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Quem danç a usa a lingu agem do co~po para s:

expressar. Importa
most rar esse corpo responsivo, que fala e inter age nao apen as com os de.
mais elem entos da cultu ra hip-hop, como tamb ém com o que está aconte•
cendo ao redor. As performances most ram flexibilidade, agilidade e destre.
za com técnicas criad as e recri adas por b.boys e b.girls.

Figura 3 : Performan ce de b.boy

GRAFITE
O grafite é um texto multissemiótico, que mesc la o verbal e o não
verbal, com diferentes técnicas e estilos para inten ciona lmen te interferir
na paisa gem urbana. O grafiteiro ou a grafiteira pinta m temá ticas signifi-
cativas do mom ento que se vive. Classicamente os traba lhos que se apro-
priam dos muro s e fachadas são utilizados para "man dar sua mensagem "·
Até que o grafite fosse reconhecido como arte, muitos grafiteiros
foram espancados, preso s como "pert urbad ores da ordem", mas mesmo
tendo cerceadas suas escritas em forma de desen ho , conti nuara m a bus-
.
car formas de suste ntar sua arte subversiva. Atualmente, alguns grafitei-

76 G._, LEH~MENTOS l>E REEXISTÊNC-1~ - POESI~. GR~flTE. MUSIC.~. P~Ny~: H/P-HO


P
ros, em sua maioria brancos e de classe média, expõem seus trabalhos em
galerias ou são convidad os para pintar em espaços públicos. Além disso, é
interessante observar como a escola, por meio de oficinas ou nas aulas de
artes, em uma tentativa de envolver alunos e comunidade, vem abraçand o
grafite como uma expressã o artística válida e relevante. Isso não signifi-
0
ca que todos os desafios foram vencidos, uma vez que, devido ao custo de
sua produção - sprays, suportes, rolos, pincéis -, muitos não têm como
expressar sua arte de forma socialmente legitimada.

Figura 4: Grafite de Tiago Vaz

MOVll'ENTO WLTUAAL H!P-HOP E AS 'RELAÇÕES lOM AS INSTrn.JIÇÕES


. , • d O h1·p-hop com mais ênfase
,
Outro aspecto que marca a traJetona ' de
~ • l' ita em suas formas
apos 1990, diz respeito à incorpora çao mais exp ic ' , , .
. " • 1 ionadas a estet1ca e
se expressar, das marcas de luta e res1stenci a re ac
àt . . , d a ordem era ocupar os
est1v1dade. Se anteriorm ente a esse peno o, .
es ' . competir agora se tratava
Paços da rua para dançar, divertir-se , cnar e '

•o t-UL. TUR~L. r,~ T>/~SPOR~ NE~R~ ~ ??


HIP-HOP-. UM~ PROT>Uy,..
de compreende r e agir diante da repressão policial que os acusava de per.
turbação da ordem pública.
Diante disso, os grupos passaram a atuar em locais fechados, tais
como oNGs, escolas e centros comunitários. Estando mais próximos de
seus locais de moradia, começaram a ficar mais atentos aos problemas
do dia a dia, tais como a violência, a repressão policial e o desemprego.
Para entender o porquê de aquelas regiões conviverem especificamen.
te com tais problemas, começam a se reunir mais sistematicam ente para
discutir, debater e apresentar soluções para os enfrentamen tos diários. A
participação em atividades, que vão desde campanhas do agasalho, festas
para arrecadar fundos para ações comunitária s, até palestras em escolas
e centros comunitários, faz com que sejam estabelecida s trocas entre a
cultura hip-hop e a vida cotidiana na periferia.
Nesse contexto, surge a necessidade da criação de uma entidade para
representar os vários grupos espalhados pelas regiões da cidade de São
Paulo. Segundo Andrade (1996), nesse momento se redefinem as confi-
gurações da cultura hip-hop. É criado, em 1989, o MH20 - Movimento
Hip-Hop Organizado. Essa segunda fase marca o interesse em conhecer as
refer~ncias já incorporada s ao universo de reivindicações dos afro-ame-
ricanos, tais como questões relacionadas aos direitos civis dos negros,
como acontecia no hip-hop dos EUA.

No início dos anos 1990, verificamos entre os rappers paulistanos a


influência da segunda geração do rap norte-americano. Nesse mo-
mento, a luta pelos direitos civis da população negra e a mobilização
dos símbolos afro-americanos internacional izados integraram-se
ao universo discursivo de grupos como o Public Enemy, NWA KRS
One, Eric B e Rakin, entre outros. Refe rências à África, a Malcom X, a
Martin Luther King, aos Panteras Negras, ao Islã. Presentes nas mú-
sicas, nos videoclipes e nas capas dos discos, esses símbolos se tor-
naram também familiares aos rappers paulistanos (Silva, 1999: 29).

Novos direcioname ntos e objetivos começam a ser traçados diante


das ques~ões sociais e raciais. Os encontros começam a contar com apre-
sença de integrantes de organizações ligadas ao movimento social negro,
que enxergam nessas organizações juvenis um espaço produtivo para o
desenvolvim ento de ativid ades de grand e visibi"l i"d a d e para que pudes-
. . .
sem fa zer o discu rso ating ir e ser significativo para um maior , ro d e
. nume
época a ação da Geled és, uma organiz · açao
~ gover-
Pessoas. Desta ca-se na
name ntal volta da para direit os das mulhe res e jovens e contr a a discri -
minação racial e de gêner o, que suste ntou o Proje to Rappe rs, atendendo
uma dema nda de grupo s de joven s vítim as de repre ssão policial. Entre
1992 e 1998, a instit uição Rapp ers desen volve u várias estrat égias de
atenção e apoio - inclus ive editan do uma revist a, a Pode Crê!, voltad a
para a cultur a hip-hop - servin do de referê ncia para proje tos em diver-
sas parte s do Brasil, inclusive gover name ntais.

Em São Paulo, a intensificação das trocas conduz ao conhe cimen to


de que a cultur a de rua é mais do que dança, mais do que rima: trata- se
também de um espaç o de contestação diante do racismo, das discrimina-
ções raciais e das desig ualda des sociais; nesse contexto, "os rappers enfati-
zam que o 'autoc onhec iment o' é estratégico no sentido de comp reend er a
trajetória da popul ação negra na América e no Brasil" (Silva, 1999: 29). Em
função desse aspecto, há maior investimento na busca de aporte s e qualifi-
cação para os discursos, o que intensifica a aproximação dos rappe rs com
fo ntes e espaç os que possa m significar a posse de conhecimentos, o que
passa a ser visto quase como condição para a ação, conforme apont ado
por Silva (1999 ).
Com a densidade das novas informações, o rap vai de um estilo marca do
pela fala rápida e por letras com conteúdos menos críticos às questões sociais
ou raciais _ 0 rap tagarela -, para um estilo politizado, que tende menos
para a dança e a divers ão e mais para a escuta, a reflexão e a politização.

A condiç ão de excluído surge no discur so rapper como objeto de


reflexão e denún cia; mais uma vez (... ) os rappers falam como ~or-
. .1 · do em que os drama s pessoa is e
ta-voz es desse umver so si encia . " .
de forma dramática. Chacinas, v10lenc~1a
coletivos desenv o 1vem-s e
. , . d re ação social dos anos 1990 .sao
policial racismo, m1sena e ª esag g s da desmd
.
ustnah
.
-
' , . er São reflexo
temas recorr entes na poetic a rapp · . . . .d d
~0 urbana que div1dm a c1 a e em
zação da metró pole e da segregaça ·1 1999· 31)
.. b • 05 pobres (S1 va, · ·
condo mínio s fortificados e airr

- ~UL TURAL PA P/ÁSPORA NEt;;R,. e... 79


PROPUÇAO
Esse retros pecto do movim ento cultur al hip-ho p oferece indícios
para pensa r o porqu ê da amplitude de ocupa ção e transfo rmaçã o dos es-
paços onde ele consegue chegar e, també m, o porqu ê de seu reconheci-
mento atual como um movim ento cultural e político de desenvolvimento
de prática s socioe ducativas, de resistência e de autoafirmaçã o. De certo
modo, o hip-ho p se filia a uma noção de educa ção, em sentid o amplo, nos
molde s explicitados por Silva (2003) , ao tratar de uma concepção de edu-
cação pautad a na matriz africana.

Só se torna educad o quem se vale da educaç ão para progredir no


tornar- se pessoa, o que implica fazer parte de uma comunidade.
A comun idade, territór io de convivências, se forma e mantém no
conjun to de relações entre as pessoas, o que possibilita a cada um
exercer, desenvolver, enriqu ecer suas energia s, potencialidade, sa-
beres (p. 186).

Nesses moldes, a educação seria impor tante para que as pessoas


apren dessem a "conduzir a própri a vida" (Silva, 2003) , usufruindo co-
letivam ente dos aprend izados , tal como acontece em outras expressões
culturais da diáspo ra negra: capoeira, maracatus, jongo, maculelê, terrei-
ros de cando mblé, congadas, sambas, batuqu es, rodas de sou/ e funk, nas
quais as divers as manei ras de partici par têm feito sentid o e representam,
para o segme nto negro da população, possibilidades de trocas e de socia-
bilidad es no processo de educação de várias gerações.

ESPAÇOS PRATIC-APOS PE LETRAMENTOS

No univer so hip-hop, uma das questõ es centra is diz respeito à neces-


sidade de produ zir novas formas de experi menta r e apropr iar-se de co-
nhecim entos e sabere s socialmente constr uídos e, nesse sentido, os usos
da linguagem ganha m impor tância fundamental. Os grupos têm busca-
do modos de visibilizar as novas manei ras de relacionar-se com práticas
culturais, cuja centra lidade está na linguagem escrita, gestual, imagética,
musical. Partic ipar do hip-ho p tem significado aprend er a inserir-se 00
universo letrado, alteran do as imagens naturalizada s sobre as práticas de
letram ento dos jovens de periferia, dos jovens negros e pobres.
Nas mais .dive rsas~ ativi dade s que os 1·ovens rea1·1zam, estao ~
pres entes
taçao de supo rtes diversificados - 11vros . d e b.1ograt·1a
0 uso e a mov 1men . , .
de perso nage ns h1sto • e v1'd eos -
. t,ona
ncos ; letra s de músi ca·, li·vros d e h 1s
materiais que prov êm de dive rsas fontes: emp resta dos de bibliotecas, doa~
dos, emp re stados aos grup os. Uma das funções dos ativi stas envolvidos na
cultu ra hip-h op e stá em disse mina r valor es que têm servi do de refer ência
para a suste ntaç ão de práti cas de letra men tos capa zes de resp onde r às
suas dem anda s e inter esse s, bem como aos da comu nida de em que vivem.
A apro priaç ão de conh ecim ento s significativos aproxima m os par-
ticip antes da vida dos desc ende ntes de africanos, não apen as no Brasil,
mas tamb ém nos EUA, acom odan do tamb ém as ques tões sobr e desigual-
dade s de class e e, mais recen teme nte, de gêne ro.
Ainda que a apro priaç ão de conh ecim entos poss a se dar de fo rma
difusa, em meio a ativi dade s varia das, tais como shows, deba tes e pales -
tras, algun s grup os aind a valor izam as reun iões como lócus privilegiado
da circulação e prod ução de conh ecim entos . Tais reuniões, que pode m ou
não ocor rer no próp rio bairro, dema ndam planejamento: escolha do local
(gera lmen te espa ço cedid o); negociação e solicitação do local; agen da-
mento de data e horá rio; convocação dos membros; organização do local.
Nos enco ntros , são discu tidos os pont os da pauta; há tamb ém a distr ibui-
ção de taref as, o dese nvol vime nto da reun ião com ou sem registro escri to
e a comb inaçã o de novo s enco ntros .
De man eira geral, as açõe s desenvolvidas coletivamente envolvem
tamb ém a discu ssão de ques tões perti nent es às condições estru turais de
vida da com unid ade ou aind a em prop osiçõ es de atuação para a melh oria
local, como camp anha s e açõe s solid árias e reivindicações junto ao pode r
público, conf igura ndo- se em novos usos da linguagem escrita e oral.
, t·r do envolvimento em espaç os não
. escolari-
.
~
Nao raras vezes, e a par 1 _
zados de educ ação que os usos da linguagem escrita sao valorizados, pois
ganham sentidos no cotid iano .
que
Ainda que o sabe r escolar seja também validado pelos ativf_istas reque,
,. . . rtant e podemos a irma . .
ª escola seja vista como uma agen cia impo ' . . . ~ soc1a1s,
, . d O P
or vária s 1nst1tu1çoes
se O processo de letra ment o e orien ta
,. . . d. " ·cas e carac terísticas diver sas, o movi ment o hip-hop
agencias com inami , . .
pode ser consi era .d do como um espaç o de pratic as que, sem ser fixo ou
. ..
sufici . . · ti· tucion alizad o engen dra poss1 bihda des de usos da
entem ente ins '
linguagem em prátic as letrad as.
Nesse universo, nas diver sas prátic as de uso da lingu agem que se
mobilizam nas comu nidad es, os ativis tas atuam como agent es de letra-
mento s que têm como carac teríst ica serem

conhecedores dos meios, fraquezas e forças dos membros do grupo


e de suas práticas locais, mobilizadores de seus saberes e exper iên-
cias, seus 'modos de fazer' (inclusive o uso das lideranças dentro do
grupo), para realizar as atividades visadas: ir e vir, localizar, arreca -
dar, brincar, jogar, pesquisar (Kleiman, 2006b: 11 ).

Muitas vezes sem dispo r de meios para o traba lho, mostr am-se agen-
tes ao criar condições altern ativas , como tamb ém ao forma r outra s pes-
soas por meio das vivências que realizam, nas quais coloc am em foco as
conce pções de apren der e de ensin ar própr ias do que denom ino letra-
mentos de reexistência. Nesses espaç os pratic ados, apare ce uma mutipli-
cidad e de prátic as que, relaci onada s aos mais difere ntes conte xtos, envol -
vem tanto os usos social mente valori zados como os não valor izado s da
lingua gem, que neces sariam ente dizem respe ito às inten ções e objetivos
comp artilh ados e, sobre tudo, reinve ntado s.

Aí se manifesta a opacidade da cultura "popular" - a pedra negra


que se opõe à assimilação. O que aí se chama sabedoria define -se
como trampolinagem, palavra que um jogo de palavras associa à
acrobacia do saltimbanco e à sua arte de saltar no trampolim, e
como trapaçaria, astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de dri-
blar os termos dos contratos sociais (De Certeau, 1994: 79).

Desde as letras de rap até as vivências ideali zadas e propo rcion adas
por eles, os ativistas mostr am-se como sujeit os que resist em à linguagem
dogmática, aquel a que estab elece apena s um modo "certo " de utilizar a
linguagem, o padrã o, e busca m legiti mar e toma r posse de outro s modos
de inserção no mund o letrad o. Novamente, essas são carac terísti cas pró-
Prias de um. agente de letramento de um ator que me d
, . . . " ,, , smo sem gran es
recursos dispomveis, mobihza taticas, recursos, estratégias, os conheci-
mentos e a disponibilização das tecnologias" (Kleiman, 2006b).
Nos eventos de letramentos realizados pelos ativistas, a palavra se
investe e se reveste de contornos específicos, conjugando aspectos tais
como o contexto sócio-histórico de produção, os objetivos dos falantes
envolvidos, as relações de poder imbricadas, a dinâmica e as múltiplas
maneiras de uso social da linguagem.

Para compreender a complexidade envolvida nessas práticas de le-


tramentos, nos capítulos seguintes, identificarei no discurso as singula-
ridades dessas práticas e da ação do hip-hop como uma agência de letra-
mentos. Além disso, procurarei conhecer os posicionamentos dos sujeitos
como agentes de letramentos que se movimentam em contextos sociocul-
turais não escolares que parecem redefinir suas identidades sociais.
· co rnpreender corno os ativistas inseridos na cul-
prec1so , . .
tura hip-hop se apropriam e produzem praticas singula-
res de uso social da língua. Durante a primeira roda de
conversa, os participantes da pesquisa ficaram surpresos
com O que haviam descoberto sobre as práticas de leitura
uns dos outros: o que liam, como liam e como significa-
vam os mais diversos materiais impressos, tais como li-
V , fletos , material de propaganda de eventos culturais dos
quais tomavam parte etc. No grupo, a discussão sobre a importância do
debate e da troca de impressões, para além dos palcos ou das reuniões
para organizar atividades, ganhou mais corpo desde que apresentaram os
acervos que compartilhavam em suas casas.
Esse momento de trocas foi excelente oportunidade para propor aos
jovens a elaboração de uma narrativa na qual pudessem reconstituir para
os demais as etapas de suas vidas que consideravam significativas.
Nesse contexto, os jovens escreveriam para o grupo participante das
rodas de conversa e leriam essas produções aos demais, no encontro se-
guinte. Como preparação, apenas conversamos brevemente sobre como
podíamos considerar, em geral, as principais etapas da vida das pessoas
- infância, adolescência e juventude - e, nessas etapas, o relacionamen-
to com a família, a escola, o grupo de amigos, a participação social e o
trabalho. Sem uma organização temporal rígida, eles seriam os responsá-
veis pela seleção do que dizer, pela organização desses momentos e pela
escolha de como narrar.

Essas narrativas 1 não são o centro deste capítulo, mas constituem-se


em um dos vértices da triangulação dos dados, com as interações e as en-
trevistas individuais. Para conceituar narrativa, considero os pressupos-
tos de Bruner (1995), para quem o sujeito, ao narrar, coloca em ação sua
memória e, por meio dela, evoca e seleciona alguns eventos de suas vidas.
A narração pode ser compreendida como uma produção que abarca
relatos distintos e complementares. Ela toma a forma de uma enumeração

1
No desenho do proJ·eto de pesqu · . ., .
_ isa, a narrativa Ja fora pautada como um dos mstru-
mentos de geraçao de dados.

B6 °' LETRAMENTOS PE 'REEXISTÊNC.IA - POESIA. G'RAflTI=" Mt1c.1r • .... . ., • . ··- . -- -


de fatos, como uma cronologia, na qual se listam acontecimentos marcan-
tes de um período de vida transcorrido, tais como a entrada na escola, no
mundo do trabalho, entre outros momentos significativos. Aos eventos, ou
a alguns deles, são atribuídos significados, construindo crônicas nas quais
são detalhadas as experiências. Por exemplo, à entrada na escola, como
ocorrido com os jovens participantes desta pesquisa, pode-se atribuir a ex-
periência do racismo, entre outros aspectos de nossa sociedade. São os ele-
mentos presentes nas crônicas que se enredam em histórias mais densas:

O processo de "organização de uma autobiografia" é um hábil ato de


se transferir uma amostragem de memórias episódicas para uma
densa matriz de memória semântica organizada e culturalmente
esquematizada (Bruner, 1995: 14 7).

Ao trazer para seus relatos a interpretação de eventos significativos


em suas vidas, esses sujeitos tornaram visíveis os fios dos discursos com
os quais tecem suas identidades, mesmo que de modo instável e episó-
dico, e revelaram as práticas de letramentos que realizaram em diversos
momentos de suas vidas.

NARRATIVAS PE SI: PERC.URSOS PE LETRAMENTOS

~il~I',,
.: .·. ,,._,._._._ .
. o 1nves detsolt"
.: '

:raJ~da, atrás de latas ,e ga~ra

/â~s\é5angue escorrendo,pelo,nariz\,,,~;,
_'.io dâ•:meus 2 irmãos ·pequenos!! Foram ,t á' 'l; ,

~".,.," ...,,

. . 5,_ fúrados por pregos e vidros mas feltz, pot~,, Ç-


.,._

r ãd·s.

EM MOVIMENTOS. M,ÊNC.I~ E M;;ENTES EMER6ENTES ~ 87


relevo do que questões disciplinares ou "conteudísticas". A valorização
do espaço de pertença explica a importância da escola para esses jovens,
bem como para O movimento hip-hop em São Paulo. O que é questiona-
do não é a "escola", mas o que valorizar nessa educação, as formas de
nos relacionar dentro dela, os usos possíveis das aprendizagens. A escola
é como um espaço em que circulam letramentos múltiplos e heterogê-
neos, tanto quanto a multiplicidade de culturas, encarnada nas histórias
de vida dos diferentes sujeitos que ela recebe (Rajo, 2009; Bunzen, 2009;
Vóvio, 2007; Kleiman, 2006a).
Muitas das práticas letradas valorizadas pelos ativistas se deram em
ambientes não escolarizados, sem que isso significasse aversão à educa-
ção escolar ou ao valor que ela pode ter.
A inserção no universo hip-hop aparece como momento fundamen-
tal para os ativistas, assumindo um sentido quase messiânico ao apresen-
tar um propósito para suas vidas: geralmente o de "resgatá-los" de uma
vida de violências, sem sonhos e objetivos, ou fortalecer sua autoestima. É
instigante constatar o poder transformador atribuído ao movimento: ele
ganha uma importância tal nas narrativas que adquire valor semelhante
ao da esfera familiar. Destaca-se também o papel da família, em especial
das mães, que os incentivam a reagir e a construir outras possibilidades
para si mesmos, menos destrutivas, mais positivadas.
Os excertos seguintes mostram como cada um entrelaça em suas histó-
rias as memórias de vivências na família, na escola e no movimento hip-hop.
c;:::I

™1QlTu ~ ~ lllJPc/IJ!iP @ ~ Q

Garanti o pão de meus 2 irmãos pequenos!! Foram 7 anos assim,


escola, latinhas, pés furados por pregos e vidros mas feliz, pois o
leite não faltava aos irmãos./ ... / Preconceito e discriminação setor-
navam meu pior inimigo, abrigo escondido, burguesia que olhava
aqui pro preto querendo que eu fosse sempre um falido, um fudido
na vida/ ... / mas de repente me vejo olhando pra uma luz no fi nal do
túnel, melhor dizendo dentro do túnel, São Bento, metrô Hip-hop,
st atus, uma época sem Ibope apenas shock dos /ook, urubus brancos
d ._
e roupas pretas, acerta ndo a lenha na verdadeira cultura de ofl

96
°" LETRAMENTOS I>E REEXISTÊNCIA - POESIA. 6;RAflTE. MÚSICA. I>ANyA: HIP-HOP
ossibilitou que as redes criadas se transform .
P ,. assem em f10s que, de ma-
. ,
neira heterogenea, foram .sendo entrelaçados, p ara d ar sentido as suas
es colhas e para demarcar identificações e drneren • ~ d .
. . c1açoes com eterm1na-
dos grupos, const1tu1ndo suas identidades sociais.

Essas narrativas, juntamente com a análise da primeira roda de con-


versa, ajudaram-me a identificar a função dual da leitura na vida desses
jovens: função relacionada a suas experiências na esfera escolar e outras
mais afeitas a suas vivências do cotidiano, e em espaços menos institucio-
nalizados, criados para se apropriarem de certas práticas de uso da escri-
ta, como o dos coletivos de hip-hop e o da rua, por exemplo. O que chamo
de funções escolarizadas e funções de vida não são categorias estanques
. que não dialogam. Pelo contrário: a trajetória escolar, embora muitas ve-
zes desprovida de prazer e descontinuada, tem importância reconhecida
em suas trajetórias, assim como as experiências em outros espaços edu-
cacionais como a família, a rua, e os grupos dos quais participam.
Falta mostrar como essa relação, esse entremeio, esse tercei~o espa-
ço (Babha, 1996), aquilo de que me aproximo e de que me distancio ao
mesmo tempo pontuarão os materiais que eles produzem.

C.ONSTRUINDO SENTIDOS PARA AC-ERVOS DE LEITURAS

. ,discursos
eons1·deran d o meu obJ. etivo de identificar, nos , dos .ativis-
,. .
t as, as pra, t·1cas d e letr.amentos e os valores atnbu1dos as expenenc1as
. .
· hop, aprese nto alguns excertos
, da pnmeira
praticadas no universo h1p-
d e 2004, logo apos. o encontro em
roda de conversa, ocorrida em agosto
. , . Eles oferecem importantes ele-
que foram preenchidos os que stionanos. . " .
_ d movimentos e das C1rcunstanc1as que
mentas para a compreensao os
dão sentido aos enunciados dos jovens.
, da ão inicial e enquanto nos acamo-
Na roda de conversa, apos ª sau ç d à minha abertura do
,
davamos s Nathas respon eu
em torno de uma mesa , . h .
ativa e nson a.
evento (Matencio, 2001) de forma provoc
Débora Dimenor, LGe e eu. O
s 'vamos Nathas, Soneca, ,
st
Na primeira roda de conversa e a ríodo noturno.
encontro teve a duração de cerca de duas horas no pe

,:G.ÊNt-1~ E ~~ NTES EMER~NTES -., 99


....r'I\IIMFNTO S,
,7
01 Analu: Olá, pessoal, vamos 1ª·
02 Nathas: Quem não fez a lição de casa? ((risos))

o enunciado de Nathas evoca um evento de letramento típico do


universo escolar, no qual o gerenciamen to da interlocução é geralmente
conduzido pela professora ou professor, cujo papel na interação autoriza
o controle e a cobrança de ações dos alunos. Nathas assume nesse mo-
mento o papel daquele que pode cobrar de todos os colegas uma ação
combinada anteriorment e, a de trazer os materiais de leitura, o que ele
denomina de lição. Por meio desse movimento, ele altera o quadro das
relações de poder, gerando a assimetria típica que sustenta as relações
professor-alu no no universo escolar e que também sustentará toda a si-
tuação de pesquisa nas rodas de conversa. Por meio da palavra que age
ideologicamente, ele busca conferir, em especial a mim, a pesquisadora
"de fora", outro lugar que não o de gerenciadora da interação.
Se, por um lado, ele age discursivamente e cria outro ritual marcado
pela subversão, toma posição e posiciona os demais participantes como um
grupo que pode ser cobrado, como aprendizes subalternizad os, por outro,
ele dialoga e responde ao evento clássico de entrevista acadêmica que en-
volve um jogo marcado pela assimetria entre aqueles que pesquisam e pro-
duzem conhecimento e aqueles que, muitas vezes, são objeto dessa ação.
Esse é apenas o início da roda de conversa, resultado de um razoá-
vel período de negociação em que os ativistas foram enfáticos quanto a
tornar os encontros parte de um processo que possibilitass e constituir
outras posições em relação aos papéis tipicamente ocupados por pesqui-
sador e pesquisados.
A fala inicial de Nathas funcionou no processo de geração de dados
como a ponta de um fio enunciativo que, ao longo dos encontros seguintes,
em meio a "operações de caças furtivas" (De Certeau, 1994), foi ardilosamen-
te entrelaçado na elaboração de um tecido resistente e revelador de práticas
socioculturais e de posicionamentos singulares de uso da linguagem.
Em resposta ao enunciado de Nathas, fortalecido pelos risos dos par-
ticipantes, tomo a palavra:

03 Analu: Não, vamos lá, então a ideia assim (.) não necessariamen-
te quem trouxe ou quem não trouxe, mas fala ::: r sobre O 0
que go sta de le:::r, (.) sobre o que::: moti: ::va, enfim, vai::

100 ~LETRAMENTOS ])E REEX.ISTÊNC.IA- POESIA G.RAFIT ,


' E. Ml.JS/C.A. ])ANÇA: HIP-HOP

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