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A sociedade de confiança de Alain Peyrefitte

"A Sociedade de Confiança traz uma valorização moral do


desenvolvimento, demonstrando que ele não vem de um
acontecimento exterior, mas de uma disposição interior - como um
combate interior dentro de cada um de nós, uma luta para substituir a
resignação, pela energia, a rotina, pela invenção. Porque, enfim, o que
coloca uma sociedade em movimento é o homem centrado em si, no
caminho da construção de um mundo em que a satisfação das suas
necessidades materiais e o desenvolvimento das suas aspirações
possam beneficiar a si e aos outros com progressos constantes."

A sociedade de confiança (1995), de Alain Peyrefitte (1925–1999), é


uma obra sobre a natureza do desenvolvimento que questiona, de
forma muito pertinente, o nosso modo de vida em sociedade. O que
move uma sociedade? Traços imateriais de uma civilização como
autoridade, religião, reflexos históricos, tabus, moral e valores são
deixados em segundo plano, mas o espírito de uma época (cultura),
manifestado em nossas crenças e aspirações, é soberano na sociedade.

Essa obra argumenta que a confiança é o pilar da sociedade,


imprescindível para que exista a troca e a cooperação entre indivíduos e
grupos, assim como o respeito pelos governos. Assim, Peyrefitte lança
as bases para comparar etologia[1] e desenvolvimento econômico,
social, cultural e político.

Mesmo partindo da origem antropológica do desenvolvimento, o autor


esclarece que os agentes dinâmicos da sociedade podem ser sufocados
pelo peso de um Estado invasor. Peyrefitte conclui que o
desenvolvimento reside na confiança concedida à iniciativa pessoal, à
liberdade de exploração e invenção – liberdade essa com suas
contrapartidas, seus deveres, seus limites e sua responsabilidade.

No entanto, com a liberdade sendo tão pouco praticada no mundo


atual, é provável que a doença e a violência persistam ainda por muito
tempo no planeta.

A busca pelas origens


Investigando as origens do desenvolvimento econômico, poderíamos
falar sobre a Revolução neolítica que transformou caçadores em
camponeses do campo, mas esse processo levou milênios. O primeiro
império da história foi o Império Colonial Português, considerado o
mais antigo dos impérios coloniais europeus modernos, tendo início em
1415 com a conquista de Ceuta e perdurando por mais de 600 anos. É
necessário lembrar também a clássica distinção entre espanhóis,
portugueses, ingleses e holandeses: os dois primeiros, interessados na
expansão territorial através de conquistas; e os dois últimos,
interessados na expansão comercial, através da compra e venda de
mercadorias.

A descoberta da América e a partilha da África também são referenciais,


porém o fenômeno foi mais notável nos últimos 200 anos – o progresso,
o desenvolvimento, o crescimento e a modernidade da era pós-
industrial. A modernização teve início na Europa Ocidental, passando
pela América do Norte e chegando muito mais tarde, lentamente, ao
sul da Europa, América Latina e outros continentes. Só no século XIX
chegou ao Japão e, ao final do século XX, aos tigres Coreia do Sul, Hong
Kong, Singapura e China.

Para descrever o fenômeno da segunda metade do século XVIII, em que


a Inglaterra se apresentava como uma sociedade próspera, dinâmica e
criativa, características das sociedades desenvolvidas, o autor usa uma
metáfora —a da decolagem — como um avião que arranca da pista em
um ponto preciso, num movimento guiado pelas rodas e, em alta
velocidade, num único golpe, alça voo. No entanto, ele pondera que
processo de desenvolvimento das sociedades resulta de uma
combinação de causas e condições muito mais complexa que o simples
encontro da pressão do ar com a resistência da asa.

Alguns historiadores datam a decolagem econômica como 1760; outros,


1770; outros ainda, que a Revolução Industrial ocorreu entre 1575 e
1620. Entretanto, fatos econômicos e sociais não admitem rupturas: as
sociedades divergiram, como resultado de processos lentos e pouco
visíveis que, uma vez em movimento, prosseguem, encadeiam-se e
interagem como uma energia nuclear — uma divergência cumulativa
que se alimenta da própria energia de forma irreversível, que progride
por si mesma sob o efeito da energia que não para de gerar.

Certamente, a preparação para uma sociedade tão dinâmica levou


tempo. No século XII, mesmo que a massa da população estivesse na
agricultura, os camponeses, aleatoriamente, obtiveram excedentes
agrícolas, utilizando-os para pagar rendas senhoriais. O excedente
passou a ter uma importância muito especial.

O lucro era tabu


Não se pode ignorar que a evolução econômica, política, social e
cultural desenvolveu-se sob o olhar da religião. Até o século XVI, a Igreja
de Roma era a maior proprietária de terras de toda a Europa, a maior
fornecedora e compradora dos produtos do solo e, ao mesmo tempo, a
maior investidora e a maior construtora — primeira financiadora, enfim,
de um século dedicado ao estudo e à formação das ideias.

Difícil mensurar o poder de inibição da Igreja, mas sabemos que já


reprovou o linho, as carnes, o vinho, a música e até o riso. A capacidade
de intromissão da Igreja em diversos domínios da experiência humana
foi claro, principalmente nas relações de troca. O lucro era um grande
tabu, visível em alegações como “não é possível ser negociante e bom
cristão” ou ”o lucro de um é prejuízo de outro”, semeando, assim, a
desconfiança do povo em relação ao comércio. A Igreja oscilou entre
desconfiança moral e aceitação prática, buscando um equilíbrio para o
bem comum: o comércio foi paulatinamente permitido, dando origem
ao “estado de bem-estar” que, sob o pretexto de praticar o bem
comum, passa a interferir de forma autoritária na sociedade.

Uma sociedade de liberdade

A segunda metade do século XVI marca o domínio comercial e


financeiro de Amsterdã, firmado na Revolta dos Países Baixos, que
culmina na secessão das sete províncias do Norte. Essas províncias, de
cunho calvinista burguês, criaram uma união própria – a República
Unida da Holanda – que, na prática, significou a separação da Espanha.

Essas províncias do Norte passam a receber um grande fluxo imigratório


por não terem hábitos de governo central e serem parcimoniosas nas
regulações sobre a atividade econômica, ou seja, por terem um caráter
liberal. Amsterdã passa a ser não só o centro do comércio mundial, mas
também de uma grande rede de informações econômicas e comerciais.
A fiabilidade dessas informações era tamanha que agentes de
companhias francesas e inglesas das Índias lá buscavam os números
precisos das cargas de seus próprios navios. A confiança inspirada por
um mercado ou banqueiro holandês tornou-se proverbial, porque “o
comércio exige confiança entre os particulares” e a confiança seria
como um instrumento de trabalho.

A etologia do desenvolvimento

Por meio da etologia, observamos que os móbiles humanos, ou seja, o


que conduz a ação, a causa, a razão, o motor do movimento humano
são os mesmos desde as suas origens, ficando isso claro no
desenvolvimento das civilizações, na história dos fatos econômicos,
políticos e sociais, e nas ideias filosóficas, religiosas, econômicas e
antropológicas. A história permite determinar as circunstâncias, mas é a
antropologia que foca na busca de sentido. É através da antropologia
que entendemos a importância do fator humano para o progresso,
porém ela não explica o acontecimento.

Em antropologia, ethos é uma síntese dos costumes de um povo,


incluindo traços característicos de um grupo humano qualquer que o
diferenciam de outros grupos sob os pontos de vista social e cultural, ou
seja, a identidade social de um grupo. O termo ethos significa o modo
de ser, o caráter, o comportamento do ser humano e, a título de
curiosidade, deu origem à palavra ética.

O ethos da confiança seria, assim, as disposições mentais e os


comportamentos que libertam o homem individual e social da obsessão
de segurança, da inércia dos equilibrados – mascarados pelo peso das
autoridades – ou da poeira dos costumes. O ethos da confiança não se
ordena! Portanto, considerá-lo como a matriz de uma sociedade é
remeter para a interioridade, afirmando que a sociedade não é
“fabricada”. Resulta da ação humana, mas não de um projeto humano,
como a fórmula clássica de Adam Ferguson: “result of human action but
not of human design”.

“Não saias para fora de ti, entra em ti mesmo, a verdade habita no


interior do homem. É em nós que reside o desenvolvimento. Fazê-lo
frutificar depende de nós.”[2][1]

Por trás das combinações de capital e trabalho, das mutações


tecnológicas e sociais, das estruturas de trocas e das dinâmicas
conjunturais sempre há e sempre haverá as decisões humanas e o
desprendimento dos homens, a sua energia ou passividade, a sua
imaginação ou imobilismo. A sociedade moderna foi fundada em
iniciativas responsáveis e racionais, em que uma mentalidade
economicamente ativa é catalizadora de algo que se desenvolvia há
séculos.

A sociedade de confiança
A sociedade da confiança traz uma valorização moral do
desenvolvimento, demonstrando que ele não vem de um
acontecimento exterior, mas de uma disposição interior. O
desenvolvimento é como um combate dentro de cada um de nós, como
forma de substituir a resignação, pela energia, a rotina, pela invenção. A
sociedade de confiança é aquela em que o ethos da confiança está no
interior das pessoas, das empresas e da sociedade. Não há empresas
sem empresários, e não há cooperadores, nem empresários, sem o
ethos da confiança.

Ainda que Nietzsche pondere que “uma crença forte demonstra apenas
a sua força, não a verdade daquilo em que se acredita”, o dicionário da
língua portuguesa Houaiss define confiança como “uma crença de que
alguma coisa sucederá bem”. O fato é que o desenvolvimento surgiu no
mundo quando se venceu a fatalidade das circunstâncias, o peso da
conjuntura externa ou de qualquer outro fator inibidor. O
desenvolvimento apareceu com a autonomia do indivíduo, com o
protagonismo que o colocou no centro da vida social junto à sua
responsabilidade. Porque, enfim, o que move uma sociedade é o
homem centrado em si, no caminho da construção de um mundo em
que a satisfação das suas necessidades materiais e o desenvolvimento
das suas aspirações naturais possam beneficiar a si e aos outros com
progressos constantes. Como nos ensinou Adam Smith, há uma mão
invisível que faz com que o benefício individual, leve aos benefícios de
toda a sociedade.

[1] Etologia é o estudo dos comportamentos e das mentalidades das


diferentes comunidades humanas, na medida em que fornecem fatores
de ativação ou inibição em matérias de trocas e de inovação.

[2] Santo Agostinho – O Livre Arbítrio, Faculdade de Filosofia, Editora


Braga – 1986

“Mariana Peringer é graduada em economia com especialização em


psicanálise, empreendedora na Funcional Fight Club, adota causas
privadas no terceiro setor e é entusiasta das ideias liberais”.

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