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A situação da Missa Tradicional desde a Reforma Litúrgica

jun 6, 2022

Qual é a situação “jurídica” do Missal de São Pio V desde


a promulgação da reforma de Paulo VI e do Novus Ordo
Missae? Como, e sob quais condições, podemos utilizar
esse rito imemorial? Por quais meios ele se manteve e se
desenvolveu? O mais recente motu proprio do Papa
Francisco, Traditionis Custodes, nos dá a oportunidade de
analisar esses pontos.

Fonte: DICI – Tradução: Dominus Est

Não é difícil descobrir cinco etapas entre 1970, data da


promulgação do novo rito, e 2021 que testemunhou a
publicação de Traditionis Custodes.

1970-1984: O novo missal da nova Igreja


A entrada em vigor do missal de Paulo VI em 1970
congelou a celebração segundo o rito tridentino.
Sacerdotes e leigos foram testemunhas da aparição do
Novus Ordo Missae (NOM) em substituição ao antigo
rito. Em 14 de junho de 1971, a Congregação para o Culto
Divino publicou uma nota indicando que, depois da
aprovação das traduções do NOM, todos deveriam usar
“unicamente a forma renovada da Missa”.

O uso do rito antigo só era concedido aos sacerdotes de


idade avançada ou doentes, em privado e com permissão
do Ordinário, até sua extinção. Durante essa época, os
sacerdotes fiéis tomaram uma posição aparentemente
“contra a lei”. Até pelo menos 1988, os únicos sacerdotes
ordenados para celebrar a Missa Tridentina eram os de
Monsenhor Lefebvre.

A tomada de posição de Paulo VI durante o consistório de


24 de maio de 1976 é inequívoca: “A adoção do NOM
certamente não está relegada à discrição dos sacerdotes
ou dos fiéis”, e a Instrução de 14 de junho de 1971 previa
a celebração da Missa segundo o rito antigo, com a
autorização do Ordinário, unicamente para os sacerdotes
de idade avançada ou doentes, que oferecem o Divino
Sacrifício sine populo.

“Nosso santo predecessor Pio V tornou obrigatório […] o


Missal reformado depois do Concílio de Trento. Nós
exigimos […] com a mesma autoridade suprema todas as
demais reformas litúrgicas, disciplinares e pastorais que
maduraram na aplicação dos decretos do Concílio.”

“Qualquer iniciativa que pretenda obstaculizá-las não


pode reivindicar a prerrogativa de prestar serviço à Igreja;
ao contrário, causa graves danos a Ela”. Portanto, o Papa
queria que o rito antigo se extinguisse e fosse substituído
pelo novo rito, estabelecendo um paralelo com o próprio
São Pio V.

Paulo VI convida os fiéis que se sentem ligados às formas


de culto do passado a “encontrar hoje o apoio e o
sustento que buscam nas formas renovadas que o
Concílio Ecumênico Vaticano II e nós mesmos decretamos
como necessárias para a unidade da Igreja”. Palavras e
ideias semelhantes às utilizadas por Francisco em
Traditionis Custodes.

Durante esta época:

– Nenhuma Missa Tridentina pública era considerada


“legal”. Só eram permitidas as Missas privadas até o
falecimento dos sacerdotes de idade avançada.

– Os sacerdotes que continuavam celebrando


publicamente a Missa Tridentina eram geralmente
perseguidos, às vezes tolerados, mas jamais aprovados.

– Somente Mons. Lefebvre continuou formando e


ordenando sacerdotes para o rito tradicional, em aberta
oposição ao Concílio e à missa nova, e foi sancionado
com uma suspensão a divinisem 1976.
1984-1988: A Missa como bandeira e o indulto

Diante da persistência do rito tradicional, seu êxito e sua


vinculação à oposição ao Concílio, a Santa Sé decidiu
tomar uma medida para satisfazer os partidários do rito
tradicional. Esta medida foi o “indulto” de 3 de outubro
de 1984 da Congregação para o Culto Divino chamado
Quattuor abhinc anos.

Este texto havia sido precedido de uma investigação que


havia sido iniciada quatro anos antes pela Congregação
acerca da aplicação e recepção do Missal de Paulo VI, e
as possíveis resistências a superar. Esta consulta foi,
conforme diz a carta, reconfortante: “Quase em todas as
partes do mundo, o problema dos sacerdotes e dos fiéis
que permanecem aderidos à Missa Tridentina parece
haver se resolvido quase por completo”.

Mas como em alguns lugares “persiste o problema [do


rito antigo]”, o Papa emitiu um indulto para a celebração
segundo o Missal de 1962, que os bispos podiam
autorizar àqueles que solicitassem.

Este indulto foi dado em condições muito precisas. Em


primeiro lugar, devia ficar publicamente claro que os
sacerdotes e os fiéis nada tinham que ver com aqueles
que questionavam a “força legal” e a “retidão doutrinal”
do Missal de Paulo VI.

As demais condições se referem às circunstâncias:


celebração em igrejas específicas, determinadas pelo
bispo, nas horas e condições que ele decidisse, excluídas
as paróquias; os ritos antigo e novo não deveriam se
misturar.

A carta conclui assinalando a benevolência do Santo


Padre para com seus filhos, especificando que essa
concessão não deve de modo algum prejudicar “a
observância da reforma litúrgica na vida de cada
comunidade eclesial”.
Este indulto inclui a natureza da relação entre o antigo e
o novo rito: até o motu proprioTraditionis Custodes, para
os papas pós-conciliares, o rito tradicional só deveria
existir como uma exceção do novo, que é o rito ordinário
de toda a Igreja, e com a condição de que não se
questionasse este ponto.

No indulto havia a exigência explícita dessa condição, ao


ponto de que a assistência a essas Missas “concedidas”
não podia significar deixar de se aderir, ao menos
exteriormente, a esse princípio. É por esta razão que
Mons. Lefebvre rechaçou tal “concessão”.

Na audiência que lhe concedeu João Paulo II em


novembro de 1979, durante a qual Mons. Lefebvre pediu
a autorização para continuar celebrando a Missa
Tradicional, o prefeito da Doutrina da Fé, Cardeal Seper,
advertiu o Pontífice: “Mas, Santíssimo Padre, eles fazem
desta Missa uma bandeira!”

Isso era reconhecer que a Missa Tridentina era o


estandarte de uma ampla oposição ao Concílio e ao
modernismo, e que não poderia ser autorizada. As
condições do indulto queriam suprimir esse caráter de
“bandeira”: o solicitante tinha que negá-lo oficialmente
em sua solicitação.

Portanto, a situação até 1988 era a seguinte:

– As Missas Tridentinas “legais” foram introduzidas, à


mercê do juízo dos bispos, em lugares e tempos
definidos, e só com a condição de que fosse aceita a
bondade e legitimidade da Missa de Paulo VI.

– A Fraternidade São Pio X e outras instituições religiosas


afins recusam essas condições e continuam celebrando
unicamente a Missa Tridentina, porque rechaçam a nova.

– Só Monsenhor Lefebvre e Monsenhor Antônio Castro


Mayer em Campos, Rio de Janeiro, formam e ordenam
sacerdotes que seguiriam celebrando a Missa Tradicional,
recusando a nova.

1988-2007: Ecclesia Dei Adflicta

Em 30 de junho de 1988, Monsenhor Lefebvre consagrou


quatro bispos devido à grave necessidade na qual se
encontrava a Igreja: era impossível ser ordenado
sacerdote segundo os meios “legais” se não se aceitasse,
ao menos exteriormente, a nova missa e Concílio com
todos os seus erros.

João Paulo II declarou a excomunhão de Monsenhor


Lefebvre por meio do motu proprioEcclesia Dei adflicta,
que confirmou o indulto, convidando os bispos a aplicá-lo
com generosidade, e permitiu a criação de institutos
sacerdotais, utilizando a liturgia tridentina segundo as
condições habituais de aceitação do Concílio.

É assim que nasceram nos anos seguintes a Fraternidade


São Pedro e diversas outras fundações. A Pontifícia
Comissão Ecclesia Dei foi fundada para administrar esses
assuntos desde Roma.

Os princípios são lembrados em uma carta de


Monsenhor Perl, secretário da Comissão Ecclesia Dei,
datada de 18 de novembro de 1993, que dizia, entre
outras coisas: “O Indulto é uma concessão que não está
destinada a durar para sempre. […] A celebração da
Missa segundo o Missal de 1962 é a exceção. A regra é a
reforma litúrgica introduzida pela Igreja há 25 anos,
seguida por 99% da Igreja”.

Os princípios ficam claros: a norma é a Missa de Paulo VI,


e quem a aceita pode, dentro de certos limites, celebrar
o rito anterior, ao menos enquanto exista uma oposição a
se controlar, a qual é melhor tolerar que deixá-la nas
mãos de Monsenhor Lefebvre.

Durante este período:


– Monsenhor Lefebvre ordena não só sacerdotes, mas
também bispos que continuam celebrando o rito
tradicional como sinal de adesão a uma doutrina bem
definida e oposta à da Nova Missa.

– A Santa Sé prossegue o regime do indulto de 1984, mas


autoriza a ordenação de sacerdotes nos institutos — em
2002 de um bispo — que celebram o rito tridentino com
a condição de aceitar o NOM e o Concílio. Todos os
sacerdotes devem aderir publicamente a estas condições
para poder celebrar.

2007-2021: A filosofia de Summorum Pontificum

A promulgação por Bento XVI do motu proprio


Summorum Pontificum em 7 de julho de 2007 traz um
novo elemento. Este documento afirma que a Missa
Tridentina nunca havia sido ab-rogada, contradizendo
assim a Paulo VI, e determina novas e mais amplas
condições para sua celebração.
No entanto, a Missa Nova se apresenta como o rito
normal da Igreja, porque há “duas formas do mesmo rito
romano” em vigor: uma ordinária e outra extraordinária.
A Missa Tridentina não é ab-rogada enquanto rito
extraordinário, mas não está em vigor como rito
ordinário.

Afirma-se que as duas expressões da lex orandi do rito


romano “de modo algum induzem a uma divisão da lex
credendi (lei da fé) da Igreja: com efeito, são dois usos do
único rito romano”.

Entretanto, pretender que os dois ritos não podem levar


a uma divisão da lex credendi equivale a afirmar que os
dois ritos expressam as mesmas crenças. Como podem
esses dois ritos contraditórios expressarem as mesmas
crenças? Esse é o problema que surge desde o “Breve
Exame Crítico”.
Ao igualar a lex credendi expressa pelos dois ritos,
Summorum pontificum parece mudar o sentido do missal
tridentino (sendo o rito de Paulo VI o ordinário),
conservando sua forma exterior.

Uma igualação conforme a hermenêutica da


continuidade, segundo a qual o missal antigo e novo, a
Igreja antiga e a nova podem ser reduzidas ad unum,
sintetizadas para encerrar um conflito na espera de que
se abra outro, segundo a dialética hegeliana.

A Missa Tridentina é declarada igual à Missa Nova: por


isso todos os sacerdotes podem celebrá-la, ao menos em
privado, e também em público com certos limites
organizativos, sem ter que se submeter a condições
especiais quanto à profissão da nova fé.

No entanto, o texto só concede o direito de utilizar o


antigo rito aos sacerdotes “não impedidos legalmente”.
Todo sacerdote ordenado deve aceitar o Concílio e a
Missa Nova, e aderir à profissão de fé conciliar imposta
por João Paulo II em 1989, inclusive os (antigos) institutos
Ecclesia Dei. Salvo algumas exceções, somente aqueles
que haviam aceito o Concílio e o NOM poderiam utilizar o
motu proprio.

Neste período, a situação foi a seguinte:

– A FSSPX (e algumas outras comunidades) continuam


celebrando o rito tridentino. Ela continua a formar
sacerdotes que recusam a Missa Nova e as novas
doutrinas.

– O novo regime, por um lado, faz prosperar a celebração


do antigo rito, que por sua vez está vinculada à aceitação
do novo; por outro lado, coloca o rito tradicional nas
mãos de sacerdotes e leigos, que descobrindo seu
sentido dado pela tradição, descobrem-no incompatível
com o NOM.

16 de julho de 2021: Traditionis custodes


O Papa Francisco interveio através do motu proprio
Traditionis custodes. O documento, embora muito
restritivo, não se afasta muito da letra e do espírito do
indulto de 1984. Reafirma que a única forma atual da lex
orandi do rito romano é o missal de Paulo VI.

Mas a concessão continuada (embora limitada) do missal


tridentino mostra unidade. Tanto se se trata de um
indulto como de um rito extraordinário o conceito é
similar: a lei anterior se aplica a modo de exceção.

Há porém uma forte insistência no dever dos bispos de


vigiar para que a celebração da Missa Tridentina não
esconda uma concepção tradicional (“não alinhada”) da
Igreja: para que ela não se converta em “bandeira”.

São os mesmos conceitos contidos no indulto ou no


Summorum pontificum, mas reforçados por uma série de
estritas medidas e recomendações sobre a aceitação do
Concílio e do novo rito: por que insistir tanto em uma
condição que sempre foi necessária?

A concepção de hermenêutica da continuidade de


Ratzinger muda o significado do rito antigo ao mesmo
tempo que o conserva exteriormente. Os círculos Ecclesia
Dei, acostumados, ao menos exteriormente, a este
pensamento, nunca tiveram inconvenientes particulares
a este respeito.

Mas ao haver sido posta ao alcance de todos, a Missa


Tradicional acabou impondo, aos sacerdotes e aos fiéis
que se aproximavam espontaneamente dela, seu próprio
sentido “natural”, tradicional, evidentemente
incompatível com o do rito montiniano.

Especialmente entre os clérigos jovens, para quem a


liturgia antiga e a tradição haviam estado ocultas durante
décadas, e devido à sua deficiente preparação teológica,
a revelação do “mundo do passado” através da Missa foi
capaz de fazê-los descobrir o sentido do sacerdócio
negado pelos formadores nos seminários.

Esse é o verdadeiro efeito positivo, ainda que acidental e


involuntário, do documento do Papa Emérito. Isso é o
que temiam os progressistas, menos acadêmicos que
Ratzinger e mais pragmáticos.

O Papa Francisco vem então colocar as coisas em ordem,


dizendo de certo modo: “Dissemos-lhes: sim à Missa
Tridentina e não à doutrina anterior, e vós fizestes o
contrário. […] Esse é o resultado de havê-la posto com
demasiada facilidade ao alcance de todos, especialmente
dos mais jovens”.

“A continuação dessa Missa corre o risco de ser a


continuação de uma concepção da Igreja a qual nos
opomos absolutamente. Portanto, deve ser posta
novamente nas mãos de alguns poucos grupos
selecionados e bem controlados onde não haja risco de
confusão”.
É sobretudo necessário tirá-la do alcance do clero jovem,
que se deforma facilmente. O conceito é claro: não há
uma Igreja do missal tridentino, só existe a do Vaticano II,
e o missal tridentino não pode expressá-la; os que usam
o missal tridentino pretendem reviver uma “verdadeira
Igreja” oposta à do Vaticano II e à do missal montiniano,
um crime imperdoável.

A reação das comunidades Ecclesia Dei e das pessoas


vinculadas ao Summorum pontificum é muito reveladora.
Quase todas insistiram em um ponto, a saber: “Não
somos nós que queremos fazer da Missa uma bandeira!
Se alguém assim o fez, a culpa é dela e de mais ninguém,
não uma falta coletiva”.

Há uma recordação geral da fidelidade devida ao


Vaticano II, e uma clara afirmação de não se reconhecer
na crítica do Papa aos usuários do missal tridentino.
Todos negam as acusações do motu proprio: aceitação do
Concílio, da Nova Missa e recusa do cisma de Monsenhor
Lefebvre, com quem não têm contato. São inocentes.

Nem mesmo Monsenhor Schneider, que afirma o direito


de todo sacerdote à Missa tridentina, e pediu uma certa
resistência ao documento do Papa Francisco, se separa
dessa lógica. Portanto, a constância da linha da Santa Sé
convenceu inclusive aqueles que resistem à política de
Francisco de que não é necessário atacar a Missa Nova e
nem o Concílio para seguir celebrando a Missa
Tradicional.

Desde 1984, a política papal de tolerância limitada e


regulada conseguiu seu primeiro e principal objetivo: não
eliminar a Missa Tridentina, mas convencer a todos que
não se deve considerá-la como oposta à nova.

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