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literatura-terreiro
Entrevista feita na Universidade Federal da Bahia para a Revista Inventário, em março de 2014, cujo
foco centrou-se na discussão apresentada no artigo do Prof. Dr. José Henrique de Freitas Santos
(Henrique Freitas), “NÃO HÁ DIALÉTICA NA ENCRUZILHADA: o hip-hop e a literatura-terreiro na cena
da cultura afro-baiana”, a fim de refletir sobre o conceito de literatura-terreiro apresentado pelo
professor e suas implicações para o campo dos estudos literários e de cultura.1
Revista Inventário (RI): Gostaríamos de iniciar falando, de maneira geral, sobre a sua
trajetória nos estudos ligados à literatura e cultura afro-brasileira. Você poderia falar
sobre sua postura política e como ela influenciou sua vida acadêmica?
Henrique Freitas (HF): Minha trajetória está ligada intimamente a dois vetores: ao que eu
chamo “Revolução das vassouras” e à influência determinante que a poesia negra da diáspora
africana teve em minha formação, através das culturas reggae, hip hop e samba-reggae.
A partir dos 11 ou 12 anos comecei a ler intensamente todos os textos literários escritos que
chegavam até mim e duas séries foram significativas para a minha formação: as coleções
Grandes Aventuras, livros que eram adaptações dos considerados “clássicos do cânone
ocidental” pela crítica literária tradicional, e Vaga-lume, série juvenil de narrativas de
aventuras que atravessou gerações. Estas duas coleções tem um acervo incrível que vai de
Barcos de papel a Escaravelho do diabo, no caso da Vaga-Lume, e de Odisseia, D. Quixote a
Robinson Crusoé, no caso da Grandes Aventuras, e eu pude ler tudo isso nesse período.
1
Entrevista concedida a Gabriel Santos, estudante do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura, do
Instituto de Letras da UFBA.
No bairro soteropolitano do Nordeste de disruptivo não há o meu, o seu; não há a
Amaralina, lugar em que nasci e vivi mais fronteira do nacional; tudo é saber
de 20 anos, Bob Marley, Edson Gomes, descontínuo sem origem nem fim
Alpha Blondy, Câmbio Negro, Racionais definidos, apenas devir em potência.
MCs, RZO, Sabotage, Olodum, Ilê Ayê, Quanto ao corpo do samba-reggae, ele é a
dentre outros, eram referências materialização da filosofia da
indispensáveis em nossas vidas. Eram os ancestralidade contra o panoptismo racial
anos 90 do século XX e essas produções brasileiro, escrevendo de forma
poéticas do canto, do canto-falado, do multimodal nossa negritude de maneira
corpo negro-diaspórico sinalizavam o afirmativa em conexão com a afro-diáspora
processo de afirmação da palavra e das desde fins dos anos 1980. Tudo isso tem
identidades negras que afetaram (no uma relação direta, por exemplo, com
sentido de afeição, mas minha atuação acadêmica e
também no sentido de abalo) com as minhas duas
decisivamente meu corpo: da publicações de maior relevo:
ética e da estética com que me os livros
visto do cabelo aos pés, mas Afroplagicombinadoresciber
também da estética e da ética délicos: afrociberdelia e
com que me visto a partir da plagicombinação nas letras
palavra, do meu exercício de Chico Science & Nação
crítico como intelectual negro. Zumbi, publicado pela
Quarteto editora, e Afro-
Aqui, não me refiro só a um rizomas na diáspora negra:
repertório de leituras, mas a as literaturas africanas na
gnoses que me forneceram encruzilhada brasileira,
utilitários estratégicos para o organizado por mim e
trabalho com a crítica literária Ricardo Riso, editado pela
e cultural: o dub do reggae é a Kitabu em 2013.
torsão em que o som é
dobrado sobre si apontando ao É importante ratificar que as
mesmo tempo para mil platôs musicais culturas afrorrizomáticas da diáspora
modificando a forma linear de se apreender africana, que atravessam a música e a
e de se sentir a canção. Não à toa Hermano poesia em que se fundam, funcionam como
Vianna tem um texto belíssimo chamado potente agência extraescolar de
“Filosofia do dub”, em que fala sobre King letramentos negros para os jovens das
Tubby e Lee Scratch Perry mostrando periferias brasileiras: elas reivindicam, ao
como eles, de seus estúdios decadentes, lado de saberes formais, uma não
através dos princípios afrorrizomáticos do dissociação de uma ética, de uma estética e
dub, mudaram para sempre a forma de se de uma ação política que se volta contra
conceber música no mundo bem como tudo o que o biopoder e a necropolítica
apresentaram outra maneira de se forjar racionalizam e deixam morrer simbólica e
saberes a partir das margens. Já o sample literalmente, sobretudo quando se é negro
(fragmento de uma canção conectada a na Bahia (Brasil). Não por acaso, os afro-
outra num processo de retorno em rizomas dessas culturas negro-diaspóricas
diferença, utilizado sobretudo no hip hop me fornecem desde sempre dispositivos
afetando noções como a de autoria), além teórico-críticos para pensar questões
de um recurso musical, é um conceito que importantes como a literatura-terreiro que
nos projeta para além da angústia da norteia esta entrevista.
influência e mesmo para além da
antropofagia oswaldiana: nele, tudo é fluxo
REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE LITERATURA-TERREIRO
organizada por mim e Ricardo Riso, que mesmo quando há uma interferência
contou com a participação de intelectuais e governamental como a de Frankfurt 2013
escritores negras e negros do Brasil e dos em que o Brasil foi homenageado. O que
países africanos que tem a língua vejo em termos acadêmicos e muitas vezes
portuguesa como oficial. da crítica também é um recorte racial
excludente e uma interdição para se tocar
RI: Afinal, como se define o conceito de nesta questão que já se tornou “normal” no
Literatura-terreiro, a partir da país. Por isso, participo ativamente do
perspectiva cosmogônica africana e/ou Coletivo Ogum’s Toques Negros que tem
brasileira? se ocupado da formação de público-leitor
para literatura negra, da questão editorial e
HF: Acredito já ter falado na pergunta da pesquisa de temas africanos e negro-
anterior sobre isso e o importante é brasileiros, além de ter trazido entre 2013 e
compreender que não há a proposição aqui 2014 escritoras e escritores da literatura
de um conceito fechado. Como disse, negra de todo o país, de África e da
venho pensando neste conceito assim como diáspora para um bate-papo com o público
o de afro-rizoma desde que os formulei há baiano. Em dezembro de 2013, este
alguns anos atrás e percebo que eles me coletivo promoveu ainda uma Semana
auxiliam a enxergar algumas coisas acerca Literária Internacional no CEAO, atraindo
das produções literárias a que me referi um grande público, e, em 2014, dentre as
nesta entrevista, mas, como disse no início, muitas ações, lançou no Brasil (não só na
o exercício da crítica é defasado, Bahia, mas em outros estados) e também
insuficiente e limitado e é essa consciência no exterior a Coletânea Poética Ogum’s
que me impele a tentar, é apenas um gesto Toques Negros, em que modestamente
em direção ao devir, tentar compreender faço a minha estreia como escritor. A
para além do que os meus instrumentos complexidade deste coletivo repousa na
teóricos permitem, mesmo estes que forjei sua atuação em diversas frentes: da internet
em diálogo com outros autores. com uma fanpage no facebook que é
plataforma para a experimentação e
RI: Diante do que você coloca acima, difusão da literatura negra, mas também de
quais os pontos de convergência e/ou divulgação de nossas ações, a encontros
divergência dessa proposta de conceito presenciais regulares com escritoras e
com a tradição dos estudos literários e o escritores intitulados Ogum’s Toques do
ainda segregante discurso acadêmico em Escritor. O nosso vetor principal, em
torno da história e cultura afro- síntese, é o combate ao genocídio negro de
brasileira? que Cláudias e Amarildos cotidianamente
são vítimas, bem como o epistemicídio
HF: Não teremos nem literatura, nem literário. Como diz José Carlos Limeira
história efetivamente brasileiras enquanto a nos seus versos mais famosos, retirados do
cultura e os saberes indígenas, africanos e poema Quilombos:
afro-brasileiros não forem contemplados
em nossa educação formal, por nossa Por menos que conte a história
crítica e política literárias. Essa diversidade Não te esqueço meu povo
que nos constitui como cultura deve Se Palmares não vive mais
atravessar todas as esferas, mas não é isso Faremos Palmares de novo
que acontece. É só olharmos os
argumentos estapafúrdios utilizados para a RI: É sabido que os terreiros, locais de
constituição das listas de autores das feiras culto da RTF (Religião Tradicional
literárias locais, nacionais e internacionais, Africana), mesmo marginalizados,