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Reflexão sobre o conceito de

literatura-terreiro
Entrevista feita na Universidade Federal da Bahia para a Revista Inventário, em março de 2014, cujo
foco centrou-se na discussão apresentada no artigo do Prof. Dr. José Henrique de Freitas Santos
(Henrique Freitas), “NÃO HÁ DIALÉTICA NA ENCRUZILHADA: o hip-hop e a literatura-terreiro na cena
da cultura afro-baiana”, a fim de refletir sobre o conceito de literatura-terreiro apresentado pelo
professor e suas implicações para o campo dos estudos literários e de cultura.1

Revista Inventário (RI): Gostaríamos de iniciar falando, de maneira geral, sobre a sua
trajetória nos estudos ligados à literatura e cultura afro-brasileira. Você poderia falar
sobre sua postura política e como ela influenciou sua vida acadêmica?

Henrique Freitas (HF): Minha trajetória está ligada intimamente a dois vetores: ao que eu
chamo “Revolução das vassouras” e à influência determinante que a poesia negra da diáspora
africana teve em minha formação, através das culturas reggae, hip hop e samba-reggae.

A “Revolução das vassouras” consiste na transformação radical, através do investimento


maciço em educação formal e informal, que mães “empregadas domésticas” ou integrantes do
quadro de “serviços gerais” de empresas (no meu caso, com o auxílio também de um pai
hiperpresente e participativo) provocaram na genealogia de muitas famílias negras,
possibilitando o surgimento da primeira geração de universitários. Assim, a minha mãe, bem
como a de diversos amigos na mesma condição, trazia para nós as HQ (histórias em
quadrinhos), os livros e as revistas que deveriam ir para o lixo na casa dos patrões e nós íamos
devorando tudo aquilo, partilhando aquelas experiências, sobretudo porque, no meu caso,
coincidiu com o meu despertar autodidata para a literatura escrita, já que não havia incentivo
da escola pública, de que sou oriundo, para o trabalho com o texto literário.

A partir dos 11 ou 12 anos comecei a ler intensamente todos os textos literários escritos que
chegavam até mim e duas séries foram significativas para a minha formação: as coleções
Grandes Aventuras, livros que eram adaptações dos considerados “clássicos do cânone
ocidental” pela crítica literária tradicional, e Vaga-lume, série juvenil de narrativas de
aventuras que atravessou gerações. Estas duas coleções tem um acervo incrível que vai de
Barcos de papel a Escaravelho do diabo, no caso da Vaga-Lume, e de Odisseia, D. Quixote a
Robinson Crusoé, no caso da Grandes Aventuras, e eu pude ler tudo isso nesse período.

Concomitante a estas experiências, a poesia negra da diáspora me chegava e me formava


decisivamente através do dub, do sample, do corpo negro des-re-territorializado,
respectivamente no reggae, no hip hop (rap, mais especificamente neste caso) e no samba-
reggae.

1
Entrevista concedida a Gabriel Santos, estudante do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura, do
Instituto de Letras da UFBA.
No bairro soteropolitano do Nordeste de disruptivo não há o meu, o seu; não há a
Amaralina, lugar em que nasci e vivi mais fronteira do nacional; tudo é saber
de 20 anos, Bob Marley, Edson Gomes, descontínuo sem origem nem fim
Alpha Blondy, Câmbio Negro, Racionais definidos, apenas devir em potência.
MCs, RZO, Sabotage, Olodum, Ilê Ayê, Quanto ao corpo do samba-reggae, ele é a
dentre outros, eram referências materialização da filosofia da
indispensáveis em nossas vidas. Eram os ancestralidade contra o panoptismo racial
anos 90 do século XX e essas produções brasileiro, escrevendo de forma
poéticas do canto, do canto-falado, do multimodal nossa negritude de maneira
corpo negro-diaspórico sinalizavam o afirmativa em conexão com a afro-diáspora
processo de afirmação da palavra e das desde fins dos anos 1980. Tudo isso tem
identidades negras que afetaram (no uma relação direta, por exemplo, com
sentido de afeição, mas minha atuação acadêmica e
também no sentido de abalo) com as minhas duas
decisivamente meu corpo: da publicações de maior relevo:
ética e da estética com que me os livros
visto do cabelo aos pés, mas Afroplagicombinadoresciber
também da estética e da ética délicos: afrociberdelia e
com que me visto a partir da plagicombinação nas letras
palavra, do meu exercício de Chico Science & Nação
crítico como intelectual negro. Zumbi, publicado pela
Quarteto editora, e Afro-
Aqui, não me refiro só a um rizomas na diáspora negra:
repertório de leituras, mas a as literaturas africanas na
gnoses que me forneceram encruzilhada brasileira,
utilitários estratégicos para o organizado por mim e
trabalho com a crítica literária Ricardo Riso, editado pela
e cultural: o dub do reggae é a Kitabu em 2013.
torsão em que o som é
dobrado sobre si apontando ao É importante ratificar que as
mesmo tempo para mil platôs musicais culturas afrorrizomáticas da diáspora
modificando a forma linear de se apreender africana, que atravessam a música e a
e de se sentir a canção. Não à toa Hermano poesia em que se fundam, funcionam como
Vianna tem um texto belíssimo chamado potente agência extraescolar de
“Filosofia do dub”, em que fala sobre King letramentos negros para os jovens das
Tubby e Lee Scratch Perry mostrando periferias brasileiras: elas reivindicam, ao
como eles, de seus estúdios decadentes, lado de saberes formais, uma não
através dos princípios afrorrizomáticos do dissociação de uma ética, de uma estética e
dub, mudaram para sempre a forma de se de uma ação política que se volta contra
conceber música no mundo bem como tudo o que o biopoder e a necropolítica
apresentaram outra maneira de se forjar racionalizam e deixam morrer simbólica e
saberes a partir das margens. Já o sample literalmente, sobretudo quando se é negro
(fragmento de uma canção conectada a na Bahia (Brasil). Não por acaso, os afro-
outra num processo de retorno em rizomas dessas culturas negro-diaspóricas
diferença, utilizado sobretudo no hip hop me fornecem desde sempre dispositivos
afetando noções como a de autoria), além teórico-críticos para pensar questões
de um recurso musical, é um conceito que importantes como a literatura-terreiro que
nos projeta para além da angústia da norteia esta entrevista.
influência e mesmo para além da
antropofagia oswaldiana: nele, tudo é fluxo
REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE LITERATURA-TERREIRO

Quanto à atuação política, a vida síntese, reconhecimento e produção de


acadêmica funciona como um continuum uma familiaridade com outr@s a(u)tor@s e
em relação às ruas e vice-versa, pois não sistemas literários para o estabelecimento
tenho como despir a minha existência de um capital simbólico que muitas vezes
como homem negro de um conjunto de se plasma incontornavelmente à recepção
saberes, lutas e experiências que me da obra. Quando bem executada,
formam e também me permitem sobreviver exatamente por admitir sua insuficiência,
(dentro e fora da universidade) mesmo defasagem e limitação, a crítica tende a
quando estes conhecimentos são assumir seu caráter nietzschiano de
epistemologicamente obliterados pela interpretação como violência, deriva,
Academia. Aliás, tudo é político dentro da deslocamento, olhando além da moldura
universidade, em especial aquilo que se do status quo tentando “dar conta”, ainda
esconde na ordem do discurso da que provisoriamente, daquilo que
neutralidade, da totalidade, da contra- comumente lhe escaparia.
militância, da universalidade. Esses
discursos são os mais perigosos, porque A principal e mais bela função da crítica, a
são ultra-políticos, dogmáticos exatamente meu ver, é produzir uma inteligibilidade
porque escamoteiam os regimes de verdade sobre os textos, ainda que estes desafiem
em que se apoiam. No meu caso, não quero os parâmetros com que ela se erige,
deixar nenhuma dúvida de minha fornecendo outros vieses de acesso à obra e
existência política dentro da universidade: linhas de fuga para que os objetos em
“Eu visto preto por dentro e por fora”, análise se proliferem. Justamente por não
como canta Mano Brown. cumprir esta função no caso das produções
indígenas, africanas e negro-brasileiras que
RI: Sobre o artigo “NÃO HÁ trazem para a cena literária outras estéticas,
DIALÉTICA NA ENCRUZILHADA: o outras experiências e outros paradigmas é
hip-hop e a literatura-terreiro na cena que a crítica tem favorecido e por vezes até
da cultura afrobaiana2”, é possível mesmo produzido no campo dos estudos
perceber, a partir da leitura, que você literários o que Boaventura de Sousa
propõe o conceito, partindo do chama de epistemicídio ou o que o filósofo
pressuposto de que existe uma dada Renato Noguera chama de racismo
produção artística literária que desafia epistêmico. Onde estão autoras e autores
os limites da crítica, do comparativismo como Maria Firmina dos Reis, Carolina
e mesmo dos estudos de cultura Maria de Jesus, Ruth Guimarães, mesmo
tradicionais. Você poderia falar um nos cursos de Letras do país? Quando
pouco mais sobre esse exercício crítico? Lima Barreto ocupará devidamente seu
lugar de epígono do modernismo no Brasil,
HF: A crítica literária é um exercício para além dos estigmas da loucura, da
defasado, insuficiente e limitado, mesmo bebida e de uma “escrita simples”?
quando aborda produções canônicas, por Quando escritores/as como Lia Vieira,
seu traço a posteriori: é só após a Miriam Alves, Cuti, Oswaldo de Camargo,
publicação da obra que ela pode tentar Abelardo Rodrigues, José Carlos Limeira,
apreendê-la, geralmente por uma ação de Éle Semog, dentre outros, mesmo
reconhecid@s e estudad@s fora do país,
2
passarão a integrar devidamente junto com
As ideias contidas no referido artigo foram os Cadernos Negros a arqueo-genealogia
expostas inicialmente no texto “A literatura-terreiro
na cena afro-baiana”, publicado pela revista A Cor
da literatura brasileira e chegarão
das Letras, disponível em: efetivamente aos livros didáticos? Quando
http://www.uefs.br/portal/arquivos/a-cor-das- estes textos chegarão às prateleiras das
letras-n.%2012-2011.pdf.
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ENTREVISTA COM JOSÉ HENRIQUE FREITAS

livrarias mediados por um olhar da crítica previamente traduzidos para o alemão,


que não repita ad nauseam seu valor nem da importância estética da produção,
apenas pelas “questões sociais”? Ess@s como se tentou oficialmente argumentar.
escritor@s e suas respectivas contribuições As coletâneas de literatura negro-brasileira
decisivas para a literatura brasileira foram, intituladas Schwarze Poesie e Schwarze
quando não ignorad@s, Prosa, organizadas por Moema Parente
subdimensionad@s, pois, muitas vezes, Augel, foram sucesso de vendas e crítica
mesmo quando referenciad@s, isto ocorreu na Alemanha na década de 80 e ainda hoje
superficialmente descrevendo-@s como são estudadas em universidades
“biombos” (o conceito é do ator Milton germânicas. Integram ambas coletâneas
Gonçalves que critica a teledramaturgia alguns escritores e escritoras que já citei
brasileira em que grande parte dos aqui (Cuti, Miriam Alves, José Carlos
personagens negros aparece nas histórias Limeira, dentre outr@s). Se não fosse a
televisivas sem família, sem uma narrativa mobilização da imprensa alemã que
que dê conta de sua complexidade questionou o fato e, sobretudo, a
subjetiva, apenas como escada para outros articulação de grupos da sociedade civil
personagens) deslocados da história, sem que organizaram e emitiram uma nota de
que seus traços fossem devidamente repúdio (traduzida também para o alemão,
atrelados à importância de nossas letras. dentre outros idiomas), dentre eles o
Daí produz-se um dispositivo Coletivo Literário Ogum´s Toques3 de que
epistemológico eficiente para o faço parte (coletivo constituído de
apagamento dess@s autor@s na escritor@s, professor@s, designers,
genealogia de nossa literatura, sobretudo filósofos, fotógrafos, jornalistas e críticos
porque esses intelectuais em geral não da Bahia e de outros estados que atuam em
estão nem politicamente, nem diversas frentes), esse caso clássico de
literariamente atrelad@s à classe dirigente racismo epistêmico seria naturalizado
no Brasil, só para retomar a provocação de como tantos outros. Nossas Feiras e Festas
Sérgio Micelli sobre a permanência de Literárias aqui na Bahia, infelizmente, têm
alguns autores em nosso cânone, por fortes vergonhosamente repetido este modelo do
questões extraliterárias. caso Frankfurt.

O silêncio da crítica acadêmica, de O mais intrigante é que a literatura


intelectuais e de importantes instituições brasileira só deu saltos significativos em
vinculados à questão racial no país (às seu percurso quando mimetizou as culturas
vezes até para não constranger as relações indígenas e africanas. Para tornar-se aquilo
viciadas que existem com o atrelamento a que ela é precisará deixar de ser só mímica
cargos governamentais, institucionais ou e se impregnar nestes outros saberes
outras vantagens) e à violência desregrados, para além até mesmo do
epistemicida de que a Feira de Frankfurt de suporte papel... É aí que reside a potência
2013 representa, exemplifica as questões da literatura-terreiro.
aqui postas: achamos normal em um país
como o nosso que de 70 escritor@s RI: Segundo o texto, você optou por
financiad@s pelo governo brasileiro (isto é alguns fragmentos da obra do grupo de
gravíssimo!) para participar deste rap Opanijé e do trabalho do poeta,
importante evento literário que professor e líder do Coletivo Blackitude,
homenageou o Brasil, apenas um autor Nelson Maca, para propor o conceito.
negro e um indígena fizessem parte. É Você poderia apontar qual a
óbvio que a questão não é de valor importância deles nesse contexto? O que
literário, nem de possuir textos
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facebook.com/OgumsToques
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REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE LITERATURA-TERREIRO

você quis dizer com “emergência da de apresentar um trabalho com a palavra a


literatura-terreiro na cena baiana com contrapelo de uma normativização
sua estética e discursos afro-rizomáticos linguística. Hoje, avançando em relação às
e afro-diaspóricos”? considerações iniciais que fiz no artigo a
que você se refere nesta entrevista, aponto
HF: O conceito de literatura-terreiro está exemplos talvez até mais acabados desta
ligado à ética e estética de textos literatura-terreiro, porque incorporam em
produzidos desde o corpo negro permeado sua ética e estética a dimensão ritual dos
pela cosmogonia africana e negro- terreiros e sua multimodalidade literária, a
brasileira. Ele está conectado às epistemes exemplo da série de poemas Ori quis (ver
que circulam nas religiões afro-brasileiras produções de Guellwar Adún, Dú Oliveira,
e prioritariamente refere-se às produções Mel Adún, Lívia Natália, dentre outr@s)
oriundas destes espaços que se vinculam a bem como o Exu-persona Ferdinando,
uma dimensão não só oral, mas multimodal ambos da fanpage do facebook Ogums
diaspórica. Isto exige por parte da crítica Toques. Alguns poemas que constam na
uma “iniciação” na rede sinestésico- Coletânea Poética Ogum´s Toques, lançada
analítica em que estas produções se em 2014 pela editora Ogum´s Toques junto
inserem para que possam ser analisadas em com a Barabô, também são exemplos
sua complexidade. À época em que produtivos da literatura-terreiro.
publiquei este texto sobre a literatura-
terreiro estava interessado em compreender Na literatura-terreiro, uma dimensão ética,
a derivação desta literatura-terreiro fora do estética negro-diaspórica e de diálogo
lugar mais explícito em que ela é contrastivo com uma produção literária
produzida: no candomblé e em outras canônica se imbrincam, desafiando os oris
religiões afro-brasileiras. Por isso, não a incorporarem outros paradigmas ao som
analisei os trabalhos de Mãe Stella de de alujás, opanijés e outros rit(m)os,
Oxóssi, Mestre Didi e outr@s sacedortes enquanto os atabaques-palavras
que obviamente são autor@s exemplares sinestesicamente dobram na repetição, na
destas produções. Debrucei-me, então, incisão letra a letra no texto produzido
sobre o trabalho ousado do grupo de rap desde o corpo.
Opanijé, que desde o nome já assume este
lugar da literatura-terreiro, bem como Os afro-rizomas a que me refiro
sobre a importante cena do Sarau Bem conceitualmente tem a ver com a torsão
Black (evento que acontece toda quarta- dos rizomas delleuzianos para se pensar no
feira no Pelourinho no Sankofa African processo de dispersão, pluralidade e
Bar) e a produção literária de Nelson invenção das tradições negras que
Maca, que também comanda este sarau. envolveram a diáspora africana, recusando
Quando os analisei, ao forjar o conceito de a teleologia. A África nesta perspectiva
literatura-terreiro, apontei para a não é nem bloco monolítico nem origem
materialidade poética tanto de Maca estática ou destino fechado. A
quanto do Opanijé, mesmo que o primeiro encruzilhada, no exercício crítico desta
ainda não tivesse livro publicado e o literatura-terreiro, torna-se o conceito-mor
segundo lançado CD. O público do Bem por meio do qual se tensiona a mímese, a
Black, independente disso, recitava os dialética, o real, seja na literatura negro-
poemas falados ou canto-falados dos dois. brasileira, seja em algumas produções
Eles também estabeleciam um diálogo não africanas elaboradas sob este viés ético-
apenas discursivo, mas de forte estético-ritual. É disso que trata Afro-
representação em seus textos com o corpo rizomas na diáspora negra: as literaturas
de signos que gravitam nos terreiros, além africanas na encruzilhada brasileira, obra

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ENTREVISTA COM JOSÉ HENRIQUE FREITAS

organizada por mim e Ricardo Riso, que mesmo quando há uma interferência
contou com a participação de intelectuais e governamental como a de Frankfurt 2013
escritores negras e negros do Brasil e dos em que o Brasil foi homenageado. O que
países africanos que tem a língua vejo em termos acadêmicos e muitas vezes
portuguesa como oficial. da crítica também é um recorte racial
excludente e uma interdição para se tocar
RI: Afinal, como se define o conceito de nesta questão que já se tornou “normal” no
Literatura-terreiro, a partir da país. Por isso, participo ativamente do
perspectiva cosmogônica africana e/ou Coletivo Ogum’s Toques Negros que tem
brasileira? se ocupado da formação de público-leitor
para literatura negra, da questão editorial e
HF: Acredito já ter falado na pergunta da pesquisa de temas africanos e negro-
anterior sobre isso e o importante é brasileiros, além de ter trazido entre 2013 e
compreender que não há a proposição aqui 2014 escritoras e escritores da literatura
de um conceito fechado. Como disse, negra de todo o país, de África e da
venho pensando neste conceito assim como diáspora para um bate-papo com o público
o de afro-rizoma desde que os formulei há baiano. Em dezembro de 2013, este
alguns anos atrás e percebo que eles me coletivo promoveu ainda uma Semana
auxiliam a enxergar algumas coisas acerca Literária Internacional no CEAO, atraindo
das produções literárias a que me referi um grande público, e, em 2014, dentre as
nesta entrevista, mas, como disse no início, muitas ações, lançou no Brasil (não só na
o exercício da crítica é defasado, Bahia, mas em outros estados) e também
insuficiente e limitado e é essa consciência no exterior a Coletânea Poética Ogum’s
que me impele a tentar, é apenas um gesto Toques Negros, em que modestamente
em direção ao devir, tentar compreender faço a minha estreia como escritor. A
para além do que os meus instrumentos complexidade deste coletivo repousa na
teóricos permitem, mesmo estes que forjei sua atuação em diversas frentes: da internet
em diálogo com outros autores. com uma fanpage no facebook que é
plataforma para a experimentação e
RI: Diante do que você coloca acima, difusão da literatura negra, mas também de
quais os pontos de convergência e/ou divulgação de nossas ações, a encontros
divergência dessa proposta de conceito presenciais regulares com escritoras e
com a tradição dos estudos literários e o escritores intitulados Ogum’s Toques do
ainda segregante discurso acadêmico em Escritor. O nosso vetor principal, em
torno da história e cultura afro- síntese, é o combate ao genocídio negro de
brasileira? que Cláudias e Amarildos cotidianamente
são vítimas, bem como o epistemicídio
HF: Não teremos nem literatura, nem literário. Como diz José Carlos Limeira
história efetivamente brasileiras enquanto a nos seus versos mais famosos, retirados do
cultura e os saberes indígenas, africanos e poema Quilombos:
afro-brasileiros não forem contemplados
em nossa educação formal, por nossa Por menos que conte a história
crítica e política literárias. Essa diversidade Não te esqueço meu povo
que nos constitui como cultura deve Se Palmares não vive mais
atravessar todas as esferas, mas não é isso Faremos Palmares de novo
que acontece. É só olharmos os
argumentos estapafúrdios utilizados para a RI: É sabido que os terreiros, locais de
constituição das listas de autores das feiras culto da RTF (Religião Tradicional
literárias locais, nacionais e internacionais, Africana), mesmo marginalizados,

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sempre marcaram a cultura questão traz três desafios: o confronto


soteropolitana e brasileira com as suas com a colonialidade do poder e do saber
formas de cosmovisão e proposta (Mignolo, 2003) que marca a tradição
civilizacional. Como você situa o espaço- crítica literária; a ausência de
terreiro, enquanto fabricante de mundos publicação dos trabalhos de Nelson
éticos, no cenário político-cultural de Maca e do grupo Opanijé, apesar de
Salvador? serem bastante conhecidos na cena hip-
hop de Salvador; e as variedades
HF: Retire a contribuição africana para o linguísticas utilizadas por eles, as quais
Brasil, para a Bahia, mais especificamente “contrariam” a norma culta. Como estas
para Salvador e o que fica? A inclusão de questões foram tensionadas no decorrer
Mãe Stella de Oxóssi na Academia de da construção da proposta?
Letras da Bahia é um reconhecimento da
contribuição da cosmovisão e dos sentidos HF: Anibal Quijano e Walter Mignolo
que as comunidades-terreiro disseminaram ocupam-se da discussão acerca da
sobre o nosso estado, e isso está expresso colonialidade do poder e do saber
nas matérias que cobriram a posse de Mãe pensando o lugar de uma epistemologia
Stella na ALB e na ênfase sociocultural da latino-americana e eu os uso para discutir
importância da cadeira de Castro Alves como a noção de literatura está fortemente
que ela passou a ocupar. Esse capital impregnada de dispositivos que negam as
simbólico sempre foi mobilizado da produções que se proliferam fora da norma
política partidária ao carnaval de Salvador: prescritiva, pelas paredes, pelos corpos,
a questão é que tudo é feito de maneira a pelos sons, pelos ritos e pelos ritmos
preservar um status quo de hierarquização desafiando uma teoria e crítica calcadas em
racial e aí está o problema. No caso uma ideia fixa de real, de mímese debitária
específico da inclusão de Mãe Stella na de uma tradição platônica-aristotélica,
ALB, tudo isso é ótimo, no entanto, onde dentre outras coisas.
fica a questão literária que não passa
apenas pela questão sociocultural e mesmo RI: Partindo do que Amadou Hampâté
pelos livros impressos que ela publicou? É Bá afirma sobre a potência da oralidade
preciso investir nessa questão para para a reflexão sobre a Literatura-
dimensionar a complexidade de suas terreiro, o que você tem a dizer sobre a
produções no plano literário para além do dicotomia oralidade/escrita no que tange
grafocentrismo. Aí provocamos uma ao campo da crítica literária? É possível
tensão produtiva, um desvio em relação ao pensar em um continuum
corpo de escritores com quem ela divide os oralidade/escrita?
assentos dessa instituição e
indiscutivelmente destaca-se. Desde antes HF: Não há por parte das críticas literária e
de sua posse na ALB, Mãe Stella sempre acadêmica um trabalho efetivo mais amplo
foi uma referência literária para o campo que busque dar conta dos gêneros orais, no
da literatura negra. Exatamente por isso sentido de validá-los e oferecer
seus muitos textos precisam ser lidos e mecanismos amplos de leitura para a
analisados para que se crie uma produção que não passe pelo registro
inteligibilidade sobre eles inserindo-os escrito. Aqui não me refiro a uma dada
devidamente na geneologia literária oralidade mimetizada em textos escritos
brasileira e baiana. como mímica de uma experiência estética,
mas de produções que subsistem
RI: Você afirma que a escolha do independentes de seus registros escritos.
sujeito-objeto de investigação em

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O grafocentrismo ainda é o principal traço nossas produções literárias que dialogam


da exegese literária a ser deslocado. Em com as tradições africanas e também de
termos de UFBA, institucionalmente, o que textos de autores africanos.
foi/está sendo feito do legado físico e
teórico da profª Doralice Alcoforado, uma RI: Tendo em vista a importância dos
das mais importantes estudiosas do provérbios para as comunidades
referido tema, quando pensamos no africanas e para a educação formal
currículo de Letras e não em disciplinas brasileira, como afirma Mãe Stella de
específicas ou no trabalho hercúleo de Oxóssi, como você visualiza o atual
alguns professores, como Alvanita cenário educacional brasileiro em
Almeida, para preservar o espólio e os relação à aplicabilidade da lei
saberes por ela deixados? Onde estão os 10.639/2003?
trabalhos efetivos com os gêneros orais,
literários e não literários, em nosso curso? HF: O provérbio ainda é visto como algo
menor. Nas comunidades-terreiro não é
Continuum, interpenetração e/ou necessário se reiterar sua importância,
paralelismo: o que importa é que a inclusive literária. Aliás os itãs e os cantos
oralidade constitutiva das produções litúrgicos e não litúrgicos que atravessam
negras multimodais (aquelas em que há este espaço, além da narratividade do
uma co-ocorrência de semioses - corpo, próprio corpo (incorporado), perfeitamente
imagem, som e texto – para a produção de lido pelos iniciados na estrutura que
sentidos como na literatura-terreiro) vaze a desenha com gestos, apontam para um
noção grafocêntrica de literatura para ambiente fortemente literário imerso no
visibilizar na crítica sua potência para além que enfatizo como literatura-terreiro.
da escrita. Se compreendermos isso, nos
debruçaremos sobre Owe – livro de Quanto à questão legal a que você se
provérbios que Mãe Stella de Oxóssi refere, na prática, temos universidades,
assina, sem ressalvas, como literatura: são instituições, pesquisadores e mesmo
textos curtos que condensam uma escritores sendo agenciados, financiados,
sabedoria muitas vezes secular que amplamente publicados por causa das leis
independem de seu formato escrito, pois 10.639/03 (institui como obrigatório o
permanecem vivos no circuito oral das ensino de história e cultura africana e afro-
comunidades-terreiro. Se a crítica brasileira) e 11.645/08 (amplia a discussão
tradicional produziu uma inteligibilidade constante na lei 10.639/03, abrangendo
sobre o hai kai através da análise e do também história e cultura indígena) e,
mapeamento de seus traços constitutivos, paradoxalmente, nem sempre, para ser
sem dúvidas de que o mesmo se constitua eufêmico, a literatura negra, os intelectuais
como texto literário, o que impede que a negros são visibilizados: isso é gravíssimo.
mesma operação, dada as devidas Esta crítica vale tanto para as produções
adequações, seja feita com os provérbios? literárias brasileiras quanto africanas (há na
Intelectuais africanos como Hampâté Bá verdade um cânone das africanas em torno
(escritor e teórico da arte griot), mas de quatro ou cinco nomes de escritores
também Abreu Paxe e a própria Mãe Stella homens não negros que figuram em quase
debruçam-se sobre os provérbios para todos os eventos que tentam mobilizar
defendê-los exatamente como arte literária discursivamente as referidas leis,
subestimada por uma tradição ocidental. evidenciando os diversos centrismos de
No Brasil, Amarino Queiroz tem se gênero, de escrita e etnicorracial que
dedicado também à discussão sistemática culminam, por sua vez, em pesquisas que
da dizibilidade do verbo na poética oral de privilegiam e legitimam esses mesmos

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REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE LITERATURA-TERREIRO

nomes através das muitas teses e


dissertações defendidas no país, bem como RI: O título do texto é muito
nos planos de curso do campo das interessante e provocador. Você poderia
africanas no Brasil). A extrema seriedade falar um pouco sobre essa proposta de
desta situação é o fato de que, mesmo sob deslocamento entre a dialética e a
a égide da força de lei, mesmo sob o imagem da encruzilhada enquanto lugar
argumento discursivo de seu cumprimento, de encontro e/ou imbricação de
mesmo sendo beneficiado financeiramente fronteiras?
em alguns casos por ela, a literatura negra
e @s autor@s negr@s são invisibilisados HF: Joseph Ki-Zerbo e outros intelectuais
pelo epistemicídio que aponta sempre africanos entenderam que para o continente
noutra direção. africano figurar devidamente na “História
Mundial”, inclusive com a contribuição
Outra questão é que, mesmo passados 11 decisiva que deu para se forjar a
anos da lei 10.639/03, ela ainda está em modernidade no planeta, era necessário
processo de implementação nas escolas e consolidar uma inteligibilidade sobre as
os desafios vão desde o dogmatismo fontes orais em contraponto ao
religioso que tem tomado conta do Brasil à grafocentrismo até então vigente no campo
ausência de uma fiscalização e punição da História. Ora, ele sabia que não bastava
efetivas, já que os materiais e cursos para reivindicar a inclusão da África nos
trabalho com a história e cultura africana e manuais de História, mas era fundamental
afro-brasileira se proliferam e não são mais abalar o método que validava apenas as
tão raros como há uma década. fontes escritas e, ao referendar junto com
outros intelectuais, as fontes orais no
RI: No texto, você afirma: “a literatura- campo provocou uma mudança radical que
terreiro é aquela ancorada na Filosofia afetou incontornavelmente a História. Sua
da Ancestralidade de que nos fala História Geral da África, obra monumental
Eduardo Oliveira”. Em que consiste esta que coordenou, mas também a História da
filosofia? Quais os paradigmas? África Negra são exemplos de que suas
provocações culminaram em ações práticas
HF: Filosofia da ancestralidade é o título que figuram hoje como referência em todo
de um livro de Eduardo Oliveira o mundo. A teoria e a crítica literárias
fundamental para a discussão acerca da acreditaram e em certa medida ainda
literatura-terreiro, pois ancestral não quer acreditam que é possível a utilização dos
dizer mais antigo em termos etários, tem a mesmos instrumentos para a leitura de todo
ver com redes afro-rizomáticas de e qualquer texto literário. Desta forma,
epistemologias negras que vão do corpo vemos como a literatura negro-brasileira e
dissimulado da capoeira à filosofia as literaturas africanas (não) figuram em
africana, e o paradigma Exu é seu símbolo. nossa genealogia. É necessário também
Não à toa muitos intelectuais têm tentado abalar o campo até para que sob o termo
operar Exu como conceito de clivagem não literatura possamos abrigar de fato
sincrética, não sintética, não dicotômica produções para além da escrita.
das dispersões que decalcam, que
sombreiam uma produção negra no Brasil Os efeitos disso são facilmente visíveis:
e na diáspora. A filosofia da ancestralidade Chinua Achebe com A flecha de Deus e o
assume sua interminalidade e a-logicidade Mundo se despedaça, romances
em relação à metafísica ocidental: alicerçados na tradição ibo, erigidos para
“Jogando uma pedra ontem, ele matou o além de uma oposição à lógica colonial,
pássaro hoje” - Oriki de Exu. são lidos comumente como “romances de

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ENTREVISTA COM JOSÉ HENRIQUE FREITAS

fundação”, ignorando-se por completo todo REFERÊNCIAS


esforço ético, estético e discursivo de
Achebe, exatamente avesso ao MIGNOLO, Walter. Histórias Locais,
estabelecimento desse marco. A noção Projetos Globais: Colonialidade, saberes
monológica de real de uma dada teoria subalternos e pensamento liminar. Belo
mimética também é incapaz de dar conta Horizonte: Editora da UFMG, 2003.
da biografia de um sujeito como o músico
nigeriano virtuose Fela Kuti, uma vez que SANTOS, José Henrique de Freitas; RISO,
ela está imersa em experiências que vazam Ricardo (Org.). Afro-Rizomas na
a noção de representação: Carlos Moore, Diáspora Negra: as literaturas africanas
autor de Fela – esta vida puta percebe isto na encruzilhada brasileira. Rio de
e ao registrar em sua obra um relato Janeiro: Kitabu, 2013.
aparentemente ficcional escrito por
Shawna Davis referente aos diálogos de
Fela com sua mãe, que já estava morta,
respeita esta dimensão que aponta para
uma espécie de gêneros do real... Moore
compreende que os mortos não estão fora
do jogo social para os iorubás e outros
povos africanos, contemplando de maneira
excepcional este real controverso no seu
texto biográfico.

Por fim, quero apenas enfatizar que a


encruzilhada é o lugar possível de
(des)encontro destas produções negras,
uma vez que as heranças aristotélicas,
hegelianas, marxistas, dentre outras,
sobretudo as que se centram em sistemas,
em especial a dialética, apresentam uma
limitação extrema para ler o que está fora
da metafísica ocidental, de uma lógica
estrutural e é esta a questão. Repito aqui,
ipsis literis, o que já havia afirmado no
artigo que serviu de mote para a nossa
interlocução: “Não há dialética na
encruzilhada, só farofa, cachaça e dendê:
Laroyê”!

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