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RESENHAS • LIVRE

Rap e política. Percepções da vida social brasileira


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Maurício Silva *

Resenha de: CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São
Paulo: Boitempo, 2015.

Originalmente escrita como dissertação de mestrado na Universidade Federal de


Uberlândia, Rap e política é resultado de intensa pesquisa, que mereceu mais de um prêmio
antes mesmo de ser publicado. Seu autor, Roberto Camargos, é, atualmente, doutorando na
Universidade Federal de Uberlândia, a mesma universidade em que fez a graduação e o
mestrado. Para a pesquisa que resultou nesta publicação, pesquisou centenas de músicas
daquele gênero, gravadas entre 1990 e 2005, num trabalho que demandou muita pesquisa e
apuro crítico.
O autor começa discordando das posições críticas que desautorizam o rap como arte,
expressão cultural, comportamento etc., afirmando que é necessário

(...) ir ao rap com um olhar mais amplo, o que não implica renunciar às questões
estéticas (...), tampouco desprezar as articulações que os sujeitos, por meio do rap,
constroem entre cultura, vida cotidiana e política. O ideal é pensá-lo em sua
totalidade: como música, como composição textual, como um produto e como uma
prática de tempo e contexto específicos1.

Além disso, segundo o autor, a análise de parte da produção do rap no Brasil de fins do

*
Doutor em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de
Mestrado e Doutorado em Educação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE - São Paulo).
1
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p.16.
Maurício Silva

século XX e começo do XXI revela um "intenso diálogo da música com a vida social"2, objeto
de estudo do autor neste livro, independente dos valores estéticos que essa produção possa
ou não ter, já que, no sentido aqui colocado,

a importância dessa cultura/música para os debates em torno da sociedade


contemporânea está, em termos gerais, no fato de que parte considerável dela
constitui meios de expressão associados às classes populares e, sob seu prisma (de
pessoas comuns, de trabalhadores) ganha corpo uma intrigante interface entre
288 história, cultura, sociedade, protesto social e vida cotidiana3.

Roberto Camargos lembra que, nas últimas décadas, o capitalismo teve grande
impacto sobre a sociedade, agudizando os problemas sociais, fatos que estão presentes nas
letras dos rappers, cujas canções podem representar "a construção de memórias de uma
época", já que incorporam "a diversidade, a tensão, a oposição, a conformidade e a negação
entre diferentes sujeitos"4. Daí a intenção deste livro de

pensar a vida social lançando mão das canções de rap, centrando a atenção nos
indícios de experiências históricas comuns, das quais provêm ideias, sentimentos,
decepções e aspirações que permeiam a vida das pessoas *...+ Suas músicas,
compreendidas como representações, elucidam, mesmo que parcialmente, relações
de poder estabelecidas, sendo indícios de práticas, ações e valores em negociação e,
no limite, em dissonância com a ordem social do capital.5

Desse modo, olhar para as relações rap-sociedade supõe o estudo de certas formas de
tensão social presentes no Brasil, já que o rap permite a "construção de representações sobre
a sociedade brasileira"6, na medida em que ele é

uma importante via para adentrarmos no terreno dos conflitos, das tensões e do
poder que opera desigualmente na vida social, conduzindo-nos a repensar os
processos sócio-históricos no Brasil atual (que, não raro é visto, com pessimismo
pelos rappers) e as contradições que os cercam, mesmo quando a difusão do rap
está associada, em alguma medida, à indústria cultural (particularmente a do
entretenimento) e, por isso, seja tachado de alienante.7

Buscando apresentar, entre outras coisas, a origem do rap, o autor lembra que sua

2
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 17.
3
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 18.
4
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 20.
5
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 21.
6
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 27.
7
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 27.

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Rap e política...

genealogia não é muito precisa, até por ter surgido "à margem de esquemas formais de
regulação e documentação da cultura"8. De qualquer maneira, há algumas constantes que são
consenso em relação à sua origem, como o fato de ele estar ligado à presença de imigrantes
negros e latino-americanos (sobretudo os jamaicanos), com forte base cultural africana;
resultado de múltiplas experiências culturais, o rap não é um produto acabado e cristalizado,
interagindo com diversos estilos musicais, carregando uma reconhecida bagagem cultural e
social e instituindo uma espécie de poética. No Brasil, essa manifestação cultural-musical 289
chega em meados dos anos 1980, embora já tivesse se manifestado antes, nos bailes blacks
(quando ainda se confundia com o funk); nos anos 1990, as diferenças aumentam, e o rap
ganha mais autonomia, configurando-se como uma estética do problema, representando as
questões sociais mais agudas das periferias, priorizando temas do cotidiano e ligados à
marginalização. Em resumo:

O rap foi ativamente incorporado ao expediente cultural brasileiro, e os sujeitos que


a ele se vincularam e se projetam, inclusive por intermédio dele, em meio aos
debates acerca da sociedade de seu tempo, atestaram, assim, sua participação na
vida pública e, em particular, nos meandros da política. Construíram uma prática
cultural que verbalizou as dissonâncias, assinalou a contestação social no espaço da
cidade e alimentou um novo ambiente de reflexão e denúncia. O rap operou com
uma dupla função no cotidiano de seus produtores e fruidores: a um só tempo foi
discurso de revolta e denúncia da deplorável condição a que um sem-número de
brasileiros é relegado e também veículo de catarse perante situações de opressão e
controle social. Ao aderir a essa prática, homens e mulheres criaram um espaço no
qual puderam reaver e construir sua identidade, reconfigurar sua autoestima e
propagar valores alternativos.9

O autor trata, ainda, das críticas feitas ao rap, desconstruindo algumas delas (como
aquelas que consideram o rap brasileiro como uma mera cópia/imitação do americano),
refletindo sobre questões mais pontuais (forma, conteúdo, aspectos musicais etc.) e
discutindo aspectos ideológicos (como a crítica de que o rap seria alienante). O autor defende
a ideia, entre outras, de que os rappers brasileiros souberam recriar a linguagem vinda do
exterior, adaptando-a ao contexto nacional; destaca, contudo, a marca recorrente da
experiência social presente em suas letras: "as memórias erigidas pelos rappers
desembocaram numa espécie de memória-experiência. Uma memória, diga-se de passagem,

8
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015, p.33.
9
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p.51.

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urdida em narrativas complexas e ricas."10


Outro elemento estudado pelo autor é a trajetória de alguns dos sujeitos que
constituem o cenário do rap no Brasil, levando em conta "a representação que elaboram
acerca deles mesmos e da prática cultural com a qual se envolveram."11 Nesse contexto,
destaca "a construção de uma atitude engajada, de um posicionamento crítico e de uma
postura de protesto em suas *dos rappers+ ações, músicas e comportamentos."12 Torna-se

290 relevante, nesse cenário, o papel de sujeito engajado que os rappers adotam para si,
enfatizando assim a relação entre música e política.
É sobretudo este aspecto das canções de rap estudadas que o autor irá destacar em
suas análises, a começar pelo fato de detectar, nas letras das músicas, uma concepção ampla
de política, numa virada conceitual que traz a política para o cotidiano, isto é, fora dos
espaços convencionais e fora do âmbito de seus agentes instituídos (os políticos). É nesse
sentido que os sujeitos do cenário do rap trazem para suas canções uma maior complexidade
social e cultural, questionando valores e conceitos. Relegando, assim, a política tradicional a
algumas letras que a condenam numa espécie de tribunal de opinião, os rappers optam por
retratar em suas letras as experiências vividas no dia a dia das grandes cidades, uma
experiência marcada pela dramaticidade da vida social:

As tensões das relações sociais se encarnam na linguagem rap e projetam a


produção cultural como uma memória seletiva de aspectos do trabalho, da política,
dos costumes, dos símbolos e valores do emaranhado que é a sociedade
contemporânea. É possível pensar essas músicas como portadoras de elementos
constituintes das constantes mudanças sociais, como um campo de luta em que as
disputas de domínio e afirmação social se fazem presentes. São representações que
reconstroem (ou constroem em articulação com) elementos/acontecimentos
socialmente vividos. Em suma, um processo de reconfiguração da experiência que
estreita os laços entre cultura e vida social.13

Em outros termos:

A cultura musical rap é amplamente diversificada, respondendo por uma variedade


de perspectivas e modos de ver o mundo. Entretanto, a despeito de todas as
diferenças, está conectada às experiências de sujeitos socialmente ativos e permite,
pelo 'filtro' colocado por essas pessoas, apreendê-las, analisá-las e qualificá-las. Suas
músicas tratam de situações que implicam a delimitação de grupos sociais,

10
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 75.
11
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 77.
12
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 77.
13
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 130.

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Rap e política...

colocando-se como pertencentes a estratos marginalizados, pobres, discriminados,


oprimidos.14

Assim, analisando a letras de várias canções do rap, o autor destaca aspectos políticos,
sociais, pessoais etc., sempre enfatizando a "inter-relação realidade e ficção"15, além de sua
atuação com instrumento pedagógico nesse contexto. São, portanto, essas poéticas do vivido
que dão o tom crítico às letras das músicas, que vai além do entretenimento, chocando-se
com padrões hegemônicos de interpretação da realidade. 291
Seu livro, por fim, dialoga não apenas com outras obras do gênero – uma vez que, há
algum tempo, o rap tem sido objeto de pesquisa acadêmica –, mas também com o contexto
político em que ele é produzido e no qual se insere como contraponto crítico. Nesse sentido,
insere-se numa tradição que tem estudado esse fenômeno artístico seja do ponto de vista
cultural, como manifestação estético-social da periferia, a exemplo do livro de Andréia
Moassab16; seja do ponto de vista sonoro, como fenômeno musical de nosso tempo, a
exemplo do livro de Ricardo Teperman17; seja ainda como expressão literária, presente no
livro de Ecio Salles.18
Ler o livro de Roberto Camargos é percorrer os meandros de um “sistema” cultural
altamente dinâmico e produtivo, e que, embora tenha seu centro geopolítico nas periferias
das grandes cidades, dissipou-se, rapidamente, por todas as regiões.

Recebido em: 14.08.2017


Aprovado em: 12.11.2017

14
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 133.
15
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 140.
16
MOASSAB, Andréia. Brasil periferia(s): a comunicação insurgente do hip-hop. São Paulo: Educ, 2011.
17
TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som. As transformações do rap no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.
18
SALLES, Ecio. Poesia Revoltada. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007.

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