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E-ISSN: 2237-9460
revistaicedufopa@gmail.com
Universidade Federal do Oeste do Pará
Brasil
RESUMO
Este artigo resulta de um estudo bibliográfico que teve como objetivo discutir o pro- cesso
histórico, cultural e identitário do Surdo. Como resultados, constatamos a neces- sidade de
se ter sensibilidade para reconhecer os diferentes processos e fatores que in- fluenciam na
formação de uma identidade e cultura; bem como é preciso estar sensível às diferentes
identidades e culturas surdas que são o resultado de diferentes dinâmicas da vida de cada
surdo e de sua comunidade surda. Constatamos também que historica- mente os surdos
eram considerados deficientes e a surdez era vista apenas como uma patologia. Hoje os
surdos são entendidos como sujeitos em suas diferenças e singula- ridades culturais.
ABSTRACT
This article results from a bibliographic study that aimed to discuss the historical process,
cultural identity and the Deaf. As a result, we see the need to be sensitive to recognize the
different processes and factors that influence the formation of identity and culture, and we
must be sensitive to different cultures and identities deaf that are the result of different dy-
namics of the life of each deaf and his deaf community. We also note that historically were
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Doutorando em Educação no PPGE UNICAMP. Professor do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal
do Oeste do Pará. Email: carpedfil@gmail.com
considered disabled and deaf deafness was seen only as pathology. Today the deaf are seen
as subjects in their cultural differences and singularities.
Imbricada em relações de poder, a educação A Idade Média foi marcada por pe-
dos surdos vem sendo pensada e definida,
historicamente, por educadores ouvintes, quenas iniciativas assistencialistas, con-
embora possamos encontrar em alguns tem- formismo piedoso do Cristianismo, bem
pos e espaços a participação de educadores
surdos (2004, p.9). como pela segregação e marginalização
operadas pelos “exorcistas” e “esconjura-
Isso significa que o olhar que se teve dores” (STROBEL, 2006).
e que ainda se tem em relação aos surdos No século XvI, aparecem os primei-
partiu, em sua maioria, de representações ros surdos na cena educacional. Na Espa-
ouvintes. nha, um monge beneditino chamado Pedro
Historicamente, na antiguidade, Ponce de Leon (1520-1584) educou filhos
percebemos que entre os espartanos e os surdos de nobres.
gregos havia a necessidade de elimina- Segundo Costa:
ção dos sujeitos surdos, devido aos ide-
Era necessário que os filhos surdos de no-
ais de perfeição. A busca do corpo per- bres aprendessem a falar, ler, escrever, fazer
feito e belo. contas, rezar, assistir à missa e confessar-se
mediante o uso da palavra oralizada. A pala-
Em Roma, segundo Strobel, comen- vra falada conferia a visibilidade necessária a
tando sobre as formas de eliminação dos um nobre, que servia de modelo a outros por
sua educação e posição. Os procedimentos
diferentes, diz que: de controle do corpo e de “cura” da deficiên-
cia por meio de terapias da fala submetiam
As crianças recém nascidas tidas como dife- aqueles que eram surdos a um duro proces-
rentes eram colocadas na base de uma está- so de “normalização” e de disciplinamento.
tua nas praças principais e então devoradas (2010, p.41).
pelos cães. Por este motivo muitos historia-
dores pensaram que certamente às crianças
surdas não se desse tal destinação dado que, A finalidade dessa educação discipli-
seguramente, mesmo hoje é muito difícil fa- nadora era o acesso desses sujeitos surdos
zer um diagnóstico precoce da surdez (2006,
p.246). à herança de suas famílias. Já os surdos, fi-
lhos de famílias pobres, geralmente eram
No entanto, outros historiadores rela- recolhidos por instituições de caridade.
tam que, Assim, é possível perceber que havia dois
tipos de instituiões: “instituiões para po-
Por volta de 753 a.C., o fundador de Roma, bres e instituiões para nobres” (COSTA,
o imperador Rômulo, decretou uma lei onde
todos os recém-nascidos que fossem incô- 2010, p.43), como acontece ainda hoje nas
modos para o Estado deveriam ser mortos várias instituições escolares contemporâ-
até os três anos. Então, por isso, muitos sur-
dos não conseguiam fugir deste destino bár- neas. No entanto, o discurso era o mesmo:
baro (STROBEL, 2006, p.247). caritativo e de salvação divina.
sinais com o alfabeto francês. Tal mé- Essa posição, porém, não era consen-
todo foi chamado “Sinais metódicos” so entre os especialistas e as famílias. Um
(COSTA, 2010). exemplo do não consenso é o de Thomas
Também no século XvIII começa a gallaudet (1787-1851), um americano que
formar-se um paradigma em relação à edu- se interessou pela língua de sinais por ter
cação dos sujeitos anormais: é o paradigma convivido na infância com uma vizinha
de institucionalização. Surgiram a partir surda: Alice Cogswell. No Instituto Na-
daí inúmeras instituições específicas para cional de Surdos-Mudos, na França, teve
cada tipo de anormalidade identificada: es- contato com a educação de surdos. Em
colas para deficientes mentais, escolas para 1817, ao retornar aos Estados Unidos com
cegos, escolas para surdos etc. seu Professor Francês Laurent Clerc, fun-
De acordo com Thoma (2004, p.12), da a primeira escola pública para surdos.
“no sculo XvIII, acreditava-se que reunir “Quase cinco dcadas mais tarde, no ano
os corpos surdos em instituições totalitá- de 1864, foi criada naquele país a Univer-
rias tornava possíveis as ações do poder sidade Nacional para Surdos-Mudos, hoje
disciplinar e viabilizava a produção da do- Universidade gallaudet” (THOMA, 2004,
cilidade e da utilidade”, ou seja, aões de p.12).
normalização de corpos e mentes. Nesse Em 1855, veio para o Brasil, mais es-
caso, tais instituições buscavam normali- pecificamente, para o Rio de Janeiro, o sur-
zar os surdos por meio do treinamento da do francês Eduard Huet. Ele fundou, com
fala. Nessa lógica, podemos nos referir à apoio de Dom Pedro II, o Imperial Instituto
Samuel Heinicke (1727-1822) que fundou de Surdos-Mudos, no dia 26 de setembro95
a primeira escola oral de surdos na Alema- de 1857. Huet havia sido diretor do Insti-
nha, em 1750. Estabelece-se, pois, o siste- tuto da França, e, portanto, podemos afir-
ma de internato: mar, de acordo com Costa, que “no Brasil,
a educação de surdos deu-se sob influência
Desde o século XVIII, mediante o sistema de
direta do Instituto de Paris. O Instituto Na-
internato, as famílias passavam parte de seu
compromisso com a educação dos filhos para cional de Surdos desenvolveu-se com um
as escolas. As famílias dos surdos encontra-
forte acento na caridade e na benevolên-
ram no sistema de internato uma forma de
garantir o desenvolvimento dos filhos, bem cia” (2010, p.48).
como de propiciar-lhes um ambiente estimu-
Nesse contexto favorável de desen-
lador e cercado de cuidados com sua saúde. A
surdez, entendida como um problema de saú- volvimento da educação de surdos no Bra-
de, castigo ou algo a ser corrigido, era tratado
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de forma a minimizar seus efeitos aparentes, Dada a importância da fundação deste Instituto, hoje
fazendo-se os sujeitos surdos falarem como se chamado de Instituto Nacional de Educação de Surdos-
fossem ouvintes. (COSTA, 2010, p.43-44). INES, 26 de setembro passou a ser comemorado, no
Brasil, o Dia nacional do Surdo.
TA, 2010). O Congresso de Milão trouxe para o código da fala dentro de uma abor-
grandes prejuízos e atrasos linguísticos, dagem oral. Diferentemente, para aqueles
pedagógicos, humanos, históricos, sociais que não têm razoável resíduo ou mesmo
e econômicos para o desenvolvimento das que apresentam grandes dificuldades em
culturas e identidades surdas e das línguas desenvolverem a oralidade, a Língua de Si-
de sinais em todo o mundo. nais constitui-se na língua mais adequada
para o sujeito interagir com o meio.
EDUCAR OS SURDOS: UM DESAFIO ME- As discussões existentes entre os de-
TODOLÓGICO fensores das diferentes filosofias ou méto-
Ter conhecimento sobre a história, dos demonstram que há diferentes formas
bem como sobre as filosofias e métodos de enfrentar as consequências da surdez,
educacionais criados para ensinar os sur- respeitando-se cada pessoa e as escolhas de
dos, nos permitem a compreensão da rela- sua família. O professor, junto com os pais,
ção existente entre o compromisso linguís- deve explorar e buscar alternativas para
tico dessa população, a qualidade das suas cada aluno, no sentido de provocar o desen-
interações interpessoais e o seu desenvol- volvimento pleno de suas potencialidades.
vimento cognitivo. A história serve de su- As fases ou os métodos de ensino,
porte para que seja feita uma análise crítica como são muitas vezes chamados, divi-
das consequências de cada filosofia ou mé- dem-se em três abordagens principais que
todo de ensino no desenvolvimento destes produziram muitas formas de se trabalhar
sujeitos surdos. com o aluno surdo. São eles: o método do
Como foi apresentado no item ante- Oralismo, o da Comunicação Total e o do
rior, a partir do século XvI o surdo ganha Bilinguismo.
uma nova interpretação histórica e propos-
tas e métodos começam a ser criados para Oralismo
a sua educação. A maioria desses métodos Em 1880, aconteceu um marco na
inicialmente fundamentava-se em substi- história da educação dos surdos, que mu-
tuir a audição perdida por outro canal sen- dou todo o cenário de até então. Ocorreu,
sorial, como a visão, o tato, ou aproveitan- na Itália, o Congresso de Milão.
do os resíduos auditivos existentes. De acordo com Lulkin:
O aspecto dos métodos considerado
Nesse evento internacional onde se reúnem
o mais problemático é a afirmação de que
profissionais dedicados à educação de sur-
existe apenas um método para todos os sur- dos, dois terços dos 174 congressistas são
italianos. Os outros são franceses, ingleses,
dos. Para aqueles surdos que têm resíduos
suecos, suíços, alemães e americanos. De to-
auditivos, pode ser oferecido um acesso dos os congressistas, somente um é surdo!
Com exceção de Edward Gallaudet, delega- nância do Oralismo, foram obtidos pou-
do norte-americano, o Congresso celebra a
vitória do oralismo sobre a inferioridade da cos resultados quanto ao desenvolvimento
língua gestual. As manifestações em favor da da fala, pensamento e aprendizagem dos
supremacia da língua oral, em favor da pure-
za natural da palavra falada, traduzem o es- surdos. As técnicas usadas nesta corrente
pírito da época, marcado pela racionalidade pedagógica eram de estimulação da fala,
em oposição à emoção. (2005, p.37).
desenvolvimento da leitura orofacial, am-
pliação da capacidade de compreensão,
Após a decisão tomada no Congresso
atenção e memória através da repetição,
de Milão, toda a Europa adotou o Oralis-
desestimulação do uso de sinais, gestos,
mo como método escolar, o que resultou na
mímica (SKLIAR, 2001).
quase extinção oficial da língua de sinais.
No entanto, o Oralismo extrapolou
Apenas os Estados Unidos preservaram a
os muros das escolas e contribuiu para a
Língua de Sinais (THOMA, 2004).
formação de estereótipos e representações
Porém, marginalmente, a língua de
marginais sobre os surdos. Além disso, o
sinais continuou existindo na comunicação
Oralismo não foi substituído por outro mé-
dos surdos, que se escondiam nos banhei-
todo ou extinto. Ele permanece até hoje
ros, nos quartos à noite, já que a maioria
como proposta educacional (SKLIAR,
das escolas eram internatos, nos pátios das
2001).
escolas e em outros espaços marginais,
De acordo com goldfield (1997), o
onde se comunicavam em língua de sinais
Oralismo visa a integração do surdo na co-
(THOMA, 2004).
munidade dos ouvintes, dando-lhe condi-
Desse modo, instituiu-se o Oralismo
ções de desenvolver a língua oral (no caso
como método de ensino imposto e oficializa-
do Brasil, o português). Para alguns defen-
do por ouvintes para a educação dos surdos.
sores dessa filosofia, a linguagem restrin-
De acordo com Skliar:
ge-se à língua oral sendo por isso mesmo
A concepção de sujeito surdo no oralis- mo esta a única forma de comunicação para os
diz respeito exclusivamente a uma di- surdos. Acreditam assim que, para a crian-
mensão clínica – a surdez como deficiên-
cia, os surdos como sujeitos deficientes ça surda se comunicar, é necessário que ela
– numa perspectiva terapêutica, segundo a saiba oralizar.
qual a surdez e os surdos devem ser, em
primeiro lugar, curados e/ou reabilitados Para goldfield (1997), o Oralismo
(2001, p.88). concebe a surdez como uma deficiência
que deve ser minimizada por meio da esti-
Nessa perspectiva, houve a imposi- mulação auditiva que possibilitaria a apren-
ção do modelo ouvinte ao surdo. Durante dizagem da língua portuguesa e levaria a
aproximadamente um século de predomi- criança surda a integrar-se na comunidade
ouvinte, desenvolvendo sua personalidade vem ser deixados de lado só por causa da
como a de alguém que ouve. Isso significa aprendizagem da língua oral.
que o objetivo do Oralismo é fazer a reabi- Defende assim a utilização de qual-
litaão da criana surda em direão “nor- quer recurso espaço-visual como facilita-
malidade”. dor da comunicação. Diferentemente do
O método do Oralismo consiste em Oralismo, a Comunicação Total acredita
fazer com que a criança receba a linguagem que o aprendizado da língua oral não asse-
oral através da leitura orofacial e amplifi- gura o pleno desenvolvimento da criança
cação sonora, enquanto se expressa através surda.
da fala. gestos, Língua de Sinais e alfabeto A Comunicação Total valoriza a co-
digital são expressamente proibidos. municação e a interação e não apenas a lín-
gua. Seu objetivo maior não se restringe ao
Comunicação Total aprendizado de uma língua.
Aproximadamente no final da década De acordo com Skliar (2001), a co-
de 1960 e início de 1970, surge outra cor- municação total teve um fim em si mesmo
rente filosófica ou método na educação dos que não se completou. Referindo-se à ex-
surdos: a Comunicação Total. A diferença periência da comunicação total na Dina-
entre a Comunicação Total e o Oralismo é marca, Skliar afirma que:
que esta tenta garantir a comunicação sur-
As crianças não tiveram uma versão visual da
do-ouvinte e surdo-surdo, sendo que a lín-
língua dinamarquesa e, em troca, receberam
gua de sinais é oferecida como uma língua um input linguístico muito inconsciente, pelo
qual não entendiam nem os sinais nem as
de apoio para a aquisição da comunicação
palavras orais. Tendiam a utilizar-se de uma
oral e da escrita (SKLIAR, 2001). meia-língua, misturando as duas línguas para
sobreviver comunicativamente, mas não
AComunicação Total define-se como
tinham a menor ideia sobre onde acabava
uma filosofia ou um método que requer a uma língua e onde começava a outra (2001,
p.90).
incorporação de modelos auditivos, manu-
ais e orais para assegurar a comunicação
eficaz entre as pessoas com surdez. Tem Por isso, essa corrente filosófica ou
como principal preocupação os processos método foi chamado de Comunicação To-
comunicativos entre surdos e surdos, e en- tal, pois se utilizava de todo e qualquer
tre surdos e ouvintes. meio para estabelecer a comunicação. Ao
mesmo tempo, isso fez com que o sujeito
Este método se preocupa também
surdo não tivesse nenhuma forma de co-
com a aprendizagem da língua oral pela
municação consistente, que lhe ofereces-
criança surda, mas acredita que os aspectos
se condições linguísticas satisfatórias de
cognitivos, emocionais e sociais não de-
integração, na medida em que toda forma cognitivas, tem repercussões também so-
de preconceito, toda discriminação, todo ciais. Ser normal implica ter língua, e se a
comportamento humano está subordina- anormalidade é a ausência de língua e de
do à cultura que os constrói, os propaga, tudo o que ela representa (comunicação,
os veicula e os sedimenta. São as normas pensamento, aprendizagem etc), a partir do
sociais e culturais que “autorizam” essa se- momento em que se configura a língua de
paração, normas que organizam toda a nos- sinais como língua do surdo, o estatuto do
sa vida social, modos de falar, de vestir-se, que é normal também muda. Ou seja, a lín-
de atuar no mundo, de pensar etc. O modo gua de sinais acaba por oferecer uma pos-
como a surdez vem sendo descrita está ide- sibilidade de legitimação do surdo como
ologicamente relacionado a essas normas, “sujeito de linguagem”. Ela capaz de
assim como a luta política por novas nor- transformar a “anormalidade” em diferen-
mas: cultura e identidade surdas, inclusão ça e a diferença em normalidade, confor-
do surdo nas minorias sociais, junto com me Skliar (2005). Com a aprendizagem e
os negros e índios. Essa luta pela inclusão o domínio da Língua de Sinais, juntamente
uma forma de “garantia” de afastamento e em diálogo com outros surdos, o surdo
da “anormalidade” e aproximaão das mi- entra no processo de tornar-se Surdo, com
norias, normais embora diferentes. a sua cultura e a sua identidade própria,
Essa mudança de concepção do es- construída coletivamente na comunidade
tatuto da surdez, de patologia para fenô- surda.
meno social e cultural, vem acompanhada Os defensores da língua de sinais
também de uma mudança de nomenclatu- como a base para a educação dos surdos
ra, não só terminológica, mas conceitual afirmam que é só de posse desta língua,
e cultural: de “deficiente auditivo” para considerada “natural”, adquirida mesmo
“Surdo”. que em qualquer idade, é que o sujeito
Historicamente, os surdos eram con- surdo constituirá uma identidade surda, já
siderados deficientes e a surdez era uma que ele não é um sujeito ouvinte (PERLIN,
patologia incurável. Hoje, eles passaram 2001; MOURA, 2000). grande parte dos
a ser entendidos em suas diferenças cultu- estudos surdos tem como base a ideia de
rais. Deficiente auditivo e surdo, ou Sur- que a identidade surda está relacionada a
do, como preferem autores como Moura uma questão de uso da língua. Portanto, o
(2000), por exemplo, são termos ideologi- uso ou não da língua de sinais seria aquilo
camente carregados de significados. Con- que definiria basicamente a identidade do
ferir à língua de sinais o estatuto de língua sujeito, identidade que só seria adquirida
não tem apenas repercussões linguísticas e em contato com outro surdo. O que ocor-
re é que, em contato com outro surdo que pertence. Seria, portanto, nessa relação, no
também use a língua de sinais, surgem no- tempo e no espaço, com diferentes outros,
vas possibilidades interativas, de compre- que o sujeito e a cultura se construiriam.
ensão, de diálogo, de aprendizagem, que Dessa forma, é nas práticas discursi-
não são possíveis apenas por meio da lin- vas que o sujeito emerge e é revelado. Ou
guagem oral. A aquisição de uma língua e seja, é principalmente no uso da linguagem,
de todos os mecanismos afeitos a ela faz e não em qualquer materialidade linguísti-
com que se credite à língua de sinais a ca- ca específica, que as pessoas constroem e
pacidade de ser a única capaz de oferecer projetam suas identidades. “A construão
uma identidade ao surdo. da identidade não é do domínio exclusivo
O que está por trás de tal afirmativa de língua alguma, embora ela seja, sempre,
não é simplesmente uma questão de iden- da ordem do discurso” (MAHER, 2001, p.
tidade social, mas é, mais especificamente, 135) e, portanto, interativa e social. Porém,
uma identidade concebida a partir de um o fato é que não existe uma identidade ex-
determinado pressuposto teórico. Ao tomar clusiva e única, como a identidade apenas
a língua como definidora de uma identi- surda. Ela é construída por papéis sociais
dade social, ainda que se leve em conta as diferentes (pode-se ser surdo, rico, hete-
relações e os conflitos relativos às distintas rossexual, branco, professor, pai etc.) e,
posições ocupadas por grupos sociais, en- também, pela língua, que constrói nossa
fatiza-se o seu caráter instrumental. Assim, subjetividade. Utilizando a expressão de
sua natureza, ou sua significação social, Cameron: “a pessoa um mosaico intrin-
passa a ser creditada às interações sociais cado de diferentes potenciais de poder em
às quais está ligada (Skliar, 2005). relaões sociais diferentes” (CAMERON
Dessa forma, a identidade está re- et al. apud LOPES, 2001, p.310).
lacionada tanto aos discursos produzidos Nesse caso, não há só escolhas nas
quanto à natureza das relações sociais. Para nossas identidades, isso independe da nos-
Maher (2001, p.116), por exemplo, “ao fa- sa mera vontade. Elas são determinadas
larmos de identidade e cultura, não estamos pelas práticas sociais, impregnadas por
falando de essência alguma”. A identidade relações simbólicas de poder. E, é óbvio,
seria uma construção permanentemente essas práticas sociais e essas relações sim-
(re) feita que buscaria tanto determinar es- bólicas de poder não são estáticas e imu-
pecificidades que estabeleçam fronteiras táveis ao longo da vida dos sujeitos. Esse
identificatórias entre o próprio sujeito e o é justamente o ponto que interessa aqui.
outro quanto obter o reconhecimento dos Essa lógica permanece enquanto as crian-
demais membros do grupo social ao qual ças surdas não se encontram com um surdo
adulto. Elas têm necessidade dessa identi- pode ser visto dentro de um “vcuo social”.
ficação com os adultos, uma necessidade Ele afeta e é afetado pelos discursos e pelas
crucial. É preciso convencer todos os pais práticas produzidas socialmente. Há estu-
das crianças surdas a colocá-las em conta- dos relacionados à surdez que vêm tratando
to o mais rápido possível com adultos sur- esse tema de outra forma, como se a iden-
dos, desde o nascimento. Ela se construirá tidade fosse constituída apenas a partir de
longe daquela solidão angustiante de ser a dois polos: o dos ouvintes e o dos surdos. A
única no mundo, sem ideias construtivas e identidade e a cultura são construídas sem-
sem futuro (Skliar, 2005). pre em relação a um determinado grupo ao
Ao que parece, a constituição da qual se pertence, diferenciando-se de ou-
identidade e da cultura pelo surdo não está tro, com o qual se estabelece uma relação
necessariamente relacionada apenas à lín- de caráter negativo, ou seja, por oposição a
gua de sinais, mas, sim, à presença de uma ele (MAHER, 2001).
língua que lhes dê a possibilidade de cons- Com isso, a construção da identi-
tituir-se no mundo como “falante”, ou seja, dade e da cultura baseia-se num processo
à constituição de sua própria subjetivida- de “associaão” a um determinado gru-
de pela linguagem e às implicações dessa po, e de “dissociaão” com relaão a ou-
“constituião” nas suas relaões sociais. tros grupos. O pertencimento a um dado
Em outras palavras, torna-se estranha a grupo expressa-se por meio do ethos
afirmação de que todos os surdos só consti- grupal, do conjunto de valores e sabe- res
tuam sua identidade por intermédio da lín- partilhados (MEAD, 1934; ROSE, 1962).
gua de sinais. Afinal, não há uma relação A identidade e a cultura podem ser
direta entre língua específica e identidade construídas também tendo um ethos como
específica, uma vez que ainda encontramos referência negativa: o indivíduo não faz
muitos surdos em diferentes faixas etárias parte daquele grupo e também não faz
que ainda não conhecem e não se comu- parte de nenhum outro grupo que possa
nicam com a língua de sinais (MAHER, ser caracterizado como tendo um ethos
2001). próprio. Por exemplo: os con- ceitos de
A identidade e a cultura não podem normal e patológico definem um ethos de
ser vistas como inerentes às pessoas, mas, referência, a normalidade, e afasta todo
sim, como resultado de práticas discursivas aquele que dele não se apro- xima,
e sociais em circunstâncias sócio-históri- reservando a todos o mesmo lugar social
cas particulares. O modo como a surdez é de patológico. Não há um ethos que possa
concebida socialmente também influencia caracterizar e definir aqueles que são
a construção da identidade. O sujeito não “patologizados”.
Recentemente, quando estava em aula depoimentos dos próprios surdos sobre si,
com uma turma de jovens e adultos surdos
em uma escola da rede municipal de Por- a autora identifica algumas possibilidades
to Alegre, fui surpreendida pelo convite de de ser surdo, tais como: Identidades Surdas
um aluno para participar de um jantar com
desfile para escolha da Miss Brasil Gay Sur- Políticas; Híbridas; Flutuantes; Embaça-
da 2006. Diante de mim, estava colocada a das; Transição; Diáspora; Intermediárias.
complexidade das identidades em cenários
contemporâneos. Aquele aluno, integrante A partir dessas múltiplas possibilida-
de um espaço institucional que atende alu- des, é possível perceber que existem dife-
nos surdos em turmas de surdos e que pro-
põe um tempo de aprendizagem organizado rentes modos de ser Surdo. Quando Perlin
por ciclos, colocou-me inúmeras inquieta- (2001) realiza, por meio de sua pesquisa, a
ções e provocou questionamentos do tipo:
qual identidade estaria sendo mais exaltada identificação dessas identidades, não o faz
naquele convite? Pela ordem, podemos pen- no intuito de classificar e determinar que só
sar que o concurso de beleza é o mais sig-
nificativo, seguido da identidade de gênero, existem essas possibilidades de ser surdo e,
estando nesse conjunto a identidade surda muito menos, com o objetivo de possibili-
em último lugar. Qual das identidades mais
o posiciona em lugares de exclusão? De qual tar que encaixemos os surdos nessas iden-
inclusão reclama? (2004, p.14 e 15). tidades. Ao afirmar a existência de muitos
modos de ser surdo, a autora contribui para
Desse modo, podemos dizer que a nossas reflexões sobre o respeito às dife-
identidade e a cultura são marcadas por renças e os processos flexíveis de tornar-se
algo que une as pessoas, mas que, ao mes- Surdo.
mo tempo, as distinguem de outras. Nessa linha de pensamento, Pardo
Nas palavras de Silva, reflete sobre o respeito às diferenças afir-
mando que:
[...] a identidade cultural ou social é o con-
junto dessas características pelas quais os
grupos sociais se definem como grupos: Respeitar a diferença não pode significar
aquilo que eles são, entretanto, é insepará- “deixar que o outro seja como eu sou” ou
vel daquilo que eles não são, daquelas carac- “deixar que o outro seja diferente de mim
terísticas que os fazem diferentes de outros tal como eu sou diferente (do outro), mas
grupos (2000, p.58). deixar que o outro seja como eu não sou,
deixar que ele seja esse outro que não pode
ser eu, que eu não posso ser, que não pode
Quando fala em identidades surdas, ser um (outro) eu; significa deixar que o ou-
tro seja diferente, deixar ser uma diferença
Perlin (2001) aponta a necessidade do afas- que não seja, em absoluto, diferença entre
tamento dos olhares clínico-terapêuticos, duas identidades, mas diferença da iden-
tidade, deixar ser uma outridade que não
que veem a surdez como deficiência a ser é outra “relativamente a mim” ou “relati-
“curada”. Perlin (2005) afirma a existência vamente ao mesmo”, mas que é absoluta-
mente diferente, sem relação alguma com
de múltiplas identidades surdas. A partir de a identidade ou com a mesmidade (PARDO
algumas pesquisas, em que se buscaram apud SILVA, 2000, p.101).
Diante dos estudos sobre os surdos e constituídos por “[...] tudo o que se vê e
do exposto, há aqueles que ainda se per- sente quando se está em contato com a cul-
guntam: – os surdos têm cultura? Essa é tura de uma comunidade, tais como mate-
uma pergunta que, segundo Strobel (2008), riais, vestuários, maneira pela qual um su-
as pessoas, de modo geral, fazem, duvidan- jeito se dirige a outro, tradições, valores,
do da existência de uma cultura surda. Isso normas etc”. Nessa perspectiva, a autora
porque, geralmente, não conhecem quem menciona alguns artefatos da cultura sur-
são os surdos e, por isso, fazem suposições da, como, por exemplo: Artefato cultural;
equivocadas sobre os surdos. Além disso, experiência visual; linguístico; familiar; li-
tais suposições partem, em sua maioria, de teratura surda; vida social e esportiva; artes
representações da surdez como deficiência, visuais, política; materiais, dentre outros.
ou seja, partem de uma perspectiva ouvin- Todas estas variedades de artefatos cultu-
tista. Nesse sentido, a autora afirma que rais nos mostram o quanto é complexa a
cultura surda é: constituição de uma cultura e da identidade
de uma pessoa indo muito além do simples
O jeito do sujeito surdo entender o mundo
maniqueísmo surdo- ouvinte. Onde o tor-
e de modificá-lo a fim de torná-lo acessível
e habitável ajustando-o com as suas percep- nar-se Surdo nos apresenta como um pro-
ções visuais, que contribuem para a defini-
cesso contínuo e cheio de ricas aventuras.
ção das identidades surdas e das “almas”
das comunidades surdas. Isto significa que
abrange a língua, as idéias, as crenças, os
costumes e os hábitos do povo surdo (STRO-
REFLEXÕES FINAIS
BEL, 2008, p. 24). Neste trabalho, apresentamos que
tornar-se Surdo é um processo que perpas-
No entanto, um alerta precisa ser fei- sa diretamente pela construção da cultura e
to: nem todas as pessoas surdas compar- da identidade surda, e que esta construção
tilham da cultura surda simplesmente por não é um processo simples e fácil de ser
elas não ouvirem. O que constitui a cultura entendido, conceituado e nem adquirido. É
surda não é o fato de não ouvir, e sim de um processo vivenciado, que perpassa com
compartilhar experiências, crenças, senti- o Surdo em sua comunidade surda, com os
mentos, língua etc. Desse modo, há dife- seus pares primeiramente, mas que depois
rentes culturas surdas, ligadas a diferentes se abre ao diferente e ao outro, misturando-
espaços geográficos, sociais e históricos se sempre mais.
(STROBEL, 2008). vimos que a Língua de Sinais Brasi-
Para finalizarmos este item, ainda leira se fortaleceu a partir do Imperial Insti-
destacamos que, segundo Strobel, (2008, tuto de Surdos-Mudos. Que ela é o resulta-
p.37) temos os artefatos culturais que são do da mistura da Língua de Sinais Francesa