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Caxambu,
2016
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DA MITOPOÉTICA À COSMOPOLÍTICA DOS CABOCLOS: INTRODUÇÃO
AO ESTUDO DAS NARRATIVAS AFROINDÍGENAS1.
1
Esse texto é parte dos resultados de minha pesquisa de mestrado realizada junto ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia, no Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da
Paraíba (PPGS/CCHLA-UFPB), e contou com uma bolsa do CNPq entre os anos de 2014 a 2016. A pesquisa
tinha como tema as transformações cosmológicas e ontológicas ameríndias postas pelo complexo da “relação
afroindígena” na região do Recôncavo da Bahia de Todos os Santos. A dissertação que deu origem a este
trabalho foi orientada pelo Prof. Dr. Marcos Ayala (PPGS/UFPB) e coorientado pela Profª. Drª. Francisca
Helena Marques (CECULT/UFRB).
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Segundo informações levantadas pela etnomusicóloga e antropóloga Francisca Helena Marques e que
constam no Arquivo de Som e Imagem Dalva Damiana de Freitas (LEAA/Recôncavo): “Nascida em 27 de
setembro de 1927, em Cachoeira, no Recôncavo baiano, Dalva Damiana de Freitas, carinhosamente chamada
de Dona Dalva (a Doutora do Samba), é considerada uma legenda viva por sua obra, trajetória e contribuição
à cultura afro-brasileira, em especial, ao Samba de Roda no Estado da Bahia. Filha de pai sapateiro e mãe
charuteira, Dona Dalva é a mais velha de oito irmãos. Cursou apenas o ensino primário, e desde muito jovem
trabalhou, assim como sua mãe, como operária para as indústrias fumageiras do Recôncavo”. MARQUES,
Francisca H. Dalva Damiana de Freitas. In: http://culturadigital.br/arquivodalvadamianadefreitas/dalva-
damiana-de-freitas/ (consultado em 10 de julho de 2016).
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O ritual do culto aos caboclos, uma das variações do candomblé, e a expressão musical do
samba de roda são formas sócio-culturais, religiosas e artísticas, assumidas pelas
transformações afroindígenas e pelas implicações das técnicas de captura e “tecnologias
de acesso” rituais inerentes às religiões afro-brasileiras. Assim, no atual Estado de exceção
em que vivemos, em uma época de tantos fundamentalismos e intolerância religiosa, é
quando mais devemos trabalhar em favor das religiões afro-brasileiras, ao fazermos notar
que conosco caminham os ancestrais.
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A palavra kilombo é originária da língua bantu umbundo, falada pelo povo ovibundo, que se refere a um
tipo de instituição sócio-política militar conhecida na África Central, mais especificadamente na área
formada pela atual República Democrática do Congo (antigo Zaire) e Angola. Apesar de ser um termo
umbundo, constitui-se em um agrupamento militar composto pelos jaga ou imbangala (de Angola) e os lunda
(do Zaire) no século XVII (MUNANGA, 2006, p.71).
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interagiam em cada país, notoriamente alguns povos indígenas (MUNANGA,
2006, p.71).
Localizados em áreas de maior isolamento, os povos bantus, jeje, iorubanos, entre outros,
“mantiveram relação de aliança com índios” durante e após o “fim” da legalidade da
escravidão ameríndia e afro-atlântica moderna. Mostras dos desenvolvimentos de formas
de sociabilidades afroindígena, podem ainda ser encontradas na região do Recôncavo
baiano, como nas comunidades: Kaonge, Dendê, Kalemba, São Francisco do Paraguaçu,
Engenho da Ponte.
A canção: “Maré encheu, /Maré vazou/De longe, /Bem longe/Eu avistei Irará// Minha
casinha/Coberta de sapé/Meu arco e/Minha flecha/Minha cabaça/De mel// Irará,
Irará...”, captada em uma das cerimônias estudadas, e encontrada também em torés de
aldeias indígenas (como as dos Tupinambás da Serra do Padeiro), invoca esse lugar mítico
chamado “Irará”. E, como outras canções, é mostra, no culto aos caboclos, da narrativa
ancestral, a partir da qual a cosmologia dos caboclos intercala ameríndios, africanos e seus
descendentes, através de uma realidade que recompõe as condições de possibilidade da
sociabilidade eco-política, nos planos cosmológico e ontológico da experiência social.
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afroindígena apresenta os caboclos – performers rituais do universo, narradores de
cosmologias, cantadores encantados de mitos. Este canto de caboclo, infra, foi captado na
Solene de Boiadeiro, festa de caboclo no Terreiro Raiz de Ayrá, em maio deste ano, durante
meu trabalho de campo:
Ê Caboclo Novo
ajoelhado na Jurema.
Ê Caboclo Novo
ajoelhado na Jurema.
Pedindo forças
para Zambi lhe ajudar.
Boa noite,
companheiros de jornada;
meus irmãos, meus camaradas
não nego meu natural.
Das tribos e das aldeias ancestrais, hoje sob cercas de arame farpado, se manifestam os que
primeiro tornaram possível o complexo étnico bantupi em direção às outras transformações
advindas da chegada de jejes e nagôs. Como se vê na canção evocada, os ecos mnemônicos
destas trocas e empréstimos, técnicas de captura e “tecnologias de acesso” (SANTOS,
20154) repercutem nas vozes e corpos dos agentes ancestrais e contemporâneos, e
percorrem o anímico Recôncavo baiano – totêmico cenário natural/meio ambiente cultural
– ecossistema ancestralizado pelas visões de mundo ecológicas ameríndias e africanas e
pela cosmologia mitopolítica afroindígena dos caboclos. Infere-se daí que o candomblé é
a instauração e o reconhecimento de uma imensa rede de políticas cósmicas e a reserva de
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SANTOS, Laymert Garcia. Laymert Garcia dos Santos: 'Hoje, xamanismo é alta tecnologia de
acesso'.http://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/laymert-garcia-dos-santos-hoje-
xamanismo-alta-tecnologia-de-acesso-17110386.( consultado 7 de abril de 2016).
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um corpus mitopoético ancestral, atualizado em estados específicos de agenciamentos
performáticos e rituais.
A religião e suas tradições estão no cerne da organização social e política dos povos
transmitindo-se de geração em geração. Tal transmissão, ao ocorrer por meio de
transformações, abre espaços para a emergência de formas de expressão únicas em seus
determinados contextos. A Bahia de Todos os Santos e seu recôncavo, territórios
originalmente ocupados por indígenas ameríndios, são palcos raros de extraordinárias
experiências ligadas ao processo da diáspora afro-atlântica, bem como da “reexistência”
ameríndia, tanto num plano das cosmovisões desenvolvidas na região, quanto nas
expressões artísticas e culturais ligadas à cosmologia afroindígena. No alto curso do rio
Paraguaçu, locus e unidade de análise de nossa investida etnográfica,
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Aqui, quero chamar a atenção para dois elementos que, de tão intimamente envolvidos,
podem ter um prisma de observação comum: o culto aos caboclos e o samba de roda. O
primeiro, experiência mítica e ritual de força cosmológica e simbólica bastante atuante na
região; e o segundo, expressão musical de valores tradicionalmente ligados a festividades
e celebrações locais (IPHAN, 2007).
A dicção sonora assumida tanto pela música, quanto pelas letras apresentadas pelos cantos,
possui traços que revelam a conexão com a ancestralidade ameríndia, em estado de
agenciamento de uma ação ritual e um conhecimento mítico que se perpetua nas casas de
culto, como nos casos dos terreiros investigados: Terreiro de Caboclo Guarani de Oxóssi6,
em Cachoeira; Ilê Axé-Alaketu Oyá Funan, em Muritiba; e Raiz de Ayrá, em São Félix. E,
também, em atualização nas apresentações e na sede do Samba de D. Dalva, grupo também
conhecido como Samba de Roda Suerdieck.
“Também, pela sua experiência e criatividade, Dona Dalva inseriu a percussão das
tabuinhas de madeira que eram utilizadas para bolear os charutos na fábrica como
característica da musicalidade feminina do seu grupo” (MARQUES, 2009; 2016). Tanto
na clave do toque dos tambores no rito do culto ao caboclo, diferente das marcações
rítmicas para os orixás africanos, quanto no “ostinato” das tabuinhas das baianas, observa-
se a polirritmia e a formação de máscaras sonoras, à luz das experiências em estudo.
Segundo Marques (2016), “O nome do grupo advém da antiga fábrica de charuto onde D.
Dalva trabalhou como charuteira e onde criou seu samba com suas colegas de trabalho para
participação em eventos locais, festas e celebrações religiosas, em novembro 1958”. E
5
Tupinambá, Sultão das Matas e Boiadeiro são, provavelmente, os caboclos mais conhecidos e influentes
no universo afroindígena. Mas todos os caboclos são importantes ancestrais coloniais e assim os defino, por
que estes só se tornaram ancestrais, de maneira específica, por conta das guerras pela colonização.
6
Sobre este terreiro de caboclo, em especial, ver etnografia em: SANSI, Roger. “Fazer o santo”: dom,
iniciação e historicidade nas religiões afro-brasileiras. Análise Social. VOl. XLIV. (1ª), 2009. p.139-160.
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como disse Mãe Preta: “O Suerdieck é uma outra marca de samba, é samba de baiana”7,
principalmente quando observadas as transformações cosmológicas afroindígenas da
ordem dos de Aruanda (os caboclos) no nosso mundo social e cultural por meio da religião
e da música.
7
Em relação ao samba de roda Filhos do Caquende. Depoimento colhido em entrevista, fevereiro de 2016.
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relação à narrativa sociológica dos dados no campo, que organiza os fundamentos da
hipótese de trabalho frente ao teste posto pela inflexão etnológica em direção a redação
dos resultados. Em outras palavras, ao pensar no que melhor exemplifica o núcleo
diferencial desta forma de “alteridade radical” afroindígena (caboclo-orixá/ameríndio-
africano, p. ex.), chamo atenção para um diálogo, observado no Terreiro de Caboclo
Guarani de Oxóssi, entre o caboclo Tupinambá e a cabocla Jurema. Enquanto dançavam
em frente aos atabaques, os caboclos se revezavam no canto:
JUREMA
– “Eu não sou jeje/ Eu não sou nagô/ A minha nação/ é Okorokô”.
TUPINAMBÁ
– “Dói, dói, dói, dói/ um amor faz sofrer/ Dois amor faz chorar/
Quem é você/ pra deitar em minha cama? [...]”
JUREMA
– “Deixa amanhecer/ Deixa amanhecer pra ver/ Deixa amanhecer
pra ver/ Deixa amanhecer”.
Nos diálogos, aparentemente, estão contidas estas falas (en)cantadas que se apresentam
enquanto dados muitos valiosos. Primeiro, a autodeterminação de que o caboclo não é jeje
nem nagô, é um achado brilhante para a hipótese que estou testando. O que, por si só, atesta
a validade dos dados encontrados enquanto instrumentos para operar e avaliar os vetores
da desconstrução da mestiçagem. Por meio do reconhecimento empírico da
“irredutibilidade” dado pelo campo e da operação do princípio da “contramestiçagem”,
resultante da leitura dos materiais ameríndios e afro-americanos sem reduzirem-se a
sínteses ou a reduções da interpretação da “relação afroindígena”, enquanto possibilidade
de aferição, a posteriori, da hipótese da pesquisa e o encontro com resultados que avaliem
a validade da tese aventada pelo trabalho.
Pode-se postular, ainda, a interpretação de uma narrativa da “conquista” que se entrevê nas
palavras dos caboclos: o Tupinambá quando diz que o amor “dói, dói, dói [...] faz sofrer,
faz chorar” e a Jurema que responde dizendo “deixa amanhecer pra ver”. A sugestão desse
clima se apresenta sob a forma de desafio, quando Tupinambá pergunta “quem é você pra
deitar na minha cama? ”, a resposta de Jurema parece ecoar de dentro do diálogo
novamente, em tom ainda mais provocativo: “Deixa amanhecer pra ver/ Deixa amanhecer
pra ver”. Com a demonstração da validade da leitura sociológica que tem marco conceitual
a partir da noção conceitual da “relação afroindígena”, o aporte teórico e metodológico
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transformacional das religiões afro-brasileiras (BANAGGIA, 2014; GOLDMAN, 2008)
indica caminhos para compreender, no nosso caso, as transformações bantupi/jeje-nagô.
É isso que ele quer dizer quando refere que as diferenças não podem ser só
“respeitadas, ignoradas ou subsumidas” (Latour, 1996, p.102-103), elas devem
ser reconhecidas como capazes de gerar novas realidades: a função do
antropólogo não seria só descrever outros discursos, outras cosmologias, mas
entender como a partir desses discursos somos capazes de incorporar os eventos
da história — que são exteriores a esse discurso. Claro que então não podemos
falar em termos de “ontologia”, mas de “epistemologia”, uma teoria do
conhecimento, não uma teoria do ser (SANSI, 2009; p.156).
No entanto, ao trazer Roger Sansi ao debate com todas as ressalvas que tenho, este trabalho
apresenta-se enquanto “uma recusa à oposição entre a ontologia, domínio do ser e a
política, entendida enquanto arte do fazer (cf. LIMA; SZTUTMAN, 20138). Na articulação
de uma análise cosmológica – descrição dos diferentes seres do cosmo e das interações
entre eles”, com as formas sociais, essa interpretação se torna possível do ponto de vista
sociológico, a partir do momento em que através das cosmopolíticas dos ancestrais,
observam-se as relações e transformações implicadas no parentesco afroindígena, no culto
aos caboclos e na arte do samba de roda, tomados enquanto fontes de compreensão das
potências indígenas. E que, ainda que não sejam reconhecidos como “habitantes” do
território do Recôncavo da Bahia atualmente, ao menos no universo investigado, os índios
continuam presentes, enquanto os legítimos “donos da terra”.
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LIMA, Tânia S.; SZTUTMAN, Renato. ST07 Cosmopolíticas ameríndias: descrevendo processos
de (trans)formação de coletivos. ANPOCS. São Paulo, 2013
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Mito e ritual, nos apresentam a genealogia do parentesco afroindígena, através da
observação do culto aos caboclos no Recôncavo da Bahia, repositório da herança e da
ancestralidade africana e, principalmente, onde variadas expressões de sua religião se
perpetuaram, sendo o universo de investigação ligado a princípios imanentes às práticas
sociais que estabelecem relações sócio-cosmológicas a partir da ancestralidade. Se o
contraste ou as conexões revelam princípios correspondentes entre as formas que os ritos
apresentam, então observa-se um modus operandi que funda o mito, no qual diferença e
criação operam uma perspectiva na qual a transformação é, em si, seu próprio método.
O caboclo que é ameríndio e africano, formado por essa família afroindígena que tem nos
ancestrais seus vetores de diferenças e continuidades, nos apresenta os dados necessários
à realização de uma “antropologia simétrica” da qual derivamos a “sociologia dos móveis”,
enquanto posição epistemológica orientadora da narrativa sociológica derivada da
realização do trabalho etnográfico. Nesse sentido, o culto aos caboclos – “tradução e
transcriação etno-filosófica do pensamento ameríndio” – é uma “variação das variações”
do candomblé.
Por ora, este trabalho quer ser apenas uma introdução ao contexto e ao método das
transformações indígenas nos candomblés do recôncavo da Bahia, e “apresentar sugestões
para a consideração de um campo de investigação, o tradicionalmente chamado das
religiões afro-brasileiras, com base num novo modo de encará-las: uma perspectiva
transformacional que as encara como versões umas das outras” (BANAGGIA, 2014, p.
58). Em aliança com a observação da influência do culto aos caboclos em fenômenos
sociais mais amplos como o samba de roda é que este trabalho se caracteriza pela tentativa
de uma ontografia dos caboclos realizada através de suas letras, mas também pela
compreensão do mito e das particularidades rituais do culto.
Para tanto, toma-se enquanto estudo de caso o culto aos ancestrais (os caboclos) no
contexto do candomblé do Recôncavo baiano, com atenção especial para os rituais nas
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cidades de Cachoeira, São Félix e Muritiba. Os ritos investigados apresentam o regime de
contato, comunicação e contraste com o ancestral por meio da oferenda, do sacrifício, do
transe e do sangue cumprindo um papel de conexão com a natureza, em sequências
prescritivas de normas rituais. Além da participação da música em pelo menos duas ordens:
uma no sentido Terra <=> Aruanda, e outra no sentido inverso.
O complexo percussivo do candomblé (Rum, Rumpi e Lé) é apoiado pelos maracás, pelos
caxixis, pela jurema, pelas sinetas, pelos gãs, pelas palmas, pelo canto em português, pelo
recurso mnemônico das técnicas corporais e pela capacidade xamânica das mães de santo
e ogans. E, em alguns casos, até pandeiro e viola participam do culto aos caboclos, como
se vê pelo seu gosto pelos instrumentos do samba de roda em várias cantigas: “Ó Pandeiro,
Ó Viola”; “Tô sambando/ sem minha Viola/ Tô sambando/ sem minha Viola”.
É claro que, para analisar um fenômeno tão complexo, não há como partir, senão, da
tentativa de compreender o diálogo entre os sistemas cosmológicos que são feixes das
formas culturais tupinambá, no plano ameríndio, e da cultura africana bantu/iorubá
represada pela diáspora afro-atlântica em terras latino-americanas, em especial no Brasil,
e de maneira bem caraterística na Bahia. Como observa-se no caso do Recôncavo baiano,
região-etnográfica, locus de investigação etnológica, esta condição é resultante histórica e
moderna consequência da política colonial de invulgar contribuição na constituição das
narrativas cosmológicas ancestrais das religiões afro-brasileiras.
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A figura do caboclo atualiza-se através da experiência de ativação de uma temporalidade
verbal da linguagem musical e, idioma gestual do samba e da guerra, em sua
performatividade no instante do transe e da possessão, por meio da condução xamânica da
ancestralidade no processo de sua efetuação no presente. O que pode ser observado, tanto
do ponto de vista da narrativa da identidade nacional “oficial” da Independência da Bahia
ter sido deflagrada por índios/caboclos (indígenas e africanos), nas margens do Paraguaçu
expulsando portugueses em 25 junho de 1822, quanto da perspectiva da variação das vozes
ancestrais e do corpo natural do ameríndio, em trânsitos cósmicos e políticos.
Os contornos do culto bantu, orientado pelos padrões identificados nas casas de culto da
nação angola, introduzem o ameríndio no jogo de danças ketu e jeje-nagô. A possibilidade
de se cultuar o ancestral, e não apenas os orixás africanos, abre um canal com Aruanda,
possível anagrama epigramático de Luanda, ou, quem sabe, até mesmo um planeta (uma
lua no Orun?) onde vivem os caboclos, esses herdeiros da ancestralidade orgânica da terra.
Essas partes do todo que não se dissipam quando a matéria se desfaz. Emanuelle Tall
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(2012, p.82), comenta que: “o caboclo pertence ao mundo intermediário dos ancestrais que
ligam o mundo além com o mundo humano”. Assim seria “Aruanda”, um inframundo do
plano espiritual, ao mesmo tempo em que a autora diz que “o mundo dos caboclos é
ilimitado”.
Como sabemos que Xangô foi um rei (aláàfim) de Òyó ou Oxóssi, um rei de Ketu, ambos
tornados não-humanos, deidades que encontram ou escutam o xamã, o cantador que os
invoca, podemos, então, considerar que o fundamento para compreensão ritual do ancestral
caboclo, diferentemente do orixá que é pura força espiritual, e, em especial, do orixá que
não tem origem num ancestral africano, é o reconhecimento da manifestação das forças
dos Encantados: espíritos da terra, das matas, das águas, das pedras e das esquinas.
Portanto, este trabalho investiga o rito dos cultos aos caboclos com o intuito de contribuir
para a constituição conceitual da ancestralidade ameríndia e seus agenciamentos no
contexto da estabilização de um campo de estudos das relações afroindígenas no
Recôncavo da Bahia de Todos os Santos, com a observação da agência de uma poética da
narrativa que atualiza o mito ameríndio aliada a potência cosmopolítica dos ancestrais nas
religiões afro-brasileiras.
Sabe-se que esses povos indígenas foram chamados tapuia no final do tempo pré-colonial.
Daí em diante, F. Cardim (Tratados da Terra e Gente do Brasil) indica os índios
quirimurés, ou quirimurás, como os que primeiro enfrentaram o avanço dos tupis
litorâneos. Grupo do qual deriva o topônimo da região – Kirymuré. Ainda no século XVI,
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Gabriel Soares (Tratado Descritivo do Brasil em 1587) tem a identificação do termo
“tapuias” enquanto a denominação geral que os tupis davam a índios não-tupis (RISÉRIO,
2007). Seguidos pelos tupinaés na ocupação do território até a consolidação da presença
dos tupinambás que se dispersam quando da invasão dos portugueses.
Quem tomou a terra dos tupinaés, praticamente dizimados na Bahia de Todos os
Santos, não foram os portugueses, mas os tupinambás acionando a sua
implacável máquina de guerra como bordunas, canoas coloridas e flechas
incendiárias. Da mesma forma, o comércio transatlântico de escravos foi
altamente lucrativo também para os negros da África, que dele se beneficiaram
em larga escala, produzindo até formações estatais, como o Estado do Daomé,
que enviava embaixadas ao Brasil, na tentativa de monopolizar mercados para a
exportação daomeana de escravos (RISÉRIO, 2007, p. 395-396).
[...] também grande parte da esfera religiosa fica reservada a Olorum e aos
Orixás, ainda que estes estejam encobertos com mantos de origem cristã. E a
melodiosa língua Tupinambá imprimiu seu selo indelével à topografia, flora e
fauna baianas, notando-se ainda neste campo, certa influência da língua do
Cariri [...]. Além disso, muitos elementos folclóricos e inúmeras indústrias
populares e costumes remontam à origem indígena (OTT, 1944, p. 1).
9
Robert Southey (1774 -1843), poeta e historiador inglês que escreveu uma História do Brasil publicada em
Londres entre 1810 e 1819.
15
ocupava o estado da Bahia e encontravam-se para o lado do sertão, a oeste dos tupiniquins
e tamoios. Os aymorés, também chamados botocudos, ocupavam os estados da Bahia,
Espírito Santo e Minas Gerais. Segundo J. Wetherell, por volta de 1851, em Salvador,
“índios botocudos são trazidos algumas vezes à cidade por missionários italianos”
(WETHERELL, 19_, p. 59).
Sobre os aymorés, há um detalhe interessante indicado por J. Teles dos Santos (1995,
p.146), quando este diz que o caboclo Sultão das Matas é descendente desta tribo, o que
me faz recuperar uma cantiga do Sultão das Matas, no terreiro Ilê Axé Alaketu Oyá Funan,
quando este diz: “Tupinambá, eu te peço, [...]/Saia do seu lajedo/ de vez em quando/ passe
por aqui”; mais uma mostra de como as cantigas dão conta das formas de sociabilidade
entre ameríndios.
Nota-se também, que o nominativo se refere à “designação de cada uma das entidades
ameríndias da linha de Oxóssi”, para a umbanda. Na mina, qualificação das casas de culto
de origem africana no Maranhão, “as entidades tidas como “caboclos” não são
consideradas nem índios nem eguns, embora tenham tido vida terrena e ligação com grupos
indígenas” (LOPES, 2011, p. 155).
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O culto aos candomblés de caboclo, tão presentes na religiosidade dos bantos,
deu origem ao candomblé de caboclo, considerado por muitos adeptos como
uma variação do candomblé de angola, no qual os deuses indígenas assumiram
o papel central, com o mesmo status dos orixás. Os caboclos são os espíritos
“donos da terra” e representam os índios que aqui viviam antes da chegada dos
brancos e negros. Quando baixam nos terreiros, vestem-se com cocar de pena,
dançam com arco e flecha, fumam charutos e bebem vinho. Geralmente falam
um português antigo e quase incompreensível. Muitos deles são extremamente
católicos e suas preces e louvações lembram os tempos coloniais de sua
catequese. Por serem conhecedores da medicina local e dos segredos da mata,
são famosos como curandeiros e feiticeiros. Os caboclos, apesar de serem
brasileiros e ressaltarem essa característica nas cantigas (nelas se dizem da
“nação brasileira”) e nos nomes que carregam (de povos indígenas brasileiros
como Tupi, Tupinambá, Aimoré, Guarani), quando narram suas origens se
apresentam como habitantes de uma “aldeia mítica” (como “Hungria” e
“Visala”), não-localizável no tempo e no espaço. Em alguns casos, seus nomes
fazem referências à natureza cultuada pelos índios, como caboclo Sol, Lua
Nova, Estrela, Mata, Tomba-Serra, etc. (SILVA, 2005, p. 87-88).
Sem esquecermos de Aruanda, principal referência a esta terra mítica dos caboclos, pode-
se começar a considerar uma relação na qual apresenta-se o samba-de-caboclo em um
complexo de relações afroindígenas “unido também ao samba de partido-alto das tias
baianas, formando o elo entre festa e orixá, combinados com muita comida e lembranças
da chula, das umbigadas do samba de roda de Santo Amaro, Cachoeira e Muritiba, terras
do açúcar, do tabaco, do Recôncavo baiano” (SABINO, LODY, 2011, s/p.). Para esses
autores, o samba-de-caboclo
É a modalidade de samba que relata um processo de nacionalização com base
nas interpretações e observações sobre a vida dos indígenas, seus procedimentos
e hábitos culturais. Integrado ao chamado candomblé de caboclo, é uma
verdadeira simplificação litúrgica dos rituais de candomblés de nação, aqueles
identificados como de matriz africana: ketu, jeje, angola, angola congo. O
samba de caboclo é a louvação da liberdade do dono da terra, da terra brasileira.
É a interpretação dada pelos segmentos de matriz africana daquele que
representa em síntese o ancestral brasileiro. Os rituais dos candomblés de
caboclo seguem a formação da roda, conforme o xirê dos candomblés de nação.
Há uma ordem nas danças, mantendo sempre a roda em organização hierárquica
como nos demais terreiros. O samba, nesse caso, é dança de liturgia como
acontece com as diferentes coreografias da roda dos orixás. Cada caboclo mostra
seu estilo, sua história. Por exemplo, o Capangueiro se apresenta todo vestido
de couro, lembrança do vaqueiro nordestino, e o vestido de pena lembra como
os índios adornam o corpo. Contudo, o que os une é a dança vigorosa com
umbigada, estabelecendo diálogos coreográficos com os atabaques (SABINO,
LODY 2011, s/ p.).
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2013, p.13) nos informa que: “Mais, entretanto, que negociar as pazes, faça o governador
por colher às mãos alguns dos principais que tiverem sido cabeças dos levantamentos, e os
mande enforcar por justiça nas suas próprias aldeias”. O que nos faz entender o culto aos
caboclos enquanto uma cosmopolítica dos ancestrais coloniais e que ainda
Portanto, a partir desta passagem da cosmologia à cosmopolítica, este trabalho revela muito
do meu interesse acerca das implicações filosóficas da antropologia contemporânea para
as ciências sociais, bem como, as transações entre cosmologias e ontologias ameríndias e
africanas, no bojo das relações sociológicas, originadas com a colonização e a diáspora
afro-atlântica, que atingiram as Américas a partir do século XV.
Esta análise, extrapola os contornos dos Estudos Culturais e, insere, no contexto dos
“Estudos Afro-brasileiros”, uma expressão sociológica das linhas de “continuidade
epistêmica com as formas de pensamento ameríndio”, em relação a ontologia africana.
Para, então, compreender as implicações sociológicas do parentesco afroindígena e da
“economia cosmológica” derivadas das relações sociais no contexto do culto aos caboclos.
Tal relação, reflexiva e, por vezes, recursiva, demarca o parentesco enquanto descritor de
uma sociologia afroindígena e de uma “economia cosmológica” entre orixás e caboclos no
âmbito da configuração sócio-religiosa das casas de culto aos ancestrais, no Recôncavo
18
baiano. Assim, reconhece-se o culto dos caboclos, enquanto expressão eco-política
cósmica de uma ontologia ancestral, suporte dinâmico e variação ritual do culto aos orixás,
onde a ancestralidade ameríndia transforma-se em “força ontológica” que vivifica um
conteúdo espiritual de outra ordem, que se transfigura a partir das trocas e da reciprocidade
afroindígena. O que constitui um meio ambiente cultural onde a dinâmica do complexo
afroindígena parece dar conta da variação de perspectivas, ora culto aos caboclos, ora culto
aos orixás; e das transformações e atualizações cosmopolíticas, ao entendermos que cada
“roça” de candomblé, cada terreiro é uma aldeia, uma floresta, uma mata, até mesmo os
urbanos.
Num regime epistemológico capaz de expor (cf. Deleuze e Guatarri apud VIVEIROS DE
CASTRO, 2012) “o desequilíbrio perpétuo entre significante e significado”, entre os
materiais, no nosso caso, ameríndios e africanos, causa-se um impacto que desloca a
hermenêutica da antropologia interpretativa da descrição densa – antes semiótica –
exigindo agora, não só, a observação da linguagem, ou, de sua transformação, mas sim,
dos vetores da “multiplicidade rizomática” das estruturas rituais do totemismo, do
sacrifício e do “devir afroindígena”. O que leva, a presente investigação, a reconhecer a
alteridade cosmológica para além da linguagem, ou seja, indicar seu núcleo
fenomenológico da assimilaridade na ontologia das diferenças indígenas.
Entretanto, o samba de caboclo, aspecto sonoro que remete “ao acompanhamento musical,
ou seja, ao toque dos atabaques, agogôs ou cabaças” no rito do candomblé de caboclo, é
um dos pressupostos cosmológicos afroindígenas do ritual, ao apresentar a linguagem
mitopoética enquanto demarcador desta ontologia, no conjunto das formas de
sociabilidades humanas e não-humanas cósmicas, diretamente ligado às cosmopolíticas
dos ancestrais coloniais. Essa rede cósmica posta entre os ancestrais ameríndios e
africanos (e entre nós e eles) no interior das formas sociais da diáspora afro-atlântica, ganha
19
corporalidade nas vozes presentes nos cultos da umbanda, candomblé, catimbó, jurema,
culto de egunguns ou na religião dos Encantados, como no caso dos grupos de Tupinambás
contemporâneos. Logo, essa forma reflexiva (as)simétrica e sócio-cosmológica, por vezes,
reversa de religião/xamanismo – culto aos ancestrais – é, através da atualização da
ancestralidade, uma força ontológica no plano das sociabilidades ameríndias e africanas,
como no caso dos bantus ou dos iorubas, e, mais atualmente, de seus descendentes.
Como, só agora, posso comentar passados alguns anos de ter presenciado um Marujo –
entidade cosmológica ligado ao culto aos caboclos, mesmo sendo caracterizado como um
exu na umbanda – “pegar”, incorporar num visitante na Casa do Samba de Roda de D.
Dalva, durante uma apresentação do Samba de Roda Suerdieck. Chego à conclusão de que
essa potência de atualização da ancestralidade afroindígena que é o samba, enquanto arte
e linguagem, é um vetor de comunicação entre esses mundos – religioso e artístico, humano
e não-humano – e é este atributo xamânico do samba de roda, que esta pesquisa quer
atestar, em suma.
Para Emanuelle Tall (2009, p.79) “suas características de autoctonia, sabedoria ecológica
e de grande teimosia fazem dele [o caboclo] um intermediário privilegiado nas relações
humanas com as forças do além”. Nesse sentido, os ritos e mitos são aqui tomados por
recursos práticos e simbólicos para que a partir da ativação e efetuação do parentesco, a
20
atualização da ancestralidade e expressão de linguagens artísticas como a música, estes
sejam entendidos enquanto “cimento integrador do corpo social”. Como ensina a cantiga
para o orixá Irôko, também chamado Tempo, recolhida na casa Ilê Axé Alaketu Oyá Funan
e, também, escutada no Terreiro de Caboclo Guarani de Oxóssi: “Olha aê, Tempo/Olha
aê, ah.../Olha aê, Tempo/ Sua bandeira tá no ar”. Então
[...] a inserção do caboclo na estrutura mitológica dos cultos do candomblé.
Inserido numa lógica hierárquica tal como foi definida por Dummont (1978),
i.e., como estratificada e englobante, o caboclo desenvolve vários papéis que o
ligam às divindades africanas Katendê (deus das folhas e plantas medicinais),
Oxóssi (deus do mato e da caça), Exu (mensageiro e divindade da soleira) e aos
ancestrais e Egunguns (TALL, 2012, p. 79).
No contexto religioso e artístico do Recôncavo baiano, o tempo é quem, e o quê, num plano
mais dilatado da história, elabora o núcleo de sentido no qual se pode encontrar o dado
constitutivo da “relação afroindígena” (GOLDMAN, 2014) e o caráter de
“transportabilidade” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 348) das transformações e
correspondências cosmológicas ameríndias. A percepção dos caboclos de um ponto de
vista ritual, no terreiro, espaço sagrado em seus componentes humanos e divinos, alcança
as relações entre mito e linguagem, entendidos enquanto sistemas simbólicos entre
instrumentos de comunicação e de elaboração de conhecimento. Ao passo que,
compreende-se aqui, os caboclos enquanto agentes do mito e geradores de signos, bem
como dos ritos capazes de trazer significação ao mundo.
Além de ser o dono do solo e da terra como território, o caboclo é também o
dono do mato, da floresta selvagem que ele domina perfeitamente após longos
séculos de convivência. Uma lenda conta como os escravos vindos da África
recuperaram-se da ignorância do novo meio ecológico em que se encontravam
na chegada ao Brasil, mantendo contato e respeito mútuo com os indígenas. Diz-
se que o índio colocou à disposição do negro sua sabedoria das folhas. Assim, o
negro conseguiu manter as relações com a natureza e suas divindades, trocando
as plantas africanas, que não existiam aqui, por plantas indígenas. Sábio no uso
medicinal das plantas e na linguagem dos animais selvagens, o caboclo tem uma
familiaridade com os elementos naturais que o aproxima das divindades
africanas Oxóssi (deus da caça e do mato) e Katende (divindade das folhas
litúrgicas e medicinais) (TALL, 2012, p.81).
21
como ancestral primordial, ele não escapa das saudações devidas aos ancestrais,
genéricos e reais, de uma casa. As ramificações, as raízes de uma casa de
candomblé são tão diversificadas que é quase impossível não encontrar alguns
caboclos no meio dos familiares falecidos (TALL, 2009, p.80).
Os aspectos que geram as formas simbólicas dessa espécie de canibalismo ritual ou dessa
antropofagia cosmológica, podem ser observados no sistema de distinções que organiza a
execução do culto aos caboclos, bem como o andamento rítmico e o acompanhamento
dado pelo samba, aliado ao fato das letras das canções serem expressas em português, de
forma a permitirem a compreensão de elementos das transformações afroindígenas nas
religiões afro-brasileiras.
Eu vou sim
Eu vou sim
Eu vou sim
Que esse samba
de engano
foi feito pra mim. (Coro)
22
Então, neste trabalho começa-se a pensar como é que o culto aos caboclos, assim como, o
Samba de D. Dalva (Samba de Roda Suerdieck), se constituem como formas sócio-
culturais, expressões e experiências comospolíticas coletivas das religiões afro-brasileiras
e, em especial, do candomblé e do povo de santo do Recôncavo baiano.
A partir da formação do seu Samba, Dona Dalva passou a compor e a trazer para
o seu repertório as músicas antigas cantadas por sua avó materna. Além disso,
ela introduziu nas indumentárias de suas baianas as formas de vestir que sua avó
paterna utilizara como comerciante e Irmã da Boa Morte. Também, pela sua
experiência e criatividade, Dona Dalva inseriu a percussão das tabuinhas de
madeira que eram utilizadas para bolear os charutos na fábrica como
característica da musicalidade feminina do seu grupo (MARQUES, 2016).
Ao mesmo tempo, busca-se interpretar como D. Dalva é – torna-se – uma voz negra que
gera identificação e, que tem reconhecimento, que as pessoas escutam e levam em
consideração. Além de refletir como o terreiro Ilê Axé Alaketu Oyá Funan e, em especial,
seus Caboclos (Encantados) contribuem na formação desse repertório.
Dona Dalva é pertencente à Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e
dá continuidade ao legado recebido de sua avó, uma africana nagô.
Além de trazer consigo a fé firme em Deus, Nossa Senhora, Obaluae,
Santo Antônio e São Cosme e São Damião, ela dedica-se intensamente ao
calendário de festas de Cachoeira e às mais variadas manifestações
culturais. Além do Samba de Roda Suerdieck, Dona Dalva criou e mantém
o Terno de Reis Esperança da Paz, Terno das Baianas do Acarajé, Terno
do Batizado de Liberou, Quadrilha da Terceira Idade e o Samba de Roda
Mirim ‘’Flor do Dia’ (MARQUES, 2016)10.
Sobre o Samba de Roda Mirim “Flor do Dia”, cabe notar, como me foi passado em
depoimento, que “Flor do Dia”, era o nome do erê da filha de D. Dalva, a Yalorixá Luci
de Yansã, falecida matriarca do Ilê Axé Alaketu Oyá Funan que, também, incorporava o
caboclo Tupinambá, e mãe da atual yalorixá do terreiro, a yá Luciana Freitas que recebe o
orixá Oxóssi, patrono da casa juntamente com Yansã, além de incorporar também o
caboclo Sultão das Matas.
As festas de Caboclo da casa sempre ocorrem em janeiro 11, e, preciso destacar, que na
época em que o trabalho de campo estava sendo realizado, havia sobre a casa uma ordem
10
Sobre essa nota acerca da figura ímpar de D. Dalva, gostaria de comentar que acompanhei, durante o
trabalho de campo, as experiências dos louvores a São Cosme e Damião (2015), as celebrações de Santo
Antônio (2016), a retomada do Terno de Reis Esperança da Paz (2016) e, em especial, a Quadrilha da
Terceira Idade (2016) durante o São João, incluindo a apresentação do grupo de samba de roda na festa
junina da Feira do Porto no mesmo ano.
11
As datas variam muito no que diz respeito ao calendário dos cultos de caboclos na região. Em janeiro, tem-
se a festa no Oyá Funan; em abril, no Guarani de Oxóssi; em maio, no Raiz de Ayrá; em julho, na casa de
Mãe Filhinha e no Ilê Axé Odé Nilê, de Mãe Rita; em agosto, na Casa de Mãe Lúcia. É claro que esse
calendário pode ser ainda mais variado de acordo com a ampliação do quadro de casas.
23
judicial para circunscrição do horário dos cultos na roça, localizada na Vila Residencial,
na cidade de Muritiba. Chamo atenção a este fato para que esta pesquisa seja um reforço
na defesa e reconhecimento da liberdade de cultos das religiões afro-brasileiras em nosso
território.
Então, é, também, um dos objetivos deste trabalho indicar como esta relação de parentesco
de D. Dalva com os caboclos (não-humanos) – relação em que se identifica o descritor da
ancestralidade ameríndia, nesta família africana – contribui para compreender a
manifestação desta música conhecida como samba de roda. Visto que, pelo que observei
no decorrer da pesquisa nas festas e nas vozes dos vários caboclos, o samba de roda tem
muito dos Encantados, tem muitos elementos que vêm de Aruanda. Sobre a questão
colocada pela pesquisa, seguem as palavras que assim me foram ditas pelo ogan-axogum,
de Xangô com Oxum, do Ilê Axé Alaketu Oyá Funan:
Pelé: É porque o samba de roda, ele tem duas vertentes, tem o samba de roda
que vem dos ditos populares, dessa coisa toda, e tem o samba de caboclo, que é
diferente, entendeu? Aí, obviamente, as pessoas incorporam dentro do samba de
roda os sambas de caboclo. [...] No caso, eu, artista12, no meu repertório mesmo
tem os sambas de roda, dessas coisas que a gente já ouvia, até da época do Gera
Samba, essas coisas todas que eram samba de roda. Só que eles incorporaram
no repertório de sambas de roda, os sambas de caboclo que isso já vêm dos
ancestrais. Dos próprios caboclos que já chegam, já tiram suas salvas e já
começam a cantar os sambas que muitos cantam; não é o repertório específico
de um caboclo ou de uma casa.
12
Edson Pelé Gomes é artista e tem uma carreira de cantor com um grupo musical chamado Sanfona Deitada.
24
ao Recôncavo, que é a sistematização religiosa e o estabelecimento da Nação
de Caboclo. Consagradamente, para o povo de santo, o caboclo é o ancestral
da terra, diga-se terra brasileira. Tudo isso reunido e permanentemente
reinventado a partir dos modelos sócio-religiosos das Nações Jeje; Jeje-Mahin;
Jeje-Modubi; Nagô; Ketu; Angola; e, especialmente, a de Caboclo.
D. Maria, esposa de Seu Lírio e mãe do Cacique Babau, uma das lideranças dos tupinambás
contemporâneos, índios que atualmente residem na área indígena de Olivença, próxima a
Ilhéus no sul da Bahia, a qual teve recentemente aprovada sua demarcação. Ao mesmo
tempo, os tupinambás têm bastante presente seus Encantados e ancestrais no culto aos
caboclos do Recôncavo baiano, visto que estes eram o grupo autóctone desta região
seguidamente ocupada por europeus e africanos. Considerando ainda o que diz Goldman
(2015, p. 655): “os Tupinambá da Serra do Padeiro não são os “descendentes” dos antigos
13
Depoimento colhido em Cachoeira, no auditório da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, na
ocasião da exibição do filme “O Retorno da Terra”, da antropóloga e jornalista Daniela Fernandes Alarcon.
31 de março de 2016.
25
Tupinambá: eles são aqueles Tupinambá que foram capazes de sobreviver a uma
experiência histórica devastadora”. Além desta referência ao depoimento tomado a D.
Maria, tupinambá da Serra do Padeiro, ou ainda, como indicado no contexto da etnografia
amazônica infra, as relações entre África e América, do ponto de vista de seus povos
originários, é mais complexa do que aparentemente se imagina.
Alguns interlocutores me disseram que os animais originários eram demasiado
grandes e ferozes, e que, no início do tempo histórico, todos eles foram
mandados embora do Xingu pelos gêmeos Sol e Lua: ‘eles estão na África; aqui
só ficou a onça’ (VIVEIROS DE CASTRO, 2013. p. 32).
Sujeito ritual “rebelde” e “figura paradoxal”, ele se encontra nos terreiros “dividindo o
espaço com alguns santos católicos, tais como São Jorge, relacionado ao inquice Katendê
e ao orixá Oxóssi, ele convive também com os Pretos-Velhos, figuras ancestrais e
genéricas dos antigos escravos”. Segundo a autora, Emanuelle Tall, o caboclo é uma
“personagem multiforme; a figura do ancestral genérico de origem não africana”. Do ponto
de vista cosmológico, a categoria “caboclo” agrupa “todas as figuras ancestrais que não
são de origem negro-africana. Entre os caboclos encontram-se as personagens
26
estereotipadas do Brasil colonial, tais como o marinheiro, o boiadeiro e a prostituta”
(TALL, 2009, p. 82).
É por isso, que se faz necessário a investigação dos fenômenos que estabilizam a relação
afroindígena no contexto do Recôncavo da Bahia, a partir da análise empírica deste
atrelamento indicado por Santos (1995). Ainda que se reconheça, por um lado, o alto “grau
de nacionalismo que se nota na existência do caboclo”, necessariamente derivado da
Modernidade e dos processos de colonização, no interior dos quais estes índios tornaram-
se caboclos, encantes, ancestrais.
Portanto, esta pesquisa faz reconhecer as relações entre o parentesco co-sanguíneo, como
nas relações familiares do Ilê Axé Alaketu Oyá Funan, onde a ancestralidade afroindígena
participa das formas rituais inerentes ao candomblé na ocasião do culto aos caboclos. Sem
esquecermos, também, que o regime de “afinidade potencial” do parentesco atua no caso
da formação das famílias de santo. O parentesco alia-se e ativa a atualização das linguagens
artísticas (musicais) e experiências religiosas (rituais), no interior do desenvolvimento de
“tecnologias de acesso” e técnicas mnemônicas ritualísticas. Estes ritos e manifestações
culturais são processos ligados ao xamanismo e ao poder de “eficácia simbólica” do culto
aos ancestrais ameríndios, a partir dos quais o samba de caboclo é tomado enquanto
linguagem ancestral, no plano cosmológico, e o samba de roda, no plano sociocultural, é
compreendido como idioma do artesanato poético sonoro do artefato musical.
Anoto aqui uma das experiências mais marcantes de minha pesquisa de campo, quando no
terceiro dia de festa, na casa Ilê Axé Alaketu Oyá Funan, o caboclo Sultão da Matas,
entidade incorporada na pessoa da mãe de santo da casa, a yalorixá Luciana Freitas, veio
a mim e perguntou-me:
“– Quer cantar meu cumpadre? Vai pra lá, então, vai pra lá...”
Eu, ainda que timidamente acometido pelo convite, mas seriamente respeitoso pelo
reconhecimento dado a mim pelo caboclo, devido ao entusiasmo com que eu ecoava
juntamente com o coro dos membros do terreiro, as letras das salvas puxadas por eles e
pelos ogãs, então entoei duas cantigas que havia aprendido em outro culto de caboclo em
que havia feito campo, há quase um ano atrás, no Terreiro de Caboclo Guarani de Oxóssi,
em 2015. A cantiga havia sido entoada por um encante chamado Caboclo de Mina: “Eu
sou um índio/ eu sou natural/ Eu sou um índio/ eu sou natural/ Eu vim da mata eu vim
27
vadiar/ eu vim da mata/ eu vim vadiar”. A audiência dos caboclos se pôs a exortar pelo
salão da casa e alguns vieram me cumprimentar como o Caboclo Tupinambá, com seus
urros e gritos, se ajoelhou e me estendeu a mão, em seguida, levantando-se, me
cumprimentou num breve abraço, em que se tocam os ombros, como de costume nos
candomblés.
Sem deixar de falar, que os caboclos ainda têm uma notável importância histórica e
simbólica no evento conhecido como 2 de julho, na Bahia, e, em especial, no local da
pesquisa, por estes carregarem consigo os méritos pela Independência da Bahia, em 1823,
tendo sido exaltados pela participação nas guerras contra os portugueses nas margens do
rio Paraguaçu, nas cidades de Cachoeira e São Félix, de onde saem as tropas de revoltosos,
em marcha, para capital Salvador. Tal fato, aponta a agência objetiva e histórica na
narrativa “oficial” e cívica, no mundo social da elaboração política moderna, em plano de
insurreição contra as forças ocidentais, sob a forma de uma legítima reivindicação pela
autoridade do território.
Em relação ao que aponta Viveiros de Castro (2012), acerca das cosmopolíticas, no nosso
caso, o caboclo, interlocutor de temporalidades e espacialidades, mediador de níveis
cósmicos e circunstâncias políticas, apresenta lógicas de práticas e agenciamentos que, por
meio de suas falas, revelam a tensão constitutiva da percepção dos fenômenos
afroindígenas. Logo, toda distância se funda na diferença do ponto de vista,
principalmente, para a ancestralidade ameríndia14.
14
(...) essa cosmopolítica, ou ontologia política da diferença sensível universal, atualiza um outro universo
que o nosso, ou outra coisa que um uni-verso — o seu cosmos é um multiverso, para falarmos como William
James, uma multiplicidade de províncias e agências intersecantes em relação de “desarmonia
preestabelecida”, como procurei mostrar em minhas considerações sobre o “multinaturalismo” indígena
28
Na continuação da exploração das implicações das relações entre a teoria sociológica que
aqui se desenvolve e a antropologia filosófica contemporânea, observa-se ainda que no
trabalho de campo, muitas vezes diante da impossibilidade da descrição semiótica
interditada pela experiência fenomenológica, fica-nos a não tão óbvia lição epistemológica
da etnografia de que: frente a necessidade de ser capaz de “fazer variar a verdade
demonstrando a verdade da variação” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p.158), do
compartilhamento sempre imprevisível do instante que vai do encontro/observação à
memória, a narrativa etnográfica torna-se um contraponto mnemônico à narração
sociológica.
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(Viveiros de Castro 1996, 2004). Esse pensamento, enfim, reconhece outros modos de existência que o nosso;
justifica uma outra prática da vida, e um outro modelo do laço social; distribui diferentemente as potências
e as competências do corpo e da alma, do humano e do extra-humano, do geral e do particular, do ordinário
e do singular, do fato e do feito; mobiliza, em suma, toda uma outra imagem do pensamento. Alteridade
cultural radical. (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p.158)
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garcia-dos-santos-hoje-xamanismo-alta-tecnologia-de-acesso-17110386. (consultado 7 de
abril de 2016).
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