Você está na página 1de 4

As tramas da identidade

Todos têm cultura e trata-se de um bem universal porque é a rede de relações que
define o desenho de uma comunidade
08/03/2012

Por Tião Rocha

Todo e qualquer ser humano tem cultura. Esta é uma das poucas "verdades" da
Antropologia. Apesar disso, muita gente ainda pensa que alguns seres humanos não
têm cultura. Uma minoria crê, firmemente, que sua cultura é superior à dos outros.
Outros, por se julgarem superiores, resolveram eliminar e subjugar os diferentes,
tratando-os como inferiores. E uma grande maioria acostumou-se a pensar que não
tem cultura alguma, ficando à mercê das elites ditas "cultas". 

Outro equívoco que rodeia a cultura é quanto ao uso que se faz do conceito. As
definições variam do extremamente amplo ("cultura é tudo aquilo que o homem
acrescenta à natureza" ou "cultura é toda maneira de pensar, agir e sentir dos
homens") ao extremamente específico ("cultura é erudição"). Com o uso
indiscriminado ou interesseiro, a palavra cultura tornou-se expressão esvaziada. Foi o
que nos levou a construir um novo conceito, que fosse ao mesmo tempo operacional,
palpável, mensurável, observável, ético e correto. 

Para isso, buscamos outra contribuição da Antropologia: em toda e qualquer


comunidade humana existem e interagem diversos componentes substantivos (que
nós denominamos "indicadores sociais") que podem ser identificados, medidos e
observados e que, quando interagem entre si, constroem desenhos, padrões, símbolos
e valores do grupo humano que aí vive e que podemos conceituar de Cultura. 

Encontramos os indicadores sociais em qualquer comunidade - rica ou pobre, urbana


ou rural. No entanto, eles só se tornam um indicador cultural quando, em contato com
outros indicadores, produzem um novo desenho, uma teia de relações dinâmicas,
novas tramas e padrões de convivência, gerando novos valores ou sendo influenciados
pelos valores universais presentes na comunidade. 

A cultura, este desenho, trama ou padrão dinâmico e interrelacional, é algo humano e


social, público e visível, mas às vezes microscópico. Podemos, dentro de uma
macrotrama, perceber microdesenhos simbólicos e repletos de significantes, como nas
festas populares e de rua ou nos "rituais da ordem" que simbolizam e mantêm o
sistema político. E é nesse mar de tramas, micro e macroscópicas, que navegamos
durante nossa vida.

A seguir, comentamos esses indicadores. 


As formas organizativas - Incluem a família, a vizinhança, os amigos, o grupo de oração,
os companheiros de futebol, o pessoal do pagode, as comadres da esquina, os
meninos da pelada, a galera do funk etc. Esse indicador é fundamental para o
moderno conceito de "capital social". Estudos demonstram que quanto mais espaços
ou oportunidades de convivência social forem oferecidos aos habitantes de uma
comunidade, mais formas e possibilidades de participação estarão sendo geradas,
ampliando os espaços e os momentos de protagonismo social e o acúmulo de capital
social. 

Nossa experiência nos autoriza afirmar que onde não há oferta de formas
organizativas em quantidade (e por isso há poucas oportunidades de participação e de
protagonismo), o tempo de resposta aos problemas é muito lento. O tempo de rotinas
aumenta e o tempo de desejos e desafios decresce. A lentidão é observada na falta de
vontade e ambição das pessoas, principalmente dos jovens, na baixa estima social da
coletividade, no comodismo e atraso em relação a outras comunidades. 

Isso explica por que as jovens do "sertão das gerais", aos 17 ou 18 anos, começam a
ficar "desesperadas" porque ainda não se casaram, "porque já passaram da época". É
que, na percepção delas, o tempo de juventude e de sonho já se realizou. Elas vivem
em cidades que não têm cinema, grupo de teatro, biblioteca, festas populares,
locadora de vídeos, grupos de jovens, coral ou banca de jornais. Não acontece nada
nos fins de semana e muito menos no meio da semana. O mundo externo entra
filtrado pela tela da TV ou pelas ondas do rádio. Por isso a maioria tem na própria TV
(ou rádio) o seu instrumento de formação de "capital social", ou seja, há um crescente
processo de terceirização do desejo e alienação da vontade, gerando a não-
participação e o não-protagonismo. 

As formas do fazer - São as respostas produzidas pelos homens às múltiplas


necessidades humanas. Uma resposta bem-sucedida significa incorporação de um
resultado. Assim surge o "uso" que, de caráter pessoal, passa a ser um "hábito" ao
tornar-se de domínio de um grupo maior. A prática de um hábito cria o "costume",
uma das marcas de uma coletividade. A permanência do costume no tempo cria a
"tradição", marca registrada do fazer e do saber fazer de uma comunidade ou de um
povo. 

Esse processo de acumulações sucessivas, sistemáticas e sempre atualizadas (porque


contemporâneas), constitui a base da produção do conhecimento, seja de cunho
científico (porque usa métodos para a compreensão de variados objetos), seja de
caráter tecnológico (porque produz materiais, soluções e técnicas facilitadoras), seja
de essência artística (porque atende a valores estéticos, sentimentais e não-tangíveis
da humanidade, por meio de música, teatro, poesia, pintura etc.). 

Os sistemas de decisão - Referem-se ao político, à autoridade, à liderança, aos poderes


de decisão - macro e microinstitucionais e não institucionalizados. Aparecem ostensiva
(como nos caso das lideranças políticas, jurídicas, militares etc.) ou subliminarmente,
como no ambiente familiar, em que pai e mãe têm poderes de decisão. 
As relações de produção - Trata-se do econômico, do mundo do trabalho, das forças
produtivas - quem produz o que e para quem - de um grupo social. É observável nas
formas convencionais de relações de produção e de trabalho, assalariadas ou formais,
e em todas as esferas da rede produtiva e reprodutiva de bens e serviços,
remunerados ou não. 

O meio ambiente - Ou o contexto, o entorno, o ecológico. O homem é produtor e


produto, processo e resultado do meio onde vive, parte integrante do ecossistema.
Considerar o meio ambiente como um indicador social é compreendê-lo além de sua
face meramente física e natural, como um elemento substantivo na constituição das
expressões simbólicas, relações e processos humanos que serão o pano de fundo
sobre o qual se construirá o desenho cultural de uma comunidade. 

A memória - Refere-se ao passado, à origem. Todos nós recebemos, desde o


nascimento, uma carga de informações sobre o nosso passado recente ou remoto,
guardado pela história ou pelo inconsciente coletivo ou pela tradição familiar. A
memória de um grupo social se expressa em seus rituais sacros e profanos, repletos de
elementos simbólicos perpetuadores dos vínculos e das matrizes geradoras desta
comunidade. 

A visão de mundo - É o religioso, o filosófico, o depois, o futuro, o sonho. É movido


pela idéia do porvir que o homem investe seu tempo e energia para aprender,
dominar, transformar e se apropriar do mundo à sua volta. Existe uma ligação entre a
memória e a visão de mundo: quanto mais pudermos voltar no passado e na memória,
mais longe poderemos chegar em direção ao futuro, ao estabelecermos links e
passagens de força, equilíbrio e coerência entre o ontem e o amanhã. Mas é preciso
cuidado para não se ficar preso ao passado. Quem não consegue ligá-lo de forma
coerente ao seu presente, não consegue construir uma perspectiva de futuro de seu
próprio mundo. 

Com esses indicadores construímos o "nosso" modelo de Cultura: esta rede e trama de
relações que forma um padrão ou um desenho definidor da identidade da comunidade
ou grupo social. E podemos pensar em processo cultural como a interação e as
dinâmicas que afetam o padrão ou desenho. Assim, entendemos que um "projeto de
desenvolvimento" (de qualquer natureza) é uma ação-intervenção planejada no
desenho cultural (e suas relações) de uma comunidade. 

O planejamento de um desenho cultural brasileiro - seja local, regional ou nacional -,


que constitui o cerne das propostas e políticas de desenvolvimento, deveria ter então
como premissa e ênfase a heterogeneidade e a diversidade culturais, que de fato
constituem a marca de nossa nacionalidade, o caráter de nosso país e sua verdade
histórica. 

Percebê-las em seus microcosmos - escola, família e comunidade - torna-se uma das


tarefas dos educadores. Canalizá-las para construções pedagógicas que favoreçam
novos processos de apropriação de conhecimentos, geradores de "oportunidades-e-
de-opções", pode ser o principal trabalho da escola. 

Esta é, cremos nós, a finalidade da cultura: ser instrumento eficaz do conhecimento,


possibilitando leituras mais densas, mais ricas, mais sábias, mais abrangentes e mais
humanas da nossa "travessia", nessa busca permanente e vocação natural para ser
feliz.

Sobre o autor

Tião Rocha é antropólogo, educador e folclorista. Foi professor da PUC-MG, da


Universidade Federal de Ouro Preto e membro do Conselho Universitário da
Universidade Federal de Minas Gerais. É presidente do CPCD - Centro Popular de
Cultura e Desenvolvimento, que fundou em 1984, em Minas Gerais.

Fonte: http://www.ondajovem.com.br/acervo/3/as-tramas-da-identidade

Você também pode gostar