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CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E

TEOLÓGICA DA SC, À LUZ DA


DESIDERIO DESIDERAVI

Arquidiocese de Goiânia/GO
31 de outrubro de 2023
Pe. Thiago Faccini Paro
CONTEXTO HISTÓRICO
 No século XVIII aparece na Europa um novo fenômeno cultural como reação ao barroco: o
Iluminismo;
 Protesto contra a centralização tridentina e contra a exagerada exteriorização barroca;
 Muitos católicos exigem uma liturgia mais simples, despojada de inúmeros elementos
supérfluos herdados do passado;
 Exigem participação mais intensa do povo nas celebrações;

 O problema é que os católicos iluministas viam a liturgia mais como função educadora...
 A época do Iluminismo foi, sem dúvida, o período de primeira gestação do futuro movimento
litúrgico.
No século XIX, por influência do Romantismo, como num
movimento pendular, entramos o chamado “período da
restauração católica”, contra os exageros do racionalismo
iluminista.
Só que essa “restauração”, em termos litúrgicos, limitou-se
apenas em garantir a ‘tradição romana’ compreendida em
modelos estruturais do catolicismo medieval e pós-
tridentino.

“o período da restauração caracteriza-se por uma reação


contra os excessos do iluminismo chegando à triste
consequência de uma volta... ao romantismo, ao barroco,
quando não até a formas medievais”
O grande mérito do movimento está em ter deslanchado o interesse pela
pesquisa histórica e teológica das fontes litúrgicas, o que contribuirá
imensamente para o nascimento e desenvolvimento vigoroso do movimento
litúrgico.

O papa Pio X, publica em 1903, um Motu proprio intitulado “Tra le


sollecitudini” estabelecendo normas sobre o uso do canto na liturgia.

“o verdadeiro espírito cristão consiste na participação


ativa dos fiéis nos sagrados mistérios”.

As disposições de Pio X encontram acolhida entusiasta em muitos pastores já


preocupados pelo fomento da vida litúrgica. Desencadeia-se daí o chamado
“movimento litúrgico clássico”.
O MOVIMENTO LITÚRGICO
 Seu início é marcado por uma famosa conferência que o abade beneditino
Lambert Beauduin, de Mont-César (Bélgica), pronunciou em 1909, num
congresso católico de Malines (Bélgica), defendendo a renovação da vida
litúrgica da Igreja.
 A partir de então, este monge beneditino lança uma verdadeira cruzada em
favor da participação dos cristãos nas celebrações. Para conseguir esta
participação, ele publica um missal popular e organiza cursos e conferências
para sacerdotes.
 A causa do movimento - motivado pelo zelo pastoral - é a volta à forma
clássica da liturgia romana através de pesquisa histórica e teológica sobre a
tradição litúrgica.
 As descobertas e aprofundamentos nas pesquisas repercutem também na
pastoral, isto é, oferecem fundamentos sólidos para promover a participação
ativa do povo nas celebrações.
 Uma voz importante foi a de Pio XII que publicou, em 1947, a Encíclica
Mediator Dei, documento decisivo para a causa litúrgica que especifica alguns
conceitos e reconhece os esforços desenvolvidos pelo movimento litúrgico”.
 Sob o impulso da Mediator Dei foram fundados “Institutos Litúrgicos” em
vários países. Promoveram-se numerosos congressos nacionais e encontros
internacionais, dentre os quais se destaca o famoso Congresso Internacional de
Liturgia Pastoral de Assis, em 1956.
A REFORMA LITÚRGICA DO
CONCÍLIO VATICANO II

 No dia 25 de janeiro de 1959, o


saudoso papa João XXIII revelou
sua disposição de realizar um
concílio ecumênico.
A COMISSÃO PREPARATÓRIA
E O PERCURSO REDACIONAL DE SC

 A Comissão que deveria preparar o esquema e o texto mártir da SC, instituída


no dia 05 de janeiro de 1960, teve as primeiras nomeações no dia 22 de agosto,
com publicação dos nomes no Osservatore Romano no dia 28 do mesmo mês e
era composta inicialmente por 19 membros e 32 consultores. Com outras
nomeações feitas entre 1960 e 1961 a Comissão passou a ser constituída por 65
pessoas.
 O trabalho, para garantir a eclesialidade, envolvia 21 nações dos cinco
continentes. Dentre os membros encontrava-se o brasileiro Dom Joaquim
Nabuco, bispo auxiliar do Rio de Janeiro.
 Três pontos de referência guiariam os trabalhos:
 as sugestões e indicações enviadas pelos bispos;
 as propostas da Congregação para os Ritos;
 e as indicações enviadas pela Secretaria Central do Concílio, que de forma
esquemática e geral, indicava as questões que cada Comissão deveria
estudar.
 Nos primeiros dias de agosto de 1961 a primeira versão do texto mártir de 252
páginas estava concluída e mandada à Comissão. Recebido o texto a Comissão
trabalhou intensamente, a partir de cerca de 1500 observações feitas por
espertos, não retocando, todavia, substancialmente o primeiro texto.
 Esse segundo esquema fora submetido mais uma vez a peritos que fizeram 750
observações.
 A Constituição chegava no dia 15 de novembro de 1961 à sua terceira redação
com apenas 110 páginas, destinada à terceira sessão plenária.
 No dia 25 de dezembro, por meio da Constituição apostólica Humanae salutis,
o papa João XXIII convocou oficialmente o Concílio, fixando o seu início para
o dia 11 de outubro do ano sucessivo, 1962, por meio da Carta apostólica em
forma de motu proprio Consilium.
 Entre os dias 11 e 13 de janeiro de 1962, o esquema da Constituição recebeu os
últimos retoques por parte da plenária, sendo aprovado por unanimidade pela
Comissão preparatória. O texto constava de 107 artigos e sete capítulos.
 No dia 13 de janeiro de 1962, concluíram-se os trabalhos preparatórios no
tocante à liturgia.
 Feitas as emendas, “a Constituição foi publicada no volume dos esquemas a
serem discutidos no Concílio, aprovados pelo papa no dia 13 de julho de 1962
e enviados a todos os Padre conciliares”.
 Os debates dos Padres conciliares foram de fundamental importância...
 Fixada a data da abertura do Concílio e concluído o período de preparação,
deu-se a substituição das Comissões preparatórias pelas Comissões
Conciliares.
 Aberto o Concílio no dia 11 de outubro de 1962... o esquema sobre a liturgia
seria o primeiro a ser discutido.
 Todavia no dia 14 de novembro de 1962, encerrado o debate, propôs-se um
voto orientativo. Dos 2.215 votantes, 2.162 votaram favoravelmente contra 46
e 7 nulos.
 Passados exatos quatrocentos anos do dia em que os Padres do Concílio de
Trento confiaram ao papa a reforma litúrgica chamada tridentina, 4 de
dezembro de 1563, a SC foi aprovada indicando as concretas linhas gerais para
renová-la (por 2.147 votos a favor e apenas 4 contra).
 O papa o fez com as seguintes palavras:

“Todos e cada um dos pontos enunciados nesta constituição agradaram aos


Padres do Sacrossanto Concílio. E nós, pelo poder Apostólico que nos foi
dado por Cristo, juntamente com os Veneráveis Padres, no Espírito Santo
aprovamos, decretamos e estatuímos e determinamos que o que foi assim
decidido em Concílio seja promulgado para a glória de Deus” (SC 74).
A “SACROSANCTUM CONCILIUM”
 Abandonando o método de reflexão onde a liturgia aparece como a conclusão
de um discurso genericamente religioso, a SC situa a liturgia no contexto da
revelação, como “história de salvação”. A obra da salvação, continuada pela
Igreja, se realiza na liturgia (cf. SC 6).

 Foi o primeiro documento votado e aprovado, não só porque seu esquema era
de saída o melhor elaborado (o mais amadurecido), mas também porque os
Padres conciliares perceberam que a reforma da liturgia era de fato uma
necessidade para que as finalidades essenciais do concílio fossem cumpridas...
“O Sacrossanto Concílio propõe-se fomentar sempre mais a
vida cristã entre os fiéis; acomodar melhor às necessidades de
nossa época as instituições que são suscetíveis de mudanças;
favorecer tudo o que possa contribuir para a união dos que
crêem em Cristo; e promover tudo o que conduz ao
chamamento de todos ao seio da igreja. Por isso julga seu
dever cuidar de modo especial da reforma e do incremento da
Liturgia” (SC 1).
Sacrosanctum Concilium veio ao encontro das
sensibilidades culturais amadurecidas no século XX:
protagonismo de Cristo, descentralização do clero,
participação da comunidade, simplicidade, beleza e
autenticidade. Neste sentido, SC significa uma tentativa de
adaptação da liturgia à cultura atual, deslanchando novos
processos eclesiais e sacramentais.
Assim a liturgia se apresenta como verdadeira “tradição”, ou seja,
transmissão do mistério salvífico, o mistério pascal de Cristo, através de um
rito, de uma forma sempre nova e adequada à sucessão dos tempos e à
diversidade de lugares. Se a Igreja tem a obrigação de conduzir os homens de
todos os tempos à salvação, isto implica a capacidade de a própria Igreja
aceitar e adaptar-se às mutações da história.

 Superada a visão “estático-jurídica”, a liturgia caminha na direção de uma


perspectiva dinâmico-teológica: é considerada sobretudo como a própria ação
de Cristo no seu Corpo que é a Igreja (SC 7).
 Cristo é o agente principal no rito e com o rito celebrado pelo seu corpo,
animado pelo Espírito Santo. A liturgia é obra da Trindade.
 Volta-se assim à linha original da liturgia, que é sacramental e que continua o
mistério de Cristo na forma de mistério cultual. Decididamente, a SC se
apresenta como um verdadeiro “manual” de teologia, o seu interesse é
concentrado no conteúdo de fé que os ritos devem exprimir.
 Sendo a primeira vez que um Concílio leva em consideração seriamente o
tema da liturgia, a enquadrou numa perspectiva estritamente teológica,
resgatando-a do limitado e limitante ritualismo.
 A liturgia foi chamada a resgatar novamente a perdida centralidade do Mistério
pascal, manifestando-o em absolutamente todas as suas formas celebrativas;
Mistério pascal como momento histórico da salvação, a fonte mais excelente
de espiritualidade cristã.
Memorial
Fazei isto
em memória
de mim!

Origem no Antigo
Testamento
Ceia Pascal judaica
Ex 13,17-15,21
Caos Cosmos

O rito está
entre os dois
Como recuperar a
capacidade de viver em
plenitude a ação
litúrgica?
 Com o motu proprio Traditionis custodes, Francisco restaurou como a única
expressão da lex orandi do rito romano os livros litúrgicos promulgados por
Paulo VI e João Paulo II a partir das diretrizes dos padres conciliares,
desejando superar um período da recepção do Vaticano II marcado pela
acomodação, pela ambiguidade e pelo cansaço - que deram espaço às
dissidências em relação à reforma litúrgica e ao Concílio como um todo.
 A decisão, em certa medida, encerra um debate, mas não pretende voltar à
estagnação; ao contrário, quer abrir mais decididamente o caminho para uma
nova apropriação dos princípios teológicos que estão na raiz da reforma
litúrgica.
 Assim, na carta apostólica Desiderio Desideravi, o papa relança a tarefa
delineada pelo movimento litúrgico e assumida pelo Concílio, convidando as
comunidades cristãs a assumirem-se corresponsáveis pela recepção da SC e da
reforma litúrgica como dinâmica de vida eclesial, e não só como doutrina e
como legislação.
A educação litúrgica de pastores e fiéis, portanto, é um
“desafio” a ser enfrentado “sempre de novo”. É preciso
redescobrir os motivos das decisões tomadas pela reforma
litúrgica, superando leituras infundadas e superficiais,
recepções parciais e práticas que a desfiguram.
A contínua redescoberta da beleza da Liturgia não é a
procura de um esteticismo ritual que se compraz apenas no
cuidado da formalidade exterior de um rito ou se satisfaz
com uma escrupulosa observância rubrical.

DD. n. 22
Obviamente, esta afirmação não quer de modo algum
aprovar a atitude oposta que confunda a simplicidade com
a banalidade rasteira, a essencialidade com uma
superficialidade ignorante, a concreção do agir ritual
com um exasperado funcionalismo prático.

DD. n. 22
A ars celebrandi diz respeito a toda a assembleia que
celebra, e muito especialmente aos ministros ordenados. Há
diversos “modelos” de presidência; uns a caracterizam de
modo inadequado:
 rigidez austera ou criatividade exasperada;
 misticismo espiritualizante ou funcionalismo prático;
 precipitação apressada ou lentidão acentuada;
 descuido negligente ou excessiva minúcia;
 afabilidade superabundante ou indiferença hierática
(uma presidência demasiado rígida).
DD. N. 54
A ars celebrandi não se pode reduzir à mera observância de
um aparato de rubricas, e ainda menos pode ser pensada
como uma fantasiosa – por vezes selvagem – criatividade
sem regras. O rito é por si mesmo uma norma e a norma
nunca é fim para si mesma, mas está sempre ao serviço da
realidade mais alta que quer salvaguardar.

DD. n. 48
É preciso cuidar de todos os aspectos da celebração
(espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestes, cantos,
música, ...) e observar todas as rubricas: esta atenção seria
suficiente para não roubar da assembleia o que é seu por
direito, o mistério pascal celebrado no modo ritual que a
Igreja estabelece.
DD. n. 23
“Presidir à Eucaristia é submergir-se na fornalha do amor
de Deus. [...] A norma mais alta e, portanto, mais exigente,
é a própria realidade da celebração eucarística que
seleciona palavras, gestos, sentimentos, levando-nos a
compreender se são ou não adequados à função que
devemos desempenhar. É evidente que também isto não se
improvisa: é uma arte, requer do presbítero aplicação, isto
é, uma frequência assídua do fogo de amor que o Senhor
veio trazer à terra (Lc 12,49)”.
DD. n. 57
Entre os atos rituais que pertencem a toda assembleia, o
silêncio ocupa um lugar de absoluta importância. Toda boa
liturgia começa do silêncio e no silêncio. Ele é a condição
básica para qualquer ação litúrgica (Guardini, 1957, p. 20) e,
dentro do espaço sagrado, ele nos dispõe para celebrar de
modo devido os sagrados mistérios (IGMR 45). Toda a
celebração eucarística está imersa no silêncio do início ao
fim do desenrolar ritual (DD 52).
O rito litúrgico será expressão da ternura do Senhor ressuscitado
para com a comunidade celebrante somente quando a ação ritual
for, ao mesmo tempo, ordenada e orante. Na ação ritual, a
articulação entre o ordenamento humano e a ação do
Espírito favorecerá a relação pessoal e comunitária dos que
celebram a liturgia com o mistério.
Experiência
existencial
Experiência
eclesial

Experiência
ritual
Aprender a “dar
graças, sempre e em
Fazer da nossa vida todos os lugares”, e
um dom de amor, não só em
livre e gratuito determinadas
ocasiões, quando
tudo corre bem

Fazer comunhão concreta,


na Igreja e com todos
s
t
o
,

a
t
u
a Participar na
Eucaristia
l engaja-nos Celebramos a Eucaristia
emi relação aos outros, para aprender a tornar-
educando-nos
z a passar nos homens e mulheres
daa carne de Cristo para eucaristizados
a carne dos irmãos
a

g
r Os cristãos são homens
a e mulheres que deixam
ç alargar, com almas
a grandes e vastos
horizontes
d
o

B
a
t
i
s
“Abandonemos as controvérsias
para ouvirmos juntos o que o
Espírito diz à Igreja, guardemos a
comunhão, continuemos a nos
maravilhar com a beleza da
Liturgia. A Páscoa nos foi dada,
deixemo-nos envolver pelo desejo
que o Senhor continua a ter de
poder comê-la conosco. Sob o
olhar de Maria, Mãe da Igreja”
(DD. n. 65).
“A reforma litúrgica é
irreversível”
Papa Francisco
t

Pe Thiago Faccini
faccini20@hotmail.com

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