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A erosão de Eros

Marcela Antelo

Psicanalista, AME, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psi-


canálise

Freud afirmou que uma degradação geral[1] poderia afetar a vida amorosa dos homens e con-
struiu uma teoria de tal afeição. Talvez por causa dela, Marguerite Duras aconselhava ser preciso
amar muito, mas muito, muito, aos homens, porque sem isso não seria possível suportá-los[2].
Há também como nomear a degradação da vida amorosa feminina: devastação. Há também
uma teoria dessa condição. Um “mais de substância”[3] demandado ilimitadamente ao Outro
do amor, com fervor, não é menos insuportável.

O inconsciente trabalha para o gozo do corpo e para o gozo da palavra, estabelecendo o mal-en-
tendido entre os sexos. O amor suspende, como uma gota de orvalho, o mal-entendido, nosso
hashtag: #NHRS, não há relação sexual – evidência da nossa época, como disse Miller em Co-
mandatuba –, que supre a falha, suspiora com o Um, mas também vacila e cai.

Mais, ainda, com o ruído e furor das pulsões como trilha sonora, algo do real do encontro se es-
creve, insiste, às vezes. O amor é alguma coisa que acontece, os poetas dizem, no coração. Out-
ros poetas o generalizam ao corpo todo, nós os seguimos. Lacan elabora no Seminário 20 uma
teoria da substância gozante. Entre o Um do gozo e o Outro do amor, seguiremos o movimento
dessa construção. “A questão do amor conhece um movimento particular a partir do Seminário
Mais, ainda, porque o amor pode mediar entre os um-totalmente-sós desta época”[4].

Mediação, suplência, ficção, arranjo, gambiarra… Interessou-nos estudar neste ano, na formação
permanente da Seção Bahia, o despedaçamento do Outro do amor que ocupara Lacan no Sem-
inário 20, onde propunha: “O Outro deve […] ser novamente martelado, espedaçado, para que
tome seu pleno sentido, sua ressonância completa”[5].
Lacan ocupou-se de dar voltas ao redor dos modos de falhar a relação sexual. “Isso rateia. É algo
objetivo”[6]. Também disse que o verdadeiro tema desse ano era romper o caminho da elabo-
ração do não-todo. Acrescenta que se a relação sexual não existe, desde algum ponto, isso pode
se esclarecer justamente pelo lado das damas. A dama que não existe. Se ela tomar existência,
será o fim do mundo[7], escreveu Ana Lucia Lutterbach em texto inesquecível. Quanto ao cava-
leiro, sabemos que está em extinção, engolido pela erótica do silêncio.

Do amor e da erosão

Em uma conferência magistral de Céline Scemama na Cinemateca Francesa, encontramos o sig-


nificante-chave da Jornada deste ano. Ela aborda a erosão de Eros em Antonioni.

Desde Crônicas de um amor, os homens não sabem mais o que fazer face às mulheres. Alguma
coisa desapareceu, alguma coisa está perdida, há um mal-estar. Os homens são eróticos porque
eles são “doentes de Eros”, nos diz Antonioni. As mulheres os olham apenadas, até com piedade. A
erosão de Eros os conduz a uma busca erótica nova. Os corpos se eclipsam, somem, desaparecem
na bruma, mas as coisas se animam de uma intensidade nova e carregam uma carga erótica e
existencial insólita, inquietante talvez, mas também vertiginosa, eufórica, desesperada[8].

O amor como um terreno altamente erodível. A erosão é uma espécie de degradação, dizem os
geólogos. A erosão ‘perdura à perda pura’ – digamos sequestrando essa pérola de Lacan –, fica ac-
ontecendo, um ongoing, um processo inacabado, infinito. Existem agentes erosivos e velocidades
de erosão. Seja com respingos ou voçorocas, a coisa erode. Se algo se cultiva, se algo se planta, a
erosão se lentifica.

Muitos anos atrás, François Regnault o disse de modo singelo: “o amor é anormal: que deixe doente
é normal”[9]. A fantástica figuração grega de ultrapassar o corpo com uma flecha, uma flecha que
fura, ou seja, pode sair do outro lado do buraco, ao infinito, demonstra que o amor fura o corpo
irremediavelmente. O amor facilita nos reconhecermos uns aos outros tóricos, furados. Não pela
via da fragmentação fetichista, partes de um todo, senão pela via do não-todo lacaniano.

Nas primeiras quatorze páginas do Seminário 20 aparecem sete enunciações, devemos chamá-
las assim, fundamentais, sobre o amor. Amor em corpo, se escuta em Encore, e se não é um tema
frívolo nesse momento de ruído e furor, de sangue e dor, é porque em psicanálise não falamos de
amor sem falar de ódio.

Ajustamos os ponteiros com a hora atual seguindo nossa política que é a do sintoma, colhendo
impasses e mal-entendidos. “O gozo se produz sempre no corpo de Um, mas através do corpo do
Outro”[10]. Como Christiane Alberti, novíssima presidente da AMP, disse na abertura do Enapol, “não
são as coordenadas atuais do laço social as que lançam luz sobre o novo no amor, são os impasses,
os mal-entendidos, os sintomas atuais do amor que ilustram nossa civilização como aquela de A
mulher que não existe”[11].

Freud não gostava da noção de mundo e tinha críticas sérias sobre a ideia de “visão de mundo”. Em
“Inibição, sintoma e angústia”[12], ele diz que as visões de mundo envelhecem rapidamente. Mas
também diz que nosso trabalho miúdo, estreito e míope exige novas edições dos que pensam o
mundo. Christiane Alberti falou de acompanhar as mutações. Fabián Fajnwaks trouxe uma mala de
referências de sociólogos e filósofos na última Jornada da Bahia em sua conferência “O discurso cap-
italista e o impossível. Recolheu o significante Unloving na socióloga Eva Illouz, onde lê a obsolescên-
cia programada e a demanda de amor prevenida dos relacionamentos amorosos contemporâneos.

O rechaço em iniciar um relacionamento amoroso (os não-sexo, anoréxicos do amor), a passagem


metonímica de um relacionamento a outro, […] os coachs ou conselheiros, sexólogos: hoje existe
todo um mercado construído em torno do amor[13].

Nossa erosão do amor não se confunde com a agonia de Eros lida por Byung-Chul Han, que vê
aniquilada toda possibilidade de erotismo sob a alquimia sinistra de consumo e narcisismo do
discurso capitalista. Interessa-nos sua leitura da erosão da alteridade do Outro, de mãos dadas
com a “narcisificação do si-mesmo”[14]. O elogio do amor de Alain Badiou, a evitação do amor de
Stanley Cavell, a liquidez de Zygmunt Bauman, fontes de leitura do que muta. A interrogação de
Tamara Tenembaum também nos afeta: “Não sei como se navega a contradição entre o desejo de
novidade e calor humano”[15].

Se o amor nos defende do gozo feminino (Philippe Hellebois, ainda inédito), se o amor faz suplên-
cia, estamos mais desprotegidos quando ele erosiona no sentido do desgaste? Bertrand Russell
percebeu em um instante, andando em bicicleta, que não amava mais a sua mulher. A ex-mulher
de Philip Roth concluiu que a erosão tinha acabado com a história deles.

A erosão que nos interessa é a escrita da letra de gozo no corpo. Miller fez da distância entre a fala
e a escrita o lugar onde a psicanálise opera[16]. Das palavras de amor ao que do amor se escreve é
o que nos interessa explorar.

Voltando a Lacan do ponto de partida de Fajnwaks, se o capitalismo “[…] deixa de lado o que
chamaremos simplesmente de coisas do amor”, a função do amor na psicanálise caminha pelo
avesso do discurso sem avesso. O amor contingente abre “um espaço para Outra coisa que ra-
cha, fissura, escande o gozo dando lugar ao sujeito ali onde esse circuito o foraclui”[17].
O corpo afetado pelo gozo feminino percorre descalço a topologia do furo. Cosmografia do furo
chama a obra da qual faz parte o cartaz da Jornada, imagem cedida gentilmente por David Ath-
mejd. O artista vem primeiro e seu significante nos relembra que o gozo como tal passa pela
escrita, como disse Éric Laurent. A grafia do furo de David traz a mão deixando traço no muro, a
mão do gozo no lençol e o que quisermos imaginar, seja qual for a forma que lhe dermos, é uma
escrita. Por outro lado, o amor é assunto de mãos: lembremos a mão que se adianta para pegar
o fruto quando maduro, do Seminário 8, A transferência.

Se a relação sexual não se escreve, ocasionalmente, o amor pode se escrever. Pode se ler. A es-
crita é ravinement, erosão, diz Lacan, apresenta-se no real. Erosão é pegada. O amor e a dor não
resistem à argila, nos deformam.

Caminhemos.

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[1] FREUD, Sigmund. Sobre a mais geral degradação da vida amorosa. Contribuições para a psicologia da vida amorosa II. (1912) In:
FREUD, Sigmund. Amor, sexualidade, feminilidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 137-153. (Obras Incompletas de Sig-
mund Freud) “Creio, por mais estranho que possa soar, que devemos considerar a possibilidade de que alguma coisa na natureza da
própria pulsão sexual não seja favorável à realização da plena satisfação” (p. 149).
[2] DURAS, Marguerite. A vida material. (1987) Rio de Janeiro: Globo, 1989.
[3] LACAN, Jacques. O aturdito. In: LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 465.
[4] MILLER, Jacques-Alain. Conferencias porteñas. Buenos Aires: Paidós, 2010.
[5] LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 54.
[6] Ibidem, p. 79.
[7] LUTTERBACH, Ana Lucia. A mulher não existe. Publicação eletrônica – XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Disponível
em: https://www.encontrobrasileiro2020.com.br/a-mulher-nao-existe/
[8] SCEMAMA, Céline. Antonioni, ou a erosão de Eros. (Inédito) Vídeo disponível em: https://www.canal-u.tv/chaines/cine-
matheque-francaise/antonioni-ou-l-erosion-d-eros-conference-de-celine-scemama
[9] LACAN, Jacques. Lituraterra. In: LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 22.
[10] MILLER, Jacques-Alain. El partenaire-sintoma. Buenos Aires: Paidós, 2008. p. 411.
[11] ALBERTI, Christiane. Amor em tempos de “A mulher não existe”. Publicação eletrônica – X Enapol. Disponível em: https://www.
grandesassisesamp2022.com/pt-br/lamour-au-temps-de-la-femme-nexiste-pas/.
[12] […] não sou de modo algum parcial quanto à construção de Weltanschauungen. Tais atividades podem ser deixadas aos filóso-
fos, que confessadamente acham impossível empreender sua viagem pela vida sem um Baedeker dessa espécie para proporcio-
nar-lhes informações sobre todos os assuntos. Aceitemos humildemente o desprezo com que nos olham, sobranceiros, do ponto
de observação de suas necessidades superiores. Mas visto que nós não podemos também abrir mão de nosso orgulho narcísico,
ficaremos reconfortados com o pensamento de que tais ‘Manuais para a Vida’ ficam logo desatualizados, de que é precisamente
nosso trabalho míope, tacanho e insignificante que os obriga a aparecer em novas edições. (FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e
angústia. In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, XX. Rio de Janeiro:
Imago Editora Ltda, 1976. p.117)
[13] FAJNWAKS, Fabián. O discurso capitalista e o impossível. Publicação eletrônica – XXV Jornada EBP-Bahia, 2021. Disponível em:
https://ebpbahia.com.br/jornadas/2022/o-discurso-capitalista-e-o-impossivel/.
[14] HAN, Byung-Chul. Agonia do Eros. Petrópolis: Vozes, 2017. p. 6.
[15] TENEMBAUM, Tamara. El fin del amor. Amar y coger en el siglo XXI. Buenos Aires: Ariel, 2019.
[16] MILLER, Jacques-Alain. Ler um sintoma. Lacan XXI, Revista FAPOL online, v. 1, abr. 2016. Trad. Teresinha N. Meirelles do Prado.
Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/2016/04/16/ler-um-sintoma/?lang=pt-br.
[17] FAJNWAKS, 2021, op. cit.

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