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A arte
de contar histórias. São Paulo: Hedra, 2018, p. 19-58.
Exemplo de Leskov neste itinerário entre as viagens e a vida local = “ele via seu modelo
no homem acostumado a tratar de coisas terrenas sem se prender demasiadamente a
elas, e adotava, no domínio secular, uma atitude semelhante a essa. Combina com esse
seu modo de ser o fato de ter começado a escrever tarde, aos 29 anos. Isso se deu
durante suas viagens comerciais. Seu primeiro trabalho publicado se intitulava: Por que
em Kiev os livros são tão caros?, uma longa série de escritos sobre a classe
trabalhadora, alcoolismo, os médicos da polícia e os comerciários desempregados
precede seus contos” (p. 24);
“A arte de contar histórias se aproxima de seu fim pois o lado épico da verdade, a
sabedoria, está se extinguindo” (p. 25);
“A metade da arte de contar está em despojar de explicações a história contada” (p. 28);
“A informação tira seu valor do instante em que é nova […] o conto funciona de outro
modo: não se desgasta. Ele guarda em si mesmo suas forças reunidas e longo tempo
depois ainda é capaz de se desenvolver” (p. 29);
“Não há nada que imprima mais duradouramente as histórias na memória do que essa
recatada concisão que as afasta da análise psicológica. E quanto mais naturalmente o
contador renuncia aos detalhes psicológicos, mais facilmente sua história encontra lugar
na memória do ouvinte, mais perfeitamente junta-se à sua própria experiência, e assim
mais prazer terá um dia, próximo ou longínquo, em reconta-la. Esse processo de
assimilação, que ocorre em camadas profundas, exige um estado de distensão que se
torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio
corresponde ao ponto mais alto da distensão espiritual. O tédio é o pássaro do sonho que
choca o ovo da experiência. O menor farfalhar das folhas o afasta. Seus ninhos, as
atividades intrinsecamente ligadas ao tédio, não encontram mais lugar nas cidades e
estão se tornando raras também no campo. Com isso, perde-se o dom de escutar e
desaparece a comunidade dos que escutam. Contar histórias é sempre a arte de conta-las
novamente, arte que se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se
perde pois ninguém mais tece nem fia enquanto ouve histórias. Quanto mais o ouvinte
se esquece de si mesmo, mais profundamente aquilo que escuta se imprime nele. Onde o
ritmo do trabalho o toma inteiramente, ele ouve as histórias de tal maneira que o dom de
conta-las lhe vem espontaneamente. Assim foi tecida a rede na qual está contido o dom
de contar. Assim essa rede se faz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida há
milhares de anos, em torno das mais antigas formas de artesanato” (p. 31);
“O contador deixa sua marca no conto, assim como o oleiro deixa a impressão de sua
mão na argila do vaso. Os contadores têm sempre a tendência a começar suas histórias
com uma apresentação das circunstâncias em que tomaram conhecimento do que irão
em seguida contar, isso quando não preferem dizer que o vivenciaram pessoalmente” (p.
32);
“Vivenciamos o surgimento da short story, que se emancipa da tradição oral e não mais
permite essa lenta sobreposição de camadas finas e transparentes que oferece a melhor
imagem da maneira pela qual o conto perfeito vem à luz do dia a partir das camadas
acumuladas por suas diferentes versões” (p. 34);
“A ideia de eternidade teve sempre na morte sua fonte mais poderosa. Se essa ideia se
enfraqueceu, isso significa que o rosto da morte também se modificou. Essa
modificação demonstra ser a mesma que reduziu a comunicabilidade da experiência na
medida em que a arte de contar chegava ao fim” (p. 35);
“A morte é a sanção de tudo que o contador de histórias pode contar. É a morte que lhe
confere sua autoridade. Em outras palavras: suas histórias remetem à história natural”
(p. 36);
Crônica como contação de histórias;
“Se o curso do mundo é condicionado por uma história sagrada ou por uma história
natural não faz nenhuma diferença. No contador de histórias, a figura do cronista
conservou-se transformada e, por assim dizer, secularizada. Leskov está entre aqueles
cuja obra dá testemunho de modo particularmente claro desse estado de coisas. O
cronista, com sua orientação para a história sagrada, e o contador, com sua orientação
para a história profana, fundam-se ambos em sua obra, de tal modo que em muitos
contos é difícil decidir se o fundo sobre o qual eles se destacam é a trama dourada de
uma concepção religiosa ou a trama colorida de uma visão secularizada do curso das
coisas” (p. 38);
“o contador permaneceu fiel a ela [era de tempo da poesia ingênua, Schiller] e seu olhar
não se desvia do relógio diante do qual avança a procissão das criaturas, onde a morte
tem seu lugar como líder ou como a última e miserável retardatária” (p. 40);
Leitor de romances procura seres humanos que possam lhe apresentar o sentido da vida,
numa busca da morte, ainda que esta seja, figurativamente, o fim do romance;
“O grande contador terá sempre suas raízes no povo, e em primeiro lugar nas camadas
artesanais. Entretanto, assim como estas englobam, nos múltiplos estágios de seu
desenvolvimento econômico e técnico, os elementos camponês, marítimo e urbano,
também os conceitos nos quais a soma de suas experiências se cristaliza para nós
possuem múltiplas gradações” (p. 46);
Contos de fada e sua cumplicidade com o ser humano liberado, enfrentando o mundo do
mito com astúcia e ousadia;
“Quanto mais baixo Leskov desce na escala das criaturas, mais abertamente sua
concepção de mundo se aproxima da mística. Aliás, como mostraremos, há boas razões
para se dizer que tal característica pertence à própria natureza do contador de histórias”
(p. 54);
Relação artesanal do contador de histórias com a vida humana, por meio da elaboração
da experiência – ou uma reelaboração, aproximando-se dos provérbios;