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IS Working Papers

3.ª Série, N.º 12

O funk carioca: limites e


possibilidades
proporcionados pela
indústria cultural
Juliana Lessa Vieira
Juliana da Silva Bragança

Porto, janeiro de 2016


IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 12

O funk carioca: limites e possibilidades


proporcionados pela indústria cultural
Juliana Lessa Vieira

Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Brasil


E-mail: ju_lessav@yahoo.com.br

Juliana da Silva Bragança

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGH-UFRRJ), Brasil


E-mail: jsilvabraganca@gmail.com

Submetido para avaliação: novembro de 2015/aprovado para publicação: janeiro de 2016

Resumo

O objetivo deste artigo situa-se na análise das formas como o funk carioca e a indústria
cultural se têm entrecruzado nos últimos anos. A partir de um breve panorama
histórico do movimento funk, passando pelo seu surgimento nos guetos
estadunidenses e pelo processo de sua ressignificação pela juventude suburbana
carioca, escolhemos abordar as relações entre o funk e a indústria cultural. São
observados os limites impostos por essa indústria (exemplificados pelas músicas que
devem ter as suas letras adaptadas para que possam ser veiculadas nas emissoras de
rádios e nos programas de TV) e as estratégias de resistência desenvolvidas pelos
funkeiros a estas e outras imposições sociais (verificáveis com a criação da APAfunk –
Associação dos Profissionais e Amigos do Funk – e com a inscrição do discurso
feminino a partir das músicas da cantora Valesca Popozuda).

Palavras-chave: funk carioca, indústria cultural, hibridismo, resistência, Brasil.

Abstract

This article analyzes the relationship between Rio de Janeiro's funk music and culture
industry. In a brief historical overview, it approaches the appearance of this musical
genre in the United States' ghettos and the transformations that emerged from its
contact with ‘carioca’ youth in the city outskirts. Also, in the article we discuss the
restraints imposed by culture industry to funk music development (which can be
traced in modified lyrics that are a precondition to appearing in mainstream TV shows
and radio stations) and the resistance strategies created by many funk singers (such as

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the APAFUNK - Funk Workers and Friends Association - and the feminist discourse
within Valesca Popozuda's songs).

Keywords: Rio de Janeiro' s funk, culture industry, hibridism, resistance, Brazil.

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1. Os caminhos do funk

O antropólogo Hermano Vianna situa as raízes históricas do funk no cenário social dos
Estados Unidos da América, entre as décadas de 1930 e 1940, quando este país foi
marcado por uma forte segregação racial (Vianna, 1997, p. 44). O movimento
migratório interno dos negros do sul – onde essa segregação foi mais intensa devido
às heranças históricas do período escravocrata – para o norte do país – onde se
acreditava haver maiores oportunidades de ascensão social – foi o contexto em que
músicos negros acrescentaram guitarras elétricas ao blues (música rural e negra). Em
finais da década de 1960, uma vertente do soul (que já era conhecida como black music
e que também ficou conhecida como funk), estourou na voz do cantor James Brown.
Outros nomes, como Marvin Gaye, Aretha Franklin e Sam Cooke, também foram
importantes para a difusão do ritmo. A partir da influência da disco music, estilos
musicais híbridos passaram a fazer parte do cenário musical norte-americano, como o
disco-funk, que combinava os metais característicos do soul a efeitos sonoros robóticos
e aos sons de teclado carregados nos graves (Essinger, 2005, p. 10-11) 1.

Nos anos 1970, a música eletrónica fez com que nos bairros pobres de Nova Iorque
(Bronx e Harlem, principalmente) surgisse outra tendência estética, que combinava,
inclusive, elementos da cultura latino-americana: o hip hop (em que os DJ's 2 Afrika
Bambaataa e Grandmaster Flash se destacaram como pioneiros na criação de efeitos
sonoros). Foi nesse período que surgiram os MC’s 3 , devido à chegada de técnicas
utilizadas por jamaicanos na produção de suas músicas em Nova Iorque (Vianna, 1997,
p. 19-20). No final dos anos 1980, com o surgimento de novos aparelhos eletrónicos, as
frequências graves do rap de Nova Iorque foram reforçadas e combinadas a novos
efeitos sonoros mais melódicos, na Flórida, onde surgiram outras duas tendências
derivadas: o miami bass e o freestyle, que se destacavam pelo conteúdo fortemente
sensual das suas letras.

No Brasil, a história do funk teve início na década de 1970, quando começaram a ser
promovidos bailes funk aos domingos, no Canecão – Zona Sul da cidade do Rio de
Janeiro. Os bailes da pesada tinham um público estimado em cinco mil pessoas, que
vinham das mais diversas áreas da cidade e eram comandados pelos DJ's Big Boy e
Ademir Lemos. Os bailes chegaram ao fim quando a direção do Canecão teve a
oportunidade de fazer shows com grandes nomes da Música Popular Brasileira (MPB)

1 Estas e outras referências musicais chegavam ao público brasileiro principalmente por meio de programas de rádio,
mas também por meio de um circuito semiformal de venda de discos estrangeiros.
2 Abreviatura da expressão Disc Jockey, criada para definir a tarefa de animar festas, por meio da troca de discos.
3 Masters of Cerimony, ou, na tradução literal, Mestre de Cerimónia, expressão usada para se referir aos cantores de
funk, hip hop ou drum ‘n’bass.

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aos domingos e, desde então, os bailes passaram a ser realizados nos subúrbios, cada
domingo num bairro diferente (Vianna, 1997, p. 24). Entretanto, conforme a pesquisa
de Sílvio Essinger demonstra (Essinger, 2005, p. 23-27), havia outras iniciativas sendo
delineadas nos subúrbios da cidade como a criação das equipes de som Soul Grand
Prix4 , Black Power, Dynamic Soul, Uma Mente Numa Boa, Célula Negra, além da
Furacão 2000 e da Cashbox (criadas em outro contexto), que dominaram a cena dos
bailes funk nos anos 1980 (Medeiros, 2006, p. 14-15). Os primeiros discos de funk
inteiramente produzidos no Brasil foram Funk Brasil (1989) e Funk Brasil 2 (1990), que
traziam as melôs 5 cantadas nos bailes – ambos produzidos por DJ Marlboro,
empresário notável na indústria fonográfica do funk carioca. Consolidava-se, então,
uma identidade sonora característica do movimento funk que compunha um tipo de
comportamento comum a parte expressiva da juventude carioca.

O processo de ressignificação do funk no Brasil está intimamente relacionado às favelas


cariocas e, na década de 1990, era, sobretudo, produzido e consumido6 pela juventude
maioritariamente negra, pobre e favelada. Concomitantemente a esse processo, o funk
foi inserido em uma lógica de criminalização que, segundo Micael Herschamann
(2005), foi fruto de uma associação feita pelos media e pelo Estado brasileiros entre
pivete e funkeiro, que se estabeleceu no imaginário coletivo. Os arrastões7 , episódios
comuns nas praias na Zona Sul carioca no início da década de 1990, deixaram as classes
médias do Rio de Janeiro apavoradas. Foram veiculadas pelos media muitas imagens
de jovens negros e suburbanos, apedrejando autocarros e causando tumultos. O
episódio também foi interpretado como uma demonstração de insatisfação com o
serviço de transporte público precário, que dificultava o acesso dos moradores da
Zona Norte às praias e aos bailes, nos fins de semana. Esses atos também eram
resultado das rivalidades das galeras funk que vinham ocorrendo, sobretudo na saída
dos bailes de corredor8 (Herschmann, 2005, p. 15-16).

4 A partir de meados da década de 1970, a Soul Grand Prix produzia bailes todos os dias da semana e chegou a receber
o Disco de Ouro por ter alcançado a marca de venda de 100.000 cópias do seu primeiro LP.
5 As melôs eram versões criadas pelo público nos bailes para as músicas cantadas originalmente em inglês. Um exemplo
é a música You talk too much, do grupo estadunidense RUN-DMC que ficou conhecida como Melô do Tomate, porque os
frequentadores dos bailes cantavam taca tomate durante o refrão – numa tentativa de aproximar a sonoridade da língua
portuguesa.
6 Ao longo da década de 1990, o funk passou a ser, ao mesmo tempo, demonizado e aclamado pelos media. Adriana
Carvalho Lopes mostra que, ao fim desta década, ele passou a ser também consumido pela juventude de classe média
e a ter grande espaço na Zona Sul da cidade (Lopes, 2011, p. 48).
7 Segundo Herschmann, a palavra arrastão, amplamente utilizada nos jornais entre 1992/1993, significava
“emblematicamente um tipo de ‘tumulto’, ‘saque/pilhagem’ promovido por jovens pobres”. Entretanto, “este
fenômeno rapidamente passou também a ser utilizado para designar qualquer tipo de ação coletiva mais radical e/ou
violenta de qualquer grupo oriundo dos segmentos populares do espaço urbano” (Herschmann, 2005, p. 29-30).
8 Os bailes de corredor estiveram presentes na cena funk no Rio de Janeiro no início da década de 1990. Consistiam em
bailes onde as rivalidades entre grupos de diferentes favelas eram claramente expressas: dividia-se o local entre o Lado
A e o Lado B, formando-se, assim, um corredor no meio do clube. Em determinado momento, já no auge do baile, era

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A partir destes acontecimentos, o funk passou a ser tratado pelos grandes media9 como
caso de polícia e, daí para a frente, passou a transitar entre sua condenação e defesa na
legislação do Estado e da cidade do Rio de Janeiro10. A criminalização sofrida pelo
ritmo na década de 1990 resultou na interdição de inúmeros bailes, sob a acusação de
consumo de substâncias ilícitas, associação ao crime organizado e prostituição de
menores (Lopes, 2011, p. 49-65). Ainda assim, muitos bailes continuaram sendo
promovidos em locais menos vigiados (como os espaços improvisados em favelas) e
os programas de rádio dedicados ao funk continuaram fazendo sucesso, o que
evidencia que o ritmo permaneceu se reelaborando, mesmo nos momentos de maiores
dificuldades.

Já nos anos 2000, o funk passou por um processo de transformação estética que
contribuiu para sua maior aceitação social e para que passasse a ocupar espaços
anteriormente inimagináveis, como trilhas sonoras de novelas. A partir de 2009, o funk
carioca passou a ser considerado como um dos patrimónios culturais do Rio de
Janeiro, através da Lei 5543/09. Atualmente, o ritmo ainda é estigmatizado, mas já é
reconhecido internacionalmente como uma das manifestações culturais cariocas mais
vibrantes.

2. A entrada do funk na indústria cultural

O panorama histórico apresentado acima evidencia que o surgimento e a consolidação


do funk carioca ocorreram dentro das estruturas da indústria cultural, ainda que esse
processo não tenha sido planeado e determinado por aqueles que possuem maior grau
de gerência sobre esses canais. Isso foi possível porque alguns setores das classes
subalternas agiram no sentido de forçar a abertura de espaços para suas próprias
criações artísticas, se apropriando de parte dessas estruturas, de modo que pudessem,
em alguma medida, inscrever na realidade social suas próprias visões de mundo e
seus modos de vida.

Evidentemente, essa relação com a indústria foi (e continua sendo) contaminada por
contradições, já que participar nos seus canais significa, também, aceitar as relações de
produção/difusão artística subjacentes à sua estrutura. Com isso, pretende-se afirmar

permitido o embate físico entre os grupos. Muitos funkeiros saíam feridos e mortes começaram a ser relatadas,
sobretudo na saída desses bailes. Para aprofundamento no assunto, ver Micael Herschmann (2005).
9 Sobre isso ver também o trabalho de Adriana Carvalho Lopes (2011).
10 Leis com sentidos e propósitos distintos foram criadas no estado do Rio de Janeiro, tanto numa tentativa de coibir,
quanto com o objetivo de defender o funk carioca como manifestação cultural. Sobre o assunto, ver Carlos Bruce Batista
(2013).

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que, embora o funk carioca – como uma manifestação artística subalterna – se choque
contra limites (estéticos e materiais) impostos pela sua pertença às estruturas da
indústria, o ritmo vem proporcionando importantes estratégias de resistência cultural
para seus criadores e apreciadores. Por isso, analisar o funk sob essa ótica exige a
compreensão da lógica de funcionamento da indústria cultural, para que seja possível
identificar seus limites e suas brechas, como é o propósito desse artigo.

Para Adorno, a indústria cultural se caracteriza pela combinação da capacidade


técnica de reprodução massificada das produções artísticas e da concentração de
poder económico e administrativo nas mãos de algumas poucas empresas, que atuam
no sentido de integrar os consumidores a partir do alto (Adorno, 1986, p. 92). Dessa
forma, as produções vão se tornando estandardizadas, porque passam a se adaptar
aos padrões estéticos dominantes, para que sejam aceites nos circuitos culturais
mainstream. Nessa perspetiva, o espectador/consumidor torna-se um elemento de cálculo
ou um acessório da maquinaria, que é depositário de uma mentalidade imutável e
previsível. Ele é encarado, portanto, como um sujeito passivo na produção cultural
industrializada, que é responsável pela cristalização das mentalidades e dos padrões
dominantes, justamente por atender aos anseios de um público massificado. Como
resultado, a obra de arte e as manifestações culturais deixam de se orientar por seus
próprios motivos e princípios (relativamente autónomos) e passam a se submeter à
lógica industrial da comercialização e do lucro.

Esse processo se intensifica quando os artistas passam a viver dos ganhos


proporcionados pela venda de suas produções – pois completa-se a transformação da
arte e da cultura em mercadoria. Impulsionados pelos ganhos materiais e
pressionados pela urgência da indústria cultural em apresentar novas produções, os
artistas contribuem para que suas produções assumam um caráter cada vez mais
semelhante entre si. As diferenças se tornam pouco significativas porque,
esteticamente, as criações artísticas passam a preservar “o esqueleto no qual houve tão
poucas mudanças como na própria motivação do lucro” (Adorno, 1986, p. 94). É então
que começam a surgir os padrões estandardizados que vão nortear as criações futuras.
A base técnica de tais criações, embora permaneça artística, passa a ser influenciada
pela técnica industrial de reprodução mecânica, a qual, segundo Adorno, atua como
um parasita da técnica artística, agindo “sem se preocupar com a determinação que a
objetividade (...) implica para a forma intra-artística” (Adorno, 1986, p. 95) e que
resulta na perda de sua autonomia estética.

No caso do funk, esses limites se manifestam de diversas formas. É muito comum, por
exemplo, que algumas músicas produzidas possuam duas versões: uma versão

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proibida 11 – geralmente tocada nos bailes de favelas e disponível para download na


internet – e uma versão light, que é executada em alguns canais dos grandes media e
que pode ser ouvida em bailes de asfalto12. Essa adaptação ocorre por iniciativa dos
próprios artistas (MC’s e DJ’s), que aprenderam a modular as mediações de seus
discursos, dependendo do público com o qual dialogam. Para ilustrar o que se afirma,
podemos citar o caso do hit “Agora eu sou solteira”, lançado em 2007 pelo grupo Gaiola
das Popozudas. No DVD “Tsunami II”13, produzido pela equipe de som Furacão 2000,
o grupo se apresentou cantando a versão transcrita abaixo:

Agora eu sou solteira

Eu vou pro baile,

De sainha

Agora eu sou solteira e ninguém vai me segurar

Eu vou pro baile procurar o meu negão

Vou subir no palco ao som do tamborzão

Sou cachorrona mesmo

E late que eu vou passar

Agora eu sou solteira e ninguém vai me segurar

No local do pega pega eu esculacho tua mina

No completo, no mirante, outro no muro da esquina

Na primeira tu já cansa

Eu não vou falar de novo

11 São as músicas conhecidas como funk proibidão que tratam com vocabulário explícito (com menos mediações) temas
que giram em torno do erotismo, da sexualidade, da violência causada pela guerra às drogas nas favelas, da
incorporação da identidade transgressora dos comerciantes varejistas de drogas ou ainda, das disputas territoriais,
para elucidar alguns exemplos. Estas versões não circulam nas rádios e nos programas de TV no seu estado original,
mas de forma mais mediada, com um tratamento estético que inclui a alteração das letras. Ressalve-se que somente
fazem parte dos bailes que acontecem nas favelas ou mesmo em festas particulares.
12 São bailes que acontecem fora das favelas (geralmente em boates ou casas de show) e que atraem, sobretudo, o
público da classe média.
13 A performance do grupo pode ser conferida em https://www.youtube.com/watch?=333oFpbUAdw. (último acesso
em 16.06.2015).

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Ai que homem gostoso, vem que vem quero de novo

Gaiola das Popozudas agora fala pra você

Se elas brincam com a xaninha, eu faço o homem enlouquecer

Agora eu sou solteira e ninguém vai me segurar

Esta é a versão que toca nos programas de rádio e nos bailes realizados pela equipe
em diversos clubes e casas de show no Rio de Janeiro. Ainda que tenha um discurso
bastante direto, a letra aborda certo tipo de comportamento sexual feminino sem
extrapolar os limites dos padrões morais e estéticos que constituem esse circuito
cultural. Entretanto, a mesma música possui uma versão proibida, que, normalmente,
é executada em circuitos culturais mais alternativos, como rádios comunitárias,
internet e apresentações em eventos menos vigiados:

Agora eu sou piranha

Eu vou pro baile

Sem calcinha

Agora eu sou piranha e ninguém vai me segurar!

Eu vou pro baile procurar o meu negão

Vou subir no palco ao som do tamborzão

Sou cachorrona mesmo e late que eu vou passar

Agora eu sou piranha e ninguém vai me segurar

DJ aumenta o som!

No local do trepa-trepa eu esculacho a tua mina

No completo, no mirante ou no muro da esquina

Na primeira tu já cansa eu não vou falar de novo

Ai, que piroca boa bota tudo até o ovo

Eu queria andar na linha tu não me deu valor

Agora eu sento, soco, soco faço até filme pornô!

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Gaiola das Popozudas agora vai falar pra tu

Se elas brincam com a xereca eu te dou um chá de cu!

Nessa letra, observam-se menos mediações discursivas, já que as relações sociais são
abordadas de maneira mais explícita – e não em forma de insinuações, como na
primeira versão. Por conta disso, dificilmente essa versão é executada em programas
de rádio e de televisão, por exemplo, já que, em tais espaços, exige-se a adequação a
determinado código moral. Contudo, a versão proibida é perfeitamente aceitável em
ambientes mais autónomos em relação aos limites impostos pelos padrões estéticos
dominantes, como os bailes de favela.

O próprio percurso artístico do grupo Gaiola das Popozudas pode ser tomado como
exemplo do processo de adaptação estética aos padrões dominantes ao qual muitos
artistas se submetem, quando conseguem atingir os canais mainstream da indústria
cultural. O grupo surgiu por iniciativa do empresário Leandro Pardal, que, no início
dos anos 2000, promovia, em bailes funk, a performance artística de Valesca Popozuda
(nos vocais), Priscila, Daniele e Rose (dançarinas), que se apresentavam (com um toque
de exotismo) dentro de gaiolas.

O sucesso do grupo nos bailes logo abriu caminho para que suas músicas tocassem
nas rádios e compusessem trilhas sonoras de programas televisivos. Em seguida, o DJ
estadunidense Diplo – responsável pelos beats da cantora M.I.A – incluiu duas
músicas do grupo numa mixtape lançada por ele em 2005 – o que deu uma projeção
internacional para as Popozudas. Mas foi a partir de sua participação nos DVD's
Tsunami e Tsunami II (ambos lançados pela equipe Furacão 2000), com as músicas Late
que eu tô passando e Agora eu sou solteira, que o grupo consolidou seu sucesso nacional,
ampliou sua participação em programas de televisão (de diferentes emissoras) e
começou a fazer shows internacionais.

A partir de 2012, a vocalista Valesca Popozuda deixou o grupo para seguir carreira a
solo. Sua decisão ocorreu num momento em que as cantoras pop passaram a ocupar
mais espaço no mercado fonográfico brasileiro. O sucesso da cantora Anitta – que, no
início da carreira, cantava funk melody e sustentava o título de MC – no circuito pop
abriu espaço para que outras cantoras de funk percorressem o mesmo caminho. E a
carreira de Valesca, sem dúvida, se direcionou para o circuito pop, como revela a
transformação visual, comportamental e estética pela qual passou. Quando começou
a cantar no Gaiola das Popozudas, Valesca tinha cabelos encaracolados, possuía a
estrutura corporal de uma pessoa magra e usava roupas coloridas e sensuais. Depois
que o grupo passou a fazer sucesso nacional e internacional, Valesca alisou os cabelos
e passou por diversas cirurgias plásticas, que a deixaram com uma silhueta musculosa.

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Quando ela decidiu seguir carreira solo, a cantora abandonou as roupas extremamente
sensuais e muito coloridas e passou a usar roupas de alta-costura, além de reduzir o
tamanho de seus músculos.

Conforme exposto acima, verificamos que as estruturas da indústria exigem dos


artistas certa adaptação aos padrões estéticos hegemónicos. Entretanto, não se pode
ignorar que a inserção nessa mesma indústria permite que os artistas dialoguem com
um público maior. Para artistas oriundos de posições sociais subalternas, a ampliação
de seu público interlocutor significa ampliar, também, os espaços em que suas visões
de mundo e seus modos de vida se inscrevem na realidade social. No caso das músicas
analisadas, percebe-se que há claras diferenças discursivas entre a versão light e a
versão proibida. No entanto, embora exista a substituição de palavras explícitas por
palavras mais amenas, o sentido do discurso não se distancia tanto da proposta
original. A palavra xereca, por exemplo, foi empregada na versão proibida, enquanto
a palavra xaninha foi utilizada na versão light, mas ambas dizem respeito ao órgão
sexual feminino.

A análise de Adorno continua extremamente relevante para que possamos fazer um


exame crítico das produções artísticas e do padrão de consumo hegemónico. Porém,
se é importante termos esse cenário em mente, não podemos encará-lo como um tipo
de cárcere, que inviabiliza completamente a agência dos sujeitos inseridos nas
estruturas da indústria. Nesse sentido, pensamos que a análise de Walter Benjamin
(Benjamin, 1996) pode nos ajudar a relativizar o caráter inexpugnável da indústria
cultural que pode ser depreendido da perspetiva de Adorno (Adorno, 1986).

Benjamin, assim como Adorno, analisou as consequências da massificação das obras


de arte, decorrentes da emergência de sua forma industrializada de produção. Esses
dois autores possuem diferentes pontos de vista a respeito dos efeitos que a
reprodutibilidade técnica – apontada por ambos como uma das caraterísticas da
indústria cultural – trouxe para as obras de arte. Enquanto Adorno enxerga esse
fenómeno como a vitória do caráter mercantil e utilitário sobre a autenticidade e a
posição superior e autónoma das produções artísticas, Benjamin entende que a perda
de tais características não é necessariamente má, pois, as obras de arte, replicadas
através dos mecanismos técnicos de cópia introduzidos pela indústria cultural, se
tornam mais próximas da sociedade. Para ele, portanto, essa aura (ou sua existência
única) não é uma característica que deva ser obrigatoriamente preservada, como
parece ser para Adorno, para quem a manutenção da autenticidade evitaria que as
obras de arte fossem transformadas em mercadorias.

Para Benjamin, a autenticidade de uma obra de arte é a sua existência única, seu aqui e
agora ou sua autoridade, do que se depreendem o seu testemunho histórico e o seu peso

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tradicional. Dessa maneira, Benjamin acredita que a destruição da autenticidade


durante a reprodução técnica permite não só a aproximação entre obra e sociedade (já
que a cópia pode ser colocada em situações inimagináveis para o original), mas
também a atualização do próprio objeto que é reproduzido, já que sua tradição –
decorrente de sua existência única – é abalada por sua existência em série (Benjamin,
1996, p. 167-168). A reprodução técnica, portanto, faz com que a obra de arte seja, cada
vez mais, criada para ser reproduzida. Isso transforma por completo sua função social, já
que esta deixa de “fundar-se no ritual” para “fundar-se em outra práxis: a política”
(Benjamin, 1996, p. 171-172).

A politização da arte a partir de sua reprodutibilidade técnica é justamente um dos


caminhos identificados por Benjamin para romper a hegemonia cultural exercida por
aqueles que possuem o controle dos meios de produção (artística, inclusive)14. Ele não
considera que a reprodutibilidade técnica sirva somente à reificação das relações
sociais de dominação, através da constante mistificação da realidade social. Ao
contrário, Benjamin crê que “a arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais
se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu
centro a obra original.” (Benjamin, 1996, p. 180).

No caso do funk, esse processo pode ser percebido em alguns aspetos da disputa em
torno de seus significados, como o desenvolvimento de estratégias de resistência à
criminalização e ao preconceito (impostos pelos setores dominantes da sociedade a
seus artistas e apreciadores). É o que se observa no caso da Associação dos
Profissionais e Amigos do Funk (APAFunk), fundada em 2008, a partir do esforço
comum de artistas do funk, de académicos e de militantes de esquerda – o que
certamente gerou impactos na proposta estética reivindicada pelos artistas que
integraram a associação.

Atualmente, a APAFunk15 representa uma das iniciativas mais importantes em prol


de um funk menos mercantilizado16. A lógica de produção imposta aos MC's pelas
equipes de som é muito criticada pelos artistas envolvidos na associação. MC Dandara,

14 Sobre a politização da arte, Benjamin pode ter sido inspirado pela produção cinematográfica de sua época, pois um

ano antes de escrever esse artigo – em 1935, era lançado o filme “Triunfo da Vontade”, de Leni Riefenstahl, sobre o 6.º
Congresso do Partido Nacional Socialista, realizado na cidade de Nuremberga – o que marcou a politização do cinema

pelos nazistas. Além disso, grandes filmes de Eisenstein, como “A Greve” (1924) e “O Encouraçado Potemkim” (1925),

já haviam sido lançados, mostrando que o cinema também poderia servir à difusão dos ideais revolucionários.

15 Para maiores informações, ver: http://apafunk.blogspot.com.br/ (último acesso em 15/12/2015)

16 A lógica mercantil com a qual o funk carioca atualmente está relacionado levou à construção deste movimento pelos

MCs que discordam das poucas temáticas veiculadas pelos grandes medias e “passam a organizar e enunciar o funk

carioca como um movimento cultural e político”, (re) inventando assim uma tradição (Lopes, 2011, p. 114).

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uma das artistas que participa do movimento, revelou em entrevista à pesquisadora


Adriana Lopes que, inicialmente, escolheu cantar o “funk putaria” devido ao espaço
que essa vertente ocupa nos media e ao facto de ser um produto lucrativo. Esta
associação é, portanto, a pioneira na busca de “meios alternativos de produção e de
divulgação para fazer frente ao monopólio da indústria funkeira” (Lopes, 2011, p. 127).
A APAFunk promove rodas de funk, organizadas como um espaço público de fala,
onde qualquer MC tem a liberdade de divulgar suas composições. Na primeira roda
de funk, realizada em 2008, os MC’s e DJ’s reunidos na ocasião redigiram o Manifesto
do Movimento Funk é Cultura 17 , onde defendem o movimento funk como uma
manifestação cultural de massas, produzida e consumida pela juventude carioca
residente nos subúrbios e favelas e que representa não só a diversão destes grupos,
mas também uma estratégia de sobrevivência, devido à geração de empregos diretos
e indiretos. Em seguida, denunciam a ação dos grandes empresários:

Apesar de a indústria do funk movimentar grandes cifras e atingir milhões de


pessoas, seus artistas e trabalhadores passam por uma série de dificuldades para
reivindicarem seus direitos, superexplorados, submetidos a contratos abusivos e,
muitas vezes, roubados [...] a indústria funkeira tem uma dinâmica que suprime a
diversidade das composições, estabelecendo uma série de censuras no que diz
respeito aos temas das músicas [...] no lugar da crítica social, a mesmice da chamada
“putaria”, letras que têm como temática quase exclusiva a pornografia (Manifesto
do Movimento Funk é Cultura, apud. Lopes, 2011, p. 152-153).

O trecho destacado acima sugere a existência de um monopólio empresarial na


indústria do funk carioca, que leva à homogeneização de suas letras com destaque para
aquelas de temática erótica. Buscando a alteração da realidade exposta acima e com
vista a proporcionar uma diversificação da produção musical é que se reúnem MC’s e
DJ’s para a organização de:

uma associação que lute por seus direitos e também construa alternativas para a
produção e difusão das músicas, contribuindo para sua profissionalização. Bailes
comunitários em espaços diversos e mesmo nas ruas, redes de rádios e TVs
comunitárias com programas voltados para funk, produção e distribuição
alternativa de CDs e DVDs dos artistas, concursos de rap são algumas das
iniciativas que os profissionais do funk, fortalecidos e unidos, podem realizar
(Manifesto do Movimento Funk é Cultura, apud. Lopes, 2011, p.152).

O Manifesto do Movimento Funk é Cultura conclui-se com um pedido de união da massa


funkeira em favor de uma lei federal que viesse a definir o funk carioca como cultura e

17 O texto completo pode ser conferido Lopes (2011, p.151-152).

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que fosse capaz de fornecer um aparato legal de resistência ao monopólio industrial.


Nesse sentido, é importante destacar que a APAFunk teve um papel crucial na luta
pela aprovação, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, da Lei estadual
5.544 de 22 de setembro de 2009, que reconhece o funk carioca como manifestação
cultural. Sem dúvida, esta lei representou um grande passo para o movimento na luta
contra a criminalização que sofreu nos últimos anos, além de demonstrar que a
mobilização dos artistas foi capaz de interferir na política institucional. No entanto, a
lei também possui alguns limites, que impõem um caráter parcial a essa vitória.

No seu artigo 1.º, foi “definido que o funk é um movimento cultural e musical de
caráter popular”, porém, logo em seguida, fica esclarecido que não fazem parte desta
consideração “conteúdos que façam apologia ao crime”18 (Lei estadual 5.544 de 22 de
setembro de 2009). Já no artigo 2.°, o poder público foi responsabilizado por “assegurar
a esse movimento a realização de suas manifestações próprias, como festas, bailes,
reuniões” enquanto que, no artigo 3.°, ficou definido que “os assuntos relativos ao funk
deverão, prioritariamente, ser tratados pelos órgãos do Estado relacionados à cultura”
(Lei estadual 5.544 de 22 de setembro de 2009). Entretanto, na prática, os bailes não
passaram a ser realmente assegurados. A Resolução da Secretaria de Estado de
Segurança (SESEG) n.° 013, de 23 de janeiro de 2007 (que perdurou até sua revogação
no ano de 2013), representou, durante anos, um empecilho para os bailes (e também
para outros eventos), uma vez que a ação conjunta entre os órgãos de segurança
pública do estado – a pretexto de manter a ordem pública – inviabilizava, na prática,
a realização dos bailes.

A resolução determinava que, para a realização dos bailes, os seus organizadores


deveriam apresentar a autorização do comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro
(PMERJ) e da SESEG, para que essas instituições pudessem planejar devidamente o
policiamento da área destinada ao evento. A solicitação desta autorização deveria ser
encaminhada aos órgãos responsáveis pela segurança pública num prazo mínimo de
20 dias de antecedência. Sua resposta, entretanto, poderia ser dada até oito dias antes
de ser realizado o evento. Este requerimento exigia uma longa lista de documentos
que deveriam ser apresentados à Polícia Militar e à Polícia Civil. Essa lista poderia,
ainda, sofrer acréscimos, dependendo do tipo do evento, não tendo sido especificado,
ao longo do texto, quais tipos de evento dependeriam da apresentação dos
documentos extras. Devemos destacar, ainda, que a autorização do evento poderia ser
suspensa a qualquer momento, mediante Auto de Interdição. Dessa forma, inúmeros
bailes (sobretudo aqueles que seriam realizados em favelas ocupadas pela Polícia

18 Ou seja, os proibidões que se referem à criminalidade, dentro desta lógica, não podem ser considerados cultura, o
que estabelece distinções no mundo do funk, impondo o que pode e o que não pode ser considerado legítimo.

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Militar) tiveram sua realização obstada, o que vai contra o que havia sido estabelecido
pela já citada Lei 5.544 de 22 de setembro de 2009, que determinou que o poder público
deveria assegurar as manifestações do funk, e não embargá-las.

A reivindicação final do Manifesto do Movimento Funk é Cultura foi atendida somente 5


anos após sua formulação, com a aprovação do Projeto de Lei federal 4.124 de 4 de
setembro de 2013 (que em muito se assemelha à Lei estadual do Rio de Janeiro 5.544
de 22 de setembro de 2009) que, além reconhecer o funk como cultura, define: a) que o
movimento deve ser zelado e protegido pelo poder público; b) reconhece seus artistas
como agentes da cultura popular; c) assegura a realização de bailes19 e d) criminaliza
qualquer tipo de discriminação ou desrespeito contra o funk. Gostaríamos de frisar que
os artigos 4.° e 5.° definem, respetivamente: “que os assuntos relativos ao movimento
funk integrarão a pauta de trabalho e de fomento regular dos órgãos públicos ligados
à cultura” e que o poder público deve “assegurar as condições para democratização
da produção e veiculação musical do funk, de modo a minimizar o monopólio e a
cartelização desse género musical”. Verificamos que, apesar de um processo
contraditório, o grito da APAFunk foi institucionalmente reconhecido pelo Estado,
uma vez que a necessidade de regulamentação do monopólio da indústria funkeira
tenha sido sustentada pela legislação. (Projeto de Lei federal 4.124 de 4 de setembro de
2013).

Contudo, é preciso destacar que mesmo o funk produzido por artistas inseridos num
circuito mais mercantilizado pode oferecer possibilidades de inscrição de um discurso
dissonante na realidade social (Guerra, 2015). Retomando o exemplo da cantora
Valesca Popozuda, percebe-se que, apesar do processo de adaptação estética, suas
músicas manifestam um discurso que rompe com o padrão estético e moral
dominante, porque expressam, de forma blasfémica (Caetano, 2015, p.16), um ponto

19 Apesar de estarem legalmente cobertos por uma lei estadual e uma lei federal, é importante

recordarmos que nas favelas que foram ocupadas pelas Unidades de Polícia Pacificadora, os bailes funk

ainda encontram diversos empecilhos a sua realização. Ou seja, mesmo existindo leis estaduais e federais

que asseguram a realização dos bailes funk e tendo sido revogada a Resolução SESEG n° 013 de 23 de

janeiro de 2007, na prática, estes bailes ainda são impedidos de serem realizados nos locais mais precários

da cidade do Rio de Janeiro.

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IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 12

de vista feminino sobre assuntos como a sexualidade 20 , a violência doméstica 21 e a


desigualdade entre géneros22, que possui grande aceitação popular (Caetano, 2015, p.
16).

As músicas de Valesca representam uma forma de transgredir os padrões de


comportamento (de género e de classe social) que são atribuídos às mulheres. Assim,
quando Valesca coloca em pauta a sexualidade feminina de forma tão explícita, ela
está, ao mesmo tempo, transgredindo os valores morais e comportamentais
dominantes e inscrevendo um discurso feminino que dialoga com a realidade de
setores sociais subalternizados – nesse caso, as mulheres faveladas (Caetano, 2015,
p.19). Sobre isso, a pesquisadora Mariana Caetano afirmou o seguinte:

Outro ponto-chave para a compreensão desta e de outras músicas e narrativas


trazidas por Valesca Popozuda é como ela usa nas letras algumas palavras que, em
geral, são vistas como sujas ou de baixo calão. […] A iniciativa de cantar essas
palavras que costumam aparecer somente na intimidade é também uma forma de
subverter a imagem feminina que, mesmo nessa intimidade, possui limites no que
diz respeito à performance de género e à noção hegemónica de feminilidade. […]
Valesca busca na linguagem uma forma de empoderamento muito pautada no sexo.
(Caetano, 2015, p. 34)

20 Hoje eu não vou dar, eu vou distribuir: “Hoje eu não vou dar, eu vou distribuir (Pode mandar o

próximo) / Você quer meu corpinho? / Não precisa insistir / Você quer meu beijinho? / Não precisa insistir

/ Você quer colinho? / Não precisa insistir / Hoje eu não vou dar, eu vou distribuir (Eu sou a Bruna e faço

tudo o que você quiser) (Pode mandar o próximo)”.

21 Larguei meu marido: “Só me dava porrada / E partia pra farra / Eu ficava sozinha,esperando você / Eu

gritava e chorava que nem uma maluca... / Valeu muito obrigada, mas agora eu virei puta / Se uma

tapinha não dói / Eu falo pra você / Segura esse chifre quero ver tu se foder / Segura esse chifre quero ver

tu se foder / Eu lavava, passava / Tu não dava valor / Agora que eu sou puta você quer falar de amor”.

22 Tá pra nascer homem que vai mandar em mim: “Tá para nascer homem que vai mandar em mim / Tá

para nascer alguém que vai me esculachar / Tá para nascer e eu já falei pra tu / Se ficar me enchendo o

saco / Mando tomar... / Vergonha na cara é coisa rara de se ver / Mal sabe meu nome e já tá querendo me

ter / Nunca dependi de homem pra coisa nenhuma / Se tuas negas são tudo assim, desacostuma / Vou te

provar que eu não sou do tipo de mulher / Que você paga uma bebida e eu dou o que tu quer / Enfia teu

malote no saco e lambe o cheque / Tenho nojo de moleque / Pode ser pagodeiro, empresário ou cantor /

Pode ser funkeiro, milionário ou jogador / O que você faz da sua vida não interessa / Vou mandar tu se

foder porque sou dessas”.

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IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 12

Em certo sentido, a adequação das letras de suas músicas às regras dos circuitos
mainstream evidencia a existência de limites à inscrição desse discurso, já que, essa
adaptação pode ser considerada como uma forma de reificação dos padrões estéticos
hegemónicos. Da mesma forma, pode pensar-se – com razão – que a performance
artística de Valesca serve à mercantilização do corpo das mulheres e da sexualidade
feminina, já que, conforme demonstrou Mariana Caetano (Caetano, 2015, p. 110-113),
sua imagem se consolidou, em parte, com base na exploração desses atributos. Ainda
que isso ocorra, não se pode negar o potencial transgressor de suas músicas que, ao
romperem com os ideais de passividade, castidade e pureza que sustentam o padrão
comportamental feminino hegemónico, possibilitam o reconhecimento de histórias e
de condutas invisíveis ou estigmatizadas (Caetano, 2015, p.47). Além disso, deve
ressaltar-se que o discurso ambíguo de Valesca (que é dissonante em relação ao
hegemónico, ao mesmo tempo em que pode ser mercantilizado) representa, muitas
vezes, a primeira ou a única oportunidade para que muitas pessoas travem contacto
com visão de mundo não hegemónica – principalmente se levarmos em conta a
aceitação do funk por setores subalternos (Caetano, 2015, p.118). A pesquisadora
Adriana Lopes endossa esse ponto de vista, quando afirma que “muitas jovens
ganham voz e visibilidade na cena funk, bem como algumas performances funkeiras
passam a subverter certos significados tradicionalmente atribuídos à identidade de
homens e de mulheres” (Lopes, 2011, p.153-155).

3. Pistas de sistematização

Diante do que foi exposto até aqui, conclui-se que o funk carioca pode ser encarado
como uma manifestação cultural que expressa algumas das visões de mundo e das
formas de vida de setores sociais subalternos – motivo pelo qual os artistas e os
apreciadores do ritmo foram criminalizados e estigmatizados por setores dominantes
da sociedade. No entanto, o êxito comercial proporcionado pela comercialização do
ritmo em circuitos culturais periféricos da indústria cultural possibilitou sua
incorporação nos circuitos mainstream.

Esse processo de incorporação certamente gerou impactos na proposta estética de


muitos artistas, já que isso exigiu a adequação de seus discursos aos padrões estéticos
e morais dominantes. Ainda assim, sustenta-se que a inserção do funk nos circuitos
mainstream possibilitou a inscrição de discursos subalternos e dissonantes, que
passaram a ter uma maior visibilidade social, a partir da qual foi possível organizar
estratégias de resistência cultural aos limites sociais e estéticos impostos a essa
manifestação artística.

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20
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 12

IS Working Papers
3.ª Série/3rd Series

Editora/Editor: Paula Guerra

Comissão Científica/ Scientific Committee: João Queirós, Maria Manuela Mendes,


Sofia Cruz

Uma publicação seriada online do


Instituto de Sociologia da Universidade do Porto
Unidade de I&D 727 da Fundação para a Ciência e a Tecnologia

IS Working Papers are an online sequential publication of the

Institute of Sociology of the University of Porto


R&D Unit 727 of the Foundation for Science and Technology

Disponível em/Available on: http://isociologia.pt/publicacoes_workingpapers.aspx


ISSN: 1647-9424

IS Working Paper N.º 12


Título/Title
“O funk carioca: limites e possibilidades proporcionados pela indústria cultural”

Autoras/Authors
Juliana Lessa Vieira
Juliana da Silva Bragança

As autoras, titulares dos direitos desta obra, publicam-na nos termos da licença Creative Commons
“Atribuição – Uso Não Comercial – Partilha” nos Mesmos Termos 2.5 Portugal
(cf. http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/pt/).

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