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EXERCÍCIO DE RESENHA

JOÃO PAULO II, Papa (1978-2005). Fides et Ratio: Carta encíclica sobre as relações entre a fé e
razão. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1998.

Passados mais de cem anos da publicação da carta encíclica Aeterni Patris, escrita por Leão
XIII e diante de todo o avanço do racionalismo ateu ao longo do século XX, o Papa João Paulo II
lança a encíclica Fides et Ratio, para expor de modo sistemático e atualizado a relação necessária que
há entre a fé e a razão, bem como alguns dilemas e possíveis ações referentes a tal problemática.
A Igreja considera que um dos serviços que ela presta a toda humanidade é a diaconia da
verdade. Esse serviço que se presta a verdade, não se dá expressa apenas através da submissão a
Cristo que é a Verdade. Mas acompanhando o ser humano em seu ardente desejo de saber e diante
das questões existenciais radicais, a Igreja entende que a cada resposta verdadeira o ser humano
conhece-se mais a si própria e se aproxima da Verdade plena1.
Enquanto companheira do ser humano, a Igreja, através a diaconia da verdade auxilia ao
homem para que ele se posicione perante a verdade real e profunda de seu ser2. Essa presença amiga
e maternal da Igreja encontra o sujeito, que não obstante as alegrias, amizades, se se coloca a questão
acerca do sentido de sua vida, perceber-se-á só. Esse sentimento de solidão interior deve-se ao fato
de que ninguém nasce um ser humano pronto, um cristão pronto, mas, paulatinamente, auxiliado pela
razão e pela graça torna-se humano e cristão. A fé e a razão, conforme apresentadas pela Igreja leva
os sujeitos a buscarem e a identificarem a profunda verdade de seu ser3.
Com isso a filosofia é um instrumento indispensável para que cada indivíduo possa buscar a
verdade. Ela contribui eficazmente para que haja uma maior compreensão da fé. Isso se dá porque a
filosofia ao perscrutar a realidade em busca de respostas deve deparar-se com a conclusão que há algo
maior e que transcende tudo aquilo que é palpável. Assim, a filosofia deve buscar a verdade do ser e
não se contentar com fragmentos da realidade4.
Verdades parciais e provisórias são incapazes de responder ao ser humano quando este se
inquere acerca do sentido da vida. Com isso, a Igreja reafirma enfaticamente a urgente reflexão sobre
a verdade a fim de conduzir cada ser humano a verdade sobre si mesmo. Também é de suma
importância anunciar que há uma verdade que pode fundamentar a existência pessoal e social e é
dever da filosofia retomar a busca da verdade, que constitui sua vocação originária5.
Se se considera as verdades parciais como recortes que as ciências têm feito da realidade,
ver-se-á que estes têm sido tão díspares que a uma visão global destes tem se tornado cada vez mais
difíceis. Com isso o ser humano se desorienta, pois não se reconhece nos fragmentos que são ditos a
seu respeito e a respeito de seu mundo. Sem negar a multiplicidade do homem é preciso reconhecer
que tal multiplicidade se expressa em uma unidade. O que torna urgente a busca por um conhecimento
que possibilite que o ser humano se torne humano6.
Há um conhecimento que é próprio da fé, que se fundamenta no testemunho de Deus e no
auxílio da graça. Entretanto tal conhecimento é de ordem distinta da do conhecimento filosófico.
Todavia, graças à encarnação do Verbo, a história torna-se o espaço no qual se pode constatar a ação
de Deus em favor da humanidade. O ser do homem é revelado no Deus encarnado, desse modo o
conhecimento de Jesus é também conhecimento sobre o ser humano7.

1
Cf. JOÃO PAULO II, Papa (1978-2005). Fides et Ratio: Carta encíclica sobre as relações entre a fé e razão. 2. ed. São
Paulo: Paulinas, 1998, p. 5-7.
2
Cf. RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé: Introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1989,p.37.
3
Cf. GILSON, Etienne. O filósofo e a teologia. Santo André -SP: Academia Cristã, 2009, p. 15.
4
Cf. JOÃO PAULO II, Fides et Ratio, 1998, p. 10-11.
5
Cf. Idem, p. 13-14.
6
Cf. FRANKL, Viktor E. A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. São Paulo: Paulus, 2011,
p.32-33.
7
Cf. JOÃO PAULO II, Fides et Ratio, 1998, p. 15-20.
2

Assim, obviamente, todo discurso teológico sobre o homem supõe a cristologia. Jesus é o
modelo do que significa ser humano. Para ser plenamente humano cada sujeito deverá seguir o
itinerário percorrido por Cristo: alguém aberto a Deus e aos homens através do amor-serviço.
Contudo, tal discurso da cristologia precisa de conceitos e categorias da antropologia8. O discurso de
fé sobre o homem demanda, necessariamente, do auxílio da razão.
É indubitável que para contemplar e compreender adequadamente tal mistério é preciso ter
fé. A obediência de fé é a postura devida ao Deus que se revela. Livremente cada indivíduo pode
optar por acreditar e assim encontrar a certeza da verdade na qual ele pode alicerçar a sua vida e viver
a vocação mais sublime, seu chamado a comunhão trinitária. Assim a revelação cristã deve ser
considerada como o parâmetro para que cada ser humano conduza a sua vida sem que este caia em
reducionismos e no imanentismo da sociedade atual9.
Sociedade esta que gera consciências oprimidas, relações desumanizantes de dominação,
estruturar que coisificam o ser humano. Sem a referência a Jesus Cristo não é possível comunicar a
verdade sobre o ser humano, pois Ele ilumina o ser humano ao se fazer homem entre os homens
através de sua encarnação10. Reitera-se, sem a unidade entre o conhecimento oriundo da fé e da razão
o ser humano se engana, se ilude, se mutila, se reduz.
O texto bíblico propõe que há uma unidade indivisível entre o conhecimento da fé e o
conhecimento da razão. Estes conhecimentos não são adversários, contraditórios, mas apenas buscam
a verdade através de perspectivas diferentes. Aliás, pode-se considerar a verdade como o ponto de
encontro de tais formas de conhecimento, através da razão investiga-se a realidade e assim chega-se
ao ponto no qual, iluminado pela fé, poder-se-á encontrar o sentido profundo de tudo e de toda a
existência11.
Em toda a natureza o ser humano é o único animal que sabe que sabe. Essa constatação faz
com que cada indivíduo não possa ficar indiferente à verdade de seu saber. Em sua liberdade, cada
sujeito pode aderir a verdade que conhece, desse modo, escolhendo-se adequadamente os valores,
cada um poderá aprimorar-se enquanto ser humano. A primeira verdade que deve ser assumida é a
morte, o que confere um maior drama a existência humana pois cada um deseja saber ainda mais
sobre o seu fim. Em sua existência o ser humano busca por verdades permanentes, absolutas, na qual
não haverá mais dúvidas. Em seu coração o homem sente a sede de Deus12.
O ser humano é um ser social. Seja na família, seja na sociedade em geral, cada indivíduo
recebe um patrimônio linguístico-cultural-científico que foi construído ao longo de milhares de anos,
na impossibilidade de examinar criticamente a todo esse patrimônio cada um precisa acreditar naquele
que comunica algo desse patrimônio, desse modo o ser humano é também aquele que vive de crenças.
É preciso doar-se e ser aberto para manifestar ou contemplar a verdade13.
Assim, cada ser humano concreto depende de outro ser humano concreto e estes se
relacionam através de uma multiplicidade de vínculos. Situado em um lugar e no tempo é preciso que
alguém transmita os conhecimentos, os valores, as experiências, os ideais, etc. Assim, cada sujeito
nasce e se desenvolve, em um mundo cultural, do qual ele é chamado a assumir livre e criticamente
a tudo isso que o foi oferecido. Ou seja, cada um recebe a cultura, mas também pode, em certa medida,
modifica-la14.
A fé demanda, exige, requer, que seu objeto seja compreendido, a razão, ao concluir sua
inquirição admite que é necessário aceitar aquilo que é proposto pela fé. Segundo santo Tomás isso
se deve ao fato de que a luz da fé e a luz da razão provêm de Deus, assim não podem se contradizer.
Quando fé e razão foram separadas a partir da modernidade viu-se a razão tornou-se incapaz de

8
Cf. GARCÍA RUBIO, Alfonso. Unidade na pluralidade: O ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. 2 ed. São
Paulo: Paulinas, 1989, p. 85-86.
9
Cf. JOÃO PAULO II, Fides et Ratio, 1998, p. 21-25.
10
Cf. GARCÍA RUBIO, Unidade na pluralidade, 1989, p. 89-91.
11
Cf. JOÃO PAULO II, Fides et Ratio, 1998, p. 27-32.
12
Cf. Idem, p. 37-41.
13
Cf. Idem, p. 44-45.
14
Cf. GARCÍA RUBIO, Unidade na pluralidade, 1989, p. 399.
3

responder as questões acerca do sentido da existência humana e a fé sem a razão deixou de ser uma
proposta universal15.
A Igreja não possui uma filosofia própria, mas é seu dever confrontar as diferentes correntes
filosóficas com os dados da revelação e indicar em que medida elas se aproximam ou se afastam da
fé da Igreja. Nesse contexto irrompem dois riscos, o racionalismo, que pode fazer com que se aceite
acriticamente normativas filosóficas para investigações teológicas. O outro risco é do fideísmo que
nega a importância do conhecimento racional para a compreensão da fé, o que leva, por exemplo, a
uma interpretação literal da bíblia e assumir tal postura como norma suprema de fé16.
Filosofia e teologia, segundo Rahner, são inseparáveis. Pois estas referem-se ao homem e o
que se refere à sua essência, realidade história, já que o cristianismo deve ser considerado como graça
e mensagem histórica. Da unidade entre essas duas disciplinas surge a possibilidade de se ouvir e
compreender corretamente a mensagem do cristianismo. Assim, a inclinação excessiva para qualquer
uma das duas, implica em algum erro na reflexão do ser humano a respeito de si próprio, de Deus e
do mundo17.
Audictus fidei e intellectus fidei são os princípios metodológicos essenciais para a teologia.
O conhecimento racional prepara o audictus fidei para examinar a estrutura do conhecimento e da
comunicação pessoal. Já quanto ao intellectus fidei, o uso de princípios filosóficos auxilia na
interpretação correta da doutrina da Igreja. A fé, embora não se baseie na razão, devido aos princípios
apresentados, perceber-se-á o quanto a fé depende da razão, seja para existir, seja para ampliar seus
horizontes18.
Diante de Jesus Cristo as barreiras que separam as diferentes culturas caem. Pois se cada
sujeito traz em si o desejo de Deus e a possibilidade para acolher a revelação, as diferentes culturas
trazem em si, de algum modo, a expressão desse desejo existencial, já que cada sujeito é, em certa
medida agente e paciente de sua cultura. Assim a adesão a fé não impede que as pessoas conservem
a sua identidade cultural19.
Toda a criação depende de Deus, negar tal realidade destrói a busca racional da harmonia e
sentido da existência humana. Uma filosofia autêntica conduz a vida humana para a plenitude. Nesse
sentido a filosofia não pode prescindir da dimensão sapiencial, que vai unificar o saber e o agir o
humano, doando assim, cada indivíduo de uma visão global da vida20.
Tal postura leva a afirmação de que o ser humano pode conhecer a verdade, possibilidade
essa negada por inúmeras correntes filosóficas. Há uma objetiva. E a existência de tal verdade, bem
como a busca por uma visão global da realidade demanda e revela o dado metafísico da realidade. A
reflexão filosófica precisa de uma abertura metafísica para contemplar o fundamento espiritual que
fundamenta a realidade21.
Esses três princípios combatem as maiores ameaças para a filosofia atual: o ecletismo, que
assume aspectos de diferentes filosofias sem observar a coerência entre estes; o cientificismo, que
admite como ciência somente as ciências positivas; o pragmatismo, que não aceita nenhuma reflexão
abstrata e o niilismo, que nega a existência de qualquer verdade objetiva22.
Diante desse quadro a Igreja precisa reafirmar e incentivar a existência de uma verdade
objetiva, pois somente esta possibilitará um diálogo autêntico e que promova a unidade 23. “Levar os
homens à descoberta da sua capacidade de conhecer a verdade e do seu anseio pelo sentido último e
definitivo da existência”24 é a tarefa mais urgente para a Igreja atual.

15
Cf. JOÃO PAULO II, Fides et Ratio, 1998, p. 60-68.
16
Cf. Idem, p. 69-78.
17
Cf. RAHNER, Karl, Curso fundamental da fé, 1989, p.38.
18
Cf. JOÃO PAULO II, Fides et Ratio, 1998, p. 87-91.
19
Cf. Idem, p. 94-95.
20
Cf. Idem, p. 107-108.
21
Cf. Idem, p. 109-113.
22
Cf. Idem, p. 116-120.
23
Cf. Idem, p. 124.
24
Cf. Idem, p. 135.
4

A leitura de uma encíclica como essa revela que falar de algo que é exclusivo do humano,
como fé e razão, tem ressonância em todo o discurso acerca do ser humano. Essa foi a intenção de
muitos comentários ao longo do corpo do texto. Deturpar, privilegiar ou negar algum aspecto peculiar
do homem, pode levar a um processo de desumanização capaz de promover inúmeras barbáries. Não
é exagero afirmar que uma das causas dos grandes conflitos do século XX foi o uso da razão sem a
fé, contudo não se pode negar que o contrário também aconteceu ao longo da história da Igreja.
João Paulo II afirma no início da carta que fé e razão são as duas asas que levam o homem
a contemplar a verdade. Mas convém lembrar que com uma asa apenas não se voa. Conciliar fé e
razão não é apenas para produzir conhecimentos válidos e verdadeiros. Fé e razão em harmonia
promovem uma reta cosmovisão, relacionamentos humanos e ecológicos sadios e equilibrados. Em
uma sociedade que marginaliza e produz cada vez mais lixos humanos, mas que também se formam
guetos de fanáticos religiosos evidencia que tal reflexão é cada vez mais urgente.

Referências:

FRANKL, Viktor E. A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. São Paulo:


Paulus, 2011.

GARCÍA RUBIO, Alfonso. Unidade na pluralidade: O ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs.
2 ed. São Paulo: Paulinas, 1989.

GILSON, Etienne. O filósofo e a teologia. Santo André -SP: Academia Cristã, 2009.

JOÃO PAULO II, Papa (1978-2005). Fides et Ratio: Carta encíclica sobre as relações entre a fé e
razão. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1998.

RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé: Introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo:
Paulinas, 1989.

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