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Resenha de: CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São
Paulo: Boitempo, 2015.
(...) ir ao rap com um olhar mais amplo, o que não implica renunciar às questões
estéticas (...), tampouco desprezar as articulações que os sujeitos, por meio do rap,
constroem entre cultura, vida cotidiana e política. O ideal é pensá-lo em sua
totalidade: como música, como composição textual, como um produto e como uma
prática de tempo e contexto específicos1.
Além disso, segundo o autor, a análise de parte da produção do rap no Brasil de fins do
*
Doutor em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de
Mestrado e Doutorado em Educação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE - São Paulo).
1
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p.16.
Maurício Silva
século XX e começo do XXI revela um "intenso diálogo da música com a vida social"2, objeto
de estudo do autor neste livro, independente dos valores estéticos que essa produção possa
ou não ter, já que, no sentido aqui colocado,
Roberto Camargos lembra que, nas últimas décadas, o capitalismo teve grande
impacto sobre a sociedade, agudizando os problemas sociais, fatos que estão presentes nas
letras dos rappers, cujas canções podem representar "a construção de memórias de uma
época", já que incorporam "a diversidade, a tensão, a oposição, a conformidade e a negação
entre diferentes sujeitos"4. Daí a intenção deste livro de
pensar a vida social lançando mão das canções de rap, centrando a atenção nos
indícios de experiências históricas comuns, das quais provêm ideias, sentimentos,
decepções e aspirações que permeiam a vida das pessoas *...+ Suas músicas,
compreendidas como representações, elucidam, mesmo que parcialmente, relações
de poder estabelecidas, sendo indícios de práticas, ações e valores em negociação e,
no limite, em dissonância com a ordem social do capital.5
Desse modo, olhar para as relações rap-sociedade supõe o estudo de certas formas de
tensão social presentes no Brasil, já que o rap permite a "construção de representações sobre
a sociedade brasileira"6, na medida em que ele é
uma importante via para adentrarmos no terreno dos conflitos, das tensões e do
poder que opera desigualmente na vida social, conduzindo-nos a repensar os
processos sócio-históricos no Brasil atual (que, não raro é visto, com pessimismo
pelos rappers) e as contradições que os cercam, mesmo quando a difusão do rap
está associada, em alguma medida, à indústria cultural (particularmente a do
entretenimento) e, por isso, seja tachado de alienante.7
Buscando apresentar, entre outras coisas, a origem do rap, o autor lembra que sua
2
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 17.
3
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 18.
4
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 20.
5
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 21.
6
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 27.
7
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 27.
genealogia não é muito precisa, até por ter surgido "à margem de esquemas formais de
regulação e documentação da cultura"8. De qualquer maneira, há algumas constantes que são
consenso em relação à sua origem, como o fato de ele estar ligado à presença de imigrantes
negros e latino-americanos (sobretudo os jamaicanos), com forte base cultural africana;
resultado de múltiplas experiências culturais, o rap não é um produto acabado e cristalizado,
interagindo com diversos estilos musicais, carregando uma reconhecida bagagem cultural e
social e instituindo uma espécie de poética. No Brasil, essa manifestação cultural-musical 289
chega em meados dos anos 1980, embora já tivesse se manifestado antes, nos bailes blacks
(quando ainda se confundia com o funk); nos anos 1990, as diferenças aumentam, e o rap
ganha mais autonomia, configurando-se como uma estética do problema, representando as
questões sociais mais agudas das periferias, priorizando temas do cotidiano e ligados à
marginalização. Em resumo:
O autor trata, ainda, das críticas feitas ao rap, desconstruindo algumas delas (como
aquelas que consideram o rap brasileiro como uma mera cópia/imitação do americano),
refletindo sobre questões mais pontuais (forma, conteúdo, aspectos musicais etc.) e
discutindo aspectos ideológicos (como a crítica de que o rap seria alienante). O autor defende
a ideia, entre outras, de que os rappers brasileiros souberam recriar a linguagem vinda do
exterior, adaptando-a ao contexto nacional; destaca, contudo, a marca recorrente da
experiência social presente em suas letras: "as memórias erigidas pelos rappers
desembocaram numa espécie de memória-experiência. Uma memória, diga-se de passagem,
8
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015, p.33.
9
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p.51.
290 relevante, nesse cenário, o papel de sujeito engajado que os rappers adotam para si,
enfatizando assim a relação entre música e política.
É sobretudo este aspecto das canções de rap estudadas que o autor irá destacar em
suas análises, a começar pelo fato de detectar, nas letras das músicas, uma concepção ampla
de política, numa virada conceitual que traz a política para o cotidiano, isto é, fora dos
espaços convencionais e fora do âmbito de seus agentes instituídos (os políticos). É nesse
sentido que os sujeitos do cenário do rap trazem para suas canções uma maior complexidade
social e cultural, questionando valores e conceitos. Relegando, assim, a política tradicional a
algumas letras que a condenam numa espécie de tribunal de opinião, os rappers optam por
retratar em suas letras as experiências vividas no dia a dia das grandes cidades, uma
experiência marcada pela dramaticidade da vida social:
Em outros termos:
10
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 75.
11
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 77.
12
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 77.
13
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 130.
Assim, analisando a letras de várias canções do rap, o autor destaca aspectos políticos,
sociais, pessoais etc., sempre enfatizando a "inter-relação realidade e ficção"15, além de sua
atuação com instrumento pedagógico nesse contexto. São, portanto, essas poéticas do vivido
que dão o tom crítico às letras das músicas, que vai além do entretenimento, chocando-se
com padrões hegemônicos de interpretação da realidade. 291
Seu livro, por fim, dialoga não apenas com outras obras do gênero – uma vez que, há
algum tempo, o rap tem sido objeto de pesquisa acadêmica –, mas também com o contexto
político em que ele é produzido e no qual se insere como contraponto crítico. Nesse sentido,
insere-se numa tradição que tem estudado esse fenômeno artístico seja do ponto de vista
cultural, como manifestação estético-social da periferia, a exemplo do livro de Andréia
Moassab16; seja do ponto de vista sonoro, como fenômeno musical de nosso tempo, a
exemplo do livro de Ricardo Teperman17; seja ainda como expressão literária, presente no
livro de Ecio Salles.18
Ler o livro de Roberto Camargos é percorrer os meandros de um “sistema” cultural
altamente dinâmico e produtivo, e que, embora tenha seu centro geopolítico nas periferias
das grandes cidades, dissipou-se, rapidamente, por todas as regiões.
14
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 133.
15
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 140.
16
MOASSAB, Andréia. Brasil periferia(s): a comunicação insurgente do hip-hop. São Paulo: Educ, 2011.
17
TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som. As transformações do rap no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.
18
SALLES, Ecio. Poesia Revoltada. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007.