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ESCRITOR PERIFÉRICO.
Resumo: Este artigo é uma autoetnografia baseada no histórico pessoal de um escritor e produtor
cultural da periferia de São Paulo, relacionando essa trajetória com questões como: território;
violência social; racismo; ativismo cultural; e trabalho. Demonstrando como o hip hop, o rap, a
literatura e as coletividades artísticas promovem novas perspectivas teóricas e práticas para
reinventar o protagonismo e a forma de ser e estar nas periferias de São Paulo. O texto dialoga com
trabalhos que refletiram sobre movimentos culturais nas periferias (PEÇANHA, 2019 e 2021;
ALMEIDA, 2009 e RAIMUNDO, 2017); rap e hip hop (PLÁCIDO, 2019); sujeito periférico
(D'ANDREA, 2013); trabalho e ações coletivas (CORROCHANO; SOUZA; ABRAMO, 2019);
empreendedorismo e produção cultural nas periferias (DE TOMMASI; SILVA, 2020).
Abstract: This article is an autoethnography based on the personal history of a writer and cultural
producer from the periphery of São Paulo, intertwining this trajectory with issues such as: territory;
social violence; racism; cultural activism; and work. Demonstrating how hip hop, rap, literature and
artistic collectivities promote new theoretical and practical perspectives to reinvent protagonism and
the way of being on the outskirts of São Paulo. The text dialogues with works that reflected on cultural
movements in the peripheries (PEÇANHA, 2019 and 2021; ALMEIDA, 2009 and RAIMUNDO, 2017);
rap and hip hop (PLÁCIDO, 2019); peripheral subject (D`ANDREA, 2013); work and collective actions
(CORROCHANO; SOUZA; ABRAMO, 2019); entrepreneurship and cultural production in the
peripheries (DE TOMMASI; SILVA, 2020).
Introdução
Dinha, Contratado
Com licença, Senhor Rio. Vou pisar leve e firme, vou sentir tua passada contínua
e também vou farejando, injuriado por tua condição. Deitado pertinho da janela do
meu quarto, nos fundos de minha morada, a que se abre ou se cerra por teu
aroma desgracento. Caminhando cotidiano em sua beirada e esforçando a boca
do estômago ao contrair a narina para aguentar o vapor das fezes e detritos que
há décadas te compõem, vou ofendido por esse avesso de encanto, mas ciente
que não és tu que me acutila com esse fedor estupendo e sim o desenho de
porqueira que foi e que é a história das escolhas urbanísticas de nossa cidade. A
São Paulo que decidiu tornar rios em bueiros, a que se habitua a anomalias. (...)
testemunhar e ser ainda resistência e anunciação, com a gana e a graça, com a
ira e a ternura de quem persiste em fluir, em desenhar seu curso, mesmo que
encalacrado e poluído em seu cerne (ROSA, 2021, p.16).
O Estado não chegava no subúrbio. A Barra Funda de baixo era dos negros, dos
imigrantes, das enchentes. As pessoas que moravam lá ficavam sujeitas ao
regime do rio se auto organizavam pro lazer, criando clubes de futebol, clubes de
dança e festas como o carnaval ou festividades religiosas. Era uma espécie de
política no sentido primeiro, fazer uma mobilização por algo desejado, algo bom
para a comunidade. (Diana Mendes, autora do livro Futebol de Várzea em São
Paulo – A Associação Atlética Anhanguera (1928-1940), em entrevista para o
Contei para o Doug que meu tio e meu pai eram locutores em outra rádio, a
7 https://www.letras.mus.br/rzo/70520/ . Acesso em 07/05/22
Elite FM, e dias depois o Doug me perguntou se era possível articular para ele
apresentar um programa lá, ou melhor, para nós fazermos um programa juntos. O
convite me surpreendeu, mas topei por confiar na nossa amizade e esse universo
das rádios comunitárias me levou a uma inserção nas atividades artísticas e
culturais que eu não imaginava vivenciar.
Nesse tempo o Ribeirão Vermelho estava mais poluído do que nunca, as
enchentes ficaram mais frequentes, e os sobrados de alvenaria foram substituindo
os barracos de madeira; as ruas foram todas asfaltadas e os campinhos, os cavalos
e as vacas foram sumindo, para dar lugar aos condomínios fechados ou as casas
amontoadas das favelas; surgiram mais pessoas, carros, motos, linhas de ônibus,
além de pequenos comércios, trabalhadores informais; assim como ficou nítido o
aumento do tráfico de drogas e da presença das igrejas evangélicas
neopentecostais na região.
Os anos 1990 podem ser vistos como a década que fez eclodir as esperanças da
de 1980, quando uma crise econômica persistente conviveu com um intenso
processo de mobilização popular, projetando as classes populares no centro da
cena política do país. Foram os anos das reformas neoliberais, que levaram à
fragilização de conquistas sociais dos anos anteriores do trabalho; o desemprego
aumenta, os salários se deterioram e o chamado mundo do trabalho se desfaz
sob impacto da precarização das relações de trabalho e do aumento do mercado
informal (D'ANDREA, 2013, p.13)
o rap passou a ser o porta-voz das populaçoes mais afetadas pela onda punitiva,
ou seja, negros e pobres. No Brasil, começa a ocorrer o mesmo fenômeno de
aumento da população carcerária e, do mesmo modo, o movimento hip hop, mais
especificamente em sua vertente musical, o rap, denúncia e dá visibilidade ao
9 meio de transporte irregular que foi utilizado no Nordeste do Brasil, ao adaptar caminhões para o transporte improvisado de passageiros, e que trouxe muitos retirantes nordestinos que
viajavam com destino às regiões Sul e Sudeste do Brasil durante o século XX.
10 Também conhecido como NP, foi um jornal que circulou em São Paulo entre 1963 e 2001 e era conhecido por suas manchetes violentas, sensacionalistas e sexuais.
11 Essa radio foi criada pelo meu pai, o Miltão,e seu irmão Claudio Santista,e hoje é uma frequência comunitária legalizada no bairro de Pirituba.
desempregados e sonhavam em ter uma moto pra dar um rolê e ser entregador de
pizza, sonho que também cultivei por um tempo.
Quando voltei a estudar eu estava morando com a minha mãe, Dona Maria
Elisa, porque ela havia se separado do meu pai e minha irmã havia se casado.
Minha mãe trabalhava como empregada doméstica, depois ela foi se arranjar como
merendeira escolar, ocupação que exerceu até chegar a sua aposentadoria. No
cursinho pré-vestibular conheci uma poeta, chamada Elizandra Souza, a Mjiba, que
escrevia fanzines. Ela contou que declamava poesias no Sarau da Cooperifa, na
Zona Sul e como eu também estava escrevendo zines e poemas, me interessei em
saber mais sobre a Cooperifa, mas só fui conhecer esse lugar depois, pois naquele
ano passei no vestibular para estudar Ciências Sociais na Universidade Federal do
Paraná e mudei de cidade.
Como não era comum pessoas como eu mudar de cidade para estudar (eu
mesmo fui o primeiro universitário da família), surgiu um burburinho no trabalho,
onde pedi demissão, e também entre meus vizinhos, suspeitando que eu “havia
aprontado alguma”, já que era mais comum as pessoas se mudarem sem a família
por ameaça de morte, para tratar de algum vício ou quando alguns homens
absurdamente “sumiam” para não assumir a paternidade de seus filhos,
contribuindo para um cenário crescente de mães solos nas periferias.
Minha primeira experiência universitária foi do céu ao inferno. Ingressei por
meio do sistema de cotas sociais, para estudantes da escola pública, pois por
desinformação eu temia que ao concorrer pelas cotas raciais eu poderia ter minha
vaga cassada por não ter a pele retinta. Fiquei nos primeiros seis meses vivendo
com a parcelas do seguro-desemprego, depois me tornei bolsista de uma programa
de iniciação científica e complementava a renda fazendo bicos temporários em
empresas de teleatendimento e também como monitor cultural no museu Oscar
Niemeyer, mais conhecido como Museu do Olho, em Curitiba.
Na faculdade, minhas notas eram boas, mas aos poucos me interessei em
participar do movimento estudantil e do Centro Acadêmico do curso e fui me
distanciando da sala de aula. Os debates de sociologia, ciência política e
antropologia me davam a sensação de repetição teórica e distância da ação
cotidiana, daquilo que na academia é chamado de trabalho de campo, empirismo ou
da práxis no sentido marxista.
O estopim do meu desânimo acadêmico foi em 2006, quando aproveitei uma
viagem para um congresso e fui visitar minha mãe em São Paulo. A cidade estava
aterrorizada com os “Ataques do PCC” ou “Crimes de Maio”, e como estava
acontecendo muitos toques de recolher achei melhor não voltar para Curitiba
naquele momento. Quando retornei fui cobrado pela tutoria da iniciação científica a
escrever uma análise sobre o que estava acontecendo em São Paulo, e escrevi
alguns contos que foram rejeitados, isso gerou um conflito e motivou minha saída
do curso.
Segundo dados oficiais, em maio de 2006 foram assassinadas centenas de
pessoas no estado de São Paulo, além das muitas que não foram encontradas. A
maioria das vítimas eram jovens negros e periféricos, mortos em chacinas,
emboscadas encapuzadas ou em ações policiais registradas como "Resistência
Seguida de Morte" ou "Auto de Resistência", sendo que nesse tipo de registro, o
policial era considerado vítima e o morto, culpado, sem necessidade de
investigação.
entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, pelo menos 564 pessoas foram mortas no
estado de São Paulo, segundo levantamento da Universidade de Harvard, a
maioria em situações que indicam a participação de policiais. A maior parte dos
casos, apontam pesquisadores, fazia parte de uma ação de vingança dos
agentes de segurança do Estado contra os chamados ataques da facção Primeiro
Comando da Capital (PCC), que se concentraram nos dois primeiros dias do
período.A chacina daquele ano ficou conhecida como Crimes de Maio, a maior do
século 21 e talvez a maior da história do país - para efeito de comparação, em
toda a última ditadura civil-militar, que durou 21 anos, 434 pessoas foram mortas
pelo Estado. Uma década depois do massacre de 2006, apenas um agente
público foi responsabilizado pelas mortes. Condenado, ele responde a recurso em
liberdade e continua atuando como policial militar. O gritante número de
assassinatos e o desinteresse da Justiça em punir os responsáveis deu origem
ao movimento Mães de Maio, formado principalmente por familiares das vítimas
do massacre. Mais do que justiça para os próprios filhos, as Mães construíram,
ao longo dos anos de atuação e luta, um movimento social de combate aos
crimes do Estado ocorridos durante o período democrático, e se transformaram
em referência para outras famílias preocupadas com a marcha fúnebre que vitima
milhares de pessoas todos os anos no Brasil (Jornal Brasil de Fato, 13/05/2016) 12.
“Sabe mano,
Hoje, saí de casa na certeza que escreveria sobre o genocídio do povo palestino,
pesquisaria sobre a faixa de Gaza, sobre o histórico da região, pra compor
argumentos e me unir aos que me identifico nesse grito urgente. Bastou cem
metros de caminhada e encontrei seu irmão e de bate-pronto me lembrei de você,
da sua ausência e meu mundo voltou a apontar pra cá, pra quadra da rua de trás,
pro dia em que te conheci, pro dia em que conheci seu mano e me dei conta de
que ainda é preciso escrever muito sobre nóis. Sobre a linha de corte desse
balaio do caboclo-palestino.
Precisei apenas atravessar a rua pra encontrar a morte sendo entregue que nem
pizza na frente do portão, quentinha, sem importar o nome de quem fez, a cara
do indivíduo, o porquê. Assim: sem muita explicação, entregou, tchau, boa sorte!
E somos tantos iguais, né, mano? Parece ironia, mas você carrega o nome do
seu pai e seu pai, assim como você, não soube o que é ter trinta e poucos anos.
E eu que achava que esse medo já não me rondava, ficava me gabando da
M.Y.I, Sentimentos.
Considerações do percurso
Referências Bibliográficas:
NASCIMENTO, Érica Peçanha do. Quando poesia rima com trabalho: Perspectivas
profissionais a partir de um sarau literário. Travessias. Cascavel. v.15, n.01, p. 18-
33, jan/abr 2021. Disponível em:
<http://e-revista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/25527/17247>. Acesso
em 19/07/2021.
ROSA, Allan da. Águas de homens pretos: imaginário, cisma e cotidiano ancestral
(São Paulo, Séculos 19 ao 21). São Paulo: Veneta, 2021.
VASSALO, Brigitte. O Desafio Poliamoroso - Por uma nova política dos afetos.
Tradução: Mari Bastos. São Paulo: Elefante, 2002.