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Resumo
O objetivo deste artigo situa-se na análise das formas como o funk carioca e a indústria
cultural se têm entrecruzado nos últimos anos. A partir de um breve panorama
histórico do movimento funk, passando pelo seu surgimento nos guetos
estadunidenses e pelo processo de sua ressignificação pela juventude suburbana
carioca, escolhemos abordar as relações entre o funk e a indústria cultural. São
observados os limites impostos por essa indústria (exemplificados pelas músicas que
devem ter as suas letras adaptadas para que possam ser veiculadas nas emissoras de
rádios e nos programas de TV) e as estratégias de resistência desenvolvidas pelos
funkeiros a estas e outras imposições sociais (verificáveis com a criação da APAfunk –
Associação dos Profissionais e Amigos do Funk – e com a inscrição do discurso
feminino a partir das músicas da cantora Valesca Popozuda).
Abstract
This article analyzes the relationship between Rio de Janeiro's funk music and culture
industry. In a brief historical overview, it approaches the appearance of this musical
genre in the United States' ghettos and the transformations that emerged from its
contact with ‘carioca’ youth in the city outskirts. Also, in the article we discuss the
restraints imposed by culture industry to funk music development (which can be
traced in modified lyrics that are a precondition to appearing in mainstream TV shows
and radio stations) and the resistance strategies created by many funk singers (such as
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the APAFUNK - Funk Workers and Friends Association - and the feminist discourse
within Valesca Popozuda's songs).
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1. Os caminhos do funk
O antropólogo Hermano Vianna situa as raízes históricas do funk no cenário social dos
Estados Unidos da América, entre as décadas de 1930 e 1940, quando este país foi
marcado por uma forte segregação racial (Vianna, 1997, p. 44). O movimento
migratório interno dos negros do sul – onde essa segregação foi mais intensa devido
às heranças históricas do período escravocrata – para o norte do país – onde se
acreditava haver maiores oportunidades de ascensão social – foi o contexto em que
músicos negros acrescentaram guitarras elétricas ao blues (música rural e negra). Em
finais da década de 1960, uma vertente do soul (que já era conhecida como black music
e que também ficou conhecida como funk), estourou na voz do cantor James Brown.
Outros nomes, como Marvin Gaye, Aretha Franklin e Sam Cooke, também foram
importantes para a difusão do ritmo. A partir da influência da disco music, estilos
musicais híbridos passaram a fazer parte do cenário musical norte-americano, como o
disco-funk, que combinava os metais característicos do soul a efeitos sonoros robóticos
e aos sons de teclado carregados nos graves (Essinger, 2005, p. 10-11) 1.
Nos anos 1970, a música eletrónica fez com que nos bairros pobres de Nova Iorque
(Bronx e Harlem, principalmente) surgisse outra tendência estética, que combinava,
inclusive, elementos da cultura latino-americana: o hip hop (em que os DJ's 2 Afrika
Bambaataa e Grandmaster Flash se destacaram como pioneiros na criação de efeitos
sonoros). Foi nesse período que surgiram os MC’s 3 , devido à chegada de técnicas
utilizadas por jamaicanos na produção de suas músicas em Nova Iorque (Vianna, 1997,
p. 19-20). No final dos anos 1980, com o surgimento de novos aparelhos eletrónicos, as
frequências graves do rap de Nova Iorque foram reforçadas e combinadas a novos
efeitos sonoros mais melódicos, na Flórida, onde surgiram outras duas tendências
derivadas: o miami bass e o freestyle, que se destacavam pelo conteúdo fortemente
sensual das suas letras.
No Brasil, a história do funk teve início na década de 1970, quando começaram a ser
promovidos bailes funk aos domingos, no Canecão – Zona Sul da cidade do Rio de
Janeiro. Os bailes da pesada tinham um público estimado em cinco mil pessoas, que
vinham das mais diversas áreas da cidade e eram comandados pelos DJ's Big Boy e
Ademir Lemos. Os bailes chegaram ao fim quando a direção do Canecão teve a
oportunidade de fazer shows com grandes nomes da Música Popular Brasileira (MPB)
1 Estas e outras referências musicais chegavam ao público brasileiro principalmente por meio de programas de rádio,
mas também por meio de um circuito semiformal de venda de discos estrangeiros.
2 Abreviatura da expressão Disc Jockey, criada para definir a tarefa de animar festas, por meio da troca de discos.
3 Masters of Cerimony, ou, na tradução literal, Mestre de Cerimónia, expressão usada para se referir aos cantores de
funk, hip hop ou drum ‘n’bass.
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aos domingos e, desde então, os bailes passaram a ser realizados nos subúrbios, cada
domingo num bairro diferente (Vianna, 1997, p. 24). Entretanto, conforme a pesquisa
de Sílvio Essinger demonstra (Essinger, 2005, p. 23-27), havia outras iniciativas sendo
delineadas nos subúrbios da cidade como a criação das equipes de som Soul Grand
Prix4 , Black Power, Dynamic Soul, Uma Mente Numa Boa, Célula Negra, além da
Furacão 2000 e da Cashbox (criadas em outro contexto), que dominaram a cena dos
bailes funk nos anos 1980 (Medeiros, 2006, p. 14-15). Os primeiros discos de funk
inteiramente produzidos no Brasil foram Funk Brasil (1989) e Funk Brasil 2 (1990), que
traziam as melôs 5 cantadas nos bailes – ambos produzidos por DJ Marlboro,
empresário notável na indústria fonográfica do funk carioca. Consolidava-se, então,
uma identidade sonora característica do movimento funk que compunha um tipo de
comportamento comum a parte expressiva da juventude carioca.
4 A partir de meados da década de 1970, a Soul Grand Prix produzia bailes todos os dias da semana e chegou a receber
o Disco de Ouro por ter alcançado a marca de venda de 100.000 cópias do seu primeiro LP.
5 As melôs eram versões criadas pelo público nos bailes para as músicas cantadas originalmente em inglês. Um exemplo
é a música You talk too much, do grupo estadunidense RUN-DMC que ficou conhecida como Melô do Tomate, porque os
frequentadores dos bailes cantavam taca tomate durante o refrão – numa tentativa de aproximar a sonoridade da língua
portuguesa.
6 Ao longo da década de 1990, o funk passou a ser, ao mesmo tempo, demonizado e aclamado pelos media. Adriana
Carvalho Lopes mostra que, ao fim desta década, ele passou a ser também consumido pela juventude de classe média
e a ter grande espaço na Zona Sul da cidade (Lopes, 2011, p. 48).
7 Segundo Herschmann, a palavra arrastão, amplamente utilizada nos jornais entre 1992/1993, significava
“emblematicamente um tipo de ‘tumulto’, ‘saque/pilhagem’ promovido por jovens pobres”. Entretanto, “este
fenômeno rapidamente passou também a ser utilizado para designar qualquer tipo de ação coletiva mais radical e/ou
violenta de qualquer grupo oriundo dos segmentos populares do espaço urbano” (Herschmann, 2005, p. 29-30).
8 Os bailes de corredor estiveram presentes na cena funk no Rio de Janeiro no início da década de 1990. Consistiam em
bailes onde as rivalidades entre grupos de diferentes favelas eram claramente expressas: dividia-se o local entre o Lado
A e o Lado B, formando-se, assim, um corredor no meio do clube. Em determinado momento, já no auge do baile, era
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A partir destes acontecimentos, o funk passou a ser tratado pelos grandes media9 como
caso de polícia e, daí para a frente, passou a transitar entre sua condenação e defesa na
legislação do Estado e da cidade do Rio de Janeiro10. A criminalização sofrida pelo
ritmo na década de 1990 resultou na interdição de inúmeros bailes, sob a acusação de
consumo de substâncias ilícitas, associação ao crime organizado e prostituição de
menores (Lopes, 2011, p. 49-65). Ainda assim, muitos bailes continuaram sendo
promovidos em locais menos vigiados (como os espaços improvisados em favelas) e
os programas de rádio dedicados ao funk continuaram fazendo sucesso, o que
evidencia que o ritmo permaneceu se reelaborando, mesmo nos momentos de maiores
dificuldades.
Já nos anos 2000, o funk passou por um processo de transformação estética que
contribuiu para sua maior aceitação social e para que passasse a ocupar espaços
anteriormente inimagináveis, como trilhas sonoras de novelas. A partir de 2009, o funk
carioca passou a ser considerado como um dos patrimónios culturais do Rio de
Janeiro, através da Lei 5543/09. Atualmente, o ritmo ainda é estigmatizado, mas já é
reconhecido internacionalmente como uma das manifestações culturais cariocas mais
vibrantes.
Evidentemente, essa relação com a indústria foi (e continua sendo) contaminada por
contradições, já que participar nos seus canais significa, também, aceitar as relações de
produção/difusão artística subjacentes à sua estrutura. Com isso, pretende-se afirmar
permitido o embate físico entre os grupos. Muitos funkeiros saíam feridos e mortes começaram a ser relatadas,
sobretudo na saída desses bailes. Para aprofundamento no assunto, ver Micael Herschmann (2005).
9 Sobre isso ver também o trabalho de Adriana Carvalho Lopes (2011).
10 Leis com sentidos e propósitos distintos foram criadas no estado do Rio de Janeiro, tanto numa tentativa de coibir,
quanto com o objetivo de defender o funk carioca como manifestação cultural. Sobre o assunto, ver Carlos Bruce Batista
(2013).
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que, embora o funk carioca – como uma manifestação artística subalterna – se choque
contra limites (estéticos e materiais) impostos pela sua pertença às estruturas da
indústria, o ritmo vem proporcionando importantes estratégias de resistência cultural
para seus criadores e apreciadores. Por isso, analisar o funk sob essa ótica exige a
compreensão da lógica de funcionamento da indústria cultural, para que seja possível
identificar seus limites e suas brechas, como é o propósito desse artigo.
No caso do funk, esses limites se manifestam de diversas formas. É muito comum, por
exemplo, que algumas músicas produzidas possuam duas versões: uma versão
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De sainha
Na primeira tu já cansa
11 São as músicas conhecidas como funk proibidão que tratam com vocabulário explícito (com menos mediações) temas
que giram em torno do erotismo, da sexualidade, da violência causada pela guerra às drogas nas favelas, da
incorporação da identidade transgressora dos comerciantes varejistas de drogas ou ainda, das disputas territoriais,
para elucidar alguns exemplos. Estas versões não circulam nas rádios e nos programas de TV no seu estado original,
mas de forma mais mediada, com um tratamento estético que inclui a alteração das letras. Ressalve-se que somente
fazem parte dos bailes que acontecem nas favelas ou mesmo em festas particulares.
12 São bailes que acontecem fora das favelas (geralmente em boates ou casas de show) e que atraem, sobretudo, o
público da classe média.
13 A performance do grupo pode ser conferida em https://www.youtube.com/watch?=333oFpbUAdw. (último acesso
em 16.06.2015).
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Esta é a versão que toca nos programas de rádio e nos bailes realizados pela equipe
em diversos clubes e casas de show no Rio de Janeiro. Ainda que tenha um discurso
bastante direto, a letra aborda certo tipo de comportamento sexual feminino sem
extrapolar os limites dos padrões morais e estéticos que constituem esse circuito
cultural. Entretanto, a mesma música possui uma versão proibida, que, normalmente,
é executada em circuitos culturais mais alternativos, como rádios comunitárias,
internet e apresentações em eventos menos vigiados:
Sem calcinha
DJ aumenta o som!
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Nessa letra, observam-se menos mediações discursivas, já que as relações sociais são
abordadas de maneira mais explícita – e não em forma de insinuações, como na
primeira versão. Por conta disso, dificilmente essa versão é executada em programas
de rádio e de televisão, por exemplo, já que, em tais espaços, exige-se a adequação a
determinado código moral. Contudo, a versão proibida é perfeitamente aceitável em
ambientes mais autónomos em relação aos limites impostos pelos padrões estéticos
dominantes, como os bailes de favela.
O próprio percurso artístico do grupo Gaiola das Popozudas pode ser tomado como
exemplo do processo de adaptação estética aos padrões dominantes ao qual muitos
artistas se submetem, quando conseguem atingir os canais mainstream da indústria
cultural. O grupo surgiu por iniciativa do empresário Leandro Pardal, que, no início
dos anos 2000, promovia, em bailes funk, a performance artística de Valesca Popozuda
(nos vocais), Priscila, Daniele e Rose (dançarinas), que se apresentavam (com um toque
de exotismo) dentro de gaiolas.
O sucesso do grupo nos bailes logo abriu caminho para que suas músicas tocassem
nas rádios e compusessem trilhas sonoras de programas televisivos. Em seguida, o DJ
estadunidense Diplo – responsável pelos beats da cantora M.I.A – incluiu duas
músicas do grupo numa mixtape lançada por ele em 2005 – o que deu uma projeção
internacional para as Popozudas. Mas foi a partir de sua participação nos DVD's
Tsunami e Tsunami II (ambos lançados pela equipe Furacão 2000), com as músicas Late
que eu tô passando e Agora eu sou solteira, que o grupo consolidou seu sucesso nacional,
ampliou sua participação em programas de televisão (de diferentes emissoras) e
começou a fazer shows internacionais.
A partir de 2012, a vocalista Valesca Popozuda deixou o grupo para seguir carreira a
solo. Sua decisão ocorreu num momento em que as cantoras pop passaram a ocupar
mais espaço no mercado fonográfico brasileiro. O sucesso da cantora Anitta – que, no
início da carreira, cantava funk melody e sustentava o título de MC – no circuito pop
abriu espaço para que outras cantoras de funk percorressem o mesmo caminho. E a
carreira de Valesca, sem dúvida, se direcionou para o circuito pop, como revela a
transformação visual, comportamental e estética pela qual passou. Quando começou
a cantar no Gaiola das Popozudas, Valesca tinha cabelos encaracolados, possuía a
estrutura corporal de uma pessoa magra e usava roupas coloridas e sensuais. Depois
que o grupo passou a fazer sucesso nacional e internacional, Valesca alisou os cabelos
e passou por diversas cirurgias plásticas, que a deixaram com uma silhueta musculosa.
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Quando ela decidiu seguir carreira solo, a cantora abandonou as roupas extremamente
sensuais e muito coloridas e passou a usar roupas de alta-costura, além de reduzir o
tamanho de seus músculos.
Para Benjamin, a autenticidade de uma obra de arte é a sua existência única, seu aqui e
agora ou sua autoridade, do que se depreendem o seu testemunho histórico e o seu peso
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No caso do funk, esse processo pode ser percebido em alguns aspetos da disputa em
torno de seus significados, como o desenvolvimento de estratégias de resistência à
criminalização e ao preconceito (impostos pelos setores dominantes da sociedade a
seus artistas e apreciadores). É o que se observa no caso da Associação dos
Profissionais e Amigos do Funk (APAFunk), fundada em 2008, a partir do esforço
comum de artistas do funk, de académicos e de militantes de esquerda – o que
certamente gerou impactos na proposta estética reivindicada pelos artistas que
integraram a associação.
14 Sobre a politização da arte, Benjamin pode ter sido inspirado pela produção cinematográfica de sua época, pois um
ano antes de escrever esse artigo – em 1935, era lançado o filme “Triunfo da Vontade”, de Leni Riefenstahl, sobre o 6.º
Congresso do Partido Nacional Socialista, realizado na cidade de Nuremberga – o que marcou a politização do cinema
pelos nazistas. Além disso, grandes filmes de Eisenstein, como “A Greve” (1924) e “O Encouraçado Potemkim” (1925),
já haviam sido lançados, mostrando que o cinema também poderia servir à difusão dos ideais revolucionários.
16 A lógica mercantil com a qual o funk carioca atualmente está relacionado levou à construção deste movimento pelos
MCs que discordam das poucas temáticas veiculadas pelos grandes medias e “passam a organizar e enunciar o funk
carioca como um movimento cultural e político”, (re) inventando assim uma tradição (Lopes, 2011, p. 114).
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uma associação que lute por seus direitos e também construa alternativas para a
produção e difusão das músicas, contribuindo para sua profissionalização. Bailes
comunitários em espaços diversos e mesmo nas ruas, redes de rádios e TVs
comunitárias com programas voltados para funk, produção e distribuição
alternativa de CDs e DVDs dos artistas, concursos de rap são algumas das
iniciativas que os profissionais do funk, fortalecidos e unidos, podem realizar
(Manifesto do Movimento Funk é Cultura, apud. Lopes, 2011, p.152).
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No seu artigo 1.º, foi “definido que o funk é um movimento cultural e musical de
caráter popular”, porém, logo em seguida, fica esclarecido que não fazem parte desta
consideração “conteúdos que façam apologia ao crime”18 (Lei estadual 5.544 de 22 de
setembro de 2009). Já no artigo 2.°, o poder público foi responsabilizado por “assegurar
a esse movimento a realização de suas manifestações próprias, como festas, bailes,
reuniões” enquanto que, no artigo 3.°, ficou definido que “os assuntos relativos ao funk
deverão, prioritariamente, ser tratados pelos órgãos do Estado relacionados à cultura”
(Lei estadual 5.544 de 22 de setembro de 2009). Entretanto, na prática, os bailes não
passaram a ser realmente assegurados. A Resolução da Secretaria de Estado de
Segurança (SESEG) n.° 013, de 23 de janeiro de 2007 (que perdurou até sua revogação
no ano de 2013), representou, durante anos, um empecilho para os bailes (e também
para outros eventos), uma vez que a ação conjunta entre os órgãos de segurança
pública do estado – a pretexto de manter a ordem pública – inviabilizava, na prática,
a realização dos bailes.
18 Ou seja, os proibidões que se referem à criminalidade, dentro desta lógica, não podem ser considerados cultura, o
que estabelece distinções no mundo do funk, impondo o que pode e o que não pode ser considerado legítimo.
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Militar) tiveram sua realização obstada, o que vai contra o que havia sido estabelecido
pela já citada Lei 5.544 de 22 de setembro de 2009, que determinou que o poder público
deveria assegurar as manifestações do funk, e não embargá-las.
Contudo, é preciso destacar que mesmo o funk produzido por artistas inseridos num
circuito mais mercantilizado pode oferecer possibilidades de inscrição de um discurso
dissonante na realidade social (Guerra, 2015). Retomando o exemplo da cantora
Valesca Popozuda, percebe-se que, apesar do processo de adaptação estética, suas
músicas manifestam um discurso que rompe com o padrão estético e moral
dominante, porque expressam, de forma blasfémica (Caetano, 2015, p.16), um ponto
19 Apesar de estarem legalmente cobertos por uma lei estadual e uma lei federal, é importante
recordarmos que nas favelas que foram ocupadas pelas Unidades de Polícia Pacificadora, os bailes funk
ainda encontram diversos empecilhos a sua realização. Ou seja, mesmo existindo leis estaduais e federais
que asseguram a realização dos bailes funk e tendo sido revogada a Resolução SESEG n° 013 de 23 de
janeiro de 2007, na prática, estes bailes ainda são impedidos de serem realizados nos locais mais precários
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20 Hoje eu não vou dar, eu vou distribuir: “Hoje eu não vou dar, eu vou distribuir (Pode mandar o
próximo) / Você quer meu corpinho? / Não precisa insistir / Você quer meu beijinho? / Não precisa insistir
/ Você quer colinho? / Não precisa insistir / Hoje eu não vou dar, eu vou distribuir (Eu sou a Bruna e faço
21 Larguei meu marido: “Só me dava porrada / E partia pra farra / Eu ficava sozinha,esperando você / Eu
gritava e chorava que nem uma maluca... / Valeu muito obrigada, mas agora eu virei puta / Se uma
tapinha não dói / Eu falo pra você / Segura esse chifre quero ver tu se foder / Segura esse chifre quero ver
tu se foder / Eu lavava, passava / Tu não dava valor / Agora que eu sou puta você quer falar de amor”.
22 Tá pra nascer homem que vai mandar em mim: “Tá para nascer homem que vai mandar em mim / Tá
para nascer alguém que vai me esculachar / Tá para nascer e eu já falei pra tu / Se ficar me enchendo o
saco / Mando tomar... / Vergonha na cara é coisa rara de se ver / Mal sabe meu nome e já tá querendo me
ter / Nunca dependi de homem pra coisa nenhuma / Se tuas negas são tudo assim, desacostuma / Vou te
provar que eu não sou do tipo de mulher / Que você paga uma bebida e eu dou o que tu quer / Enfia teu
malote no saco e lambe o cheque / Tenho nojo de moleque / Pode ser pagodeiro, empresário ou cantor /
Pode ser funkeiro, milionário ou jogador / O que você faz da sua vida não interessa / Vou mandar tu se
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Em certo sentido, a adequação das letras de suas músicas às regras dos circuitos
mainstream evidencia a existência de limites à inscrição desse discurso, já que, essa
adaptação pode ser considerada como uma forma de reificação dos padrões estéticos
hegemónicos. Da mesma forma, pode pensar-se – com razão – que a performance
artística de Valesca serve à mercantilização do corpo das mulheres e da sexualidade
feminina, já que, conforme demonstrou Mariana Caetano (Caetano, 2015, p. 110-113),
sua imagem se consolidou, em parte, com base na exploração desses atributos. Ainda
que isso ocorra, não se pode negar o potencial transgressor de suas músicas que, ao
romperem com os ideais de passividade, castidade e pureza que sustentam o padrão
comportamental feminino hegemónico, possibilitam o reconhecimento de histórias e
de condutas invisíveis ou estigmatizadas (Caetano, 2015, p.47). Além disso, deve
ressaltar-se que o discurso ambíguo de Valesca (que é dissonante em relação ao
hegemónico, ao mesmo tempo em que pode ser mercantilizado) representa, muitas
vezes, a primeira ou a única oportunidade para que muitas pessoas travem contacto
com visão de mundo não hegemónica – principalmente se levarmos em conta a
aceitação do funk por setores subalternos (Caetano, 2015, p.118). A pesquisadora
Adriana Lopes endossa esse ponto de vista, quando afirma que “muitas jovens
ganham voz e visibilidade na cena funk, bem como algumas performances funkeiras
passam a subverter certos significados tradicionalmente atribuídos à identidade de
homens e de mulheres” (Lopes, 2011, p.153-155).
3. Pistas de sistematização
Diante do que foi exposto até aqui, conclui-se que o funk carioca pode ser encarado
como uma manifestação cultural que expressa algumas das visões de mundo e das
formas de vida de setores sociais subalternos – motivo pelo qual os artistas e os
apreciadores do ritmo foram criminalizados e estigmatizados por setores dominantes
da sociedade. No entanto, o êxito comercial proporcionado pela comercialização do
ritmo em circuitos culturais periféricos da indústria cultural possibilitou sua
incorporação nos circuitos mainstream.
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IS Working Papers
3.ª Série/3rd Series
Autoras/Authors
Juliana Lessa Vieira
Juliana da Silva Bragança
As autoras, titulares dos direitos desta obra, publicam-na nos termos da licença Creative Commons
“Atribuição – Uso Não Comercial – Partilha” nos Mesmos Termos 2.5 Portugal
(cf. http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/pt/).
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