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Escravidão moderna e Capitalismo

Poucas práticas são tão repugnantes quanto a de subjugar um ser humano com o objetivo de
reduzi-lo a condição de escravo, sem qualquer direito ou dignidade. Um número incalculável de
pessoas, em todo o mundo e em diferentes épocas, foi submetido a esse terrível destino. Foi com
o suor e o sangue de homens, mulheres e crianças tratadas como meros objetos, passíveis de
serem comprados, vendidos ou mortos a qualquer momento, que grande parte das civilizações
mais admiradas da atualidade, como Atenas na Grécia Antiga e o Império Romano, ergueram e
consolidaram seus esplendorosos legados.

Ao longo de toda a história, a escravidão adotou diferentes nomes e formas, os proprietários e


suas vítimas variaram consideravelmente de perfil, mas uma coisa permanece constante: por
maior que fosse a brutalidade envolvida, a escravidão sempre teve notórios defensores. Em
geral, esses são oriundos das elites que dela se beneficiam. Aristóteles, brilhante filósofo de
importância indiscutível, argumentava que manter um semelhante como propriedade era
“natural”. Na primeira parte de seu clássico Política, o sucessor de Platão na academia ateniense
dedica boa parte do texto à defesa da escravidão como algo positivo não apenas para a
sociedade como um todo, mas também para a pessoa escravizada.

Ideias similares às de Aristóteles teriam forte eco nos séculos 15 e 16, período em que se
iniciava a expansão marítima e colonial das principais potências europeias. Nessa época,
portugueses e espanhóis, seguidos mais tarde por ingleses, franceses e holandeses,
desenvolveram frotas capazes de cruzar oceanos e alcançar territórios previamente
desconhecidos na Europa, sobretudo o continente que mais tarde viria a ser chamado de
América. Após o extermínio da maior parte dos povos locais por doenças e massacres, os
europeus se viram defrontados com a necessidade de encontrar mão-de-obra escrava em algum
outro lugar. A solução foi negociar com os reinos da costa oeste da África para garantir escravos
em quantidade suficiente para cultivar e extrair as fabulosas riquezas do Novo Mundo.

Mesmo para os padrões da época, comprar seres humanos acorrentados e amontoados em fortes
na costa africana, transportá-los em porões de navios ainda mais amontoados, onde muitos
perdiam a vida, e desembarcá-los em portos nas colônias americanas para serem
comercializados era uma violência que saltava aos olhos de qualquer um. Era necessário
fabricar “justificativas” para tal barbárie. Sendo assim, os comerciantes e traficantes de
escravos, os antepassados sociais dos atuais capitalistas, recrutaram desde sacerdotes até
“cientistas”. Esses servidores assalariados da nascente classe burguesa não tardaram a produzir
toda a sorte de absurdos, que iam desde uma suposta “inferioridade intelectual” do negro até
uma tentativa de “salvar as almas” dos africanos.

Por detrás de tantas mentiras, que dariam origem às ideias racistas que marcariam a história do
Ocidente desde então, estava a necessidade de garantir que as especiarias e os metais preciosos
continuassem a gerar lucros para a nascente burguesia comercial, além de dividendos para os
grandes reinos da Europa. Tudo ao menor custo possível! A melhor maneira de garantir isso era
empregando mão-de-obra escrava em quantidades cada vez maiores.
No total, estima-se de dez a doze milhões o número de africanos arrancados de suas terras e
levados para a América como escravos entre os séculos 16 e 19. Desse total, pelo menos 1,5
milhões morreram antes de chegarem aos mercados de escravos, a maioria na travessia do
Atlântico. Essa foi a base do período que Marx chamaria de “Acumulação Primitiva de
Capital”: milhões de vidas escravizadas, condenadas a trabalhar até o último suspiro no cultivo
de cana-de-açúcar, café, algodão, tabaco e outros produtos que eram vendidos no mercado
europeu. O próprio comércio de escravos era um dos pilares da economia da época, ficando
apenas atrás do açúcar em termos de lucros gerados.

Além da importância fundamental para a constituição do capitalismo como sistema econômico


mundial, a escravidão moderna também foi crucial para a construção das sociedades injustas
que perduram até hoje no continente americano, e mesmo fora dele. No Brasil, por exemplo,
séculos de escravidão negra por todo o território nacional levaram ao surgimento de um racismo
particularmente enraizado na sociedade. Quase 150 anos desde o fim da escravidão, a grande
maioria da classe trabalhadora brasileira, especialmente nos setores mais explorados, é
constituída pelos descendentes dos escravos, que assim como seus antepassados, são forçados a
lidar com a discriminação racial mesmo no interior da classe trabalhadora.

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