidas
pelo tempo. O lugar parece ter sido um parquinho de brinquedos
um dia, antes de crescer para uma coisa maior que espia logo
atrás.
Eu paro, tenso e retesado como se encarasse um adversário.
Há um muro de pelo menos 10 metros de altura feito de tapume
diante de mim. É todo pintado, mas nenhum desenho aparece
totalmente visível, cobertos por numerosos galhos de hera que
crescem agarradas ao muro. Dobro o pescoço para trás até
doer, enxergando o alto, onde cataventos e bandeiras rubras se
sacodem com o vento, como símbolos de uma terra
conquistada. Placas luminosas se repetem entre largos
intervalos, estampando as mesmas palavras:
A Terra do Nunca – tenha pensamentos felizes
Eu engulo a náusea nervosa e caminho em volta desse muro
alto, investigando.
Não preciso tocá-lo para sentir o calor emitido, quente pelo
sol que desce por trás do circo, se pondo. Passo por um grupo
de adolescentes de sapatos arrancados. Eles compartilham um
único cigarro, sentados num gira-gira quebrado de quatro
bancos. Ao lado, numa gangorra estática, um garoto de uniforme
escolar mantém o assento debaixo dele grudado no chão de
terra batida, enquanto a garota na outra ponta do brinquedo
flutua no banco elevado; a cabeça pendendo com o pescoço
para trás, as pernas balançando no ar.
Essa é uma imagem que se agarra em mim. A impressão de
como a Terra do Nunca é um lugar para onde os jovens e
rebeldes podem fugir.
As lâmpadas amarelas fincadas nas estrelas desenhadas no
muro começam a se acender sobre a minha cabeça. Os olhares
tortos dos adolescentes me seguem. Eles tentam disfarçar o
cigarro e tapar a identificação dos uniformes. Devem imaginar
que vou acabar com a farra. É estranho ser o adulto na história
de alguém.
Encontro uma abertura no que parece ser o meio da muralha.
Degraus de alumínio antiderrapante rangem sob o meu peso
quando crio coragem de entrar pela bilheteria. No fundo, há um
único guichê de bilheteria, vermelho descascado com grades
douradas.
Eu observo de longe as pessoas ali. Dois homens de roupas
espalhafatosas e cabelo colorido estão de costas. O primeiro
entrega pregos ao segundo, que se curva abaixo do teto por
conta da sua perna-de-pau de 2 metros e martela no alto do
guichê. “Entrada única” a pintura na parede indica, e eles
pregam um “$10” por cima de um antigo “$30”. Menos da
metade do preço.
Uma música fraca de xilofone e sanfona escapa de uma única
caixa de som. Eu percorro todo o zigue-zague formado por filas
organizadas. Quando chego à plataforma final, levanto o pé para
pisar, mas hesito no meio do movimento. Tenho a impressão que
os ramos de hera subindo pelo aço se moveram para seguir
meu próximo passo. Pisco várias vezes e a sensação passa,
então deixo para lá.
Junto à dupla que ajusta o preço na bilheteria, há uma garota
os acompanhando. Vestido curto e esverdeado, impregnado de
purpurina; asas amarradas em suas costas, feitas de arame e
papel celofane furta-cor… Se parece com aquela fada de anos
atrás. Ao mesmo tempo, não consigo reconhecer como a
mesma pessoa. Essa é mais alta, uma competição e tanto para
os meus um metro e oitenta. Seus braços têm penugens loiras
camufladas na pele branca, e uma gargantilha de veludo verde
ao redor da garganta magra e saliente. O cabelo loiro que uma
vez vi comprido, agora é curto como um corte masculino,
grudado ao crânio.
— Não, não! Mais para a esquerda, rapazes! — ela instrui.
Seus braços são cobertos por braceletes: fitas verdes que
sobem do pulso até os ombros, entrelaçadas e cheios de sinos
dourados amarrados. Cada vez que sacode os braços para
indicar a direção, os pequenos sinos tilintam, quase musicais.
Ela está de costas e eu me aproximo silencioso. Dou um
passo à frente, ao mesmo tempo ela dá outro para trás, se
afastando para enxergar melhor a bilheteria. Como resultado,
nos trombamos ruidosamente. Me afasto na hora, hesitante com
o contato com qualquer um daquele lugar. A garota-fada gira de
imediato, descobrindo que estou aqui.
— Ah! Olá — ela diz surpreendida, não brava por ter
trombado nela ou atrapalhado sua tarefa. — Está perdido?
Ela usa enormes cílios postiços colados na pele ao redor dos
olhos, como uma máscara. Cílios imóveis que dão a impressão
que seus olhos estão sempre abertos, mesmo quando piscam.
O nariz alto e a mandíbula marcada imprimem ainda mais força
à imagem.
— Não — respondo sem jeito, arrumando a alça transversal
da pasta cheia de papeis e um gravador de voz, a única coisa
com peso real ali dentro. — Eu vim… Ver o circo.
As palavras flutuam no ar. Olho para elas como se estivessem
materializadas de verdade, estranhando que tenham saído de
mim.
— Mesmo? — Ela abre mais os olhos azuis. Os sinos nos
braceletes se confundem com sua voz quando ela se vira
empolgada, chamando os outros. — Rapazes! Temos mais
alguém para o espetáculo!
Sua afirmação é tão cheia de esperança. O perna-de-pau e o
outro homem colorido se viram com o mesmo rosto maravilhado
— e espantado. Me sinto encolher sob o súbito foco de atenção.
— Ei, gostei do cabelo. É bem escuro, né? — ela elogia do
nada. Eu enrolo o amontoado de dreads escuros pra trás e
prendo desajeitado em um nó, me amaldiçoando por não ter
usado um turbante para esconder. É um detalhe muito
importante para ter esquecido. — O que aconteceu com o seu
olho?
— O que?
— Esse tampado aí. — Ela aponta para o próprio olho direito,
se divertindo.
— Hum… Isso… Nada. Não é nada. Sensibilidade à luz. —
Minha voz só ganha segurança no final.
Ela me analisa com uma sobrancelha erguida.
— Entendi — ela estende a última vogal, tornando a palavra
mais comprida. — É bem legal também. O pessoal vai adorar.
— Que pessoal?
Ela olha para os dois atrás e solta uma risadinha.
— Você tem muita sorte! Começamos uma promoção muito
especial hoje e você paga bem menos! — ela fala como se não
fosse óbvio que estão baixando preço por falta de público.
Enquanto os outros dois se afastam para trocar lâmpadas
queimadas num canto da plataforma, a garota-fada entra por
uma portinhola camuflada e se coloca atrás das grades
douradas do guichê. Suas asas de arame batem nas paredes
com sons arranhados, ela se vira de um lado para o outro,
arrumando as coisas depressa e agitada.
Com uma barreira entre nós, me aproximo. Um cartaz de
papel plastificado se prende nas barras douradas, à altura dos
olhos. De longe, parece um dos avisos que se vê por aí como
um “Proibido fumar” ou um “Proibido porte de armas”. Mas de
perto, o recado é outro:
PROIBIDO: CONTAR O TEMPO.
Estreito os olhos, tentando atribuir sentido a uma regra
dessas.
Os pequenos sinos dentro da cabine finalmente se aquietam.
— Bom — A garota-fada me olha com expectativa. — São
dez eldos a entrada. Só dinheiro. E nada de negociar com
cigarros ou favores, sinto muito.
Ótimo. Agora ela acha que sou um daqueles adolescentes.
Bufo contrariado e enfio a mão para dentro da pasta à
tiracolo, caçando por entre papéis amontoados.
— Eu tenho isso — digo, esticando a carta em tons de verde
e dourado, áspera pela textura do brilho colado.
Quando a deslizo pela abertura da grade dourada, a atenção
da garota-fada está toda no mero pedaço de papel. Seus
braceletes tornam a fazer barulho quando se agita para agarrar.
Ela revira e inspeciona todos os lados, como se tentasse
encontrar um sinal de falsificação.
— Rapazes! — ela chama com urgência.
Recuo esperando por uma reação ruim dos dois que se
aproximam. Mas assim que olham por entre as grades e veem o
que a garota mostra, eles são tomados por uma expressão
impressionada, olhos arregalados, boquiabertos.
— Isso é um… — O cara perna-de-pau começa.
— Um convidado de Peter! — A garota-fada dispara como o
motivo de uma comemoração. — Já faz um tempo que não
temos um! Seja bem-vindo! Sinta-se em casa. A Terra do Nunca
é um lar!
Ela diz com tanta empolgação, mas parece um discurso
decorado. Palavras ditas sílaba por sílaba para não errar.
Os outros dois reunidos ao meu redor estão hipnotizados.
Olham do papel da carta para mim várias vezes, indo e voltando.
— Significa que temos um número novo hoje? — O perna-de-
pau pergunta, de olhos fixos em mim.
— Uau, olha esse cabelo! — O cara colorido com pregos e
lâmpadas pendurados no macacão toma a liberdade de pegar
uma mecha de dread para olhar bem de perto. — Preto em cada
fio!
Eu desvio, intimidado. A garota dentro da cabine é toda sons
de sinos e palminhas, sorrindo aberto.
— E ele tem um tapa-olho! Oh, deuses! Deve ser um número
muito bom!
— Não! — A palavra deixa minha garganta com um desgosto
ofendido. Não sei como podem me confundir com qualquer coisa
próxima deles. — Eu não vim para ser uma atração.
Os sorrisos derretem de seus rostos maquiados. Ficam para
trás bocas curvadas para baixo e ombros caídos. Sou
bombardeado por olhares desapontados.
— Ah… — A garota-fada olha para a carta que ainda segura,
como se encara um grande desperdício. — Então veio apenas
ver o espetáculo? Nesse caso…
— Na verdade — eu a interrompo, limpando a garganta com
um tossido. Ajeito o colarinho da camisa de botões e acerto a
postura. — Sou Jota. R. Júnior. Jornalista da Folha de Bangu.
Eu venho propor uma matéria.
Os três de repente se afastam um passo. Até a garota-fada
atrás da grade. Desconfiança brota em seus rostos pintados,
olhando torto. Parecem me enxergar agora da mesma forma que
enxergo eles: uma ameaça.
— Peter convidou mesmo um… jornalista? — O perna-de-pau
questiona.
A garota dentro do guichê revista os detalhes do papel perto
do rosto, reconsiderando a opção de ser falsificado.
Soltando o ar, dou um dos meus sorrisos, um que inspire
confiança.
— Ei, olhem para o lado positivo: eu quero ajudar vocês.
Conheço a fama do circo desde… muito tempo. E percebo como
os tempos de glória de vocês tem definhado. Boatos ruins sobre
o circo, público afastado por isso, o preço despencando… —
Aponto com a cabeça para a placa recente na parede. — Já faz
oito meses, certo?
Avalio o olhar de cada um. Eles sabem que me refiro à morte
que espantou o público para longe. Está no desconforto deles, o
modo como desviam a atenção para pontos vazios no chão e no
teto, as mãos incertas enxugando a testa e a nuca.
— Sei que as manchetes não têm sido gentis nos últimos
tempos, mas eu proponho algo diferente: me deixem fazer um
artigo sobre vocês, com a verdadeira face do circo. Posso ajudar
a trazer um novo horizonte para os seus dias… Não tão
brilhantes. Imaginem bem: todos os holofotes… focados de novo
em vocês.
Não minto. Embora os holofotes serão da polícia, se tudo der
certo. O sorriso engessado em meu rosto disfarça a verdadeira
intenção.
Eles se entreolham.
— É exatamente o que precisamos — murmura a garota-fada
para ninguém em específico, pensando alto.
— Eu sei, certo? — Eu me agarro a essa ponta de aceitação.
— Podemos começar agora mesmo, se quiserem.
Esfrego as mãos juntas, a ponta dos dedos formigando. Mal
posso esperar para escolher o que eu tocaria para reviver
memórias.
A garota dentro do guichê desliza a carta fechada por debaixo
da grade, empurrando de volta para mim.
— Eu não sei. Temos um monte de coisas para fazer, o
espetáculo está para começar. Não sei se realmente vai
funcionar de alguma forma. Talvez se você voltasse outro dia…
— Não! — respondo rápido demais, despertando a atenção.
Engulo e endireito os ombros. — Quero dizer… Eu não vou ficar
no caminho. Estou aqui para ajudar. E não sei se minha agenda
permitiria outro momento a não ser esse.
Num instante quieto, eles avaliam.
— Bem, se ele é um convidado de Peter… — O perna-de-pau
dá de ombros.
O outro homem acena a cabeça colorida, seguro de que não
represento perigo. Eu mordo um sorriso de canto.
A garota-fada leva o tempo de um suspiro profundo para se
decidir.
— Um artigo positivo, certo? — ela pergunta, o olhar
inseguro.
— É isso aí. — Aceno lentamente, contemplando o momento
em que eles pisam com os dois pés na emboscada. — Vocês
me mostram tudo o que têm. E então… eu escrevo sobre isso.
Bem simples, na verdade, mas prometo grandes resultados.
Ela desvia os olhos claros de um para o outro. Quando
recebe a aprovação de volta, percebo como solta o sorriso que
esteve segurando até então.
— Vamos lá! — Sua voz soa musical junto ao som dos
braceletes, que se agitam enquanto ela gira para sair da cabine.
Quando está bem à minha frente, se adianta para puxar meu
braço, seus dedos magros e ágeis desabotoam a fivela do
relógio no meu pulso. É tão rápida que nem tenho como impedir.
— Primeiro, vamos nos livrar disto, certo? A primeira regra é
muito importante. Você tem mais algum contador de tempo?
Celular, ampulheta, calendário?
Eu pisco várias vezes. Não tinha levado o aviso de “proibido”
tão a sério assim.
— Hum… Não?
— Ótimo! — Ela aceita de primeira, acesa por empolgação.
Joga o relógio para o homem com pregos e lâmpadas. —
Coloque lá na caixa. Eu vou levando o…
— Jota — completo.
Ela bate palminhas e começa a tagarelar, atropelando a si
mesma.
— Isso! Jota! Nome de artista. À propósito, pode me chamar
de Sininho. Agora vamos! Cuidado com a cabeça!
Ela dá a volta por mim e me leva com um empurrão gentil
pelos ombros. Pesco a carta-convite de volta antes de seguir o
caminho indicado. Sininho me arrasta até a entrada e preciso
me abaixar correndo, antes de bater a testa na passagem baixa.
“Limite: 1,65m. Dê preferência às crianças” diz outro aviso na
porta que passa rápido. Nós furamos uma cortina de papel
laminado prateado e caímos para dentro do circo.
O que me espera do outro lado, onde a música soa mais alta,
é um breve corredor espelhado. Superfícies distorcidas e
reflexivas em diferentes ângulos, num mosaico de várias
versões de mim mesmo. Uma casa dos espelhos. Meu olhar
corre por todo lado. Me sinto revirado e sacudido dentro de um
caleidoscópio.
Sininho me guia para fora, por entre uma cortina preta. Do
outro lado, sou aprisionado entre paredes de lona. Uma
superfície nova se estende debaixo dos meus pés, a sensação é
de terra firme; um alívio. A meia-luz amarelada que vem de
todos os cantos me faz querer trair meus instintos e confiar que
estou aquecido, seguro.
Algo pende de cima e toca a lateral do meu rosto. Quase
como uma mão fantasma. No susto, olho para cima e encontro
um ramo de hera que cresceu demais e invadiu a tenda por uma
fresta. Feito um braço se recolhendo, ela se contorce para cima.
Não há vento aqui que justifique o movimento.
— Vamos nos apressar. O espetáculo vai começar e preciso
arranjar para você um lugar especial. — Sininho cantarola, ainda
me empurrando.
Atravessamos pelo novo corredor, em meio a uma confusão
de balões coloridos, carrinho de pipoca doce e biscoitos de
canela. Eu respiro fundo sem querer, no automático. O aroma
desperta memórias dentro da minha própria cabeça. Gancho
costumava ter esse cheiro. Um resquício de doçura em seu
casaco, quando ele chegava para uma das visitas e o deixava
pendurado atrás da porta. Eu precisava fingir que era tão ruim
quanto ele insistia em dizer, por mais que fosse uma criança que
só queria provar daqueles doces.
Enquanto passamos, percebo quatro estandartes iluminados
lado a lado. Os cartazes informam as atrações da noite: os
acrobatas do ar; o engolidor de fogo; as irmãs contorcionistas; o
globo da morte. Na parede oposta, o padrão se repete com
outros nomes. Nenhum sinal de um “atirador de facas” ou de
que substituíram Gancho. É como se nunca tivesse existido ali.
Pisco para a parede de lona no fim do caminho bifurcado.
Uma placa indica para cada um dos lados: “Diversão” à
esquerda, “Espetáculo” à direita. O circo parece ser feito de
tendas enormes interligadas por túneis. Debaixo das tendas, há
espécies de salões. Eu estico o pescoço para tentar enxergar o
lado esquerdo e tenho o vislumbre de um salão cheio de
brinquedos. O pedaço de um carrossel. Um martelo de força.
Espingardas penduradas na barraca de tiro-ao-alvo. Tudo meio
morto, sem ninguém realmente brincando neles.
Outros corredores levam para tendas mais além, mas não
consigo distinguir. Quero tanto parar e tocar em qualquer uma
dessas coisas. Fico pensando se é Gancho quem vou ver nas
memórias desses pedaços de madeira, plástico e lona. Se o
verei com as duas mãos ainda ou se com a prótese no lugar da
direita. Se ele vai estar com o mesmo rosto sério e melancólico
que conheci em todas as visitas, ou se terá algum meio-sorriso
quebrando a superfície junto dos seus companheiros de
espetáculo. Mas Sininho me faz passar como um borrão por
tudo. Já está me empurrando para o lado oposto, tomando o
caminho direito. “Você vai adorar!” ela continua repetindo.
Depois do curto corredor, paramos em frente a uma tenda. O
chão debaixo de mim vibra rítmico, como tambores debaixo da
terra. Ou o coração enterrado de um gigante. No fim, é só efeito
da música alta. Sininho abre a aba da tenda e eu ergo o rosto.
Tento não ficar tonto com a visão.
Holofotes brilham do alto. A ponta do telhado está longe a
milhares de quilômetros de distância, elevada imponente acima
da arquibancada em semicírculo. Cerca de 20 pessoas não
enchem nem metade dos assentos, mas já é mais público do
que vi do outro lado, nos brinquedos. Crianças dividem algodão-
doce com seus pais, mas a maior parte é feita de adolescentes
sentados nos cantos, encolhidos em pequenos grupos,
conversando alto enquanto parecem esconder algo de errado.
O picadeiro suspenso no centro espera pelo espetáculo, com
grãos de poeira flutuando sob a luz forte dos holofotes.
Enquanto sou levado ao acesso à arquibancada, vejo uma
brecha de luz no fundo da tenda. Ela escapa pela cortina mal
fechada dos bastidores. Vez ou outra, uma silhueta passa por
ela. Espiar o que há por trás é mais interessante do que ficar
sentado, mas não é como se eu tivesse opção.
Ao pé da arquibancada, Sininho passa na frente até a cadeira
da primeira fileira, no centro. Ela bate a poeira do banco de
plástico branco.
— Aqui! Bem aqui! É o melhor ângulo entre todos os
assentos!
É também o ângulo mais exposto, tão perto das luzes e do
coração da tenda. Eu concordo apenas para não acabar com a
pouca abertura que ganhei com ela.
— Eu poderia participar dos bastidores depois disso? —
Arrisco a pergunta. — Seria interessante ter entrevistas e relatos
dos artistas. Tenho certeza que todos têm muito a contar, não é?
— Claro, claro! Só me deixe conversar com eles antes e
avisar que você não vai fazer mal — ela diz com uma confiança
inocente. Queria eu me importar o bastante para me arrepender
por mentir. — Já, já vamos começar. Vou até lá atrás contar a
todos sobre você, garantir que eles deem o melhor que podem.
Você vai receber o maior espetáculo que poderia ter!
Deixo que minha boca se estique num sorriso de lado que ela
não conseguiria ler.
— Pode ter certeza de que estou esperando por isso.
Capítulo 6
Convidado

Eu tenho o gravador de voz em mãos. O espetáculo começa


quando os holofotes brancos e estáticos se transformam em
luzes dançantes e dolorosamente coloridas. Minha cabeça
palpita com o som de tambores rufando por cima de uma música
animada. No instante em que pratos de metal batem alto
demais, o som se suspende e as cortinas se separam, num
puxão só.
A tensão volta assim que vejo uma única figura parada lá no
meio. Sorrindo. Brilhando. De braços abertos. Todos olham para
o rapaz coroado por um chapéu na forma de um barquinho de
papel verde, uma pena vermelha espetada nele. Não se veste
como um mestre de cerimônias convencional. Seu casaco é
comprido e volumoso, um amontoado de penas escuras com um
brilho cintilante verde. Ele não usa sapatos.
Penso na lembrança de quando vi a trupe do circo pela
primeira e única vez. A visão encantada que tive de Peter Pan
certamente foi diferente. Não por ele, que não mudou em nada.
Mas por mim, que agora o vejo de outro jeito.
— Prezada juventude — Ele pausa para correr os olhos pelos
assentos. Para numa criança abraçando uma escultura de
balão, o admirando com olhos cintilantes. — Seja muito bem-
vinda… À Terra do Nunca!
A música retorna num estrondo assustador. O resto da trupe
invade o centro do picadeiro numa confusão de cores e
fantasias. As crianças vão ao delírio. Seus pais sorriem. Até
mesmo os adolescentes param para prestar atenção.
Meu foco está todo no rapaz no meio do picadeiro. Ele fica lá,
contemplando a própria trupe por um longo momento. As cores
giram ao redor de sua órbita, e ele sorri. Corpos e mais corpos
entram na frente, zanzando e mexendo com a plateia. Até que
então se separam e ele não está mais lá. Sumiu. A ilusão de um
mágico, alguém que sabe enganar.
As apresentações individuais vêm na sequência.
O cuspidor de fogo abre com um espetáculo perigoso de luz e
calor. Depois dos acrobatas rodopiando no ar e das
contorcionistas se enfiando dentro de caixas apertadas, Sininho
aparece no picadeiro. Ela se equilibra numa corda fina lá no alto,
sem nenhum equipamento de segurança à vista, como se
confiasse que suas asas de arame pudessem dar conta.
No lugar de um palhaço, eles têm um cara de macacão
folgado, mangas bufantes e uma gola volumosa. Um mímico
todo preto-e-branco, a não ser pelos botões gigantes de
pompom vermelho. Ele entra e sai do palco imitando outros
artistas entre trapalhadas. Uma distração entre um número e
outro, feita para remontarem o palco para o próximo.
É assim que trazem uma armação de ferro para o meio do
palco. Cinco motocicletas magricelas entram acelerando, os
pilotos montados nelas se vestem com jaquetas pretas. O único
detalhe de cor está em suas costas, um bordado cintilante de
lantejoulas que diz “Garotos Perdidos”. Eles ganham muitos
aplausos dos adolescentes quando entram em cena. As
motocicletas se enfiam para dentro do globo da morte, feito
selvagens enjaulados. O público uiva o tempo inteiro com o som
de seus escapamentos estourados e com a visão das manobras
arriscadas.
Nenhum artista aparece atirando facas. Nenhum sem uma
das mãos. Nenhum com o mesmo cabelo e rosto que o meu, de
cavanhaque e bigode onde falta em mim. As facas estão
enfiadas nos meus coturnos, e a imagem do ato existe só na
minha imaginação.
Para fechar a noite, Peter Pan volta ao palco com seu próprio
número. Seus truques e ilusões vistos como algo encantador
aos olhos do público. Sou o único que não aplaude.
Os outros artistas estiveram muito empenhados em procurar
por mim na plateia, lançando sorrisos amistosos e exibindo o
melhor que podiam fazer. Todos quiseram passar uma boa
impressão para aquele que poderia mudar o rumo do circo. Já
Pan ignora minha presença com um empenho admirável.
Enquanto demonstra artifícios e surpresas que arrancam
suspiros, ele corre os olhos pelos assentos, mas nunca por mim.
Eu não existo para ele. Mereço menos atenção do que os
confetes pisados no chão.
Assisti-lo borbulha uma coisa dentro de mim. O cheiro de
pipoca, biscoitos e canela viram uma sensação amarga na boca.
O teto erguido pela ponta quilométrica parece mais perto. A
tenda se torna cada vez menor quanto mais fico dentro dela, me
sufocando.
Eles têm mais um momento no palco, todos juntos, antes de
começarem a se retirar. A cortina se fecha. Os holofotes
coloridos voltam a ser brancos. A música é mais amena, e as
poucas pessoas presentes deixam seus assentos. Eu imito, mas
não sigo as mesmas lâmpadas amareladas guiando para a
saída. Espero o público se dispersar por completo, então, sigo a
trilha de brilho e confetes até os bastidores.
Um deslize pela cortina pesada de veludo e estou lá dentro. É
incrível como uma simples barreira de tecido pode barrar tanto
som. As vozes ali dentro são altas, e confusas, e muitas.
Sobretudo, muitas. As luzes de camarim ao redor dos espelhos
ofuscam, preciso cobrir os olhos para enxergar. Há tantas
maquiagens, máscaras e cabeças de fantasia em formas de
animais. Eles estão cobertos por aqueles personagens até o
último fio de cabelo.
É como um teste para saber se reconhecerei o mal só de
olhar.
Me seguro na bolsa a tiracolo que faz parte do meu
personagem de jornalista e entro no jogo também.
Enquanto estão distraídos em afrouxar o aperto das fantasias
e se sentarem para descansar, eu me esgueiro pelo canto vazio,
um curto caminho entre mesas compridas, lotadas de acessórios
e equipamentos coloridos. Verifico sobre os ombros uma vez e,
então, estico a mão para tocar tudo que vejo. Vasculho por
memórias úteis, mas nada de promissor boia na superfície. O
que vejo são imagens do próprio espetáculo, de outras épocas
mais gloriosas. Mesmo em objetos mais pessoais — como a
medalinha com a foto de alguém, uma escova de cabelo e
pincéis de maquiagem — revivem história sem o mínimo sinal de
Gancho.
Pela periferia da visão do olho livre, um lampejo de cor se
aproxima. Eu recuo de imediato e me viro com a mão atrás do
corpo.
— E então? — Sininho pergunta enérgica. Apesar das
gotinhas de suor reluzindo em sua testa, da respiração voltando
ao ritmo, ainda tem brilho nos olhos e espera com expectativa.
Eu abro a boca, mas não sei o que responder. — O que achou
do espetáculo?!
Em um estalo, me lembro que a matéria jornalística é o ponto
de tudo, é claro.
— Foi… — Doloroso? Sufocante? Vertiginoso? — Bom. Muito
bom.
Ela ri com satisfação enquanto termina de enrolar um cabo,
organizando o fim do espetáculo. Então o joga para um canto
com outros e espana as mãos, sacudindo poeira.
— Acha que terá boas coisas para escrever? — Sininho
esforça um sorriso e me olha outra vez com expectativa. Ela
realmente começou a contar comigo nessa.
— Sim… Sobre o espetáculo sim. Mas sinto que preciso de
um pouco mais de material ainda. Consultar um pouco os
artistas…
— Oh! Claro! Você quer entrevistar eles, não é? — Sininho
limpa a testa com um paninho e joga para uma das mesas
compridas. — Deixa eu ver quem está livre agora…
Ela levanta na ponta das sapatilhas para olhar sobre as
numerosas cabeças, embora seja alta. Enquanto Sininho
procura pela minha primeira vítima, verifico o gravador de voz
enfiado na pasta aberta, um modo discreto de andar com ele por
aí.
Mas algo não está certo. Assim que coloco os olhos no
gravador, percebo os números digitais em vermelho correndo,
mas de forma desordenada. Pulam para frente e para trás, numa
contagem estranha. O botão de gravar não reage, mesmo com
meus cliques insistentes.
— Espera, aconteceu alguma coisa com o meu grava-
Eu levanto a cabeça e a frase morre na garganta. Atrás de
Sininho, surge um dos motociclistas do globo da morte, seguido
pelos quatro restantes logo em seguida. Um bando de trajes
escuros, calças acolchoadas, joelheiras e cotoveleiras. Todos
carregam sorrisos traiçoeiros, como se tivessem a soberba de rir
do resto do mundo. A jaqueta que os identifica como Garotos
Perdidos também tem números bordados à frente do peito.
O mais próximo deles carrega o número “1” branco do lado
esquerdo. Ele usa um topete caído, é magro como um punk,
possui um palmo de altura a menos que eu e deve ser pelo
menos dois anos mais novo. Não devia me intimidar de maneira
alguma. Mas meu estômago se agita com o olhar direto e reto
para cima de mim, passando sobre o ombro de Sininho.
Ela não percebe a chegada sorrateira dele, até que o garoto
brinca com a ponta da orelha sem brinco dela, cutucando.
Sininho se assusta e procura com o olhar. Ele cutuca o outro
lado, fazendo um jogo de gato e rato. Depois de um instante
sendo feita de boba, Sininho se vira de corpo inteiro, suas asas
batendo nele.
— Max! Quer parar?! — ela esbraveja com o rosto vermelho.
— Qual foi, Sininho — ele provoca achando graça e
engancha o braço pela cintura dela, como se tivessem algum
nível de proximidade. — Da última vez que chequei, você
gostava de brincar.
O resto dos Garotos Perdidos nos rodeia. Fareja. De perto, se
assemelham a um bando de cães de guarda, embora eu tenha
minhas dúvidas sobre o que exatamente eles vigiam. As roupas
sem brilho e a falta de fantasia faz deles figuras bem mundanas
no meio dos disfarces da Terra do Nunca. Como se para
entrosar com o resto da trupe, eles têm pinturas no rosto feitas
de tinta preta lembrando graxa. Cobre ao redor dos olhos de
alguns, risca linhas nas bochechas de outros; desleixado, sem
muito padrão.
— Não tenho tempo pras suas gracinhas agora, tá bom? —
Sininho o empurra, desfazendo o enlace em torno da cintura. —
Não estão vendo que temos um convidado?
Ela diz reprimindo uma bronca.
Os rapazes riem juntos.
— Claro que vimos — repete Max.
— Ótimo! Então, se puderem nos deixar…
— Na real, não vai dar. Ele vai ter que vir com a gente.
— O quê? — Sininho, que começava a dar as costas, se vira
de novo.
— Peter disse que quer ele. Então vamos levar. — Entre uma
pausa e outra, os olhos escuros dele cravam em meu rosto. —
Agora.
Não sou só eu que congelo com isso. Sininho também.
— Oh… Tudo… Bem. — Ela volta lentamente ao seu estado
normal. Olha para mim com um sorriso morno. — Vá com eles,
hum… Jota, né?
— Isso — respondo, ainda tenso.
— Isso! — ela repete com um saltinho de aparente alegria.
Isso a coloca mais perto para que possa sussurrar baixo: — Se
os garotos oferecerem alguma coisa… Rejeite educadamente.
— Oferecer o quê?
— Peter está esperando! — Ela me interrompe, agora em voz
alta e musical. E logo começa a me empurrar na direção do
grupo. — Até mais!
O som dos sinos se vai junto com ela. Quando fico cara-a-
cara com o grupo de rapazes, sozinho, limpo a garganta com um
tossido forçado.
— Então… — Sou incapaz de pensar rápido no que dizer.
Eles soltam o ar entre os dentes, risos sarcásticos. Ao
contrário da pressa de Sininho, eles parecem dispostos a deixar
Pan esperando um pouco mais. Circulando lentamente, o grupo
se reorganiza ao meu redor. Por cima de cada ombro, vejo dois
garotos à direita e dois à esquerda, estudando o que veem como
se me farejassem. À minha frente, Max se estende de braços
cruzados e pernas separadas, oferecendo uma energia hostil.
Por um momento, penso que estavam mentindo, que não tem
ninguém chamando e só queriam me encurralar num canto
sozinho.
De cabeça reta, devolvo o olhar, com cada músculo do corpo
tenso.
— Algum problema? — apoio minha confiança nos
centímetros de altura a mais que me permitem o olhar de cima.
— Só estamos tirando um momento para reconhecer o novato
— Max diz. — E nos perguntando o que levou Peter a te dar um
convite.
Meu rosto se contrai involuntário, estreitando os olhos.
— Então vocês duvidam das decisões do seu líder com
frequência?
É a vez de Max se tencionar, comprimindo os ombros. Uma
pausa agitada e cheia de silêncio segue, enquanto ele olha de
um lado para o outro entre seus companheiros.
— Eu não duvido do Peter, novato. Acho que falta você
entender como as coisas funcionam por aqui. — Ele leva
totalmente para o lado pessoal, respondendo por si, e não pelo
grupo. Bate no próprio peito, sobre o número 1 da jaqueta —
Isso é algo conquistado. Não dado. Convidados que entram de
bandeja são exceção, e eles têm que valer muito a pena para
isso.
— Acha que eu não valho?
— A única coisa que acho é que você não vai querer bancar o
melhor só porque foi convidado — ele diz feito um aviso. — Olhe
bem para o meu número. Consegue imaginar de onde “Max”
vem?
Ah… A ficha cai devagar. Então eles estão ameaçados. Ou
com ciúme.
— Quanta energia para uma apresentação. Se queria contar
seu nome, era só dizer.
Os garotos ao meu redor sopram risadas cheias de ar. O
rapaz à minha frente repuxa o lábio, mas não parece bem um
sorriso.
— Eu sou o Máximo. E para cada lugar que olhar aqui, você
vai ver uma hierarquia. — Ele começa a apontar para o grupo,
em ordem crescente, apresentando do número 2 até o 5: —
Bem, Silvestre, Maurício e Fim. Cada um sabe o seu lugar.
Então melhor você saber onde está pisando.
— Posso conviver com isso — tento soar tranquilo, e não
como uma provocação. — Não quero o número de ninguém.
Nem estou aqui para participar.
Os cinco se entreolham, curiosos e confusos, como se não
esperassem por essa. Max me analisa uma última vez, de cima
a baixo. Descruza os braços, alisando a jaqueta, e aponta com o
queixo para a frente.
— Vai andando, novato.
Eu me viro e o grupo se parte ao meio, abrindo uma
passagem para eu passar entre eles. Enquanto Max toma a
frente para guiar, outra voz soa atrás de mim.
— Ninguém me chama de Maurício. É Mau-Mau — o garoto
com o 4 na jaqueta dá o recado. Com mais atenção, percebo
como é gêmeo idêntico do número 5 ao seu lado. A única
diferença notável está na cabeça raspada.
Eu insinuo um “como quiser” dando de ombros e sigo o grupo
assim que eles começam a se movimentar.
Assim como o túnel pelo qual passei da primeira vez, nós
entramos numa nova passagem entre uma tenda e outra. O teto
ali é mais baixo. As duas paredes vermelhas de lona se apertam
ao redor, uma parte estrangulada do circo. Precisamos passar
em fila, um atrás do outro. Até então eu respirava por uma fina
fresta, mas agora é como se alguém tivesse batido a janela, me
fechando do lado de dentro do vidro. Uma parte minha quer
voltar, arriscar menos do que isso, mas a incerteza do que
aconteceria me faz continuar.
Cercado de lâmpadas amarelas, é como se eu atravessasse
a Terra do Nunca para chegar a outro mundo. Os sons da trupe
nos bastidores vão ficando para trás. Resta apenas o ruído dos
Garotos Perdidos tagarelando assuntos técnicos sobre
manobras e dispositivos de motocicleta. É o mesmo que outra
língua para mim, nem presto atenção.
Nem que eu entendesse eu conseguiria me concentrar em
outra coisa além do caminho. As palmas das mãos suam no
instante que me dou conta do quanto é real: estou prestes a
encontrar Peter Pan.
Nunca imaginei que ele mesmo facilitaria meu trabalho. Tudo
que precisava era de um momento a sós com ele; uma
oportunidade para ele me olhar no rosto, para dentro do meu
único olho azul assim que eu arrancasse o tapa-olho, e
reconhecer em mim a face do homem que ele matou. Eu o farei
lembrar desse dia e arrancarei dele as provas escondidas em
suas memórias.
Tudo que eu preciso é ter minhas mãos nele.
Escondo o sorriso nervoso quando paramos. Os cinco
Garotos Perdidos se apertam contra as paredes, abrindo
passagem.
— Vamos lá, novato. Sem tentar tirar onda — Max anuncia e
puxa a aba da lona que serve como porta.
Os gêmeos cochicham alguma coisa um com o outro quando
passo no meio deles. Bem e Silvestre cruzam os braços e
observam calados. Cruzando por Max, evito seu olhar
desafiador e entro de uma vez na tenda.
Passar pela porta é como atravessar por uma teia de aranha:
a sensação de algo no ar que você não consegue realmente ver,
mas gruda na pele.
O lugar não é lá muito grande. Ou talvez seja a impressão
causada pela quinquilharia amontoada. Móveis de madeira se
espalham por todo canto, cercados por varais de lâmpadas
acesas, plantas de espécies exóticas, pilhas de caixas mal
tampadas e gavetas mal fechadas. Uma porção de casacos
volumosos de penas, folhas e pelos se penduram em um
cabideiro lotado. Há cartas de baralho espalhadas, sapatos
largados e confete salpicado pelo chão coberto por tapetes.
Encontro o único espaço imperturbável, quase no fundo da
tenda: uma estreita mesa marrom, com um espelho vertical
perigosamente equilibrado em cima. À beira dela, de costas para
a porta, existe uma cadeira de madeira gasta. Uma pessoa está
sentada nela, encarando o próprio reflexo.
— Peter! Eu trouxe o que você queria! — Max exclama atrás
de mim, muito mais empolgado do que antes, num tom
orgulhoso. É estranho como sua voz até mesmo assumiu um
tom juvenil.
Eu espio para verificar se ainda é o mesmo mal-encarado que
me levou até ali, e vejo os outros garotos disputando uma
passagem na entrada, cinco cabeças e pares de ombros
formando uma confusão de empurra-empurra. “Eu também,
Peter! Eu também!” eles exclamam um por cima do outro.
A cadeira velha range como uma risada, e eu volto a me virar
de corpo inteiro. O assento é giratório e deu meia volta até
revelar aquele sentado nele.
O dia em que Gancho apareceu com a prótese de metal no
lugar da mão, eu tinha quinze anos e não sabia o que aquilo
significava, apenas que não era mais um adereço do
personagem: fazia parte dele, real e brutal. Então ele me contou
sobre seu rival e o porquê nunca me levaria ao circo.
Aquele que arrancou sua mão tem uma aparência traiçoeira,
Gancho avisou.
— Ele é pequeno e magro, da forma que te faz subestimá-lo.
Parece que esqueceu de crescer — ele disse quando tomou os
malabares de mim e contou mais sobre Peter Pan. — Mas você
pode ver a maturidade no fogo de seus olhos, ainda que ele seja
jovem.
Está exatamente tudo lá quando olho. Como também os
fragmentos das memórias de Wendy. A pele terrosa sem pelos,
os olhos verdes vibrantes. O cabelo caótico, castanho queimado
de sol. Parece aceso sob as luzes de camarim. Wendy se
lembrava das sardas dele como algo importante, mas o que
reparo é na pintura de glitter que usa depois do espetáculo.
Estrelas e poeira dourada ao redor de seus olhos. No osso da
bochecha, carrega o desenho de uma folha, uma pintura
delicada.
A mão que segura um fino pincel fica no ar, enquanto o
cotovelo apoia no braço na cadeira. Ele se senta com uma perna
dobrada para cima, a coluna sem postura, despreocupado. No
momento que o verde de seus olhos cai em mim… Ele sorri. É
como assistir um céu ensolarado de dentro de um poço, tão
insuportavelmente claro e brilhante.
— E ainda trouxeram ele inteiro — Peter Pan brinca de forma
que para outros deve soar agradável.
Traiçoeiro, repete Gancho gravado na minha mente.
— Como você pediu — Max diz orgulhoso.
— Bom trabalho. — Outro sorriso irritante. — Vocês estão
livres. Podem ir.
A cadeira se vira com um novo rangido, e Peter Pan volta a
mexer nos objetos bagunçados sobre a mesa.
— Você vem depois, né, Peter? A gente já deixou até as
motos preparadas — Bem, o número 2, diz.
— Você tinha dito que sim — insiste Silvestre, o terceiro.
— Bem, isso foi antes de saber que o meu convidado havia
chegado.
A última palavra direcionada a mim sai carregada, faz alertas
voltarem a tencionar cada músculo meu. Penso no envelope
enfiado debaixo da porta há 3 dias e presumo que tê-lo deixado
esperando até hoje pode tê-lo irritado.
— Me desculpe pelo atraso — respondo calculado, e as
vozes dos Garotos Perdidos se calam para prestar atenção. —
Eu tinha preparativos a fazer.
É algo que eu não deveria dizer, mas o impulso de provocá-lo
soa mais forte do que o controle sobre minha língua.
Pan vira metade do corpo.
— Mesmo? Como o quê?
Ranjo os dentes dentro da boca. Devagar, puxo a bolsa a
tiracolo, onde estão meus supostos materiais de jornalista, e dou
um leve tapinha sobre ela. Não há como Pan saber que, na
verdade, estou indicando minhas próprias mãos.
— Reservando meus melhores recursos. Tudo pelo tão
famoso circo de Nova Eldorado, é claro. — Tento soar natural e
modesto, embora minha voz soe pesada. — Coisas de
jornalismo — termino dando de ombros.
Pan continua sorrindo, mas com uma expressão diferente nos
olhos. A linha da sobrancelha desce tensa, as pálpebras se
aproximam, estreitando os olhos. É um gesto pequeno, mas está
lá.
— Garotos, vão sem mim. — Ele eleva a voz, uma pontada
de autoridade. — Vou ficar bem com o meu convidado.
Uma confusão de “Sim, Peter” e “Andem, logo” sai repetida
pelas cinco vozes. Eles saem empurrando uns aos outros, como
se disputassem quem obedeceria a ordem primeiro. Na saída,
Max murmura um aviso sobre estarem de ouvidos em pé, o que
eu ignoro como se não fosse comigo.
A aba da tenda balança de lá pra cá e fecha. As vozes do
lado de fora de distanciam.
Somos Pan e eu, sozinhos em seu camarim privado.
Minhas mãos formigam.
Não tiro os olhos dele, e nem ele de mim. Me pergunto se ele
vê qualquer sinal de Jaime Gancho em mim. No fundo, é o que
eu mais quero, fazê-lo me ver como um fantasma voltando para
encerrar as coisas.
Ele se levanta e deixa o pincel na mesa. Está usando apenas
uma calça curta verde e um suspensório com folhas presas, feito
uma trepadeira crescendo ao redor do torso despido. Tem um
corpo bem formado que desperta uma atração habitual.
Particularmente, me perturba. Mas empurro o sentimento para o
fundo ao me lembrar de quem ele é. Do porquê estou aqui.
Pan agarra o encosto da cadeira e atravessa a tenda
arrastando o assento. Traz até mim. Eu olho para o móvel bem
esculpido e subo de volta para ele.
— Vamos ter uma conversa. Então sugiro que sente. — Ele
usa uma melosa cordialidade na voz. — Não posso permitir que
meu convidado fique desconfortável.
— Agradeço. Mas vou recusar. — Devolvo a mesma falsa
simpatia. — Se você vai ficar de pé, prefiro manter a igualdade.
Peter Pan tomba ligeiramente a cabeça sobre o ombro, me
enxergando por outro ângulo.
— Bom, eu diria que os seus vários centímetros a mais já te
colocam em vantagem. — Ele pisca com pó dourado preso nos
cílios. — Não consigo nem olhar nos seus olhos…
A pausa é silenciosa, mas inquieta. Penso sem parar no tapa-
olho, no azul que esconde por trás, e se Pan desconfia.
— Posso saber o seu nome? — Ele corta o momento mudo.
— Jota Roger. — Sou direto. E com o sopro de coragem que
entra pela brecha dada, eu estico o braço e estendo a mão a
aberta. A oferta de um aperto.
Peter Pan olha entre a mão e o meu rosto. Seu sorriso não
aspira nem um pouco de confiança.
— Me desculpe… — Ele ergue as palmas, num gesto
rendido. Mostra a pele contaminada de pó dourado da
maquiagem. — Minhas mãos estão sujas.
Eu mordo os dentes dentro da boca enquanto o assisto se
afastar de novo, preso no movimento fluido de seu corpo. Ele
caminha pelo tapete com os pés descalços, cantarolando uma
melodia no fundo da garganta.
Para no meio do caminho para recolher um vaso de bonsai
tombado. Junta a terra derrubada com calma, como se eu não
estivesse ali, esperando. A árvore em miniatura parece
quebrada por consequência da queda. Até que Peter Pan alinha
o tronco partido, segura entre as mãos… e cura a planta.
Quando sua mão solta, está lá. Perfeitamente remendada. Nova
de novo.
Me vejo encarando, sentindo a garganta seca. Tão
concentrado em melhorar minha magia, não considerei que ele
pudesse competir com a dele. Nem imaginei que pudesse ser
algo desse nível.
— Meu convidado certamente espera que eu lhe sirva alguma
coisa. — Peter Pan interrompe sua canção murmurada para
dizer.
No fundo da tenda, da estante de chão lotada, ele puxa uma
garrafa rechonchuda verde escura que reconheço como licor.
Aponta o vidro para mim.
— Não. Obrigado. — O agradecimento sai engasgado.
— É o tipo que não agrada? Prefere outra coisa?
— Na verdade, eu tô legal assim. — Engulo quadrado.
— Prefere não sentar. Prefere não beber… Então quer
mesmo manter essa conversa curta? Tudo bem — Pan diz de
uma forma que não parece realmente “tudo bem”.
Ele bate a garrafa na estante de novo e se vira de frente,
caminhando até mim.
— Me diga, convidado — ele faz uma longa pausa. Fica de pé
a alguns passos de distância, brincando com um anel de coco
entre os dedos. — Você tem um talento?
Penso nas facas escondidas nos meus coturnos.
— Não vim para me juntar à trupe — repito com a mesma
aversão de antes. — Nem pela distração do espetáculo.
Ele desvia o olhar do anel para o meu rosto, mas continua
brincando.
— Que curioso. É justamente os motivos pelo qual eu envio
convites. As pessoas costumavam dar mais valor a isso antes.
Mas você não se parece muito… alegre. — Pan estreita os
olhos. — Então ao que devemos a honra da sua presença?
— Faço parte do jornal. Estou disposto a oferecer uma
matéria de destaque que ajude a Terra do Nunca a se reerguer
— digo paciente, mesmo ciente de que ele já sabe de tudo isso.
— Você já deve ter ouvido falar sobre meu trabalho. Foi para
isso que me mandou o convite, não é? “Aos curiosos em
descobrir nossos segredos, abrimos nossas tendas.”.
Repito cada palavra do trecho da carta para ele saber que
estive atento à sua provocação. Para saber que sei como esteve
vigiando meus movimentos, desde que assumi o disfarce há
meses e comecei as entrevistas.
Pan dá um único passo à frente. A folha pintada de dourado
em sua bochecha cintila.
Seu sorriso de simpatia se vai. Longe das luzes de camarim
no espelho, suas cores parecem mais frias. Ele olha para cima,
para mim. Levanta os olhos sem erguer o queixo, e os cílios
finos quase alcançam as sobrancelhas.
Pan abre a boca e solta a pergunta:
— Por que você está mentindo?
Meu primeiro impulso é de dar um passo para trás, seu olhar
me assusta. Até tento, mas estou paralisado por alguma força
que não é minha.
Quando olho para baixo, encontro uma porção de ramos
verdes de hera, que rastejaram por baixo da tenda até mim.
Prendem minhas mãos para baixo como cordas esticadas,
mantém meus tornozelos no lugar, prendendo firme. Me
pegaram enquanto Peter Pan me distraía e elaborava seu
truque. Um mágico nunca para seu show. Eu deveria ter
percebido.
Meu coração salta disparado. Puxo e luto, mas mal
representa um movimento de verdade. Os ramos não
arrebentam por nada.
— É você fazendo isso? — pronuncio como um xingamento, à
beira de perder todo o meu disfarce. As definições sobre ele
disparam em repetição feito um alarme: Mágico. Traiçoeiro.
Pan solta o ar impaciente.
— Eu fiz uma pergunta primeiro: por que você está mentindo
dentro do meu circo, bem na minha cara? — ele fala entre
pausas quase silábicas.
Se a força do ódio fosse suficiente, eu quebraria esse truque
mágico por mim só. Depois o derrubaria no chão e arrancaria
suas memórias. Eu engulo todas as ameaças que quero gritar
para ele.
— Me solte e conversamos como pessoas maduras — digo
entredentes.
— Eu não acho que você está em condição de exigir. — A
hera ao redor dos pulsos desliza, dando mais uma volta
apertada. — Vamos começar por isso aqui… Onde conseguiu
isso?
Ele tem a ousadia de remexer dentro da pasta e puxar a carta
verde e dourada. Imóvel, eu observo o papel desdobrado,
erguido no ar pela ponta de seus dedos castanhos.
— Tem a sua assinatura, não é? — respondo cheio de raiva
contida.
Peter respira fundo, como se prestes a arrancar algo entalado
na garganta.
— Eu não enviei convite nenhum.
Seus olhos se tornam ainda mais sombrios. Eu mal consigo
piscar.
— Isso veio parar na minha porta. E tem a sua assinatura. Me
parece lógico que você tenha enviado.
— Eu não enviei — ele repete, uma irritação crescente por
trás.
Eu o encaro sem saber o que dizer. Não parece uma piada.
Nenhuma espécie de teste. Ele tem essa impaciência genuína
de quem está irritado de verdade.
Analisando, tento tirar as emoções de ressentimento do
caminho. Olho de fora com impessoalidade entre o envelope e o
rosto emburrado de Pan. A verdade desbota pouco a pouco.
Começo a enxergar entre as linhas o que está o perturbando.
— Pelo visto, você tem alguém da sua trupe agindo pelas
suas costas — falo mais tranquilo do que imaginei, porque é um
fato simples. O convite de fato tinha saído do circo, se não por
Pan, então por outras mãos. Isso era ainda pior, mas não para
mim.
Peter Pan comprime a boca, numa linha tensa e sem humor.
Hesitação preenche seus olhos, vacilando de um lado para o
outro. Me esforço para não rir vitorioso da rachadura encontrada
em sua armadura.
Pan retoma depressa sua postura orgulhosa.
— Bom, não interessa tanto assim. — Ele se desfaz do
envelope com desprezo. Sei que está fingindo, também sou bom
nisso. Sigo o movimento do papel flutuando até o chão. — O
importante é: você vai embora do meu circo e não vai voltar. Não
me importa o que você tenha a escrever sobre esse lugar.
Jornalistas não são bem-vindos.
Não é um pedido, mas uma ameaça. Sinto minhas chances
escorrendo por entre os dedos feito areia. Meu peito palpita. Não
penso em soar agressivo quando digo:
— Ou o quê?
Ele não fica contente em ser desafiado.
— Não existe um ou. É a minha ordem.
— O que as pessoas diriam sobre o grandioso mágico
expulsando à força um jornalista que só quis fazer uma matéria
amigável? No mínimo, suspeitariam que você tem algo a
esconder, não?
Pan solta um único riso cheio de ar.
— E ele é manipulador também — ele ironiza.
— Apenas persistente. Por uma boa causa — retruco no
mesmo tom.
Empurro para longe a sensação dos pulsos dormentes, dos
tornozelos doloridos. Eu o desafio com minha aparente
tranquilidade.
— Você deve gostar mesmo desse lugar para tanta
dedicação, não? — Peter se afasta e se segura escorado na
mesa com o espelho atrás de si. — Eu me pergunto o porquê.
Não me lembro de já ter visto um fã como você por aqui antes.
Eu engulo tão forte que os ouvidos estalam.
— Sou apegado a memórias de infância. Isso é tudo.
Pan ergue o queixo e me contempla por um longo instante.
— Você vai embora. Agora — ele retoma. — Vai chegar até a
trupe e dizer que está se retirando. Vai desistir da sua matéria e
sair daqui com as próprias pernas.
— E claro que eles não vão desconfiar de nada sobre a
ameaça que estou ouvindo.
— Não. Porque você vai ser obediente e convincente. — Ele
esboça um falso sorriso. Seus dedos elaboram um movimento
no ar, torcendo, e os ramos de hera rastejam de volta por baixo
da tenda, como cobras fugindo. — Vá em frente. Eu acompanho
você até a saída.
Eu massageio os pulsos, imaginando como seria se pulasse
no pescoço dele agora. Mas como posso fazer isso contra um
poder desses? Quando ele tem guarda-costas escutando atrás
da parede, além de uma trupe inteira que se viraria contra mim?
Penso nisso no caminho de volta, através do túnel apertado e
sufocante. Quando chego de volta aos camarins compartilhados,
todos estão se retirando para o descanso.
Eu sinto a presença de Peter Pan seguindo atrás como um
estalo elétrico no ar, percorrendo a nuca como um arrepio.
Sininho nos vê de longe e sorri abertamente olhando entre eu
e ele. Enquanto se aproxima com os sons dos braceletes, eu
abro a boca, ainda calculando o que falar.
Não posso simplesmente desistir assim, tão fácil.
Parece um sinal – nem tão divino – quando uma nova voz se
eleva, próximo de nós:
— Quem diria que um jovem como esse seria a esperança
para o circo, não é, Sininho?
Eu reconheço o som.
A garota fada congela por um instante. Seus olhos são duas
bolinhas de vidro, encarando o dono das palavras. Me viro para
ver o mesmo que ela e encontro exatamente quem pensei ser.
— É, Bravo. Realmente — ela concorda.
O homem com máscara de carnaval e bengala de dragão
solta um único riso. Por trás daqueles buracos negros, imagino
seus olhos caindo em mim. Eu não o vi no espetáculo. Não o vi
nos bastidores. Por um segundo, esqueci que ele faz parte
desse lugar.
— Engraçado como são as oportunidades da vida — ele
continua. Eu só posso esperar pelo instante em que vai me
entregar. — Mas sabe… Cobrir apenas o espetáculo seria algo
superficial demais. Um desperdício. Acho que nosso convidado
deveria ser levado aonde a vida da Terra do Nunca realmente
acontece. — Uma pausa e a ponta comprida do nariz na
máscara aponta para Sininho, olhando para ela. — Você sabe o
que quero dizer. Tenho certeza de que ele teria relatos muito
mais interessantes no final.
Eu não sei o que é, mas observo a garota ficar desconcertada
com a sugestão.
— Bom… Precisamos consultar o Peter antes e…
— Pois não seja por isso. — Bravo a interrompe e se vira
para a figura atrás de mim. — Sem dúvida, você também deve
pensar como é um privilégio estarmos recebendo esse rapaz.
Não é, Pan?
Não me viro para ver, mas o silêncio atrás de mim é mortal.
Bravo começa a falar mais alto, chamando a atenção de todos,
que param para ver.
— Penso que ele se deslumbraria muito quando nos
conhecesse de verdade. Fora dos palcos. Todas as coisas
fantásticas que teria a contar sobre a vida incrível na Terra do
Nunca. As maravilhas do circo tradicional. — Tendo o foco de
todos, Bravo pergunta não só para Peter Pan: — O que me
dizem?
Sinto um baque em minhas defesas. Um soco no estômago.
Repasso o dia em que estive com Bravo na casa de Cris, em
como ele disse que sabia tudo sobre mim, que havia sido amigo
de Gancho.
No fim, Bravo não está me entregando. Está me ajudando.
Os murmúrios concordantes são tímidos no início, mas
começam a crescer numa onda de animação. Até Sininho
parece iluminada pela ideia. Mas ela ainda olha para Peter Pan,
esperando pelo o que ele pensa. Os Garotos Perdidos
aparecem vindo das cortinas e também esperam a opinião dele
para então expressarem a sua.
— Está sugerindo — Pan começa — que eu permita um
estranho na casa do circo?
As vozes de apoio se abaixam, incertas. Bravo dá de ombros.
— É só por uma breve noite. Não vejo problema. Ninguém
tem nada a esconder, tem?
Eu posso sentir a insatisfação de Peter Pan às minhas costas,
praticamente palpável. Um estalo depois, a trupe insiste que ele
deixe, convencidos de que o argumento é bom. Pan sorri e se
faz de bom e receptivo líder pensando na satisfação coletiva. É
óbvio que eu não engulo o disfarce.
— Bom, é claro que todos sempre são bem-vindos à Terra do
Nunca — ele diz com modéstia e ganha aplausos de aprovação.
— Se concordam que será bom para todos…
Ele deixa a frase morrer incompleta. Deve odiar a ideia de
dizer “sim” em voz alta.
Eu nem ao menos sorrio com a vitória enquanto ele passa e
me deixa para trás. Sabendo como está dedicado a me fazer ir
embora, tenho certeza de que esse momento irá voltar.
Assistindo às suas costas se afastarem, me recuo, apenas
esperando pela próxima ameaça.
Pan vai embora, levando grande parte da trupe consigo — a
parte que o segue fielmente, como os Garotos Perdidos. Eles
somem através das abas de outro túnel. O barulho se vai
também.
Já Bravo me dá um último olhar, antes de se virar para outro
lado, com poucos o seguindo. É bem menos do que os que
acompanham Pan.
Capítulo 7
Por trás das tendas

Sininho me apresenta formalmente as tendas do circo e o


restante da trupe que ficou para trás. São muitos nomes de uma
vez, então me concentro em memorizar suas cores e como seus
personagens se parecem.
Saímos praticamente por último. Sininho apaga os holofotes
do picadeiro e fecha as cortinas. Então me conduz pelo caminho
onde vi Peter e seus seguidores sumirem, o novo túnel por trás
da aba de lona.
O mundo parece se abrir no fim da passagem. Deixamos o
sufoco das tendas para encontrar um céu aberto e sem limites
acima de nós. Eu pisco várias vezes, arrepiado com a
eletricidade no ar.
— Bom… Seja bem-vindo ao nosso acampamento! — Sininho
anuncia.
Dou passos cegos para a grama que nasce debaixo dos
meus pés. Ela se retira da frente, não impede meu avanço.
Meu queixo cai enquanto tenho uma visão completa. Dentro
daquela muralha de tapumes ilustrados, coroado pelos
cataventos e bandeiras, existe praticamente uma vila inteira;
quase acredito ser uma sociedade à parte de Nova Eldorado. Ao
invés de casas há dezenas de carroças de habitação
estacionadas, como se muitos nômades tivessem um dia viajado
o mundo e parado aqui, para nunca mais sair. As carroças se
espalham pela grama. Entre elas, formam-se caminhos
sinuosos, como pequenas vielas. São todas coloridas, cada qual
com seu próprio estilo. Há folhas e flores por todo lado, a brisa
sopra e espalha o aroma de uma árvore de jasmim perfumado.
Posso ouvir o som de muitas vidas circulando.
Paro com o olhar impressionado sobre um carvalho plantado
bem no meio do acampamento. É grande o suficiente para
competir com um prédio de sete andares. Suas raízes são
robustas e possui uma porção de galhos articulados em todas as
direções, um verdadeiro gigante com diversos braços. A copa de
folhas verdes vibrantes é frondosa, quase impede de ver o que
se esconde por baixo: uma casa na árvore; uma das grandes,
feita para um adulto viver. Mas não vejo sinal de uma escada
que forneça acesso.
— É bem aqui onde toda a trupe vive. — Sininho saltita pelo
caminho, me explicando o básico da organização do lugar. —
Temos carroças coletivas, como o refeitório, a enfermaria, e os
banheiros. Mas outras são individuais, ou repartidas entre
pequenos grupos. Essas são os dormitórios. Você pode ficar à
vontade nos espaços coletivos, mas seria de bom agrado ter
autorização antes de entrar nas carroças particulares, tudo
bem?
Concordo com as condições, enquanto percorremos por entre
as vielas, até chegarmos perto das raízes da gigantesca árvore.
A sombra dela cobre grande parte, as folhas chiam sobre
nossas cabeças.
O carvalho divide o acampamento em duas metades iguais.
Depois que passamos pela primeira parte, eu avanço para
chegar até o outro lado. Mas no momento em que tento dar a
volta pela árvore, Sininho me traz de volta pelo cotovelo e nos
carrega pelo caminho que viemos.
— Aquela é uma parte que você não precisa entrar. Não se
importe com isso. — Ela dá a desculpa entre um riso nervoso.
A trupe fantasiada começa a passar por nós, se recolhendo
para as carroças e se desfazendo do peso das fantasias aqui e
ali. Sininho e eu paramos numa mesa de piquenique, feita para
acomodar muitas pessoas. Ela interroga sobre minhas primeiras
impressões e conta outras informações que acha relevante.
Enquanto a olho, penso como poderia ser uma boa pessoa
para conseguir as respostas que quero, se não fosse tão difícil
de fazê-la ouvir.
— Assim, toda noite, terminamos o espetáculo e dividimos as
tarefas para encerrar. Quem participou da apresentação do dia
está livre para descansar. Enquanto a outra metade fecha a
bilheteria, desliga os brinquedos e…
— Então ninguém nunca sai daqui — interrompo, pensando
alto.
Sininho para estática ao mesmo tempo que a caneta em
minha mão para de correr sobre o bloco de anotações.
— Desculpa?
— Ninguém deixa o circo. Vocês estão sempre aqui — repito.
— Não existe uma vida fora daqui?
Sininho cruza as mãos sobre a mesa, olhando para as unhas.
— Hum… Nós saímos à trabalho. Para reabastecer as
reservas de suprimentos, para conseguir novos equipamentos.
Mas viver em outro lugar que não aqui… Não. Esse é meio que
o propósito de toda a coisa — ela solta um risinho sem graça no
final.
— Propósito?
Seu olhar sobe de volta, por entre os cílios enormes e
imóveis.
— De ter outra vida. As pessoas vêm para o circo porque…
Preferem se afastar do que tinham antes, sabe? — Ela tosse,
limpando a garganta. — Eu não acho que isso vai ser o melhor
para colocar no seu artigo.
Com o sorriso acanhado dela, pisco voltando a mim,
consciente da caneta na minha mão e das anotações que finjo
rabiscar.
— Ah, sim. Claro. O artigo.
— Que tal conversarmos sobre nosso sistema de
colaboração?! — Ela se anima de novo, batendo uma palma e
agitando os pulsos cheios de sinos, enquanto meu próprio
interesse escapa num suspiro frustrado. — Por aqui todo mundo
trabalha em todas as partes. Dá um trabalho de organizar, mas
no final…
A voz dela se afasta no momento em que um calafrio passa
por mim. Contenho meus ombros de tremerem, mas a sensação
inquietante permanece. Alguma coisa raspou em meu braço,
como uma mão invisível. Sininho continua falando, alheia,
enquanto eu procuro o que quer que tenha sido, sentindo uma
pressão dentro dos ouvidos, zumbindo.
Sobre a mesa, ao lado do meu cotovelo, encontro uma
inocente folha verde de bordas irregulares que caiu da árvore.
Uma folha. É só isso.
Eu volto a olhar para Sininho. O zumbido aos poucos vai
sumindo. Me concentro na voz que sai de sua boca em
movimento. Mas quando de fato consigo escutar, não é bem a
voz dela que soa.
— Você parece bem confortável, convidado.
O calafrio me belisca de volta. Nós dois levantamos os
olhares surpresos para encontrar Peter Pan, de pé, num dos
galhos mais baixos do carvalho que nos cobre. Ele cruza os
braços sobre o peito despido e descansa o peso no tronco da
árvore, uma perna dobrada. Olha para baixo sem precisar
abaixar a cabeça, fixo em mim.
— Não vejo como poderia ser diferente. Você tem uma
trupe… Adorável —respondo com um sorriso duro que dói
minhas bochechas. — Estou realmente apreciando meu tempo
aqui.
Sininho solta um suspiro contente, mas eu não me viro pra
ver. Não deixo de encarar Pan e sua simpatia fria. É como se
pudesse ser atacado se me distraísse.
— Ótimo. Aproveite as horas que tem. — A doçura em sua
voz não me convence. Ele ainda acha que roubei seu convite e
está na cara como sua desconfiança disputa em páreo com a
minha.
— Eu vou, sem dúvida — digo com uma calma admirável,
apesar do pulso quente e rápido em minha garganta. Com um
movimento arriscado, indico o espaço vazio ao meu lado no
banco. — Você se juntaria a nós?
Ele não é tão rápido para encontrar uma desculpa. Seu olhar
vacila, desvia rapidamente para Sininho. Percebo como ele não
quer dizer algo fora do personagem na frente dela.
Pan é poupado pelo som do escapamento de motocicletas,
cada vez mais próximos, até estarem ao pé da árvore com seus
motores vibrantes. Os Garotos Perdidos controlam os guidões,
ocultos por trás de capacetes.
— Ei! Sininho! Sobe aí. — Sei que é Max dizendo pelo
número 1 em sua jaqueta. — Vamos empinar lá na antiga área
dos motoqueiros da Camelot!
Os outros confirmam com aceleradas no lugar, aumentando o
barulho.
— Garotos, não acham meio rude? Temos um convidado —
ela responde tensa com um olhar matador neles. Deve estar em
pânico por dizerem uma coisa dessas na minha frente.
Mal ela desconfia que eu sei do que estão falando. A área
para onde vão é ponto de encontro de gangues, apesar da
Camelot ter sumido de lá, depois de se tornar a guarda do novo
rei. Sei porque já tive minha época de frequentar o lugar.
Os olhares dos cinco reviram por entre a viseira dos
capacetes.
— Tá. Tanto faz. Ele pode vir também.
— Não é isso! — Sininho suspira e aperta o osso do nariz
entre os olhos. — Ninguém vai, tá entendido? Vocês vão ficar
para me ajudar numa coisa. E sem reclamar! Peter, você…
A fala de Sininho é interrompida assim que olhamos para
cima. Há apenas folhas e sombras no lugar onde havia um
rapaz. Olho para a garota de asas, e ela oferece mais um de
seus sorrisos constrangidos.
— Ele reagiu mais divertido da última vez que tivemos um
convidado dele — murmura um dos Garotos Perdidos. O olhar
do grupo mira no topo da árvore, na casa escondida por entre a
folhagem.
— É. Mas não falamos sobre isso, certo? — Sininho diz sobre
o ombro, assumindo um tom sério.
Mais uma das muitas barreiras que ela quer colocar entre
mim e as coisas não tão atraentes da Terra do Nunca.
Sininho manda os Garotos Perdidos ajudarem na cozinha e
me acompanha em entrevistas ao longo do acampamento. É
mais fácil abordar os artistas com a ajuda dela, mas ainda existe
uma barreira invisível entre mim e a trupe. Não tenho a
confiança deles para ir mais fundo em qualquer que seja o
assunto. E cada vez que provoco o nome de Pan a vir à tona,
todos têm palavras de lealdade ou simpatia na ponta da língua.
Estou lutando uma batalha sozinho aqui.
Quando convenço Sininho que preciso parar para fazer
anotações, ela me dá um tempo e segue pelo caminho para
onde foram os Garotos Perdidos. Sozinho, posso finalmente
começar a sondar o território do meu jeito.
Tenho um gravador emprestado — nada digital, com números
ou contagem de tempo. É um aparelho antigo, de fita cassete.
Sininho trouxe quando eu disse que o meu havia estragado;
contou que esse era usado antigamente para gravar as músicas
que hoje tocam pelas caixas de som.
Sozinho, eu o desligo, poupando o espaço restante na fita.
Então saio para finalmente colocar as mãos em ação.
Ainda tem uma porção de gente perambulando pelo
acampamento, movimentos à vista e carroças acesas. Percebo
com atraso que existem mais artistas do que o espetáculo pode
comportar em uma hora e meia de exibição. Por isso eles se
revezam.
A Terra do Nunca tem varais de lanternas de papel para
iluminar a noite. Cogumelos luminescentes nas árvores e na
grama brilham, formando trilhas pequeninas. Vou pelo caminho
mais quieto, seguindo a curva do muro de tapumes. Espero até
não ter ninguém à vista. Testo a maçaneta de uma das carroças
principais, que é comprida feito um ônibus. Sem adornos,
pintada por um marrom simples, ela tem uma placa acima da
porta que diz “Equipamentos”. Muita gente entrou e saiu dali
mais cedo, dificilmente alguém se importaria de fechar. Assim
encontro acesso fácil.
Nem me dou o trabalho de procurar o interruptor. Aproveito a
penumbra da luz que vem de fora e caminho em silêncio. Por
entre o caos de bambolês, fitas, bolas, pinos e cordas, busco por
algo que seja promissor. Toco um pouco em cada coisa,
investigando suas histórias, suas origens e seus donos. Procuro
por segredos.
O circo guarda mesmo muitas histórias.
É difícil me orientar por entre tantas delas. Tudo parece
superficial demais, distante do meu real objetivo. Começo a
perder a esperança de ter algo útil. Até que meu olhar escorrega
para o fundo da carroça. O feixe de luz da lua que, entrando
pela porta aberta, reflete num pedaço de aço e plástico. Me
aproximo com as mãos ansiosas, notando o que é: um par
reserva de asas de fada, pendurado num apoio da parede.
O fervor pela descoberta injeta em mim o entusiasmo que eu
estava perdendo. O tanto que poderia ter com aquilo. Todas as
coisas que Sininho tenta esconder e evita dizer…
Espalmo as duas mãos sobre as asas, sem realmente tirá-las
do suporte. Fecho os olhos para ter uma visão mais clara. Não
quero deixar nenhum detalhe escapar.
A memória mais forte do objeto está impregnada em todas as
partes de metal e papel celofane. Me oferece uma visão direta
de Peter Pan. Nela, ele segura o pedaço de fantasia com uma
expressão que lembra orgulho, um sorriso morno e
estranhamente sincero para os seus padrões. Ele estica os
braços, cedendo as asas como presente.
Quando passa para outras mãos, vejo quem as recebe. À
primeira vista, a figura não se distingue entre menino ou menina.
É apenas uma pessoa jovem, de camisa remendada e a calça
puída, desbotada; o rosto é marcado de arranhões e trilhas de
lágrimas. Sua altura exageradamente grande para alguém tão
jovem e o cabelo loiro escuro é o que me dá um pouco mais de
certeza. É Sininho. Só que mais nova.
“Obrigada, Peter. Muito obrigada.” Ela diz na memória, a voz
inflada de emoção e trêmula de choro. Juro poder sentir a onda
de afeto da lembrança me atravessar, no instante em que os
dois se abraçam, desajeitados pela diferença de altura.
— Por que não estou surpreso em te encontrar aqui? — diz
uma voz que vem de trás. Não dentro da memória. Fora dela.
No susto, solto a asa. Meu pulso bate na garganta e me viro
num giro.
A silhueta que está na porta é muito maior do que a de Pan.
O sujeito dá um passo à frente com auxílio de uma bengala e,
mesmo na penumbra, o nariz de sua máscara é comprido o
bastante para formar sombra. A aura brilhante de seu paletó
assume a impressão de um fantasma. Ele também não se dá o
trabalho de acender a luz.
Cada passo de Bravo me envia um choque de terror. Com a
parede às minhas costas, não tenho para onde fugir.
Abro a boca, mas nada de seguro consegue sair. Ele para
antes da metade do corredor, parece não se importar comigo
não tendo nada a dizer em minha defesa.
— Os acrobatas estão vindo guardar materiais. — Ele tem
uma tranquilidade cínica ao anunciar uma bomba como aquela.
— Você deveria vir comigo.
Bravo dá as costas e começa a sair, mas eu continuo acuado.
Ele para de novo. Apoia a bengala no chão e me observa sobre
a manga pontuda do terno.
— Anda, garoto. Pode se esconder na minha carroça.
É difícil me mover, minha mente demora a processar. Bravo
está me ajudando. De novo.
Pisco, limpando os olhos ainda sem foco. Vozes soam do lado
de fora, um pouco distantes, mas cada vez mais altas. Pela
fresta das ripas de madeira da parede, enxergo três dos
acrobatas com cabeças de animais sem mandíbula — lobo, gato
e raposa — vindo na direção da carroça.
Meu olhar atravessa como uma flecha para a porta, e vejo o
último vislumbre do terno azul brilhante passar, saindo tranquilo.
Não posso me dar o luxo de pensar mais. Saio correndo atrás
dele, tentando o mínimo de ruído possível nos degraus de
madeira até cair na grama.
Agachado, corro atrás de Bravo sob a sombra do grande
carvalho, com as folhas sussurrantes sobre nossas cabeças.
Acelerados, chegamos a uma carroça verde, de madeira
entalhada em pequenos formatos de escamas. A janela com
grade revela que está acesa por dentro, tenho receio de haver
outra pessoa dentro. Bravo sobe os quatro degraus e empurra a
porta, indicando com a cabeça para que eu passe na frente.
Subo com cuidado, calculado. Mas ele empurra minha coluna
com a cabeça de dragão em sua bengala, quando acha que
estou indo devagar demais.
Praticamente caio lá dentro.
Bravo bate a porta atrás e, de repente, estou sozinho com ele
nessa carroça bizarra. A parede dos fundos é coberta de cima à
baixo por uma coleção de máscaras; dezenas de olhos vazios
olhando para mim. De um lado, há uma cama, uma cômoda com
gavetas e espelho, além de uma mesa com cadeira, livros e um
baú. Mas do outro, existe um terrário onde vive um casal de
iguanas. São filhotes, mas suas unhas em garras e as línguas
compridas tateando o ar ainda intimidam.
Escolho o ponto mais distante do terrário, que é a mesa. Me
seguro no encosto da cadeira e fico ali, respirando forte. Bravo
simplesmente limpa a poeira das mãos e deixa a bengala no
canto da parede. Não sei porque precisa dela; ele anda bem,
além de ser um adulto jovem, como seria Gancho se ainda
estivesse vivo. Mas lembrando do empurrão em minhas costas,
posso ter uma vaga ideia da função.
A carroça cai num silêncio desconfortável. Bravo age como se
eu não estivesse ali. Se senta na cama, puxa o chapéu coco da
cabeça, e corre os dedos de unhas afiadas pelo cabelo azulado
duro de gel. Espero que tire a máscara também, por estar “em
casa”. Mas ele não tira. Talvez porque não esqueceu totalmente
da minha presença.
Limpo a garganta com um tossido e olho para os cantos do
aposento.
— Eu vi como a maioria das pessoas aqui divide dormitório —
comento a primeira coisa que posso pensar, agindo agora como
se tivesse algum controle: braços cruzados sobre o peito, pés
firmes no chão. — Você deve ser importante para ter uma
carroça só para você.
Bravo solta um riso parecido com um resmungo. Apoia os
braços sobre as coxas e olha para algum ponto do chão, entre
os joelhos. Suas costas formam um arco.
— Nem tanto quanto eu gostaria.
Mais um momento de silêncio.
— Com o que você trabalha? Digo… Na apresentação.
Bravo ergue a cabeça. Eu assisto seu perfil de nariz esticado.
— Sou domador, garoto — ele diz com uma voz profunda, o
olhar atravessando a janela na parede em frente, através de
uma cortina leve. — Embora prefira o termo Impressionador.
Eu enrugo a testa e as sobrancelhas.
— De animais? — Pergunto querendo saber quais animais.
Um par de iguanas não parece bem um espetáculo.
A máscara de Bravo se vira, com cabeça e tudo, me
encarando.
— Do que mais seria?
Eu concordo sacudindo a cabeça, porque a pergunta soou
estranha. Então abaixo o rosto para o chão.
— É que eu não vi você lá na tenda hoje, durante a
apresentação — tento consertar.
— Os anos mudaram, garoto. Se você soubesse o quanto é
difícil usar animais na década dos moralistas — ele resmunga.
— Poucos me restaram. Muitas vezes, não tenho quantidade
suficiente para completar o número. Nem sei o que será de mim
daqui algum tempo…
Um barulho de vidro raspado guincha pelo aposento. Ergo a
cabeça a tempo de ver Bravo meter a mão pelo terrário aberto e
brincar de cócegas com uma iguana. Torço para que não tire ela
dali.
Do lado de fora, o som das vozes dos acrobatas já se foi há
um tempo. Mas eu continuo de pé no fundo da carroça,
esperando não sei o quê. Bravo não parece querer nada de
mim. Sua ajuda foi mesmo uma cortesia, e é isso que não
consigo processar.
— Você… Sabe quem eu sou. Não é? — arrisco a questão,
encarando a parte de trás de seu cabelo azulado.
— Se me lembro como você foi pouco agradável da última
vez que nos encontramos? Sim, eu me lembro — ele responde,
sem se virar.
— Hum… Eu…
— Não precisa se explicar, garoto. Sei bem o que você
procura.
Não posso impedir o enjoo frio de revirar minha barriga.
— Eu não…
— Pensei que tivesse conseguido um pouco da sua confiança
quando te entreguei aquela caixa. — Ele se vira para mim. A
mão sai do terrário e traz junto uma iguana enrolada pelo pulso.
Eu engulo.
— Não tinha nada lá. — Tento não soar ingrato, apenas
realista. — Pelo menos nada que guardasse alguma resposta.
Bravo suspira e acaricia a pele rugosa do animal com a ponta
da outra mão. As unhas raspam ruidosas.
— Sinto muito. Mas tentei — ele diz sem muita emoção.
— Você sabe o que aconteceu? — Faço uma pergunta direta
pela primeira vez no dia, depois de tantas entrevistas sem fim,
dando voltas por assuntos que pouco interessavam. — Sabe
como foi a morte… dele? Vocês eram amigos, não?
— Me desculpe, criança. Mas não. Aquela noite foi…
Bagunçada. O espetáculo estava cheio. — Ele ri, a boca
arqueada de desgosto. — Na época, ainda tínhamos público.
Então é mesmo como suspeitei. A notícia de uma morte no
circo foi o que afastou as visitas. Imagino as histórias de
fantasma que poderiam contar por Nova Eldorado afora.
Historinhas para assustar crianças e afastar adolescentes de um
lugar para onde poderiam fugir. Às custas da morte de meu pai.
Coço a garganta, irritado.
— Mas você já tem uma ideia de quem possa ser, não é
mesmo? — A voz de Bravo me puxa de volta à realidade. A
iguana de cauda comprida está quase em seu cotovelo, mas ele
não se incomoda.
— Digamos que sim — confesso, mas sem querer dar a ele
todas as informações. — Só preciso entender o ponto certo por
onde pegá-lo.
Bravo abre um sorriso mínimo unindo seus lábios secos.
— Eu posso ajudar.
Me sinto congelar.
— Como?
— Posso ser a aliança que você precisa, garoto. Duvido que
alguém fora dessa carroça vá dizer ou fazer qualquer coisa
contra Peter Pan. — Ouvir o nome em sua voz me traz um novo
nível de alarme. Eu olho ao redor, com medo que mais alguém
tivesse escutado. — Eu não devo nada a ele. Posso te ajudar
quando precisar. Posso dar as novas informações que tiver.
— E o que você ganha com isso?
As ombreiras pontudas do paletó sobem e descem.
— Talvez eu também queira justiça. Foi a morte do seu pai,
afinal.
Eu avanço com o dedo sobre a boca, chiando um “Shhh!”. A
iguana ergue a cabeça e retruca o mesmo barulho em retorno,
com a língua de fora. Eu volto os mesmos passos para trás.
— Viu, só?! — argumento cheio de gestos, mas mantenho o
controle da voz, reduzida. — Você nem se importa em dizer
essa merda em voz alta! Como vou saber que não vai me
entregar?
Não ganho nenhuma garantia em resposta. Como já
esperava. Com passos largos, atravesso de uma vez o único
corredor da carroça para sair dali. Bravo não move do lugar; só
segue com a cabeça, sem impedir. Mas no momento que agarro
a maçaneta, ele diz em voz alta:
— Fui eu quem mandei a carta com o convite pra você.
Eu estou girando para trás antes mesmo de pensar.
— Você o quê?! — A pergunta incrédula sai, mas penso duas
vezes, e faz todo sentido. Ele sabe tudo sobre mim, conhece
onde moro, defendeu minha permanência ali e até deu um
empurrão para que eu tivesse permissão para entrar no
acampamento.
— Pan tinha o convite guardado. Nunca foi enviado. — Ele
analisa as unhas compridas, casual e indiferente. — Escreveu
para encontrar outra pessoa depois da partida da querida
Wendy, mas acabou desistindo, sei lá por quê. Eu peguei e
mandei alguém para entregar a você.
— Por que você fez isso?
— Precisa ser você, garoto. A desmascarar o pivete do Pan e
enfiá-lo numa cadeia. Você sabe que ninguém mais vai fazer
isso. Ninguém. — A iguana escala pelo ombro durante a pausa
que ele faz. — Com uma habilidade como a sua, tsc… Só você
pode isso. Não é uma questão de vontade, de querer. É sobre
poder e conseguir.
Tento resistir ao impulso de coragem que seu discurso me
infla, mas ele tem razão.
— Como pode me provar que é pra valer, que posso contar
com você? — Questiono apoiado na maçaneta, apertando com
força.
Bravo dá um aceno simples com a cabeça, como se satisfeito.
— Um aviso e um conselho: você ainda não conhece como
ele funciona. Pan vai testá-lo. Em algum momento, quando você
mal esperar por isso. — O volume de sua voz diminui, tem o tom
de um segredo. — Mas não é só isso. Você precisa ser bom em
convencer a trupe que merece ficar aqui. Tendo eles do seu
lado, Pan não vai querer contrariá-los. Então conquistar o resto
é a sua melhor chance. Se oferecerem algo, você aceita. Se
precisarem de ajuda, você ajuda. Até se só precisarem de
atenção, você dá. Procure brechas por onde fisgá-los.
Ele diz como se ser simpático e minimamente civil fosse um
esforço ou uma moeda de troca, não o normal a se fazer.
— Tá. Entendi — digo ainda desconcertado. É o suficiente
para selar nosso trato.
Então abro a porta, passando abaixado por ela. Já estou do
lado de fora, fechando a entrada, quando ouço a voz de Bravo
dizer uma última coisa:
— Não ache que é melhor do que eu, garoto. Estamos do
meu lado. No mesmo barco.
Capítulo 8
Jantar teatral

Um jornalista poderia escrever uma matéria genérica sobre o


circo da cidade com o que coletei nesse pouco tempo. Algo que
caberia na segunda ou terceira página, sem muito destaque,
embora suficiente para uma propaganda rápida. Mas para o que
preciso de verdade, não estou nem perto de ter o bastante.
Quanto mais a noite rasteja para dar lugar à madrugada, eu só
posso me sentir mais incapaz. Não tenho nada que explique
como aconteceu aquela noite, que me ajude a provar a culpa de
quem suspeito.
Encontro Sininho na carroça clara e movimentada onde se
escuta sons de metal e louça; seus braceletes tilintando com
utensílios de cozinha em funcionamento. Espero do lado de fora,
tentando pensar em algo para conseguir uma brecha antes do
“boa noite, muito obrigado, adeus”.
Quando vejo suas asas saindo atrás de trapezistas com
macacões cintilantes, dou um passo para a luz. A grama trepida
ruidosa debaixo do meu sapato.
— Ah! — Sininho dá um pulinho com susto genuíno em seu
rosto. A pilha de pratos de cerâmica que carrega vacila,
rangendo. Ela ri por cima do som. — Você aparece de repente
como um gato!
— Não quis assustar. Precisa de ajuda? — digo, já me
estendendo para carregar os pratos por ela.
Sininho firma o aperto ao redor da cerâmica.
— Na verdade, só quero que venha comigo — ela diz as
palavras sorrindo e indica o caminho com um inclinar da cabeça
loira. — Temos algo… Preparado.
Eu não espero nada de bom depois disso. Enquanto a sigo
tenso pelo gramado, por entre mais carroças com lanternas de
papel, imagino uma sala de interrogação, onde me fariam ser
quem responde perguntas dessa vez. Ou uma sala de tortura,
onde os Garotos Perdidos esperariam com Pan atrás de uma
mesa, o mestre comandando seus fantoches.
Por entre os comboios de madeiras que passamos, memorizo
os números de saída que tenho para chegar até as tendas e
então… Fugir. Tenho raiva da ideia. Correr de mãos vazias
depois de finalmente chegar onde nunca imaginei que
conseguiria. No fundo, contra o instinto natural de fuga, parte de
mim acredita que vale à pena certo risco.
As carroças ficam para trás no momento que pisamos na área
aberta ao redor do grande carvalho, no meio do acampamento.
Eu paro, intimidado pela visão. Apenas algumas horas de
quando estive sentado com Sininho ali, e o lugar parece outro.
Mal posso enxergar a mesa de piquenique sob tantas tigelas,
bandejas e vasilhas que compõem um banquete. Os dois
bancos compridos estão lotados com pessoas fantasiadas
conversando alto, servindo copos uns aos outros e beliscando a
comida. A porção da trupe que não cabe se espalha em
banquetas na grama e sobre as robustas raízes da árvore. E
ainda chega mais gente.
Sininho olha para trás quando percebe que parei de
acompanhar.
— Desculpa. Eu… Não quero me intrometer. — Eu junto as
palavras meio atrapalhado.
Tenho essa barreira natural e noção de espaço quando se
trata de refeições. Por todas as casas que passei, aprendi bem
que esse era um momento da família. Passar fome ou ter
comida negada nunca foi uma questão. Mas comer era só se
fosse separado, no quarto ou na cozinha mais tarde, depois de
todo mundo.
Sininho inclina a cabeça, em dúvida. Um segundo depois,
abre a boca, arfando.
— Ah, não seja bobo! Venha! Você já vai entender — ela
responde, voltando para me puxar, os pratos equilibrados no
outro braço.
Não deixo de ficar tenso enquanto nos aproximamos da
mesa. As pessoas notam primeiro Sininho com seus braceletes
e os pratos que estavam faltando; depois, olham para mim. Eu
só quero um buraco para me jogar dentro. Mas quando Sininho
se separa de mim, indo colocar os pratos na ponta da mesa, um
espaço se abre no meio do banco comprido. A trupe cede
lugar… Para mim.
Eu me sento anestesiado. Meus músculos e ombros doem
com a tensão prolongada. A única experiência de dividir uma
refeição com alguém foram as vezes que comi coisa fria, jogado
no sofá com Cristóvão. Todo esse barulho que não seja da
televisão ligada é aterrorizante. Ainda acho que a qualquer
momento vou sumir, acordar de repente em outro lugar
respirando rápido e fundo. Mas as pessoas ao meu redor
oferecem prato e comida. E puxam conversa.
— Oi, muito prazer! Eu sou a Susi! — Sorri a trapezista à
minha esquerda.
— Eu sou o Gentil — cumprimenta o homem-forte do lado
direito.
Ao lado deles mais gente se apresenta, pessoas que não tive
tempo de entrevistar. O mímico, perto de Gentil, não sai do
personagem e não diz nada, mas permanece com os olhos
vigilantes sobre mim, curioso.
Dou o meu melhor com respostas curtas e sorrisos amistosos.
O prato vazio fica na minha frente, esperando que eu o sirva.
Jurei a mim mesmo que daria o mínimo de chance para não
conseguirem me atingir. A começar por não aceitar nem água.
Depois de Gancho, ninguém pode me culpar por desconfiar de
envenenamento neste lugar.
Embora todos mastiguem e bebam despreocupados, eu ainda
hesito. Olho por cima das cabeças, procurando Sininho e
bolando uma desculpa para sair dali. Tenho tão pouco tempo
para ser desperdiçado. Acabo flagrando os Garotos Perdidos na
ponta da mesa, furtando pedaços de carne e uma garrafa
fechada de vinho, para então escaparem para o outro lado da
grande árvore; a metade do acampamento a qual não fui
apresentado.
Sininho passa por perto e é provocada por Max, que flerta
com ela com uma de suas brincadeiras. Ela então percebe a
fuga deles para o outro lado e tenta impedir. Pesca os gêmeos
pela orelha e os traz arrastados, sob protestos e caretas de dor.
Ela ameaça os outros com algo indecifrável por cima das
conversas e ruídos, mas que serve para que os outros três
garotos voltem emburrados.
Eles vêm se sentar mais perto, nas raízes da árvore. Eu os
assisto através da mesa, sobre os ombros dos acrobatas com
cabeça de animais sem mandíbula, sentados logo à frente. As
palavras do grupo são mais reconhecíveis agora.
— Que importância tem em todo mundo sentar na mesa hoje?
Nunca tem essa frescura — questiona Max, ganhando
resmungos de apoio dos outros quatro.
— Ora! Porque… — Sininho começa a dizer, mas para,
desviando a atenção para outro ponto por cima do ombro.
Sigo o olhar dela.
Uma silhueta contorna a Árvore-Mãe, uma mão magra de
dedos compridos raspando no tronco do carvalho. Dentro de um
casaco pomposo de folhas verdes, Peter Pan aparece. Ele não
se importou de limpar os restos do espetáculo de seu rosto. O
brilho dourado permanece ao redor dos olhos, borrado como
marcas do fim de uma guerra. Já o desenho da folha no alto da
bochecha permanece intacto — como se não fosse uma pintura,
mas uma marca.
Ele tem todos os olhares para si, sem precisar dizer nada.
Caminha tranquilo e relaxado, sobre pés descalços, como se
estivesse acostumado. Está indo ao encontro dos Garotos
Perdidos, que abrem espaço, esticando a garrafa de vinho e
retomando sorrisos de lado. Até que Sininho passa à frente e o
captura por um dos braços.
— Peter chegou, pessoal! — Ela anuncia alegre, como se não
fosse óbvio, e sai arrastando o rapaz para a mesa.
— Sininho… — Pan tenta, mas é atropelado de novo.
— Está tudo bem! Eu deixei o seu lugar reservado. Aqui.
Torço para Sininho não estar indo na direção onde penso que
está. Mas minhas esperanças são destruídas assim que os
acrobatas no banco do outro lado alargam o espaço que havia
entre eles, revelando o lugar para mais uma pessoa. Bem de
frente comigo.
O rosto de Pan vacila quando me reconhece do outro lado da
mesa. Antes que ele resista, Sininho o incentiva a passar as
pernas sobre o banco e empurra os ombros dele para baixo,
como uma mãe sentando uma criança birrenta na mesa. Ela
ainda arruma o casaco dele, espanando a poeira de seus
ombros. Pan segura a mão dela e olha no fundo de seus olhos.
— Eu acho que já estou muito bem, Sininho. Obrigado.
— Ótimo! — Ela ri e sacode os braços com braceletes
amarrados no ar, chamando a atenção de todos. — Pessoal!
Obrigada pela colaboração de todos e pela presença de vocês
nessa ocasião muito especial.
— Que é…? — Pan pergunta de costas para ela. De frente
para mim.
— O jantar para o convidado de Peter!
A trupe murmura em aprovação, alguns levantam os copos;
outros, os garfos. Peter Pan e eu somos os únicos inertes, nos
encarando sem piscar. Tudo o que eu penso é: merda, merda,
merda. Se havia a mínima chance de Pan estar começando a
relevar a história do convite, agora já era. Ele mira em mim
como se esperando pelo instante em que vou ter a dignidade de
dizer que aquilo é uma mentira. Eu resisto e engulo em seco.
— Precisa ser um dos especiais, depois de tanto tempo.
Certo, Peter? — Sininho insiste, com certeza porque ele está de
costas e ela não pode ver o fogo em seus olhos verdes.
Os ombros dele sobem devagar, tomando um longo suspiro.
Espero pela denúncia, seu dedo apontado para mim e acusando
a farsa. Mas as palavras que saem calmas são:
— Sim, Sininho. Especial. Você se lembra bem de como
meus convidados são tratados.
Todos sorriem e voltam a movimentar a grande reunião. Susi
me afaga nas costas, e Gentil dá tapinhas no meu ombro. Eu
fico entre eles congelado, com o olhar caído para o prato vazio,
que não permanece assim por muito mais tempo. Colheres
brotam para servir porções generosas de todas as comidas. Me
oferecem outros dois copos, cada um com uma bebida diferente.
Mais um pratinho cheio de doces, outro cheio de frutas.
Agradando a mim, eles pensam estar agradando o líder deles.
Não tenho muita escolha a não ser comer. Mastigo lento e
bebo goles pequenos, esperando que dê tempo de cuspir caso
comece a me sentir mal. Várias garfadas depois, nada acontece.
Então permito que meus ombros relaxem um pouco.
Arrisco olhar de novo para o rapaz do outro lado da mesa.
Encontro a versão simpática dele, sem nenhum sinal do quanto
me detesta por estar ali. Por um ínfimo instante fora de foco, ele
é só um garoto bonito e brilhante. Apoiando um pé sobre o
banco, com a perna dobrada, Pan come batatas recheadas com
as mãos, troca conversas distraídas com os acrobatas e ri com
os Garotos Perdidos sentados na grama aos seus pés.
Eu estaria perdido no escuro se Bravo não tivesse me
alertado antes. “Você ainda não conhece como ele funciona.
Pan vai testá-lo. Em algum momento.”. E ainda disse como ele
não iria querer contrariar a própria trupe só para se livrar de
mim.
Olho por cima das cabeças de novo, curioso para verificar se
Bravo se juntou ao jantar. Num canto muito distante, à margem
de toda a aglomeração, tenho um vislumbre do nariz pontudo de
sua máscara. Está estraçalhando um pedaço de carne com os
dentes, o prato numa mão e a coxa de frango na outra, sem
sinal de sua bengala por perto. Praticamente sozinho, é de se
notar. O cara da perna-de-pau e a boneca bailarina na outra
ponta do tronco servindo de banco não estão exatamente
interagindo com ele.
Bravo engole um pedaço grande e vira a cabeça na minha
direção, adivinhando que estou encarando. Os buracos de sua
máscara analisam por alguns segundos, até que ele acena
devagar, uma sugestão de aprovação. Deve achar que estou
indo bem.
— Procurando por alguma coisa?
Pisco para a frente de novo e Peter Pan está me estudando,
esperando uma resposta.
Subo e desço os ombros.
— Só apreciando a grande trupe que você tem.
— É. Eu tenho — ele responde com uma segurança
arrogante.
— Ei, Jota! — Outra voz toma lugar na conversa. Vem de Max
sentado na grama, a garrafa pendendo de sua mão no ar. Suas
bochechas coradas indicam que ele já bebeu bastante. — Você
sabe contar histórias?
— Histórias? — questiono, ao mesmo tempo que mais
pessoas se viram para prestar atenção.
— É. Você é jornalista, deve saber um monte. — Max dá mais
um gole, olhando para mim.
— Verdade! A gente tinha histórias no jantar! — Bem, o
número 2, cutuca um dos gêmeos com o cotovelo.
— Não é? Mas a gente tem que saber se o Jota realmente
sabe contar histórias como a Wen…
Max corta a palavra ao meio, trancando a boca. Os sons da
festa instantaneamente diminuem. As vozes próximas morrem
por completo. De repente, há dezenas de olhares de coruja
concentrados no mesmo ponto. Não em Max nem nos Garotos
Perdidos; em Peter Pan, a figura imóvel do outro lado da mesa.
Sininho quebra o silêncio com um movimento rápido. Seus
braceletes sacodem quando ela impulsiona o braço e dá um
tapa na cabeça do Garoto Perdido número 1.
— Parabéns, Max!
— Ai, ai! — O garoto se encolhe, protegendo a cabeça, e
ergue o olhar acuado para Peter, esperando um castigo dele
também.
As folhas do carvalho chiam acima de todos nós com o vento.
Peter Pan volta à vida sutilmente, com o bater leve de seus
cílios curtos e a boca esticada nos cantos, cordial.
— Você os escutou, não? — Pan murmura primeiro para o
prato. Então sobe o olhar para fixá-lo em mim. — Eles querem
uma história.
Minha boca abre e fecha, sem palavras certas. Eu corro o
olhar pela trupe e encontro Sininho com as mãos dadas sobre o
peito, as sobrancelhas enrugadas.
— Pode ser qualquer uma. Um conto de fadas, se quiser —
ela incentiva. — É só questão de… Tradição.
Me lembro de sua apresentação apaixonada pelo circo, de
sua explicação pelo encanto por esse lugar. “A Terra do Nunca
não dá apenas diversão. Dá histórias para você contar”, ela
disse.
— As histórias contadas… — Sininho explica, percebendo
como ainda estou deslocado. — Temos uma lenda que diz como
foi através delas que tudo começou. Palavras que viraram
sonhos, sonhos que viraram realidade e tudo que conhecemos
hoje. A história sobre a Terra do Nunca foi contada antes mesmo
do circo surgir, porque ela já existia no coração de uma pessoa,
há muito tempo. E com uso da magia certa, a fábula se
transformou em realidade. Formou tudo isso ao nosso redor. É
uma magia que corre até hoje embaixo da terra por toda Nova
Eldorado. Você já ouviu falar sobre a lenda do País Subterrâneo,
Jota?
— Só que é um buraco que aparece pela cidade. Que as
pessoas engolidas por ele dificilmente voltam.
Ela ri sem maldade da simplicidade cética na minha resposta.
— A lenda diz que, no início, tudo foi parte dessa mesma
magia viva. A Terra do Nunca, o País Subterrâneo… E tantas
outras células desse organismo que talvez existam e nem
conhecemos. Até que se separaram quando os fundadores
chegaram e construíram o circo ao redor dessa magia.
Eu escuto, imaginando como esse lugar poderia ser
exatamente isso: um buraco onde caí e não conheço minhas
chances de retorno.
— Por isso ainda contamos fantasias, mantemos lendas vivas
no coração das pessoas. A vida é feita de sonhos e tudo pode
ser transformado se colocado em uma história. — Sininho sorri.
— Conte uma história para nós, Jota.
Fica claro como isso tem um significado diferente para eles.
Como foram criados com base em contos folclóricos e lendas,
que adoram ouvir e repassar. Ninguém nunca me ensinou a
contar histórias. Para dormir, eu ouvia a confusão dos meus
próprios pensamentos, o ronco de algum irmão provisório e olhe
lá. Guardo quase nenhuma referência. A não ser por uma… A
história contada com pressa e sem emoção por Gancho; uma
história não para confortar, mas que servia como um aviso. Ela
se chamava Onde Vivem Os Monstros.
Sobre um garoto que tira os pais do sério e recebe o castigo
de ficar trancado no quarto. Lá, as paredes se transformam em
árvores, e o garoto encontra um barco, por onde foge sozinho,
navegando para longe. Ele chega a uma ilha, onde vivem todos
os monstros. Eles soltam seus terríveis rugidos, rangem seus
terríveis dentes, reviram seus terríveis olhos, mostram suas
terríveis garras. Até que o garoto grita: Quietos! E amansa todos
eles com seu truque mágico, de olhar nos olhos amarelos deles
sem piscar nem uma vez. E eles ficam com medo; dizem que ele
é o maior monstro de todos, e o proclamam o rei de todos os
monstros.
Eu pauso a história, limpo a garganta com um leve tossido.
Quando olho para cima, percebo a trupe aconchegada mais
perto, esticando os pescoços e inclinando os ouvidos. Mais de
uma dezena de olhos em mim.
— E ele viveu para sempre com os monstros? — Pergunta
uma voz distante, que não identifico.
Meu olhar viaja entre suas fantasias e identidades
camufladas. Pessoas respirando debaixo de cabeças de
animais, máscaras e maquiagem.
— Não. — Minha resposta sai fraca. — Ele vai embora.
A atenção continua pendurada em meus ombros, até que eles
percebam que é o fim definitivo dessa história. Suas expressões
se aliviam com discretos sorrisos e suspiros baixos. Eu ganho
uma porção de “obrigado”, “muito bem” e tapinhas nas costas.
Então as vozes voltam a crescer, como se o desconforto de
segundos atrás nunca tivesse existido.
Os Garotos Perdidos ainda estão sentados quietos, olhares
distantes de quem ainda está pensando no que ouviu. Sininho,
ao lado deles, espia Peter Pan de lado com expectativa.
— Nada mal — Pan diz, sem muita emoção. — Mas acho que
já tivemos história o suficiente por essa noite, não é?
Não poderia ser mais óbvio o quanto ele quer que eu me
despeça e vá embora. Ele pensa estar me dando a chance de
sair livre, de me poupar da exposição das minhas mentiras.
Retribuo seu olhar avaliativo sem dizer uma palavra, olhando
para as faixas de pele exposta em seu pescoço e sua clavícula,
imaginando o que eu veria se o tocasse agora, enquanto me
encara. Poderia acabar com tudo.
— Eu estava pensando… — A voz musical de Sininho se
intromete entre nós de novo. — E acho que seria muito
importante se o Jota… Passasse a noite aqui no acampamento.
O que acham?
— O quê?! — Tenho o primeiro choque com a sugestão; o
segundo, com Pan repetindo as mesmas palavras junto comigo.
Nós dois nos viramos para ela, que aperta as mãos juntas.
— Talvez até passe mais alguns dias? — ela arrisca de novo.
— Sininho! — Pan exclama espantado. Então respira fundo e
massageia o canto dos olhos antes de continuar. — Sininho…
Minha doce, eu não quero ninguém incomodando vocês. Ele não
veio para se juntar à trupe, então não vejo motivo para…
— Peter, pense só no quanto vai ser melhor para que ele
escreva um artigo realmente bom! — Ela pausa e desvia o olhar
para mim. — Teremos coisas especiais para os próximos dias.
Eu gostaria que você ficasse para ver. Acredito que será um
grande diferencial para a sua matéria.
As mãos dela se juntam espalmadas, como se pedindo por
favor para que eu aceite. Como se dependesse só de mim.
Peter Pan se vira para me encarar com olhos devoradores. Não
duvidaria que pulasse em mim para uma briga, por um instante
de descontrole.
Tomo um suspiro de coragem.
— Se for a vontade do seu líder, eu fico. — Deixo as palavras
saírem.
O músculo na mandíbula dele salta.
Dei a Peter a oportunidade limpa e clara de recusar minha
presença. Mas pago para ver como ele vai explicar que não quer
a ajuda voluntária de um jornalista para o melhor do circo. Como
ele vai desfazer as frágeis esperanças que sua querida trupe
tem sobre um simples artigo. Como ele vai explicar que o
convite não era seu, tendo a sua assinatura nele.
Eu estou sorrindo para ele. E esperando.
— Tudo bem. Espero que a gente tenha uma matéria muito
boa no final disso — ele responde mordaz.
— Você não espera o quanto.
Nós sorrimos um para o outro.
A trupe já se distraiu com o resto do jantar. Gentil pegou Susi
pela mão e ambos se juntaram a outro grupo sentado nas raízes
do carvalho. Sou deixado no banco quase vazio. Aproveitando o
momento, Peter Pan se levanta empurrando a mesa. Sua
bochecha deve doer como a minha, forçada por tanta falsa
simpatia.
Os Garotos Perdidos sentados no chão se surpreendem com
o súbito movimento. Eles pulam de pé, abrindo caminho. Apenas
Max continua no lugar. O garoto massageia a traseira da
cabeça, onde deve latejar a memória do tapa de Sininho, e olha
para baixo enquanto diz.
— Peter, se você não gostou do que eu disse, pode…
— Max — Pan o segura pelos ombros. Quando penso que ele
irá sacudir o garoto pelos ossos, demonstrar violência, ele na
verdade dá um aperto de cumplicidade e acaricia com os
polegares. — Está tudo bem. Eu amo meus convidados, é
verdade. Os que passaram e os que estão por vir. Você não fez
nada de errado.
— Mas…
— Está tudo bem — Pan insiste.
Max ergue somente o olhar, ainda esperando pelo seu
castigo. Peter Pan suspira e, um segundo depois, gira em seus
calcanhares descalços. De volta para mim.
Sua mão magra e castanha mergulha por dentro das folhas
de seu casaco. Quando volta, carrega algo pendurado por um
fino cordão de linha. É uma bolota de carvalho, usada como o
pingente de um colar.
— Eu amo os meus convidados. E o que passou está no
passado — ele repete. Então se inclina sobre a mesa, se
esticando até mim. O joelho dele se apoia da madeira, seus
braços cercam meu pescoço. É quase um abraço, mas sem
calor, sem realmente tocar. Eu respiro com dificuldade e farejo
seu cheiro: folhas e chuva. Estou petrificado quando ele termina
de atar o nó na minha nuca e se afasta de novo. O colar com a
bolota se pendura como um peso extra em meu pescoço. Pan
aponta para o objeto que deixou em mim enquanto olha para os
Garotos Perdidos, provando seu ponto. — Viram?
Eu não esperava que um gesto tão pequeno pudesse gerar
tanto impacto neles. A trupe cai em silêncio, todos boquiabertos.
Os Garotos Perdidos, que pareciam não se afetar por nada,
olham sem parar entre mim e o colar como se vissem um
fantasma.
Os pequenos sinos de Sininho estão mudos. Ela sobe
devagar as mãos para tapar a boca aberta e então arfa.
— O beijo. — A voz dela mal é um sussurro abafado. Mas
pela quietude súbita no jantar, posso ouvir. Sininho olha para o
colar como olharia para um tesouro, espantada e maravilhada.
— Peter… deu… o beijo.
Meu rosto esquenta sozinho. Abaixo a cabeça e dou uma
séria olhada no colar. Não é um beijo. Que nome estúpido seria
para uma bolota.
Mas isso não deixa de ter efeito na trupe, que dá um grande
significado para isso.
Inafetado, Peter Pan se afasta da mesa e se retira do jantar
que já passou da hora de acabar. O único esforço que se dá é
olhar por cima do ombro na minha direção e dizer em voz alta.
— Aproveite os seus dias, convidado.
Ele continua seu caminho sozinho, sumindo ao dar a volta
pela Árvore-Mãe, atravessando para o lado que ainda não fui
recepcionado. Quando meus ouvidos param de zunir num
estalo, reconheço o som das vozes da trupe. Os Garotos
Perdidos começam a se virar de costas também, seguindo pelo
mesmo caminho que Pan. Fim, o gêmeo sem cabeça raspada, é
o último da fila por conta de seu número. Por isso ele tem tempo
de olhar para trás e indicar com o queixo para mim.
— Tem tinta dourada no seu rosto — Fim diz antes de ir.
Esfrego com força a lateral da cara, no canto do tapa-olho.
Meus dedos voltam brilhantes com a marca deixada por Peter
Pan em mim. Quando estávamos bochecha com bochecha,
enquanto amarrava o colar. Paralisado e incapaz de tocá-lo
depois das palavras que sussurrou eu meu ouvido.
“Espere até eu descobrir quem você é.”
Ninguém mais escutou, além de mim.

◆◆◆

Fico para ajudar a limpar os resquícios do jantar. Empilho


pratos, talheres e levo à carroça que me indicam ser de limpeza
e lavanderia. Assim que me desfaço do peso, me encosto na
lateral do comboio onde pega pouca luz.
Minha visão perde o foco quando subo a mão e finalmente
toco a bolota de carvalho em meu pescoço.
Revivo a história do objeto e Wendy Amado está impregnada
em todas elas. Pertencia a ela. A mais forte das memórias é
como um ímã tentando se conectar à minha consciência. Eu
deixo ela vir, deixo me mostrar o que quer que eu veja.
O dia que Wendy foi embora. Essa é a memória. O colar está
em seu pescoço, até que ela o arranca. Wendy o atira de volta
para Peter Pan com a força que só a raiva pede. O colar fica no
chão, aos pés de Pan, que não reage.
“Sei muito bem do que vi. E vi o que fez. Não quero ouvir
mais uma palavra.” Wendy puxa sua única mala do chão e
desvia com violência do toque tentando alcançá-la. “Não se
atreva a me tocar de novo com essas mãos culpadas. Não me
envolva em mais nada que tenha a ver com você.” São suas
últimas palavras antes de ir para não voltar.
Ótimo. Agora eu odeio Wendy Amado também. Foda-se ela e
sua covardia de ter visto algo e não feito nada, a não ser fugir.
Volto com o sangue quente até o carvalho no meio do
acampamento, onde já está tudo arrumado e as pessoas se
retiram para suas carroças. Acompanho Sininho calado por todo
o caminho.
Ela consegue roupas emprestadas de um cara do meu
tamanho, só um pouco mais magro: o cuspidor de fogo. Para
minha surpresa, são calças jeans e blusas preto e brancas bem
comuns. Nada de fantasias, ou trajes brilhantes e extravagantes.
“Roupas da outra vida” cochicha Sininho, na saída da carroça do
cuspidor. Faz um pouco de sentido quando lembro do que ela
contou mais cedo sobre não deixarem o circo.
Depois de um banho surpreendentemente civilizado na
carroça comum dos banheiros, ela me guia a um dormitório com
uma cama vaga.
— É o dormitório de Pio. Ele teve problemas com o antigo
colega de quarto, mas vocês vão se dar bem, não se preocupe
— ela cantarola, já à beira da carroça.
— Pio? Esse não é o…
Sou obrigado a entrar quando Sininho me coloca para dentro
e sai, rumo aonde vozes a chamam à distância. Enfio a cabeça
pela portinhola, e encontro Pio, o mímico, sentado em sua cama,
me encarando mudo, com aqueles mesmos olhos que me
seguiram a noite toda.
Não fico nem um minuto lá dentro. Desço de volta a escada
interna da carroça de dois andares e jogo minha sacola com
roupas emprestadas no canto, dentro de um vaso sem planta.
Tem uma poltrona gasta aqui; não é lá muito macia, mas terá
que servir. Não é nada que eu já não esteja acostumado.
Mas as horas passam e não consigo dormir. Sentado na
penumbra, de olhos estatelados para o teto de madeira
manchada, me sinto ameaçado por todo lado. Ideias ruins
rastejam até mim. Não deixei de acreditar na ideia de ser ferido
ou morto a qualquer momento. Abaixar a guarda é um luxo que
eu não tenho desde que nasci.
Exausto de pensar e sem respirar direito, vou para fora. Sento
na beira da carroça, as costas acomodadas na roda de madeira.
De pernas dobradas, joelhos para o alto, tenho uma das minhas
facas de arremesso em punho, pressionada contra o peito. Está
gravado no meu cérebro que a vigia precisa ser constante. Das
coisas que Gancho me ensinou, tudo se resumia a isso. Defesa,
sobrevivência e, principalmente, medo. Medo é uma defesa
importante. Mas medo sem reação é só covardia, ele dizia.
Eu não sei mais ao certo do que tenho medo. O circo, antes
um amontoado de monstros e pesadelos, não passa de lona e
tapume cercando pessoas, com nomes e rostos por baixo da
fantasia, que têm pontos fracos, como eu. Ainda assim, eu
mantenho os pés atrás, seguro a barreira que construí entre mim
e eles. Faço um esforço consciente para não confiar.
Tenho uma lembrança, o exato dia em que descobri de onde
vinha o cheiro bom de biscoitos no casaco de Gancho. Foi
quando descobri com o que ele trabalhava e onde vivia nos
outros numerosos dias em que não o via. Perguntei com uma
esperança infantil se um dia ele me levaria ao circo. Eu não
tinha idade o suficiente para que ele me dissesse o motivo, mas
lembro desde então como o “não” tem esse peso de ponto final.
Agora, que estou bem aqui, escuto vozes conversando e
rindo juntas. Quando um violão agradável e afinado toca em
algum lugar à distância, onde imagino pessoas reunidas na beira
de uma carroça coletiva, eu entendo. Quando penso naqueles
bancos compridos e cadeiras numerosas, planejados para caber
muita gente, eu entendo. O que tenho não é bem medo das
histórias que meu pai contava. É algo que nasce da ideia
inconsciente de que sou um condenado a viver sozinho.
Para vingar. Para punir. Para ser o modelo de farsa e mentira
que fui ensinado a ser. É só para isso que estou ali. Só por isso
que quebrei as regras de Gancho.
Aquela vida em grupo e colorida nunca me pertenceria.
Capítulo 9
Mãos mágicas

Não há nenhum alarme pela manhã. Na Terra do Nunca, eles


se orientam pela posição do Sol, mantendo a regra escrita na
bilheteria, sobre não usar instrumentos para contar o tempo. É
com o raio quente que eu acordo no susto e bato a cabeça na
roda de madeira atrás. Um suor fino cobre a testa; os dreads
escorregam do elástico preso, aquecendo ainda mais a nuca.
O ambiente é estranho, os cheiros são errados, o ar tem
ruídos de pratos arranhados — reconheço serem vozes e
risadas distantes. Aos poucos, junto da consciência, vem a
insegurança. Eu não devia ter abaixado a guarda assim.
Ao menos a grama ao meu redor está imperturbável. Nenhum
sinal de purpurina ou indício de que algum sujeito do circo se
aproveitou para se aproximar durante a noite. Fecho os olhos, e
respiro.
Eu entro na carroça para buscar por algumas coisas na
sacola e começar o dia. Depois de uma passagem rápida na
carroça de banho e na mesa de piquenique onde serviram o
café, volto até as tendas no circo. Aqueles que se apresentariam
à noite já estão no picadeiro, montando a estrutura e
providenciando materiais. Parece um plano inteligente me
oferecer para ajudar. Então troco lâmpadas e ajusto holofotes.
Ajudo Gentil a regular suas barras de pesos. Ergo Susi em seu
trapézio para ajustar a altura necessária. Até mesmo aprendo
alguns dos truques do cuspidor de fogo, que me emprestou as
roupas. Até me lembrar que não, não estou aqui para aprender
nada.
Estou no meio do trabalho de carregar uma escada de uma
das vigas de sustentação para a outra do lado oposto, quando
parte da trupe se agita. De costas, ouço os braceletes sacudidos
de Sininho, Gentil e Susi saudando alto a chegada de alguém.
Um lampejo de cores passa por mim. Vários outros artistas
seguem para a entrada, formando uma aglomeração. Estou
mesmo focado em chegar com a escada do outro lado, por isso
nem olho.
Mas assim que me livro do peso e bato a poeira das mãos, a
voz de Sininho se aproxima:
— Jota, você poderia nos dar mais uma ajudinha aqui? Temos
muitas sacolas chegando para carregar.
Não tenho intenção de negar, então apenas concordo com um
acenar de cabeça e a sigo até a entrada do picadeiro, onde a
trupe se aglomera. Todos tentam transportar uma parte das
sacolas para dentro, vez ou outra fuçando o que elas contêm:
alguns equipamentos novos, pedaços de tecidos e acessórios
brilhantes. No meio, a pessoa nova que chegou carregando tudo
está parada, equilibrando o amontoado de embalagens plásticas
até o alto da cabeça, deixando que os outros peguem um pouco
de cada, aliviando a carga aos poucos.
— Aqui, pode me dar o resto… — Sou um dos últimos a
chegar, então me encarrego da pilha de caixas que sobrou no
colo dela.
A pilha não é tão alta pra mim quanto é pra ela. Por isso,
quando a pego, tenho um vislumbre exato de seu rosto, e ela do
meu. Mas como eu gostaria de não ter tido.
Congelado pela surpresa, me vejo encarando a mulher que
me parou no beco, dias atrás. Ela tem o mesmo vestido de
retalhos, a mesma lágrima pintada no rosto, o cabelo chanel
curvado ao redor das orelhas e a máscara de teatro repousada
em cima da cabeça. E pelo seu olhar arregalado, ela se lembra
de mim tão bem quanto eu dela.
— Ei! Eu conheço você! — A mulher exclama as últimas
palavras que eu gostaria de ouvir ali dentro do circo.
Tentando me encolher atrás da pilha de caixas, finjo que não
é comigo, pronto para dar meia volta e sumir atrás das cortinas
dos bastidores. Mas todos os outros já pararam para me olhar.
Uma a uma, as vozes se calam. O único movimento é o da
mulher segurando a barra do vestido para se aproximar e fazer
me chegar mais perto de um ataque cardíaco.
— O Jota? — Sininho é quem quebra o silêncio. — Ele é
jornalista. Veio fazer uma matéria que ajude a atrair público e vai
ficar por uns dias.
— Esse é o nome dele? Não sabia. Mas me lembro bem
desse rosto. E dessas mãozinhas.
A trupe arfa toda junta, um som conjunto de respiração presa.
O grupo segue a mulher, que para bem à minha frente.
— O que viu nas mãos dele, Socorro?! — Sininho e mais uma
porção de gente pergunta, uns por cima dos outros.
As dezenas de olhos acompanham fixos e sem piscar.
Socorro para à minha frente, e encara como se visse através de
mim.
— Magia — ela responde, sem hesitar.
Todos arfam de novo.
— Não sei do que você… — começo, mas as argolas no
pulso de Socorro escorregam com o movimento que ela faz de
erguer o braço com a mão aberta, me cortando.
— Eu sou a vidente desse circo, menino — ela diz com
orgulho e ombros alinhados. — Sei bem o que vejo na palma de
uma mão.
— Que magia? O que ele faz? — A mesma pergunta vem de
várias bocas ao mesmo tempo.
Ela aguarda um segundo, olhando para mim. Parece esperar
para ver se quem irá contar será eu ou ela. Mas eu só consigo
continuar petrificado e sem reação, a voz tomada pelo pânico.
Então ela continua:
— Eu estava… Cuidado dos negócios. E ele apareceu
tropeçando bem em cima de um sujeito que tentava me passar a
perna. — Ainda que sua voz seja durona, ela toma um novo tom,
suavizado pelo sentimentalismo de uma certa… gratidão? Eu
nem sabia que estava ajudando naquele dia. — Mas vocês
sabem como não acredito em coincidências. Senti como se o
conhecesse. Percebi a energia logo que passou por mim. E
quando olhei, lá estava.
— Mesmo?! Jota! — Sininho diz de um jeito admirado, as
mãos cruzadas sobre o peito.
— Conta aí! Que magia é? — pergunta Gentil, a figura
musculosa e bigoduda no fundo da aglomeração sorrindo
entusiasmada.
Eu pareço o único aterrorizado, a cara contorcida de pavor, o
corpo tenso e preparado para correr. Respiro fundo. Seria
melhor aproveitar o fato de não tê-los assustado com isso e lhes
dar ao menos um pouco de verdade, para que confiem em mim.
— Bom… Eu… Meio que toco nas coisas e…
— Ele tem clarividência! Ou algo bem parecido. — Socorro
passa na frente e responde por mim.
— Clarividência? Como a da… — Alguém diz, mas não
completa. A sugestão faz queixos caírem e olhares se cruzarem,
em silêncio. Parece o nome de alguém que estão proibidos de
dizer em voz alta, como o de Wendy.
Susi abre caminho, passa a frente, e sapateia com pés
ansiosos à minha frente.
— Por que não contou antes? Não seja tímido, mostra para a
gente! Isso funciona em qualquer um? Faz em mim! — Ela
atropela as palavras.
Vejo os diversos rostos pintados, máscaras de carnaval e
cabeças de fantasias de animais apontados na minha direção.
Procuro por suas reações. Todos eles estão sem piscar, sem se
mover, ansiosos, mas sem medo. Nunca fui convidado a ler as
memórias de alguém assim. É arriscado revelar a eles minha
melhor arma. Mas também é a chance que pedi para ganhar e
conquistar espaço entre eles.
Susi veste um macacão brilhante que é colado e tem mangas
compridas. Ergo o pulso dela e toco no dorso da mão, a única
parte de pele exposta. Engulo em seco, mas ela sorri e acena.
Então permito que as pontas dos meus dedos revivam suas
lembranças.
Não é uma memória que eu escolhi ver. Tampouco uma que
estivesse na borda da consciência, recente. É simplesmente a
lembrança mais pesada, carrega tanta importância que se
destaca das outras. Foi algo que me tornei bom de alcançar,
depois dos 3 dias de treino intenso antes de vir para o circo.
Volto a minha própria consciência segundos depois, com a
imagem mais forte guardada na memória de Susi. Minha boca
se abre, mas a voz não sai. Não sei se devo dizer o que vi. Mas
ela ainda espera, e os outros também.
— Você… — Minha garganta arranha. Solto um tossido
forçado. — Perdeu alguém… Importante.
Uma criança, acrescento mentalmente. Vi ela chorando sobre
um corpo miúdo.
A mesma Susi sorridente perde o brilho, o canto dos lábios
treme e os olhos se enchem d’água.
— Fazia muito tempo que eu não pensava nisso.
— Me desculpe. Eu não quis… — Largo sua mão, me
sentindo horrível e culpado. Mesmo que não tivesse como
prever uma coisa assim.
— Tudo bem. Tudo bem. — Ela solta um riso trêmulo e funga,
esfregando os olhos. — É verdade, pessoal. Ele tem magia.
Consegue até ver a “outra vida”.
O coro de suspiros e palavras atropeladas volta a ganhar
volume. Eu só consigo me sentir constrangido pelo o que fiz.
Olho para Gentil atrás do grupo. Ele tem um olhar preocupado
que vai e vem entre mim e a mulher que ele prometeu se casar.
Deve achar que fiz algo de ruim. E talvez eu tenha mesmo feito.
Apesar da melancolia, aplausos, uivos, assovios e desejos de
parabéns crescem numa onda sonora. Pisco frente à trupe
extasiada, aprontando uma festa, aprovando o único pedaço de
verdade sobre mim que mostrei a eles. Até Susi está aplaudindo
e sorrindo de novo. Eu não reajo por não saber o que fazer. Isso
nunca aconteceu antes.
Uma silhueta atravessa as cortinas dos bastidores atrás de
mim. Eu mais sinto do que vejo. Os olhos da trupe seguem, e eu
sigo junto, virando o rosto. É a figura pequena, de pele castanha
e casaco extravagante. Claro que Peter Pan apareceria para ver
o que distraía os servidores do trabalho. Os Garotos Perdido
estão logo atrás, escoltando; não duvido que tenham ido buscar
o mestre para tentar me punir.
— Peter, você não vai acreditar! — Sininho é a primeira a se
manifestar. — Socorro o encontrou antes e viu magia nas linhas
das mãos dele. É como a dela, só que o inverso, porque vê o
passado! É incrível, não?!
Pan sorri para Sininho, mas quando se vira para mim, posso
ver como o gesto não alcança os olhos. Ainda me pego em
dúvida se suas íris são castanho muito claras ou verde muito
escuras, depende da luz. Se o cabelo enrolado é marrom claro
ou loiro escuro. Pan é cheio de impressões incertas. Nada nele
é feito para passar segurança.
— Ele tem magia, Peter. Como você! — Susi completa. A
impressão da moça triste de antes parece nem ter existido. —
Ele até poderia começar um novo número aqui no circo!
A sugestão me faz vacilar para trás.
— Susi, você é realmente um doce — Pan diz —, mas acha
mesmo que pode confiar em alguém assim?
O silêncio corta o ar de novo. Bocas abrem e fecham; nada
dizem. O canto da boca de Pan ainda guarda um riso de quem
se acha na vantagem.
— Não quero julgar ninguém, mas… — Pan fica no mesmo
lugar, admirando as unhas, se fazendo de distraído. — Alguém
com uma capacidade dessas pode fazer uma sujeira grande. —
Ele faz uma pausa e avalia os rostos que o assistem. Eu aperto
as unhas contra a palma da mão, me segurando. Preciso
esperar pelo seu movimento no tabuleiro para pensar numa
jogada. — Não pedi para me contarem sobre a “outra vida” de
vocês, antes de entrarem na Terra do Nunca. Não cobrei seus
segredos. Sempre os respeitei, não? Para agora, vocês serem
ameaçados por um… estrangeiro? Me desculpem, não sei se
posso deixar acontecer isso com a minha trupe.
A palavra “estrangeiro” faz um calor raivoso subir pelo meu
rosto. Estrangeiros foram mal vistos e abominados em Nova
Eldorado por muito tempo; o nome ainda carrega o peso de uma
ofensa, quase amaldiçoado. Posso sentir o momento que as
dezenas de olhares mudos começam a se virar para mim, tortos,
desconfiados.
— Eu não sou uma ameaça — murmuro entre os dentes. Não
para eles.
— Não? Pois eu acho que você põe em risco a privacidade de
todo mundo. Quem garante que você já não xeretou nas coisas
de alguém? Você até entrou no acampamento.
Mordo a língua, olho de canto, vejo todos se fecharem sobre
mim.
— Eu… Não fiz isso.
Pan torce a boca.
— Nem você mesmo parece certo disso.
— Eu não vi nada de importante. — Minha voz se eleva.
Deixo a raiva escorregar, num tom passivo-agressivo. —
Algumas histórias são enterradas fundo demais, mesmo que eu
saiba onde procurar.
A trupe se surpreende, um passo para trás. Pan ajeita o
casaco de penas e morde de novo o sorriso escondido. Meti
praticamente os dois pés em sua armadilha, e ele adora isso.
Estou dando exatamente o que ele quer: um bom motivo para
me expulsar.
Imito sua falsa calma. Suspiro devagar e relaxo os ombros.
— Eu me disponho aqui a jurar na frente de todos — pauso
para correr os olhos pela trupe e então continuo — que não
tocarei em nada que seja muito importante ou pessoal de vocês.
Não sem consentimento.
Olho para a trupe, porque é para eles quem estou
prometendo. Não para Peter Pan. Nunca Pan.
— É claro que não vai, Senhor Convidado. — Aquela voz
irritante toma de volta a atenção quando algumas cabeças
acenam para mim, concordando. — Para ser honesto então,
acho justo que nos conte como funcionam suas… Mãos
mágicas. Cada detalhe, por favor.
A educação polida que ele usa me faz querer mandar que
cale a boca. Enquanto a trupe aguarda, sem interromper, eu
encaro o rosto daquele que é ardiloso demais para que eu
continue o tratando como garoto. Ele não é. Simplesmente se
aproveita da aparência jovem e inocente para se fingir.
Finge como eu, minha consciência cobra.
Ele pode querer saber como funciono para entender como me
evitar, como me controlar. Mas não deixo de pensar em como
também quer usar a exposição contra mim. Que eu revele como
minha habilidade é podre, que posso ser perigoso para qualquer
um ao meu redor. No entanto, é como Bravo disse: preciso
conquistá-los para estar impenetrável contra os ataques de Pan.
— Eu não vejo o futuro. Não leio mentes. Não manipulo
pensamentos. Eu só… Leio histórias passadas. Memórias
guardadas. Só isso.
Posso ouvir suspiros suaves de alívio sendo soltos ao meu
redor. Alguns soltam risos baixos e nervosos. Pan, obviamente,
não está convencido por completo.
— E…? — Sua mão dá voltas leves no ar, um gesto me
coagindo a lhe dar mais.
Eu inflo as narinas. Preciso dar um detalhe importante para
que largue do meu pé.
— Esbarrões casuais não funcionam. Só leio quando posso
segurar na superfície, ou… na pele.
— Então é impedido por barreiras que atrapalham o contato
direto?
— Sim. — Não posso negar a resposta e correr risco de ser
pego. Sei como mentir, e ainda mais quando não mentir.
Sobre ser capaz de ler mais rápido hoje do que antes, poder
provocar certas memórias a aparecer, ou poder sentir o peso e a
importância de certas lembranças, eu deixo quieto e espero que
ninguém pergunte.
— Muito bem. — Pan não insinua mais nada. Parece
satisfeito. Ele apenas torce o corpo para o Garoto Perdido mais
próximo do seu lado direito, o número 1. Todos conseguem
ouvir. — Max, você pode por favor ir até o meu camarim e
buscar minhas luvas?
Max sai correndo para dentro dos bastidores, como se a
velocidade em atender a ordem rendesse algum ponto extra.
Todos esperam sem saber o que dizer ainda, cochichos baixos
circulando aqui e ali. Antes que alguém tente dizer algo em voz
alta, Max ressurge entregando sua encomenda.
Pan se aproxima a passos lentos e descalços. Ele tem o
sorriso mais cínico que já vi quando me estende um par de luvas
pretas de seda, brilhantes contra a luz morna atravessando a
lona vermelha.
— Você não teria nenhum problema com isso, teria? — Ele
parece muito convencido de que me atingiu por um ponto cego.
Meu olhar de um olho só desce para as luvas, contempla os
dedos murchos pendurados no ar, e sobe de volta para o rosto
de Peter Pan. É verdade que ele coloca uma barreira no meu
caminho com isso, mas conseguiu fazer isso da pior maneira
que podia, e nem percebeu.
— Suas luvas, hum? — Ergo uma sobrancelha.
Ele sabe que fez algo errado quando me vê sorrindo. Tenta
recuar, mas eu já estou lá para tomar o objeto que me dá de
mão beijada. Puxo as luvas de seu aperto, glorioso em ter algo
que pertença a Peter Pan sem precisar nem me arriscar.
Antes mesmo de vasculhar a história de forma consciente, a
memória mais pesada da luva invade minha mente, como uma
onda gigante tomando forma, prestes a quebrar sobre mim. É
uma sombra viva, um breu terrivelmente obscuro engolindo
minha consciência. Tenho um giro doloroso dentro da própria
cabeça, um soco no peito com uma dor que não consigo lidar.
Não vejo nada e sou sugado pelo vazio. Simplesmente apago.
Só me dou conta que estou caindo quando sou amparado por
mãos ágeis, me segurando por trás. Eles me sentam no chão, e
entre manchas pretas e bordas borradas, tenho o vislumbre dos
rostos de Gentil e Pio. Outras cabeças começam a aparecer, a
multidão se fecha sobre mim. Zonzo, reparo uma fresta entre
dois corpos fantasiados. Na fresta, o olhar de Pan sobre mim.
Ele está assustado.
Com todos distraídos, ele se vira apressado e some por trás
da cortina, seguido pelos Garotos Perdidos.
Capítulo 10
Mentiras herdadas

Sininho, Gentil e Susi me fazem ficar o resto do dia e da noite


descansando. Eu não entendo como eles podem sequer se
importar comigo, mas estou cansado demais para pensar e só
obedeço.
No dia seguinte, é segunda-feira. Dia de circo fechado para o
público e dedicado à organização da semana. Quando os
convenço de que já estou completamente lúcido de novo, de que
não passou de um mal-estar súbito por causa da tenda fechada,
eles me deixam sair. Me levam junto para ajudar na cozinha, um
modo de ficarem de olho em mim.
Eu saio com o jeans e a camisa emprestados, além das
malditas luvas. Surpreendentemente, Pan tem mãos do tamanho
parecido com as minhas. As luvas até servem bem, mas não
deixam de incomodar.
O assombro escuro e sombrio que tive não aparece mais.
Tenho tanto medo de que volte que nem tento cavar fundo nas
lembranças do objeto. Só fico tendo as visões de memórias
superficiais que as luvas guardam: visões de Peter Pan em seu
espetaculozinho, sorrindo, sendo adorável, encantador, e tudo
que acredito que ele não seja. Já tentei evitar, mas ficar tanto
tempo em contato com um objeto assim faz meus dedos agirem
no automático.
Não só os preparativos para o resto da semana estão sendo
feitos. Além das reservas habituais de sustento da trupe, eles
também armazenam alimentos maiores, caixotes especiais. Algo
de diferente estava por se aproximar, Sininho comentou durante
o jantar, mas ainda não sei o quê, só guardo a ideia para depois.
Da despensa de mantimentos, Gentil, Pio e eu levamos sacos
de batatas sobre os ombros até a carroça da cozinha.
Descarrego a carga no chão quando chegamos. A cozinha é um
espaço grande, melhor equipado do que pensei que seria. Um
vão no meio, ocupado por mesa e cadeiras, é limitado por um
balcão em forma de “U” quadrado. Por trás dele, há utensílios
pendurados nas paredes, panelas nas prateleiras, geladeiras a
querosene, fogão a lenha de ferro, e uma chaminé em
funcionamento.
Na parede perto da entrada, há uma coleção de retratos
emoldurados, todos com o mesmo padrão: a trupe reunida ao
redor da mesa de piquenique, pequena demais para comportar
todos, por isso alguns sentam no chão.
De perto, percebo como as primeiras fotografias no alto são
em sépia, passando para fotos preto e brancas até terminar nas
atuais, coloridas. É o mais próximo de um registro de tempo que
já vi na Terra do Nunca. Os figurinos e os personagens
estampados são sempre os mesmos, com pequenas variações.
A única coisa que muda são os corpos que os ocupam.
Comparando, noto a diferença sutil entre os rostos, mesmo
cobertos de tanta maquiagem e fantasia.
É claro que começo a caçar por Gancho. Ele está em 10 fotos
diferentes: duas preto e brancas, as outras coloridas. Tem um
gancho na ponta da manga direita, mas não é o real; só fantasia.
Ele está sempre de pé, braços cruzados, perto da borda da
mesa. Não sorri em nenhuma. Ao seu redor, tem a companhia
de Sr. Marujo e Princesa Tigrinha — seu assistente de palco e
sua companheira de espetáculo — e os dois sorriem por ele. Na
última, Tigrinha até arrisca um chifrinho com os dedos atrás da
cabeça de Gancho. Eu rio sozinho. Nem preciso tocar na
fotografia para sentir a memória que ela guarda.
Admiro o homem do retrato como um espelho, orgulhoso de
ter herdado seus traços, ainda que mais suavizados pela outra
metade da genética. Meu olhar escorrega para o lado, quase
que por magnetismo. Ali está Peter Pan, sentado bem em cima
da mesa, descalço e pouco vestido, sem nenhuma civilização.
Não é surpresa ver como ele ocupa o lugar central. Seu sorriso
encenado não mudou ao correr dos anos, nem aquele nariz
empinado, e o olhar de cima mesmo sendo baixinho.
Até a última foto preto e branca de Gancho, Pan não está em
lugar nenhum. Mas na primeira foto colorida de meu pai, ele
surge como uma verdadeira criança no meio de gente crescida.
Através dos retratos, o vejo crescer ao tamanho que está hoje
até… parar. E continuar exatamente o mesmo, até a última foto
mais recente. Eu afundo as sobrancelhas. Comparando de novo,
todos os artistas por trás dos personagens mudam. Menos Peter
Pan.
— Ei, Jota! Dá uma mãozinha aqui? — Gentil chama e eu me
viro no susto. Um dos sacos de batatas que ele carrega rasgou,
e o homem-forte tenta equilibrar ao mesmo tempo que tapa o
buraco. Ele ri, notando o que falou. — Quer dizer, não o lance da
sua mãozinha especial.
Reviro os olhos enquanto ele ri e vou ajudar. Outros membros
da trupe já estão trabalhando para o almoço, então nos
juntamos a eles com Pio.
Quando Sininho passa para nos supervisionar, sacudindo
seus braceletes e batendo suas asas em todo canto, ela acaba
ouvindo minha lamentação:
— Será que preciso mesmo dessas luvas até para descascar
batatas?
Acabo de ter mais um flash de memória sobre Pan e já não
aguento mais o jeito como me perturba. Sininho então permite
que eu tire as luvas na cozinha. Ela comenta como Pan
exagerou quando decidiu aquilo.
— Você não iria querer nos fazer mal, não é? Até ajudar
Socorro você ajudou. Ela viu como não tem nada de errado nas
linhas das suas mãos — Sininho argumenta.
Escuto calado, descascando batatas. Não é a primeira vez
que ela me faz sentir culpado por mentir.
Um momento depois, tento mudar de assunto.
— Então… Eu estive pensando e acho que tenho algumas
estratégias para fazer o circo alavancar, antes da reportagem
sair.
Parece o mínimo que eu posso fazer, já que a única
reportagem provável é a escrita por um jornalista de verdade,
contando sobre a prisão de Peter Pan quando eu sair daqui.
O tópico faz com que levantam as orelhas para ouvir. Eu olho
de um para o outro, avaliando se estão preparados. Então
suspiro, soltando o descascador e a batata pela metade.
— É o seguinte: Vocês precisam sair.
Sininho, Gentil e Pio dobram seus olhares de dúvida.
— Sair, tipo… Agora? — Sininho questiona.
— Não! Não. Vocês, com a trupe, precisam sair pelas ruas de
Nova Eldorado. Se exibir, mostrar um pouco do que tem. Sabe,
propaganda é tudo hoje em dia — respondo com calma. —
Vocês precisam reconquistar as pessoas, mostrar que ainda
existem. Quem sabe até… começar turnês por outras cidades.
Diante de seus rostos congelados, percebo como terem
parado com os desfiles pela cidade e se retraído pelos boatos
ruins dos jornais os fez perder o jeito de como fazer contato.
— Outras cidades?! — Sininho e Gentil exclamam juntos. Pio
elabora uma mímica espantada com as mãos no rosto.
— É. Circos supostamente deveriam ser itinerantes. Vocês
poderiam aproveitar o fato que têm tantas carroças e sair com
algumas. E eu sei que Nova Eldorado tem essa besteira de ser
perdida e protegida por barreiras mágicas, mas existem outras
cidades perdidas também por aí. É só seguir a Linha Ley que
alimenta a magia.
Os três trocam olhares arregalados, como se estivessem
lidando com um louco. Pesco algo do bolso que é metade
caneta, metade canivete. Puxo um guardanapo da mesa e
começo a rabiscar.
— Deixa que eu mostro como começar isso.
Passo meia hora falando sobre panfletos para distribuir,
números para demonstrar na rua, além das campanhas
comemorativas que poderiam fazer. Sai meio no improviso, mas
metade dessas coisas eu já tinha mesmo pensado antes,
quando criança. Se eu não podia ir ao circo, eu sonhava que um
dia ele viria até mim.
No fim, eles parecem convencidos. Sininho recolhe o
guardanapo e guarda no bolso secreto do vestido. Ela e Gentil
entram numa conversa acalorada sobre o assunto, tendo ainda
mais ideias. Pio só fica lá, mudo. Eu descasco as batatas
fingindo que não estou consciente de seu olhar sobre mim, me
suspeitando.
Até que Pio agarra minha mão, me fazendo soltar a batata.
Sem mais nem menos, passa o descascador na ponta do meu
dedo indicador e corta ele. Grito mais pelo susto do que pela
dor.
— Jota! Deuses, cuidado! — Sininho se vira assustada, só
que tarde demais. Pio já me soltou, fingindo que não tem culpa.
Gentil enrola o pano de prato ao redor, para estancar o
sangramento.
— Mas não fui eu! Foi-
— Ele precisa ir pra enfermaria! — Pio me atropela de
repente. — Pode deixar que eu levo!
Nós três olhamos para ele de boca aberta, mas sem som
algum. Ele é o mímico, não deveria falar nunca. É a primeira vez
que escuto sua voz, e é mais jovem do que esperava.
Antes de qualquer questionamento, Pio já está de pé me
puxando pelo cotovelo. Saio tropeçando ao lado dele, com a
força que ele usa para me arrastar. Ninguém nos segue, embora
Sininho grite que vai sair e procurar alguém para ajudar.
Na carroça da enfermaria, eu caio sentado numa maca
estreita, ofegante pela caminhada apressada. Pio bate a porta e
vigia a escotilha. Eu não entendo nada, é como se ele estivesse
garantindo que não há mais alguém por perto.
— Você tem problema, cara?! — resmungo de saco cheio,
apertando o dedo enrolado no pano. — Uma coisa é ficar me
seguindo que nem um maluco. Até aí eu fiquei de boa. Mas se
acha que pode me acertar coisa e não levar troco, você vai ter
uma surpresa.
O sangue quente me faz querer socá-lo, mas ele se vira e
começa a… falar.
— Me desculpa. Mas era o único jeito — ele soa resignado,
mas também impaciente.
— Jeito de quê? Não precisa cortar meu dedo fora! Aquilo
que Peter Pan falou ontem, eu não vou…
— Não foi por causa da sua habilidade — Pio corta. — Faz
vários dias que eu preciso de um momento só com você, Julian.
Meu sangue congela. Tento não me mostrar afetado, mas
com certeza pareço um animal assustado na frente dos faróis de
um carro.
— Do que você me chamou?
— Do seu nome. Julian.
— Eu não sei do que você está falando — respondo já me
levantando, mas Pio me empurra sentado de novo. Eu olho
insultado pela ousadia.
— Nem perde seu tempo — ele diz.
— Quem caralhos é você?
O que Pio faz é soltar um riso, que é mais ar do que humor.
— Olha, sinceramente, estou ofendido que eu tenha que falar.
— Seu rosto sem expressão de mímico é tomado por um
semblante contrariado. Ele estende os braços abertos e
gesticula para si. — Olha pra mim, porra!
Eu retorço o rosto, estranhando. Só vejo um cara magrelo
vestido de macacão e gola bufante, maquiado até o último poro
por uma pasta branca na cara. Pio suspira. Suas mãos
enluvadas de branco vão até a cabeça e arrancam a touca preta
que ele usa.
Meus olhos se arregalam e o ar fica preso na garganta. Ele
tem um cabelo liso, ruivo como fogo, mas o que chama a
atenção é a cicatriz que vai da orelha até a testa, formando uma
falha em risco no meio do cabelo. Ele se desequilibrou da
bicicleta e caiu numa cerca quando era pequeno. Eu sei da
história sem precisar tocar na cicatriz e acessar as memórias.
— Dênis?!
— Surpresa!
Meu antigo irmão postiço, que dividiu a casa de Cristóvão
comigo, tenta um gesto engraçadinho de mímico com as mãos.
— Você não tava desaparecido, seu desgraçado? Por 5 anos!
— Tento não falar alto.
— Pois é. Adivinha onde eu tava? — Ele dá de ombros. Com
as palmas para cima, gesticula para a carroça, para o circo.
Então deixa os braços caírem. — Mas sabe quem não devia
estar aqui? Exatamente: Você.
O medo me atravessa como uma agulhada gelada, e meu
dedo volta a latejar. Retribuo o olhar sério de Pio- Quer dizer…
Dênis.
— Você não pode me entregar. — Quase completo com um
“pelo amor dos deuses”, mesmo não acreditando em nenhum
deles.
— Não posso? Você é que não pode estar aqui, cacete! —
Ele diz em um tom que me faz duvidar de que lado ele está.
Olha pela escotilha e se vira de volta com a voz mais contida. —
Eu devo lealdade ao Gancho, e tenho certeza que ele trabalhou
a vida inteira para te manter fora daqui!
Reviro os olhos.
— Você parece o Cristóvão falando. Como se eu não
soubesse o que Gancho pregava.
— Mas parece que não sabe mesmo! — Dênis estala a língua
e coça a cabeça com força. Desliza a toca de volta cobrindo os
cabelos, e deixa a voz mais controlada. — O que está querendo
aqui, hein? Ser morto?
Morte. Com toda a atenção de Sininho, Gentil e Susi, eu tinha
parado de pensar nisso sem perceber.
— Eu sei o que estou fazendo. E sei muito bem me defender,
obrigado — retruco. É melhor não dizer nada sobre minha
intenção dentro do circo, sem a certeza que posso contar com
ele. — E que direito você tem de falar sobre mim? Tava cheio de
merda nas costas o tempo todo, caçando confusão. Sumiu um
tempão, e agora age como se nada tivesse acontecido. Deixou o
Cristóvão quebrado, sabia? Ele achou que era culpa dele que
você desapareceu.
Dênis murcha a expressão, abaixa os ombros e dá alguns
passos para trás, até se encostar na parede. Deita a cabeça na
madeira e escora um pé levantado.
— Desde quando você tá aqui? — insisto.
— Desde que saí da casa do Cris — ele responde para o teto.
— O desgraçado do meu pai morreu, mas deixou um monte de
dívida pra mim. Eu tava sendo procurado pela gangue da SAX,
cara. — O pomo-de-adão em sua garganta sobe e desce. — Eu
entrei aqui pra ver um espetáculo e fiquei escondido até depois
que acabou, pra ver se me deixavam ficar. Eu nem sei onde tava
com a cabeça. Gancho me reconheceu, das vezes que você
ficou lá em casa. Ele disse que iria me proteger porque eu
protegi você quando precisou. Então virei o mímico. O cara que
fazia o palhaço ficou puto e vazou, mas isso é outra história.
Meu coração dispara sozinho.
— Você… Você viveu com o meu pai — digo a última palavra
sem querer e mordo a boca.
— Mais ou menos. A gente se cruzava no acampamento.
— Então você… Você viu quando ele… Morreu?
Dênis abaixa o olhar do teto para mim. A impaciência é
substituída por pena.
— Na moral mesmo? Eu acho que ninguém viu. Foi tão de
repente. Ninguém esperava. Não teve nem barulho. Se ninguém
fosse no camarim dele para chamar, duvido que alguém ia ficar
sabendo tão cedo. A Tigrinha voltou de lá horrorizada. — Dênis
vê a expressão no meu rosto e impede a si mesmo de continuar.
— Desculpa dizer essas coisas. Acho que fui muito fundo.
Não. Ele não foi nem até a metade. Porque eu tinha visto
essa memória da Princesa Tigrinha, quando ela começou a
chorar descontrolada no meio da entrevista, meses atrás. É daí
que vem minha hesitação de tocar qualquer pessoa que possa
ter visto o corpo.
— E ninguém fez nada? — pergunto feito um robô.
Ouço quando Dênis engole em seco.
— Não tinha… o que fazer. Os investigadores que chegaram
disseram que…
Ele nem completa. Não precisa. Sei que está pensando na
teoria do suicídio elaborada pela polícia. Minha decepção é que
ele acredite nisso.
Fungo e junto os meus cacos de volta. Anoto mentalmente
que preciso procurar sobre o antigo camarim de Gancho, saber
dos objetos que estavam lá – apesar de Bravo ter levado uma
caixa cheia deles para mim e não ter adiantado nada.
Por um instante, só fico parado, desligado.
Desenrolo o pano do dedo e vejo que o corte praticamente
estancou, com um tampão de sangue coagulado na ponta. Foi
mais superficial do que pensei.
— Você percebeu… alguma coisa quando ele ainda era vivo?
— Acabo perguntando. — Sei lá. Me conta alguma coisa nova,
só pra variar.
Dênis olha de um canto para o outro, pensando.
— Bom, quando entrei pra trupe, descobri que ele era
obcecado pelo comando da Terra do Nunca. Na verdade, todos
os mais velhos são um pouco. É uma posição privilegiada e bem
cobiçada. Só que muita gente respeita mesmo o Peter, então
tipo, nem pensam em tirar ele.
Esse pedaço de informação me anima de forma considerável.
Parece promissor. Faço um lembrete na mente para isso
também.
Mas ao mesmo tempo… Se ser comandante do maldito circo
era a maior ambição de Gancho, significa que os planos que me
contava sobre ele se aposentar, nos mudarmos de Nova
Eldorado, construir uma vida decente de verdade… Não
passavam de historinhas para me fazer dormir. Um conto de
fadas para calar minha boca e deixá-lo em paz.
Ranjo os dentes, apertando o colchão da maca até as juntas
perderem a circulação. Idiota. É claro que a pessoa que mais me
ensinou a mentir seria um mestre nisso. Como eu fui estúpido.
Dênis interpreta errado minha reação. Tenta contornar.
— Mas não é de todo mal. Viver na Terra do Nunca também
tem partes boas — ele continua falando. — Quando te aceitam
como um deles, você pode fazer qualquer coisa que quiser. E
nunca falta nada, tipo, nada mesmo. E a gente nada no rio, foge
pra floresta lá atrás. Depois acha que se perdeu e volta
correndo. E ri. E deita na grama pro sol secar. Assiste estrelas
cadentes nos dias de folga. Faz festa e luau. Às vezes dá pra
trepar e fumar um sem que ninguém perceba. E você recebe
atenção de verdade, sabe? No palco então… Nossa! Você tinha
que ver quando a arquibancada enchia. Você vai lá na frente, faz
o que gosta, e ganha aplausos por isso. As pessoas te adoram e
você finalmente é útil de alguma forma, entende?
Minha cara para ele não está muito melhor. Porque não, eu
não entendo. Não faço ideia como é sentir nada disso. Tudo
porque o cara que mais adorei na vida me encheu de medo, me
disse que o circo era ruim, que eu nunca poderia entrar. Agora
eu descubro que ele é um mentiroso de todas as formas.
Não posso surtar na frente de Dênis, nem num lugar onde
pode chegar mais gente. Seguro a onda, mesmo que queime do
lado de dentro.
É minha melhor decisão, porque a porta se abre, trazendo
uma lufada de ar novo. Sininho e Gentil chegam com a
cuidadora – a malabarista-polvo, com um monte de tentáculos
roxo-brilhantes pendurados da barra do vestido. Ela diz ser
acostumada a acidentes de trabalho de todos os tipos.
Enquanto me examina, Dênis, que já voltou a ser Pio, sai
calado de esgueira. Nossos olhares se cruzam uma última vez
quando ele passa por trás da malabarista. Eu envio um pedido –
uma súplica – através do gesto. Ele só pisca normal e sai em
silêncio da carroça.
Tudo que posso fazer é torcer para que ele não conte para
ninguém sobre minha identidade. Que não conte sobre as
mentiras que herdei.
Capítulo 11
Um segredo por outro

Sonhar se tornou algo raro. Há anos, dormir se resumiu a


apenas me entregar para um apagão silencioso, até despertar
no outro dia.
Desta vez, meu sono é feito de intervalos ofegantes para
piscar pro teto e secar a nuca fria. O dormitório está
imperturbavelmente quieto no escuro, mas eu continuo voltando
à borda da consciência por meio de sons, vozes e imagens
zumbindo dentro da cabeça.
As sensações se sobrepõem, até entrarem em foco. Vejo o
verde de um campo que só existe na minha cabeça. O mato se
deitando suavemente com a brisa que sopra. E o castanho do
corpo de Peter Pan caído, inerte logo abaixo de mim. Estou
agachado sobre ele antes de registrar a mudança de
movimento. Assim como estou tocando em sua pele quente
antes de pensar direito no que estou fazendo.
Minha mão desliza sozinha pela pele da barriga exposta até o
peito. Me sinto íntimo. Um suspiro me escapa pela boca. Eu
deveria receber um disparo de memória, ver alguma lembrança
ao tocá-lo. Mas não vejo nada. Estou ocupado em… sentir.
Minha mão continua subindo feito uma serpente até seu
pescoço, seu queixo, sua boca. Pan pisca lento e abaixa o rosto.
Sente os dedos em seu lábio de baixo e prova da minha pele
com um pouco de língua. Ele olha para dentro de mim.
De boca seca, eu pisco. Acontece outra mudança sem a
percepção da consciência. Pan ainda me olha, mas de cima,
enquanto estou de joelhos à sua frente. Ele me toca agora. Seus
dedos mágicos se fecham ao redor da minha garganta, me
erguem para cima. Cara a cara, na mesma altura, ele respira
contra o meu rosto. Eu poderia me inclinar. O pensamento me
assusta.
Refletido em seu olhar sinistro, me vejo exposto sem o tapa-
olho.
Pan ergue o outro braço para que eu veja. Segura um punhal,
ensanguentado.
Eu olho para baixo, e percebo minha mão direita arrancada.
Sou empurrado de volta à realidade. Sinto a solidez do
colchão, reconheço a escuridão da noite dentro da carroça.
Encaro o teto com o peito subindo e descendo rápido. O rosto
quente de vergonha e susto. Olho para baixo de novo e minhas
mãos ainda estão aqui. De luvas.
Não tem mais ninguém na carroça além de Pio, então arranco
as luvas pelos dedos. Sem elas, esfrego o rosto e minhas
pálpebras fatigadas pesam sozinhas aos poucos. Deixo as luvas
soltas ao lado do travesseiro e a silhueta delas é a última coisa
que registro antes de apagar. Mãos de uma sombra apenas
esperando eu fechar os olhos.
Parece um simples piscar quando acordo e já é de manhã. A
noite mal dormida me faz sentir moído, como se tivesse passado
o tempo correndo ao invés de deitado.
Algo me cutuca pelo braço, travado de tensão. Abro os olhos
de uma vez e encontro um rosto branco e sem expressão
pairando sobre mim.
— Ótimo. Ainda está vivo — comenta Dênis por trás da
máscara de Pio.
Ele se afasta quando sento na cama e me arrasto para a
beira do colchão. Com a cabeça caída entre os ombros e as
pontas de dreads compridos pendendo no ar, eu esfrego os
olhos, ajustando à realidade.
— Que horas são?
— Você realmente está perguntando isso aqui? — Dênis soa
irônico. — Tem um sol lá fora, se isso ajuda.
Eu gemo cansado.
— Esquece. Fiquei meio pirado. Noite ruim de sono.
O susto já desbotou, mas a vergonha deixou um vestígio para
trás. É como se eu pudesse sentir a sensação de pele sob os
dedos como algo real. E a vontade de me inclinar para o rosto
na minha frente.
Perturbado, levanto a cabeça e vejo Dênis amarrando o
último de seus sapatos.
— Sono? Eu acho que você nem ao menos dormiu, cara.
Ficou todo se revirando — ele comenta agachado. — Te
cutuquei porque a Sininho está organizando uma parada e
mandou chamar boa parte da trupe. Eu já estou indo. Você
deveria se arrumar rápido e fazer o mesmo.
Alivio um pouco da tensão nas costas quando percebo que
Dênis está tentando ser minimamente parceiro. Depois de se
revelar ontem, eu podia jurar que não era do meu lado que ele
jogaria. Mas aqui estamos. Ele não contou a ninguém sobre
mim, caso contrário, já teriam vindo me arrancar à força do
acampamento, certo?
— Valeu — agradeço, esperando que entenda que não é só
pelo recado. — Estarei logo atrás de você.
Dênis está saindo pelo alçapão no chão, e eu me levanto para
buscar uma roupa na sacola debaixo da cama. Ele para por um
instante, como se lembrando de algo.
— Na verdade, você deve se atrasar um pouco. Tem alguém
querendo falar com você.
Minhas sobrancelhas afundam sozinhas. De joelhos, eu ergo
a cabeça, enviando um olhar de dúvida. Dênis apenas enruga o
queixo e levanta os ombros, como se soubesse o mesmo tanto
que eu. Ele se vai, e eu me apresso. Troco a bermuda por um
jeans e me enfio por dentro de uma camisa preta. Amarro os
dreads em cima da cabeça, ajeito o tapa olho e bochecho água
com enxaguante na pequena pia.
Não espero encontrar ninguém dentro da carroça quando
desço a escada. Por isso, escorrego no último degrau assim que
reconheço uma figura sólida de pé na janela-escotilha. Com o
barulho do meu tropeço, Peter Pan vira a cabeça na minha
direção, de braços cruzados e corpo escorado na parede frágil
de madeira. Seus ombros estão cobertos pelas penas reluzentes
de seu casaco. Seu rosto está limpo, sem maquiagem, a não ser
pelo intacto contorno em formato de folha no osso de sua
bochecha.
Tento não reparar nos detalhes de sua aparência, mas meu
olho não obedece, comandado por um interesse automático que
não se controla.
A sensação do sonho volta sozinha, secando minha garganta.
Eu me forço a afastar o disparo das lembranças. Nós trocamos
olhares enquanto me seguro na beira da escada, retomando a
postura. O olhar verde e observador dele rasteja pela extensão
do meu braço até chegar à ponta. Esqueci as luvas lá em cima,
e ele cobra encarando minha mão livre.
Enfio as duas mãos nos bolsos da calça, por reflexo. Pan
segue o movimento e então sobe o olhar de volta ao meu rosto.
— Eu… acabei de levantar. Já ia calçar as luvas assim como
os sapatos — brinco com o jogo dele, tentando interpretar o
simpático da vez. Aponto com o queixo para os coturnos ao pé
da poltrona para provar meu ponto.
Ele se desencosta da parede e mexe nas ondas de cabelo no
reflexo da janela. Esperando. Eu solto um suspiro pesado. Então
marcho de volta pela escada para buscar as luvas.
Acordado, pelo menos tenho um pouco mais de controle, e
posso tentar não olhar para as imagens que o tecido cobrindo os
dedos me sugere. Forço a me distrair com qualquer outra ideia.
Depois que desço de volta e termino de me calçar na
poltrona, fico sentado no mesmo lugar. As costas dele são o
meu alvo.
— Em que posso te ajudar? — pergunto. — Ou finalmente
decidiu dar a sua entrevista para o artigo?
Demoro a perceber que ele está me olhando pelo reflexo do
vidro arranhado da janela.
— Posso responder as suas perguntas depois que você
responder as minhas — Pan responde. Então se vira de lado e
me olha por cima das penas no ombro. — Um segredo por outro
parece justo pra mim. Pra você não?
Meus dedos apoiados no braço da poltrona estrangulam o
estofado. Minha voz sai incrivelmente controlada.
— Me deixe adivinhar o que você quer saber: Como eu
consegui o convite? Eu já disse e não menti. Ele foi enviado
para mi-
— É sobre aquilo que te dei — Pan interrompe e engole. —
No jantar.
Minha mente congela e rebobina ao contrário, se reajustando
ao tópico inesperado.
— E o que tem? — Eu recupero o humor vendo o olhar
hesitante no rosto dele, que vai e vem da porta, me evitando. Ele
está claramente nervoso e arrependido. Eu não poupo
sarcasmo: — O quê? Vai querer o seu beijo de volta?
A atenção dele se concentra na minha garganta, descendo
pelo cordão de linha até o pingente batendo na altura do peito.
Desde que isso parece tão significativo para a trupe, decidi usar
por cima da roupa. Para lembrá-los de como acham que sou o
escolhido de seu líder.
— Você usou… Suas mãos… — Ele não sabe elaborar a
pergunta.
— Se eu dei uma olhada nas memórias disso? Sim, eu olhei
— digo numa tacada só. O olhar de Pan sobe para o meu rosto,
espantado. — Que foi? Você pediu pela verdade. Estou te
dando.
Agora me dê a sua, rosno em pensamento.
— E o que você viu?
Deixo uma risada nervosa escapar.
— A memória de quando isso foi devolvido a você. Bem
rudemente. — Meus dedos nervosos começam a tamborilar o
braço da poltrona. — Eu me pergunto o que você deve ter feito
para merecer isso.
Forçamos olhares fixos durante um silêncio tenso. Em
momentos como esse, quase acredito que ele pode escutar meu
pensamento. Que pode adivinhar o que estou fazendo ali. Ele
encara tão fundo através de mim, que acho quase impossível
não enxergar minha intenção. Ou ao menos não enxergar um
pingo das semelhanças de Gancho em mim.
É ele quem desvia primeiro, olhando para o teto e para as
paredes. Sua forte determinação é soprada para longe. Como se
estivesse mais preocupado com outras coisas.
Peter Pan dá as costas de repente e abre a porta. Um
retângulo de luz invade a carroça. Sua pele marrom se acende
em dourado no reflexo do Sol.
— Venha comigo. — É seu único comando antes de sair na
frente.
Toda a tensão volta a mim de uma vez. Caminho hesitante até
a porta, esperando encontrar os Garotos Perdidos, com punhos
cerrados e más intenções para me arrastar pelo caminho. Mas é
somente Pan, trilhando relaxado pelo caminho entre as
carroças. Ele não olha para trás para se certificar se estou
seguindo. Quando some depois de uma curva, eu corro para
não perdê-lo de vista.
Eu espero que ele vá fazer alguma coisa para exigir o colar
de volta. Uma de suas encenações públicas, talvez. Nós
passamos por mais carroças e pessoas fantasiadas, que
cumprimentam à distância. Peter Pan lança sorrisos a eles; eu
apenas olho desconfiado. Percebo que a direção que ele toma é
a do túnel que leva à tenda principal do circo.
Atrás de Peter Pan, eu o estudo de cima a baixo, buscando
pelo momento da emboscada. Reparo por último em seus
passos descalços. Sua pele em contato direto com a terra causa
uma reação na natureza. A grama se retorce, crescendo alguns
centímetros em segundos. Os pequenos brotos de flores
despertam, abrindo frestas entre as pétalas. Até o vento parece
mudar de direção conforme ele desvia o caminho, soprando seu
cabelo de forma diferente. Lembro como a Terra do Nunca
pareceu viva na primeira vez que entrei aqui. De alguma forma,
a magia de Peter Pan está relacionada a isso. Só sei pensar que
preciso lutar contra ele e não sei o que ou o quanto ele é capaz
de fazer.
O ambiente se fecha dentro da tenda, o ar subitamente
abafado. O som da trupe reunida soa mais ao longe dos
bastidores. Eu me lembro do que Dênis falou, sobre Sininho ter
feito uma convocação. À distância, vejo as cores e brilhos das
fantasias próximo dos espelhos e luzes de camarim. Mas não é
para lá que Peter Pan me guia. Atravessamos as cortinas, o
picadeiro vazio e o túnel dos pôsteres de apresentações em
cartazes. Chegamos quase à bilheteria, onde imagino que Pan
irá apresentar sua cartada e me chutar para fora.
Mas ele para e eu quase trombo em suas costas. Resgato a
concentração no caminho, olhando por cima da cabeça dele.
Então entendo o real significado do “tem alguém querendo falar
com você”. Na porta do circo, está Cristóvão, cabelo castanho
sem corte, barba por fazer, olhar baixo para a ponta dos
sapatos.
Meu peito se enche de adrenalina quando Cris levanta a
cabeça e olha na minha direção. Pan está entre eu e ele, com
seu olhar analisador, esperando. Ele não dá licença. Fica de
propósito, para escutar.
Eu passo na frente com o movimento mínimo que ele dá para
o lado. Lentamente, vou até Cris. Minhas pernas estão rígidas
de apreensão, me movo com dificuldade. Aperto os punhos ao
lado do corpo e envio um aviso urgente através da expressão
tensa. Vá embora. Caia Fora. Antes que ele conheça você. Por
favor. Você não.
Cris olha para Pan por cima do meu ombro, depois de volta
para mim. Me analisa por inteiro primeiro, antes de falar.
— Então… você está indo… bem — ele murmura, coçando o
sombreado da barba rala.
Sua expressão é preocupada. Quero tanto xingá-lo por não
ter me escutado, por não ter obedecido quando disse para não
esperar por mim. Para não vir atrás de mim.
Engulo para umedecer a garganta seca.
— Sim. Muito bem. O artigo está sendo produzido. Avise no…
escritório que estou escrevendo algo promissor — falo, enviando
mais uma porção de pensamentos a ele. Não diga meu nome.
Não diga quem sou. Entre no jogo.
Cris abre a boca uma vez e torna a fechar. Então pisca
desconcertado, juntando as peças do que estou querendo dizer.
— Certo. — Ele dá mais uma olhada sobre mim, reparando
no colar, depois nas luvas. Seu cenho fica carregado,
desconfiado. — Quando você vai terminar e voltar?
— Em breve. Não hoje.
Me seguro nos bolsos da calça com os polegares. Só quero
Cris fora dali logo. Já é uma merda que Peter Pan saiba da
existência dele, da existência de qualquer ligação minha com o
mundo fora daqui.
— Certeza? — Cristóvão insiste como o teimoso que é.
— Sim. Não precisa se importar de voltar aqui. — Então
estendo o braço, mostrando o caminho de saída.
Se ele machuca você, eu não sou capaz de me perdoar. Por
favor, não deixe ele saber mais sobre você. Por favor, cai fora.
Cris não entende. Ele balança a cabeça e morde o lado de
dentro da boca.
— Já vai se despedindo? Ótima maneira de tratar um colega
que estava preocupado com o seu progresso.
— Você não precisa se importar. Eu nunca pedi que se
importasse. Então, sim. Você pode ir. Sozinho. — Uso a rispidez
para empurrá-lo para trás e para mostrar a Peter Pan às minhas
costas que não me importo com essa pessoa. Que ele não é
importante. Que não precisa prestar atenção.
Cris me lança um olhar ferido, com uma sensação dolorida de
despedida. A sombra de uma memória passa sozinha à frente
dos meus olhos. Eu pisco pesado com a lembrança da última
vez que recebi um olhar desses. Não foi de Cris, foi de Gancho.
A última vez que vi meu pai, 4 meses antes de sua morte.
Não esqueço como Gancho apareceu diferente. Cansado,
quase debilitado. De olheiras fundas e expressão caída. Eu
poderia acreditar em premonição, se na época soubesse que ele
estaria morto em 120 dias. Ele apareceu apenas para dizer:
“Volte a morar com o filho do Barba Negra, Cristóvão. Ele vai
deixar você ficar.” Eu tinha 17 anos e foi assim que soube que
algo ruim estava para acontecer. Só não sabia o quão ruim
seria.
Eu acordo de volta à realidade vendo Cris se virar,
abandonando meu olhar. Ele passa pela cortina de papel
prateado sem olhar para trás.
Minha respiração continua difícil de passar pela garganta.
Não tenho motivo para me sentir aliviado.
Quando me viro, Peter Pan ainda está lá, encostado do
quadro de chão usado para fixar os cartazes com as estrelas
dos espetáculos. Finge analisar as unhas curtas, até que levanta
o olhar e mirar de novo em mim. Há uma sugestão de sorriso
preso no canto da boca.
Eu consegui algo dele quando espiei pelas memórias do
colar. É ele quem consegue algo meu agora.
Só penso em não deixar que siga Cris, que consiga alguma
informação dele, que o ameace no meu lugar.
Caminho de volta para dentro do circo, através do túnel. O
olhar dele me segue. Pelo canto do olho esquerdo, eu murmuro
quando passo por ele:
— Um segredo pelo outro, não foi o que disse?
Mesmo de luva, seguro firme a bolota de carvalho no colar,
querendo que ele veja. Para que entenda que se fizer algo
contra Cris, eu saberei atacar a fraqueza dele também.
Capítulo 12
Lacuna

Ainda estou tentando esfriar a cabeça quando chego à tenda


principal e atravesso as cortinas pesadas para os bastidores. Os
familiares sinos reverberam pelo ar. Sininho praticamente me
pesca para o meio da trupe reunida. Quer que eu faça parte
dessa… Coisa que ainda não sei o que é. Vejo Dênis enchendo
balões e os contorcendo em forma de bichinhos. Espero entre
Gentil e Susi num banco vago de uma das penteadeiras de
camarim, comendo uma fruta e um pão que encontrei numa
cesta de café no canto.
Sininho passa de lá para cá ruidosa, dando instruções para
cada um. Então volta ao centro e chama atenção com palmas.
— Tudo bem, pessoal. Estamos prontos! Vamos dar o nosso
melhor, certo? — Ela gira no próprio eixo para avistar todos e
para de frente de novo. — Como eu disse: para o espetáculo de
hoje, nós vamos trazer o público.
Minha ficha cai aos poucos. Só entendo de fato quando
Sininho puxa uma pilha de folhas da mesa e me mostra.
— Olha só o que fizemos!
A folha do topo me mostra o que se repete nas outras:
cartazes de divulgação, do exato molde que apresentei a
Sininho, Gentil e Dênis ontem, na carroça da cozinha.
— Vocês… vão mesmo seguir o que eu disse?
Sininho responde com um de seus sorrisos mais abertos e me
puxa para acompanhar a trupe, que já está se movimentando no
caminho para fora.
— Vem! Vamos levar a Terra do Nunca até as pessoas. Ah! E
claro que você pode aproveitar para colocar no seu artigo — ela
parece irônica. Como se a intenção principal não fosse a matéria
e sim… me fazer participar da diversão.
Outra aglomeração se forma na frente da bilheteria, todos se
apertando sobre a plataforma de ferro para Sininho contar as
cabeças. Até que Socorro aparece com seu vestido volumoso de
retalhos e a lágrima cintilante em seu rosto.
— Eu guio os preparos aqui dentro, não se preocupe! — ela
exclama para Sininho, por cima de todas as vozes.
Atrás dela, na porta de entrada, Bravo aparece observando,
apoiado na bengala com cabeça de dragão. A boca abaixo de
sua máscara não sorri. A posição rígida é de quem não se
diverte nem um pouco como os outros. Ele também fica no circo,
conforme deixamos a plataforma. Sinto seu olhar em mim como
um aperto físico, cobrando pelo nosso acordo. De repente, me
constranjo de estar desfrutando de qualquer lado bom do circo,
quando deveria estar buscando por provas.
Bravo dá as costas, voltando para dentro, e Sininho me puxa
quando o desfile começa a se mover. A sensação desconfortável
é soprada.
Estamos no meio do caminho, descendo pelo declive do
campo de trevos, onde os músicos começam a tocar, e eu me
dou conta de um detalhe: Peter Pan, o líder, não os acompanha
desta vez.

◆◆◆

No começo, se parece como mais um sonho em que estou


preso. Minha mente acompanha zonza, se distanciado,
assistindo de fora do próprio corpo, enquanto participo do desfile
do circo por Nova Eldorado. O mesmo que assisti como criança,
ou bem próximo disso.
A música não é tão alta e retumbante quanto antes, pois há
menos músicos. A trupe desfilando pelas ruas está em menor
número. Mas os artistas que vieram se apresentam ao ar livre,
exibindo sua graça. Mesmo mudados, eles ainda brilham e
espalham cores pela cidade.
Sininho termina de colar um cartaz em um poste. Os Garotos
Perdidos passam empinando as motos, o que atrai os
adolescentes. Da porta das casas e dos comércios, pessoas
param para apreciar. Crianças com os pais apontam,
maravilhadas.
Voltamos quando já é tarde, arrastando filas de pessoas
interessadas no espetáculo da noite. A trupe entra de volta e o
público se aglomera na bilheteria, com vozes, risadas e moedas
de dinheiro para bancar a entrada.
As lâmpadas quentes e amarelas se acendem. Debaixo das
tendas, crescem os sons e movimentos que não são da trupe
em treinamento. Música, engrenagens funcionando, pipoca
estourando. Eu passo atônito por entre os corpos fantasiados e
animados. Os brinquedos na tenda de “diversão” estão ligados.
Pessoas não fantasiadas também passam por mim, entram e
escolhem coisas para se entreter. Bolhas de sabão flutuam, e
uma delas estoura na ponta do meu nariz; sou a única coisa
lenta e sem cor no meio dessa ilha viva.
Alguém se aproxima por trás e um beijo estala na minha
bochecha. Eu recuo assustado para encontrar Sininho
pendurada em meu ombro, sorrindo como nunca.
— Eu sabia que estava certa sobre você — ela elogia e sai,
passando por mim com o som de seus braceletes.
A sensação em minha bochecha pesa como se fosse a marca
de um tapa. Ela nem imagina o quanto está errada. Eu não
queria me importar, mas culpa começa a arder. Ao menos
consegui ajudá-los de alguma forma…
Dou uma mão nos últimos preparos e na distribuição de
ingressos para o início do espetáculo, como se o peso da culpa
cobrasse sempre mais. Então me permito vagar por entre as
tendas. Cabelos coloridos, maquiagens e roupas brilhantes
passam por mim, interagem e divertem os espectadores. Fazem
exatamente o que eu os aconselhei a fazer. E funciona.
Realmente funciona.
Vários números acontecem ao mesmo tempo, espalhados
pelas tendas interligadas. Assisto parte da apresentação
atrapalhada de Dênis, que se dá muito bem na pele de Pio. Vejo
Gentil com seus exagerados músculos erguendo Susi no lugar
da barra de peso, impressionando outro público que arfa. Em
outro canto, Sininho pinta o rosto de crianças com desenhos de
animais, enquanto os Garotos Perdidos emprestam seus
capacetes para pré-adolescentes experimentarem, eufóricos.
Demoro a perceber que estou rindo sozinho. Consciente
disso, desfaço o riso apertando os lábios juntos, abafando o
sentimento vindo de dentro. Penso em me retirar de volta ao
acampamento. Até que ouço um sussurro. Um chamado pelo
meu nome. Parado no meio da tenda de brinquedos, me viro
para a direção que penso ter escutado. Mas os sons ao redor
são altos, e parece mais algo sendo sussurrado dentro da minha
mente. Talvez eu esteja com sono ainda, mas sigo mesmo assim
para um túnel que leva para uma tenda além.
Depois do curto túnel de lona vermelha, as luzes acabam e a
tenda onde caio parece abandonada. Mas noto que há sim um
tipo de espetáculo acontecendo, para o qual as luzes estão
esmaecidas. Jovens virados de costas, sentados no chão,
assistem à performance no meio da roda. E o único de pé, no
centro de tudo, é o mágico que veste folhas verdes e tem uma
pintura dourada no alto da bochecha direita.
Eu congelo na porta, engolindo em seco. Mas não consigo
voltar.
Peter Pan conta uma história assustadora para o seu público
de olhos curiosos, e eu fico ouvindo de trás.
— … Dizem que o sinal mais claro de que um navio está
amaldiçoado é quando tem uma pessoa a mais na tripulação
que ninguém sabe explicar. — Sua voz é cheia de suspense,
enquanto seus olhos, refletindo o escuro, passam de um para o
outro na plateia. — Também dizem que é sempre o último a
embarcar. E contam que, quando ele aparece, assume a forma
do pior homem à bordo.
Todos acompanham. Ninguém pisca. Pan toma impulso e
perde o contato com o chão. Ele se pendura no tecido de
acrobacia, um véu que cai do teto da tenda, e fica flutuando
sobre as pessoas.
— Mas a história do mais terrível de todos, eu ainda vou
contar… É do homem que atirava facas e estripava com um
gancho! — Ele começa com uma voz de suspense e termina
com ênfase, rasgando o ar com o dedo curvado em forma de
gancho.
Ele conta como se falasse de uma lenda, desde o brilho do
aço das armas, a mira impiedosa e nunca falha, até os
arremessos impossíveis que o homem dava. O público está
fascinado, ninguém se move para não perder qualquer detalhe.
Mas tudo que posso sentir é raiva. Peter Pan está contando a
história de meu pai de forma despretensiosa, praticamente se
vangloriando do assassinato que cometeu e saiu livre. Mas
ninguém consegue ver isso, além de mim.
De cabeça para baixo, o tecido enrolado ao redor de uma
perna esticada, ele termina:
— E como ele ganhou seu gancho? — Pan questiona à
plateia, passando os olhos por todos. Entre um piscar e outro, o
olhar hipnótico de Pan cai em mim; um dardo atravessando a
tenda até a porta. — Foi perdendo um pedaço de si mesmo.
Eu poderia matá-lo agora se meus olhos tivessem esse poder.
Peter Pan simplesmente não tem esse direito. Não tem. Meu
pulso bate dentro dos ouvidos e eu fervo por dentro. O ar que
solto forte pelo nariz é quente. Minha língua dói, extravasa gosto
de ferro, de tão apertada dentro da boca.
Eu nunca quis acabar tanto com uma pessoa.
Ficar aqui é garantia de fazer uma insanidade na frente
dessas pessoas. É me jogar no mesmo buraco que quero enfiá-
lo. Por isso, mesmo mexido, torcido até a alma como um trapo
velho, tomado pela fúria que mal controlo, eu saio. Marcho como
um trem desgovernado para o acampamento.
Tudo passa borrado ao redor. Não falo com ninguém e ignoro
os que tentam chamar minha atenção. De repente, estou
acordado para a realidade que deixei de lado a troca de
migalhas de esperança e afeto: Três dias ali, e ainda não tenho
nada mais do que minha raiva contra Peter Pan. A pressão do
tempo pesa. Preciso arriscar alguma coisa logo.
Enquanto os artistas da noite se ocupam com o espetáculo,
eu me infiltro entre os que estão de folga no dia. Com o gravador
de fita emprestado, procuro entre as vielas sinuosas, bato na
porta das carroças, paro quem passa por mim.
É a primeira vez que lhes pergunto abertamente sobre o
falecido atirador de facas. A primeira vez que tenho coragem de
tocar no nome de Gancho, sem rodeios. As reações são
hesitantes, pequenos pavores escondidos dentro de olhares
desviados, gaguejos arranhando gargantas subitamente secas.
Todos parecem saber muito pouco, até menos do que eu.
Ninguém diz, mas vejo como eles pensam como Pio. Suicídio.
Para testá-los, num sopro de coragem, pergunto se Gancho
tinha alguém; talvez uma criança. As respostas são todas iguais
e carregam a mesma certeza: Não.
Saio sem rumo, perdido na minha própria incerteza de existir,
de ser capaz de fazer alguma coisa ou não. Como um rato, me
enfio nos cantos que ninguém pode ver, entre sombras e becos.
Arranco as malditas luvas e toco tudo que vejo na frente. Perco
qualquer critério, qualquer senso de lógica ou moralidade. Só
quero que tudo acabe.
É tão difícil encontrar o rastro de Gancho em qualquer uma
das coisas. Como se tivessem limpado sua existência da Terra
do Nunca. Encontro poucos resquícios no fundo de alguns
equipamentos e na madeira gasta da carroça da cozinha, nada
além disso. Vejo imagens de seu trabalho duro, sua dedicação
severa aos espetáculos.
Finalmente peço a algumas pessoas se posso tocar em suas
mãos enquanto elas falam de Gancho. Elas não parecem
desconfiar quando me concedem permissão. Mas no lugar de
memórias chaves, de provas que me ajudem, o que encontro
são imagens do velório, do caixão fechado, do sentimento de
luto. Coisas que só me afundam mais.
Derrotado pela busca exaustiva e frustrada, volto até a
carroça de dois andares do dormitório compartilhado.
Mal consigo respirar, o turbilhão de memórias se encaixa
como peças desconexas entre elas. Sento na escrivaninha para
reformular meus planos… de que mesmo?
Ergo a cabeça, resfolegando o ar, como se emergisse da
água. Me esforço a lembrar do que estou tentando fazer. Dou de
cara com uma lacuna. Um grande vazio. Farejo um vestígio de
sentimento sobre casa, família, mas sem real identificação. Eu
entro em pânico.
Rápido, me agacho depressa e pesco as facas de arremesso
dentro das botas. Tento reviver a memória das lâminas com a
ponta dos dedos. Encontrar alguma coisa. E aí está! O homem
que me deu essas facas. Meu pai. Meu pai que foi morto. A
lucidez disso me volta com um sopro gelado.
Solto a faca na mesa, aliviado… O que era mesmo que ele
me contava antes de dormir? Como era a música que ele tocava
no piano? Do que mesmo ele me chamava?
É como tentar ler linhas apagadas, me guiando pela fraca
sugestão deixada no papel. As imagens são distantes, flutuam
indo e voltando à superfície da consciência. O que rodeia minha
cabeça, como um desenho animado zonzo, são as lembranças
de outras pessoas e objetos que toquei ao longo de toda a vida.
Coisas que nunca vivi, que não me pertencem.
Em alguma época, eu sabia, fui alertado sobre esse efeito
colateral. Mas se perdeu também, sobrando só alguns pedaços
que consigo juntar. É o que Gancho (Meu pai? Sim. Meu pai) me
disse sobre minha habilidade carregar consequências
imprevisíveis. Que ele tinha conhecido alguém como eu que
terminou sofrendo disso (Disso o quê? E quem?).
“Você não pode usar demais” é o que consigo lembrar com
muito esforço. Mas quem diz o limite? Como eu sei até onde?
Só vivendo a própria consequência.
Gastei muito da habilidade nos últimos dias. Nunca li tanta
coisa, tanta gente, tantas imagens, em tão pouco tempo. Pensei
que não seria exagero. Pensei que estava tudo bem. Mas agora
descubro que o preço a pagar é simplesmente perder as minhas
próprias memórias.
Toco as facas de novo, com os olhos ardendo, o coração
chacoalhando. Tenho a imagem de Gancho de novo e me apego
a ela. Me sinto novamente uma criança fraca, que nos primeiros
anos de vida chorou agarrado à perna do pai que partia, sem
saber quando ele voltaria, se voltaria. Eu não posso perder isso.
Não de novo. Não o pouco que me restou.
Eu fungo e soluço. Não sei quanto tempo meu corpo leva
para se cansar, diminuir, até parar. Meus dedos ardem, cortados
onde agarrei forte demais a lâmina da faca. Ainda assim, tenho
medo de largar. Só depois de um bom tempo, quando tenho
certeza que decorei a lembrança como uma lição de casa, eu
abro a mão muito devagar. Prendo o ar. Então solto a faca.
No escuro da carroça, liberto um suspiro pesado.
Ainda lembro de Gancho.
Minhas costas se jogam contra o encosto da cadeira e jogo a
cabeça para trás, a garganta tensa e exposta.
Talvez essa seja a hora de parar. De dar para trás e
reconhecer que simplesmente não posso continuar. Mas o
caminho de volta é tão longo quanto o que gastei para chegar
até aqui.
Me preservar a partir de agora é o melhor. Deixar para usar
menos disso, e com cautela. Reservar o toque para o momento
mais importante, quando ele chegar. E vou lutar para chegar.
As memórias de ninguém podem valer mais do que as
minhas. Sem o que vivi, eu não sei mais quem eu sou.
Capítulo 13
Fio branco

Dênis aparece para me procurar depois do espetáculo. Estou


encolhido e coberto até a cabeça, quando o vejo subir pelo
alçapão que comunica com o primeiro andar. Ele está sozinho.
Nem me preocupo em me mexer.
— Você parece ferrado, cara. — Ele fecha a passagem para
dizer.
— E você é melhor calado — eu resmungo.
Ele me estuda com o rosto inexpressivo e suspira. Depois
atravessa em silêncio até sua cama. Fica sentado de frente para
mim, os cotovelos apoiados na perna e as mãos cruzadas na
frente dos joelhos.
— Julian, você precisa ir pra casa.
— Que casa? — debocho.
— O Cris sempre vai te deixar ficar lá.
— Sempre é tempo demais. Uma hora ele não vai me
aguentar.
Dênis toma um instante para pensar.
— Você não veio aqui pensando em ficar, foi? — Ele tem um
tom assustado.
— Eu vim pra… — começo rápido, mas engulo o resto das
palavras.
— Não posso só assistir isso e deixar que corra tanto risco.
Você precisa ir. O Gancho me garantiu que era perigoso pra
você-
— Para de tentar seguir as ordens dele! — Jogo a coberta no
pé da cama e me sento. Nossos olhos ficam na mesma altura.
— Para de bancar o fiel por um cara morto. Ele tá morto,
entendeu? Dane-se o que ele achava. E ele mentia. A vida
inteira, só soube inventar mentiras de merda!
Estou gritando mais do que normalmente me permitiria. Dênis
fica de olhos arregalados, fixos e sem piscar.
— Julian… É o seu pai, cara — ele diz devagar,
impressionado. Nunca deve ter me visto esboçar nada além do
que admiração quando se tratava de Gancho.
Engulo o bolo de angústia preso na garganta.
— Eu sei! É claro que eu sei. É tudo que eu sei… — Minha
voz tropeça em soluços da metade para a frente.
A última coisa que quero é chorar na frente de alguém, mas é
como tentar controlar as ondas do mar.
Eu me encolho sobre os joelhos e espero Dênis fingir não ver.
Que encarne seu personagem e saia calado. Que me deixe
quieto. Até ouço quando ele levanta da cama, mas ao invés da
saída, ele senta do lado e passa o braço sobre meu ombro
trêmulo. Oferece uma mínima consolação. Abaixo mais o rosto,
tentando esconder qualquer resquício de mim.
— Eu só não quero o mesmo destino pra você, cara. Me sinto
no dever de evitar. Fazer por você o que queria ter feito por ele
— Dênis murmura.
Eu me limito a balançar a cabeça, concordando.
A gente fica desse jeito por um bom tempo.
Então me sento reto de novo, respiro fundo retomando a
dignidade. Dênis espera mais um pouco para dizer:
— Hoje a noite vai ser diferente. — Ele tem uma voz calma.
— Vai ter uma reunião ao redor da Árvore-Mãe. A Sininho me
mandou te procurar, para te chamar.
— Então não veio pra me expulsar à força do circo, huh?
— Não, vacilão.
A gente solta uma risada juntos e fica assim por um momento.
— Eu não sei o que você pretende fazer aqui. Se está usando
um apelido e ousou ficar por tanto tempo, deve ser algo sério —
Dênis comenta, sem realmente me cobrar para contar. — Então
assim… É melhor continuar mantendo as aparências,
interpretando esse papel bonzinho de jornalista. Se não quer
chamar a atenção errada… Você devia vir para a reunião. Senão
até a Sininho vai estranhar.
Tenho que concordar. Me arrumo com roupas limpas, lavo o
rosto na torneira do reservatório da carroça e faço um novo nó
no cabelo atrás da cabeça. No patamar de baixo, sento na
poltrona para amarrar os cadarços e fico ali mais, recuperando o
fôlego. Dênis se senta no penúltimo degrau, me observando.
— Sinceramente, não entendo bem o porquê Gancho queria
te manter longe daqui — ele decide quebrar o silêncio, como se
estivesse pensando alto. — Eu mesmo nunca vivi nenhum
perigo real no circo. Na verdade, acho que é o lugar mais seguro
que estive.
— Gancho tinha tantos segredos que eu mal sei o que
acontecia realmente — eu confesso, derrotado.
Dênis se apoia nos próprios joelhos também e analisa o chão
junto comigo.
— Você não parece realmente que tem medo de estar aqui.
Eu não respondo. Temo não saber o que é medo mais.
— Mas fala aí, tá rolando alguma coisa entre você e o Peter,
não tá?
Minha cabeça ergue rápido.
— O quê?
— Ah! Qual foi… Ficam cheios de olhares e de conversinha
baixa por aí. — Ele sobe e desce as sobrancelhas. — E você
acha que eu esqueci como você era doido por ele quando mais
novo?
Meu rosto esquenta e o sangue bombeia dentro da cabeça.
— Dênis, cala a boca, ou eu calo por você.
Ele ergue as mãos espalmadas, se rendendo.
— Beleza, não tá mais aqui quem falou. É só que… Dá pra
perceber. E você é a porra do convidado dele! Você tem noção
que ele não envia mais convites depois que a Wendy foi
embora? — ele sussurra o nome censurado.
Bufo e reviro os olhos com essa história de novo.
— Isso é porque não foi ele quem me convidou.
Dênis reage com um solavanco para trás.
— Espera… Como assim?!
— É… Deixa isso pra lá. Esquece essa merda. Vamos logo
antes que a Sininho perceba a demora.
Ignoro os protestos dele para que eu explique direito. Ele vem
esperneando atrás de mim pelo acampamento, até que
chegamos perto demais dos outros e ele precisa voltar a se
comportar como Pio.
À medida que me aproximo das raízes robustas do carvalho
gigante, percebo a reunião nada formal. Se parece mais com
uma festa, embora comportada e conservadora. A mesa de
piquenique está repleta de comida, rodeada por barris com
bebidas; instrumentos musicais aguardam em suportes para
serem tocados. Então para isso que serviam os caixotes de
suprimentos extras na despensa.
Dênis se afasta para atacar a mesa. Eu fico parado no que
parece o limite da festa, observando como a trupe está reunida
ao redor de uma Susi sem fantasia. A mulher parece um pouco
deslocada, comum demais entre tanta gente excêntrica. Fico
imaginando se é assim que eu pareço no meio deles também.
Aos pés dela, enxergo uma mala de mão, grande o suficiente
para ser pesada e carregar uma porção de coisa. Uma vida
inteira. Tudo dá um giro repentino quando surge um clone ao
seu lado. A réplica tem um rosto novo, mais jovem, veste o
macacão de lantejoulas de Susi e usa até a mesma
maquiagem…
Sininho atravessa a multidão com suas asas furta-cor e me dá
um leve tapinha no ombro.
— Você poderia me ajudar a trazer as últimas coisas da
cozinha, querido?
Pisco várias vezes, me adequando ao seu tom de voz.
— Claro.
Nós chegamos até a cozinha em silêncio. Está vazia nos
arredores. O único som, além dos pequenos sinos, é de nossos
passos se arrastando contra a grama e subindo na madeira da
carroça. Acompanho Sininho até atrás do balcão. Ela abre o
forno desligado e tira um tabuleiro de pães cheirosos, fazendo
minha barriga roer e duvidar que eu vá resistir a comê-los.
Espero enquanto ela os separa em duas cestas e reparo na
quantidade. Não parece tanta coisa para levar. Ela precisa
mesmo da minha ajuda?
— Hum… Está acontecendo alguma coisa que preciso
entender? — arrisco a pergunta, me escorando na pia.
Um sorriso suave se espalha em seu rosto.
— Estava esperando se você perceberia.
Ela me passa uma cesta e segura a outra pela alça com as
duas mãos magras. Mas não saímos do lugar. Frente-a-frente,
ela revela com certo encanto:
— É a despedida de um membro antigo. Alguém que vai ser
substituído por um novo.
As palavras se encaixam devagar com a ideia na minha
mente.
— Você está prestes a descobrir um dos maiores segredos da
Terra do Nunca: o porquê aqui ninguém nunca cresce. — Ela me
leva até a parede com retratos emoldurados. No caminho, só
posso pensar como ela está me explicando tudo isso porque
quer uma matéria boa sobre eles no jornal. De novo, colocando
esperanças inúteis sobre mim. — Você vê que temos sempre os
mesmos personagens, certo? Há 20 anos alguém poderia ter
vindo aqui e encontrado quase os mesmos de hoje. Assim como
vai ser daqui 30 anos também. A Terra do Nunca conserva sua
essência assim. Mas por trás de personagens tão carismáticos,
estamos nós, simples seres humanos que não têm controle
sobre crescer. Entramos aqui jovens, sonhadores, cheios de
pedidos nos bolsos. Servimos ao circo com o nosso melhor e,
quando é nossa hora, deixamos o lugar para alguém mais jovem
que reinicie o ciclo.
Fico a encarando com olhos grandes. Demoro a perceber que
parou de falar. Então sacudo a cabeça e volto para o lugar.
— É isso que tanto querem dizer com “a outra vida”? — Eu
penso em tudo que já ouvi até então. — Que quando assumem
um lugar no circo, deixam as identidades do lado de fora e aqui
dentro viram… Personagens? Quer dizer, até os apelidos?!
Sininho acha graça e concorda.
— Tudo que existe aqui pertence ao circo. Então sim, até os
apelidos, que são passados em frente. A vida no circo é sobre
isso. Você encontra pessoas e se torna amigo delas. Mas
depois, eventualmente, elas acabam partindo. E às vezes nunca
mais se veem de novo. — Sininho suspira, batendo os cílios
coloridos. — Mas você se acostuma e aprende com isso. É a
vida. Crescer nunca é fácil.
— Isso é meio triste, não?
— Talvez. Mas não nos concentramos na parte ruim. Tem
sempre uma pessoa nova entrando para conhecer. E quando é
nossa vez de partir, levamos muitas coisas boas. Nossas
melhores memórias.
Penso um segundo sobre isso, porque nunca dei tanta
importância às memórias como dei hoje, depois do risco de
perdê-las.
— E como é? Essa coisa de se acostumar a uma pele que
não é sua?
Sininho pensa, seu olhar distante.
— O treinamento é duro, requer muito de cada um. Pra mim
foi… Eu pensei que seria um obstáculo a mais ser uma mulher
transgênero interpretando o papel de Sininho, de ser a primeira
a quebrar a barreira. Eu estava transicionando quando recebi as
asas de Peter, ainda não tinha descoberto todas as minhas
certezas. Mas aprendi que não é sobre quem você é, e sim o
que você pode fazer, com todo o potencial e força em seu
coração. A Terra do Nunca sempre aceita as pessoas pelos
desejos e sonhos que elas carregam.
Quero sorrir para ela, pelo final feliz que ao menos ela
conquistou, mas uma resistência natural me faz morder a
bochecha. Encaro o chão, depois a parede.
— E quando sabem que é a hora de alguém? Vocês não me
parecem contar o tempo para calcular a idade.
— Bom ponto. — Sininho tira os olhos dos retratos e se vira
para mim. — Existe uma tradição da Terra do Nunca. A história
sobre a origem disso aqui conta que toda pessoa escolhida para
se tornar um personagem é fadada a mostrar um sinal quando
chega a hora dela de crescer: Um fio de cabelo branco que
nenhuma tinta cobre, nenhuma mão arranca, e é a semente de
muitos outros que estão para vir.
— Um fio branco — repito incrédulo.
— Entende agora porque adoramos os seus cabelos pretos?
— Sininho ri. Passo a mão no cabelo, por reflexo. — Existem
algumas médias de permanência. Alguns duram cinco estações,
outros dez, quinze… Alguns mais de trinta mudanças do tempo,
como acontece com os que exigem mais riscos e perigos
durante as apresentações, por isso são mais difíceis de serem
substituídos.
— E vocês aceitam qualquer um? Digo, como escolhem os
substitutos?
— Oh! Isso é bem trabalhoso. Precisa ser alguém que se
encaixe com o perfil do personagem, senão não dá certo. E o
novo artista precisa de treino. Chamamos de pupilo. Ao
surgimento do fio de cabelo branco, temos alguns meses para
ensinar tudo o que sabemos a alguém. Ensinamos a agir e
pensar com a mente do personagem. Existem coisas que só são
passadas de Sininho para Sininho, de Gentil para Gentil, Susi
para Susi, e assim por diante.
Considero calado o quanto é importante esse pedaço de
informação.
— Bom… Deve ser bem difícil encontrar alguém que possa
substituir Peter Pan, huh? — Limpo a garganta, nervoso que ela
desconfie onde quero chegar com isso. — Tem uma
personalidade e tanto.
Se eu pudesse ter uma pista sobre outra pessoa que esteve
nesse papel, poderia ir atrás para perguntar sobre as tais coisas
que só são passadas de Pan para Pan. Encontrar um ponto
frágil assim, uma vulnerabilidade que me dê uma chance.
Sininho sacode a cabeça de um lado para o outro.
— Não, não. Peter é o único que não é substituído. Nunca.
A primeira vez que parei ali sozinho e analisei a parede de
fotografia tive a mesma sensação, o mesmo choque, a mesma
onda de estranhamento.
— Mas… Como?
Sininho sacode os ombros ossudos.
— Nasceu com genes bons. — É a resposta dela,
acompanhada de uma risada. — Só o que sabemos é que o fio
branco dele nunca veio.
Diante do meu silêncio, Sininho apenas apaga a luz da
cozinha e nos conduz de volta para a festa de despedida.
Deixamos os pães na farta mesa e nos separamos no meio da
multidão colorida, depois que ela manda eu ficar à vontade.
A festa começa.
É regada a música, risadas e discursos emocionados. Eu fico
de canto, reparando no fio branco de Susi (que nem tem mais
esse nome) e em sua substituta (que também é Susi, preciso
lembrar), a acompanhando por todo lado e agindo como ela,
sorridente e enérgica. A trupe é tão grande a ponto de eu não ter
percebido a presença extra antes. Pra mim vai ser difícil tratar a
nova da mesma forma, como se ainda fosse a antiga.
Com a mesa cheia, me sento mais afastado num tronco de
árvore transformado em banco. Acabo mordiscando um pão, e
confio que não tem veneno porque os outros também estão
comendo. Uma sombra desliza para perto e se ajeita ao meu
lado, sem pedir licença.
Me viro surpreendido para flagrar Bravo, com sua máscara
nariguda, cabelo azul e paletó escamoso de lantejoulas. Dessa
vez, sem sinal da bengala. No lugar, sob o aperto de seus dedos
compridos e unhas afiadas, se estrangula o gargalo de uma
garrafa de vidro. Pela cor amarronzada do líquido e pelo pirata
estampado no rótulo, é rum.
— Já conseguiu o que você precisa, garoto? — Ele vai direto
ao assunto. Não olha para mim. Mantém o rosto reto, perdido
em um ponto distante.
Faço movimentos mínimos com a boca e também foco em
outro ponto.
— Ainda não. — Me envergonha admitir. — Sinto que estou
fazendo as perguntas para o lado errado.
Desvio a atenção para a árvore, para o outro lado dela, que é
mais apagado, com menos lanternas de papel para extinguir as
sombras. É o único lugar onde Sininho não me deixou entrar,
para onde não fui convidado. E é onde sei que se abrigam os
seguidores mais próximos de Peter, os Garotos Perdidos.
Lentamente, Bravo segue a direção do meu olhar e entende o
que quero dizer.
— Ali — comento indicando com o queixo as carroças
iluminadas do lado esquerdo, mais próximas das tendas, onde
passei os últimos dias. — Ninguém sabe de nada.
Bravo libera um suspiro profundo e estala o pescoço.
— Disse que sou seu aliado, não? Então vou te ajudar nessa
— ele diz baixo, camuflado ao som da música e das outras
vozes. — Os Garotos Perdidos nunca ficam até o fim das
despedidas. Muitas vezes, eles têm a própria diversão lá do
outro lado.
Estou tentando entender onde ele quer chegar, quando sinto
algo sólido pressionado contra meu estômago. Olho para baixo
e vejo Bravo me entregar sua garrafa de bebida.
— Tome. Leve isso. Assim deixarão você entrar. Nem que
seja por interesse.
Seguro o vidro antes que caia quando ele larga.
— Você diz para eu me infiltrar? Com isso? — Penso em
como não pode significar coisa boa um lugar que, para entrar, eu
precise de álcool como moeda de troca.
— Queria levar flores? — Bravo tira sarro. A única vez que
olha para mim nessa noite, é para dar mais um de seus
conselhos incisivos. Olho no olho, ou melhor, máscara no olho.
— O que te oferecerem lá, você pega. E engole. E calado. Não
caia na besteira de desafiar nenhum deles, garoto.
E, tão rápido quanto surgiu, Bravo se levanta e deixa a festa
para seguir pelas vielas entre as carroças, por fim sumindo.
Fico com a garrafa esquentando na mão e ponderando se é
uma boa decisão. Grande chance que não seja, mas trilhei
pouca coisa na vida baseado em segurança. Além de tudo, já
decidi que seria hora de arriscar tudo. A cautela é uma coisa que
impede de avançar ao invés de manter seguro.
De longe, sigo com o olhar os cinco rapazes vestidos de preto
e jaquetas bordadas. Eles se esbaldam de comida. Gargalham
de piadas internas. Fazem gracinhas e pegadinhas uns dos
outros. Boas músicas depois, quando o resto da festa se distrai,
eles começam a trilhar ao redor da árvore. Um a um, são
engolidos pelas sombras do lado oculto do acampamento, até
não sobrar nenhum.
Como Bravo disse, parece ser costume. Ninguém tenta
impedir ou ir atrás.
Dou um tempo para ninguém reparar. Se passam cinco
músicas até eu decidir me levantar. Discreto, a garrafa
escondida atrás do corpo, dou a volta pelo carvalho e sigo os
Garotos Perdidos.
Capítulo 14
Pó de fada

Pisoteio os últimos resquícios de grama à medida que, num


gradiente, verde se transforma em terra arenosa. Minhas
pegadas de coturno ficam marcadas para trás.
Há bem menos carroças ao redor, todas apagadas. Lanternas
de papel se perdem no caminho, esmaecendo a iluminação. Por
trás das últimas carroças, se acende um clarão alaranjado. Da
mesma direção, ondas de calor assopram e estalos crepitam no
ar.
Uma mudança brusca interrompe. Sons rasgados atravessam
o acampamento, cobrindo gritos de guerra rebeldes
acompanhados de uivos. Se eu nunca tivesse ouvido antes,
poderia jurar que alguém tinha ligado uma motosserra. Não só
uma, várias.
Espio pela lateral de uma carroça, preta com estrelas brancas
pintadas na madeira. Vejo as motocicletas usadas nas
apresentações do Globo da Morte. Ao ar livre, a gaiola de ferro
não pode conter sua selvageria.
Duas delas, frente a frente, sustentam seus motoristas
inertes, enquanto as rodas traseiras aceleram numa corrida no
mesmo lugar, queimando pneus e levantando uma nuvem densa
de terra que engole o resto do mundo. Outras duas correm de
um lado para o outro; jogam o peso dos condutores para trás e
empinam os pneus da frente no ar. A cada manobra acertada,
cada derrapada feita sem cair, cada cruzada sem bater, uivos se
elevam. Eles orbitam ao redor de uma fogueira, feito insetos
atraídos pela fonte de luz e calor.
As palavras de Bravo continuam voltando até mim, me
dizendo como agir. Mas entrar no território deles sem ser
convidado já não é desafiá-los?
Penso em quem abordar primeiro. Nem sei se conseguirei ser
escutado sobre todo o barulho. Estou no meio de tentar
reconhecer o número nas jaquetas de cada um, para distinguir
um do outro. Vejo os gêmeos 4 e 5 queimando pneu. O número
2, Bem, disputa as empinadas de moto com Silvestre, o 3. E
escorada no tronco torto de um salgueiro chorão, está a última
motocicleta estacionada, desligada e sem motorista.
Quando percebo que Max não está no meio deles, é tarde
para reagir.
— Ora, ora. Olha só o que encontrei. — A voz vem de trás,
alta para anunciar aos outros. Antes que eu me recupere do
susto, ele já está dando a volta por mim e parando na minha
frente, bloqueando o caminho. — Eu acho que alguém aqui
perdeu as luvas. Precisa de ajuda para encontrá-las?
Dou de ombros e solto um único:
— Opa. Devem ter caído.
Max continua encarando com o olhar desafiador, o peito
estufado com o número 1. Por trás dele, dois faróis se viram
para nós e só param quando estão próximos de Max, um de
cada lado. Sem capacete, o gêmeo de cabeça raspada indica a
garrafa com o queixo.
— E aí, novato. Isso é pra gente? — Ele praticamente baba.
— Peguem.
Entrego a garrafa e eles abrem sorrisos afiados.
— Agora falou a minha língua. — O gêmeo aceita rápido.
Desenrosca a tampa, dá um peteleco que a faz voar longe, e
toma um gole antes de jogar no ar, para o irmão, que faz o
mesmo. Todos bebem e passam.
Max carrega a garrafa por último e caminha para perto da
fogueira, enquanto os outros deslizam sobre os pneus riscados
por sulcos antiderrapantes e sujos de terra. Nenhum sinal de
que sou bem-vindo me é dado, mas já que voltar atrás não é
uma opção, tudo que posso fazer é segui-los.
Vasculho com os olhos em busca de Peter Pan. Me parece
lógico que o mestre esteja ali para controlar as cordas de suas
marionetes. Mas tudo que a luz da fogueira ilumina são os
adesivos refletivos nas motos, faixas verde neon cortando o ar
como linhas de luz num lapso de tempo. Pan não é o problema
que preciso lidar agora.
Os gêmeos cruzam para o outro lado da fogueira. Bem e
Silvestre me rodeiam com suas motos: devagar, farejando o
estranho no ninho, ou simplesmente “brincando com a presa”.
Fico parado, acompanhando com o olho.
— Qual é a sua, novato? Veio ser voluntário para ficar de pé
no Globo da Morte? — Max diz depois de um gole, caminhando
tranquilo ao redor da fogueira, nunca sem tirar os olhos de mim.
— Não temos o Globo aqui, mas temos as motos.
Como se para provar o ponto, Bem e Silvestre aceleram
numa explosão de som. Com movimentos perigosos, empinam
as motos ao meu redor. A cortina de terra e poeira sobe,
engolindo a todos nós. Os outros gargalham como um bando de
hienas. Mantenho uma calma paciente mesmo com a visão de
seus rostos mal-intencionados coloridos pela luz laranja do fogo.
— Eu gostaria de conversar. — Tento falar sério por cima da
poluição sonora. Os dois rodando ao redor caem de novo sobre
as duas rodas, querendo ouvir. — Vocês foram os únicos que
não participaram da entrevista ainda.
Max rola os olhos virando a cabeça de lado. O som que sai de
sua boca não é bem uma risada, mas uma bufada de desprezo.
— Besteira chata. — Ele atira uma pedra no meio no fogo. —
Não parece que vamos ganhar alguma coisa com isso.
— Uma ajuda a reerguer o circo não parece o bastante?
Tenho certeza que vocês têm ótimas histórias a contar, melhores
que aquelas lá do outro lado. — Controlo a voz, disfarçando a
manipulação que espreita por trás das palavras. — Com todo
respeito, mas contos sobre trabalho duro não eram bem o que
eu estava procurando.
Exatamente como planejei, um meio sorriso sacana repuxa
metade da boca de Max. Ele ergue a cabeça para trocar olhares
com os gêmeos.
— Ouviu isso, Mau-Mau? Ele quer botar nossas histórias no
jornal.
O gêmeo número 4, cruza os braços em cima da moto.
— Parece que foi o que ouvi. — E copia o sorriso hediondo de
Max.
— Cuidado com o que pede, novato. — Fim provoca ao lado
do irmão.
Max tem a atenção de novo sobre mim. Um gesto de mãos
faz com que Bem e Silvestre parem de rodar com as motos ao
meu redor. Assim que os pneus freiam, Max cruza o círculo
riscado na terra, invadindo o espaço que até então era meu.
— A gente pode até topar, mas sob as nossas condições. —
Max joga a cabeça de lado, para se livrar do topete caído na
testa.
— Que são…?
A dois passos de distância, mais próximo do que julgo
necessário, ele enfia as mãos pelos bolsos da frente da calça,
polegares de fora.
— Você precisa provar que tá com a gente. — Ele encara
com as pálpebras caídas e o meio riso brilhando. — Sabe como
é… Pra aproveitar a noite também.
Os outros concordam atrás, sabendo o que aquilo realmente
significa. Sinto um pinicar beliscando cada centímetro de pele,
um amargo preso no fundo da garganta – tudo alertando que
pode dar errado. Mas eu o encaro de igual para igual, sem
recuar.
— E o que exatamente preciso fazer?
A questão diverte Max. Suas mãos voltam dos bolsos,
subindo até a altura dos olhos. Seguram um pequeno saco
plástico transparente. Quando sacode a embalagem no ar, o pó
prateado dentro dele sacode junto. Pareceria só um monte de
brocal metálico se eu fosse mais inocente.
O lacre vermelho se parte. Max enfia um dedo dentro da
boca, depois dentro do saco plástico. O pó prateado gruda nele
com ajuda da saliva. No outro segundo, o rapaz volta o dedo
para a boca. Pressiona e esfrega contra as duas bochechas.
Quando tira de volta, está limpo.
As sobrancelhas grossas dele sobem e descem duas vezes
seguidas.
— Isso é Astral? — Pergunto, numa breve recordação sobre a
droga mais famosa que circula em Nova Eldorado.
— Não. Essa chamamos de pó de fada. É de fabricação local.
— Max se gaba e aponta a embalagem aberta para mim. — Não
oferecemos para qualquer um, porque não é qualquer um que
aceitamos.
A parte lógica do meu cérebro está inclinada a recusar, mas
são as últimas palavras que fisgam a parte ambiciosa.
Aceitamos. Eles estão dispostos a abrir o grupo para mim. Basta
o meu passo à frente. A decisão está comigo dessa vez.
— Suponho que não vá me matar, se você tomou antes… —
Tento soar como uma brincadeira amistosa, mas a sugestão de
morte em voz alta sai mais ríspida do que quando estava só na
minha cabeça.
Imito Max e umedeço o dedo na boca. No momento que o
afundo dentro do pó, o sorriso no rosto dele se alarga.
— Morte é um efeito chato. Existem outros que podem ser
mais divertidos… — Ele completa depois que levo o pó à boca:
— Ou piores.
Não tem gosto, mas tem textura. É como esfregar areia na
gengiva: arranha e arde. Eu rolo a língua dentro da boca,
duvidando que os grãos vão se desfazer alguma hora. Quando
menos espero, eles começam a efervescer. Estouram pequenos
“pops!” no céu da boca.
No primeiro instante, isso é tudo.
Nada mais acontece.
Eu me sinto invencível.
Enquanto os cinco sorriem para mim, começo a achar graça
deles.
Pensamentos felizes. Começo a ter tantos deles. Uma onda
de euforia vem me encher por dentro, como se eu fosse um
balão sendo inflado para voar pelos ares. Alto, tão alto. Subindo,
sumindo, explodindo. Tchau, seus desgraçados. Eu poderia
montar numa daquelas motos e gritar para o resto do mundo ir
se foder. Sim, eu poderia. Eu gostaria.
— Se sentindo corajoso, novato? — Max pergunta com humor
na voz. Quero rir com ele. Não! Rir não. Gargalhar! Ganhar dele
nisso!
Aperto os lábios um contra o outro; tento conter essa curtição
hilária que não sei de onde vem.
— Eu… — Começo a soltar alguns risos, sem querer. —
Desculpa. Desculpa. Eu…
Max olha para trás e se diverte com os outros. Eles também
riem, então acho que tudo bem. Aceitaram. Eles me aceitaram.
O mundo ao meu redor volta a girar. Os Garotos Perdidos o
orbitam. E a fogueira queima, queima, queima. Eu vou cair.
Preciso me sentar.
— Então, o que você quer saber? — Alguém sugere. Parece
Mau-Mau, com sua cabeça furiosamente raspada.
Pisco lento, várias vezes. Imagino se minhas pupilas estão
tão grandes quanto as de Max.
Meu corpo inteiro formiga. Pergunto sobre a Terra do Nunca,
o que a torna especial. Eles fazem “buuu!”; acham entediante.
Pergunto sobre o fio de cabelo branco de Susi, o que pensam
disso. Eles fazem “meh!”; não estão nem aí. Então pergunto
sobre a grande árvore, por que ninguém atravessa pro lado
deles. Eles fazem “ha-ha-ha!”; dizem que é porque os outros são
chatos.
— E Gancho? — eu pergunto. — O que acham sobre Jaime
Gancho? Ele era um cara legal, não era?
Vibram uivos, vaias. “Nããão!” Eles urram para a Lua e
gargalham de novo, competindo com os estalos da fogueira. O
quê? Mas por que não?
— Ele era um mandão!
— E um maníaco pelo Peter!
— Ninguém pode com o Peter!
Gritam diferentes vozes, da esquerda, da direita, de trás. O
barulho de escapamento os engole, depois cospe de novo:
— Ninguém gostava dele! Você gostava, Fim?
— Eu não! Você gostava, Mau-Mau?
— Eu não! Você gostava, Silvestre?
— Eu também não! Você gostava, Bem?
— Eu não! Você gostava, Max?
Max fala, mas não compreendo. As chamas são tão altas. Eu
vivo dentro de um motor em fúria. Tudo que eu quero é
desaparecer para dentro da terra, me fundir a ela. Devagar, me
agacho e caio deitado, vendo as estrelas.
A última coisa que me lembro bem é da sugestão de uma
cabeça pairando no ar acima de mim. Ela poderia ter tantos
rostos, mas não identifico nenhum. Só o que sei é que ela diz:
— Sua vez, novato. Nos conte sobre você.
Capítulo 15
A sombra da verdade

Acordar é um parto onde nasço de novo. Sou cuspido pela


terra que não quis me engolir. Minhas pálpebras pesam e torna
mais difícil de abri-las. Minha mente só agora para de rodar, e eu
gemo com a fadiga dolorida que restou.
Abro os olhos para a luz fraca da manhã no acampamento e
encontro seis cabeças pairando acima de mim. Elas se agitam e
sussurram palavras que não demoro a conectar. Vivo. Não
morto. Respirando. Estou quase acreditando ser só mais uma
alucinação. Esfrego os olhos e reconheço os rostos, por fim. Os
cílios enormes e pontudos da cabeça loura de Sininho, cercada
pelas cinco caras riscadas de graxa sem um padrão.
Sento num movimento brusco, e eles se assustam para trás.
Existe um momento de confusão, a tontura por ter levantado
rápido demais, as vozes deles aumentando e se atropelando.
Pisco para perceber que estou mesmo sentado sobre uma tábua
quadrada de madeira, aos pés da árvore gigante no meio do
acampamento. Desisto de entender quando Sininho dá uma
bronca mais alta nos garotos e tenho que levantar o rosto para
ver o que está acontecendo.
Ela obriga os Garotos Perdidos a entrar em linha, um ao lado
do outro, apontando o dedo de uma mão em riste, enquanto
apoia a outra na cintura.
— Vocês têm uma ordem. Andem! — Seus braceletes fazem
barulho quando ela dá um tapa de advertência na cabeça de
Max, que reclama contrariado.
Um segundo depois, os cinco garotos estão caindo de joelhos
na grama entre as raízes da árvore. Sininho conta até três,
impaciente, e no último número o grupo de meninos solta um
coro de vozes desordenadas. Eles estão implorando por
desculpas. Mas não é para Sininho. As desculpas são para mim.
Olho confuso para Sininho, que enruga as sobrancelhas
claras e a testa, acenando para que eu os perdoe.
— Tudo… Tudo bem — gaguejo, sem saber porque eles de
repente se importam.
Eles explodem em comemoração, se colocando de pé com
uivos alegres. Sininho apenas se segura no cotovelo do próprio
braço, com um sorriso meio aliviado no rosto tenso. Quero
perguntar o que diabos está acontecendo, se isso ainda é efeito
residual do pó prateado da noite anterior, mas os Garotos
Perdidos já estão de novo em cima de mim, com sua confusão
barulhenta. Max e Bem se posicionam cada um de um lado e,
puxando cordas que não percebi estarem ali, começam a erguer
a plataforma onde estou sentado.
A madeira se sacode no ar e a distância entre mim e a terra
firme cresce muito rápido. Eu me seguro na borda apavorado e
olho para baixo.
— Ei! O que estão fazendo?!
Qualquer que fosse a preocupação que os fez se importar
antes, parece ter evaporado. Os outros garotos comemoram
entre soquinhos e risos, enquanto Max olha para cima com seu
topete caído e grita:
— Diga a ele que você nos perdoou!
Preciso voltar para o meio da plataforma, porque isso
continua subindo feito um elevador, e já é alto o bastante para
me causar danos sérios se eu cair.
Eu subo, subo, subo. Até estar dentro da casa de madeira
acima da árvore gigante no meio do acampamento.
Quando a plataforma encaixa no lugar, encontro um mundo
de verde, dourado e marrom, cercado por galhos retorcidos,
ramos de hera fundidos às paredes e cipós floridos pendurados
do teto. Não é nada como acampamento, nem as carroças.
Nada que eu já tenha visto antes.
Eu me arrasto para trás com impulso das mãos e tornozelos,
com receio de que meu peso faça a plataforma se soltar e
despencar comigo lá embaixo. Acabo batendo a cabeça com
tudo em algo. Xingo baixo e giro, massageando o lugar dolorido
perto da nuca. A escultura onde bati é feita de madeira brilhante,
faz uma curva graciosa e é esculpida com o corpo de uma
sereia, me encarando com o rosto bonito e os olhos vazios.
Estudo o resto do lugar. Tapeçarias elaboradas, de algodão
com fios dourados, estampam o chão. A luz do sol entra por
uma vidraça panorâmica de cortinas abertas. Lembra um
observatório, um ponto onde se pode ver todos de cima.
Uma parede é revestida por prateleiras de corda e quadros de
borboletas empalhadas. No rodapé, um baú fechado transborda
uma espécie de tesouro, que brilha em mais tons de dourado.
Acima dele, se pendura um par de chifres de caprino.
Um lustre apagado pende acima da minha cabeça. Foi
transformado em suporte para espadas. As diversas lâminas
penduradas apontam para mim, sustentadas por um frágil fio
ligado ao teto.
— Eu não tocaria em nada se fosse você.
A névoa que enxergava ao redor é soprada para longe. A
lucidez me volta num estalo e eu giro o pescoço rápido,
investigando o outro lado.
Por trás do tronco largo da árvore, que entra por um buraco
no chão e sai por outro no teto, se estende uma mesa com uma
única cadeira. No alto do encosto, sentado com os pés
descalços na almofada de assento, está Peter Pan, afiando com
um canivete um espeto de madeira. As lascas caem no chão,
enquanto ele mantém os olhos em mim.
Todo o encanto que eu posso ter sentido com o ambiente se
vai. Me levanto depressa, raspando na escultura. A sereia
entalhada me assiste com dentes afiados que não reparei antes,
revelados do novo ângulo.
Seguro a língua para não perguntar o que é esse lugar. Até
porque não preciso de muito para adivinhar. Estou na Terra do
Nunca, mas não dentro das tendas, não dentro de nenhuma
carroça. Erguido acima de todos pela Árvore-Mãe, estou no
aposento privado de Peter Pan.
Devagar e calculado, desço o olhar para minhas mãos ao
lado do corpo. Estão como na noite passada: sem luvas. Livres.
Quando ergo o olhar de volta, tento não sorrir. Tudo que preciso
está a um palmo de alcance. Imagino se o baú guarda mais do
que o ouro escapando. Se os armários do balcão na parede
atrás da mesa suprimem segredos dentro deles. Se as duas
portas fechadas de cada lado abrem acesso para algo
promissor.
Quero explorar tudo ao alcance dos olhos, mas não existe a
mínima chance de fazer isso na frente de Peter Pan. Sua lâmina
continua raspando e dispersando lascas da madeira. Ele
permanece atento, tentando ler meus pensamentos da mesma
forma que tento ler os dele.
— Sabe, descobri coisas interessantes sobre você na
fogueira. O pó de fada… Ele faz você dizer coisas que talvez
você não queira… — começa Pan, lento e sorrateiro. — Parece
uma vingança adequada para uma pessoa que viveu entrando
na mente das pessoas também, não?
Meu rosto inteiro esquenta. Uma veia em meu pescoço pulsa.
— Você mandou que eles me dessem aquilo? — questiono
com raiva.
— Eu? Você mesmo tomou sua má decisão. Seus pais não
ensinaram sobre não aceitar coisas de estranhos?
Aperto os dentes, desejando poder acertá-lo com os punhos
fechados.
— Eu não tenho pais.
A mão que afia o espeto para. Pan ergue uma sobrancelha.
Como se ele já não soubesse. Desgraçado.
Ele estala a língua e dá de ombros.
— Hum. Eles são inúteis, de qualquer forma.
— Por que eu estou aqui? — corto.
— Você pergunta isso para mim? Eu é quem deveria cobrar
satisfações depois do que descobri.
Com um baque surdo, seus pés nus batem contra o chão,
assim que ele salta do encosto da cadeira.
Tenho a consciência clara de que ele jogou o espeto de lado,
mas permanece com a lâmina em punho. Pela primeira vez que
me lembro, Pan não está sorrindo — sem plateia, não tem
motivo. À minha frente, ele veste cem por cento sua verdadeira
face, despido de disfarces e artifícios ilusórios. Ainda não
entendo como posso me atrair.
— Eu ouvi… — ele continua, girando o canivete entre os
dedos habilidosos. — Que, por muito tempo, você treinou para
ingressar na trupe. Que é muito bom em atirar e acertar coisas,
e tentaria com isso.
O ar me sufoca e eu quase engasgo.
— Quem disse isso?
— Eu já falei… Você. — Peter Pan parece ter prazer em jogar
meu erro na minha cara. — Também tive o prazer de ouvir
alguns de seus comentários interessantes. Sobre mim.
Ele contém um riso mordido. Faz parecer que achou graça do
que seja lá que tenha escutado. Meu olhar cai para o chão,
acompanhando seus passos sorrateiros, pés descalços que
começam a serpentear pelo tapete. Uma camada de suor frio
começa a brotar na nuca, e meu coração se rebela contra as
costelas. Que merda eu falei?
— Mas lamento que não foram suas palavras emocionadas
que te trouxeram aqui. — Pan para do lado direito, no meu ponto
cego, onde o tapa-olho bloqueia a visão periférica. Ele pergunta
como se deliciasse cada palavra: — O que me intrigou de
verdade foi… Por que você se chamou de Julian?
Meu estômago dá um giro. Eu poderia vomitar agora. Engulo
de volta o gosto pungente de bile e humilhação.
Pan espera por uma resposta. Ele tem a arma, e eu só tenho
um beco às minhas costas, sem onde escapar. Sei reconhecer
quando não devo mentir.
Respiro fundo.
— Não estive mentindo. Jota é um apelido. Julian é o nome
inteiro.
Pronto. Está feito. Fico quieto, esperando que ele reaja ao
nome. Que isso acione uma lembrança em sua memória sobre
Gancho; que ele associe minha aparência ao homem que ele
matou; que conecte as peças.
Viro a cabeça devagar na direção dele. Esperando. Mas, no
fim de tudo, Pan ainda parece o mesmo. Não represento nada
para ele.
— Isso é tudo? — Pan pergunta.
Eu engulo.
— Sim.
A mão com o canivete se move para cima. Ganho a mesma
sensação do sonho, com um frio extra na barriga por estar
acordado. Mas não há nenhum golpe, nem sangue. Pan
empurra a lâmina para fechar o canivete e o joga de lado, sobre
uma pilha de tecido no chão.
— Muito bem, Julian. Tenho algo a dizer e só vou falar uma
vez, então escute bem: — ele segura as mãos atrás do corpo e
empina o queixo. — Você vai ficar no circo até o fim de hoje.
Nem mais um dia. Vai dizer a todos que já teve o suficiente e
então sair com as próprias pernas. Caso contrário, serei
obrigado a revelar a todos os outros que esteve mentindo, os
enganando, se aproveitando deles.
— Eu não menti — Tenho um sobressalto. — Meu apelido
realmente é…
— Você não é jornalista. — Pan interrompe, afiado como um
fio de aço. — Você confessou isso também. É apenas um
mentiroso querendo confusão. Teve a chance agora de se
confessar, mas não se dignou nem a isso.
Um redemoinho inquieto cresce dentro de mim. Um pouco
daquela droga e consegui colocar tudo a perder. Quanto mais
ele sabe e está evitando falar? Que mais besteiras eu disse?
Procuro argumentos, mas ele impede antes que qualquer um
se forme e saia.
— Eu não preciso ouvir mais nada. Você vai embora do meu
circo. Como deveria ter sido desde o primeiro dia em que te
disse para fazer isso. — De queixo erguido, ele contempla meu
rosto de derrota e vergonha por alguns segundos antes das
últimas palavras: — Você pode sair agora.
Me estranha que ele não use nenhuma mágica para me punir.
Apenas… me deixa ir. Seu último ato é abrir um alçapão ao lado
do tronco da árvore, deixando à mostra um quadrado de
passagem, e então joga uma comprida escada de corda lá para
baixo, por onde eu deveria descer.
Espero ele se afastar, ainda perdido no conflito dos meus
sentimentos por ter caído no plano dele. Caminho lento até a
saída. Então paro à beira do alçapão, com o buraco vazio no
chão entre nós.
— Por que você fez os Garotos Perdidos pedirem desculpa?
— eu pergunto. — Por que me trouxe até o seu aposento, onde
ninguém vem, para me dar essa ameaça?
Perco meu senso de preservação testando os nervos dele.
Peter Pan me ignora, dando as costas e olhando pela janela.
— Você simplesmente não pode interpretar o mau anfitrião,
não é isso? — eu insisto.
— Posso muito bem descer e contar a todos sua farsa, em
alto e bom som. Expor você da pior maneira. — Escuto sua voz
sem ver seu rosto. — É isso que você quer? Um espetáculo?
— Não, você não pode. E também não quer. — Mordo o
canto da boca se esticando em um meio sorriso amargo. —
Quer que eu saia com minhas próprias pernas porque não só
pegaria mal me expulsar assim em público, como você também
tem medo de afetá-los com isso. Medo de gerar efeito colateral,
do tipo emocional. Porque você sabe… Eles apostam em mim.
Talvez até gostem de mim.
O silêncio me responde. Pan finge que não é com ele. Mas
esquece as mãos atrás do corpo e eu vejo seus punhos
fechando, com força.
Minhas palavras são como uma torneira alimentada pela
raiva. Não consigo fechar.
— Eles realmente são a sua fraqueza.
É o bastante para fazer Peter Pan girar de corpo inteiro, com
rugas forçadas em seu rosto franzido, corado e enfurecido.
— Pelo contrário — ele diz entredentes. — Minha terra e meu
povo são os que fornecem e sustentam minha força. Mas a
bondade deles não os deixa enxergar quando tem alguém
tentando prejudicá-los. Eu estou aqui para isso. Para protegê-
los. Então escute quando eu digo: não se atreva a tentar nada
para cima deles.
Seguro um riso nervoso diante disso. Onde estava essa
proteção valente na hora de matar o meu pai?
Por um longo momento, eu sustento seu olhar sem desviar.
— Como quiser, comandante. — Uso uma calma cínica.
Estou aqui apenas por você. O pensamento vem, mas deixo
morrer na garganta.
Segurando no primeiro degrau, coloco o pé para fora e lanço
um último olhar de rancor a Pan. Ele volta a olhar pela janela
panorâmica, com as mãos para trás do corpo. Simplesmente
deu as costas, tranquilo como se eu não representasse a
mínima ameaça. A luz entra e ilumina sua pele marrom. Quero
poder aproveitar justo esse momento e apunhalá-lo pelas
costas. Mas são tantas inseguranças que me seguram. Eu estou
pronto para arriscar tudo pelo momento certo, mas sinto que não
é esse ainda; não quando existe tanta margem de derrota.
Eu escolho fingir obediência. Ainda tenho chance. Pois além
de conhecer seu território, ele acha que tem vantagem sobre
mim sabendo de meias verdades. É ele quem erra ao me
subestimar.
Enquanto afundo a cabeça para baixo do buraco no chão,
descendo a árvore, eu observo e gravo seus detalhes. É então
que reparo. Todos os contornos tocados pelo Sol projetam uma
sombra nos tapetes do chão; menos Peter Pan.
Por algum motivo, ele parece não ter uma sombra.
Capítulo 16
Abandono

Assim que piso na raiz da Árvore-Mãe, a escada é recolhida


como uma língua voltando para dentro da boca. Olho para cima,
para o alçapão agora fechado. É como ter de novo a sensação
de estar encarando de dentro do fundo de um poço.
Quando dou meia volta pelo carvalho, acabo topando com as
asas nas costas de Sininho. Ela se vira assustada, cheia de
barulho de sinos.
— Ah! Jota! Finalmente. — Ela me segura pelos braços e
checa todos os meus lados, faltando só me virar do avesso. —
Como foi? O que aconteceu lá em cima? Vocês…
Conversaram?
Os olhos de Sininho mal piscam, esperam com expectativa.
— Tecnicamente, sim — respondo, sem muita graça.
— Tecnicamente? — pergunta Sininho. — Você tá bem?
Balanço os ombros.
— Só com um pouco de dor de cabeça — digo massageando
a testa.
— Ah! Vamos até a enfermaria. Temos alguns remédios para
isso.
— Eu… Me desculpe por ter perdido o controle ontem.
Geralmente eu não sou assim. — Peço com as orelhas quentes,
antes de sairmos do lugar.
Sininho sorri e passa um braço pelos meus ombros, me
abraçando de lado, no limite que as asas permitem.
— Eu entendo. Foi mais uma das peças pregadas pelos
garotos. Não liga não. — Então ela segura firme em meu ombro
e analisa o meu rosto, preocupada. — Você não vai colocar isso
no seu artigo, né?
Eu faço que não com a cabeça, com aquele peso de estar
alimentando essa ilusão. Sininho ri aliviada e começamos a
descer das grandes raízes, inclinadas como uma rampa.
— Estou tão feliz por você e Peter terem se aproximado! —
ela comenta com um tom esperançoso. — A cada vez que ele
age assim, cuidadoso sobre todas as pessoas do circo, é como
se acendesse a esperança do antigo Peter voltar para nós.
Ela olha para o chão, pisando cautelosa com as sapatilhas
verdes entre as raízes. Eu levanto uma sobrancelha, a olhando
de lado.
— Então ele nem sempre foi agradável desse jeito? — digo
com toda a ironia da palavra.
— Não é isso. É que Peter já foi simplesmente… Mais. — Ela
suspira. — Mais aberto. Mais próximo. Mais ele mesmo. Antes
das coisas mudarem.
— O que mudou? — pergunto atento. Contemplando seu
olhar distante, imagino o que encontraria se tocasse nela agora.
Mas simplesmente não posso.
— Eu não sei ao certo? Foram tantas coisas. E tão de
repente.
Com a pausa que ela faz, chegamos à terra arenosa em
alguns passos. Tento pensar na pergunta certa. É o mais perto
do que preciso que já cheguei com ela. Mas Sininho continua e
interrompe as engrenagens da minha mente:
— Existe algo que… Socorro viu há algum tempo, na bola-de-
cristal. Antes de se esquecer, ela correu para me contar que…
Que alguém chegaria para resgatar o antigo Peter de volta. —
Ela levanta a cabeça e olha com tanta fé para mim. — Eu
acredito que você chegou no momento certo, Jota. Lembrei da
previsão de Socorro assim que conheci você melhor. Tem que
ser você. Só pode ser.
A sensação da culpa me constrange.
— Sininho…
— Eu disse pra você depois do desfile, não? Que eu sabia
que estava certa sobre você. — Seu modo sério de dizer me
deixa mais nervoso. — Você veio e… Nos ajudou a continuar
tendo esperança. Nos trouxe o sopro de coragem para enfrentar
o público de novo, depois de tanto tempo duvidando se
seríamos capazes de reconquistá-los, se poderíamos fazê-los
acreditar na magia do circo mais uma vez. Você nos resgatou. É
questão de tempo para resgatar Peter também. Eu acredito.
Ah, Sininho…
— Tempo? Na Terra do Nunca? Pensei que fossem duas
coisas impossíveis de se misturar. — Tento aliviar com humor,
ainda sentindo os músculos tensos.
— Acreditamos em muitas coisas por aqui. Mas o impossível
não é uma delas — Sininho responde, voltando a sorrir
timidamente.
Engulo o desconforto e a sigo sobre a terra firme, quieto.
Ainda estamos do lado oculto do acampamento, aquele que
pertence aos Garotos Perdidos. A árvore é muito larga e
precisamos dar uma volta grande para alcançar o outro lado.
Com um olhar perdido através das carroças, eu revivo
imagens fragmentadas da noite passada. A conversa empolgada
de Sininho continua, e consigo pescar algumas palavras. Ela
comemora como tiveram uma melhora de público. Faz planos de
expandir as ações do circo por Nova Eldorado inteira. “Graças a
você” ela diz em tom de agradecimento, me deixando sem
graça.
Eu capto algo que não prestei atenção à noite, com a pouca
iluminação. No canto dessa metade do acampamento, perto do
muro de tapumes. É uma carroça comprida, como a de
equipamentos, mas bastante deteriorada. Uma roda de madeira
está quebrada no eixo, deixando-a meio tombada. Falta pedaços
no telhado, e a tintura é desbotada, descascada em muitas
áreas.
— O que é aquilo?
Sininho segue meu olhar e quando se depara com a carroça
abandonada, olha para o chão e coça a nuca.
— É uma parte rejeitada da Terra do Nunca. Uma espécie de
lugar banido.
Seus passos aceleram.
— Banido?
— É, mas não é nada importante. — Sininho ri, sem graça.
— Me parece bem o contrário — respondo com interesse.
Nem consigo tirar os olhos mais do lugar. — O que aconteceu
pra terminar assim?
Ela olha distante também, avalia por um instante, antes de
falar:
— É onde ficam os pertences dos que partiram da Terra do
Nunca — ela confessa. Meus ouvidos até se levantam. —
Lembra do que eu disse sobre o fio de cabelo branco? Então…
Existe uma diferença entre repassar o cargo no circo pra frente,
e simplesmente abandonar esse lugar.
Um peso transparece em suas palavras. A sugestão de
abandono sai com um fardo extra.
— Quando repassamos para frente, continuamos uma
existência. Mas quando se abandona, não. — Ela suspira. — É
como matar o personagem.
A sugestão de morte me deixa nada confortável. Mas isso não
se parece bem com Gancho. Soa como escolher deixar a Terra
do Nunca para trás. Uma imagem clara me vem à mente.
— Wendy?
O meu desconforto agora parece se refletir em Sininho, que
se inquieta toda.
— Seria melhor não tocar nesse nome por aqui. — Ela
cochicha mais baixo: — Principalmente perto de Peter.
— Tudo bem. Me desculpe, eu…
Sininho volta a sorrir, ainda que mais fraco.
— Não é sua culpa. É só que… Temos essa norma: o nome
dos que abandonaram não são ditos, em hipótese alguma.
Devem ser esquecidos.
Lembro como Dênis teve receio de dizer o nome de Tigrinha
na carroça da enfermaria. De como Max tocou no nome de
Wendy no jantar, e a reação tensa de todos. As duas deixaram o
circo logo depois do que aconteceu com Gancho.
— Você acha que tem algum problema se eu for até lá? —
arrisco a pergunta.
Sininho verifica todos os lados, e acaba nos guiando através
das largas passagens entre as carroças, até aquela esquecida.
Na porta torta, alguém riscou de giz preto ou carvão: “Carroça
do Abandono”. Sininho força a passagem, que range em
dobradiças velhas, e me deixa passar na frente.
A luz não funciona, me guio pelo sol entrando sorrateiro. O
cheiro de mofo e de tecido velho gruda no nariz e deixa um
gosto ruim na boca. Paredes estreitas e cheias de tralhas me
sufocam.
Piso sem querer em algo que estala. Olho assustado para um
par de asas quebradas. Apesar da camada de poeira, as penas
permanecem bonitas, brancas e exuberantes, cada uma do
comprimento de uma palma. Eu me abaixo para admirar de
perto. Minhas mãos pairam a centímetros das asas. Levanto a
cabeça e encontro Sininho parada na porta, me observando com
olhos claros e grandes.
— Eu poderia? — Indico com o olhar.
Tenho uma resposta rápida, um aceno concordando. Desço a
mão e toco nas asas. É diferente fazer isso na frente de alguém
e com permissão. Sem medo nem culpa, apenas curiosidade.
A asa me entrega uma memória de Wendy. O Pássaro
Wendy. Tenho uma breve visão dela do alto, sobrevoando uma
plateia lotada, cheia de olhos arregalados mirando para cima. É
como se olhos sorrissem também.
Solto rápido, para não ser sobrecarregado pelas memórias
disso, e passo à frente. Encontro vestes e acessórios que foram
de Sr. Marujo e Tigrinha, suas fantasias de marinheiro e
princesa. Eu os toco rápido também. Vejo vislumbres de seus
espetáculos na companhia de Gancho. Tigrinha amarrada ao
alvo de madeira, encenando o papel de uma donzela em perigo,
enquanto Sr. Marujo dá risadinhas que só eles ouvem sob o
clamor da plateia e dos tambores rufando. Ele traz as facas de
arremesso, entregando a Gancho. Com a visão, meu sorriso é
automático.
— Estou ouvindo me chamarem na tenda. Preciso coordenar
o trabalho. — Sininho interrompe, dando espiadinhas para fora
da porta. Se segurando no batente, ela olha para trás para me
ver. — Posso confiar em você?
De novo esse aperto.
Eu me forço a murmurar um “claro”.
Assim que Sininho deixa a carroça, me levanto apressado e
começo a caçar de verdade. Reviro tudo que há na frente,
buscando por algo que seja de Jaime Gancho. Confio que vou
reconhecer se ver algo dele.
O que estava bagunçado ganha mais uma camada de caos
depois que reviro tudo duas vezes. Estou suando dentro da
carroça fechada, espirrando feito um louco com todo o mofo e
poeira levantada. Acabo frustrado, sem nada. Não há restos de
Gancho ali. Talvez eles não considerem morte como abandono.
Ainda mais se for um assassinato, como sei que foi.
Estou prestes a desistir, quando reparo no que há debaixo de
um colã prateado. Mesmo abandonado, não perdeu o brilho em
suas centenas de lantejoulas intactas. Movo a roupa de lado e
encontro uma caixa. A única coisa cuidadosamente conservada
desse lugar.
Abro e encontro uma sanfona. Penso na musiquinha que sai
sem parar das caixas de som no circo. É fácil esquecer como
um dia ela deve ter sido mais do que um toque repetitivo de uma
máquina; que saía em tempo real e orgânica, tocada por mãos
vivas.
Minha palma desliza sobre o instrumento, sentindo a textura.
É tão automático que nem reparo. Alguma coisa se move com a
brisa que invade a carroça. Um movimento leve, mas que chama
minha atenção. É um papel enfiado entre o acordeão e a caixa.
Uma foto em sépia. Estampa uma bela bailarina negra de
cabelos escuros e modelados, olhos de cílios pesados, vestida
com esse mesmo colã prateado e uma saia rodada. À frente de
seu corpo, ela carrega orgulhosamente o instrumento, abrindo
um sorriso claro. No verso da foto, uma letra corrida está riscada
em caneta azul: “Cristal e sua amada sanfona. Eternizada por
J.G.”.
Minhas sobrancelhas afundam. J.G. É muito exato para ser
coincidência.
Gasto meu toque no acordeão, mesmo com receio de estar
exagerando de novo, colocando um pé na zona perigosa.
No momento que encontro a última memória gravada nesse
instrumento, o ar some dos meus pulmões e meu queixo cai.
Vejo a história de uma mulher grávida. Cristal – a bailarina, que
deixou o circo por medo do risco que corria. Gancho aparece em
sua memória; chora por sua partida – coisa que nunca, nunca, o
vi fazer. Como se não fosse o bastante, se despede com um
beijo: longo, afetuoso e cheio de promessas.
Pela primeira vez, sinto a mim mesmo dentro de uma
memória. Dentro do ventre da mulher, pressionado entre os dois
naquela despedida melancólica.
Eu paro com o choque.
Olho para as coisas abandonadas da bailarina, reunidas ao
redor da sanfona. Então esqueço todo o pudor de conservar a
habilidade. Começo a tocar tudo que encontro de Cristal. Minha
mãe. Aquela que morreu pouco depois de me dar à luz. Aquela
que eu não podia me lembrar porque nunca cheguei a conhecer.
O instrumento, o colã, as sapatilhas, suas presilhas de
cabelos, seus pincéis ressecados de maquiagem. Toco em tudo,
obcecado. Conhecer a história de Cristal é conhecer uma parte
da minha história também. Suas lembranças não roubam
minhas memórias, não apagam o que vivi; elas me preenchem,
me fazem mais inteiro.
Ela é linda. Encantadoramente linda. Vejo de onde herdei a
pele mais escura do que a de Gancho, de onde vem o olho
esquerdo que não preciso esconder. Ela faz do seu personagem
alguém importante, reúne pessoas ao seu redor e cativa todos
com um único sorriso e sua música. Todos repetem seu nome,
ovacionando. Ela chama a Terra do Nunca de lar, e realmente
sente em ter que deixar a personagem para trás. Tudo pela
criança que ama e carrega.
Não sei dar nome para essa sensação que nunca tive. Mas é
algo que me preenche por dentro. Meus ecos silenciam. As
memórias vêm para tapar meus vazios.

◆◆◆

Eu tinha 10 anos quando ousei desafiar a autoridade de


Gancho. Foi a primeira e única que meu pai levantou a mão para
me acertar com um tapa na cara. Pesado, certeiro e cru. Eu
havia decidido que sabia mais do que ele e que poderia mandar
em mim. O observei partir, como outras vezes, mas daquela vez
eu o segui. Segui porque queria ver aonde ia, porque queria
fazer parte e queria mostrar a ele que eu podia.
Gancho me emboscou antes da terceira esquina e me
arrastou de volta pela orelha. Foi o mais longo e alto sermão que
recebi, embora não calado. Gritei para ele que iria fugir, que não
seria mais controlado. Foi aí que apanhei. Um único golpe que
me calou pelo resto da semana. Me lembro de encará-lo com
olhos arregalados, enquanto ele tinha uma expressão dura e
severa.
Você não sabe quem já precisou morrer para proteger esse
seu nariz mimado. Mas vai aprender a respeitar. E a valorizar o
que lhe foi dado. Foram suas últimas palavras antes de sair.
Eu nunca mais o segui de novo.

◆◆◆

Sair da Carroça do Abandono é como ver o circo com novas


lentes: as lentes de minha mãe. A afeição dela pela Terra do
Nunca passa por mim como uma onda, sintonizando com uma
parte minha enterrada há muito tempo: daquela criança que
sonhava com o circo, esperando que um dia ele viesse até ela.
Tudo parece ser mais brilhante e colorido. Sinto o cheiro de
terra fértil como um perfume. Quero pisar com pés descalços
para sentir. Colocar o ouvido na terra para ouvi-la vibrar.
Que incrível e terrível é a sensação de que eu poderia ter
crescido com alguma coisa concreta na vida. Incrível porque é
tudo que nunca imaginei poder ter, tudo que há de mais difícil
em admitir que desejo: Família, lar, amar e ser amado. Terrível
porque a chance passou, como um trem que partiu e eu cheguei
atrasado para pegá-lo.
Quando entro na carroça apagada do dormitório, estou
impregnado pelas memórias de Cristal, da mesma forma que
estou impregnado pela luz do sol. Minha visão demora a se
adaptar, ainda cega pela luz. Pisco e enxergo estrelas. Posso
imaginar as pupilas grandes resistindo voltar ao normal. Subo a
escada interna da carroça tateando as paredes.
As camas estão vazias. Puxo a bolsa com meus materiais do
chão e viro o que tem dentro sobre a mesa. Uma chuva de fitas
cassetes, canetas e blocos de nota se derrama. Largo a bolsa
para catar o gravador pesado que caiu primeiro, por baixo da
bagunça.
Começo a revisar o que tenho. Tudo o que passei quatro dias
coletando. A motivação de continuar investigando, enfraquecida
de mim ao descobrir cada mentira de Gancho, floresce de novo.
É alimentada pela energia de Cristal; um broto morto que, com
uma mísera gota d’água, volta a romper o solo para a luz do dia.
Depois de passar horas rebobinando as fitas em ordem, da
primeira à última, chego à gravação de ontem. Deixar o gravador
ligado dentro do bolso na noite passada foi um cuidado de
grande valor. Tenho a chance de escutar tudo agora.
Ouço os Garotos Perdidos contando sobre a rivalidade entre
Peter Pan e Gancho, e bate com o que Dênis disse: uma disputa
pelo comando do circo, pela liderança da Terra do Nunca. Passo
para a agenda rabiscada: transcrevo cada relato importante ou
que faça menção a Gancho e Pan.
Eu paro e me foco em escutar o que gravei ao redor da
fogueira. Percebo que durei consciente por bastante tempo,
apenas não me lembro por conta da ressaca. Aperto o botão de
avançar e adio para a metade da fita, na altura onde o barulho
das motos diminui e consigo distinguir as palavras.
— Sua vez de novo, novato — Max chia, zombando através
da gravação de baixa qualidade. Alguém arrota no fundo e
outros gargalham.
— Por que Wendy deixou o circo? — Ouço minha voz soar
arrastada. Acontece uma longa pausa. Os risos são abafados
pelo silêncio. — Qual foi? Não era um jogo de qualquer
pergunta?
O efeito do pó de fada parece me tornar mais cínico e
amargo. Soa como se eu não tivesse mais que fingir que estou
bem. Uma ferida exposta.
— Respondemos o que sabemos responder — retruca Max.
— Vai me dizer que não sabem? Vocês não estavam aqui?
De um dia para o outro ela só desapareceu?
— Só porque vimos ela sair, não quer dizer que entendemos
o motivo.
— Ela só foi embora, brava com tudo. Começou a nos odiar
do nada. Nem deu chance pra gente pedir perdão, pelo quer que
fosse — completa uma voz mais distante.
A fogueira crepita ao fundo, durante uma pausa longa.
Quando o barulho das motos volta e engole o resto dos sons,
avanço a fita com o botão do gravador, até que ouço alguém
soar sozinho.
— Já chega. Max, tira a garrafa dele. Gêmeos, ajudem a
carregá-lo para longe da fogueira.
A voz de Peter Pan faz parecer que ele está aqui e agora
comigo.
— Mantenha suas mãos nos bolsos, convidado — Pan
adverte, e eu o imagino se agachando mais perto, se
preparando para me carregar.
— Julian. — Minha própria voz sai arrastada e grogue. — Me
chama de Julian, por favor.
Meu estômago revira, mas eu não movo um músculo. Tão
silencioso quanto a pausa que se segue depois disso.
— Julian. É esse o seu nome?
Minha gravação solta uma resposta lenta, cheio de sono.
— Sim, Peter.
Tenho um breve choque de como soa transformado o som de
seu nome quando não é só pensado. Eu nunca tinha
experimentado em voz alta.
Ao longe, os risos abafados do resto do grupo são soprados
no ar, se divertindo com a minha exposição. Pan repete a ordem
para os gêmeos, e o áudio captura uma porção de chiados.
Imagino ser o ruído da roupa raspando contra o gravador
enquanto eles me colocam em movimento.
— Uau! Esse céu! Essas estrelas! Aquilo é um dragão
voando? — Minha voz tagarela de novo enquanto me carregam,
delirando sob efeito do pó. — Puta merda, eu estou mesmo na
Terra do Nunca. Ha-ha! Eu sonhei em fugir para o circo, sabia?
Era tudo que eu sonhava. Eu até treinei para ser bom, para
tentar ser aceito. Treinei pra caralho, sabe?
Os ruídos do movimento param e eu murmuro palavras
desconexas quando me colocam no chão de novo. Na nova
quietude, voltam o som dos grilos à noite e da fogueira
crepitando mais distante.
— Eu esperava ser escolhido. Acreditava tanto que você
fosse me enxergar — minha voz corta para dar um suspiro
cansado. — Eu quis você, Peter. Porque você não me quis?
Num reflexo instantâneo, bato no botão de pausa. O baque
ecoa e dói o punho fechado que usei para acertar o gravador.
Arranco a fita apressado e jogo no fundo da pasta para evitar
pisoteá-la. Apesar de lidar com memórias o tempo todo, há
coisas que gostaria de não lembrar.
Passo um tempo com a cabeça segurada entre as mãos,
respiro ofegante pela boca. Recuperando minha sanidade. Ou
ao menos tentando. Mas fico lembrando de Peter Pan na casa
da árvore, rindo enquanto dizia “ouvi seus comentários
interessantes; sobre mim”. Não quero nem imaginar o que mais
eu admiti em voz alta depois disso.
Devagar, volto uma fita nova para o gravador. Aperto para
começar com medo de escutar minha voz de novo, dizendo
coisas que tenho vergonha escutar. Mas começam a soar as
vozes da trupe, contando histórias amistosas, indefesas. Com
um suspiro de alívio, solto os ombros e pego a caneta,
retomando.
Tudo fica salvo de novo dentro da bolsa, a qual empurro para
baixo do colchão.
Já é noite, as apresentações acabaram, e não me esqueci da
intimação de Pan para que eu deixe o circo. Todas as pistas que
não levam a lugar nenhum me pressionam a conseguir um plano
emergencial que me ajude a ter um pouco mais de tempo.
Vasculho o acampamento em busca de Bravo, o mais
interessado em me manter por aqui. Sua carroça está apagada
e trancada, e não enxergo sinal de sua máscara em nenhuma
das carroças comunitárias. Me falta tempo para brincar de caça
ao rato com ele, então decido partir para outra. Foco em
encontrar a cara branca pintada de Dênis. Exigiria esforço para
convencê-lo a comprar minha ideia, mas fiquei sem opção.
Quando o encontro, ele não está com a cara pintada, nem
vestindo a fantasia bufante. Na floresta atrás do circo, Dênis tem
metade do corpo imerso na água do riacho, cada ponta de seu
cabelo escorrido pingando como resultado de um mergulho
recente. Dênis gargalha bêbado e pelado com os cinco Garotos
Perdidos, igualmente bêbados e pelados. O som da liberdade
em ser irresponsável e despreocupado. Se empurrando na
água, eles se encaixam com o ar quente da noite de verão e o
cheiro úmido da mata selvagem.
Eu me aproximo pela margem, deixando as sombras noturnas
das árvores para o clarão da lua que ilumina a porção aberta.
Passo por cima de garrafas de vidro caídas, duas delas já
vazias. Max está em cima de uma pedra no meio do rio, girando
o que tem entre as pernas numa dancinha exibida. Com todos
os outros de costas, ele é o primeiro a me ver.
— Ei! Olha só quem veio dar um pulo — anuncia exagerado,
levantando os braços, fazendo os outros girarem para ver. —
Grande Jota!
Eu congelo com o uso do codinome. Ele já sabe o meu nome
completo, sabe da verdade que deu a vantagem para Pan me
chutar daqui. Uma breve olhada pelos garotos, que se juntam ao
coro de “pula, pula, pula!” com risadas grogues, e reconheço
como o álcool os relaxou. Eles não estão em condição de se
importar.
— Eu não-
— Deixa de ser cuzão e pula! — Max insiste.
Como se para demonstrar, ele vira de costas, exibindo a
bunda branca como a lua, e deixa a gravidade fazê-lo cair no rio.
O som do tapa na água causa comoção nos outros, que se
encolhem sentindo a dor por ele. As gargalhadas ressurgem
quando ele emerge com as costas avermelhadas, sacudindo o
topete encharcado e espalhando mais água.
— Eu acho que ele prefere chamar o Peter — Dênis provoca,
alongando as vogais de um jeito embriagado e sacana.
Os Garotos Perdidos reagem imediatamente ao nome,
levantando as cabeças e os ouvidos. Eu só tenho tempo de
chutar terra da margem na cara de Dênis, que começa a tossir e
cuspir, esfregando água nos olhos.
— Você é melhor calado, mímico. — Tento lembrá-lo das
posições que devemos manter, para não me expor ainda mais
com qualquer nível de intimidade. Os outros começam a se
movimentar descontrolados no rio de novo. Sob a nova onda de
barulhos, eu falo mais baixo, aproveitando suas distrações. —
Sai da água e se veste. Preciso conversar com você.
Mas é como falar com aquela pedra no meio do rio. Dênis
estala a língua e respinga água nos meus coturnos, que afasto
por reflexo, pensando nas facas guardadas.
— Qual é, cara! É nossa noite de folga. Só aproveita e relaxa
— ele diz se afastando, boiando metade do corpo.
Eu arfo impaciente e penso numa maneira de arrastá-lo para
fora. É então que aparece mais gente. Contorcionistas e
acrobatas surgem correndo e gritando com vozes finas. Sem as
cabeças de animais habituais, elas pulam de roupa íntima no
riacho. Tudo se torna uma cacofonia de corpos batendo na água
e é impossível ter um mínimo diálogo que não seja gritado.
Agora, além de tempo, me falta paciência. Talvez eu deva me
resolver sozinho.
Dou as costas e volto pelo caminho que me trouxe até ali.
Atravesso as árvores em silêncio, os sons de juventude eufórica
sendo deixados para trás. Tenho os olhos concentrados nas
sombras no chão, torcendo meu cérebro para que solte um novo
plano para que eu permaneça no circo. Até que um único
movimento em borrão mais à frente me faz erguer a cabeça,
alarmado. É alguém saindo por uma passagem secreta do muro,
onde um dos tapumes é solto, cedendo com um simples
empurrão no lugar certo. Eu me escondo por trás da curva do
muro para não ser visto e espio pela borda.
O movimento da figura poderia ser um pedaço de arbusto da
floresta tomando vida e criando pernas próprias. Mas não. Não é
a floresta. É só mais uma peça de roupa extravagante: um
casaco felpudo, como se feito de grama muito escura. Vestido
assim, não poderia ser ninguém menos que Peter Pan. Dessa
vez, pelos menos, ele tem calças compridas e sapatos – de
longe, se passa por um ser civilizado. O que há de estranho nele
é seu andar discreto e sorrateiro. Se há algo que aprendi sobre
Pan, é como ele gosta de chamar atenção. E sair desse jeito só
pode significar que ele está saindo escondido.
Aos primeiros passos que dá para se afastar, eu estou de
volta ao riacho muito rápido, correndo até Dênis. Ele está na
beira, tentando alcançar uma das garrafas caídas no mato.
Graças a isso não preciso gritar por cima de todo o barulho.
— Dênis, é sério. Vem agora e me segue — sussurro
agachado sobre os joelhos. Ele abre bem os olhos a expressão
vazia, aposto que pelo choque de seu nome verdadeiro. —
Preciso de ajuda e isso tem a ver com o meu pai.
É o bastante para que ele entenda a gravidade. Ainda que
relutante, deixa a garrafa de lado e sai para se vestir. As roupas
de mímico ficam meio coladas na pele e ele tem trabalho para
espremer a água do cabelo sem uma toalha. Mas logo estou
arrastando ele pelo caminho, antes que eu perca Peter Pan de
vista.
Nós apenas corremos por um tempo, enquanto ignoro as
perguntas perdidas de Dênis sobre o que está acontecendo.
Deixamos o ar silvestre do campo de trevos e caímos de volta
nos paralelepípedos de Nova Eldorado. Eu empurro Dênis para
trás de alguma construção a cada vez que vejo Pan parar em
alguma esquina, avaliar a rua, e então atravessar para continuar.
Numa delas, Dênis se amontoa sobre mim, tentando espionar
quem é o alvo.
— Aquele é o Peter? — ele pergunta alto demais.
— Shhh! — chio para ele, antes mesmo que insinue mais
uma de suas teorias sobre qualquer coisa existente entre mim e
Pan.
Eu o empurro para se mover de novo, com menos velocidade
e mais cautela dessa vez. Nos aproximamos do porto costeiro,
onde o ar tem cheiro de sal e tudo ostenta algum grau de luxo.
Pan diminui o ritmo, como se estivesse chegando. Eu puxo
Dênis para dar a volta pelo quarteirão, e assim termos uma
visão melhor do que ele vai fazer.
— É o seguinte: preciso da sua ajuda para ficar no circo por
mais alguns dias — explico quando tomamos distância,
passando de cabeça baixa entre carros estacionados e
pedestres na contramão. — Pan descobriu a verdade. Que não
sou jornalista. Agora está me intimando a ir embora do circo.
— Puta merda, cara. Sabia que seria uma hora ou outra…
— Tá, mas eu simplesmente não posso sair ainda —
interrompo o sermão.
Nós viramos a esquina, voltando ao ponto alvo. Dênis olha de
lado para mim.
— Essa é a parte que você finalmente desembucha sobre por
que diabos você inventou essa história toda? — Ele espera com
expectativa.
Eu o puxo para de trás de um carro, agachado num ponto
estratégico.
Então respiro fundo, encarando a calçada entre os joelhos
separados.
— Eu estou procurando provas do assassinato do meu pai. —
Sai mais fácil do que eu imaginei; o que não serve para diminuir
a reação de Dênis, que abre a boca e arregala os olhos.
— Assassinato?! Cara, você perdeu a cabeça…
Sabia que ele não levaria a sério, só precisava tentar. Não
posso nem pensar em apontar minha desconfiança para Pan,
porque aí sim Dênis recusaria ajudar.
Faço com que se cale e se concentre no que preciso: um
plano para ficar no circo. Nós espionamos por cima do capô do
carro, na linha dos olhos, e procuramos uma resposta no que
Peter Pan planeja fazer. Se tivermos algo secreto sobre ele, algo
secreto contra ele, poderia ser uma semente para meu plano.
Quando reconheço a casa do outro lado da rua, não posso
estar menos surpreso. Por trás de um jardim frondoso e pilastras
de decoração externa, o casarão de Wendy Amado se estende
no meio da noite.
Ao invés de bater na porta da frente, Pan contorna a casa até
os fundos. Nós o seguimos por trás dos carros. Ao pé de uma
árvore alta e escura, ele escala o tronco com a habilidade de um
felino. Se segura lá em cima e para sobre um dos galhos,
agachado. Ninguém saberia que ele está ali, do jeito que
consegue se camuflar.
A rua à noite é bem menos movimentada, embora bem
iluminada. Dênis me segue até outro canto discreto atrás de um
telefone público, onde temos como observar do ângulo certo o
que acontece no outro lado da calçada.
De Peter Pan, eu espero sempre o pior. Mas ele não faz
realmente nada por um longo tempo. Apenas fica lá em cima,
entre as folhas da árvore, mãos firmes agarradas no galho
abaixo dele, enquanto os olhos não deixam a janela no segundo
andar do casarão. A vidraça está fechada. Trancada. Pan bem
poderia parecer alguém que foi deixado de fora.
— O que tá rolando? — Dênis cochicha. Parece não saber
que lugar é esse.
— É onde Wendy vive.
— O quê?!
Eu quase o estrangulo para que fale baixo. Ele se encolhe, se
desculpando.
A luz se acende dentro do cômodo mais alto dos fundos,
resgatando nossa atenção. A luminosidade alcança o rosto do
garoto observando, mas nenhuma sombra se projeta para trás
dele. Ele se esconde mais fundo no meio da copa de folhas.
Sigo a direção de seu olhar e vejo silhuetas se movendo lá
dentro.
Reconheço Wendy, seu cabelo volumoso e seu tamanho
pequeno. Ela segura a mesma criança que vi na última visita.
Sua filha. Uma sombra maior se aproxima e eles se abraçam,
trocam beijos e um momento juntos da criança. Outros dois de
chapéu também passam pela janela, mas eu troco de foco, de
volta para Peter Pan.
Há tanto naquele simples olhar passivo que eu não deveria
ser capaz de enxergar. Vim atrás de um segredo, e é justamente
o que encontrei. Mas não é o que eu precisava.
Ele fica por muito tempo ali. Mais do que eu sinceramente
julgaria normal. Não se move, nem tenta nada. Por alguns
instantes, o perco de vista. Mas é só procurar pelo brilho dos
olhos que refletem a luz de dentro do quarto, e lá está. A solidão
assistindo à união.
Ninguém o vê. Ao menos ele deve pensar que ninguém está
vendo. Mas eu vejo. E sei como é estar naquele lugar. Encará-lo
é como olhar para um reflexo distorcido de mim mesmo.
A última coisa que eu esperava era estar ali para me
identificar com Peter Pan.
— Isso é tão… — Dênis procura as palavras, percebendo
tarde demais que estamos encarando algo íntimo e vulnerável
sobre o líder deles. — Sei lá… triste. Eu não sabia que o Peter
podia ser assim.
Nem eu. O pensamento morre comigo.
Paro de olhar e volto a me afastar, com Dênis apressando o
passo logo atrás. Não posso me relacionar em nada com
qualquer coisa que Pan sinta. O colar em meu pescoço me
lembra que, se ele está assim, é por algum motivo, e que ainda
vou desenterrar para incriminá-lo.

◆◆◆

Voltamos calados ao circo, pensando demais no que vimos e


ainda sem um plano.
No campo de trevos, a muralha salta aos olhos, mesmo
distante. As lâmpadas coloridas continuam acesas. As bandeiras
no alto de ondulam lentamente. Na beira da floresta, o circo se
acende como um farol, chamando náufragos para a terra firme.
Mas firmeza é a última coisa que sinto.
A caminho da plataforma de aço da bilheteria fechada, tenho
o vislumbre de fumaça subindo para o céu, sinuosa em forma de
vultos fantasmagóricos. Dênis desvia do caminho, indo até lá.
Eu o sigo por não ter mais aonde ir.
Empoleirados nos antigos brinquedos enferrujados de ferro ao
relento, os Garotos Perdidos fumam no escuro, ainda úmidos do
rio: os gêmeos na gangorra estática, Silvestre deitado no
escorregador, Bem ocupando um único assento no gira-gira de
quatro lugares. Eles curtem a madrugada em silêncio, e é o
máximo de tempo que já os vi ficarem quietos.
Sininho está com eles, sem as asas. No balanço pendurado
por corrente, ela se senta no colo de Max. Fisga o cigarro da
boca do garoto e traga uma vez, profundamente. Então sopra
pra cima e observa o céu com a cabeça escorada no ombro
dele. Eu nunca havia parado para reconhecer como ela ainda é
jovem, com toda a responsabilidade que carrega nesse lugar.
— E aí, rapaziada. Rola mais um aí? — Dênis denuncia
nossa aproximação. Vai para o lado dos gêmeos, pesca o
cigarro deles e senta ao lado de Bem no gira-gira.
Fico parado diante do grupo, como um animal acuado e sem
lugar. Max me analisa, enquanto seus dedos vêm e vão entre o
cabelo curto de Sininho. Ela ainda não reparou que cheguei com
Dênis.
Quando penso em dar meia volta sozinho, Max percebe
minha intenção de fugir e me impede.
— Sabe, eu fico me perguntando… — A voz dele é rouca do
sereno e, com certeza, da bebida. — O que você tem para ter
impressionado ele. Além de um rostinho boa pinta.
Olho de volta e agora Sininho está consciente da minha
presença. Seus braceletes tocam no meio da noite com o
movimento brusco que faz. Ela passa rápido o cigarro para Max
e olha temerosa, como se eu fosse julgar.
— Quem? — Volto a atenção para o que Max disse.
— Peter — ele responde.
Enfio as mãos nos bolsos, encolhendo com a brisa fria.
— Ele não se impressionou comigo.
Max e outros garotos soltam um riso.
— Isso é o que você acha — Bem diz inclinado sobre o
volante do gira-gira.
— Estou aqui há anos e me custou meses para ter atenção
dele. Não é algo fácil, acredite — Max afirma.
Experimente mentir para ele, eu penso. Mas o sarcasmo é
uma fachada de defesa, porque não sei como me sentir sobre
isso. Ele diz como se Pan reparasse mais em mim do que eu
julgava.
— Porque ele é exigente — Fim explica do alto da gangorra.
— É difícil chamar atenção dele nas apresentações, leva muito
tempo até ele estar satisfeito. Sempre existe algo que estamos
fazendo de errado ou que precisa mudar.
— Então por que vocês não fazem isso sem ele? — eu
retruco.
— Porque o cara é o melhor no que faz. Ninguém mais
poderia comandar a trupe como ele.
Na pausa que se forma, Sininho suspira e se levanta,
descendo do balanço com o som suave dos braceletes.
— Boa noite, garotos. Não durmam tarde — ela se despede,
sem realmente olhar para eles.
— Ei! Onde está indo? — Max protesta.
Mas Sininho o ignora e vem até mim. Passa o braço magro
por dentro do meu e me leva para dar uma volta com ela.
Parece dedicada a manter uma distância segura entre mim e as
aventuras arriscadas deles que não pegariam bem no jornal.
Em silêncio, damos a volta pelo muro de tapumes, no limite
da floresta. Ela nos guia para o acampamento rumo à entrada
secreta, não pela entrada comum através das tendas.
— Você também acredita nisso? — pergunto quando já
estamos longe.
— No que?
— Que Peter Pan é o tal e não existe ninguém igual a ele —
ironizo.
Sininho continua séria. Ela esfrega os lábios um contra o
outro, pensando. Sua voz sai pesada de significado quando
resolve falar:
— Ele nasceu para governar isso aqui. — Sininho coloca
ênfase na palavra. — Quer saber de uma história passada só de
Sininho para Sininho? — Ela espera eu acenar para continuar:
— Peter foi a primeira criança nascida no circo. Primeira e única.
Ele foi abandonado ainda recém-nascido. Foi simplesmente…
deixado. Uma antiga Sininho quem o encontrou, perto da
Árvore-Mãe, o coitadinho coberto de terra e sujeira.
A velocidade dos passos diminui. Um choque de surpresa
cruza meu corpo. Fico encarando Sininho, avaliando se não é
uma brincadeira.
— Sabe todo esse muro de tapume alto? Foi feito pela antiga
trupe para evitar isso outra vez. Para proteger a Terra do Nunca
de pessoas de fora. Porque a mulher não era daqui. Ela
simplesmente largou o bebê e se foi.
Nossos passos até a entrada escondida no muro são
silenciosos, cheios de contemplação do que foi dito. Assim que
paramos, Sininho toca o tapume para empurrar, mas para e se
vira de novo.
— Jota? — ela chama, antes de abrir a passagem.
Grilos cantam ao nosso redor, entre os vultos das árvores.
— Sim?
— Não escreva sobre essa história. Por favor. Tudo bem?
E eu concordo, calado.
Capítulo 17
Herdeiro de sangue, olho e mira

Na manhã que devo ir embora, Dênis me empurra contra o


colchão e sacode, repetindo “acorda, acorda”. Eu me encolho e
abro os olhos com dificuldade. Por entre as fendas das
pálpebras, vejo seu rosto pintado, vestido de Pio. Por um
instante, parece outra pessoa. É fácil se esquecer de como por
baixo das cores e disfarces há pessoas com outras identidades,
mesmo que eu o tenha conhecido antes.
— Acredita mesmo nessa história de assassinato? — Ele fica
sério para perguntar.
Solto um suspiro difícil e jogo a coberta para longe, me
sentando.
— Eu não estaria aqui se não fosse por isso.
Eu olho para cima e Dênis ainda está parado, perdido
encarando o nada e pensando sozinho.
— Passei um tempo pensando nisso. E, mesmo que eu deva
lealdade a Gancho, ainda acho que você está viajando — ele diz
cheio de pausa, hesitante. Não o culpo por não conseguir
enxergar maldade do lugar e nas pessoas onde aprendeu a
confiar.
— Então me ajude a provar que eu estou errado. Me ajude a
ficar até eu ter certeza. Eu mereço ao menos ter paz de espírito
sobre isso.
Dênis foca o olhar em mim, avaliando. Então dá uma volta no
estreito espaço entre as camas e o teto baixo, relutando consigo
mesmo.
— Tá. Digamos que eu… pensei numa ideia — ele
desembucha, mordendo a ponta do polegar.
— Sabia! Você não sabe disfarçar. — Solto um riso, certo de
que não teria me acordado com tanta energia à toa
— Eu só quero ajudar a tirar essa coisa da sua cabeça,
valeu?
Concordo com um aceno. Dênis senta de frente para mim, na
outra cama.
— Fiquei lembrando do que vimos ontem e pensei: Por que
não conseguimos outra garota para o Peter? Quero dizer…
Poderia ser garoto também, mas já que você não está disponível
porque ele descobriu as paradas…
Meu travesseiro é a arma mais próxima. Atiro com a força
para fazê-lo tombar sobre o colchão.
— Ai! — Dênis reclama.
— Então seu grande plano é fazer o Pan se dar bem? Não
vejo como isso envolve aumentar o meu prazo aqui.
Ele termina de massagear a cabeça e se levanta de novo.
— Pensa só: se ele se der bem com alguém e souber que foi
a gente, ou melhor, você que desenrolou o lance, ele pode ficar
grato por sair da fossa e aí volte a simpatizar contigo.
Eu penso sobre a possibilidade. Me parece pouco provável
que um simples encontro o fará esquecer de tudo. Dênis não faz
ideia da nossa rixa desde o início, não tem culpa de achar que
seria fácil assim. Mas por outro lado… Ter alguém da minha
confiança se aproximando de Pan pode servir, no fim das
contas. Alguém que poderia ter conversas privadas, verdades
confidenciadas, segredos sussurrados…
— Essa cara quer dizer que você gostou da ideia ou está
fantasiando com o Peter? — ele provoca.
Reviro os olhos para ele.
— Não vai dar para simplesmente trazer uma garota, vai?
Precisamos de um… Contexto, um motivo.
— É aí que entra a outra parte do plano! — O sorriso de
Dênis se estica, rachando a tinta branca em suas bochechas. —
Vamos conseguir uma reunião de despedida para você. Com
certeza o Peter vai estar lá, já que ele tá te despachando. Dá pra
entender como não tem erro?
— Uma reunião de despedida… Fingir que realmente estou
indo embora e jogar a isca para ele morder — digo, pensando
em voz alta enquanto junto as peças. Dênis ri satisfeito,
balançando a cabeça. — Mas trazer pessoas de fora não vai
alarmar a trupe?
— Existe certa tolerância com pessoas convidadas. — Ele
aponta com a cabeça para mim, me sugerindo como exemplo.
— Além de que não vão negar que você curta com alguns
conhecidos na sua própria despedida.
Por um momento de silêncio, considero as chances da
história colar.
— É… Você até que sabe pensar quando quer, hein?
— Eu poderia receber um obrigado ao invés disso, sabe?
Eu me permito relaxar para rir da cara dele.
— Agora só falta decidir quem você vai apresentar a ele —
Dênis comenta.
Eu deito as costas na parede e encaro o teto. Depois de ter
tantos irmãos postiços ao longo da vida, consigo pensar em
algumas opções.
— Você lembra da garota que morava perto da casa do Cris?
Ela sempre queria entrosar e fazer parte das brincadeiras —
pergunto ainda mirando no alto da parede.
— A Betânia? Eu lembro dela tampinha com um espaço entre
os dentes da frente.
— Bem… Ela cresceu. E é bonita. Acho que vale a tentativa.
Dênis dá de ombros.
— Então devíamos começar com isso logo. Anda. — Ele se
levanta, batendo no meu joelho, e sai para deixar eu me
arrumar.
A semente do plano funciona melhor do que o encomendado.
Depois do café, eu anuncio que estou indo embora. Sininho
morde a isca, concordando que não posso ir sem a despedida, e
se apronta a organizar algo simbólico ao redor da fogueira,
pouco antes do espetáculo da noite. Dênis se dispõe a ajudar,
como quem não sabe de nada.
Quando o sol já passou da metade do céu, eu me esgueiro
para fora do circo e vou em busca da segunda parte do plano.
No caminho de saída pela bilheteria, um aperto ao redor do
meu braço me contém. Volto um passo para trás, cambaleando.
— Ei, garoto. O que pensa que está fazendo? — O bico da
máscara de Bravo está logo ali quando me viro para ver. —
Esqueceu que temos um trato?
— Pensei que fosse você o esquecido, quando precisei de
ajuda e você não estava nem por perto. — Sorrio cínico. — Não
ouviu falar? Estou indo embora.
Tento fazer parecer real para que dê certo. Para que Peter
Pan saiba de todos como estou obedecendo à sua ordem.
Puxo o braço, desfazendo o aperto da mão de unhas afiadas.
Bravo se adianta para mim de novo, mas eu saio andando.
— Você não vai sair assim, garoto! — ele protesta, batendo a
bengala contra a plataforma vazia de aço.
— Por que você está se importando mais do que eu? O
interesse nisso é todo meu. Então me deixa — digo por cima do
ombro.
Tem efeito sobre ele, porque para de me seguir. Olho apenas
uma vez para trás, e vejo ele parado, os buracos escuros da
máscara me observando partir.

◆◆◆

Tomo o mesmo rumo que me leva à casa de Cris, mas sigo


pela rua de cima. Sobre o morro, as casas baixinhas continuam
soprando para o céu a fumaça de lenha queimada. Quando
encontro a porta certa para bater, preciso competir com o latido
de um cachorro na vizinhança que não para. Bato forte, para
garantir.
A passagem se abre para a visão de uma garota da minha
idade: pele clara, ondas castanhas em sua cabeça, o corpo
robusto que outros caras achariam atraente. Ela parece de mau
humor, mas quando sobe os olhos até o meu rosto e reconhece,
vírgulas aparecem em cada canto de sua boca.
— Julian, Julian… Considerando que as últimas vezes que
nos vimos foi pra você me salvar de encrenca, eu me pergunto
se estou com algum problema e não tô sabendo — Betânia
brinca.
Nós rimos juntos.
— Na verdade, é o contrário. Eu disse que nunca cobraria por
nenhum favor de volta. Mas é que eu preciso de uma pequena
ajuda sua.
— Como eu diria não para a pessoa que salva a pele de todo
mundo? Manda aí.
— Bom… Tem um cara, e eu preciso que você venha comigo
e… Tente agradar ele um pouco, consiga chegar mais perto
dele. Por mim.
— Um dos seus caras? Nunca pensei que você fosse de
dividir. — Bete ri.
Deuses! Façam isso parar.
— Ele não é meu — digo, usando o desgosto na palavra para
tapar a vergonha do que ficou parecendo.
Ela rola os olhos sorrindo, não levando a sério.
— Tudo bem… Então, quem é?
— Você conhece o mágico da Terra do Nunca?
Betânia de repente se acende, a boca aberta de descrença,
misturada a um sorriso escandaloso. Eu sei que ela está dentro
antes mesmo que diga sim.
— Venha aqui e me conte onde você se meteu! — Bete exige
no meio de uma gargalhada. Então me puxa pela camisa para
dentro e bate a porta atrás de nós.

◆◆◆

Bete me convence a deixar duas de suas amigas irem junto,


como moeda de troca. Quando telefona para elas, posso ouvir
os gritinhos através da linha ao saberem que poderiam conhecer
o acampamento da Terra do Nunca.
A tarde começa a esmaecer com um céu escurecido, e elas
ainda precisam terminar de se arrumar. Não demora até eu
começar a ficar ansioso. Espero na porta, e elas avisam lá de
dentro que já estão acabando. Pela quinta vez.
Da porta, eu vejo a casa de Cris, da rua debaixo. Fico
encarando o imóvel apertado dentro do muro baixo, lembrando
de sua visita arriscada ao circo. Orgulhoso como é, deve ter
ficado com raiva por eu não ter ido embora com ele. Queria
poder pedir desculpas se peguei pesado com alguma palavra.
Explicar que só não queria colocá-lo em risco por minha causa.
Mas as luzes estão apagadas, nenhum som vem de dentro. Sou
só eu projetando as memórias que tenho desse lugar, antes e
depois do que aconteceu com Gancho.
Estou no meio da lembrança do antigo banco de toco nos
fundos da casa, onde subia quando criança para alcançar a
janela, quando reconheço um movimento. A falta de luz e o
início da noite me deixam em dúvida se não foi imaginação. Mas
uma silhueta se ergue sobre o muro e realmente pula lá dentro,
passando ilesa pelos cacos de garrafa e vidro de proteção.
Depois, mais uma silhueta. E mais outra. Três figuras invadindo
a casa de Cris.
Minhas pernas me colocam em movimento. Desço a rua
correndo. Saco duas facas dos coturnos e pulo o muro do outro
lado com agilidade assim que me aproximo. Raspo a mão no
caco de vidro, mas meu alerta está nas silhuetas, que agora
alcançam a janela, encontrando um jeito de entrar.
Meu coração acelera tão forte que tenho medo de ser
escutado só pelo batimento. Três contra um é uma desvantagem
grande demais para arriscar sem calcular. Eu colo as costas na
parede onde não me veem e respiro baixo, reparando no que
dizem.
— É esse mesmo o endereço? — pergunta uma voz que
dispara meu reconhecimento. A entonação forte e insolente de
Max, que não entende o conceito de falar baixo.
— Estava no bilhete, idiota. Claro que é — responde o
segundo. Eu consigo imaginar seu rosto mesmo sem olhar. O
tom ríspido combina com a aparência que tem, sua cabeça
raspada e o olhar de desafio que carrega por trás da viseira do
capacete durante os espetáculos. Mau-Mau.
— Isso vai ser rápido. Procurem sem mexer em muita coisa.
Não deixem rastro — murmura uma terceira voz no escuro,
competindo com o som da janela sendo forçada. — O que
conseguirem encontrar, tragam para mim.
Meu pulso congela em reação. Porque não é qualquer garoto
perdido. É Peter Pan.
Fecho os olhos, respirando fundo e engolindo o sentimento
que me sobe com a fúria. É exatamente como parece. Pan
liderou os dois Garotos Perdidos até aqui. Trouxe seus
capangas, de retaguarda.
O sangue pulsa na minha garganta. Se eles foram até ali para
prejudicar Cristóvão, para exigir algo dele sobre mim…
E que diabos de bilhete foi esse que falaram?!
A janela abre com um som de ferro emperrado, deslizando
com dificuldade. A passagem cria uma corrente de ar nova, que
sopra arrepiante. Eu conto até quinze, impaciente. Até que espio
pela esquina da parede e vejo o último saltar para dentro. Ainda
tenho as facas preparadas em punho quando me aproximo
agachado, com muito cuidado e silêncio.
De perto, os detalhes são mais distinguíveis: o contorno
caótico do cabelo, o volume do casaco, o tamanho diminuído, o
brilho e as estrelas ao redor dos olhos – preparado para o
espetáculo. Peter Pan escapou às vésperas de seu grande ato
para xeretar a casa de Cris. Esse é o quanto está determinado
em encontrar seja lá o que for.
Os outros dois se infiltram para lados diferentes: Max pega o
corredor para os quartos, enquanto Mau-Mau vai na direção da
porta e vira para dentro da cozinha. Sozinho em cima do tapete
de sisal, Peter Pan contorna ao redor da sala pequena. Olha
dentro de gavetas do móvel da TV, dentro do vaso de planta
vazio, debaixo das almofadas de sofá, e enfim, no meu baú de
coisas. Meus dedos doem apertados ao redor da faca.
Pan segura a tampa do baú aberta e vasculha
detalhadamente com o olhar. Parece pouco interessado, até que
gira um dos jornais do topo, virando de cabeça para cima. Ele
passa longos segundos encarando as manchetes sobre o circo,
os destaques sobre ele. Então fecha os olhos e suspira uma
última vez, antes de decidir fechar o baú.
— Ei! Olha só! — Max volta dos quartos, anunciando alto.
Mau-Mau segue o chamado, saindo da cozinha. Pan dá as
costas para o baú e segue até o seu garoto número 1.
Max joga a caixa pesada no chão da sala, fazendo o máximo
de barulho possível, como se não soubesse ser de outra forma.
Eu congelo com a visão. Pela primeira vez sinto algo além da
raiva; é o calafrio de um medo genuíno. De dentro da caixa,
espiam todas as coisas de Gancho trazidas do circo, por Bravo,
numa embalagem frágil de papelão.
Minha respiração é dolorida e gelada no momento em que
Peter Pan se agacha sobre os calcanhares e enfia a mão para
dentro da caixa. Pega a garrafa de vidro com o navio pirata em
miniatura dentro e leva até a altura dos olhos. Examina de perto,
girando a garrafa devagar.
Os outros são menos cuidadosos. Max puxa um cinzeiro de
pedra-sabão e acha uma boa ideia brincar de atirar para cima e
pegar. Mau-Mau pesca uma luneta e fica abrindo e fechando,
como se pudesse revelar algum segredo se fosse quebrada.
— Eu achei que o bilhete não pudesse ser verdade. Mas
parece que realmente é… — Max comenta revirando o cinzeiro
escorregadio.
Mau-Mau abre a boca, encarando Peter Pan agachado, e faz
a pergunta:
— Então Capitão Gancho teve realmente um filho?
Eu recuo, imediatamente. Pressiono a cabeça tão firme contra
a parede chapiscada que chega a doer. Pressiono os lábios um
contra o outro, impedindo um xingamento de sair. Não. Não é
possível.
— Por qual outro motivo as coisas dele estariam aqui? É
como tá no bilhete mesmo… Um filho. Do Gancho. E vivo.
Tipo… Quem iria imaginar? — A voz de Max soa tão
verdadeiramente surpresa que me põe em dúvida.
Meus olhos se abrem de volta para a noite, a testa e as
sobrancelhas tensas.
— O que você sabe sobre ele, Peter? — A pergunta parte de
Mau-Mau de novo.
Pan, que se manteve em silêncio, enche a sala com uma
única e pesada palavra:
— Nada.
Eu me sinto jogado do penhasco e puxado de volta.
Seja lá que bilhete for esse, pelo visto foi dado incompleto.
Sem o meu nome. Sem me entregar por inteiro.
Devagar, me esgueiro pela borda da janela de novo e olho
para dentro. Mau-Mau joga a luneta fechada para dentro da
caixa, seguido de Max, com um barulho indicando que, se o
cinzeiro não quebrou, foi por muito pouco. A garrafa com o navio
não é atirada. Ainda agachado, Peter Pan devolve para a caixa
com cuidado e quase que com… respeito.
Eu ainda estou negando, tentando me convencer de que
estou fazendo as conexões erradas. Até que Pan se ergue,
dispensando a caixa para ser levada de volta onde foi
encontrada. Sem deixar rastros, como ele disse.
— Só sei que… Ele tem algo que eu quero. — Pan completa:
— Algo que preciso.
Minha mente dá um giro. Fico ali piscando, em pane e zonzo.
É como se estivesse e não estivesse falando de mim. Porque
não entendo nada do que se passa. Um bilhete que mais parece
uma denúncia. A invasão da casa de Cris, mas sem saberem
que sou eu o procurado. Agora tenho algo que Peter Pan quer,
que o fez abandonar as vésperas de sua apresentação apenas
para ir atrás disso.
— Tipo o quê? — Max questiona, também curioso por saber o
que o líder possa precisar do filho desconhecido de Gancho, um
homem que morreu e ninguém mais se importa.
Peter Pan nega com a cabeça, parecendo espantar
pensamentos como insetos.
— Apenas coloque a caixa no lugar e vamos — ele responde.
Eu me agacho de novo e corro para o outro lado da casa,
sumindo de vista antes deles saírem pela janela que entraram.
Os três pulam para fora em menos de um minuto e saltam
pelo muro com a mesma destreza. Não dá tempo de plantarem
uma armadilha na casa de Cristóvão, nem tempo para
planejarem qualquer coisa.
Contra todas as minhas expectativas, eles simplesmente
partem, sem causar nenhum mal aparente.
◆◆◆

O que diabos eu tenho que Peter Pan possa querer? Que


possa precisar?
Me questiono o caminho inteiro até o circo, depois de buscar
Betânia e suas amigas. Guio as três pela floresta, até a entrada
clandestina para o acampamento. Marcas velhas de pneus no
mato me dizem até onde seguir para chegar à entrada secreta
dos Garotos Perdidos. Empurro o tapume certo e deixo elas
entrarem primeiro.
Do lado de dentro, a visão da fogueira queimando a poucos
metros provoca mais uma descarga de risadas nas três. Elas
atraem atenção fácil. As cinco cabeças dos Garotos Perdidos
viram na direção delas. Sininho acena à distância para as
garotas, receptiva.
O único olhar realmente em mim, não nelas, é o que
atravessa do outro lado do fogo. Estático no meio da ação de
abrir uma garrafa, Peter Pan desmancha um meio sorriso. Fica
bem óbvio como ele esperava que eu já tivesse ido embora.
É a minha vez de sorrir na cara dele, de jogar o seu jogo.
Aceno para que vejam como é o chefe deles que não está sendo
simpático dessa vez. No momento em que Sininho olha entre
nós, Pan veste sua máscara de novo, se fingindo de bom
anfitrião. Nós sorrimos um para outro, artificiais e mal contentes.
— Trouxe companhia — anuncio despreocupado, como se
nenhum conflito por baixo dos panos estivesse acontecendo.
Dênis aparece oferecendo garrafas a elas e me dá um
tapinha de cumplicidade no ombro. Sininho vem nos receber,
oferecendo copos e sorrisos aquecidos.
— Vai ser uma despedida curta, porque o espetáculo já está
começando. Mas não poderíamos deixar passar, certo? Ainda
celebraremos o seu tempo com a gente, Jota. — Então dá um
daqueles olhares que parecem enxergar muitas promessas em
mim. — Não só agora. Tenho certeza.
Eu abaixo a cabeça, limpando a garganta. Me sinto mal por
estar sempre a enganando.
É mais fácil para as garotas se enturmar com o grupo do que
foi pra mim. Em menos de 10 minutos, já estão todos juntos ao
redor da fogueira, dividindo garrafas e cigarros.
Ainda que o grupo busque se agrupar na órbita de Peter Pan,
ele se mantém distante na ponta da roda, encostado no tronco
do salgueiro e analisando o resto calado. Mantenho uma
conversa casual com os outros, mas não me escapa como Pan
corre para desviar o olhar sempre que miro nele, fingindo que
não está prestando atenção.
Eu me levanto do banco de tronco e trago Bete comigo, pela
mão. Sinto o desconforto no olhar de Pan quando percebe que
estou indo até ele. A garrafa deixa sua mão, abandonada no pé
da árvore, e ele ajeita o casaco de penas escuras, como se
prestes a se retirar.
— Pan! — Eu o detenho. — Trouxe uma grande fã sua. Acho
que você iria gostar de conhecê-la.
Betânia alarga um sorriso convincente, e eu agradeço
mentalmente, embora não acredite que seja encenação da parte
dela. Sem perder a oportunidade de ser adorado, Pan entrega
sua versão charmosa para ela, elaborando uma expressão
amena. Ele se desencosta da árvore e dá dois passos à frente.
Os ramos caídos do salgueiro roçam no topo de sua cabeça e
em seus ombros, e ele para bem na nossa frente. Tão perto.
Minhas mãos formigam com uma consciência própria.
Pan olha para Bete como se eu não estivesse ali e pega na
mão dela, onde a minha segurava segundos atrás. Ele a ergue e
deposita um beijo suave no dorso.
— Sua graça? — ele pergunta de rosto abaixado e olhar
erguido.
— Oh! Betânia. Bete, se preferir — ela responde rindo sem
graça.
— Já esteve na Terra do Nunca antes, Bete?
O olhar de Pan viaja por cada canto dela.
— Sim, várias vezes! Eu e minhas amigas adoramos —
Betânia diz se divertindo, e eu engulo o sentimento amargo de
ciúme ao me lembrar do tempo que morei com ela, das vezes
que não podia sair junto porque ela iria onde eu era proibido de
me aproximar.
O resto da resposta de Bete fica presa em sua garganta,
substituída por um suspiro de boca aberta, quando Pan sobe a
mão e desliza por trás de sua orelha, colocando uma mecha de
cabelo lá. Ele escorrega os dedos pelo osso da mandíbula, até a
ponta do queixo, erguendo o rosto dela um pouco mais. Eles são
praticamente da mesma altura, mas ele ainda parece olhar de
cima.
Eu me perco mais do que deveria na visão do toque. Meu
cérebro me trai e dispara as memórias do sonho onde ele me
tocou; imagens cheias de sensação do que nunca aconteceu.
— Me diga… Você gosta de mágica? — A voz hipnótica de
Pan soa melódica.
— Claro! A sua ainda mais…
Quando a mão dele desce sutil até a gola da blusa tricotada
de Bete, brincando com a borda do decote, é que minha mente
conecta os pontos. Sei usar um toque por interesse, também sei
reconhecer quando outra pessoa está fazendo isso. Pan só quer
gracejar Bete na superfície, quando, na realidade, está
investigando, sondando se a garota tem alguma escuta,
gravador ou outro artifício; procurou primeiro na orelha, depois
na roupa. Deve pensar que planejei algo, para levar alguém até
ele. Ele me fez pensar que esqueceu da minha presença ali de
propósito, mas está muito bem consciente dela.
— Gostaria de um truque que nunca viu antes? — Pan
pergunta.
Seu olhar desvia, cravado em mim.
Eu contenho um sobressalto com a súbita atenção.
— Não confio em mágicos de mangas longas — debocho.
Pan ergue as sobrancelhas e ri, mantendo a esportiva. Então,
num estalo, ele tira o casaco, que cai aos seus pés. O modo
como faz me constrange. É claro que já o vi antes apenas com a
calça curta, o suspensório de folhas verdes enroscado ao redor
do torso nu. Mas tem alguma coisa em tê-lo se exibindo por uma
exigência minha que torna isso intimidante. Eu nem olho para o
rosto de Betânia, com receio do que ela vá flagrar em mim.
Pan se aproxima de Bete, a mão em seu rosto, a boca em
sua orelha. Sussurra algo que não posso ouvir. De primeira, o
rosto dela é pintado por uma expressão de surpresa, mas de um
segundo para o outro, suaviza com pálpebras caídas, cílios
pesados. Pan se afasta meio passo e ergue a mão aberta. A
palma está carregada de pólen amarelo. O pó das flores surge
do nada, como um verdadeiro truque.
Com um simples movimento, Pan assopra o pólen, que voa
suave para o rosto de Bete e desaparece no ar ao tocar a pele.
Como se nunca tivesse existido.
Sem aviso, Betânia desaba de joelhos moles, e o encanto se
desmancha. Meu reflexo permite segurá-la a tempo, prevenindo
a queda. Seu corpo parece um farrapo de pano e eu analiso
vidrado seus olhos fechados, seus lábios pintados entreabertos.
— O que você fez?!
Pan parece nem um pouco preocupado ou arrependido. Bete
pesa em meus braços. Eu deveria checar o pulso no pescoço
dela, sua respiração, ver se está viva ou não. Imóvel, só sei
olhar para Pan e sua cara arrogante.
— Foi uma boa tentativa. Mas você não está brincando com
um iniciante — Pan diz, bem menos divertido agora. — Amanhã,
ela vai acordar sem lembrar que você teve essa ideia estúpida.
É melhor que as outras também não saibam. E que estejam fora
daqui em 5 minutos.
Calmo, ele apanha o casaco do chão e pendura sobre o
ombro com apoio de um dedo só. Ninguém além de nós parece
consciente do que está acontecendo aqui. A fogueira logo atrás
é um mundo à parte. Pan se vira, mas antes que se afaste
realmente, ele olha por cima do ombro, para mim.
— É melhor que vá junto com elas e não apareça de novo,
Julian. Da próxima vez que botar meus olhos em você, vai ser
para tirar a sua máscara.
O peso, a raiva, a insegurança. Tudo me impede de
responder. Miro nas costas dele, que se afastam, e deixo tudo
virar um estímulo furioso de coragem.
Não se eu tirar a sua primeiro.
Ninguém está olhando quando me viro de volta para o clarão
quente da fogueira. Mas é só pisar para fora da bolha ilusória
criada por Peter Pan, que os olhares são atraídos. Claro que o
corpo pendendo entre meus braços chama muito mais atenção
do que a promessa de vingança estampada em meu olhar,
refletindo a lenha chamuscante pegando fogo.
Em um momento, guio as meninas até a saída do muro de
tapumes, confusas atrás de mim, sem saber o que fazer com
suas garrafas pela metade. Elas levam Bete de volta no colo,
acreditando que ela só tenha bebido uma dose forte demais.
Com os pés firmes na terra, assisto estático à partida.
O tapume bambo abre e fecha. Eu não vou com elas.
Tomo um único gole de ar. Então me viro e atravesso
disparado pelo acampamento, na direção das tendas do circo.
Passo pela fogueira e murmuro que a festa acabou. Nem
Sininho nem os Garotos Perdidos me seguem, surpresos e sem
entender.
Deixo que fiquem para trás, consciente apenas do vibrar que
sinto em meus ossos com o impacto dos passos pesados.
Pela última vez, encaro o túnel de entrada para a tenda com
um olho só.
Com um puxão insensível, arranco o tapa-olho, que arrebenta
com a força e cai no chão. Minha nova visão se adapta
enquanto entro para a sombra do túnel.
No picadeiro, o preparativo do espetáculo está montado. O
público ainda não chegou, só há a trupe. Ainda que não saibam,
em breve eles serão a própria plateia.
Quando entro no centro do picadeiro, a primeira pessoa a me
notar é a figura coberta de folhas, dourada como o sol onde
todos orbitam. Eu sou uma nuvem atravessando na frente dele.
Num estalo, Peter Pan se levanta, um rei erguido de seu trono
por um inseto. Seu peito infla, e eu assisto às palavras se
formando, subindo pela sua garganta. Pronto para me tornar o
traidor.
Me esforço para ser mais rápido. Acelero e pulo sobre o bloco
de madeira de um dos tablados. O impacto chama atenção, e
todos os olhares se viram para mim. Vejo em suas expressões
como eles estranham o que veem. A falta do tapa-olho faz com
que reajustam as lentes. Devem sentir que há algo mais para
enxergar ali, só não deduziram ainda.
— Eu quero que saibam… Que não estive sendo sincero com
vocês.
Minhas palavras saem altas, e até mesmo Pan se aquieta
para escutar. Não é como se ele não soubesse o que vou fazer.
Ele só está esperando para que eu me enforque com a minha
própria corda.
— Meu nome… É Julian. Jota é um apelido. E eu não sou um
jornalista. Não trabalho para a Folha de Bangu. Eu disse isso
apenas para me deixarem entrar.
A tenda se enche de ar com os arfares surpresos e traídos.
Eu me adianto um passo para dentro do holofote, antes que
façam alguma coisa sobre isso.
— Mas se querem saber realmente quem eu sou, eu serei
sincero. Jaime Gancho, o último e falecido atirador de facas…
Ele era meu pai. Herdei seu sangue, seu olho e sua mira.
Uma porção de olhares vítreos me encaram, chocados.
Eu engulo e meus ouvidos estralam. Não sei o que esperar
que façam. O impulso não me fez pensar direito no que poderia
ver depois. Mal pensei que poderia não funcionar.
Na fileira da frente, Socorro tem olhos arregalados, me
encarando sem piscar como se vislumbrasse uma de suas
previsões em carne e osso.
Ninguém diz nada e o circo nunca foi tão silencioso. No meio
de tantas estátuas, eu procuro nervoso pelo o que dizer.
— Minha mãe… Eu a conheci aqui. Ou pelo menos as
memórias do que ela foi um dia. Encontrei suas coisas na
carroça do abandono — revelo devagar, calculando as reações,
que continuam apenas esperando por mais. — Ela tinha roupas
de bailarina e um acordeão…
Socorro tapa a própria boca.
— Cristal… — ela sussurra abafado, censurando o nome
abandonado que não devia ser dito.
As pessoas parecem começar a somar um mais um. Imagino
suas mentes mesclando a imagem de Gancho e de Cristal,
resultando na figura nova que encaram agora. Socorro é a
primeira a se aproximar. Um passo a frente do outro, seus
tamancos ecoando pelo picadeiro. Ela estica a mão aberta, faz
um pedido com as sobrancelhas curvadas. Eu ofereço minha
palma aberta quando entendo o que quer.
Socorro pega minha mão para ler minhas linhas, procurando
pelo o que não tinha visto antes. Quando seu rosto se ergue de
novo, está iluminado pela descoberta feita. É verdade, ela
murmura extasiada, o que faz os outros baterem palmas e rirem,
como se fosse motivo de comemoração. Quem eu sou parece
mais importante do que minhas mentiras.
O mundo de repente se fecha sobre mim. A trupe é atraída
para perto. A verdade enche seus rostos de fascínio e
curiosidade. Peter Pan é o único estático, deixado para trás,
enquanto os outros estão reunidos ao meu redor, numa
confusão zonza de cores e vozes.
Todos se comovem, me oferecem tapinhas sobre os ombros,
afagos nas costas, palavras de empatia para alguém com os
pais mortos. Ninguém pode me expulsar agora que tenho a
preciosa trupe do meu lado.
A única reação que me interessa é a da figura assistindo além
das cabeças da plateia, de longe e sozinho. Peter Pan. Ele tem
a expressão chocada de quem foi pego na própria armadilha, a
mesma de quando toquei em suas luvas na frente de todos pela
primeira vez.
Agora ele tem certeza de que fui até ali para pegá-lo, e não
há tempo a perder. Para nenhum de nós.
Capítulo 18
A faca e o alvo

Todos têm muitas perguntas, e eu me vejo com quase


nenhuma resposta. Socorro parece perceber. Ela rompe o cerco
de pessoas e roda seu vestido para abrir espaço. Então me leva
para os bastidores sob o aperto de unhas pintadas.
Ela me guia até o seu canto do camarim atrás das cortinas.
Os outros respeitam a barreira invisível de privacidade, mesmo
que seja um cômodo compartilhado.
— Agora tudo faz muito mais sentido… — ela diz, batendo um
pincel cheio de pó colorido na borda do pote de uma
maquiagem. Apesar de mim, todos eles precisam continuar se
preparando para a apresentação da noite.
Sentado num banco, eu a observo sob as luzes amarelas e
quentes ao redor do espelho.
— O meu disfarce ou as minhas mentiras?
Socorro se vira e olha para minhas mãos cruzadas sobre os
joelhos como um objeto de estudo.
— O que você tem. Sua clarividência — ela responde. —
Cristal e eu éramos muito amigas. Não é bem visto que falemos
sobre a Outra Vida por aqui, mas se quer saber… — Ela se
inclina e diminui o tom. — Nós nos conhecemos de muito antes.
Viemos para o circo juntas. Éramos inseparáveis.
Não me escapa como sua voz tem um certo grau de emoção.
A mão magra e comprida de Socorro se estende na minha
frente.
— Quer ver? — Ela oferece de boa vontade.
Eu pisco várias vezes, com a resposta engasgada que custa
a sair.
— Não sei se…
— Está tudo bem. Pode olhar. Essas memórias também são
um pouco suas.
Hesito, pois nada vem de graça com facilidade. Temo também
pelos efeitos colaterais. Socorro, porém, parece descontraída.
Eu respiro fundo. Então toco na sua mão.
Cristal é ainda mais jovem nas memórias de Socorro. Veste
roupas tão mundanas e banais que se desloca do retrato que
tracei em minha mente. Ela era tão enérgica quanto Socorro. As
duas pareciam uma dupla e tanto, conquistando a todos por
onde passavam. Vejo-as várias vezes entre velas, incensos e
jarros de argila cheios de ervas e água, cercadas de livros
abertos estudados por horas. Até que Socorro começa a
aparecer com cartas de baralho, enquanto Cristal acolhe objetos
entre as mãos e fecha os olhos, como se…
Recolho a mão e pisco para focar a visão. Encontro Socorro
com uma expressão quase de orgulho.
— Cristal… Ela… Ela também podia… — Esqueço como
dizer as palavras. Só sei olhar para baixo e encarar minhas
próprias mãos; coisas adquiridas de outra pessoa.
— Cristal era uma excelente musicista, mas suas mãos não
tinham dom apenas para as teclas do instrumento. — Socorro
me olha, distante e reflexiva, ainda de pé. — Nós estudamos e
nos dedicamos muito para isso. Mesmo que a aurora fosse
escassa na época, nós sabíamos que estudando era nossa
chance de dominar a magia. Eu fiquei melhor em ler o futuro; e
ela, em ler o passado. Você nasceu propenso a desenvolver
isso. Graças a ela.
— Da primeira vez que nos vimos, você disse que só havia
visto essa habilidade uma vez. Eu não quis escutar, mas…
— Sim. Naquele dia, por um breve momento, me lembrei de
Cristal. Não havia ninguém como ela — Socorro diz com um
sorriso para si mesma, tecido de nostalgia. — Mas não se
preocupe por não ouvir. Eu também não saberia dizer a conexão
entre vocês. Não até agora.
— Por isso você pareceu não duvidar quando eu contei.
Ela acena devagar, como se quisesse falar algo. Mas demora
até que decida soltar.
— Eu queria poder ter feito mais. Por ela. — A mulher
balança a cabeça. Seu olhar cai para o chão. — Quando ela
deixou a Terra do Nunca foi tão… Confuso. Repentino.
Eu lembro das memórias que vi na Carroça do Abandono, da
despedida regada a beijo e lágrimas entre Cristal e Gancho,
enquanto eu me pressionava entre eles dentro do ventre dela.
— Por que ela partiu?
— Ela… — sussurra, hesitando. — Ela estava fugindo.
Absorvo a resposta devagar como água gelada, paralisado.
— Do que? De alguém?
Socorro nega, abraçando os cotovelos.
— Ela só disse que… Não era apenas a si mesma que estava
protegendo. — A mulher faz uma pausa para respirar fundo e
então ergue o olhar. — Como eu disse, agora tudo faz muito
mais sentido.
Ficamos no silêncio. Ela me dá tempo para digerir, e eu
agradeço mentalmente. Socorro volta a se arrumar enquanto
isso. Assisto o movimento fluido de seu vestido cheio de retalhos
de lá para cá, enquanto ela rodopia. Só para quando as unhas
pintadas alisam a superfície da bola-de-cristal apagada, seus
olhos perdidos através da esfera de vidro maciço.
— Você ainda se lembra da previsão que lhe dei? — ela
pergunta de repente.
Eu aceno.
— Você disse… que haveria uma escolha e que ela seria a
chave entre glória e ruína. Que seria algo… Grandioso?
Ela sorri para mim.
— Sabe, posso não me lembrar das previsões com exatidão,
mas as sensações ainda ficam impressas em mim, como
pegadas. E eu me lembro da sensação muito forte que senti.
Senti como o caminho da ruína seria carregado de peso, mas o
da glória… se você souber escolher com o coração, será
maravilhoso para tantas pessoas. Mas principalmente para você
mesmo.
Sentado no canto, eu ainda penso no que dizer em resposta.
Até que uma nova presença separa o pano da entrada, abrindo
caminho até nós.
— Julian?
A bolha densa e opaca ao meu redor estoura e eu ergo a
cabeça para ver asas brilhantes no limite de onde começa o
camarim de Socorro. Nem ouvi seus pequenos sinos soarem ao
se aproximar. Vou demorar a me adaptar por me chamarem pelo
meu nome inteiro e de verdade.
Olho tenso para Sininho. Ela também me encara diferente,
quieta demais, apertando as próprias mãos. Tem uma atenção
especial sobre o meu olho direito, agora escancaradamente
azul. Os outros devem ter contado minha revelação. Ela deve
me olhar e saber que não sou o resgate que esperava. Que não
posso fazer muito para ajudar o circo.
— Sininho, me desculpe. — O pedido sai pesado do meu
peito.
A cabeça loira balança para os lados. Ela separa os lábios
para falar, mas fecha os olhos e sacode a cabeça de novo.
— Socorro, posso pegá-lo emprestado por um momento?
As duas trocam um breve olhar, antes da vidente tocar em
meu ombro e indicar a saída.
Eu caminho devagar, as mãos enterradas nos bolsos. Sininho
mantém a cortina aberta, e passo por ela calado. A trupe
continua se movimentando em volta, indo e voltando do
picadeiro com os preparativos. Sininho nos move para uma
direção diferente, aos fundos apagados onde se acumula os
materiais não usados. Ela busca uma lamparina no meio dos
equipamentos e nos guia sob a luz dela através de um breve
corredor.
Os sons fracos de seus braceletes são os únicos a nos
acompanhar enquanto nos isolamos do resto. Engulo com
dificuldade, querendo tanto que fale alguma coisa. Qualquer
coisa.
— Eu entendo se você me odiar — digo sincero.
Sininho suspira e deixa os ombros.
— Julian… — ela parece testar o nome. Então vira o rosto
para mim. — Você quer saber no que eu ainda acredito? Que
você não quis o nosso mal. Existiram tantas diferentes formas
para você ajudar ou atrapalhar. E você escolheu ajudar em
todas elas. Uma má pessoa não teria feito isso. É nisso que
acredito.
Nós paramos antes da aba de uma tenda nova. É mais
escuro ali, com as luzes desativadas. A lamparina de querosene
é a única ajuda.
— Eu escreveria um artigo, se pudesse. Algo bom e justo —
confesso, ainda me sentindo em dívida.
Sininho suaviza a expressão com um pequeno sorriso, ainda
trocando a atenção de um olho para o outro no meu rosto.
Castanho e azul, azul e castanho.
— Eu teria ficado magoada de descobrir de outra forma. Mas
do jeito que foi… Estou feliz por ter decidido que valemos a sua
confiança, Julian.
Meu rosto abaixa, mirado no chão de terra batida. Confiar. Foi
isso mesmo que eu fiz ou não passou de mais uma estratégia
para manipular e usá-los?
— Quando fiquei sabendo sobre seu pai… — Sininho
continua. — Pensei que você poderia gostar de ver uma coisa
antes do espetáculo.
Eu a encaro sem entender, até que ela acena para a tenda e
abre passagem levantando a aba da lona, me convidando a
entrar.
Preciso de tempo para registrar o que Sininho me mostra. É
um camarim privado. A falta de lâmpadas e a fina camada de
poeira cobrindo os móveis e objetos mostram como não vem
sido usado recentemente. Sininho deixa a lamparina acesa em
cima de uma escrivaninha, feita de madeira descascada. Então
gira em volta ao lugar com suas asas e para de frente para mim.
— É isso. Era aqui que Gancho costumava se arrumar para o
espetáculo. Não temos mais sua carroça, mas o seu camarim
ficou aqui. Esteve fechado desde… — Sua voz, até então
animada, falha. Seu olhar desvia para o chão, e eu acompanho,
sabendo que foi aqui que encontraram o corpo caído, numa
poça de sangue. Foi o que vi nas memórias da Princesa Tigrinha
e do Sr. Marujo. Sininho tosse para se recompor. — Enfim…
Espero que não tenha sido uma má ideia. Eu só imaginei que…
Corro os olhos pelos móveis deixados, os objetos esquecidos.
De repente, o ambiente começa a reluzir como ouro.
— Isso é… — interrompo Sininho, sem realmente escutá-la.
— Tudo que eu procurava.
A confissão escapa, mas Sininho não dá o devido peso às
palavras. Deve achar que é puro sentimentalismo.
— Ah! Que bom! — Ela ri aliviada. Olha tudo de esgueira e
murmura: — Se quiser, vai em frente. É seu por direito.
Dessa vez sou eu quem não dá a devida atenção ao
significado das palavras. Estou ocupado em querer tocar em
tudo que meus olhos enxergam. Depois da caixa que Bravo
levou até a casa de Cristóvão, pensei que não havia sobrado
mais nada. Que aquilo era tudo.
Esqueço da presença de Sininho e avanço como se estivesse
no próprio quarto que nunca tive. Ainda tenho medo do preço a
ser pago por isso. Mas, mesmo assim, aqui estou eu, rastreando
o que posso, explorando as histórias, certo que a chave para o
fim dessa agonia está neste lugar.
Enxergo tudo pela ponta dos dedos. Das memórias que me
são dadas, nenhuma se refere à morte de Gancho. É como se
ele não tivesse tocado em nada antes de morrer, que estivesse
ali apenas para cair e sangrar. Digo a mim mesmo que não
deveria me emocionar com memórias banais dos dias de vida de
Gancho, mas não consigo evitar.
Se passam bons minutos até eu dar a volta completa e
chegar de novo à escrivaninha onde está a lamparina. Há alguns
materiais desorganizados em cima: um caderno de couro velho,
envelopes vazios e um carimbo de selo; lápis de madeira crua,
canetas de pena e tinteiros secos. No meio de tudo, um estojo
de tecido escuro, que eu puxo pelo fecho, já imaginando o que
tem dentro. São as facas de arremesso dele. Prata impecável,
que poderia até servir de espelho na falta de um. Nada de
Gancho era tão conservado e bem cuidado quanto isso.
Escorrego os dedos pelas lâminas, sem medo de ser cortado,
e assisto às cenas passadas de seu espetáculo. O orgulho e a
vaidade exibicionista dele nas memórias me invadem, tão
intensos que sinto como se fossem sentimentos realmente
meus. Ao contrário do que passei a vida imaginando, Gancho
adorava esse lugar.
Os braceletes de Sininho tilintam. Sou puxado de volta. Viro o
rosto para ela e é claro como ela repara em tudo que estou
fazendo. Ela tem o mesmo rosto ameno, de quem não julga, só
aprecia.
— Nós ouvimos sobre você ter treinado por um bom tempo
para entrar no circo — ela revela devagar. — Ainda temos o alvo
de madeira em algum lugar. Gostaria?
Eu congelo no lugar.
— Você quer que eu atire no picadeiro? — A questão parece
tão impensável em voz alta, que eu não queria ter dito.
— Tenho certeza que todos adorariam assistir. — Seus sinos
se agitam, fazendo mais uma porção de som. — Oh! Não se
preocupe. É só uma demonstração antes do espetáculo. Sem
público, só para a trupe.
Certamente minha expressão petrificada é de nervosismo,
mas não pelo motivo que ela deve pensar. É mais sobre
empunhar as facas de estimação de Gancho, tomar seu lugar
como se tivesse maturidade pra isso, interpretar o papel como
se eu fosse capaz.
Sininho insiste, e o sentimento de orgulho e vaidade de
Gancho ainda ecoando em mim me força a ir em frente.

◆◆◆

A trupe toda me observa, formando uma pequena plateia.


Respiro fundo, me concentrando no alvo de madeira, nos
círculos de tinta vermelha que terminam numa bola fechada no
centro. Cinco facas voam quase de uma vez. Todas elas
acertam o espaço disputado no meio exato da mira. Os aplausos
crescem, acompanhados de assobios altos. Eu me sinto
começar a relaxar e a curtir.
Eles me dão uma venda para que eu faça uma demonstração
mais interessante, e eu aceito o desafio, animado em mostrar
que posso ser bom em alguma coisa.
Preparo os tiros com mais calma, calculados. Antes de cada
um, anúncio em voz alta a faixa que vou acertar. Primeira;
terceira; quinta; sétima; centro.
Sou capaz apenas de escutar o som de metal cravado na
madeira. Um instante de silêncio segue e, então, uma salva de
palmas ainda mais empolgadas que dizem no lugar de palavras
que acertei todas.
Sininho se oferece como assistente e busca as facas de volta
para mim. Na nova demonstração, preciso de um voluntário para
ficar à frente do alvo. Eu espero que Sininho se ofereça para
isso, mas uma voz nova e controlada invade a tenda antes da
garota se pronunciar.
— Eu vou.
Não sou apenas eu que estranho. A trupe inteira cai em
silêncio, os risos e conversas subitamente extintos. Uma brisa
fina sopra pelo colarinho da minha camisa, me colocando em
alerta. É como estar lúcido de novo depois de um sonho. Mesmo
com as mãos cheias de facas, dou um jeito de arrancar a venda
do rosto para confirmar o que meus ouvidos captaram.
A metros de distância, está Peter Pan, parado na frente do
alvo.
Todos assistem estarrecidos. Não parece normal que o líder
deles se ofereça para correr perigo. Assim como eles, também
quero entender o que Peter Pan pretende com isso.
As diferentes versões dele passam pela minha mente: o
mágico sorridente que encanta crianças e hipnotiza invasores; o
traiçoeiro culpado por cada perda irreversível na minha vida.
Não sei qual realmente estou encarando agora. Seu rosto vazio
parece uma versão nova reservada para o embate final, ao qual
não tenho nenhuma defesa contra.
Pan suspira.
A forma como ele foi até ali sem um de seus casacos, com a
pele lisa e imaculada exposta, causa uma provocação extra. Ou
ele duvida de mim, ou realmente quer ser acertado.
Uma faca brilha no alto, e eu a atiro sem hesitar. A lâmina
crava a duas faixas de distância dele, provocando um baque que
treme a madeira. Afundou até o cabo; foi o mais forte que atirei
até agora.
É um aviso para Peter Pan se ajeitar em sua posição. Mal ele
junta os braços ao corpo e encosta a traseira da cabeça no alvo,
e eu estou atirando outra. E outra. E mais uma porção. Cada vez
mais perto, mais arriscado. Ele continua lá, a cabeça caída para
trás, me olhando entre duas frestas de cílios, suas pálpebras
maquiadas meio fechadas.
Me pego desejando ser um pouco pior de mira, para errar a
direção da madeira e acertar um pouco de carne. Enquanto as
facas acabam e eu estou encarando o rosto que não desvia do
meu, penso em tudo que me faz odiá-lo. Nas coisas que fui
privado de ter por sua culpa – uma família, um lar – e de como a
morte de Gancho foi um golpe cruel.
É num estalo que enxergo o que ele está tentando fazer: me
provocando a querer matá-lo, a ser tão sujo quanto ele.
Na posse da última faca, eu abaixo o punho. Respiro pesado,
como se fosse eu na mira o tempo todo. Não foi para nada disso
que vim até o circo. Nunca foi sobre ter sangue por sangue, nem
sobre sujar minhas mãos. É sobre justiça. Peter Pan será preso
e assim eu o farei pagar.
Eu escolho não lhe dar o poder de me transformar no mesmo
monstro que ele.
No tempo de um suspiro, faço a última lâmina voar.
Ela finca ao lado da cabeça, perto o bastante para cortar a
ponta de uma mecha de cabelo. Com o fim, Peter Pan solta o ar.
Já a trupe aplaude a demonstração, ainda meio tensa, com
olhares furtivos para o líder parado na frente do alvo.
Tudo que faço é deixar o picadeiro, antes que o desejo
primitivo por vingança mude minha cabeça.

◆◆◆

No velho camarim de Gancho, eu desabo na cadeira da


escrivaninha, onde a querosene ainda queima para iluminar.
Arranco a venda pendurada no pescoço e apoio os cotovelos na
tábua, palmas pressionadas contra a testa.
Uma prova. Só preciso de uma prova concreta para ligar
Peter Pan à morte de Gancho e dar o fora daqui de uma vez por
todas, antes que toda a loucura me consuma.
Segundos de olhos fechados depois, continuo minha busca.
Vou um pouco mais fundo do que quando Sininho estava
presente. Arrasto todos os envelopes até mim, checando um por
um com calma. Quando tenho certeza de que estão vazios,
passo para a agenda de couro gasta. Desamarro o nó da corda
que serve de fecho e abro.
Não há muitas folhas para ver, foram quase todas arrancadas.
Meus dedos passam pelas ranhuras dos rasgos grudados à
lombada, me dão breves flashes de memória. Descubro que foi
o próprio Gancho que as arrancou ao longo do tempo; era o
papel que ele usava em suas cartas.
Há apenas a última folha, em branco, abandonada sem as
outras. Verifico o verso para descartar a agenda e passar para a
gaveta. Mas basta dobrar a folha para ver o outro lado, que eu
congelo.
As letras escritas saltam aos olhos. São poucas, mas
carregam o significado do mundo:
“JJ,
Tive que ir”
Só isso. Sem justificativa ou ponto final. Uma carta não
terminada e nunca enviada.
Releio várias vezes. Decoro a forma dos "J", feitos como o
desenho de dois ganchos, sabendo bem o que significa. O resto
da letra é desajeitada, de quem teve pouco tempo para aprender
a escrever com a mão esquerda. E o mais importante: é a
despedida de alguém que pressentia a partida; que sabia que
morreria.
“Ir” soa como um eufemismo cruel, mas é exatamente o que
significa: Não voltar.
JJ. Um para Julian. Outro para Júnior.
Todos esses anos imaginando como teria sido a despedida, e
é assim que ela se parece. Uma coisa apressada e interrompida.
Tomo uma boa dose de ar, me forço a ter coragem. Bem
devagar, adiando o inevitável, abro a mão sobre a folha. Permito
que minhas digitais frias revivam aquela história.
A sensação vem antes da visão. Tanta dor, que penso ter sido
atingido de verdade, sem ter visto. Eu me retorço. Me convenço
de que não é algo meu quando a visão da memória foca. Com a
mão esquerda, Gancho rabisca suas breves palavras com
dificuldade; trinca os dentes com a agonia queimando por
dentro. O outro braço pousado sobre a mesa pesa uma
tonelada, é a fonte de todo o tormento. Gancho abandona a
caneta de pena e usa a única mão para arrancar a prótese de
metal e levantar a manga da camisa até o cotovelo. Seu braço
exposto é de revirar o estômago. Veias escuras e dilatadas se
sobressaltam sob a pele acinzentada, cobras serpenteando
debaixo de uma camada podre, morta. E a ponta, onde antes
havia a mão, sangrava, gotejava.
Quando aquilo pinga, percebo como bate com a visão de
Princesa Tigrinha e Sr. Marujo, na ocasião em que encontraram
Gancho caído na poça de líquido gosmento. Não exatamente
sangue, mas algo escuro, sem cor.
Solto a página, tonto com a descoberta. Não tenho tempo
para me horrorizar ou traçar teorias elaboradas. Me apresso
para abrir a gaveta e encontrar o que vi Gancho guardando lá.
Está no mesmo lugar, esquecido no compartimento cheio de
teias de aranha: A prótese de metal, engenhosa com seu
formato e função de pinça. Eu a toco antes que a onda de medo
me tome por inteiro.
Sou atingido pela memória mais pesada do objeto. Algo com
sensação de antigo. É uma escuridão terrível, um breu
ameaçador. A prótese é cuspida pela escuridão e cai, num
baque surdo, junto com o corpo que a sustenta. A visão não
dura muito. O flash do ambiente ao redor é muito nítido,
inconfundível. Vejo um relógio e uma sombra.
De repente, sei onde Gancho caiu com aquela dor de
arranhar os ossos, que estava perto de matá-lo.
No lugar restrito que poucos parecem ter acesso: na casa
acima da Árvore-Mãe. No abrigo de Peter Pan.
Capítulo 19
Último espetáculo

O último espetáculo. É assim que registro.


O último para mim. O último para ele.
Todos os olhos se concentram no grande ato acontecendo no
centro do picadeiro. O chão vibra com o grave da música,
tambores que rufam e criam suspense. Por trás da cortina, eu
contemplo os holofotes acesos em cima de Peter Pan, o fazendo
brilhar aos olhos do público e do resto da trupe. Sendo do circo
ou não, todos param para assistir seus truques. Todos querem
estar ao redor dele.
Meu olhar resiste sobre a aura luminosa dele por um longo
segundo. Suas costas viradas. Sua atenção em outro ponto.
Nada o torna tão vulnerável a não ser o próprio espetáculo. É a
chance mais certa que tenho de espiar a Árvore-Mãe e a casa
em cima dela.
Aproveite seu último momento, atiro para ele em silêncio.
Solto o pedaço de cortina pesada e a fresta de luz sobre meu
rosto se extingue. Então estou me virando, me esgueirando
pelos cantos. Passos determinados me guiam ao acampamento,
sem olhar para trás.
Dessa vez, não é um tiro no escuro. É um disparo certeiro.
Sozinho aos pés das raízes descendo para dentro da terra,
ergo o olhar para a casa erguida a metros de distância. Parece
impossível para quem não sabe como subir. Nenhuma escada à
vista. Sem chance de escalar um tronco tão largo. Mas Peter
Pan não está lidando com qualquer um. Quando abro a palma
sobre a casca rugosa da árvore, ela me conta exatamente por
onde entrar, com as memórias do rapaz subindo até o topo.
Há uma escada espiralada por dentro, esculpida no oco do
tronco e coberta pelo limo que conta uma história antiga. Para
chegar lá, preciso entrar pelo tronco de uma árvore menor a
uma certa distância, no lado do acampamento dos Garotos
Perdidos. Depois atravesso um túnel subterrâneo. Preciso me
dobrar quase ao meio, mas finalmente chego ao carvalho.
Atravesso o caminho no escuro, armado com o gravador que
resgatei da carroça do dormitório e enfiei no cós da calça, além
das facas enfiadas dentro dos coturnos. Minhas mãos vão à
frente, tateando às cegas no caso de encontrar uma barreira.
Mas o trajeto é livre. A sensação de teia-de-aranha no ar,
pegajosa enquanto atravesso ela, está por todo canto. É a
magia de Peter Pan que se impregna em cada centímetro.
Dentro do carvalho, mil degraus me levam para cima.
Enquanto subo, por mais de uma vez, penso que podem não ter
fim. Até que bato a cabeça em algo. É o chão da casa da árvore.
No escuro, tateio em busca do alçapão. Ramos de hera se
intrometem no caminho, lentamente em movimento, protegendo
a entrada do intruso. Eu as corto do caminho com uma das
facas. Uma trava interna dificulta mais um pouco do trabalho.
Mas procuro nas memórias da passagem a forma certa de abrir.
O alçapão cede com um pouco de esforço, e então estou
dentro. Eu me vejo na sala ornamentada onde Peter Pan exigiu
que eu fosse levado, depois de acordar do porre de Pó de Fada.
É um cômodo amplo com duas portas, uma de cada lado.
Arrisco a da direita primeiro. Na penumbra do outro lado
descubro o que deve ser o quarto. Há uma rede, flautas de
bambu e livros jogados, além de mais uma porção de plantas.
Não é exatamente do que vim atrás.
Na porta da esquerda, uma grande cômoda de várias gavetas
atravessa na frente. Arrasto o móvel para fora do caminho o
mais rápido que posso, o que exige um precioso minuto pelo
peso. Assim que sai da frente, me apresso para a maçaneta. Um
cadeado com senha não é nada para mim. Basta um toque e
logo sei a combinação que abre de primeira. Puxo a alavanca da
maçaneta e a porta range, abrindo-se para um cômodo escuro.
O halo da lua entrando pela janela-escotilha ilumina o
bastante para que eu distinga a única forma dentro do quarto, de
pé na parede dos fundos. Assim como a memória da prótese me
mostrou, e contra a mais importante regra ensinada na Terra do
Nunca, há um relógio aqui dentro.
É um dos antigos. Um relógio de chão, alto o bastante para
caber uma pessoa dentro. O corpo é feito de madeira, com uma
porta de vidro na frente, cobrindo um pêndulo estático. A cabeça
é um círculo do mesmo material, estampado por um prato
dourado. Nele, há uma ciranda de números e ponteiros
pontiagudos indicando a hora. Eu o encaro por duradouros
instantes, mas o ponteiro não faz nem sinal de mudar de
posição. Um relógio para sempre paralisado pouco antes da
meia-noite.
Mas algo sem dúvida se move. Não a hora. Não o pêndulo.
Outra coisa dentro do relógio. Eu engulo em seco. Preciso me
aproximar para reparar o que é. E aquilo se move de novo.
É como se houvesse mais alguém comigo no quarto, alguém
que não posso enxergar. Um arrepio me sobe a espinha.
Não é bem alguém. O que se move dentro do relógio é a
sombra de uma pessoa. Uma sombra sem alguém para projetá-
la. Uma sombra presa por trás da porta de vidro fechada. Uma
sombra viva por si só.
Tem o formato de uma pessoa e flutua como um fantasma
escuro, indo e voltando para perto do vidro. É a sombra de um
adulto, crescida, formada, madura. Alta. Meus passos até ela
são automáticos.
Eu me pergunto se os sussurros soando como zumbidos
dentro da minha cabeça vem da sombra.
O coro de sussurros clama para que eu abra a porta. Minha
mão sobe, de palma aberta. Eu toco o vidro frio. Porque é o que
a sombra quer, mas também o que eu quero.
Minhas digitais estalam com o choque entre magias.
Escuridão infinita me cobre de novo, como um véu pesado
jogado sobre os olhos. A angústia de ser sugado inteiro para
dentro de uma memória, e não o contrário.
Enxergo de novo apenas para perceber que estou dentro do
relógio. No lugar da sombra. Sendo a sombra. Preso no terror
claustrofóbico de uma caixa de madeira. O vidro apertado é a
única vista para o mundo externo. Os sussurros agora
chacoalham dentro da minha cabeça, como a sensação de um
enxame de insetos rastejando em meu cérebro. Eles mandam
que eu olhe e eu não tenho forças para ir contra.
No chão, meio sentado apenas pelo apoio da mão que ainda
lhe resta, está Jaime Gancho, ensopado, como alguém muito
suado ou recém-chegado de uma tempestade. A manga de sua
camisa puxada até o cotovelo, as veias escuras serpenteando
sob a pele acinzentada e enrugada. Ele range como quando
escrevia a carta de despedida: atormentado, ofegante e
agonizando. Não usa a prótese, e o extremo do punho goteja
aquele sangue escuro.
De costas para o relógio, ele olha para cima, como alguém
mais novo levantando o rosto para alguém mais velho. Mas é
Peter Pan quem está de pé, pouco depois da porta. A luz vem
de trás, contornando sua silhueta e o iluminando feito um santo
corrompido, sem nenhuma sombra.
“Ande, Pan” Gancho ordena sem ar, os ombros num
movimento exaustivo de subir e descer muito forte. Um trovão
explode do lado de fora, a chuva pesada bate contra a vidraça
da janela-escotilha, e a voz cresce num grito: “Faça agora!”
Levanto o rosto para ver Peter Pan, mas encontro a versão
que ainda não conhecia dele: um garoto de queixo enrugado,
mãos trêmulas e olhos inundados. Ele sacode a cabeça como
uma criança que se nega a ganhar um castigo.
“Eu disse…” Peter Pan tenta falar, mas um soluço quebra a
frase. Sua voz soa mais imatura do que nunca, sem disfarces.
“Eu disse que era amaldiçoado. Eu tentei evitar. Eu não quis
isso!”
“Prove!” Gancho ergue as costas num solavanco e agarra
Peter Pan pelo tornozelo, o impedindo de fugir. “Me mate agora!
Você é o único que sabe como acabar com isso. Mostre que se
arrepende, e me liberte do tormento que você criou! Eu
arrastarei você para o inferno com o peso da culpa se…” Ele se
dobra sobre si mesmo e contorce ainda mais a voz. “Se permitir
que essa praga viva em mim por mais um dia.”
Peter Pan continua sacudindo a cabeça de um lado para o
outro.
Gancho ruge, um som feito de dor e agonia que me alcança
com um tremor de corpo inteiro. O corpo adulto cai para trás, se
debatendo, e o pescoço se estica com veias dilatadas. Seu rosto
sôfrego finalmente fica visível, retorcido em um ângulo torto, e
só então vejo como Gancho também sangra pelos ouvidos, pelo
nariz, pela boca; uma trilha de líquido escuro e viscoso que
escorre e pinga pelo queixo.
Os joelhos de Peter Pan batem contra o chão. Ele
simplesmente cede e assiste ao que diabos ele tenha
provocado, querendo ou não. Ergue a mão pouco acima da
cabeça de Gancho e faz o truque que o vi experimentar em
Bete. Um sussurrar trêmulo, um sopro na palma aberta, um
punhado pólen que voa e desaparece ao tocar a pele. De
repente, os espasmos no corpo derrubado congelam. Os olhos
azuis param vidrados em um ponto perdido, sem piscar.
Peter Pan treme com lágrimas escorridas pelo rosto. Ele se
levanta e ergue Gancho junto, por baixo dos braços, com uma
força que duvidava que ele teria.
No momento em que eles vão em direção à tempestade lá
fora, sinto em meus ossos o que significa: Peter Pan leva
Gancho para sangrar até a morte em seu camarim, deitado
sobre a poça do próprio sangue – tão obscuro e sombrio, que
pensariam ter sido envenenado.

◆◆◆

Gancho esteve aqui. No mesmo lugar que eu agora: dentro


do relógio. Foi como conseguiu a maldição em seu sangue. Sei
porque a sombra me diz. Porque Gancho a tocou. E agora ela
me chama para tocá-la também, para dar as mãos à sua
escuridão. Ela encontra minha sombra e quer tomá-la para si,
com fome. Tanta fome…
A pressão dos sussurros em minha cabeça me faz esquecer
como recusar.
Em um segundo pareço fora do corpo, a consciência sendo
sugada. Como ser lentamente levado. No outro, sou fisgado de
volta e arremessado para longe.
Só percebo meu corpo se movendo graças ao aperto de dor
no braço e o efeito de chicote estalando meu pescoço. De volta
à realidade, caio com tudo, num único baque.
A porta do quarto bate com força. Quando finalmente posso
acordar da memória, liberto da sombra, me vejo caído na sala
da casa da árvore, o grande tronco do carvalho atravessando o
meio do cômodo.
Alguém acendeu a luz. Eu me apoio sobre os cotovelos para
erguer o corpo e ver Peter Pan em pé agarrado à maçaneta,
fazendo o papel do cadeado.
Eu caio em mim aos poucos, percebendo o que aconteceu.
Ele me puxou e me tirou do domínio da sombra.
Fui salvo por quem eu dificilmente me arriscaria.
Nós nos encaramos com os mesmos olhos arregalados.
Nossas respirações pesadas são o único som na sala vazia.
— O que você viu?! — Ele solta preocupado.
— Você… — gaguejo antes de ter uma frase formada. — O
meu pai…
A última palavra sai com alívio dessa vez, pela primeira vez
sem medo de dizê-la em voz alta. O rosto de Peter Pan se
contorce do jeito culpado, como na visão dentro do relógio.
— Eu…
Mas antes que ele complete, eu já estou de pé avançando
para cima dele. Não de palmas abertas para ler suas memórias,
mas de punhos fechados para acertar o osso de seu rosto.
Caímos juntos rolando, uma confusão brusca de movimentos
e ângulos doloridos. Uso meu tamanho como vantagem e o
prendo contra o piso, espremendo o joelho em seu estômago.
Sua cabeça bate contra o chão no momento que prendo sua
garganta com o braço, e ele para de se debater.
— Seu desgraçado! — grito contra o seu rosto. — O que você
fez?! O que era aquilo?!
Ele tosse debilmente, sem ar. Alivio o aperto o suficiente para
que possa falar. Ele engole uma lufada de ar, feito um afogado
voltando à superfície.
— Me desculpe. Me desculpe. Eu não quis nada disso… —
Ele ameaça chorar, o que me deixa com mais raiva.
— Não quis o quê?! Eu mereço uma maldita explicação, mais
do que qualquer um!
Peter Pan fecha os olhos, resistente, e seu queixo enruga. O
verde de seus olhos nasce de novo mirado em mim, por trás de
uma camada cristalina de água que os fazem brilhar ainda mais.
— Para sempre jovem por conta de uma maldição. É isso que
eu sou. Foi o que a Terra do Nunca me deu. Mas eu não sabia
que seria assim… — Ele funga, e eu nem me movo, hipnotizado.
— Eu perdi minha sombra, como preço. No meu lugar, ela
cresce e envelhece. Mas com isso ganha essa… Força maldita.
Eu a tranquei para que não machucasse ninguém e mantive
todos longe. Mas Gancho… Ele não tinha culpa de não confiar
em mim. Um monte de gente não confia. Mas eu tentei ajudar.
Eu só quis ajudar.
Meus dentes rangem. Agarro Peter Pan pelos ombros para
batê-lo contra o chão mais uma vez, frustrado e irado.
— Você pensa que é o que? Um herói?!
Ele nega rapidamente com a cabeça, piscando várias vezes.
— Ele sofreria ainda mais. Não havia caminho de volta. A
maldição o definharia, arrancaria dele a juventude que lhe
restava, o secaria de dentro para fora. Eu não queria nada disso.
Mas Gancho pediu, e não tive como negar a ele. Eu o devia.
— Você o envenenou?
Peter Pan espreme os olhos de novo.
— Não. Eu acelerei o efeito da maldição, o fiz envelhecer
décadas em alguns minutos. Estava no sangue dele, escurecido
pelo domínio da sombra, por isso acham que foi veneno. Mas
ele não sofreu com isso, eu não deixei, eu juro! Eu o hipnotizei
para que não sentisse.
Eu o encaro perdido. Não sei nem mais pelo o quê sentir
raiva. Pela sombra amaldiçoada que não estava sob controle
dele? Pelo ato que libertou Gancho de seu sofrimento? Eu fui
até ali para incriminá-lo por um assassinato covarde. Não
esperava encontrar um golpe de misericórdia, nem nada sequer
perto de compaixão.
— A Sombra… Ela falou dentro da minha cabeça. Me puxou
até ela.
— Eu sei. É o que ela faz. Ela iria…
Ele não completa, mas eu adivinho.
— Teria sido um caminho mais fácil deixá-la me amaldiçoar
também. Tal pai, tal filho — minha voz sai amarga. — Depois
seria só me matar. Me descartar. Me salvar parece ter sido um
esforço burro.
As palavras escorrem ácidas entre nós.
Observo Peter Pan engolir.
— Não é como se eu quisesse isso. Nunca quis, nem para
ele. Mas você… Eu estive esperando você aparecer, mesmo
antes de perceber.
— Do que está falando? — Aperto seus ombros contra o
chão.
— Eu preciso de você. Para que faça isso.
Sua mão livre brota do bolso da calça curta com um canivete.
É grande o bastante para competir com uma das facas de
arremesso. A visão certamente me assusta, mas antes de
qualquer reação, Peter Pan está pressionando o canivete em
meu peito sobre a camisa. Não é um golpe, é uma oferta. Quer
me dar a lâmina.
— Eu sei o que é conviver com a culpa todos os dias. Mas
você tem que fazer isso, e a dívida será paga. Uma vida pela
outra. — A seriedade em seus olhos mostra que ele está bem
lúcido quando diz: — Me mate, Julian. Me mate agora, e depois
destrua o relógio. É muito importante que o destrua.
Por entre as frestas de cílios, eu me recordo do olhar que
recebi diante do alvo de madeira, com as facas voando pelo ar.
É como agora. Desde que descobriu quem eu realmente sou,
ele quis mesmo ser acertado.
Peter Pan puxa um dos meus braços para pressionar a
lâmina na palma da mão, me forçando a agarrá-la.
Eu me empurro para cima, de pé. Para longe dele. Meu peito
se agita como se pego por um susto. Peter Pan se ergue sobre
os cotovelos e também encara assustado, sem entender.
Parecia decidido sobre sua ideia de morrer, de oferecer a própria
vida, que se choca ao me ver recusar.
— Eu não sou como você. — Minha voz sai muito mais
cansada do que irada.
A lâmina do canivete tilinta contra o chão no momento que a
solto.
Ele apenas engole, e acena devagar.
— Eu só pensei que fosse o certo. Que iria querer…
— Pensou errado — eu o corto rápido e me movimento de um
lado para o outro, para que não perceba como começo a tremer.
— Você só acha que é a mesma coisa, mas não é. Gancho já
estava morrendo com essa maldição! Você está o que?
Morrendo de peso de consciência? Me obrigue a matá-lo e me
transformará em alguém ainda pior do que você.
Ao menos ele parece constrangido pela verdade, olhando
para baixo com suas pálpebras pintadas.
— Perdão — ele diz. — É só disso que preciso: uma forma de
ser perdoado. Não acho que exista outra forma de receber
perdão. E você é o único que pode me dar.
Eu paro e o observo de lado. Me irrita a forma como ele faz
parecer que eu não sou o misericordioso aqui. Mas também
existe um prazer amargo em vê-lo se julgar tão dependente de
mim. Ele esteve esperando por mim. Pareço estar vivendo uma
realidade paralela irônica, a pura inversão das coisas.
— Uma pena para você que dependa da pior pessoa para
isso — respondo, colocando distância entre nós.
Então puxo o alçapão que leva para as escadas no tronco da
árvore, sem olhar de novo para cima.
Capítulo 20
Culpado

Minha visão se reajusta à escuridão na descida, de volta ao


solo firme do acampamento. É tão quieto e calmo, diferente do
redemoinho dentro de mim. Percebo que minhas mãos tremem
quando olho para o gravador. A fita lá dentro para de girar com o
aperto do botão vermelho. Fecho os olhos, ainda andando pelo
túnel subterrâneo, e um suspiro pesado abandona minha
garganta.
No meio da passagem eu paro. Eu me agacho sozinho. Então
deixo toda a mágoa e raiva saírem molhadas pelos olhos,
convulsionando com soluços que ninguém pode ouvir aqui
debaixo da terra.
Eu não contava que seria atingido por um ponto cego. Sou
chacoalhado com essa mudança de certezas, perco as
referências de onde me agarrar e me guiar.
No fim das contas, tenho o que preciso bem a tempo do meu
prazo: todas as provas incriminam Peter Pan e colocam um
ponto final nessa história. Mas, pela primeira vez, reconheço a
mim mesmo que não sou capaz de fazer nada. Não depois de
entender o que a verdade significa. Gancho quis o final que teve;
preferiu morrer a viver daquela forma. E Peter Pan… Ele apenas
obedeceu. A uma ordem fodida, mas obedeceu. Teve a honra de
acabar com um sofrimento. Ambos sabiam o que estavam
fazendo.
É perturbador como as coisas perdem sentido com isso.
Eu me permito ficar esquecido nesse túnel escuro. Não sei
quanto tempo passa até as lágrimas e soluços pararem. Quando
consigo voltar a respirar direito, encosto a cabeça na parede de
terra e espero me acalmar mais um pouco, contando as batidas
da bomba dentro do peito.
O gravador resiste dentro da mão, com um peso maior do que
realmente tem. Esse é o fim da linha, mas me vejo não
querendo pisar do outro lado da chegada. Me vejo desejando
que a fita desaparecesse e eu pudesse esquecer essa história.
Talvez seja isso mesmo que eu deva fazer.
Devagar, eu me levanto e vou.
No fim da passagem, piso para fora da árvore menor. A luz
esmaecida das lanternas desbota a escuridão aos poucos. Ao
longe, fracos estalos de aplausos viajam das tendas e sobem
para o céu; a apresentação continua. Mas a metade do
acampamento dos Garotos Perdidos é quieta. Retribui o vazio
que ecoa em mim.
Meu primeiro passo deixa uma pegada na terra crua, sem
grama. Me adianto para avançar outro, mas não alcanço muito
mais longe.
Uma pressão cobre meu rosto por uma mão vinda de trás. O
aperto me detém. Um pedaço de pano tapa minha boca e meu
nariz, e é tão difícil respirar. Por um instante, eu me debato por
um reflexo de luta. Uso a força dos cotovelos. O gravador cai.
Mas há o cheiro pungente nesse mínimo pedaço de pano,
alcoólico e ardente. Queima a cada tentativa de respirar. Reduz
os sentidos tão rápido.
Eu nem mesmo antecipo a queda. Perco toda a força
enquanto minha consciência é desligada.

◆◆◆

Acordo me dobrando para cima, engolindo o ar de boca


aberta. É como sair da água depois de quase ter me afogado.
Pisco desorientado para todos os lados e pesco detalhes
isolados. O teto baixo. As camas. A pia. A pequena janela. O
alçapão que leva para a escada. Estou na carroça-dormitório
sem nem lembrar de ter pisado aqui.
Ainda estou calçado com os coturnos quando piso para fora
da cama, sentado no colchão. Minha cabeça gira. Pela periferia
borrada da visão, uma silhueta se ergue, saindo do buraco do
chão, pisando na escada. Giro rápido a cabeça, tonto de novo, e
encontro Dênis no quarto, sem a gola volumosa da fantasia. Ele
sempre tira depois das apresentações, para respirar fora do
personagem. Isso me diz como deve ter passado mais tempo do
que imaginei.
— Que merda aconteceu? — pergunto esperando que ele
saiba como vim parar aqui.
Eu aperto a testa entre as mãos, forçando minha mente a
ficar no lugar. Dênis observa com olhos grandes, preocupados.
— Você passou mal no meio do acampamento, cara — ele
responde devagar, como se consciente de que ainda estou
girando no lugar. — Encontrei Bravo arrastando você e ele te
jogou pro meu colo. Então aqui estou, bancando a babá.
— Espera, Bravo? — As memórias se conectam como ímãs
dentro da minha cabeça. O nocaute na saída da árvore, o aperto
forte impedindo meu movimento. Eu olho ao redor desesperado
e começo a revirar os lençóis, o travesseiro, o colchão. — Cadê
as minhas coisas? Onde está o gravador?!
Dênis observa o meu caos do canto, sem saber o que fazer.
— Tinha só você, cara. Quando Bravo apareceu contigo, você
não tinha nada.
Eu escuto isso e jogo o travesseiro de volta na cama, uma
pancada amortecida.
— Filho da pu… — cuspo o xingamento pela metade quando
me viro depressa e um novo desequilíbrio me tonteia. Seja lá o
que estivesse naquele pano, ainda rodeia meu organismo. Mas
não vou deixar isso me parar. — Onde ele tá? Eu preciso
encontrar ele! Preciso avisar que não quero mais! Estou
cancelando o plano! Me ajuda a dizer pra ele não fazer mais
aquilo!
— Não fazer o quê, cara? — Dênis pergunta aflito.
Estava decidido que eu iria destruir as provas que consegui.
Quebrar as fitas, queimar os registros. Por mais que Peter Pan
esteja ligado a questões que arruinaram minha vida, não me
parece justo condená-lo a pagar por ter dado misericórdia a
Gancho.
Desde o início, as coisas precisavam ter permanecido do jeito
que estavam. Gancho provavelmente me daria um de seus
olhares desapontados agora. Penso nas acrobacias que tive de
enfrentar para, no fim, me dar conta de que ele sempre esteve
certo, que deveria tê-lo escutado. Tentando não decepcioná-lo,
terminei só decepcionando mais ainda.
Passo por Dênis empurrando as paredes, usando a solidez
para me impulsionar para a frente. Ele me segue ainda
questionando. Desço ao andar debaixo do dormitório e vou
direto para a porta da carroça, perdido entre dores de cabeça.
Dênis está ao meu lado no momento que puxo a maçaneta.
Com a visão do acampamento aceso, o zumbido no meu
ouvido diminui. O som ao nosso redor progressivamente cresce,
até eu estar consciente das vozes; muitas delas. A massa de
artistas da trupe se amontoa nas vielas sinuosas, enchendo a
noite de murmúrios. Todos parecem fora do lugar, se
atropelando.
Piso no degrau para fora da carroça, me juntando à confusão.
A tempo de ver uma pessoa guiada até a saída. As vozes
diminuem, quase caladas, e todos assistem sem reação ao
brilhante líder da Terra do Nunca ser levado algemado por dois
policiais à paisana. Eles empurram a cabeça de cabelos
caóticos para baixo e desaparecem através das tendas.
Eu cambaleio de joelhos fracos. O mundo parece acelerado,
mudando a direção de tudo. As placas e setas agora apontam
para mim, o único culpado de estarem levando Peter Pan.
Culpado. Culpado. É só o que sei pensar.
Antes da multidão despertar do torpor e se mover de novo, eu
já estou correndo acampamento à dentro. Deixo Dênis falando
sozinho para trás. Minha intuição belisca à flor da pele, minhas
entranhas geladas.
Avisto o espaço aberto ao redor do carvalho gigante. Outra
parte da trupe se espalha pela grama, virados para a presença
que se ergue sobre a mesa de piquenique. O par de sapatos
curvos pisoteia no local de refeição, sem respeito algum. Subo
os olhos pela bengala de apoio, as mãos de unhas cumpridas,
até o rosto mascarado com buracos no lugar dos olhos. Daquela
altura, Bravo tem uma visão privilegiada de Peter Pan sendo
levado. No canto da boca retorcida, ele guarda um sorriso.
A ponta da bengala bate na madeira da mesa, chamando
atenção.
— Provas foram encontradas, apontando que Peter Pan
causou a morte do falecido atirador de facas, Capitão Gancho.
Agora ele irá pagar pelo seu crime — ele faz uma pausa, quase
que para apreciar os rostos espantados, a nova onda de
murmúrios crescendo horrorizada. — Compreendo o estado de
choque, mas vocês conhecem as regras: O espetáculo precisa
continuar.
Olho para os rostos pintados, e eles nunca pareceram tão
desbotados. Bravo não se importa. Nem ao menos tira o chapéu
para se compadecer. Apenas estufa o peito e completa:
— Então, de acordo com os costumes, sendo o segundo mais
experiente depois de Pan, eu me dou o direito a, aqui e agora,
testemunhado por todos os presentes… — ele tosse, limpa a
garganta, para ter um pouco mais de prazer em dizer: — de me
autodeclarar o novo comandante da Terra do Nunca. Será um
prazer tomar as rédeas a partir de agora, caros colegas.
O choque silencioso que sinto também passa por todos.
Quase ninguém aplaude, a não ser por seus seguidores que mal
completam os dedos de uma mão. Mas Bravo está visivelmente
radiante, de queixo erguido e o nariz da máscara empinado.
Observo com a respiração acelerada ele descer os degraus
para tomar seu reinado.
Com a breve convocação desfeita, a maioria das pessoas
segue o mesmo caminho que Pan, para fora do circo. Insistem
em continuar seguindo o antigo e legítimo líder, ainda que não
saibam o que fazer.
Já eu nado contra a corrente. Atravesso a multidão cego pela
raiva, pela culpa, pela decepção. Eu falhei com a memória de
Gancho e ainda tornei toda essa gente infeliz, pelo quê? Antes,
quando considerei Peter Pan culpado, um assassino cruel e
egoísta, pensei que qualquer consequência valeria à pena. Mas
não agora. Não mais.
Eu atravesso na frente de Bravo, interrompendo seu caminho
até as tendas. Ele freia e sua boca forma uma linha de desdém.
— Você fez isso — rosno entre os dentes, para então
perceber que a raiva não é nova. É a mesma que senti na casa
de Cristóvão, quando Bravo simplesmente invadiu meu espaço,
fazendo o que bem queria. — Você não tinha o direito!
Ele olha de cima.
— Desculpe?
— Eram as minhas provas. A decisão do que fazer era minha.
Eu não permiti que pegasse!
— Oh. Eu deveria pedir licença? Para… Você? — Ele ri com
desprezo.
Minha respiração acelera, meus pulmões ardem.
— Você me drogou para pegar o gravador, para fazer o que
quisesse sem mim. Só quis me usar para conseguir tudo, não é?
Dane-se o que eu queria. Só queria outras mãos para se
sujarem no lugar das suas.
— Nós tínhamos um trato, garoto. Se livrar de moleque era
algo que nós dois desejamos, não foi? Pois pare de reclamar.
Pegue o prêmio e dê o fora! Tenho coisas mais importantes para
lidar. — Ele flexiona os ombros sob o paletó azul brilhante. —
Agora… Se não quer que a trupe saiba quem provocou toda
essa armadilha de traição para o queridinho deles, é melhor
escapar agora, criança. Seus dias de brincadeira acabaram.
Cresça e vá para casa.
Um passo involuntário me leva para trás. Pensar em ter a
trupe contra mim não deveria parecer tão importante, mas é.
Ele passa por mim, atropelando com um choque de ombros,
no momento em que um vendaval atravessa o acampamento,
fazendo a Árvore-Mãe chiar com todas suas folhas acima de
nós. Os poucos que sobraram seguram suas fantasias no lugar.
Bravo, na tentativa de se agarrar no ar com uma mão e segurar
o chapéu com a outra, acaba deixando escapar sua bengala. Ela
despenca sem barulho na grama.
A cabeça de dragão prateada olha para mim de boca aberta,
e eu olho de volta, com a mente distante de quem não quer mais
estar aqui. No momento que o vento passa, eu me abaixo quase
inconsciente para pegar a bengala caída aos meus pés. É só um
ato automático. Não penso muito sobre.
Ao me reerguer, meus dedos se esquentam.
Ganho um lampejo de memória antes de Bravo toma-la de
volta. Uma imagem de Gancho, quando ainda tinha as duas
mãos. Ele cambaleia para a frente e cai dentro do relógio
assombrado de Peter Pan, pela porta de vidro aberta onde a
sombra espera para consumi-lo. É a bengala que o empurra
para dentro, um golpe firme pelas costas. O mesmo que senti
quando Bravo me empurrou para dentro de sua carroça.
A sensação dolorida da cabeça de dragão pressionando
minha coluna se acende.
Pisco, voltando ao mundo real. Bravo dá um risinho de
soberba e atravessa a multidão, sumindo de vista por trás de
todas as cabeças que nem se viram para acompanhá-lo.
Meus nervos voltam à vida aos poucos. Com passos cegos
para trás, minhas costas esbarram numa parede sólida. Quando
me viro, vejo que é só uma pessoa parada ali, tão perdida
quanto eu. Gentil, o valente Homem-Forte, custa a levantar o
olhar do chão. Nem quando Susi partiu com seu fio de cabelo
branco ele pareceu tão abalado.
— O que Bravo doma? — Desperto do meu próprio torpor
para perguntar. — Gentil! Bravo é domador do quê?
O homem demora a entender que a questão é para ele.
Quando responde, é lento, distante, sem entender a relevância
da questão:
— São animais de sangue frio. Bravo é domador… de
crocodilos.
Capítulo 21
Jovem, não imortal

Quando Gancho apareceu sem a mão pela primeira vez, eu


escutei o motivo pelo qual nunca me permitiria pisar no circo
enquanto estivesse vivo.
Eu perdi a mão por culpa dele. E perderia você pelo mesmo
sujeito se ele descobrisse onde você está. Gancho me disse.
Aquele que arrancou minha mão, tem uma aparência
traiçoeira.
Ele passava tanto tempo reclamando sobre o garoto líder do
circo, vaidoso, orgulhoso e insolente, de como ele era uma
pedra eu seu caminho, de como era só uma criança numa
posição importante demais, que eu não precisei realmente de
um nome para ligar os pontos. Mas foram os pontos errados.
Gancho não era amigo de Peter Pan, os Garotos Perdidos
deixaram isso claro. Mas tampouco era de Bravo, como o
próprio tentou me enganar.
Aquele que arrancou minha mão – Gancho me disse, ao pé
do velho piano que tocava improvisado com apenas cinco dedos
– a cortou para atirar ao crocodilo. E agora, durante o sono, me
atormenta que ele apareça para devorar o resto.

◆◆◆

Tropeço com a visão sem foco, um senso de orientação


mínimo. Entro pelo túnel da tenda principal e atravesso o
picadeiro repleto de vozes emaranhadas. Penso no motivo que
me trouxe até aqui. Honrar meu pai. E agora… tudo parece tão
perdido. Se ele estivesse vivo, com certeza mandaria eu arrumar
a bagunça que fiz.
O público já se foi há muito tempo, mas resta para trás uma
massa desiludida de artistas fantasiados com cores desbotadas.
Suas cabeças continuam viradas para além do campo de trevos
à frente, encarando o ponto no horizonte onde Peter Pan
provavelmente foi levado algemado. Sussurram questionando se
tudo é verdade. Se Peter seria capaz. Se alguém do público viu.
Se o circo suportaria outro baque como esse.
Eu olho para seus rostos quebrados. No degrau mais baixo
da plataforma, encontro asas de arame e papel brilhante
amarradas às costas curvadas em derrota. Desço para alcançá-
la. Quando Sininho se vira para mim, seus pequenos sinos não
têm som, imóveis pelo movimento fraco. As sobrancelhas claras
se retorcem e ela tem um oceano inteiro à margem dos olhos.
Ela pisca, e as gotas escorrem, levando maquiagem e purpurina
bochechas abaixo.
Seu rosto se enterra em meu ombro, me entregando todos os
soluços que tem guardado. Sininho tem um aperto forte. Ela me
abraça como se eu pudesse consertá-la. Ainda tem fé em mim,
e a culpa me despedaça.
Sem me mover, fecho os olhos e murmuro contra o cabelo
curto:
— Fui eu, Sininho. Me desculpe. Por favor. — Essa é toda a
confissão que consigo arrancar da garganta apertada.
Ela prende de volta os soluços e olha para cima, sua face
brilhando com as lágrimas e maquiagem borrada. Espero pela
virada de seu olhar, o salto de fé para ódio. Mas ela tem mais
compaixão do que nunca quando diz:
— Era o seu pai, não era?
Ela passa por cima da própria perda para enxergar a minha.
Se compadece por isso. Eu engulo quadrado, amargo.
— Sim, mas… Agora eu entendo. — A confissão que esteve
apenas na minha cabeça finalmente escorrega. — Toda essa
história… Não é bem o que parece, tá? Não odeie Peter. Não
por isso.
Não por mim.
Ela pisca e concorda devagar. Eu me pergunto como. Como
ainda pode confiar em mim dizendo para não odiar Peter Pan. O
brilho esperançoso em seus olhos claros me diz. É o mesmo
com que me encarou quando ela contou sobre a previsão de
Socorro. Ela ainda espera que seja eu o prometido a resgatar o
circo, a resgatar Peter Pan. Mesmo que eu tenha feito
exatamente o contrário.
— O que vamos fazer agora? — Sininho pergunta.
— Eu vou consertar. Vou conseguir uma forma… — Escuto as
promessas vazias deixando minha garganta. Mas minhas mãos
não poderiam estar mais atadas.
Olho para o horizonte escuro e considero minhas opções.
Mesmo que eu odeie a polícia, que os deteste pelo pouco caso
com a investigação, pela negligência com a morte de Gancho, é
o que preciso fazer. Ir ao posto da guarda, convencê-los de que
houve um erro, tirar a credibilidade das provas que eu mesmo
coletei.
Conto à Sininho que tenho que ir. Digo a ela onde vou, e que
traria Peter de lá.
É Dênis que me interrompe. Ele aparece sem fôlego, se
dobrando sobre os joelhos enquanto respira muito forte.
— Não! — ele protesta. Arfa mais uma porção de vezes e
então se ergue. — Os caras que levaram Peter… Não eram
policiais de verdade.
— Como? — Sininho se alarma.
Eu ganho um novo nível de tensão sobre os ombros.
— Como pode saber? — pergunto, totalmente investido no
pedaço de informação.
— Porque… um deles era o palhaço… o antigo palhaço, que
foi substituído por mim! — Dênis diz entre pausas para respirar.
— Eu reconheci o cara. O outro, era antecessor dele, o palhaço
antes dele.
Me pergunto quando comecei a me deixar ser tão burro e
inocente. O circo e suas promessas coloridas tiveram um
péssimo efeito sobre mim. Mesmo agora, eu confiei que Bravo
jogaria limpo. Que restava qualquer coisa digna nele. Mas a
ficha despenca.
Bravo sabe usar as pessoas. Se reuniu aos que tinham
motivos de ressentimento com Peter Pan e os fez de peões em
seu plano egocêntrico. Como eu.
— Me fale sobre eles — eu digo mais sério do que nunca a
Dênis. — Tudo o que souber.
Nós nos enfiamos pelo guichê da bilheteria com Sininho nos
seguindo. Dênis usa um mapa puído de Nova Eldorado no verso
de um calendário velho, deixado na caixa de recolhimento de
contadores de tempo. Mostra o caminho para o abrigo que
antigamente os palhaços usavam. Um lugar discreto, como onde
encontrei Socorro no morro pela primeira vez. A vida da trupe
fora do circo é clandestina, existe por debaixo dos panos. Dênis
desenha o esboço num pedaço de papel. Eu torço para que
esteja certo quando pego para usar como guia.
— Bravo não pode ser deixado aqui sozinho — Sininho diz às
minhas costas, na saída do guichê. Olho para trás e vejo o
conflito estampado em sua expressão agoniada, de quem quer
salvar Peter, mas também é responsável pelo circo.
— Não se preocupe. Eu consigo isso. Vocês dois ficam aqui,
na retaguarda.
— Tem certeza? — Dênis pergunta. Um simples aceno o
convence. Não é como se ele estivesse duvidando que eu
poderia; está apenas checando se estou certo do plano.
— Vamos vigiar os movimentos de Bravo. Segui-lo e impedir
qualquer outra ação. Vamos contê-lo pelo menos por um tempo,
sem criar nenhum pânico na trupe. Não sei o que ele poderia
fazer… — Sininho instrui a Dênis, iniciando um plano paralelo.
Parece bom, até que penso duas vezes.
— Esperem. Não — digo, da divisória do guichê. — Se
concentrem em proteger a Árvore-Mãe. Guardem o carvalho e
não deixem Bravo subir até a casa na árvore de jeito nenhum.
Vai ser melhor assim.
Sendo um dos poucos que conhece sobre a sombra trancada
dentro do relógio, não duvido que Bravo saiba o que fazer para
ter o que quer. Destrua o relógio depois. É muito importante.
Peter Pan disse quando insistiu para que eu o matasse. A
conexão entre ele e a sombra não pode estar nas mãos de
Bravo. Se ele planeja a morte dele, não vai deixar o relógio
passar batido.
Antes de ir, volto ao acampamento, recolhendo as armas que
preciso.
Passo pela carroça esculpida de escamas de Bravo e ela está
apagada. Com um velho truque, arrombo a maçaneta e invado.
A iguana no terrário sibila para mim no escuro. Jogo um pano
por cima do vidro e pulo até o fundo do cômodo. Puxo a
máscara mais escondida na parede coberta de várias delas, no
rodapé atrás da cadeira. Então volto tudo para o lugar e dou o
fora.
A outra parte do plano está no dormitório. Entro sem fazer
barulho e subo até a cama no segundo patamar. Resgato o
travesseiro jogado e enfio a mão por dentro da fronha. Tateio até
meus dedos sentirem o que procuro e suspiro de alívio. Ao
menos isso ainda continua aqui. Se em qualquer outro dia
alguém me dissesse que eu precisaria das luvas de Peter Pan,
eu teria rolado os olhos e oferecido uma risada.

◆◆◆

Com o guia rabiscado de Dênis, vou parar na porta de um


casebre ao pé do morro onde vi Socorro subir para escapar da
Guarda. Aquele lugar cheio de casinhas amontoadas parece
mesmo ser onde os integrantes do circo vão para esconder seus
segredos – ou suas Outras Vidas.
Espero atrás de um poste, a tempo de ver um dos capangas
de Bravo sair de esgueira pela fresta da porta e se enfiar no
mato para mijar.
Vejo ele voltar pelo mesmo caminho, ajeitando a calça e
murmurando sozinho. A porta bate atrás dele. Não há nenhum
som de tranca. O caminho mais fácil é o da frente, então eu
atravesso a ladeira estreita e vou.
Assim que piso num corredor mal iluminado, dois outros
homens se viram surpresos, me encarando de olhos
arregalados. Um empunha revólver; o outro, apenas um pedaço
de corda que não representa exatamente uma ameaça.
A surpresa deles dá lugar a uma expressão hesitante,
defensiva. Quando veem meu rosto, eles parecem mais
assustados do que eu.
— Algo de errado, Senhor? — pergunta um deles.
— Já vamos terminar isso, Senhor! — o outro se apressa em
dizer enquanto toma posição de sentido. — O carro já está
chegando. Maia já deve ter acabado de trocar a placa.
Por trás dos buracos da máscara nariguda, eu experimento a
visão amedrontada deles. Minhas mãos calçadas de luvas me
impedem de usar minha habilidade, mas também cobrem minha
pele mais escura que a de Bravo. Os botões da camisa estão
fechados até o topo para que não vejam o pescoço. Estou
usando um casaco com capuz de Dênis por cima e o modelo da
máscara me cobre até o queixo. Eu só preciso ser rápido o
bastante para eles não se darem conta de que seria improvável
Bravo trocar de figurino tão rápido.
Abro a boca para dizer que saiam da frente e me deixem
entrar na sala fechada atrás deles, mas engasgo antes da
primeira sílaba. É claro que reconheceriam a voz. Começo a
tossir para que pensem ser só um pigarro. Aponto para a porta
atrás, fazendo sinal para que saiam. Eles obedecem, mas com
desconfiança nos olhos.
Assim que abro a porta, lá está ele. A razão para isso tudo.
Amarrado no canto da parede, largado no chão. Peter Pan
levanta o queixo e a folha desenhada no topo da bochecha se
mostra sem maquiagem: se parece muito mais com uma cicatriz.
Eu olho para ele, e é diferente da última vez que o vi na casa da
árvore. Porque agora sei que realmente não quero causar mais
dano.
Atravesso até ele, sem tempo a perder, e me agacho bem na
sua frente.
— Não acreditei que você fosse deixar de ser um covarde a
ponto de voltar para fazer isso com as próprias mãos — Peter
Pan murmura, sem emoção, sem vontade. Apenas… Cansado,
ainda que mordaz. Ele apoia a cabeça na parede atrás e seu
pescoço se exibe, numa presa fácil. — Mas concordo que você
deveria mesmo acabar com isso. Faça como quiser, não vou
resistir.
Ele não me vê por detrás do disfarce, nem de tão perto.
— Pare de querer morrer e lute, idiota. — Minha voz é baixa
entre nós.
Reconhecendo finalmente, Peter Pan solta um suspiro pela
boca e me estuda de olhos vidrados.
Passos estalam no chão atrás de mim, devagar e sorrateiros.
Arranco uma das facas de arremesso de dentro do coturno.
Faço parecer que vou acertar Peter Pan, mas a faca desce
afiada e rompe a corda que detém as mãos dele.
— Senhor?! Isso é parte do plano? — Um dos homens
questiona, perto demais.
— Essa é uma boa hora para um dos seus truquezinhos.
Simsalabim, faça eles dormirem — murmuro para Peter Pan,
passando a bola do plano. — Agora.
Eu espero que ele colabore para salvar o próprio pescoço,
mas lá está ele, ainda de pernas amarradas, mãos largadas de
cada lado do corpo.
— Eu… não posso. A magia não funciona. — Ele flexiona as
sobrancelhas, com cara de pena. — Não fora da Terra do
Nunca.
— O quê?! — Minha voz cresce, saindo do controle. — Puta
que-
— Ei! — grita um dos homens.
Uma mão me agarra pelo capuz e puxa para baixo, revelando
minha cabeça. Um giro violento de perna estendida, e passo a
rasteira no cara, que desaba num baque. A cabeça dele quica
no concreto. O tiro que preparou para mim ricocheteia no teto,
fazendo chover um bocado de reboco e poeira. O homem pisca
devagar, zonzo, custando a se recuperar.
Mas o outro já está em cima. Atiro uma das facas em seu
rosto, que corta abaixo da sobrancelha. Ainda assim, recebo o
choque contra a parede quando ele se joga contra mim feito um
touro. Ele ergue a perna para tentar uma joelhada baixa, mas eu
prevejo e adianto um soco em seu estômago desprotegido.
Quando ele se dobra sobre si mesmo, contorço sua mão num
ângulo anormal até as costas. O homem joga o peso contra mim
de novo, gritando de dor. Eu solto por reflexo, e ele consegue se
levantar, mostrando o rosto vermelho de sangue brotando do
corte. No momento que se afasta, eu tenho espaço para pegá-lo
pelo pescoço. Jogo sua cabeça contra a janela.
O som de vidro se rachando enche a sala. Os pedaços de
caco caem manchados de vermelho, a cabeça do cara fica
presa entre as grades. O corpo se debate de forma débil uma
vez, antes de ceder, desmaiado.
Viro para trás arrancando a máscara, que vai parar no chão.
Peter Pan termina de se desamarrar só agora, e imagino como
uma vida dependendo de magia o tornou lento para essas
coisas. Assim que está livre, eu o apresso para a porta, e
corremos juntos até a saída. Posso jurar que estamos lado a
lado e que vamos sair juntos, mas é questão de um instante
para Peter Pan estar atrás de mim, me empurrando pela
passagem.
Tudo acontece muito rápido. Por cima do ombro, olho para
ele. Para além dele. Grito “não!” para que não cometa essa
besteira. Mas já está feito. O homem caído no chão está de
punho erguido. O dedo no gatilho puxa e o disparo estoura. A
bala que deveria me acertar atinge Peter Pan. Ele escolheu se
colocar no caminho. Seu corpo dá um tranco, antes de ficar
suspenso. Em câmera lenta, uma flor vermelha de sangue
floresce na lateral da cabeça, manchando o cabelo.
Jovem para sempre, ele disse. Não imortal.
Peter Pan cai leve e girando. Eu me apresso, estendo os
braços para segurá-lo e evitar sua queda. Idiota. Idiota.
Amaldiçoo enquanto vamos ao chão. Protejo seu corpo com o
meu, não só do concreto, como do alvo do homem que ainda
tenta mirar em nós. Antes que ele dê outro tiro, eu o acerto com
outra faca sacada do coturno.
A mão armada do homem abre, cortada nas costas. O
revólver cai fora do alcance, junto com o sangue gotejante do
corte. O homem grunhe, resistente. Começa a se arrastar até a
arma, determinado. Será questão de segundos até alcançar e
começar uma perseguição. Precisamos colocar a maior
distância entre nós o mais rápido possível. Então agarro o braço
de Peter e corro não só pela minha vida.
As ruas de pedra vazias na madrugada se enchem com o
barulho de nossos passos. Açoitados pelo ar frio, descemos
apressados pela ladeira. Estamos quase na esquina quando um
tiro estoura atrás de nós. Agacho por reflexo, sentindo o pulso
na garganta. Outro tiro e exclamo um palavrão de desespero.
Arrasto Peter Pan de novo pelo braço, dessa vez para a mata
densa que nos daria cobertura.
Os passos do perseguidor ainda são audíveis, estalando
galhos no chão. Eu olho para trás, mas ele não está à vista.
Então continuo correndo, sem soltar Peter. Ele está cada vez
mais lento, mais dependente dos meus puxões para se mover.
Olho para Peter de novo e engulo seco com a visão. Sua cabeça
sangra pelo tiro de raspão, na ponta da sobrancelha. Seu rosto
está pálido, suado. As pálpebras pesadas não deixam que abra
os olhos direito, e ele respira pela boca como um peixe
sufocado.
— Eu não vou… Não vou… — Suas palavras são cortadas
quando ele pende para o lado e despenca, de olhos fechados,
metade do rosto pintado de sangue.
Eu o seguro, murmurando baixo. Peço entre sussurros para
que não morra. Não na porra dos meus braços. Do que valeria
ter desistido de incriminá-lo e reconhecido meu erro? Ainda seria
tudo minha culpa.
Passo os braços por suas costas e por trás de seus joelhos,
erguendo seu corpo no ar. Ainda precisamos nos esconder.
Rápido. Então começo a correr com Peter Pan em meu colo.
Sozinho com o garoto à beira da consciência, sigo para o
único lugar que me sobrou nessa terra esquecida pelo mundo,
pensando como nós dois arruinamos a vida um do outro.
Capítulo 22
Encontro de duas magias

No escuro, as fileiras de túmulos do cemitério de Nova


Eldorado se parecem com uma porção de fantasmas
empedrados. O mármore branco das lápides brilha com auras
esbranquiçadas, mesmo sem luz para refletir.
A única coisa material que Gancho me deixou, além de facas,
foi um lugar para ter onde cair morto. O mausoléu onde foi
sepultado é um abrigo de cimento e teto triangular, guardado
pela estátua de uma caveira empunhando uma espada. É onde
está o homem que veio antes dele, e o homem antes desse, e
todos os outros que tiveram o azar de nascer na mesma
linhagem de sangue.
A aparência mostra como não é uma construção nova. O limo
toma conta do cimento no lado de fora, ervas daninhas crescem
por entre as juntas das pedras. Quando chuto a porta dupla
entalhada, no ponto onde sei que está o trinco do outro lado, a
passagem cede. Entrar é ser engolido pelas sombras dos
mortos que não usam luz.
Por todo lado, há cera derretida de velas esquecidas para
queimar sozinhas. Deixo Peter Pan no chão, deitado num ângulo
confortável. Tiro o casaco do meu disfarce e dobro para colocar
sob sua cabeça. Então volto para encostar a porta e acendo boa
parte dos pavios de vela com palitos de fósforo perdidos nos
cantos.
O mausoléu se acende pouco a pouco, até as chamas o
tornarem aquecido por dentro. As últimas velas são as grudadas
na sepultura mais nova, de mármore escuro ainda polido. Eu
descarto os palitos usados e esfrego a poeira da placa prateada
servindo de lápide.
Jaime R.
ano 90/4° geração — ano 25/5° geração
“Melhor do que o homem antes de mim”

Uma respiração forte vinda de trás chama atenção. Giro para


ver Peter Pan tendo mais um lampejo de consciência. Desse
jeito – deitado no chão, pernas esticadas, mãos cruzadas sobre
o peito – ele bem poderia parecer com um dos mortos. Mas seu
peito cruzado pelo suspensório de folhas sobe e desce fraco,
sua boca se abre para respirar, e seus cílios batem entre
piscadas sonolentas.
Meus coturnos fazem eco com os passos que dou até ele.
Meu corpo bloqueia uma fresta da luz que vem de todos os
lados. Quando minha sombra o alcança antes de mim, Peter
Pan desvia o olhar do teto e me assiste crescer sobre ele. É a
primeira vez que sou eu a olhar de cima.
Seu pomo-de-adão sobe e desce, antes de decidir falar.
— Você… Você voltou para me salvar.
— Eu não gosto de ficar em dívida com ninguém. E você me
salvou… Duas vezes — completo, apontando para a marca do
tiro em sua cabeça, perto da testa. Eu o devo mais uma depois
de ter me salvado da sombra no relógio. — Você querendo ou
não.
Seus cílios curtos batem de novo e ele respira mais agitado.
— Eu quis salvar você. Em cada uma delas.
Eu ignoro o aperto que isso provoca. O novo revirar que
causa nas minhas entranhas. Agacho de joelhos ao seu lado e
cuido do ferimento. Para limpar, uso o pequeno cantil de água
no bolso, que despeja transparente e escorre vermelha para o
chão. Para improvisar uma compressa, rasgo a parte ainda
limpa do bolso da camisa.
Pressiono forte o pedaço de pano no lugar e espero que dê
conta, ao menos para diminuir o sangramento. Peter Pan
observa tudo, seguindo cada movimento com seus olhos
inquietos, tão verdes e vidrados, que quero mandá-lo voltar a
dormir.
A pressão se mantém por um tempo suficiente, mas quando
levanto a compressa, ainda vejo sangue brotando, voltando a
refrescar a ferida.
— Não quer funcionar. Essa droga simplesmente não
funciona. — Meu nervosismo sai em voz alta. É tudo que eu sei
fazer, e mesmo assim não é o suficiente.
Peter Pan abre a boca devagar, e sua voz sai fraca, um pouco
rouca.
— Não é sua culpa. Ainda tem muita coisa que você não sabe
sobre mim.
— Do que diabos está falando?
A pausa dele é feita de um suspiro fundo de olhos fechados.
— Existe uma relação entre eu e a Terra do Nunca. Familiar,
materna. Ela me criou, ela me sustentou, e me ensinou tudo que
sei. Sem ela, eu não sou nada.
— Você diz como se ela fosse uma criatura consciente.
— Porque é. Quase ninguém consegue se comunicar com
ela, se conectar com seus pensamentos. Até hoje, fui o único…
— Porque nasceu lá — completo antes dele.
Peter Pan olha surpreso, sem piscar.
— Quer dizer que não tem magia se não estiver lá, nem pode
se curar longe dela — continuo como se saber a história não
fosse nada. Consigo entender mais do que imaginaria.
— A Terra do Nunca é toda minha força — ele diz. — Posso
ser curado com partes dela. Ela me remenda.
— Agora está me pedindo para arrastar você até o lugar onde
está mais ameaçado? Bravo já deve saber que escapou.
Seremos dois mortos assim que pisarmos lá.
Ele se encolhe e olha para baixo, evitando os túmulos ao
redor.
— Ela me ensinou a como sobreviver longe. Aqui. — Peter
Pan indica o suspensório que se enrosca ao redor de seu tronco
despido. — É feito de partes dela. Não é muito, mas deve servir.
Com a última faca presa no forro do coturno, eu arranco
algumas folhas, descrente de que seja útil. Peter Pan observa
sério, esperando que eu realmente faça. Coloco as folhas em
sua testa, como um pequeno ninho verde que adere ao visco
vermelho que começa a escorrer outra vez.
De primeira, não ocorre nada, e Peter Pan só se passa por
um bom contador de histórias. Mas logo as folhas começam a
murchar, um processo acelerado de decomposição. A vitalidade
delas parece doada até sobrar apenas pedaços quebradiços e
secos de massas amarronzadas.
Limpo aquilo para longe, varrendo para o chão. Sou deixado
encarando a pele intacta de Peter Pan. Apenas a fina trilha de
sangue seco indica que um dia houve uma ferida.
— Uau. — Tento esconder a centelha de admiração no tom.
— Então é para isso que servem aqueles casacos extravagantes
feitos de penas e folhas.
Os lábios de Peter Pan se esticam, vírgulas aparecem de
cada lado.
— Eles também são confortáveis, se quer saber. E bonitos. —
Ele se gaba com uma faísca da sua velha vaidade na voz.
Ele tosse fraco, várias vezes. Por mais que esteja inteiro de
novo, continua sonolento, piscando devagar.
— Essa história tem a ver com o que você quis dizer antes?
Sobre a Terra do Nunca ter te dado a juventude para sempre,
em troca de amaldiçoar sua sombra.
Ele balança muito pouco a cabeça num aceno.
— Ter nascido no circo me fez ser criado como o comandante
prometido, antes mesmo que eu aprendesse o que é isso. Eu
era uma criança cheia de promessa aos olhos de todos. E
quando se é jovem, todos parecem gostar de você mais fácil. Eu
conseguia lidar bem com a pressão por isso. Até que,
inevitavelmente, comecei a ser ameaçado. — Peter Pan olha
para um ponto perdido no teto, distante. — Os adultos diziam
que isso iria acabar. Que todos crescem e são substituídos. E
aqueles que ambicionavam comandar no meu lugar… Eles me
cutucavam com isso, diziam que eu seria esquecido, queriam
me fazer desistir. — É a minha vez de me encolher, mas ele
desfaz a ideia de culpa na minha cabeça. — Não foi seu pai
quem começou com isso. Foi o atirador antes dele, e o outro
antes, e desde o primeiro que me conheceu. É uma ambição
simplesmente passada para a frente, assim como foi com os
Bravos que vieram antes, e tantos outros.
— Isso não explica a maldição — eu digo, voltando à questão.
Peter Pan concorda.
— Eu clamei à Terra do Nunca como alguns clamam aos
deuses. Porque tudo que eu conhecia era o circo, e ela era a
divindade que eu acreditava. Que acredito. Então eu pedi. Pedi
para que nunca mais fosse abandonado e que não a
abandonasse. Pedi que nunca perdesse o comando do circo. E
ela me deu. O relógio apareceu, mas sem nunca mover os
ponteiros. Eu não percebi de fato até os anos passarem, as
pessoas começarem a partir, mas eu não. Meu fio de cabelo
branco nunca veio. Então eu nunca parti.
Os olhos dele se fecham, desligando. Penso que desmaiou
de novo. Mas sua boca continua sozinha, abrindo e fechando:
— Meu corpo se conservava, mas eu não parava de crescer
em essência. Nem sempre isso foi uma maldição. Por um bom
tempo, a sombra foi só um fantasma particular. Não fazia nada
para ninguém. Até que começou a crescer, crescer, crescer… E
se tornar maior do que eu. O meu lado feio, tirado para que eu
fosse sempre querido, se transferiu para ela. E ela começou a
querer absorver a juventude dos outros, já que nunca poderia ter
a minha. Eu sabia que não podia deixá-la livre. O relógio é o que
a mantém sob controle. Mas ele também mexe com o tempo de
outras pessoas. Por isso é arriscado permitir contadores de
tempo no circo: poderia mexer com as pessoas de uma forma
que eu mal sei como seria.
Nós caímos no silêncio.
Peter Pan deitado como um cadáver; eu sentado sobre os
tornozelos, de costas curvadas e cabeça baixa, me perguntando
se ele ainda tinha tanta coisa a dizer quanto eu.
— Sabe uma coisa que me fez te odiar de verdade? — Eu tiro
a angústia do meu peito. — O dia que entrei na tenda e o
encontrei usando a história de Gancho como um espetáculo. Eu
só pude pensar como você estava se vangloriando da morte que
provocou. Eu simplesmente não suportei ouvir.
Peter Pan reabre os olhos, mirando em mim.
— Não foi a intenção. Nunca. — Ele pousa uma mão sobre o
peito, um gesto ferido. — Eu apenas prometi que não deixaria
que a memória dele morresse como o corpo morreu. Prometi
continuar contando histórias sobre ele, sua força e seu prestígio,
para que nunca fosse esquecido. Wendy me ensinou… — Ele
engasga com o nome, como se escorregasse. — Ela me disse
que esse era o jeito de eternizar pessoas. Através de histórias.
Minhas muralhas se desmancham. De repente é estúpido
demais que eu tenha ficado com raiva naquela ocasião.
Peter Pan ainda parece bem desconfortável por ter tocado no
nome de Wendy Amado, a garota bonita que o deixou ao
descobrir seu lado ruim. Não pretendo dizer que descobri o
segredo dele, que o vi rastejando até a janela de Wendy,
assistindo miserável à vida feliz dela. Não pretendo perguntar se
ainda é apaixonado por ela, ou se apenas sente falta do
sentimento. Porque não me importo. Não deveria. E quanto mais
o silêncio cresce, mais o nome dela aumenta um peso amargo
nesse espaço.
Eu levanto a cabeça, encaro sem foco a chama amarela e o
branco derretido da cera pingando silenciosa.
— Eu participei do plano do Bravo. As provas que ele
conseguiu eram minhas. Eu reuni tudo. Eu armei a armadilha
para você cair.
Me odeie, eu clamo mentalmente. Me odeie e faça eu me
sentir como o eu que eu conhecia, quando esse desejo
empoleirado no peito não ameaçava despertar tão cedo.
— Eu não tenho o que perdoar — ele diz. — Você só fez o
que achava certo.
— Assim como você.
— Talvez sim.
— Talvez. Sim.
Parece que o mundo inteiro acabou e só sobrou nós dois com
as gotas de cera pingando.
— Posso ter minhas luvas de volta? — Sua pergunta me
alarma. — Me arrependo de tê-lo obrigado a isso.
Penso por um instante. Então começo a tirar dedo por dedo
das luvas que ainda estou usando.
— Eu estava tentando pegá-lo. Você só se defendeu — digo.
Ergo as luvas no ar. Peter Pan as resgata com uma mão, que
desce de volta para o chão.
É só isso. Até não ser mais.
Sua outra mão sobe e segura o meu pulso no ar, mantém
minha palma pairada sobre ele.
— Faça o que você quis aquele dia. — Seu olhar se acende
num desafio pessoal. — Você pode me tocar agora.
Sou atingido pelo choque. O tipo de reação que resume o que
ele sempre me causou: nervosismo, mas não de medo.
Hesito por alguns segundos. Até que desço a mão devagar e
fecho os dedos ao redor de sua garganta. É como no sonho, só
que mais visceral. Porque é real e ele está aqui.
Peter liberta meu pulso, deixa que minha mão permaneça ao
redor de seu pescoço, entregue. Confia e se arrisca. Eu demoro
mais um pouco, segurando sua garganta. Não quero que suas
memórias venham, então as impeço de irromper. Um esforço
consciente para não ser arremessado no passado. Quero ficar
bem onde estou, no presente onde isso está acontecendo.
Meu aperto alivia o mínimo para subir deslizando. Traço o
queixo, a borda da mandíbula, a ponta da orelha. Seus olhos
seguem. Então deixo os dedos deslizarem para cima,
emaranhando nas ondas de cabelo macio. A palma da mão
pressiona a curva da bochecha dele, cobre a marca em forma
de folha. Agradeço por estarmos sozinhos. Por poder fazer algo
que na frente dos outros teria vergonha. Porque não é bruto nem
dominador, e sim calmo, paciente. Delicado como nunca me
permiti ser.
Um toque impregnado de adoração.
— Eu estive esperando por você — Peter diz. — Pelo o que
você tem para mim. Seja o que for, eu aceito.
Meus ouvidos escutam, sabem que ele diz sobre morrer e
aceitar ser morto. Dívida e perdão. Mas com a mente longe,
desfocada e sonhando com o passado, associo a outro
significado. Porque quem passou a vida toda numa janela,
sonhando para ser carregado para a Terra do Nunca, se
oferecendo para ser levado para o circo, fui eu. Eu é que estive
esperando.
Minha boca se parte e eu liberto as palavras guardadas:
— Eu perdoo você.
Peter suspira, fecha os olhos. Seu rosto vira e deposita um
beijo na concha da minha mão. Seu jeito de agradecer. E de
perdoar de volta a culpa que sinto.

Meu estômago despenca, um frio violento nascido de dentro.


Só percebo o quanto estou perdido da sensação colocada na
palma da mão quando Peter fala. Suas palavras vibram contra
os pontos sensíveis da minha pele.
— Está vendo algo?
Eu pisco, lembrando que posso fazer com as mãos mais do
que sentir. Lembro de estar usando o mínimo de controle que
tenho sobre minha estranha habilidade, para não sair daqui e ir
aonde não sei o que vou encontrar.
— Não tenho certeza se quero ver — respondo.
Encontro uma hesitação em pensar no que mais a mente dele
possa guardar. Ao mesmo tempo que não quero soltar. Não
quero quebrar esse contato. Não agora.
Mas minhas digitais já esquentam sozinhas, me dizendo que
o controle está chegando no limite.
Peter desliza o rosto sob o meu toque, me estuda com o
olhar.
— Eu ainda te assusto? — Ele pergunta.
— Não sei exatamente como nomear o que sinto por você.
A pele de Peter se estica sob a minha mão quando ele sorri, e
eu remexo os dedos em seu cabelo por reflexo.
— Mais uma coisa que temos em comum — ele diz.
O formigar na ponta das digitais cresce, como uma fagulha
inflamando para uma chama maior. Vou entrar pela mente dele
se não recuar.
Considero me afastar. Mas assim que tento, o aperto em
torno do meu pulso volta. Peter me segura no lugar, pressiona
pele contra pele.
— O que você quer que eu veja? — Eu pergunto angustiado.
— O que mais você pode ter para mim?
— A Terra do Nunca falou comigo… sobre você.
Eu engulo o estranhamento. Lembro da história contada por
Sininho no jantar, sobre as células de um organismo abaixo da
terra. Algo mágico.
— Ela realmente fala?
— Na própria linguagem, sim.
— Então o que ela disse?
O aperto dele em meu pulso escorrega, vai parar nas costas
da minha mão. Ele está frio depois de perder muito sangue, mas
permanece firme, se segurando contra mim.
— Ela me fez sentir uma forte pressão no meio do peito. Eu
estava tão certo que era um sinal de perigo. Mas não… no
fundo, havia uma sensação aquecida de conforto. Eu neguei,
mas ela me enviou essa impressão de novo, e de novo, a cada
momento que colocava os olhos em você. Insistia para que eu
confiasse. Para que eu me aproximasse. Para enxergar melhor.
E… sentir.
O sangue em minhas veias ganha um ritmo novo e perigoso.
Bate em todo canto do meu corpo.
— Porque eu tinha o perdão que você queria. — Tento
adivinhar. Porque preciso dizer alguma coisa. Porque preciso de
alguma coisa para calar meus pensamentos em conflito.
— Isso também — Peter responde.
— Também? O que mais você quer?
Peter pisca devagar.
— Espero que o mesmo que você.
— Você não sabe o que eu quero. — Nem iria gostar de
saber. Eu engulo o pensamento, pedindo ao meu próprio pulso
que se acalme. Meus sentidos me dão mais com o que me
preocupar, quando a sensação da ponta dos dedos e da palma
da mão sobem pelo braço, formigando. — Eu não posso mais
segurar suas memórias.
Minhas palavras saem cheias de ar, sussurrando.
— Então não segure. — O pedido dele é tão simples.
Eu ainda resisto. Mas Peter mantém minha mão em seu
rosto. E a sensação quente na ponta dos meus dedos não pede
mais licença.
Estou tenso para o que virá. Fecho os olhos sem pensar,
como se fosse ajudar a não enxergar. Mas as imagens são
imprimidas no fundo da minha mente. Um sopro frio e arrepiante
vem acompanhando.
Vejo a mim mesmo, através dos olhos dele. O momento
quando entro em seu camarim. Quando me sento à sua frente
na mesa de jantar. Quando calço suas luvas. Quando desço as
escadas depois de acordar. Quando entro na tenda durante sua
apresentação. Quando estou deitado perto da fogueira e quando
apareço na sala da casa da árvore na manhã seguinte.
Imagens de Peter prestando atenção em mim até quando eu
nem imaginava que estava.
A sensação que ele descreveu está lá. Viaja até mim através
do fio das memórias. Um aperto no meio do peito. Um misto
entre ser atingido por um golpe e ser sacudido por dentro. Tenho
a sensação do cheiro de terra molhada, a visão de ramos verdes
se contorcendo, o som do chiado de folhas ao vento. A Terra do
Nunca pode falar com ele e eu impossivelmente consigo
entender sua manifestação abstrata.
As memórias se repetem, correndo em sequência, como um
álbum sendo folheado por mãos ágeis. O som e o cheiro, as
folhas e a terra, o aperto e o conforto: tudo se amplifica até
parecer que eu posso me afogar em memórias sobre mim
mesmo.
— Julian — a voz chama de fora da minha mente, mas tem
sensação de sonho.
Parece que desaprendi como sair disso. No fundo, não quero
me desligar. Mas minha mão é puxada, perdendo o contato. Eu
pisco desnorteado, pousando de volta na vida real. Olho para
baixo, e Peter segura de novo minha mão pairando sobre ele,
como antes de me permitir tocá-lo.
Um lampejo de medo passa por mim; de ter voltado no tempo
e nada disso ter acontecido.
— A Terra do Nunca — Peter interrompe com a voz fraca.
Ainda mais pálido, ainda mais frio. Parece à beira da
consciência. — Ela chama. Ela está tentando falar com você
agora.
Minha respiração está pesada, como se tivesse acabado de
correr.
— Como?
Peter solta meu pulso e levanta a mão até o meu rosto. Me
segura como eu o segurei: os dedos apoiados em minha orelha,
a palma contra a bochecha.
— Se conecta comigo.
Com um puxão gentil, ele leva o meu rosto para baixo. De
encontro ao seu. Tenho um segundo para gravar isso na minha
mente. Seus olhos fechados, a curva de seus cílios, o
movimento de sua garganta engolindo, sua boca procurando.
Sei exatamente o que estamos prestes a fazer e não recuo em
nenhum instante.
Nada que eu já possa ter passado me tornou pronto para um
momento como esse. A mecânica é automática: o encontro e os
lábios, o encaixe e as línguas. Mas tudo sai do controle com a
avalanche de sentimentos que vem com isso. Profundo e
pessoal. É ter a antecipação da experiência física, mas não todo
o preparo emocional que o momento exige.
É difícil sequer pensar em outros caras com quem já fiz isso
quando estou com esse garoto estranhamente singular, que
carrega a luz do sol na pele e guarda folhas de verão em seus
olhos. Nunca foi assim antes e nada se compara.
Me pego surpreso com tanta intenção e vontade em um
gesto. Eu caio sobre os cotovelos de cada lado de seu corpo,
debruçado sobre ele. Peter cruza os braços na minha nuca e me
puxa para si, fraco demais para conseguir se erguer, mas
empenhado em estreitar mais o espaço, em realmente nos
manter ligados. Sua respiração fora do ritmo bate contra o meu
rosto, aquecida. Parece em sincronia com a minha, igualmente
bagunçada.
Fecho as mãos, apertando os dedos contra a palma, evitando
de novo ser deslocado para o passado ao tocar nele. Não quero
sair daqui. Não quero me afastar desse momento. Deixo que
esqueçamos qualquer outro propósito além do sentir. Entregues
em provar da boca um do outro o gosto de velhos sentimentos
sufocados.
A pressão dos lábios é cheia de uma sensação de promessa.
Poderia ser o começo de algo. Eu gostaria que fosse.
Os braços dele escorregam de volta para baixo, perdendo a
força. Eu me afasto apenas o mínimo, de testas coladas,
verificando se está bem. Mas Peter estica o pescoço para cima,
buscando continuar. Ele usa do resto da energia que tem para
resgatar uma das minhas mãos e levar à sua pele, ao seu rosto.
Ele quer tanto que eu o toque e veja. Eu suspiro, lamentando ter
que partir. Mas abro a mão e encontro sua pele com minhas
digitais.
Uma atmosfera elétrica estala ao nosso redor.
Quando duas magias se encontram, elas se reconhecem, se
cumprimentam, se unem e se provocam. Uma espécie de
pólvora com o fogo, eletricidade com água, calor com metal.
Uma força que conduz a outra e a faz se manifestar de um jeito
maior.
A marca em forma de folha em sua face nunca foi apenas
tinta. É realmente uma marca. Uma cicatriz. Algo que não se
lava, se vive com isso. No instante em que a experimento com a
ponta dos dedos, o choque corre por uma corrente entre nós.
Abrimos as bocas e respiramos os ares um do outro. A fagulha
de magia dele se acende, e provoca um fogaréu na minha.
Estou pela memória de Peter antes mesmo de me dar conta
da mudança. E como um livro folheado depressa, a avalanche
desaba sobre mim. Folhas chiam com o vento e contam uma
história apressada.
Um bebê, mas não nascido, e sim, abandonado no circo. Um
bebê que chora enquanto o resto do mundo é surdo; ele engole
terra a cada vez que abre a boca, enterrado vivo sob as raízes
de uma árvore gigante. Ninguém vem salvar, por isso a própria
terra precisa ajudar. A terra que tem uma mente que pensa e um
coração que bate, guardado por um baú que pulsa, enterrado
mais fundo do que o próprio bebê.
Por que uma entidade mágica atenderia ao pedido de uma
criança mimada por juventude eterna? Por que daria suas mãos
a ela para comandar? Por que prometeria magia e cura? Por
que senão por estarem intimamente ligados, quase como o
mesmo ser?
O bebê nasce pela segunda vez, coberto de terra e lodo.
Revivido pela magia enterrada há muito tempo no mesmo lugar
que ele. Carregando uma marca eterna de aliança. A Terra do
Nunca se conectou a ele no momento em que o salvara. Porque
é assim que funciona seu coração enterrado: quem quer que o
tome, tem todo o resto para si – a magia, o domínio, o comando.
E esse coração pulsa através dele, ecoa através de mim.
Temendo ser tomado por outra pessoa. Indica perigo. Vibra um
clamor abstrato de socorro.
Nós partimos o beijo arfando, dois náufragos voltando à
superfície. Pela claraboia do mausoléu penetra uma luz lilás,
azul e rosa. Poderia ser o amanhecer, mas não. Eu olho para
cima e encontro a aurora boreal – a manifestação da linha ley,
fonte de magia de Nova Eldorado. Eu a encaro sem foco, zonzo
pelo que vi, pelo segredo que me foi contado.
Abaixo de mim, Peter sussurra:
— É uma noite para a magia.
E no momento que olho em sua direção, ele desmaia. Não
somente fecha os olhos, mas tomba a cabeça para o lado e cai
inconsciente. Agora sei o que tem de errado.
Eu toco minha própria boca, um reflexo involuntário. Como se
pudesse sentir a impressão persistente dele que ficou em mim.
Gostaria de poder fazer tudo de novo.
Mas talvez tenha sido tarde demais para nós.
Em outra vida, talvez, isso pudesse dar certo.
Nessa, preciso deixá-lo para socorrer a terra que chama, mas
ninguém escuta.
Capítulo 23
Um coração à frente do outro

Tudo começa e tudo termina com o circo.


Tenho isso em mente no momento em que cruzo a entrada
secreta para o acampamento, na fresta escondida no meio do
muro de tapumes.
A atmosfera é quieta, com todos recolhidos em suas carroças.
Os grilos não cantam, a lua se esconde e o vento não sopra.
Todo o verde parece desbotado. Folhas murchas e caídas,
recolhidas em sua própria tristeza. A Terra do Nunca demonstra
como sente a distância e perda de seu eterno garoto.
Eu entro carregando Peter Pan e seu corpo inconsciente.
Checo seu rosto abatido, mas ele não reage à Terra que deveria
curá-lo. Não sei se ele precisa de mais tempo ou se é realmente
tarde demais.
Em todo caso, faço o que tenho que fazer. Passo pelos tocos
da fogueira apagada e bato numa das carroças do lado proibido
do acampamento. Deito o corpo do garoto ao pé dos degraus de
entrada, dou uma última olhada em seu rosto, e me afasto pelas
sombras.
Imagino os Garotos Perdidos saindo e encontrando o corpo
de seu verdadeiro líder. Não quero ver como seus rostos se
parecem nesse momento. Não quero ficar para ser o culpado
disso. Só espero que eles saibam o que fazer melhor do que eu.
Deixo Peter Pan onde sei que estará escondido. Onde estará
protegido. Então meu caminho é solitário até o grande carvalho,
através da passagem subterrânea.
No meio do corredor baixo, tropeço em algo sólido e pesado,
por pouco não caio. É difícil distinguir na penumbra, mas eu me
agacho para ver mais de perto. Então me ergo com susto nos
olhos. Na semiescuridão, enxergo o rosto pálido de Dênis,
pintado de Pio. Desacordado, deixado como uma coisa morta.
Verifico depressa seu pulso, sua respiração. É fraco, mas ainda
está vivo.
Vozes fracas viajam do fundo da passagem. O rosto ergue,
atraído.
Eu não ando mais. Eu corro. Corro esperando o pior.
Alguém trouxe uma lanterna de papel para iluminar o lado de
dentro oco da Árvore-Mãe. O clarão laranja surge no fundo do
túnel.
À beira da entrada, encontro Sininho rendida e ameaçada
com uma lâmina em seu pescoço, empunhada por uma mão de
unhas afiadas. Bravo grita na orelha dela, sacudindo seu corpo
com fúria.
— Onde está o baú?!
— Eu não sei — ela choraminga no meio de um soluço, mas
resgata um tom de garra. — Eu nunca diria, mesmo que
soubesse!
Ele está prestes a gritar de novo e agredi-la com mais
violência, quando piso para o meio do oco do carvalho.
— Eu sei onde está.
Os dois se viram com expressões surpresas. Mas enquanto
Bravo se acende com um sorriso sádico de quem encontrou um
novo brinquedo para torturar, Sininho se desespera, sacudindo a
cabeça e empurrando o braço que a aprisiona.
— Não! Julian, não faça isso! — ela suplica. — Eu nunca
contei essa história, mas o baú é algo muito importante. Se
Bravo o pegar, isso vai machucar o Peter! Vai aprisionar todos
nós!
— Eu sei — eu a corto, omitindo toda a emoção da voz. — Eu
sei de tudo.
Eu vi nas visões durante o beijo. Quem possui e reivindica a
fonte mágica da Terra do Nunca, tem o controle. É amarrado ao
comando.
O sorriso de Bravo se alarga, enquanto Sininho olha sem
palavras para mim. Posso sentir a fé ardente de seu olhar
enfraquecer com uma pontada de dúvida.
Me desculpe, falo em pensamento, mesmo que ela não possa
ouvir.
— Eu sabia que não havia me enganado quando enxerguei
uma parte minimamente inteligente em você, garoto. Embora
meio lento. — Bravo toma de volta a atenção. — Teve de onde
puxar. Do lado materno, é claro. Cristal era esperta quando
queria.
— Você não sabe nada sobre a minha mãe.
— Sei mais do que pensa — ele revela com satisfação. —
Nos juntamos na mesma época ao circo. Bravo, Cristal e
Gancho: éramos o trio de artistas promissores, até que nos
separamos quando seu pai a disputou comigo. Ela seria minha,
se não fosse pelo desgraçado do Gancho.
Eu contorço a boca com nojo e desprezo.
— Eu realmente não quero saber da sua atração pela minha
mãe.
— Pela mulher que Gancho levou de mim, você diz. — O riso
de Bravo é azedo.
— Pela mulher que você afugentou com suas ameaças e
ciúme doentio. Você a preferia morta do que com outro, não é?
— É tudo tão claro agora, juntando tudo que Gancho disse sobre
seu rival no circo, sobre o que perdeu por culpa dele. Tudo que
pensei que era sobre Peter.
Bravo continua achando graça, alargando o sorriso.
— Quando Cristal fugiu do circo grávida, para escapar de
mim… Foi prazeroso aterrorizar Gancho com isso. Ele
permaneceu no circo, mas não deixei que tivesse paz. Foi o que
ele merecia. Assim como a mão dele arrancada, servida ao meu
crocodilo.
Num piscar, eu arranco a última faca enfiada pelo cano do
coturno. Levanto o aço afiado no ar com ódio. Por muito pouco
não arremesso. A mira não é o problema, mas me vejo
hesitando. Porque a lâmina sob controle de Bravo risca o
pescoço de Sininho. Um filete vermelho escorre lento pela
garganta dela. Sininho espreme os olhos e aperta a boca
fechada, suportando a dor e o medo.
— Arremesse — Bravo desafia. — Arremesse e pode dar
adeus a ela.
Minha mira resiste no lugar, trêmula. Tenho que forçar o braço
a descer devagar com um esforço consciente. Bravo ameaça de
novo, exige que eu a largue. Eu abro os dedos roboticamente, e
a faca se debate contra o piso oco de madeira.
— E agora — Bravo continua com o domínio da palavra e da
situação —, você tem um minuto para me mostrar o maldito baú.
Anda!
É difícil pensar em outra saída com a expressão dolorida de
Sininho sob o aperto dele. Eu faço o que tenho que fazer.
Piso sobre a faca no chão, discreto. Então atravesso o oco da
grande árvore até o lado deles devagar, arrastando a perna que
finjo ferida. Mantenho a atenção dele em meu olhar, para que
não repare. Bravo reage arrastando Sininho para trás,
chantageando mais uma porção de ameaças. Eu apenas levanto
as mãos, mostrando que estão livres.
Olhando para eles, me agacho e começo a puxar e quebrar
as tábuas do piso de fundo falso.
O solo abaixo de mim parece vibrar com o batimento do
coração de um gigante. A sensação passa alheia a eles, porque
não sentem a Terra do Nunca como eu. Ela não se comunica
com eles do mesmo jeito. Através de Peter Pan, ela se conectou
comigo. A Terra do Nunca me guiou até ali. Me disse onde
pulsava sua essência mágica. Debaixo da árvore. No meio da
árvore.
Pelo buraco quebrado no meio das tábuas, se revela a terra
escura e úmida. Eu me inclino como se me aproximando de um
animal selvagem, com cautela e cuidado. Me estico e espalmo
com gentileza uma das mãos na terra. Contra o meu tremor,
vibra a pulsação que vem de baixo.
Suplico que me deixe ajudá-la. Não há desejo de tomá-la,
apenas de ajudar. Porque tem um garoto morrendo há poucos
metros daqui que precisa dela. Eu não deixaria ninguém tomá-la
antes de salvar Peter Pan. Antes de tentar consertar toda a
bagunça que fiz.
É difícil entender a linguagem da Terra do Nunca tendo tão
pouco tempo de prática. Mas eu sinto, de alguma forma, que
está lá, esperando por mim. Chamando. Eu cavo com as mãos
nuas feito um cão. A terra se infiltra por baixo das unhas,
umedece a pontas dos dedos. Me faz sentir como se tocasse a
pele de alguém, com sugestões de memórias sussurrando à
beira da minha consciência.
— Mais rápido! — Bravo exige, mas parece tão distante
agora.
Eu vou fundo, muito fundo. Então raspo em alguma coisa
firme. Por baixo da última camada de terra, encontro uma tampa
em relevo.
O baú olha para mim e eu encaro de volta, de joelhos e mãos
sujas.
Atrás de mim faz silêncio, olhos espiam por cima dos meus
ombros, percebendo o que achei.
— Pegue e traga até mim — Bravo diz. — Pegue.
Meus dentes doem com a força que mordo. Pensei que seria
fácil, mas uma redoma de temor me domina. Eu mal toquei no
pequeno baú de madeira e as suas memórias já beliscaram a
superfície da pele, como pedrinhas rolando montanha abaixo
antes do grande desmoronamento.
Essa pequena e modesta caixa mágica é tão antiga, nem
preciso usar minha habilidade para perceber. Só de perto eu
reconheço o risco que traz para mim, se eu segurá-la. De
memórias tão dominadoras me levarem à temida exaustão. De
tomarem o lugar das minhas verdadeiras memórias. De
apagarem tudo o que eu sou. Me desfazerem por completo.
— Eu… eu não posso — digo baixo, encarando minhas
próprias mãos. Nunca quis tanto estar com as luvas de Peter.
— Pegue agora!
A exclamação reverbera por toda a madeira ao redor.
Devagar, olho por cima do ombro. É Sininho que encontro
primeiro. Ela nega com a cabeça energicamente, o queixo
enrugado de choro, purpurina escorrendo pelas bochechas.
Choraminga uma negação fraca, implorando.
Eu me viro de volta e respiro fundo, olhando para o baú
revelado. O medo não vai embora. Mas estou me inclinando
para o buraco mesmo assim, as mãos abertas para agarrar e
erguer o objeto do solo. Tudo o que treinei sobre minha
habilidade, eu coloco em prática. Posso controlar as memórias,
impedir de desabarem sobre mim. Por alguns segundos, mas
consigo. Contanto que eu não segure mais do que isso.
A magia pulsa entre as minhas mãos. Como pode um pedaço
de madeira frágil conter uma massa de poder tão forte assim?
Me levanto e giro, esticando o baú para Bravo com apenas
uma mão. Evito a todo custo o olhar desesperado da garota que
me encara e ainda suplica.
Ele sorri glorioso e se estica para capturar a caixa de
madeira.
É quando eu a solto, deixando que caia, e revelo a faca de
arremesso que trago na mesma mão.
De perto assim, reparo como Bravo tem olhos incomuns, que
espreitam no fundo dos buracos vazios da máscara: olhos
amarelados com pupilas verticais. Eles desviam confusos até o
outro lado, procurando pela faca que deveria estar no chão.
Ao mesmo tempo que golpeio no meio de suas costelas, eu
arranco Sininho de seus braços com um puxão da outra mão.
Empurro o corpo dela para a entrada do túnel. São os exatos
segundos para Bravo reagir. Ele desiste da garota e se agacha
para agarrar o baú que pulsa caído no chão. Arranca a faca
fincada, jogando para longe, e suas garras afiadas se esticam.
Eu me jogo contra ele antes que tome posse. Uso meu peso e
impulso, então caímos rolando numa breve luta pelas tábuas
que rangem.
— Vá, Sininho! — eu arranco o grito do fundo dos pulmões.
— Busque reforço!
— Não! — Bravo vocifera engasgado, com meu antebraço
esmagando sua garganta.
Os braceletes de Sininho se agitam e ela corre pelo túnel,
desaparecendo.
— Você vai morrer aqui. E sozinho! — Bravo rosna abaixo de
mim.
— Eu não ligo, desde que você seja pego. Você vai apodrecer
pagando por tudo o que fez.
Subo uma mão livre e puxo sua máscara pelo nariz comprido,
arrebentando a corda que a amarra no lugar. O faço me encarar
de frente.
O rosto é escamoso ao redor dos olhos de pupilas verticais. A
pele se torna rugosa e esverdeada seguindo o osso da
bochecha. Bravo espuma pelo canto da boca, trancando os
dentes, que são lascas afiadas.

— Não tão bonito, né? — Ele supõe o que penso ao encarar


seu rosto transformado, mas não por maquiagem. — Você me
subestima se acha que comecei ontem, garoto. Eu caço pelo
poder e pela juventude antes mesmo de você nascer. Passei por
dezenas de feitiços e magias que deram errado, como pode ver.
Mas foram testes que me ensinaram a farejar até o caminho
certo. Construí minha história neste circo há anos indo atrás
disso, aprendi meu próprio caminho até o domínio do comando.
E agora, não é um moleque como você que vai me impedir!
Eu o mantenho pressionado contra o chão. Suas palavras
saem sufocadas, como prova disso. Mas me distraio um
segundo pelo seu discurso e não percebo que seu braço
esparramado agarrou algo. Vejo apenas quando a bengala com
cabeça de dragão se eleva. Eu me estico para agarrar antes do
golpe, mas em vão. Bravo é mais rápido e acerta minha cabeça,
empurrado com força.
Cambaleio para o lado. Ele aproveita para me tirar de cima,
reagindo.
Me recupero com urgência, forçando minha visão a se focar.
Bravo rasteja como um animal até o baú tombado no chão. Eu
salto por cima para impedir. Estou mais perto, por isso tomo a
caixa de madeira entre as mãos. Os sussurros das memórias
centenárias começam a crescer, mais fortes. Agora não. Por
favor. Agora não.
Buscando equilíbrio para me erguer, vejo o corpo de Bravo se
levantar mais rápido, crescer sobre mim. A faca de arremesso
caiu longe demais. Não vou ter tempo de contra-atacar.
Em questão de segundos, tenho uma ponta afiada mirada
bem no meio do meu peito. Congelo no lugar. A bengala com
cabeça de dragão tem uma lâmina secreta na ponta. É o truque
que domadores usam para provocar obediência através da dor
nos animais, sem chamar atenção da plateia.
Bravo me encara como se eu fosse um de seus animais.
Desdenha com a boca retorcida.
— Se pensou que valeria à pena morrer por isso, vai morrer
sabendo que estava errado — ele afirma.
A bengala toma distância, segurada pelas duas mãos. A
ponta afiada pende mirada em meu peito. Há um tempo curto
demais para decidir entre proteger o baú ou proteger a mim
mesmo.
Eu ainda não decidi quando a lâmina desce.
As folhas da árvore chiam lá fora, agitadas por uma ventania
forte. Sou capaz de ouvir porque é como se chiassem dentro da
minha cabeça. Falando. Gritando. Obedeço ao que elas me
dizem para fazer.
Envolvo o baú entre os braços, ao mesmo tempo que ele
atravessa na frente de meu peito. Um coração à frente do outro.
Porque eu o protejo, ele me protege.
E quando a ponta afiada desce, acerta a caixa sólida do baú.
Feito um palito de dente, a bengala se parte. O mais fraco
sempre cede. Os olhos amarelos de Bravo se arregalam,
pressentindo algo a mais um segundo antes.
É quando vem a luz.
Uma explosão dela, engolindo o mundo inteiro num clarão,
sem deixar sobrar nada.
Eu sabia como seria tocar em um objeto tão antigo. Mas não
pensei em nada, apenas fiz. Simplesmente escolhi isso. Mesmo
sabendo que poderia entrar em exaustão, mesmo sabendo que
havia um preço por pegar memórias de outras coisas e outras
pessoas; um preço a pagar com as minhas próprias lembranças.
A Terra do Nunca é a criatura mais cheia de histórias e
memórias que já encontrei. E o preço é cobrado na mesma hora.
É como me sentir inteiro e completamente apagado.
Eu estou aqui. Até que não estou mais.
Mas existe algo sobre essa luz.
Capítulo 24
Perdido e encontrado

OITO SEMANAS DEPOIS

Eu não me lembro de como ganhei minha cicatriz no rosto.


Mas quando passo distraído pela vidraça fechada da janela, ela
é o que encaro no meu reflexo. Tem o curioso formato de uma
folha dentada de várias pontas, e me pergunto constantemente
se é só uma coincidência.
Tem um jornal velho em cima do móvel da televisão de tubo.
Eu o puxo para ler mais uma vez, tão logo distraído pela
manchete destaque: O anúncio de um funeral que aconteceu no
circo. Mais um. O lugar está se reconstruindo, pelo o que ouvi
por aí.
Um segundo reflexo surge na vidraça, alguém entrando pela
porta atrás. Eu me viro para encontrar o rapaz de barba rala e
olheiras marcadas, muito gentil por estar me ajudando a me
recuperar do meu acidente, mesmo que eu não o conheça.
Seu sorriso é morno e um pouco retraído. Eu lembro que tem
uma mala no canto da sala, e acho que deveria ajudar a
carregá-la. Não sei.
— Oi, Julian. Sou eu, o Cris. — Ele sempre repete a mesma
coisa quando se aproxima de mim.
Ele espera muito de mim. Dá para ver a expectativa em seu
olhar. Mas eu só sei piscar perdido para ele. Seu nome não tem
muito significado para eu associar uma reação pronta. Ele
percebe, pois seu rosto murcha de decepção.
— Ah, oi! — respondo atrasado e desajeitado.
Ele suspira, parece pensar em dizer uma coisa, mas desiste
olhando para a mala no chão. Eu me agacho para pegá-la pela
alça, para ajudar como acho que devo. Mas o rapaz nega com a
cabeça e me impede, pegando ele mesmo.
— Está tudo bem? — pergunto para o seu rosto rígido e
preocupado.
Ele tenta sorrir de novo, embora menos convincente.
— Eu já te disse antes. Mas você provavelmente esqueceu. E
tudo bem… Tudo bem. Digo de novo. — Uma pausa para um
suspiro cansado. — É hoje que estou de mudança. E estou
levando Ágata. Os pais dela… Eles simplesmente sumiram.
Seria legal se você aceitasse vir também. Você sabe…
Recomeçar em outra cidade.
A menção da garotinha que aparece para que eu conte
histórias de dormir e brinque com ela me desperta coisas boas,
ainda que coisas sem nome definido. Mas a ideia de deixar
Nova Eldorado simplesmente me alarma, como o sinal de algo
fora do lugar.
— Eu não sei… — murmuro sob a expectativa do olhar dele.
Ele solta o ar e os ombros, derrotado.
— Você ainda não confia em mim — ele diz.
— Não! Não é isso. Não é… — eu me perco, tentando
encontrar as palavras.
— Cris — ele completa, achando que é por isso que me
interrompo para pensar e lembrar.
— Eu sei que seu nome é Cris! Não é isso que estou tentando
lembrar. É só que… — Eu não tenho as palavras exatas, porque
eu simplesmente não entendo o que está acontecendo comigo,
e isso é estranho. — É algo sobre esse lugar, algo nessa cidade
onde nasci. Eu não posso deixar. Não ainda. Eu sinto que tenho
negócios a tratar.
— Negócios — ele repete.
— É.
Cris sai pela última vez pela porta levando o resto das malas,
depois que a garotinha pequena se despede emotiva e me deixa
um desenho infantil como presente de adeus. Nele, somos nós
três na versão bonecos de palitinho. Eu sorrio pela forma
cuidadosa que ela teve em desenhar os dreads em meu cabelo
e a cicatriz de folha em meu rosto. Uma grande seta aponta para
o boneco e diz em letras grandes e desajeitadas: JULIAN. Seria
uma boa maneira de lembrar de quem eu sou agora, sem eles
aqui.

◆◆◆

A noite é quente, embora seja outono. Durmo sozinho e


encolhido no canto do sofá, um jornal aberto caído aos meus
pés. Sonho com fragmentos de cores e rostos, nunca inteiros.
Há lábios e olhos. Castanho e verde. Da janela esquecida
aberta, entra o conforto da temperatura que a brisa amena trás.
Eu mergulho sozinho no mar de pedaços desconexos do meu
inconsciente.
Um fraco estalo me acorda. Vivo à borda da consciência,
nunca durmo profundo o suficiente para apagar. Quando abro os
olhos, letárgico, há alguém sentado no peitoril da janela, uma
perna para fora, a outra dobrada para cima.
Levanto depressa, chutando o jornal por reflexo, e nós
encaramos um ao outro. A ânsia gelada no estômago me faz
sentir que deveria reconhecê-lo. Ele tem uma cicatriz no rosto
também, a mesma que a minha. Meu peito bate mais forte em
reação. De repente, estou muito interessado em saber sobre
isso.
Ele sorri e é como se pudesse conquistar o mundo inteiro,
comigo dentro.
— Estive esperando por você — ele diz. — Por se recuperar.
E a ansiedade cresce, pinicando os nervos à flor da pele.
— Esperando? Por mim? — Eu processo suas palavras em
voz alta. — Por quanto tempo?
Ele sacode os ombros e se levanta, cai firme com pés
descalços no chão da sala.
— Quem se importa sobre o tempo? Ele não é nada.
Eu o observo admirado, curioso pela forma como as folhas
presas no suspensório se enroscam ao redor de seu tronco, o
verde se agarrando à pele marrom.
— O que quer dizer com esperar por mim?
Seu sorriso aumenta.
— Significa finalmente buscar você, Julian. Nós temos um
lugar para comandar juntos. Ela chama. Porque está em mim e
também está em você.
Eu retenho um suspiro. Parece incrível.
Olho para ele e quero tanto corresponder ao que espera de
mim. Mas por dentro, existe algo fragmentado em um monte de
partes. Me impede. Me torna insuficiente.
— Me desculpe… Eu sinto que deveria me lembrar. Que é
importante. Mas minha mente… ela está quebrada. Eu tive um
acidente, pelo o que me disseram.
Seu olhar não desvia e suas íris verdes parecem sorrir
também, do próprio jeito, com um brilho só delas na superfície.
— Tudo bem. Eu vim acordar o que há dentro de você, Julian.
Está bem aqui.
Com uma mão, ele segura na divisória da janela, pronto para
pular para fora. Mas o outro braço ele estica em minha direção,
estendendo a própria mão de palma aberta para que eu a
pegue. É um visível convite para me puxar pela janela e nos
levar para longe dali. Juntos.
De novo as palavras me fogem, não sei descrever o que é.
Mas sinto pelos cantos dentro de mim. Sinto que saberia de tudo
se eu apenas… Tocasse a mão estendida.
— Venha comigo… Para a Terra do Nunca — ele sussurra, e
sua voz também tem som de sorriso. Eu tenho a sensação de
escutar mais alguma coisa ao longe, vindo da rua. Sons de
sininhos.
O tempo para. Uma respiração presa antes de um salto
importante.
Quando alcanço sua mão, o ar em minha garganta se liberta.
É como estar no escuro por muito tempo, e só então
encontrar a luz. Ele me devolve o que eu nem sabia que estava
perdido. Agora eu vejo. Eu vejo! E a sensação de ter conseguido
tudo e mais um pouco me inunda.
Um dia, há muito tempo – quando tempo ainda fazia sentido
em ser contado – eu fui criado para ser melhor do que o homem
que veio antes de mim.
Encontrei um garoto e a Terra que o salvou. Mais tarde, ela
me salvou também.
Descobri com eles o que significava ser melhor do que aquele
vindo antes de mim.
E então eu consegui.
Eu finalmente consegui.
Epílogo

No fundo de um quarto, guardado por uma barreira de ramos


vivos e impenetráveis, há um relógio escondido. Os ponteiros
tremulam em espasmos, presos para sempre no mesmo minuto.
Eles contam o tempo que não passa para alguém.
Onde antes havia uma sombra encantada, agora se
encontram duas, que juntas formam uma só – inteira e completa.
Agradecimentos

Minha sincera gratidão fica dedicada a cada pessoa que


participou do processo de nascimento desse livro: todas as
mulheres de ouro que conheci na Boreal e com quem percorri
todo esse caminho (Ani, Becca, Bea, Bia, Elo, Nath, Nanath,
Rafa, Thai, Vivi), que estavam sempre lá nem que fosse pra
bater um papo, rir nas horas vagas e incentivar umas às outras.
Foram todas muito corajosas em aceitar esse desafio de fazer a
Coleção acontecer, e eu tenho muito orgulho de vocês por
perseverar, não desistir e sair com um trabalho incrível no fim
disso.
Também agradeço especialmente aos leitores beta que
toparam investir tempo e energia para conferir o meu trabalho:
Katarina Martins, Jessica Cristina do “Perdi a Página”, Amanda
do canal “Raposisses”, Stefano Volp, Olivia Pilar e Vanessa
Pérola; vocês recuperaram minha esperança sobre meu próprio
livro e tem minha eterna gratidão.
À equipe do Sem Spoiler que, com um incentivo exemplar à
literatura nacional independente e representativa, sempre
ofereceu uma parceria e um apoio essencial.
Aprendi com todos vocês que, apesar de escrever ser
solitário, colocar um livro no mundo nunca é esforço de uma
pessoa só. Me sinto muito sortuda por poder ter contado com
vocês, é algo que nunca vou esquecer! Todos vocês merecem
todo o sucesso do mundo e espero poder retribuir cada ato de
gentileza e companheirismo que vocês me ofereceram.
Convite para Nova Eldorado
Por Lucas Vieira

Nova Eldorado é um reino perdido, e quase isolado, na


América Latina. Com cenário urbano contemporâneo, é
inundada por mistério e magia em cada canto – até nos mais
inesperados. Todo esse encanto é responsável por, às vezes,
nos fazer brilhar os olhos, e outras, nos fazer perceber os
vazios. Oportunamente localizada em uma das Linhas Ley,
abriga moradores e eventos excêntricos. A aurora que a cobre
em noites inesperadas é como um murmúrio, nos fazendo
lembrar que sempre há mudanças batendo em nossa porta.
Nova Eldorado faz parte de um mundo que sempre parece
ser infinito e mesmo em silêncio, nos surpreende com as
histórias que pode contar, os personagens que abriga e os
cenários que cria a cada nova história (ou a cada nova leitura).
É um universo compartilhado que agrupa várias outras
histórias, que às vezes se esbarram entre si, mas que nunca se
confundem. Percorre por fios energéticos e se guiam pelas
estrelas, cada um encontrando as aventuras, os mistérios, as
felicidades e as infelicidades que lhe destinam.
Essa é a Coleção Abraqueerdabra, na qual encontramos
releituras de lendas e contos de fadas, fofos ou medonhos, mas
sempre buscando mostrar que nós, pessoas LGBTQIA+, temos
muitas histórias para contar, imaginar e fantasiar.
Com toda essa mitologia, que bebe da imaginação, revolta e
até conformidade popular, me faz perceber que Umberto Eco
tinha razão: nós, leitories ou autories, somos responsáveis pela
criação de infinitos mundos possíveis.
A partir do momento em que relemos todas essas lendas e
contos de fadas que guardamos em nossa memória (com
sentimento de nostalgia ou não), nós imaginamos as
possibilidades, divergências e alternativas que essa história tem.
Essas ramificações são nossas vontades que surgem da nossa
criatividade, mas também do nosso ler crítico. Quem nunca
olhou para todas essas narrativas (seja as novas ou revisitando
àquelas que fizeram parte de nossa infância) e se questionou:
“Por que não estamos aqui?” e logo em seguida: “Como seria se
estivéssemos aqui?”
A Coleção Abraqueerdabra é a convergência desses
universos construídos coletivamente. E nada mais justo do que
convidar você a conhecer esse mundo e incentivar que crie.
Imagine. Conte. Explore.
Durante anos de leituras, fanfics e escritas, eu gosto de
pensar que encontrei na ficção especulativa não apenas a
oportunidade de explorar os vários “e se”, mas de confrontar o
“como é”. Nova Eldorado nos mostra esses dois lados, e por
isso se torna tão especial. Não seria justo não o compartilhar.
Visite a cidade e dê vida às suas experiências: ao que você
ouviu, ao que pensou ter ouvido e principalmente ao que tanto
desejou ouvir. Escreva e expanda tudo isso que Nova Eldorado
e a Coleção Abraqueerdabra significa. Explore novos sentidos,
novos formatos e novas mídias: como enxergamos esse mundo,
como ouvimos, como nos sintonizamos, como imaginamos,
como ilustramos, como mergulhamos… Estamos abrindo os
portões, descendo as pontes e lhe convidando. Sim! É um
convite, e o mais sincero deles.
Você está convidado a manter Nova Eldorado viva e
acrescentar vida a cada pedacinho dessa cidade que ainda não
foi contada.
Outros livros nesse universo
12 chamadas perdidas
Drama e Slice-of-life fantasy

Ano 15, 5ª geração


10 anos antes de Quem matou capitão Gancho?

Eliseu encontra o amor no baile de dia das bruxas, mas


precisa voltar depressa para casa para proteger os irmãos e a
mãe dos perigos familiares, e acaba deixando um pedaço da
fantasia para trás.
Armadilha para Lobos
Fantasia colegial

Ano 15, 5ª geração


10 anos antes de Quem matou capitão Gancho?

O romance entre uma nerd e uma badgirl é ameaçado por


uma antiga história de perigo e tensão, ligada a raízes indígenas
e às escolhas feitas durante a vida envolvendo gangues.
O jovem rei
Fantasia urbana

Ano 20, 5ª geração


5 anos antes de Quem matou capitão Gancho?

Arthur encontra um artefato capaz não só de recuperar a


magia de Nova Eldorado, mas de dar o direito de governar a
quem retirá-la. Sem saber disso, ele vende o objeto, e agora terá
que contar com uma aliança improvável para recuperá-lo.
O príncipe anômalo
Fantasia urbana

Ano 21, 5ª geração


2 anos antes de Quem matou capitão Gancho?

Na trama, o príncipe Nicòllo é transformado pouco a pouco


em um sapo após atrair forças sombrias para Nova Eldorado.
Agora, ele e o cozinheiro Tulio tentam evitar que o pior aconteça
se aventurando no coração do pântano.
Gênio roubado
Sci-fi e fantasia

Ano 22, 5ª geração


3 anos antes de Quem matou capitão Gancho?

Allan sonha em ser jogador profissional de videogames e


conquistar a filha do dono da maior empresa de jogos de Nova
Eldorado. Quando a chance se aproxima, ele se envolve numa
confusão de roubo, mas é salvo por uma criatura
biotecnomágica.
Alice 190
Mistério

Ano 25, 5ª geração


No mesmo ano de Quem matou capitão Gancho?

Alice muda o rumo até então tranquilo de sua vida ao seguir


um estranho papel em formato de coelho, e assim vai parar no
estranho buraco de entrada de uma rave subterrânea na parte
abandonada da cidade. O problema, agora, é voltar para casa.
Sobre a Autora
Anna Anchieta é de 1996, mineira e graduada pela UFMG em
enfermagem. Escreve histórias para o público jovem adulto nos
gêneros de ação, mistério e fantasia, tendo o protagonismo
LGBT+ como seu elemento essencial. Escritora de gaveta desde
2013, começou a compartilhar histórias no Wattpad em 2018 e
ganhou no mesmo ano a premiação promovida pela plataforma,
o Watty Awards, na categoria "Criadores de Mudanças" com o
seu segundo romance, "Colisão", e em 2020 ganhou outro Watty
Awards, agora na categoria “Fantasia”. Atualmente, soma mais
de 100 mil leituras online.
Tem como referência autoras contemporâneas como C.S. Pacat
e Maggie Stiefvater. É fã de Oscar Wilde, Clube da Luta e
mitologia grega. Quando não está escrevendo, pode ser
encontrada procrastinando no pinterest, enchendo suas roupas
com pelos de seus dois gatos e devorando doces veganos.

Twitter: @annanchieta
Sobre a Associação Boreal

A Associação Brasileira de Autores de Ficção Especulativa


LGBT+ promove a união de autores, editoras e público em prol
da representatividade na literatura de ficção especulativa
(fantasia, terror, thriller, ficção científica e outros).
Em 2019, nasceu a partir de uma frustração pelo escasso
protagonismo LGBT+ em obras ficcionais que vão além de
tragédias e estereótipos de minorias.
Através da criação de vínculos, promoção de antologias e
coleções, divulgações de obras e associados, parcerias com
editoras e canais de comunicação, a Associação Boreal busca
incentivar o protagonismo positivo de LGBT+ e outras minorias
em diferentes gêneros da literatura nacional.
A Associação ainda visa trazer mais pontes dentro do mercado
editorial e entre diferentes autores (de iniciantes a veteranos, de
independentes a consagrados) com futuros eventos de
aprendizagem, palestras, trocas de experiências, premiações e
ainda mais parcerias.

Quer nos apoiar ou fazer parte da Associação?


Visite nosso site!
www.aboreal.org

E siga a gente nas redes sociais!


Twitter, Instagram e Medium: @aborealbr

Você também pode gostar