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AS EXPRESSÕES DIVINAS DA CULTURA POPULAR TRADICIONAL

“Nada melhor que as tradições para repensar a saúde de nossa alma brasileira”
(Mário de Andrade)

Ao ser convidada para escrever as impressões vivenciadas por meio do Encontro


Mestres do Mundo da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, cujo tema foi
“Construindo Resistência entre Girassóis e Mandacarus”, é um grande prazer e ao
mesmo tempo uma saudosa memória, um encontro com Mestres e Mestras da cultura
que trazem em si histórias, saberes, fazeres, afetos, entrega e tanta generosidade,
conexão dos sentidos que nos faz pisar em terra firme e perceber nossas ancestralidades
e nossos imaginários que são permeados por esses divinos seres e suas manifestações.
As expressões da cultura popular tradicional, enquanto herança de valores e
costumes simbólicos da humanidade - representados pelas suas práticas e expressões,
saberes, crenças, culinárias, contos, promessas, festas populares, seus modos de agir,
sentir e pensar - constituem-se como elementos de significativa relevância no tocante ao
fortalecimento das identidades dos povos e seus universos simbólicos, conferindo-lhes
peculiaridades específicas e sentimentos de pertencimento e reconhecimento dos seus
lugares antropológicos.
Pessoas, grupos e comunidades, partilhando e reconhecendo como bens culturais
o legado de uma existência, permanência e continuidade das suas tradições através dos
tempos, pela transmissão oral e outras formas, configuram uma rede de conexões
socioculturais que atravessa gerações.
Nos últimos anos, temos observado iniciativas diversas em todo o mundo no
sentido de identificar, defender, promover e salvaguardar os bens simbólicos da
humanidade, dentre os quais podemos destacar suas pautas culturais e identitárias.
A agenda da educação contemporânea requer atenção especial para pautas como
a pluralidade cultural, diversidade de gêneros, etnias e saberes.
Inserem-se neste contexto os Mestres e Mestras da Tradição da Cultura Popular,
transmissores de saberes e fazeres específicos, articulados por meio das suas práticas e
vivências, reinventadas e repassadas em uma dinâmica de trocas simbólicas e sociais.
Onde encontrar o poder da reinvenção? É possível que seja na teimosia em
sobreviver, em resistir e persistir diante das adversidades e da imprevisibilidade.
Reisados, Côcos, Bandas Cabaçais, Guerreiros, Lapinhas, Bacamarteiros,
Maneiro-Pau, Penitentes, Cirandas, Aboios, Caretas, Pastoris, Cordéis, Mamulengos,
Repentistas, Emboladores, Bois, Caninha Verde, Maracatus, Folia de Reis, Jongos,
Congadas, Moçambiques e tantas outras manifestações, sempre estiveram no imaginário
popular. São tradições passadas e presentes, entranhadas na vida da gente do sertão, um
povo que se reinventa em todos os tempos.
A tradição que se ressignifica é cultura em estado puro de afeto, amor e
generosidade, que exprime jeitos próprios de ser, em qualquer tempo, atravessa
gerações e revigora territórios, elevando a autoestima, conferindo sentidos de
pertencimento, de comunidade e de existência.
Na sombra das árvores dos terreiros as pessoas se reúnem para assistir e
participar de um espetáculo de cores, movimentos, sons e ritmos que atravessam os
tempos, vivências que se diferenciam da ambiência das telas de TV, computadores e
smartphones. Essas rodas de brincadeiras, realizadas por mestres e mestras da cultura
popular, se configuram como ação social na medida em que reúnem indivíduos em
espaços familiares (espaços pertencente às residências dos mestres e mestras,
geralmente na frente ou nos fundos das suas casas).
Com sua natureza multiplicadora e intergeracional, a tradição vem se
constituindo como um fenômeno de fortalecimento das expressões populares do Brasil,
sendo objeto de pesquisa na ambiência acadêmica, nos institutos e organizações que
observam a importância de manter-se viva a memória de um povo e a continuidade das
suas referências culturais.
O encanto da tradição agrega cada vez mais pessoas, pela paixão, pela
curiosidade, pela prática das pesquisas. Os Mestres engrandecem suas obras, ensinam
mais, e formam as novas gerações numa ciranda de renovação e respeito social.
Consolidar e fortalecer essas manifestações é o mote da criação de diversas
formas de construção da identidade e da permanente estrutura da vida desses fazedores
e reverenciadores das brincadeiras. Significa que, além das representações dessas
manifestações e das trocas estabelecidas nas comunidades se organiza,
espontaneamente, experiências diversas entre público e brincantes, tornando a tradição
um lugar de estudo, capacitação e fruição, que nos leva a perceber e nos reconectar com
nossas profundas raízes.
Essas atividades agregam pessoas num processo de produção intelectual,
colaboração grupal e envolvimento coletivo, em prol de uma causa extremamente
salutar e atrativa. Mesmo com o advento das tecnologias, a tradição ainda é o lugar de
aconchego e segurança para crianças, jovens, adultos. É o espaço das trocas simbólicas,
que organiza estruturas e alimenta a alma e o espírito, uma espécie de devoção e entrega
que expressa comportamento, compromisso e fundamenta a vida das comunidades.
Constata-se, portanto, a relevância das políticas públicas capazes de fortalecer a
história e as características específicas de cada grupo social e cultural, com seus olhares,
seus sentidos, suas realidades locais, abrindo canais de diálogos para a partilha das suas
experiências, e garantindo os direitos sociais e individuais em diversos contextos.
Em sua dinâmica dialética a tradição popular mantém vivo o espírito coletivo,
fonte constante de criação e orientação, gerando uma identidade que é construída com
base no coletivo, vivida como costume, integrando-se à vida, tornando-se parte do
cotidiano e expressão viva do passado, presente e futuro.
Necessário se faz o conhecimento e reconhecimento da diversidade e riqueza do
universo das tradições populares, importante para o processo de ensino-aprendizagem
dos seus conteúdos, envolvendo diretamente crianças, adolescentes, jovens e adultos,
integrando ações de sociabilidade com perspectivas de transformação da realidade, no
sentido de reduzir o estado de violência e marginalidade instauradas nos cotidianos das
comunidades.
Trabalhar com o registro dessas manifestações constitui importante iniciativa
para difusão, pesquisa e reconstituição da memória do povo brasileiro, no sentido de dar
voz a quem encontra dificuldades em estabelecer intercâmbios e difundir os seus
trabalhos em territórios outros.
É necessário ampliar e fortalecer a conquista desses espaços de criação e fruição,
para que sejam viabilizados processos de reconhecimento, afirmação, valorização e
salvaguarda das suas práticas culturais, inserindo-os como lugares de partilha de
saberes, de convivência harmoniosa e salutar.
O Projeto Mestres do Mundo, estabelecido pela Secretaria da Cultura do Estado
do Ceará/SECULT/CE, há mais de uma década, cria pontes estruturais e de
fortalecimento para Mestres e Mestras da Cultura, um ciclo que se renova a cada ano
com encontros, trocas, amizades e o prazer de olhar, presencialmente, cada sujeito/a e
cada história de vida.
Na última edição coordenei a Roda do Sagrado, uma vivência espiritual que nos
transmuta para conexão com o sagrado, luz divina que se desdobra em força, fé e
devoção, cada um traz em si suas convicções e a certeza da crença em um olhar para si e
para o outro.
Como não se encantar? Como não acreditar?
Atualmente a humanidade se perdeu em crenças, com o volume de informações
e a oferta de religiosidades de diversos matizes. Ao estruturar esse momento no Mestres
do Mundo, reúne-se, em ato ecumênico, a possibilidade de encontro com nossos
ancestrais, mas sobretudo com a nossa natureza de crença no que é divino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ELIADE, M. O Sagrado e o Profano. A Essência das Religiões. Lisboa: Edição Livros


do Brasil, 1962.

HALBWACHS, Maurice, 1877 – 1945. A Memória Coletiva. Tradução Laís Teles


Benoir. São Paulo: Centauro, 2004.

FIGUEIREDO, J. N. A (Cons) sagração da Vida- Formação das Comunidades de


Pequenos Agricultores da Chapada do Araripe. Crato: Edições A Província, 2002.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto


de François Rabelais. São Paulo: Annablume/Hucitec, 2002.

CASCUDO, Luís da Câmara. Mostra de cultura popular. SESC, s/ cidade, s/ data. As


culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983.

ORTIZ, Renato. Cultura popular: românticos e folcloristas. São Paulo: Olho d’água,
1992. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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