HOCHSCHILD, Adam. Enterrem as Correntes. Profetas e rebeldes na luta pela libertação dos escravos. 1ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2007.
José Maia Bezerra Neto*
Em 2008, uma importante efeméride foi objeto de
comemorações no mundo anglo-saxão: os 200 anos de abolição do tráfico inglês de escravos africanos. No Brasil, é verdade, a data passou praticamente desatenta, afinal o próprio tráfico brasileiro de escravos somente terminou em 1850, isto é, quase meio século depois do fim do negócio inglês de cativos africanos. Daí, então, a pergunta que poderia ser feita: que importância para o Brasil teria a efeméride de abolição do tráfico inglês? A resposta, quase que pronta na ponta da língua, que ainda se aprende, seria de que abolido o comércio britânico de escravos, a Inglaterra passou a combater o tráfico de outros países, entre eles o Brasil e que sem a pressão inglesa o comércio brasileiro de escravos haveria de continuar por mais algum tempo. Tudo isto porque, poderia ser emendada uma explicação na outra, igualmente ainda se aprende e acredita-se que a abolição do tráfico inglês fora uma conseqüência em linha reta e óbvia do nascente capitalismo industrial, o qual ordenando o mundo a partir de seus interesses materiais findava o lugar do tráfico e, portanto, do trabalho escravo, em favor do trabalho livre e assalariado, afinal a Revolução Industrial inglesa carecia igualmente de mercados. A resposta, no entanto, exposta no parágrafo anterior já não satisfaz, ainda que bastante usual ou recorrente, visto que durante muito tempo fora sustentada por interpretações historiográficas que entendiam o advento e sustentação do tráfico e da escravidão negra de origem africana nas Américas como parte do Capitalismo Comercial da
* Professor da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará.
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Idade Moderna, cuja face era o chamado Antigo Sistema Colonial. E que, havendo então a superação do Capitalismo Comercial e, consequentemente, do Antigo Sistema Colonial, a partir da Revolução Industrial houve a liquidação do tráfico e da escravidão africana no mundo ocidental atlântico num menor ou maior lapso de tempo, sendo mais abreviado seu fim no centro do sistema do Capitalismo Industrial e retardatário seu término na periferia, tal qual seria o Império do Brasil neste modelo interpretativo. Mas, havia dito que tal modelo explicativo, enfim a resposta aqui exposta, já não é satisfatória justamente porque o sobredito modelo historiográfico deixou de ser considerado em sua validade interpretativa, por mais que teimosamente resistente no Brasil. Pois, pelo menos desde a década de 1960, a historiografia de língua inglesa, através da publicação de importantes trabalhos, alguns deles somente mais recentemente traduzidos e publicados no Brasil, vem demonstrando que o advento do capitalismo industrial estava longe de favorecer o término do tráfico negreiro, bem como a extinção da escravidão de origem africana no mundo ocidental. Muito pelo contrário. O aumento da demanda por algodão por parte da indústria têxtil, o carro-chefe da industrialização inglesa, implicou uma maior necessidade de se garantir uma maior quantidade do produto por um custo mais competitivo, o que somente seria possível por meio das plantations algodoeiras já existentes no Velho Sul ou em expansão rumo ao Novo Sul, nos Estados Unidos, com o uso, portanto, do trabalho escravo. Aliás, por conta da incapacidade conjuntural da economia sulista americana de atender a demanda de algodão inglesa se explica o robustecimento da economia escravista no Maranhão, seja em fins do século XVIII e início do XIX ou nos anos iniciais da década de 1860. Da mesma forma, como uma resposta ao aumento do consumo das nações industrializadas de produtos como o café ou o açúcar, principalmente o café, tem-se ao longo do século XIX no Brasil a expansão da cafeicultura usando largamente o trabalho escravo. Ou seja, como já demonstrado pelos trabalhos de Robin Blackburn, a escravidão ainda tinha seu lugar de ser nas redes do capitalismo industrial. E quando não a escravidão, por conta da insustentabilidade política do regime escravista mais do que de sua inviabilidade econômica sob o capitalismo, para atender as demandas do capitalismo
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industrial em formação no mundo ocidental se fez uso de alguma forma de trabalho compulsório de homens livres, tal como aconteceu na exploração da goma elástica na Amazônia sob a forma de endividamento dos seringueiros. Havendo, então, ainda lugar para a escravidão, em relação ao tráfico não havia de ser muito diferente. Quando da abolição do tráfico inglês em 1808, por exemplo, as perdas econômicas estavam longe de ser pequenas, muito pelo contrário. Calcula-se que o fim do tráfico negreiro inglês e, na esteira, da escravidão nas colônias inglesas tenha representado perdas da ordem de 1,8% da renda nacional britânica por mais de cinqüenta anos. Daí a idéia de que o tráfico inglês foi abolido porque já não seria uma atividade lucrativa ou rentável o suficiente para continuar existindo, havendo outras formas mais sedutoras de aplicação de capitais e ganhos materiais por parte do capitalismo inglês, ser minimamente uma idéia ou tese passível de descrédito. Então por que e, principalmente, como se aboliu o tráfico negreiro inglês, se iniciando um importante capítulo na história ocidental de luta pela liberdade e pelos direitos humanos? Esta questão, Adam Hochschild responde em seu magnífico livro Enterrem as Correntes, cuja edição brasileira parece ter acrescentado ao título original traduzido do inglês o subtítulo: ―Profetas e rebeldes na luta pela libertação dos escravos‖. No livro ora resenhado, dividido em cinco partes ou grandes capítulos, somos convidados a acompanhar o mais de perto possível as trajetórias de homens que dedicaram parte de suas vidas, alguns mais outros menos, à luta contra o tráfico negreiro e a escravidão, entre eles James Ramsey, Granville Sharp, William Wilberforce, Olaudah Equiano e, principalmente, a trajetória de Thomas Clarkson, o mais importante e devotado militante anti-tráfico. Esses sujeitos, além de outros citados nominalmente ou não ao longo do livro, homens ou mulheres, em algum momento foram tocados pela noção de que o tráfico de pessoas reduzidas à escravidão era imoral, sendo um pecado. Mas convencer a grande maioria das pessoas, inclusive na Inglaterra, de que assim o era e, portanto, o tráfico e a escravidão dele decorrente deviam deixar de existir seria o grande desafio desses homens devotados à militância abolicionista, quando sabemos, por exemplo, que o trabalho livre no mundo em fins do século XVIII ainda não era algo difundido e largamente aceito, sendo a grande maioria dos trabalhadores sujeita a
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alguma forma de trabalho compulsório, seja escravo, servil ou outra forma de subordinação qualquer. Mais do que isto, era preciso convencer a opinião pública de que um mundo sem escravidão podia existir e era possível, numa época em que a grande maioria das pessoas estava convencida que sem alguma forma de trabalho compulsório até mesmo a liberdade dos que eram livres estaria ameaçada, enfim que um mundo sem escravos, servos ou trabalhadores compulsórios mesmo que livres, seria um mundo ao avesso, sem ordem e sem autoridade. Ou seja, a noção que temos hoje, a bem dizer axiomática, de que a escravidão é um absurdo, é algo condenável e inadmissível em todos os sentidos, e que todos nós para o bem ou para o mal não podemos, nem devemos admitir a escravidão, sendo a escravidão considerada um crime, tem uma história, ainda que nos pareça uma convicção indiscutível e, portanto, tão natural com a própria condição humana. Esta história, ou como em larga medida se dá início a ela, é que Hochschild nos conta em seu livro. O autor em sua apaixonada e apaixonante narrativa, que faz da leitura de seu livro uma agradável vertigem, demonstra que estava longe de ser fácil a tarefa de convencimento da opinião pública inglesa de que o tráfico e, consequentemente, a escravidão devia deixar de ter seu lugar no mundo, sendo extintos. Isto porque não fora apenas tarefa penosa, marcada muitas vezes por reveses pessoais e derrotas políticas no Parlamento, mas igualmente marcada por risco de perda da própria vida, sendo, por exemplo, várias vezes Thomas Clarkson ameaçado de morte, de vez em quando conseguindo escapar por pouco, quando de suas viagens em campanha pelo fim do tráfico por regiões ou cidades portuárias inglesas com fortes interesses no comércio de escravos africanos. Face a tamanho desafio, os militantes do abolicionismo inglês haviam de ser não apenas destemidos, mas igualmente criativos, demonstrando então o autor como muitas das táticas e estratégias de propaganda política ou de persuasão da sociedade civil, ou ainda de pressão sobre os dirigentes do Estado já eram postas em ação pelos abolicionistas ingleses. Nesse sentido, aliás, Hochschild demonstra sua convicção de que a luta de determinados indivíduos pelo fim do tráfico e da escravidão, pois eles acreditavam em lagra medida que a extinção de um levaria ao fim do outro, sendo um capítulo
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importante da história dos direitos dos homens e dos direitos humanos, era igualmente parte considerável da história da constituição da democracia moderna. Até porque, o autor, ao longo de seu livro, tratando das trajetórias individuais dos militantes abolicionistas nos apresenta a história dessa luta. História da luta contra o tráfico em sua dimensão atlântica, não perdendo de vista as conexões entre as lutas dos abolicionistas ingleses contra o tráfico, o fogo revolucionário na França de fins do século XVIII, aquando da Revolução Francesa, e a luta dos escravos pela liberdade no Novo Mundo. Uma história da luta abolicionista que em suas conexões conhecera igualmente sérios reveses e refluxos, quando, por exemplo, das lutas entre a Inglaterra e a França saída da Revolução Francesa, inclusive e principalmente durante o período napoleônico, ser abolicionista na Inglaterra era quase o mesmo que ser jacobino ou impatriótico, ocorrendo neste momento um esfriamento da luta anti-tráfico por conta da conjuntura extremamente desfavorável a essa agitação política. Sendo neste período, aliás, as lutas dos escravos no Novo Mundo pela liberdade, destacadamente a revolução escrava no Haiti, o ponto alto da história da luta no ocidente contra a escravidão, o que, por sua vez, se por um lado era bom para o abolicionismo, por outro lado não o era, aumentando a desconfiança acerca da possibilidade de um mundo sem escravidão com ordem e autoridade por parte da sociedade civil. Enfim, uma história que iniciada em um final de tarde de 22 de maio de 1787, quando doze homens, em grande maioria quackers, se reuniram em uma tipografia então localizada no número 2 da George Yard, em Londres, decidiram se unir em torno de um objetivo comum: a abolição do tráfico negreiro inglês, somente alcançaria seu ponto mais elevado em 1807, quando o parlamento inglês finalmente aprovou o fim desse comércio a partir do ano de 1808. Isto após duas décadas de militância. Sendo necessárias mais algumas décadas para que a abolição da escravidão nas colônias inglesas também se tornasse realidade, isto já na década de 1830, não sendo, portanto, tão lógico, causal ou natural assim que terminado o tráfico logo fosse extinta a escravidão, cujo regime em todas as partes do Novo Mundo em que existiu demonstrou ter
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sobrefôlego suficiente para continuar existindo por mais tempo ao fim do tráfico. Outro aspecto importante a salientar do livro aqui comentado diz respeito à importância da militância das mulheres pelo fim do tráfico, cuja participação ainda merece um olhar mais atento. Sendo, no entanto, o ponto mais significativo deste livro o fato de que tratando da luta dos abolicionistas ingleses nos faz ver o quanto está longe da verdade a idéia calcada em uma interpretação histórica mecânica de que o surgimento do capitalismo industrial inglês tornou o tráfico obsoleto enquanto negócio, sendo esta a razão de sua abolição pelo parlamento inglês sem maiores ou até mesmo menores traumas para a sociedade inglesa, simples assim! Pelas páginas do belo livro de Hochschild, vemos que se aos abolicionistas ingleses coube uma difícil e penosa missão era justamente porque seus oponentes não somente tinham ao seu lado durante muito tempo a simpatia ou neutralidade de boa parte da opinião pública ou da sociedade civil, mas igualmente dispunham de muitos mais recursos e influências poderosas para manter o tráfico até quando não fora mais possível. Afinal foram precisas duas décadas para se obter o fim do tráfico inglês, e a partir daí mais de duas outras décadas para se abolir a escravidão nos domínios ingleses no Novo Mundo, tendo papel importante neste processo também as revoltas escravas ocorridas no Caribe britânico. Enfim, vale a pena fazer a leitura deste trabalho não somente por seus méritos de conteúdo, ainda que não objeto de pesquisa documental primária, mas também porque os leitores brasileiros ainda se ressentem bastante de conhecer melhor e amiúde a historiografia de língua inglesa ou anglo-saxã sobre a escravidão e o abolicionismo, sendo só mais recentemente alguns desses trabalhos traduzidos e publicados no Brasil, enquanto outros importantes citados por Hochschild, nos quais se baseia, ainda aguardam quem sabe sua vez. A leitura também vale a pena, apesar de 587 páginas diriam alguns, pela leveza do texto com uma narrativa que nos guia tão bem que quando nos damos conta da coisa já estamos terminando sua leitura. Estilo literário que me faz dizer sem pudor a emoção que me causou ao terminar sua leitura, lembrando então o que já dizia José Veríssimo que a capacidade de comover o leitor
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independente da época e lugar em que se lê a obra é que faz dela exemplo de arte literária. Mas como ia dizendo, ficara comovido ao término de sua leitura, melhor dizendo ao acabar de ler o final da quinta e última parte quando foi contado pelo autor que durante o enterro de Thomas Clarkson, em 1846, após ter dedicado sessenta anos de sua vida (morreu com cerca de 86 anos) à luta contra a escravidão, os quackers lhe renderam uma homenagem especial, ―praticamente sem precedentes e que divergia de um longo costume sagrado‖. Qual? Leiam o livro, mas desde o começo.
Ingleses x Ingleses: poder e conflito entre a diplomacia londrina e os comerciantes britânicos no comércio proibido de escravos (Rio de Janeiro, 1826-1850)