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Matt Oito Dedos

Em Wynlla, “magia” e “poder” são quase sinônimos. Se isso não estivesse claro quando Karias
mapeou uma região “assombrada” e suas zonas de magia selvagem para aprender seus
segredos e tramou para trazer todos os maiores usuários de magia para seu território, o
Conselho de Wynlla apagou qualquer sombra de dúvidas quando fez dos magos a própria
realeza local.

Sophand, capital de Wynlla, é um reflexo do que foi nos tempos de Karias. Suas torres de
pedra e magia abrigando as habitações luxuosas dos magos, onde a podridão das ruas é
disfarçada pelo cheiro de incenso e magia. Nas ruas lá embaixo, plebeus, os “mundanos”,
trabalham duro por sustento entre prédios antigos e decrépitos, frequentemente deixados
sem cuidado, cobertos de mato e musgo. Mundano. Como eu odeio essa palavra.

Muitos dos que não são “agraciados” com magia acabam servindo como uma casta servil, os
mais sortudos aprendem ofícios para agradar a nobreza do reino, são encadernadores de
livros, boticários, fabricantes de incenso; os mais azarados lavam latrinas e trabalham na terra
até seus ossos não aguentarem mais. Outros se tornam soldados, dando seu sangue e ossos
pela defesa de Wynlla e do Reinado. O meu grupo é diferente. Os desajustados, doentes,
pobres demais para serem aceitos como aprendizes. Drogados, bandidos e prostitutas.

Meu pai é um boticário drogado e falido, ele foi pego fraudando os livros-caixa de um Mago
que contrabandeava achbuld para a nobreza de Wynlla. Os magos nunca esquecem. Sem ter
como sustentar a família, ele próprio se rendeu ao achbuld. Você pode encontrá-lo caído nas
vielas atrás de uma taverna qualquer ou pedindo moedas para trocar por droga em alguma das
praças de Sophand. Minha mãe lavava roupas no rio para outros mundanos, afinal os Magos
usam feitiços até para se livrar das manchas de merda nos lençóis. Éramos sete bocas para
alimentar. Eu, mamãe e cinco irmãs menores. Quando a melancolia afetava minha mãe e ela
chorava na cama por semanas seguidas, sem poder se levantar, a minha única saída era buscar
nosso sustento nas ruas. Ninguém me daria um emprego de boticário por não ter sido treinado
de maneira formal, embora tenha aprendido algumas coisas com o drogado de quem lhe falei.
É de se espantar que eu tive de aprender a roubar logo cedo? A primeira vez que roubei foi um
pedaço de pão para minha irmã mais nova. A segunda foi uma bolsa de moedas. Na terceira,
bem quem é que conseguiria lembrar?

Um roubo que eu lembro foi a Adaga. Uma peça forjada de metal negro, sem nenhum adorno
interessante. Passaria desapercebida para a maioria das pessoas. Mas aquilo falou dentro da
minha cabeça. Eu sei que posso soar como um louco, mas foi isso mesmo que aconteceu. Eu
segui um arcanista pelas ruelas do Beco do Torto, uma das piores vizinhanças em Sophand.
Tinha recebido uma dica que um dos “Senhores do Destino” estava trazendo algum item
mágico para vender no mercado negro da cidade. Algo que uma das minhas irmãs entreouviu
enquanto servia bebidas e dançava para arcanistas em uma casa de conforto. Eu podia sentir o
cheiro de ouro naquele merda, pronto para ser roubado. Entrei atrás dele em uma catacumba
qualquer da cidade. E então eu vi a Adaga. E a voz na minha mente. Pedindo que eu matasse
aquele cara e levasse ela embora, dizendo que ela queria ser minha. Quando eu vi, estávamos
rolando no chão e ele cortou o quarto e o quinto dedo da minha mão esquerda. Soquei a cara
dele até ele parar de se mexer e fugi. Eu devia ter garantido que ele estava morto.

As semanas seguintes foram as piores. Você sabe como é tentar fugir de um arcanista em uma
cidade repleta deles? Aqueles merdas colocavam magias de alarme em tudo. Eu passei uma
semana escondido em uma seção do esgoto, mergulhado em sujeira, depois que eles bateram
na casa da minha mãe. Eu não posso reclamar, ela nunca me entregou, mas eu também não
podia deixar ela e as meninas se ferrarem por minha causa. Então, eu sei que não posso mais
voltar para elas. Depois da semana no esgoto, eu tive de voltar para as ruas para roubar um
pouco de comida, mas a guarda da cidade já estava esperando por mim. Foi aí que o Donovan
apareceu. Se não fosse ele, eu estaria sendo submetido a alguma merda de experimento
mágico nos calabouços de Wynlla. Ele me contrabandeou para fora da cidade, escondido
dentro de um sarcófago e abraçado numa múmia. A energia mágica daquilo era tão forte que
deve ter confundido as magias de detecção da guarda.

Foi só um mês depois que eu percebi o que a Adaga era. A voz ainda sussurra na minha cabeça
às vezes, mas agora quando ela fala eu consigo enxergar as linhas da realidade e sei o que eu
preciso fazer para mudar ela. Não é trágico? Eu odiava tanto arcanistas que me tornei um
deles.

A única coisa que eu sei é que vou roubar de volta a vida que a minha mãe e as minhas irmãs
merecem ter!

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