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Darlei Zanon, ssp

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PARA LER O CONCÍLIO
VATICANO II

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Paginação e capa:
PAULUS Editora

Impressão e acabamento:
António Coelho Dias, SA.

Depósito legal:
ISBN: 978-972-30-1597-3

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«O Concílio Vaticano II
foi um extraordinário evento eclesial,
nascido do coração de Deus,
por meio de uma intuição de João XXIII,
e que teve em João Paulo II um intérprete qualificado
e uma testemunha coerente.»
Bento XVI

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Cinquenta anos depois…

O Concílio Vaticano II foi um acontecimento fundamental para a configuração da


Igreja contemporânea, «um extraordinário evento eclesial, nascido do coração de
Deus», afirmou o Papa Bento XVI. Idealizado por João XXIII, sensível aos sinais dos
tempos, e redinamizado por Paulo VI, o Concílio suscitou elementos fundamentais
para a renovação da Igreja, como um novo modo de agir, mais voltado para o mundo
e para as suas necessidades; o diálogo com a sociedade, a cultura e com as outras
Igrejas e crenças; a consciência de que não é fugindo do mundo que se resolvem os
problemas que têm origem nele; a valorização e centralidade da Sagrada Escritura e
da Liturgia na vida de fé; e a conceção de que a Igreja são todos os batizados, clero e
leigos, pois são todos membros do mesmo Corpo de Cristo, todos formamos o Povo
de Deus e somos Templo do Espírito.
Ao celebramos os cinquenta anos da sua realização, é imprescindível que
revitalizemos o seu conteúdo, em parte aplicado, mas em muito ainda por se
concretizar. O presente livro propõe-se a fazer uma visita guiada aos dezasseis
documentos do Concílio, explorando as suas temáticas e questionamentos, as suas
problemáticas e motivações, as suas exigências e inovações. Uma viagem rápida com
o objetivo de mostrar a riqueza e atualidade do Concílio, através das suas
constituições dogmáticas, decretos e declarações. A nossa intenção é acender uma
pequena chama no interior de cada cristão que o conduza a aprofundar e valorizar
sempre mais a beleza do Vaticano II, especialmente ao longo deste ano jubilar: o Ano
da Fé. Desejamos uma ótima “visita” a todos os leitores.

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I. Sacrosanctum Concilium
A renovação e valorização da Liturgia
A 11 de outubro de 1962, há exatamente cinquenta anos, o Papa João XXIII dava
início ao Concílio Ecuménico Vaticano II, o 21.º da História da Igreja – o anterior,
Vaticano I, tinha ocorrido em 1870, mas sem grande repercussão. Na convocatória do
Concílio Vaticano II, publicada a 25 de dezembro de 1961, o Papa especificou as
razões do encontro: «A Igreja assiste a uma crise que aflige a sociedade humana.»
João XXIII fazia assim um convite à Igreja para distinguir «os sinais dos tempos»
(Mt 16,3) e manter-se vigilante e responsável, confiante em Cristo. O Concílio seria a
resposta da Igreja ao desejo de colaborar mais eficazmente na solução dos problemas
da época. Assim foi verdadeiramente.
O primeiro documento aprovado pelos bispos conciliares, cerca de dois mil e
duzentos, foi a Constituição Sacrosanctum Concilium (O Sagrado Concílio) (SC),
sobre a Liturgia. A renovação da Liturgia era uma exigência unânime, fruto das
transformações trazidas pelo movimento litúrgico iniciado no final do século xix. O
movimento resgatou elementos da Escritura, da origem do Cristianismo e da Tradição
da Igreja, dando à Liturgia um estatuto teológico e revelando toda a sua riqueza.Os
documentos de Pio X, Tra le sollecitudini (1903), e de Pio XII,Mediator Dei (1947),
já apontavam a necessidade de renovação da Liturgia, justificada teológica, histórica
e pastoralmente. Durante a apresentação do texto da Sacrosanctum Concilium houve
328 intervenções orais e 625 escritas, mas o documento foi aprovado sem
controvérsias a 4 de dezembro de 1963: 2147 votos a favor e apenas 4 contra.
A promulgação deste documento foi um marco na vida da Igreja, fundamental para
a promoção e o desenvolvimento da Liturgia. Devolveu-se-lhe a verdadeira
importância e cen-tralidade na vida cristã, pois é a mais perfeita expressão do
mistério de Cristo e da nossa união com Deus:
A liturgia contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério
de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja, que é simultaneamente humana e divina, visível e
dotada de elementos invisíveis, empenhada na ação e dada à contemplação. (SC, n.º 2)
A Sacrosanctum Concilium é dividida em sete capítulos. Logo no primeiro
encontramos a sua fundamentação teológica, a parte mais importante e profunda do
documento. A Liturgia é apresentada no horizonte da História da Salvação, cujo fim é
a redenção humana e a perfeita glorificação de Deus. Ela é sacrifício, memorial do
mistério pascal, renovação da aliança. Ela é «simultaneamente a meta para a qual se
encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força» (SC,n.º 10).
Sobre a presença de Cristo, o n.º 7 esclarece-nos:
Para realizar tão grande obra, Cristo está sempre presente na Sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas.
Está presente no sacrifício da Missa, quer na pessoa do ministro, quer e sobretudo sob as espécies
eucarísticas. Está presente com o seu dinamismo nos sacramentos, de modo que, quando alguém batiza, é o
próprio Cristo que batiza. Está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada

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Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta (Mt 18,20). (SC, n.º 7)
O capítulo ii retoma este tema, mas trata especificamente do mistério eucarístico
como memorial da morte e ressurreição de Cristo. Uma das maiores preocupações do
Concílio, em sintonia com o movimento litúrgico, foi rever os ritos, tornando-os mais
simples e significativos. O ritual da Missa foi simplificado e a liturgia da palavra
ampliada. A homilia passou a ser muito valorizada, pois é «a exposição dos mistérios
da fé e das normas da vida cristã» (SC, n.º 52). As renovações apontadas para os
outros sacramentos são enfatizadas no capítu-lo iii e referem-se principalmente à
revisão dos rituais, realizada com primor nos anos seguintes.
O capítulo iv ocupa-se do Ofício Divino, cuja recitação é incentivada e a maior
mudança é o uso da língua vernácula. O uso da língua própria de cada país foi uma
das principais transformações trazidas pelo Concílio e aplicada a toda a Liturgia. Este
tema é tratado nos n.os 36 e 54 do documento, ainda no capítulo i. Ali também se diz
que a celebração comunitária é preferida à individual (SC, n.º 27), incentivando-se a
presença e participação ativa dos fiéis.
A participação sempre maior e mais ativa dos fiéis na liturgia foi o pano de fundo
que incentivou as principais renovações do Concílio. Hoje, analisando o número
sempre decrescente de fiéis que vão à igreja regularmente, a preocupação volta à
tona. Segundo o último recenseamento realizado pela Igrejade Portugal, apenas
18,7% da população é praticante, apesar de 84,5% se declarar católica. Isso
representa uma queda na participação dos fiéis em torno de 1,5% ao ano desde a
pesquisa anterior, ou seja, cerca de 31 mil fiéis por ano deixam de ir à Missa.
Esta situação deve fazer a Igreja, que no fundo somos todos nós cristãos, repensar a
sua constituição e renovar-se, resgatando e atualizando as indicações do Concílio. Ao
longo destes cinquenta anos muitas coisas foram feitas, mas a necessidade de
renovação é sempre atual. Uma vez aprovada, a Sacrosanctum Concilium influenciou
decisivamente toda a Igreja, no modo de pensar, de ensinar, de olhar para as suas
instituições e para o mundo. Imprimiu-lhe uma nova dinâmica que continua viva e a
convocar a Igreja a estar atenta à linguagem do seu tempo e lugar. Mantém-se sempre
atual a necessidade de formar o clero e o povo, conforme indicam os n.os 14 a 20.
Para isto foram criados os diversos centros de liturgia, as comissões regionais,
nacionais e internacionais, os cursos de liturgia, as semanas de formação e diversas
outras iniciativas.
Temos ainda os capítulos v, vi e vii, que tratam respetivamente do Ano Litúrgico
(caminho através do qual a Igreja recorda e revive o mistério pascal de Cristo), a
Música e a Arte Sacra, que devem contribuir para a beleza e dignidade do culto.
O Concílio mostrou-nos que a liturgia é o momento privilegiado de encontro com
Deus, ensinou a valorizar e redescobrir o valor da Palavra e da Eucaristia e a
importância da oração e do silêncio, da reflexão bíblica, da força que vem da
Eucaristia. No próximo capítulo veremos como tudo isto influenciou na definição do
que é a própria Igreja, com a análise do documento Lumen gentium.

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II. Lumen gentium
Novo modo de ser Igreja
A o convocar o Concílio Vaticano II, o Papa João XXIII tinha um objetivo bastante
claro: aggiornamento, atualização da Igreja diante das questões postas pela sociedade
da época. Os trabalhos e documentos deveriam seguir esta linha, mas no final da
primeira sessão, nenhum dos 72 documentos propostos tinha sido aprovado.João
XXIII morreu meses depois, a 3 de junho de 1963. Paulo VIsucedeu-lhe e retomou os
trabalhos conciliares sob uma nova perspetiva. Meses antes, Paulo VI, na época
cardeal Montini, tinha-se pronunciado, afirmando que o Concílio se deveria ocupar
de um único problema: «a Igreja», isto é, refletir sobre a essência da Igreja. Este seria
o novo caminho a seguir.
Do projeto inicial de 72 documentos passou-se para 16, deixando aspetos
secundários para intervenções futuras do Papa e das congregações pontifícias. A
constituição sobre a Igreja – Lumen gentium (Luz dos Povos) (LG) – torna-se como
que o tronco do Concílio e representa, no campo da eclesiologia, uma autêntica
revolução. Surge um novo modo de ser e de compreender a Igreja. De um modelo de
Igreja como sociedade perfeita passa-se agora a uma pluralidade de imagens,
complementares entre si e orientadas pela perspetiva do mistério e da Trindade.
Ao contrário da Constituição Sacrosanctum Concilium, houve longa discussão
sobre o texto original, sendo feitas cerca de quatro mil emendas. O documento final,
votado apenas após cada um dos capítulos ser aprovado individualmente, foi
promulgado a 21 de novembro de 1964, após receber 2151 votos a favor e apenas 5
contra. É composto por oito capítulos, onde se descrevem diferentes aspetos da
Igreja.
No capítulo i somos introduzidos no «mistério da Igreja»: a Igreja é o reino já
presente em mistério e cresce pelo poder de Deus; «é o povo congregado na unidade
do Pai e do Filho e do Espírito Santo» (LG, n.º 4). Resgatam-se uma série de imagens
que desde as origens do Cristianismo representaram a Igreja: rebanho, lavoura de
Deus, edifício, Jerusalém do alto, templo do Espírito e corpo de Cristo com diferentes
membros, guiados pela única cabeça: Cristo, que é a Luz dos Povos.
Enquanto o capítulo i considera o corpo eclesial a partir do mistério trinitário, o ii
apresenta o seu desenvolvimento histórico. O novo povo de Deus, uno e universal, é
formado por todos os que creem. Na nova aliança, todos são chamados a ir e batizar,
segundo a ordem de Cristo em Mt 28,18-20, constituindo assim uma Igreja
missionária.
Os capítulos iii e iv descrevem a estrutura orgânica da Igreja. Todos os batizados,
fiéis ou pastores, têm a mesma vocação fundamental e são associados à mesma
missão. Primeiramente fala-se da constituição hierárquica da Igreja, especificando a
função dos bispos (pregar o Evangelho, governar e santificar o rebanho), presbíteros e

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diáconos, que estão ao serviço do povo de Deus. A seguir trata dos leigos, aos quais
«compete por vocação procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e
ordenando-as segundo Deus» (LG, n.º 31).Os leigos, cada vez mais valorizados, são
chamados à santidade a partir da sua vida de inserção no mundo. Para tal é sempre
atual a necessidade de se investir na formação e participação dos leigos na vida
eclesial.
O Concílio pede que entre pastores e fiéis haja uma «comunidade de relações» e
um mútuo apoio, pois todos são «chamados à santidade». Este é o tema dos capítulos
v e vi. A missão essencial da Igreja é a santificação: a Igreja é santa e todos na Igreja
são chamados à santidade. No coração desta vocaçãocomum a todos situa-se a vida
consagrada. O Concílio assinala os conselhos evangélicos como dom divino,
consagração ao serviço de Deus. Nos próximos capítulos retomaremos a reflexão
sobre os religiosos, os leigos e o clero ao tratar de outrosdocumentos conciliares
específicos sobre cada um destes temas.
Nos dois últimos capítulos da Lumen gentium há a descrição do desenvolvimento
escatológico da Igreja e do papel de Maria nesta caminhada, no mistério de Cristo e
da Igreja.A Igreja peregrina está em união com a Igreja celeste e só será consumada
na glória celeste (LG, n.º 48).
Segundo destacou o professor M. Costa Santos,
a ordem dos três primeiros capítulos mostra a “mudança coper-nicana” gerada pelo Concílio. O conceito de
povo de Deus, após o mistério da Igreja, indica que o povo de Deus não surge por iniciativa dos homens,
mas do plano de Deus Pai. O povo de Deus, antes constituição hierárquica da Igreja e dos leigos, mostra
que a comunidade eclesial e a vocação comum são prioritárias face à diversidade de ministérios e
vocações; a realidade primeira é o “nós eclesial” em que a unidade precede a diferença. A constituição
hierárquica, após o povo de Deus, mostra que os ministérios estão ao serviço do corpo eclesial como
mistério, a partir de Cristo.
Este é provavelmente o documento mais importante do Concílio Vaticano II, pois
fez a Igreja refletir sobre a sua essência, sobre a sua origem e constituição interna. A
sua redescoberta como mistério marca este retorno às origens ao mesmo tempo que se
abre a todas as novidades trazidas pelos novos tempos. A consciencialização da Igreja
como mistério ligado ao mistério de Cristo e não como sociedade deu um novo rumo
e apontou caminhos interessantes que infelizmente não foram bem explorados ao
longo destes cinquenta anos.Há muito a ser feito. Como recorda a professora
ManuelaCarvalho:
A Lumen gentium ainda não é vivida nem aplicada. […] Alguns pontos desta constituição foram vistos,
como a questão da colegialidade e do episcopado, mas o fundamento, a raiz da própria Igreja é mais difícil.
Exige muito da vida cristã.
Isso significa que a Igreja ainda tem muito trabalho pela frente, pois, como afirma o professor Costa
Santos:
a Igreja, num processo iniciado pelo Concílio e jamais conclusivo, deverá ser, sempre mais, sinal da “união
com Deus e da unidade do género humano”. Desta unidade, a Igreja é testemunha, que torna presente
(visível) o Ausente (invisível).

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III. Dei Verbum
A beleza e a profundidadeda Sagrada Escritura
O interesse pelos temas ligados à Sagrada Escritura era muito forte na época do
Concílio. A Constituição Dei Verbum (A Palavra de Deus) (DV) é fruto de um
caminho de amadurecimento que levou anos, sofrendo grande influência das
Encíclicas Providentissimus Deus, de Leão XIII; Spiritus Paraclitus, de Bento XV; e
Divino Afflate Spiritus, de Pio XII. Um aprofundamento lento, mas que refletia uma
necessidade da Igreja: dar o devido valor à Sagrada Escritura. Por ocasião do
Concílio, chegaram a Roma 102 proposições que foram selecionadas, agrupadas e
aprofundadas pela comissão preparatória. Devido à sua complexidade e após 104
intervenções, os padres conciliares pediram que se parassem as discussões e que o
esquema fosse reelaborado.O texto atual foi promulgado a 18 de novembro de 1965,
após receber 2344 votos a favor e 6 contra.
O maior objetivo do Concílio era difundir a Palavra de Deus, em cumprimento do
desejo de Jesus Cristo, que anunciou: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa
Notícia a toda a Humanidade.» (Mc 16,15) Logo no «Proémio» destaca-se o objetivo
de «propor a genuína doutrina sobre a Revelação divina e a sua transmissão, para que
o mundo inteiro, ouvindo, acredite na mensagem da salvação, acreditando espere, e
esperando ame» (DV, n.º 1).
A estrutura do documento é bastante simples, mas concentra um ensinamento
muito belo e profundo. O capítulo i é sobre a Revelação. Descreve o processo
contínuo de comunicação entre Deus e o ser humano. Revelar é uma palavra que
deriva do latim revelare e significa tirar o véu, divulgar, mostrar, dar-se a conhecer.
São muitos os sinónimos, mas a ideia central é exatamente esta: manifestar. Deus
revelou-Se, deu-Se a conhecer aos nossos antepassados, manifestou a Sua vontade e a
Sua verdade diversas vezes ao longo da história com oobjetivo de conduzir todos à
comunhão Consigo. Na plenitude dos tempos, revelou-Se de modo pleno e definitivo
através do Seu Filho, Jesus Cristo, o Verbo Encarnado. Em poucas linhas, a Dei
Verbum concentra os fundamentos de toda a Teologia da Revelação. O seu conteúdo
é tão profundo e por isso ainda há muito a ser aplicado. Não é por acaso que a última
encíclica de Bento XVI, sobre a Palavra de Deus, se chama Verbum Domini, numa
clara referência e continuidade ao documento conciliar.
O capítulo ii ocupa-se da transmissão da Revelação divina. Confirma que o nosso
acesso à Revelação acontece através da pregação dos Apóstolos e dos seus
sucessores. É a chamada Tradição, que se origina nos Apóstolos e progride na Igreja
sob a inspiração do Espírito Santo (DV, n.º 8). A Tradição ajuda a compreender a
Escritura, pois as duas estão intimamente relacionadas, são dois pilares da fé cristã,
proveem de Deus e tendem ao mesmo fim: conduzir o Homem a Deus.
A seguir, o documento confirma que a Sagrada Escritura foi escrita por mãos

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humanas, mas sob inspiração do Espírito Santo. Para a interpretação da Bíblia é
preciso ter em conta a sua inspiração divina, os géneros literários, os estudos
exegéticos e hermenêuticos e tudo o mais que possa contribuir para um
aprofundamento e melhor compreensão do texto. Incentiva-se assim as pesquisas e
estudos bíblicos, primeiramente por parte dos pastores e pregadores, mas também de
todos os cristãos, pois não é possível amar o que não se conhece. Como bem destacou
frei Herculano Alves,
não é possível viver o Cristianismo sem conhecer o Livro onde está escrito o que é ser cristão. [...] A
Bíblia nunca entrará realmente na vida dos cristãos em particular e na vida da Igreja em geral, sem que a
conheçamos previamente.
Os capítulos iv e v tratam respetivamente do Antigo e do Novo Testamento. O Antigo, ou Primeiro,
Testamento contém um retrato da história da salvação e serviu para preparar oadvento de Cristo que veio
instaurar o Reino, como é descrito no Novo Testamento.
Por fim, vemos como a Sagrada Escritura age na vida da Igreja. É o capítulo vi. Ali vemos muito explícito
o convite ao aprofundamento da Palavra de Deus através da tradução da Bíblia para todas as línguas, além do
estudo e da investigação. A Escritura deve ser a alma da Teologia (DV, n.º 24). De facto, a partir do Concílio
a linguagem bíblica generalizou-se no campo teológico e pastoral. Foi uma das revoluções provocadas pelo
Concílio na Teologia e na vida da Igreja. A Constituição Dei Verbum deu origem a muitos outros bons frutos,
tais como a renovação bíblica a nível litúrgico, teológico e catequético; a leitura e
aprofundamento da Bíblia através do apostolado bíblico, com o aparecimento de
diversos grupos, movimentos e iniciativas; a divulgação da lectio divina; a animação
bíblica da pastoral.
Há, porém, muito ainda por fazer. Muitos cristãos estão distantes da Bíblia,
ignorando os seus ensinamentos e verdades. Muitos também fazem uma leitura
fundamentalista ou superficial que induz ao uso erróneo do seu ensinamento. Enfim,
muitos ainda não foram iluminados pela Palavra de Deus, que é «lâmpada para os
meus pés e luz para o meu caminho»[Sl 119 (118),105]. O apelo do Concílio é fazer
conhecer sempre mais e melhor a palavra de Deus e que «encha cada vez mais os
corações dos homens o tesouro da Revelação, confiado à Igreja» (DV, n.º 26).
Este apelo é tão atual que o último sínodo dos bispos, realizado de 5 a 26 de
outubro de 2008, falou exatamente sobre «a Palavra de Deus na vida e na missão da
Igreja». No documento preparatório do sínodo, o secretário-geral, Nikola Eterovi,
enfatizou a ainda atual
necessidade de conhecer integralmente a fé da Igreja sobre a Palavra de Deus, de alargar com métodos
adequados o encontro com a Sagrada Escritura por parte de todos os cristãos e, ao mesmo tempo, acolher
os novos caminhos que o Espírito hoje sugere, para que a Palavra de Deus, nas suas várias manifestações,
seja conhecida, ouvida, amada, aprofundada e vivida na Igreja e assim se torne Palavra de verdade e de
amor para todos os homens.
O sínodo trabalhou a relação entre Revelação, Palavra de Deus e Igreja, numa clara
referência e atualização da Dei Verbum. Juntando a releitura do documento conciliar
com as atua-lizadas reflexões do sínodo, expressas na Encíclica Verbum Domini, de
Bento XVI, temos um grande incentivo para pegarmos na Bíblia e aprofundarmos a
sua leitura através do estudo individual, da participação em cursos de formação e
escolas bíblicas, da catequese, da busca de material de apoio e, claro, da oração
diária, especialmente a lectio divina. Oxalá ouvíssemos na nossa comunidade as
palavras dirigidas por Paulo aos Tessalonicenses: «Irmãos, rezai por nós, a fim de que

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a palavra do Senhor se espalhe rapidamente e seja bem recebida, como acontece entre
vós.» (2Ts 3,1)

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IV. Gaudium et spes
Base da Doutrina Social da Igreja
N o seu início, o Concílio Vaticano II não tinha uma comissão prevista para o
estudo dos problemas sociais e da relação da Igreja com o mundo contemporâneo.
Esta comissão foi criada a partir do pedido do cardeal Suenes, da Bélgica, que
salientou que no Concílio, além de esclarecer a Igreja ad Intra (voltada para si
mesma), fosse também considerada a Igreja ad Extra (voltando-se para as realidades
económicas, políticas e sociais das pessoas no seu contexto).
Dos estudos desta comissão surgiu um texto inicial que foi reelaborado e ampliado
diversas vezes até ser promulgado a7 de dezembro de 1965, data de encerramento do
Concílio.A Gaudium et spes (Alegrias e esperanças) (GS) foi o último documento
aprovado, recebendo 2309 votos a favor, 75 contra e 10 nulos. Comparado com
outros documentos do Concílio, o número de votos contra é alto, mas compreensível
devido aos delicados temas que aborda.
A quarta das constituições do Vaticano II trata fundamentalmente das relações
entre a Igreja Católica e o mundo onde ela está e atua. O seu texto é profundo e
completo, constituindo a base de toda a Doutrina Social da Igreja. Mais tarde recebeu
apenas um complemento na Populorum progressio para reforçar a linha de
pensamento assumida pela Igreja nesta área, ou seja, alertar para o descompasso
crescente entre o crescimento económico e o desenvolvimento integral, para o
contraste entre o progresso tecnológico e a capacidade produtiva, de um lado, e o
subdesenvolvimento de tantos povos, de outro.
É considerada constituição pastoral, pois depois do «Proé-mio» e da «Introdução»,
onde indica sucintamente a metodologia e a condição do ser humano no mundo,
apresenta na primeira parte a compreensão do Homem e da sociedade em chave
teológica (parte doutrinária) e na segunda trata de alguns problemas concretos (parte
pastoral).
A maior riqueza da Gaudium et spes é apresentar um olhar profético, eclesiológico
e pastoral sobre a sociedade, sempre em busca da promoção da justiça e da paz. Ela
visa «iluminar o mistério do Homem e cooperar na solução das principais questões do
nosso tempo» (GS, n.º 10).
A sua primeira frase traduz o espírito do próprio Concílio como um todo:
As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos
aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de
Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a
sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua
peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos.
Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história. (GS, n.º 1)
Aí está expressa claramente a nova conceção de Igreja assumida pelo Concílio,
como Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito.

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A «Introdução» recorda a necessidade de a Igreja conhecer o mundo e acompanhar
as suas transformações técnicas e sociais. Faz uma contextualização geral dos
problemas, das alegrias e das esperanças do Homem da época, que em muito se
aplicam ao Homem de hoje.
Na primeira parte, o documento trata da doutrina da Igreja acerca do ser humano e
do mundo. Aborda temas como a dignidade humana (n.os 12-22), a condição humana
(n.os 23-32), a atividade do Homem no mundo (n.os 33-39) e o papel da Igreja no
mundo (n.os 40-45). Enfatiza que o ser humano é um ser social, de relações, e que
deve estar constantemente atento ao diálogo e ao respeito.
Na segunda parte, a Gaudium et spes estabelece linhas pastorais, respondendo à sua
missão no mundo: a Igreja deve ser como fermento e alma da sociedade, deve
santificar/iluminar o mundo e conduzir todos ao Reino (cf. LG, n.º 40). Considera
vários aspetos da vida humana e da sociedade contemporânea, respondendo a
problemas concretos de maior urgência para a época: matrimónio e família (n.os
47-52), progresso cultural (n.os 53-62), vida económico-social (n.os 63-72), vida de
comunidade política (n.os 73-76) e promoção da paz e da comunidade internacional
(n.os 77-90). Esta parte era inicialmente considerada “anexos”, mas devido à sua
importância e aos debates gerados foi incluída no corpo do documento.
Ao analisarmos com cuidado a situação da sociedadeatual, em clima de crise
económica e principalmente de crise de valores, constatamos que os problemas não
são muito diferentes, assumindo apenas uma nova face, mais moderna.
Como afirmou o padre Alfredo J. Gonçalves, assessor das pastorais sociais do
Brasil,
uma releitura atenta da Gaudium et Spes, no contexto da sociedade atual, pode significar uma grata
surpresa, em três dimensões: primeiro, embora publicada há mais de quarenta anos, ela continua a trazer
elementos preciosos para entender as transformações por que passa a sociedade moderna; depois, devido
justamente a esse diagnóstico válido ainda para muitos problemas que estamos a atravessar, ela fornece
pistas para uma ação eficaz, seja do ponto de vista pastoral, seja do ponto de vista social e político; por fim,
em conjunto com os demais documentos do Concílio Vaticano II, ela representa uma inflexão decisiva
quanto à postura da Igreja diante dos principais desafios da modernidade.
Por ser o último documento aprovado, a Gaudium et spes foi privilegiada e bebeu
de toda a nova mentalidade conciliar. Ela põe em prática todas as novidades do
Concílio, especialmente o que diz respeito a uma Igreja mais aberta, comprometida e
missionária. Tem especial ligação com o Decreto Ad gentes, sobre a atividade
missionária da Igreja, do qual falaremos no capítulo xii, e que afirma logo no seu
início: «A Igreja é por natureza missionária» (AG, n.º 2); e com a Constituição
Lumen gentium, sobre a constituição da Igreja, que vimos acima.
O conteúdo apresentado na Gaudium et spes é de uma profundidade e beleza
impressionantes e merece ser retomado com frequência por todos os cristãos. Com
este exercício recordaremos o compromisso constante da Igreja, que é formada por
todos nós cristãos, de «iluminar o mundo inteiro com a mensagem de Cristo e de
reunir sob um só Espírito todos os homens, de qualquer nação, raça ou cultura» (GS,
n.º 92). Continua sempre atual e significativo o «apelo à justiça e à paz» feito pelo
Concílio.

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V. Christus Dominus, Presbyterorum
ordinise Optatam totius
Sobre o clero
O ponto comum entre os documentos Christus Dominus, Presbyterorum ordinis e
Optatam totius é falarem sobre o clero, ou seja, os ministros sagrados que receberam
o sacramento da Ordem. Ali encontramos o novo conceito de sacerdote que perpassa
o Vaticano II e as orientações dadas pelo Concílio, que certamente ainda hoje
iluminam os bispos e sacerdotes, cerca de quatro mil atualmente em Portugal e 410
mil no mundo.

Cristo Senhor
O Decreto Christus Dominus (CD), aprovado com 2319 votos a favor, 2 contra e 1
nulo, após 16 votações, desenvolve o tema do múnus pastoral dos bispos da Igreja.
Inicia o seu discurso em nome do «Cristo Senhor» (Christus Dominus), Filho de
Deus, que desceu do Céu e veio, enviado pelo Pai, para salvar o Seu povo do pecado
e santificar todos os homens (cf. CD, n.º 1). Cristo enviou os Apóstolos para
continuarem a Sua missão. O Papa e os bispos são os sucessores dos Apóstolos e
perpetuam hoje a mesma obra de Cristo.
Dividido em três capítulos, o documento aborda inicialmente o papel do bispo na
estrutura da Igreja Universal, destacando a unidade dos bispos e a colegialidade que
os caracteriza. Depois, desenvolve a relação do bispo com a Igreja particular, a
diocese. O bispo é o pastor da diocese e tem o tríplice dever de ensinar, santificar e
governar o seu povo (cf. CD, n.º 11). Para tal, deve utilizar métodos apropriados às
necessidades do tempo, zelar pelos sacramentos e pela vida litúrgica e orientar os
seus colaboradores: bispos auxiliares, padres, religiosos e diáconos.
No capítulo iii trata-se dos bispos que cooperam para o bem comum de várias
igrejas, ou seja, dos que tomam parte nos sínodos, concílios e conferências
episcopais. Isso é essencial para a partilha de experiência e mútua colaboração entre
as várias dioceses.
Um elemento importante do decreto é recordar os bispos do mundo inteiro da sua
responsabilidade para com toda a Igreja e com o mundo. Essa responsabilidade
desdobra-se na partilha e no especial cuidado «pelos pobres e humildes» (CD, n.os 6,
7, 13).

Vida dos sacerdotes


Um dos documentos menos conhecidos do Vaticano II é o Decreto Presbyterorum
ordinis (PO), sobre o ministério e a vida dos presbíteros. Este decreto pequeno, mas

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muito profundo, tomou corpo ao longo do próprio Concílio, seguindo as mudanças de
conceção da Igreja e as suas relações trazidas pelos demais documentos,
especialmente as constituições dogmáticas que já apresentámos anteriormente. O
papel do padre na comunidade e no mundo deve estar em sintonia com as novas
ideias que brotaram do Concílio, daí a necessidade de um documento específico,
aprovado a 7 de dezembro de 1965 com 2390 votos a favor e apenas 4 contra, após
várias redações e intervenções.
Segundo manifestou o cardeal colombiano Darío Castrillón Hoyos, prefeito da
Congregação para o Clero até 2006,
durante o debate conciliar havia duas conceções diferentes do sacerdócio em ação: de um lado, uma “visão
funcional do ministério sacerdotal”, vendo o padre como aquele que proclama a Palavra, conduz a
comunidade em oração, e assim por diante; de outro lado, uma “visão sacramental/ontológica” do
sacerdócio, vendo o padre como conformado a Cristo pelo sacramento das ordens sagradas.
No final, as duas visões são complementares e inseparáveis e é isso que o
documento apresenta.
Como o decreto sobre os bispos, este apresenta três capítulos. O primeiro, «O
presbiterado na missão da Igreja», trata da natureza e condições dos sacerdotes.
Destaca que são homens escolhidos e separados do povo de Deus para se
consagrarem totalmente ao Senhor e à Sua obra (PO, n.º 3). Este capítulo faz
referência ao sacerdócio universal do cristão. Em Cristo todos os fiéis se tornam
sacerdotes, isto é, buscam a sua santificação e a santificação dos outros, e dão
testemunho profético do Evangelho (PO, n.º 2). Mas como no Corpo nem todos os
membros tem a mesma função, recordando o ensinamento paulino em Rm 12,4,
alguns são chamados ao grau da Ordem para oferecer sacrifício e perdoar os pecados.
Este tema é complementado pelo capítulo ii, onde se fala das funções do presbítero:
ministro da Palavra de Deus e dos Sacramentos, educador do povo e pastor das almas.
No capítulo iii são desenvolvidos temas essenciais para a vida do sacerdote,
retomados recentemente com o Ano Sacerdotal instituído por Bento XVI (em 2009).
O presbítero é vocacionado à santidade e à perfeição. Age in persona Christi, ou seja,
é instrumento de Cristo para a edificação do Seu Corpo, que é a Igreja, e para a
santificação do povo. Aqui são apresentadas também as exigências espirituais dos
sacerdotes: humildade e obediência (sinal de unidade), celibato (sinal da graça e da
entrega ao serviço de Deus) e pobreza (sinal do desapego aos bem materiais em vista
dos espirituais). A Sagrada Escritura e a Eucaristia são tidas como meios que
favorecem a vida espiritual, juntamente com os retiros e a direção espiritual.A
conclusão do documento deixa uma palavra de confiança e incentivo diante dos
desafios.

Formação dos sacerdotes


Para termos bons bispos e bons sacerdotes, é importante ter uma boa formação
inicial. É exatamente sobre este tema que trata o Decreto Optatam totius (OT),
promulgado a 28 de outubro de 1965, após receber 2318 votos a favor e 3 contra.
Basicamente destaca-se a necessidade de se formar os seminaristas como verdadeiros

21
“pastores de alma”, a exemplo de Cristo, no tríplice ministério da palavra, do culto e
da santificação. A intenção aqui expressa é a mesma defendida recentemente por D.
Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa, em entrevista à Agência Ecclesia. Dizia ele
que
os padres se devem dedicar mais à sua missão específica de evangelizar e formar cristãos e libertar-se de
tarefas que foram acumulando, como a de gestão de centros sociais ou a administração de bens das
paróquias ou dioceses.
O Optatam totius é dividido em sete tópicos, que abordam temas variados como a
promoção ativa das vocações, a função do seminário maior, os estudos eclesiásticos e
a formação integral (espiritual, intelectual e disciplinar). O último ponto destaca a
necessidade de atualizações constantes, tal como vem incentivando e insistindo o
Papa Bento XVI.
Cinquenta anos depois do Concílio, vivemos atualmente um momento interessante,
de aumento do número de bispos, padres e seminaristas no mundo, apesar de ainda
inferior ao aumento da população e ao aumento dos batizados. Segundo dados do
Anuário 2011, na última década o número de batizados cresceu 13% e o clero 1,34%
(0,34% entre 2008 e 2009, sendo atualmente 1181 milhões de fiéis e 410 593 padres
no mundo, 275 542 diocesanos e 135 051 religiosos). Enquanto no ano 2000 havia
um padre para cada grupo de 2579 católicos, atualmente cada sacerdote tem um
rebanho médio de 2876 fiéis. De qualquer modo este crescimento é animador e
esperançoso diante de uma sociedade cada vez mais secularizada e de todas as vozes
que apontam o declínio da fé e da Igreja.
Segundo declarou o próprio monsenhor Vittorio Formen-ti, ao receber os
resultados estatísticos deste ano, o PapaBento XVI
ficou positivamente impressionado, sobretudo com um dado: o do aumento do número de sacerdotes. Basta
pensar que desde os anos 60 até ao final do século passado, o número de sacerdotes estava em queda
contínua. A partir de 1998 houve um pequeno sinal positivo, embora se tratasse de poucas unidades. No
ano 2000, ao invés, começamos com um aumento de cerca de 400 sacerdotes. Agora, sobretudo durante o
Ano Sacerdotal, contamos 1400 sacerdotes a mais no mundo. E a isso acrescenta-se um pequeno detalhe
numérico, mas importante: nós contamos todos os anos os que, infelizmente, deixam o sacerdócio, mas
contamos também os que, após muitos anos, retomam o ministério sacerdotal. Pois bem, no Ano Sacerdotal
não somente tivemos menos presbíteros que deixaram o ministério, mas registamos o retorno de 460
sacerdotes – que por diferentes motivos haviam deixado o ministério.O Papa ficou muito, muito
impressionado e contente com esse dado.
Mas não foi apenas o número de padres que aumentou. De 2008 para 2009 tivemos
também um aumento significativo de bispos, diáconos permanentes e seminaristas.
Os bispos passaram de 5002 para 5065 (aumento de 1,3%). Os diáconos permanentes
passaram de 37 203 para 38 155 (aumento de 2,5%), sendo mais significativo o
crescimento na Oceânia (19%) e na Ásia (16%). Os seminaristas, que há trinta anos
não ultrapassavam os 70 mil, são agora 117 978 (0,82% a mais que em 2008, com
maior crescimento na Ásia, 2,39%, e na África, 2,2%). Na Europa, único continente
em que o número de padres diminuiu, é interessante constatar que os seminaristas
aumentaram 1,64%. Há muitos motivos para ter esperança.

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23
VI. Apostolicam actuositatem
A importante missão dos leigos
F iel ao objetivo de «ler os sinais dos tempos», o Vaticano II deu passos
fundamentais na inclusão do leigo na vida e na missão da Igreja. Hoje esta inclusão
mostra-se ainda mais necessária e importante e o Concílio oferece-nos muitas luzes
para reflexão.
A Igreja existe no mundo para mostrar a todos os seres humanos a beleza do
Evangelho, a glória de Deus e a redenção obtida através da fé em Cristo, nosso
Senhor. Concretizar esta missão não é, porém, função exclusiva do clero: bispos,
padres e diáconos. Todos os batizados são chamados a colaborar, primeiramente
através do testemunho de vida, depois através de ações concretas em sintonia com a
hierarquia. O leigo tem um papel fundamental neste processo, pois está mais
profundamente inserido no mundo e convive diretamente com as pessoas que
precisam da fé, do amor e da esperança. Incluir os leigos nesta missão foi uma
preocupação do Vaticano II, que se mostra cada vez mais atual e necessária, sendo
objeto de discussão de vários documentos e simpósios posteriores.
Ao longo da história vimos a relação entre o leigo e a Igreja sofrer muitas
alterações. Nas primeiras comunidades cristãs havia um grande protagonismo dos
cristãos leigos, como podemos constatar a partir das leituras das cartas paulinas e das
cartas apostólicas. Os leigos exerciam diversos ministérios, tais como o serviço da
Palavra, da direção da comunidade, da caridade e por vezes até o serviço cultual. A
partir do século iv estes ministérios sofreram um processo de clericalização, ou seja,
passaram a ser feitos por ministros ordenados, o clero, cabendo ao leigo apenas a
dedicação a assuntos temporais. No início do século xx, o movimento da Ação
Católica procurou recuperar o papel do leigo na atividade pastoral e apostólica da
Igreja, encontrando nos documentos do Vaticano II a confirmação e aprovação que
deram novo rumo à organização da Igreja.
Diversos documentos abordam o tema do laicado. A Constituição Dogmática
Lumen gentium, por exemplo, dedica todo o capítulo iv (n.os 30-38) aos leigos.
Aborda a natureza e missão dos fiéis leigos, o seu apostolado específico, a sua
participação no sacerdócio de Cristo, assumindo uma função profética e régia, a
relação com o clero, etc. A Lumen gentium afirma que os leigos são a alma do mundo
e devem ser testemunhas do Cristo ressuscitado (n.º 38), respondendo ao chamado à
santidade que receberam no batismo.
O documento exclusivamente dedicado à ação apostólica dos leigos, porém, é o
Apostolicam actuositatem (AA), elaborado a partir das 164 proposições enviadas à
comissão preparatória. Depois de várias emendas e redações, foi aprovado a 18 de
novembro de 1965 com 2340 votos a favor e 2 contra. Os seus 33 parágrafos são
divididos em 6 capítulos e visam a esclarecer a índole, natureza e variedade do

24
apostolado do leigo, além de oferecer princípios fundamentais e instruções pastorais
para o seu eficaz exercício.
O «Proémio» trata da atividade apostólica do povo de Deus e afirma que os leigos
desempenham funções próprias e necessárias na missão da Igreja e que «o Espírito
Santo hoje torna os leigos cada vez mais conscientes da própria responsabilidade e
por toda a parte os anima ao serviço de Cristo e da Igreja» (AA, n.º 1).
No capítulo i é abordada a vocação do leigo ao apostolado: participação dos leigos
na missão da Igreja, participação no múnus sacerdotal, profético e real de Cristo (n.º
2), espiritualidade como exercício contínuo da fé, esperança e caridade.
Através do bom exercício desta vocação, os leigos devem levar ao mundo a
mensagem de Cristo, através da palavra, do testemunho e dos sacramentos. Este é o
fim a atingir na sua missão (capítulo ii), que se funde com o objetivo da Igreja de
construir o Reino.
O capítulo iii menciona os vários campos de apostolado.Podem ser realizados nas
comunidades cristãs (paróquias), através da pastoral, da catequese, da ação católica,
etc.; na própria família, vivendo os valores cristãos, promovendo a unidade e
educando na fé; no ambiente social, promovendo o diálogo e o entendimento e
principalmente demonstrando coerência da vida com a fé. Este testemunho
certamente é a melhor forma de evangelizar e de defender a fé cristã.
Assim como são variados os campos de apostolado, também o são as formas de o
desenvolver: «Os leigos podem exercer a sua ação apostólica quer como indivíduos
quer unidos em diversas comunidades e associações.» (AA, n.º 15) A ordem a
observar em todos os casos é a coordenação e mútua estima entre os vários
apostolados e a boa relação entre leigos e clero, respeitando-se mutuamente as tarefas
e funções específicas de cada um (capítulo v).
Por fim, o capítulo vi trata da formação dos leigos. Este é um ponto ainda delicado,
pois ao mesmo tempo em que se exige uma participação ativa dos leigos na Igreja,
não são na mesma intensidade as oportunidades que eles têm para obter uma
formação espiritual, doutrinal, ética, teológica e humana sólida. Existem muitos
exemplos louváveis, mas ainda há muito que caminhar neste aspeto, por parte de cada
um de nós leigos e por parte da hierarquia, que deve incentivar e facultar aos leigos
tal formação. Somente assim se poderá concretizar o apelo final do documento de um
envolvimento sempre maior dos leigos na atividade apostólica da Igreja.
De entre os muitos méritos da mudança de mentalidade gerada pelo Concílio, é
significativa a rutura da dicotomia pastores-fiéis. O Vaticano II apresenta a Igreja
como Povo de Deus, onde todos são corresponsáveis na evangelização.A Igreja é
comunhão, somos todos parte do mesmo Corpo de Cristo, e o carisma pertence a
todos, não é exclusividade de nenhum grupo, apesar de cada um ter uma função
específica, como bem procura enfatizar Paulo: «Existem dons diferentes, mas o
Espírito é o mesmo; diferentes serviços, mas o Senhor é o mesmo; diferentes modos
de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos.» (1Cor 12,4-6) Somos
chamados a oferecer os nossos dons, os nossos carismas, a fim de promover a vida e a
missão da Igreja e não a competição e a segmentação.

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Quem tem o dom da profecia, deve exercê-lo de acordo com a fé; se tem o dom do serviço, que o exerça
servindo; se do ensino, que ensine; se é de aconselhar, aconselhe; se é de distribuirdonativos, faça-o com
simplicidade; se é de presidir à comunidade, faça-o com zelo; se é de exercer misericórdia, faça-o com
alegria.(Rm 12,6-8)
Trata-se de ajudar a construir uma nova sociedade – o Reino de Deus – mais justa,
mais humana e mais cristã.
Neste processo é essencial a unidade no interior da Igreja e da Igreja com Deus, do
Corpo com a cabeça, Cristo. Conforme nos recorda o Papa Bento XVI,
o Decreto destaca acima de tudo que a fecundidade do apostolado dos leigos depende da sua união vital
com Cristo, ou seja, de uma robusta espiritualidade, alimentada pela participação ativa na liturgia e
expressa no estilo das beatitudes evangélicas. Para os leigos, além disso, são de grande importância a
competência profissional, o senso de família, o senso cívico e as virtudes sociais.
Os leigos são os «apóstolos do terceiro milénio», declarou o Papa João Paulo II
numa das suas últimas mensagens, logo no início do século xxi. Dirigindo-se aos
leigos, dizia que
nesta passagem de época a lição do Vaticano II se mostra mais atual do que nunca: as condições hodiernas,
de facto, requerem que o vosso empenho apostólico de leigos seja ainda mais intenso e mais amplo.
Estudai o Concílio, aprofundai-o, assimilai o seu espírito e as suas orientações: encontrareis nele luz e força
para testemunhar o Evangelho em todos os setores da existência humana.
Que estas palavras provoquem em nós uma frutuosa reflexão e ação.

26
VII. Perfectae caritatis
A vida consagrada
O Concílio Vaticano II promoveu uma grande transformação na vida da Igreja.
Constatamos isso com muita clareza nos documentos analisados, especialmente nas
constituições sobre a liturgia, a Sagrada Escritura, a missão e a constituição da Igreja.
A vida consagrada, como elemento essencial do Cristianismo, não podia ser diferente.
No Decreto Perfectae caritatis (A caridade perfei-ta) (PC) poderemos ver as preciosas
orientações dos padres conciliares para «a conveniente renovação da vida religiosa».
Existem inúmeras formas de vida consagrada na Igreja, tais como a vida monástica,
eremita, a vida religiosa apostólica, os institutos seculares e as novas comunidades,
mas todas se caracterizam por viverem mais intensamente os conselhos evangélicos,
através de um voto público, um compromisso concreto.
O grau de seguimento e cumprimento destes conselhos evangélicos variam de
instituto para instituto, mas basicamente concretizam-se na profissão dos votos de
pobreza, obediência e castidade. No Catecismo da Igreja, n.º 574, lemos que
o estado da vida consagrada aparece como uma das maneiras de conhecer uma consagração “mais íntima”,
que se radica no Batismo e se dedica totalmente a Deus. Na vida consagrada, os fiéis de Cristo propõem-se,
sob a moção do Espírito Santo, seguir a Cristo mais de perto, doar-se a Deus amado acima de tudo e,
procurando alcançar a perfeição da caridade a serviço do Reino, significar e anunciar na Igreja a glória do
mundo futuro.
Os religiosos, que podem ser leigos ou clérigos, revelam o rosto e o amor de Deus
no seu dia a dia, nas suas variadas atividades, na sua oração e no seu testemunho de
vida. O Vaticano II reconhece a riqueza deste modo de vida e o seu papel
fundamental na difusão da mensagem cristã no mundo e na construção do Reino (cf.
PC, n.º 25). Através do decreto conciliar, procura animar e renovar os diversos
institutos e as suas ações apostólicas a fim de darem uma resposta sempre mais
adequada às exigências de cada tempo e lugar.
Antes de começar o Concílio, foram enviadas a Roma 558 propostas sobre o tema
da vida consagrada. Uma comissão preparatória encarregou-se de as selecionar e de
redigir um texto inicial. Dos 202 parágrafos, restaram apenas 52, longamente
discutidos em assembleia, com cerca de 14 mil sugestões. Isso é o reflexo de uma
necessidade de renovação da vida religiosa, em muitos aspetos obsoleta e distante das
reais necessidades do povo cristão. O texto final apresenta 25 parágrafos e foi
aprovado a 28 de outubro de 1965, com 2321 votos a favor e 4 contra.
O «Proémio» apresenta os motivos desta urgente renovação: «Quanto mais
fervorosamente se unirem, portanto, a Cristo por uma doação que abraça a vida
inteira, tanto mais rica será a sua vida para a Igreja e mais fecundo o seu apostolado.»
(PC, n.º 1) Afirma que todos os consagrados, nas diversas formas e presentes ao
longo de toda a história do Cristianismo, são movidos pelo Espírito Santo e devem

27
ser testemunhas de Cristo e do Seu Evangelho.
Logo a seguir entra no tema da renovação, apresentando os seus princípios (n.º 2),
os critérios (n.º 3) e os agentes(n.º 4). Destacam-se as orientações para se voltar às
origens da vida cristã e à genuína inspiração dos fundadores e institutos, porém
sempre adaptando-as às novas condições dos tempos. Popularizou-se a expressão
“fidelidade criativa”, que significa exatamente a inculturação e atualização (adaptar o
modo de viver, orar e trabalhar às exigências da cultura, situação social e económica
e condições de cada membro), mas sem desvirtuar o espírito dos fundadores e o
sentido de ser da vida consagrada: seguir mais de perto Jesus Cristo.
O Concílio exorta também os religiosos a serem fiéis à sua missão específica,
dando sentido à causa pela qual nasceram, pois cada instituto religioso surge para
responder a uma necessidade específica da Igreja e do povo. Surgem para atender a
uma carência e ser a presença de Cristo naquela realidade específica: educação,
auxílio aos doentes, missões, comunicação social, etc.
No n.º 5 temos o elemento comum de todas as formas da vida religiosa:
«Renunciando ao mundo, viverem exclusivamente para Deus.» Para tal é preciso
saber conciliar a contemplação com o amor apostólico, dando primazia à vida
espiritual (n.º 6). Os n.os 7-11 recordam a especificidade de cada modo de viver a
consagração: vida apostólica, vida conventual, vida laical, institutos seculares.
Os votos feitos pelos religiosos é o tema abordado a seguir. Diante da sociedade
contemporânea, que difunde e exalta uma série de contravalores, a vivência dos
conselhos evangélicos através dos votos públicos assume um desafio ainda maior e
por isso mais louvável. Os que assumem a vida religiosa devem ser animados e
reconhecidos como exemplo de vida. Segundo dados da Santa Sé divulgados em
2010, os religiosos em Portugal são pouco mais de sete mil (972 padres, 312 irmãos
e5965 irmãs), a maioria já idosa. A falta de vocações é provavelmente o maior
desafio da vida consagrada hoje. No último relatório apresentado pelo Vaticano, que
apontou um crescimento no número de batizados, padres e seminaristas na
últimadécada, a vida religiosa foi a única que decresceu. De 2008 para 2009 foi
registada uma diminuição de 1,3%, ou seja, cerca de 10 mil religiosos no mundo.
Atualmente, em todo o mundo são729 370 irmãs consagradas e 135 590 religiosos, o
que corresponde a cerca de apenas um consagrado em cada grupo de 1360 batizados.
Mas voltemos à Perfectae caritatis. O seu parágrafo 12 trata da castidade,
provavelmente o elemento mais polémico e incompreendido da vida consagrada.
Viver a castidade significa viver a sexualidade segundo os princípios da fé e é uma
virtude exigida de todos os batizados. Para os religiosos, a castidade, através do
celibato, visa ter um coração indiviso para Deus e viver intensamente o amor fraterno
e a caridade. Não é uma negação da sexualidade e do casamento, mas a procura de
uma doação total a Deus e à missão.
A pobreza é abordada no n.º 13 e significa a renúncia dos bens materiais em favor
de uma vida onde tudo esteja em comum, a exemplo das primeiras comunidades
descritas no Livro dos Atos dos Apóstolos 2,42-47 (este é também o tema da PC, n.º
15). No n.º 14 temos a obediência, sinal de humildade, prontidão e total dedicação ao

28
Evangelho.
A seguir o documento apresenta uma série de orientações práticas referentes à vida
em comum (n.º 15), à clausura(n.º 16), ao hábito religioso (n.º 17), à formação (n.º
18), à fundação de novos institutos (n.º 19), às obras apostólicas(n.º 20), aos institutos
decadentes (n.º 21), às uniões de institutos (n.º 22), às conferências de religiosos (n.º
23) e às vocações (n.º 24).
Muitos destes temas foram posteriormente retomados pela exortação apostólica de
João Paulo II após o sínodo do bispos que tratou da «Vida consagrada e a sua missão
na Igreja e no mundo», em outubro de 1994. O documento Vita consecrata apresenta
uma bela atualização do Concílio e insiste na renovação constante dos institutos,
adaptando-se às exigências dos tempos, e na necessidade de se promoverem as
vocações.
Muitos desafios são lançados hoje à vida consagrada, tais como a falta de valores, a
falta de compromisso, a instantaneidade, a negação dos princípios cristãos e da Igreja
enquanto instituição. É neste contexto que a consagração recebe mais destaque e
exige maior força, para que o seu testemunho seja mais eficaz e frutífero. O
testemunho de vida e de ação apostólica é o melhor convite a abraçar e a respeitar a
vida religiosa, por isso todos os consagrados são convocados a trabalhar com
empenho para a edificação e o crescimento do Corpo Místico de Cristo e o bem da
Igreja (cf. Christus Dominus, n.º 33).
Todos os religiosos, portanto, difundam no mundo inteiro a Boa Nova de Cristo, pela integridade da sua fé,
caridade para com Deus e para com o próximo, amor à cruz e esperança da glória futura, a fim de que o seu
testemunho seja visível a todos e glorificado o nosso Pai que está nos céus. (PC, n.º 25)
Com este convite conciliar encerramos nossa reflexão sobre a vida religiosa e já
apresentamos a temática do próximo capítulo: a atividade missionária da Igreja.

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VIII. Gravissimum educationis
Princípios para a educação cristã
Q uando falamos em educação, uma avalanche de pensamentos toma conta da
nossa mente, pois educar é um termo muito complexo e significativo. As definições
são imensas. Algumas mais objetivas como «educar é ensinar e aprender», outras
mais profundas como «educar é transmitir valores; é formar para os valores essenciais
da vida humana; é transmitir, pela exemplificação, valores de defesa da vida, direitos
humanos, preservação ambiental, justiça social, cooperação, fraternidade, igualdade e
solidariedade». Ou ainda algumas mais poéticas como «edu-car é cultivar, é fazer
sonhar, é semear». O que é certo é que educar é muito mais do que transmitir
conhecimentos.
Este é o ponto de partida da Declaração Gravissimum educationis (GE), documento
no qual o Vaticano II reconhece a importância da educação cristã em todos os tempos
e sociedades e estabelece os seus fundamentos e diretrizes. Aponta a quem compete
assegurá-la e a que meios recorrer, destacando sempre as escolas católicas de vários
níveis.
A ideia que perpassa este documento é a de que educar não é simplesmente propor
conteúdos externos, mas sim desenvolver de dentro para fora, cultivando o dom da fé,
solidificando os valores evangélicos, fortalecendo o processo de humanização e
personalização, promovendo a felicidade e a realização pessoal. Algo que o grande
educador brasileiroPaulo Freire conceituou belamente com a afirmação de que
«educar é construir» e «educar é um ato de amor».
A Gravissimum educationis, «Declaração sobre a educação cristã», foi o resultado
de sete reformulações do texto original preparado pela comissão presidida pelo
cardeal Pizzardo. Inicialmente dirigido apenas às escolas católicas, englobou também
as universidades e teve um carácter muito mais aberto, sendo analisado e aprovado
com 2290 votos a favor contra apenas 35 contra, a 28 de outubro de 1965.
Logo no «Proémio», o documento destaca que «educar é uma questão urgente» e
que esta declaração é fruto de uma atenta consideração à importância da educação
cristã e à sua influência no progresso humano e social. Pretende-se assim enunciar
alguns princípios fundamentais sobre a educação cristã, algumas linhas operativas,
que posteriormente devem ser refletidas e aprofundadas pelos pais, educadores,
clérigos.
A seguir, é enfatizado o direito universal à educação (GE, n.º 1). É uma
confirmação da Declaração dos Direitos Humanos, estabelecida pela ONU em 1948
(art. 26.º, n. 1), reafirmado pelo Pacto Internacional sobre os direitos civis, políticos,
económicos, sociais e culturais de 1966 (art. 13.º, n.º 1) e pela Constituição da
República Portuguesa (art. 36.º, n.º 5; 43, n.º 2; 67; 68, n.º 1; 73 e 74). Este direito
compreende principalmente «favorecer o desenvolvimento harmonioso das

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qualidades físicas, morais e intelectuais das crianças», ou seja, educar para os valores,
para a responsabilidade e a fraternidade. Uma formação integral, sem fragmentar o
ser humano como muitas vezes acontece com uma legislação ou projetos pedagógicos
deficientes.
O documento prossegue abordando o aspeto da fé (GE, n.º 3), com destaque para a
catequese (GE, n.º 4) e para a família (GE, n.º 3). Os primeiros e principais
educadores são os pais, destaca o Concílio. A sociedade civil deve garantir a
educação, mas cabe à família escolher como o filho deve ser educado e dar-lhe as
primeiras e fundamentais noções sobre a cultura, a fé, o conhecimento, os valores.
Cada vez mais se tem chamado a atenção para a diferença de papéis exercidos pela
família e pela escola no processo educativo. É tarefa específica da escola transmitir a
cultura, no respeito pela diferença e pela liberdade; completar e desenvolver os
valores da personalidade; e promover uma educação para a inserção na vida social e
profissional e para o exercício responsável da cidadania.Porém, é função da família,
enquanto comunidade fundada no amor, educar para o amor e para a fé: transmitir os
valores da comunhão, da responsabilidade, da fraternidade, da solidariedade, da
sociabilidade, da afetividade, preparando para uma integração social ativa e
responsável, sempre respeitadora dos direitos de todos.
Ao Estado compete unicamente garantir o acesso à educação. Em hipótese alguma
o Estado pode assumir poderes que não lhe convém, ignorando os direitos da família
e da escola. Não pode definir projetos educativos sem considerar o desejo dos pais.
A catequese deve funcionar como um importante suporte aos pais, pois revela o
múnus de educar da Igreja. Ela deve ter em vista transmitir a Palavra de Deus a fim
de formar discípulos de Cristo.
A Gravissimum educationis toca também no tema da educação moral e religiosa
nas escolas, destacando que o testemunho de vida é sempre o principal educador (GE,
n.º 7). Esta é uma questão muito pertinente e atual que deveria ser refletida com
carinho pelos pais e educadores católicos.
O corpo principal do documento conciliar (n.os 8 a 12), no entanto, trata das
escolas católicas. Em Portugal são cerca de 185 instituições de ensino nomeadamente
católicas.Se considerarmos todos os centros escolares que são propriedade da Igreja
ou são dirigidos pelos seus membros este número é muito maior: há 793
estabelecimentos até à primária, 80 secundários e 26 institutos superiores, além da
Universidade Católica, servindo um total de quase 130 mil alunos, um número
bastante significativo. Ao longo da história da Igreja, a escola teve um papel de
destaque, «surgindo sempre como resposta às exigências das classes menos
favorecidas do ponto de vista social e económico» e caracterizando-se «como lugar
de educação integral da pessoa humana através de um projeto educativo claro que
tem o seu fundamento em Cristo», como afirma a Sagrada Congregação para a
Educação Católica.
Esta mesma congregação alerta para os novos desafios criados pelo contexto
sociopolítico e cultural do início do terceiro milénio: a crise de valores. É dever das
escolas católicas, «animadas pelo espírito evangélico de liberdade e caridade» (GE,

31
n.º 8), oferecer saídas a esta crise. Elas têm um dever moral, o compromisso com o
Evangelho, e por isso devem defender os valores e princípios cristãos, como bem
fizeram recentemente ao declarar-se contra a distribuição de preservativos aos alunos
pelo Estado, ou diante da polémica sobre o uso de crucifixos nas salas de aula. É
necessário que se saibam afirmar de maneira eficaz, persuasiva e atual, apontando
renovações sempre responsáveis e conscientes. Diante da crise de valores, nada
melhor do que propor uma educação de qualidade, com princípios e valores, atenta ao
desenvolvimento integral da pessoa, com as suas habilidades e competências, e à
formação de cidadãos com fundamentos éticos válidos para a vida feliz e
comprometida.
A declaração conciliar continua, descrevendo os tipos de escolas católicas (GE, n.º
9) e as universidades: «A universidade católica deve efetuar uma presença pública,
estável e universal do pensamento cristão em todo o esforço dedicado à promoção da
cultura superior.» (GE, n.º 10) São incentivadas as fundações de Universidades
Católicas, que devem ser marcadas pela excelência no ensino e na pesquisa.
O Concílio chama a atenção também para as faculdades de ciências sagradas, pois
a elas se confia a educação dos futuros sacerdotes e dos professores de religião e
moral. Elas têm assim grande responsabilidade. Por fim, menciona a coordenação das
escolas católicas. Já existem muitas associações regionais e nacionais, mas deve ser
sempre mais favorecido o intercâmbio de experiência e a mútua colaboração. Os
diversos institutos que têm a educação como carisma específico têm aqui um papel
importante, devendo impor-se a fim de dar visibilidade e notoriedade à educação
cristã frente a uma sociedade laicizada.
A principal riqueza deste documento é apontar caminhos para uma educação
integral, que leve em consideração todos os aspetos do ser humano e favoreça um
crescimento saudável e pleno da criança e dos jovens. A Igreja tem um papel
importante na educação, por isso a catequese e as escolas católicas devem apresentar
um serviço de excelência, sempre atual no que se refere aos métodos e sólida quanto
aos conteúdos e valores.

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IX. Inter mirifica
A comunicação ao serviço do Evangelho
A comunicação é uma necessidade básica do ser humano. Desde a sua origem, o
ser humano procurou trocar informações e manifestar os seus desejos, pensamentos e
sentimentos. Com a evolução e o surgimento de novas técnicas, a comunicação
tornou-se mais sofisticada, aprimorando os seus métodos e dando origem a novas
possibilidades.
Comunicação, no entanto, é um termo amplo. Engloba desde as relações
interpessoais diretas até a relação intermediada por instrumentos técnicos. O termo
original, do latim, remete para a ideia de comunhão, partilha, relação,
troca.Posteriormente adquiriu o conceito atual de difusão, transmissão de informação,
processo, transformando-se num valor predominante na cultura contemporânea. Em
todos os momentos, porém, o objetivo é sempre o mesmo: aproximar as pessoas;
partilhar ideias, emoções, sensações. Visa sempre a busca do outro, um encontro, um
diálogo entre emissor e recetor. A comunicação constrói o mundo cultural. Constrói e
modifica a própria realidade, pois ao mesmo tempo que é uma experiência humana
fundamental, é um desafio constante de contribuir para a verdadeira comunhão e não
para a dispersão. Para a edificação do ser humano e do conhecimento e não para a
simples satisfação individual.
Quando falamos em comunicação social, percebemos melhor a evolução da
comunicação. Não é por acaso que o Concílio Vaticano II determinou tais meios
como «algo maravilhoso», apontando desde o primeiro parágrafo a sua importância e
beleza: «Entre as maravilhosas invenções da técnica que, principalmente nos nossos
dias, o engenho humano extraiu, com a ajuda de Deus, das coisas criadas, a santa
Igreja acolhe e fomenta aquelas que dizem respeito, antes de mais, ao espírito
humano e abriram novos caminhos para comunicar facilmente notícias, ideias e
ordens. Entre estes meios, salientam-se aqueles que, pela sua natureza, podem atingir
e mover não só cada um dos homens mas também as multidões e toda a sociedade
humana, como a imprensa, o cinema, a rádio, a televisão eoutros que, por isso
mesmo, podem chamar-se, com toda a razão meios de comunicação social.» (Inter
mirifica, n.º 1)
Antes de analisarmos o documento conciliar, porém, é importante percebermos a
evolução da comunicação social. Apesar de a história da comunicação se confundir
com a história humana, a comunicação de massa é um fenómeno recente. Muitos
atribuem o seu início a Gutenberg, aquando da invenção da imprensa. Os livros
produzidos em série a partir do século xv e os primeiros jornais no século xvii foram
logo recebendo novos companheiros: o cinema, no fim do sécu-lo xix, o rádio e
depois a televisão, no início do século xx.A Igreja, porém, acompanhava tais meios
com desconfiança, permitindo assim que muitas pessoas os utilizassem para fins

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pouco virtuosos.
O surgimento do Decreto Inter mirifica (IM) foi como que uma necessidade para
orientar os cristãos e convocá-los ao reto uso dos meios de comunicação. Foi uma
maneira de reconhecer a importância da comunicação de massa como meio capaz de
movimentar indivíduos e sociedades e o seu valioso auxílio para o desenvolvimento
do ser humano e para a evangelização (cf. IM, n.os 1-3). Os bispos sentiam como que
seu dever tratar de tais temas, por isso foi o segundo documento aprovado pelo
Concílio, com 1960 votos a favor e 164 contra. Do projeto inicial de 114 parágrafos e
40 páginas restaram apenas 24 parágrafos e 2 capítulos: «Normas para o reto uso dos
meios de comunicação» e «Os meios de comunicação e o apostolado católico».
O capítulo i aborda temas variados e mais genéricos. Logo no início, os bispos
reconhecem que utilizar tais meios para a evangelização é um dever da Igreja, mas
sempre respeitando o seu código moral e reto uso, nos conteúdos, na finalidade, no
público e assim por diante (IM, n.os 3-4). Deve também contribuir para formar uma
reta opinião pública, pois todos têm direito à informação e à verdade (IM, n.os 8 e 5).
Especial atenção deve ser dada aos jovens, mas traça linhas orientadoras para todos
os recetores e autores, aos quais cabem as principais obrigações morais, pois são os
responsáveis pelos media (IM, n.os 9-11). Por fim alertam-se as autoridades civis
para os seus deveres de controlar abusos, garantir a liberdade de expressão, favorecer
as boas iniciativas e defender o recetor.
Os meios de comunicação ao serviço da missão católica é o tema central da
segunda parte do documento, constituída por outros dez parágrafos que incentivam e
orientam o seu uso para o apostolado, para promover a boa imprensa, uma
comunicação com valores e dignidade (IM, n.os 13-14). A Igreja deve preocupar-se
com a formação dos autores para poderem dirigir as produções e emissões. Deve ter
meios de comunicação próprios, o que incentivou a criação de jornais, emissoras e
programas radiofónicos e televisivos, livros, peças teatrais, filmes, etc. Deve
preocupar-se também com a educação dos recetores, para que sejam sempre mais
críticos e seletivos (IM, n.os 15-16).
O Inter mirifica tem um valor profundo por ser o primeiro documento pontifício a
tratar da comunicação de massa e também por apontar para várias iniciativas que ao
longo dos anos foram se concretizando: criação do secretariado pontifício e
secretariados nacionais, do Dia Mundial da Comunicação Social, de instruções
pastorais e de associações internacionais.
Todos os anos, para o Dia Mundial da Comunicação, celebrado no domingo da
Ascensão, o Papa publica uma mensagem. É uma forma de atualizar o conteúdo do
Vaticano II e de o adaptar às novas descobertas e comportamentos humanos. Nos
últimos anos, Bento XVI tem abordado questões ligadas às novas tecnologias digitais
e às mudanças que elas estão a provocar no modelo de comunicação e nas relações
humanas. Na época do Concílio, a informática era instrumento em teste pelos
militares e o digital ainda um bebé. Porém, todas as novas tecnologias estavam
previstas e incluídas nas orientações do decreto, o que possibilita tais atualizações.
Outra forma de atualizar a mensagem do Vaticano II são as instruções pastorais,

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exigidas pelo Inter mirifica, n.º 23.A primeira instrução elaborada pelo Conselho
Pontifício para as Comunicações Sociais foi a Communio et progressio, em 1971.
Depois vieram a Aetatis novae, em 1992, e O rápido desenvolvimento, de João Paulo
II, em 2005. O objetivo é sempre o de renovar o compromisso da Igreja com a
evangelização através dos meios de comunicação, pois, como afirmou Karol Wojtyła
na sua carta de 2005,
nos meios de comunicação, a Igreja encontra um precioso auxílio para difundir o Evangelho e os valores
religiosos, promover o diálogo e a cooperação ecuménica e inter-religiosa, bem como para defender os
princípios sólidos e indispensáveis para a construção de uma sociedade respeitadora da dignidade da pessoa
humana e promotora do bem comum. Emprega-os, de bom grado, para informar a seu próprio respeito e
alargar os meios de evangelização, de catequese e de formação, considerando a sua utilização uma resposta
ao mandamento do Senhor: «Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura.» (Mc 16,15)
É sempre oportuno e cada vez mais necessário refletir sobre os desafios que a
comunicação constitui para os cristãos.A Igreja é chamada não simplesmente a
utilizar tais meios, mas a oferecer o seu apoio para que eles se desenvolvam de forma
sadia e frutífera, colaborando para o progresso das almas, «para recrear e cultivar o
espírito, para propagar e firmar o reino de Deus» (IM, n.º 2). O protagonismo
atribuído aos meios técnicos tende muitas vezes a sabotar o verdadeiro significado da
comunicação, que é unir as pessoas, fazer com que elas se aproximem. A técnica
tende a tomar o lugar das pessoas, e é isso que devemos combater com o exemplo
cristão.
Muitos passos já foram dados na utilização destes instrumentos para a informação
religiosa, a evangelização e a catequese, mas muito ainda há para fazer. É preciso
«fazer a todos a caridade da verdade», como afirmava o beato Tiago Alberione,
fundador da Família Paulista e um dos pioneiros da evangelização com os meios de
comunicação. Alberione tinha muito clara a importância destes meios para a difusão
do Evangelho, inspirado por São Paulo e a sua forma inovadora de evangelizar: as
cartas. Dizia que as pessoas têm sede de verdade, estão carentes da verdade, por isso
é dever da Igreja realizar tal obra de caridade. Fundou, em 1914, os Paulistas, com o
objetivo de serem verdadeiros apóstolos da comunicação, pois tinha a consciência de
que «o apostolado das edições é uma verdadeira missão», como definiu no seu livro
Apostolado das Edições, de 1944, vinte anos antes do Inter mirifica. Ali o beato
Alberione afirma que «a edição tem por objeto de apostolado o mesmo da pregação
oral: a sagrada escritura, a tradição e a doutrina católica (fé, moral e culto)» e por isso
«é apóstolo também aquele que escreve, imprime e difunde a Palavra de Deus».
Pregar a Palavra de Deus na cultura da comunicação é um desafio e uma
necessidade cada vez mais atual e talvez a forma mais eficaz de chegar ao Homem
moderno e à chamada “geração digital”. Que muitas novas iniciativas sejam tomadas
neste campo, sempre em sintonia com o que nos afirma o Concílio: «A Igreja católica
considera seu dever pregar a mensagem de salvação servindo-se dos meios de
comunicação social e ensinar aos homens a usar retamente estes meios.» (IM, n.º 3)

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X. Dignitatis humanaee Nostra aetate
O caminho do respeito pelas diferençase pela unidade
religiosa
A s quatro constituições dogmáticas do Vaticano II apresentadas acima são como
que uma árvore, para fazer memória às palavras de D. Manuel de Almeida Trindade,
que foi bispo de Aveiro, sobre o Concílio:
O tronco é a Igreja na sua constituição essencial: luz das gentes (Lumen gentium). As raízes são a Sagrada
Escritura (fonte constitutiva) e as Tradições (fonte interpretativa): Dei verbum. A seiva é a Oração (de
modo particular a Liturgia) que mantém vivo o tronco: Sacrosantum Concilium. A casca é o contacto da
Igreja com o mundo, do qual ela deve constituir a Alegria e a Esperança (Gaudium et spes).
Agora entramos num novo espaço, as declarações e os decretos, que tratam de
assuntos importantes, mas não são essenciais. São como que ramificações das
constituições. Vamos iniciar este tema conhecendo as declarações sobre a liberdade
religiosa (Dignitatis humanae) (DH) e sobre o diálogo com as religiões não cristãs
(Nostra aetate) (NA), duas das três constituições. No capítulo viii já analisámos a
terceira, sobre a educação cristã (Gravissimun educationis).
A Declaração Dignitatis humanae foi um dos textos mais discutidos e alterados do
Concílio. Isso deve-se ao delicado tema que aborda, mas principalmente à grande
transformação de mentalidade que trouxe. Ela contribuiu de forma decisiva para a
mudança de atitude e superação de uma visão tradicional do magistério com respeito
às outras tradições religiosas, passando-se a ver o lado positivo das religiões não
cristãs. Representa a revisão da teoria de exclusividade da verdade que serviu para
justificar séculos de intolerância. Os princípios expostos neste documento constituem
um pressuposto essencial e estruturante para a dinâmica ecuménica e inter-religiosa
concretizada pela Igreja nos anos posteriores.
O capítulo i da declaração trata dos aspetos gerais da liberdade religiosa. Logo no
segundo parágrafo afirma: «O Concílio declara que a pessoa humana tem direito à
liberdade religiosa.» Cada um tem o direito de procurar a verdade em matéria
religiosa de modo a formar juízos de consciência retos e verdadeiros. Nenhum
indivíduo ou comunidade religiosa deve ser coagido por qualquer pessoa ou grupo.
Em muitos países vemos estes direitos desrespeitados, quer seja por parte dos
cristãos, quer por parte de outras religiões. São inúmeros os casos de agressão e de
desrespeito à liberdade religiosa no mundo. Anualmente, a Ajuda à Igreja que Sofre,
a Missão Portas Abertas e o próprio Governo dos EUA apresentam relatórios que
apontam que os cristãos são os mais perseguidos no mundo. Atualmente, um em cada
dez cristãos no mundo sofre algum tipo de perseguição, o que é preocupante. O
documento chama a atenção para o papel do governo civil na garantia do direito à
liberdade religiosa, uma vez que a liberdade religiosa é um direito universal,
especificado no art. 18.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

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Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade
de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela
prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
O Governo deve garantir e promover a liberdade religiosa, que está também
associada à responsabilidade social (cf. DH, n.º 8).
No capítulo ii, a temática da liberdade religiosa é abordada à luz da revelação. Nele
vemos expresso o princípio teológico de que a resposta à revelação é sempre um ato
livre e pessoal. A fé é esta resposta, e por isso pode ter muitas variantes. Enfatiza,
porém, que a Igreja Católica segue o caminho de Cristo na promoção da paz e da
liberdade e que os cristãos devem dar exemplo de respeito pela liberdade religiosa.
Assim como as constituições analisadas mostram uma grande abertura e diálogo da
Igreja com o mundo moderno, vemos aqui a abertura ao diálogo com as outras
religiões, que fica ainda mais claro nos decretos Orietalium ecclesiarum e Unitatis
redintegratio, sobre o ecumenismo, e na Nostrae aetate, sobre a relação com as
religiões não cristãs. Este é o menor dos documento do Vaticano II, com apenas 5
números, e foi aprovado com 1763 votos a favor, 250 contra e 10 nulos.
A Declaração Nostrae aetate inicia com a reflexão de que em todos os povos e em
todos os tempos há uma busca da Divindade Suprema, o Absoluto, e todas as
religiões têm algo em comum, pois procuram respostas para questões existenciais da
condição humana: O que é o Homem? Qual é o sentido e o fim da vida? Qual é o
caminho para chegar à felicidade? Etc.
Depois prossegue com uma breve descrição do hinduísmo (NA, n.º 2), do budismo
(NA, n.º 2), do islamismo (NA,n.º 3) e do judaísmo (NA, n.º 4). A nova relação com
os judeus foi decisiva para a origem da presente declaração. O teólogo Faustino
Teixeira afirma que o encontro de João XXIII com Jules Isaac, historiador judeu, em
junho de 1960, foi um momento importante na génese deste documento.
Isaac sensibilizara-se com o gesto de João XXIII de abolir em 1959 as fórmulas negativas presentes no
ritual romano sobre os judeuse muçulmanos, até então definidos como “pérfidos”. Até ao memorável
encontro não estava nos planos do Papa a previsão de uma reflexão do Concílio sobre o tema do judaísmo e
do antissemitismo e muito menos de um documento sobre as outrasreligiões.
A conclusão da Nostrae aetate convoca todos para promoverem o diálogo fraterno
e o mútuo conhecimento e estima; e afirma que a Igreja reprova qualquer tipo de
discriminação e de perseguição. Introduziu uma significativa mudança na forma de
tratamento, passando a vigorar o respeito e o acolhimento.
Este documento carece de bases doutrinais e de perspetivas teológicas mais
aprofundadas, mas adequa-se perfeitamente ao espírito pastoral do Concílio,
traduzindo uma visão mais aberta sobre o mundo e mais otimista com respeito à
dinâmica de salvação. Neste sentido, conseguiu promover uma mudança de
perspetiva, conduzindo à compreensão, à estima, ao diálogo e à mútua cooperação.
Até ao Concílio era muito forte a visão medieval de que «fora da Igreja não há
salvação». O Vaticano II não retoma esta afirmação, apesar de também não a negar.
Mantendo a convicção da centralidade de Cristo na História da Salvação, reconhece o
valor e os elementos positivos das religiões. Antes via-se as outras religiões como
obstáculo a vencer. Agora abre-se espaço ao diálogo, adotando-se as perspetivas da

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praeparatio evangelica – no plano da pedagogia divina as outras religiões são situa-
das como preparação ao Evangelho. Há no documento muita cautela: não assume o
valor salvífico das outras religiões, mas respeita a parcela de verdade presente em
cada uma delas.
Os documentos conciliares foram o ponto de partida necessário para promover o
diálogo e o respeito cada vez mais necessário e exigido no mundo atual composto por
cerca de 2100 milhões de cristãos, 1300 milhões de muçulmanos, 900 milhões de
hindus, 400 milhões de seguidores das religiões tradicionais chinesas, 380 milhões de
budistas, 23 milhões de siques e 15 milhões de judeus. Para nos motivarmos ainda
mais para o diálogo, recordemos as palavras do teólogo dominicano francês Claude
Geffré:
Um diálogo bem conduzido leva à maior estima e consideração da própria identidade, a ponto de sublinhar
melhor a originalidade.O diálogo inter-religioso deve ser considerado como autêntico sinal de esperança,
como uma conversão espiritual e uma cumplicidade entre as grandes tradições religiosas.

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XI. Orientalium ecclesiarume Unitatis
redintegratio
Incentivo ao ecumenismo
A promoção da unidade entre todos os cristãos é um dos principais propósitos do
Vaticano II, pois em Cristo somos todos irmãos. Um dos principais documentos do
Vaticano II, a Lumen gentium, que trata basicamente da constituição da Igreja (o que
é a Igreja), foi aprovado a 21 de novembro de 1964. Neste mesmo dia foram
aprovados outros dois documentos importantes: o Decreto Orientalium ecclesiarum
(OE), sobre as Igrejas Orientais Católicas, e o Unitatis redintegratio (UR), sobre o
ecumenismo. Isso é muito significativo e demonstra uma grande preocupação do
Concílio com a unidade de todos os cristãos. Além da mudança de olhar sobre a
própria conceção, a Igreja procurava assim um novo relacionamento com as nossas
Igrejas irmãs.
Ecumenismo é um movimento entre diversas denominações cristãs na busca do
diálogo e cooperação comum, buscando superar as divergências históricas e culturais.
O termo provém do vocábulo grego oikoumene, derivado da palavra oikos, que
significa casa, lugar onde se vive, espaço onde se desenvolve a vida doméstica, onde
as pessoas encontram o seu bem-estar. No Novo Testamento, esta palavra é usada em
várias ocasiões para se referir ao “mundo inteiro”, a “toda a terra”, e também ao
“mundo vindouro”. No sentido tomado pelo Concílio, o termo “ecuménico”
representa a unidade da Igreja de Cristo que vai além das diferenças geográficas,
culturais e políticas entre as diversas Igrejas.
Como muitos outros documentos do Vaticano II, o que transparece nestes dois
decretos é o esforço de procurar a unidade na diversidade, de compreender a Igreja
enquanto relação e não como sociedade perfeita. A Igreja enquanto Povo de Deus e
Corpo de Cristo procura dialogar para promover sempre mais a comunhão deste
único Corpo, conforme nos ensina São Paulo: «Há um só corpo e um só espírito,
assim como fostes chamados a uma só esperança: há um só Senhor, uma só fé, um só
batismo.» (Ef 4,4-5)
O Decreto Unitatis redintegratio teve uma gestão bastante complicada e demorada.
Passou por várias fases de trabalho e enfrentou muitas intervenções, observações e
questões relativas à linha a ser seguida até ser aprovado com 2137 votos a favor e 11
contra.
Logo no seu «Proémio» vemos expresso o desejo do Vaticano II em restaurar a
unidade entre os cristãos, pois a divisão contradiz o desejo e o ensinamento de Cristo.
A união de todos os cristãos é um testemunho saudável para a sociedade e gera
ótimos frutos na difusão do Evangelho e do nome de Jesus Cristo no mundo.
Dividido em três capítulos, o documento começa abordando os princípios católicos

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do ecumenismo, que tem as suas bases na teologia paulina: há um só Senhor, uma só
fé, um só batismo. O Concílio recorda que Cristo atribuiu aos Doze a função de
ensinar, governar e santificar, tendo Pedro como centro (UR, n.º 2). Desde os
primórdios houve cisões na Igreja (cf. por exemplo 1Cor 11,18-19 e Gl 1,6-9). Ao
longo da história, porém, houve grandes cisões, as quais o movimento ecuménico
procura unir, superando obstáculos doutrinais e disciplinares. Os passos dados pelo
Concílio são importantes, pois as Igrejas separadas são reconhecidas como «meios de
salvação» onde Deus age e incentiva à comunhão através da ação ecuménica (UR,
n.os 3-4).
O capítulo ii é reservado à prática do ecumenismo, que deve ser uma preocupação
de todos os cristãos. O desejo de unidade deve partir do íntimo de cada cristão, «do
coração» (UR, n.º 7). Para tal é preciso que se incentive uma formação ecuménica e
uma mentalidade de comunhão e não de cisão como prevaleceu durante séculos,
vendo os irmãos separados como hereges ou inimigos da verdadeira fé. Todos os
cristãos devem dar testemunho do Evangelho, sendo o primeiro passo a oração em
comum (UR, n.º 8).
Por fim, o Decreto Unitatis redintegratio tece algumas considerações gerais para
uma ação ecuménica prudente e eficaz (capítulo iii, n.os 13-23). Ali são abordados
diversos elementos históricos, teológicos, espirituais, organizacionais e doutrinais das
igrejas e comunidades eclesiais separadas da Sé Apostólica Romana. O objetivo é
destacar pontos que auxiliem, possibilitem e fortaleçam o diálogo e a comunhão. Por
exemplo,reconhece nas Igrejas Orientais (Ortodoxa) a profunda tradição litúrgica, a
autonomia para se governar, a teologia enraizada na Escritura e na Tradição. Das
Igrejas separadas ocidentais destaca o forte estudo da Escritura, a centralidade de
Cristo e o único batismo.
Sobre a Igreja Oriental ocupa-se também o Decreto Orientalium ecclesiarum,
aprovado após três apresentações e cerca de 200 intervenções com 2110 votos a favor
e 39 contra. O documento procura mostrar o apreço e reconhecimento da Igreja
Católica em relação à Igreja Ortodoxa.
Numa estrutura muito simples, apresenta questões relacionadas com os ritos: a
variedade de ritos não ameaça a unidade, ao contrário, enriquece a Igreja (n.º 2); com
os direitos e obrigações das igrejas particulares (n.º 3); com o património espiritual da
Igreja Oriental, que deve ser conservado, pois enriquece a Igreja Universal (n.os
5-6); com os patriarcas (n.os 7-9);com a disciplina dos sacramentos, onde se
reconhece a autoridade dos padres ortodoxos em ministrar sacramentos aos católicos
e vice-versa (n.os 12-18); com o culto divino (n.os 19-23); e com a boa convivência
entre todos os cristãos (n.os 24-29).
Enfim, há um compromisso para que se promova sempre mais a colaboração mútua
e a unidade, concretizando a ordem de Cristo de «amar a Deus sobre todas as coisas e
ao próximo como a si mesmo». A semana de oração pela unidade, celebrada
anualmente no mês de janeiro, é uma boa oportunidade para os que desejam estreitar
os laços de unidade com os membros de outras Igrejas cristãs. Igualmente o Conselho
Português de Igrejas Cristãs (COPIC), constituído pela Igre-ja Presbiteriana, a Igreja

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Lusitana (comunhão Anglicana), aIgreja Metodista e pela Igreja Ortodoxa, procura
manter a chama do Concílio sempre acesa, promovendo diversas atividades que
visam uma boa convivência entre todos os seguidores de Cristo.
Numa sociedade fortemente marcada pelo secularismo e pela recusa constante das
suas origens cristãs, é de fundamental importância a união entre todas as igrejas, a
fim de se fortalecerem mutuamente na fé, compartilhar experiências e buscar
alternativas viáveis para a construção de um mundo novo. Este é o objetivo principal
da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, celebrada desde 1908 entre os dias
18 e 25 de janeiro.
Ao celebrar a unidade, é preciso também recordar e ser solidários com todos os que
ainda hoje são perseguidos e mortos por causa da fé cristã. Um em cada dez cristãos
no mundo sofre atualmente alguma forma de perseguição. Os recentes atentados no
Iraque, na Índia, no Paquistão e no Egito demonstram que precisamos nos manifestar
em defesa destas comunidades. A situação atual no Sudão também nos deve deixar
preocupados e atentos, pois teme-se um novo genocídio contra as minorias cristãs do
sul do país que procuram a independência do norte, onde a maioria muçulmana tem
levado a cabo um processo de islamização da sociedade.
Diante deste panorama delicado e desanimador, somos convidados a reflectir sobre
a nossa atitude e posicionamento diante desta perseguição direta ou indireta contra os
cristãos e os valores evangélicos. Não há dúvida de que a reação (ou omissão) que os
cristãos tiverem agora definirá o futuro da fé e da sociedade.

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XII. Ad gentes
A Igreja missionária
«I de pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a humanidade» (Mc 16,15)
foi a ordem que Jesus Cristo deu aos Seus discípulos e a toda a Igreja posterior. Os
cristãos de todos os tempos tomaram a sério esta ordem e partiram pelo mundo a fim
de evangelizarem os povos. O Vaticano II, fiel a este marco inicial, procurou atualizar
a ordem de Jesus, resgatando a disposição e o vigor dos primeiros cristãos para
fundamentar e incentivar a ação missionária comprometida, humanizante, libertadora,
global, descentralizada, inculturada e protagonizada também por leigos que
testemunhamos atualmente.
Anunciar o Evangelho de Jesus Cristo não é apenas mais uma atividade da Igreja,
mas é a sua razão de ser, conceito muito bem expresso pelo Concílio, que afirmou:
«A Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária, visto que tem a sua origem,
segundo o desígnio de Deus Pai, na missão do Filho e do Espírito Santo.» (Ad gentes,
n.º 2) A partir desta afirmação desenvolve-se toda a sua fundamentação teológica:
assim como a Igreja, a Missão também se funda na Trindade.
Provavelmente esta clareza de ideias só foi possível porque o Decreto Ad gentes
(AD) foi lançado na última fase do Concílio, bebendo da riqueza teológica dos
demais documentos, especialmente da Lumen gentium, de onde busca esta base
trinitária. O decreto sobre a atividade missionária da Igreja foi aprovado a 7 de
dezembro de 1965, com 2394 votos a favor e apenas 5 contra. Mas estes números não
revelam a grande discussão anterior, com as intervenções de cerca de 200 padres
conciliares, mesmo após cuidadosas e sucessivas redações. Após receber 177
propostas, uma comissão elaborou o texto, que ficou bastante jurídico, com
preocupação administrativa. O Concílio desejava algo mais teológico, de ordem
prática. O texto final, com 6 capítulos e 42 parágrafos, apresenta um equilíbrio entre
os dois extremos.
Logo no «Proémio», a Ad gentes apresenta a vocação missionária da Igreja:
A Igreja, enviada por Deus a todas as gentes para ser “sacramento universal de salvação”, por íntima
exigência da própria catolicidade, obedecendo a um mandato do seu fundador, procura incansavelmente
anunciar o Evangelho a todos os homens.
A Igreja, que é sal da terra e luz do mundo, é chamada a salvar e a renovar as
criaturas e a instaurar o Reino de Deus.
No capítulo i temos os princípios doutrinais, cujo fundamento é a Trindade. A
Missão da Igreja tem origem na missão do Filho e do Espírito Santo, que é fazer
todos os homens participarem da natureza divina. Aquilo que Ele ensinou e pregou
deve ser proclamado em toda a Terra, conforme nos relatam Mt 28,19-20 e Mc 18,15
(cf. AG, n.º 3). A Igreja tem por dever propagar a fé e a salvação em Cristo. Neste
capítulo vemos ainda o conceito de missão: ação de pregação aos povos com o fim de

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evangelizar e santificar. Segundo o missionário verbita Jorge Fernandes,
alguns membros da comissão eram claramente favoráveis a manter uma visão “geográfica” da missão,
entre eles Yves Congar. Outros diziam que não faz sentido falar das missões, mas sim da “missão” da
Igreja. A missão é a essência da Igreja. Não é algo que se possa separar dela.
A razão de ser da missão é uma só, ou seja, que todos os homens sejam salvos em
Cristo, único mediador (cf. 1Tm 2,4) e visa a que todos formem um só Povo de Deus,
se unam num só Corpo de Cristo e edifiquem um só Templo do Espírito (AG, n.º 7).
Daí ser a Missão o próprio agir de Deus na História (AG, n.º 9).
A temática da “obra missionária” é desenvolvida no capítulo ii. A Igreja deve
dirigir-se a todos. Primeiramente pelo testemunho cristão de vida e de caridade (AG,
n.os 11 e 12). Depois através da pregação do Evangelho e a reunião do povo de Deus
(AG, n.os 13 e 14). Segundo o documento, a atividade missionária deve seguir dois
momentos fundamentais: primeiro a implantação/começo e posteriormente o
crescimento e criação da Igreja local. Os missionários devem fazer nascera
assembleia de fiéis, formar o clero local, suscitar catequistas e religiosos (AG, n.os
15-18).
Com o progresso das missões, forma-se a Igreja local, tema do capítulo iii (AG,
n.os 19-22). Os missionários devem favorecer a maturidade em todos os setores da
vida cristã, seja na liturgia, na prática da justiça e da caridade, no serviço, na vida
familiar. Isto sempre sob a orientação do bispo e do Papa, responsáveis imediatos
pelas Missões.
Os missionários têm um papel de destaque no documento. A eles é dedicado o
capítulo iv (AG, n.os 23-27), onde se fala sobre a sua vocação (Cristo chama os
missionários sacerdotes, religiosos e leigos e suscita institutos), espiritualidade,
formação espiritual e moral (sejam homens de oração, virtude, sacrifício e saibam
inculturar-se), formação doutrinal e apostólica (sejam «nutridos com as palavras da fé
e da doutrina», 1Tm 4,6),e sobre os institutos (AG, n.º 28).
O capítulo v trata da organização da atividade missionária. A organização geral
está a cargo do corpo episcopal e da Congregação de Propaganda Fide (AG, n.º 29).
A organização local está a cargo do bispo; e a regional da conferência episcopal. Há
uma orientação para que os institutos estejam em sintonia entre si e sigam as
orientações dos bispos, além de obedecerem aos seus superiores. Neste capítulo há
ainda um belo conceito que resume a universalidade da Missão: como cada um possui
diferentes dons, os cristãos são chamados a colaborar na evangelização segundo os
seus próprios carismas e ministérios (AG, n.º 28). O Concílio convoca assim a uma
renovação interior para que todos tomemos consciência das próprias
responsabilidades na missão, tema que ocupará o capítulo vi.
É dever do povo de Deus (todos os fiéis) estar comprometido em expandir o seu
corpo e evangelizar na vida quotidiana (AG, n.º 36) e nas comunidades cristãs dar
testemunho de Cristo perante as nações (AG, n.º 37). É dever dos bispos, consagrados
para continuar a obra de Cristo de salvar o mundo todo, enviar missionários e
promover as missões (AG,n.º 38). É dever dos padres, como representantes de Cristo,
ensinar, governar e santificar o povo (AG, n.º 39). É dever dos institutos, parceiros
essenciais na obra missionária, converter as almas (AG, n.º 40) e dos leigos dar

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testemunho e acompanhar obras, suscitar vocações nas famílias e nas escolas, além de
oferecer doações (AG, n.º 41).
Além do modo trinitário de conceber a Missão, já assinalado acima, vemos aqui
uma grande renovação na prática das Missões, com um caminho de maior
protagonismo para as Igrejas locais, uma grande abertura ao comprometimento dos
leigos na missão universal, uma preocupação com o missionário e o povo
evangelizado, e acenos a questões culturais desenvolvidas em textos posteriores como
o Evangelii nuntiandi e a Redemptoris missio. Vários documentos desenvolvem os
temas presentes na Ad gentes, inclusive a mensagem anual do Papa, por ocasião do
Dia Mundial das Missões, celebrado no mês de outubro, tradicionalmente consagrado
como o mês das Missões.
Cada vez mais é importante recuperar a dimensão missionária da Igreja, muito bem
delineada pelo Vaticano II, que convoca todos os cristãos a serem missionários, pois
a todos nós compete continuar a obra de Cristo e dos Apóstolos de propagar o
Evangelho e edificar o Reino de Deus.
Em geral quando falamos em “missões” pensamos nos religiosos e religiosas que
são enviados a terras longínquas para evangelizar os povos que nunca ouviram a
Palavra de Deus. Recordamos as comunidades pobres da África ou os indígenas do
Brasil, ou ainda o povo sofrido da Ásia. Sim, tudo isso é trabalho missionário. Mas
não só! Toda a Igreja é missionáriae todos os cristãos são chamados a ser
missionários, mesmo que na sua própria comunidade.
Com as múltiplas transformações sociais do último século, todos os países
voltaram a ser terra de missão, pois perderam os laços religiosos que os sustentavam,
deixaram de ouvir e seguir o Evangelho. Como facilmente podemos constatar em
Portugal e no resto da Europa, a fé deixou de ser elemento constitutivo da sociedade.
Passou para segundo plano, ou terceiro. A religião foi deixada de lado, fazendo parte
apenas de alguns poucos momentos da vida. Muitos recordam-se de Deus somente
nos momentos de desespero, de doença ou mesmo diante da morte.
Este novo contexto em que vivemos exige uma nova postura da Igreja. Torna-se
muito atual o convite de Jesus a ir e fazer discípulos entre todos os povos,
ensinando-lhes a viver o Seu Evangelho (cf. Mt 28,19-20). Para a nossa alegria,
Cristo garante que permanecerá connosco nesta empreitada, e envia-nos o Espírito
Santo para nos auxiliar e orientar (cf. At 1,8).
Certamente esta nova ação missionária não é fácil. As grandes cidades tornaram-se
um espaço dessacralizado, “pagão”, e exigem um anúncio incisivo como foi o dos
Apóstolos no início do Cristianismo. A primeira exigência é o testemunho
verdadeiro. Não podemos evangelizar se não vivemos o Evangelho com a nossa
mente, vontade e coração; se não confiamos plenamente na Palavra; se não seguimos
plenamente o que Jesus nos ensinou. A segunda exigência é ver a fé como um grande
dom que nos transcende e que precisa de ser partilhado. A missão é assim uma
partilha, uma ação contagiante na qual transmitimos ao outro a razão da nossa alegria
e realização. Aquilo que recebemos como graça devemos dar aos outros, incluindo-os
na nossa alegria.

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A terceira exigência é ver na missão uma obrigação, a exemplo do Apóstolo Paulo:
«Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho.» (1Cor 9,16) O Evangelho é o fermento
para a libertação e a transformação da sociedade, por isso é nosso dever vivê-lo e
anunciá-lo.

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Um caminho aberto…
Chegamos ao fim da nossa breve visita ao Concílio Ecuménico Vaticano II.
Recordar os seus preciosos ensinamentos é certamente uma ótima forma de os tornar
atuais e vivos, é dar-lhes nova força e vigor, é mostrar que eles são de extrema
utilidade para a nossa vida.Esperamos que esta visão panorâmica dos documentos e
temáticas do Concílio tenha provocado questionamentos e refle-xões, mas
principalmente o desejo de aprofundar o conhecimento e a vivência do que o
Vaticano II nos ensina e exige, o desejo de atualizar e revitalizar o seu conteúdo,
«nascido do coração de Deus», como afirma Bento XVI, essencial para a vivência
saudável da fé e para um diálogo respeitoso com a sociedade.
Após este percurso, creio que todos podemos responder à pergunta mais pertinente
que surge no nosso tempo: É ainda atual o Concílio do Vaticano II? Como pode ele iluminar a nossa
vida eclesial, que enfrenta tantas conturbações?
Com o Vaticano II, a Igreja tornou-se mais comunitária e dialogante. Ele fez rejuvenescer e reavivar a sua
esperança, assumir compromissos e abrir-se a uma nova forma de ser e de estar no mundo. A Igreja abriu-se a
uma transformação interior que é exigente, mas também é muito gratificante para os que querem realmente
assumir e viver o seu “ser cristão”. Uma transformação que ainda está em curso e exige de nós uma
participação ativa, pois a Igreja (Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito) somos todos nós, com
as nossas qualidades e defeitos, fraquezas e coragens, riquezas e mazelas, expetativas e esperanças.

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Índice
I. Sacrosanctum Concilium 8
A renovação e valorização da Liturgia 8
II. Lumen gentium 11
Novo modo de ser Igreja 11
III. Dei Verbum 14
A beleza e a profundidadeda Sagrada Escritura 14
IV. Gaudium et spes 17
Base da Doutrina Social da Igreja 17
V. Christus Dominus, Presbyterorum ordinise Optatam totius 20
Sobre o clero 20
VI. Apostolicam actuositatem 24
A importante missão dos leigos 24
VII. Perfectae caritatis 27
A vida consagrada 27
VIII. Gravissimum educationis 30
Princípios para a educação cristã 30
IX. Inter mirifica 34
A comunicação ao serviço do Evangelho 34
X. Dignitatis humanaee Nostra aetate 38
O caminho do respeito pelas diferençase pela unidade religiosa 38
XI. Orientalium ecclesiarume Unitatis redintegratio 41
Incentivo ao ecumenismo 41
XII. Ad gentes 44
A Igreja missionária 44
Um caminho aberto… 48

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