Você está na página 1de 508

Nuno Miguel dos Santos

A ESPER ANÇA QUE JESUS DÁ


uma reflexão sistemática sobre a esperança e o ‘seu’ tempo
a partir da exegese dos encontros com Jesus
narrados nos evangelhos

Tese de Doutoramento em Teologia Dogmática


na Pontifícia Universidade Gregoriana - Roma

Coimbra, 2018
Ficha Técnica
Título: A Esperança que Jesus dá
Autor: Nuno Miguel dos Santos
Edição: Diocese de Coimbra
Design da capa: Design-a-Dois
Impressão e acabamento: Simões & Linhares Lda
ISBN: 978-989-54046-1-2
Depósito Legal: 442693/18
Distribuição: Communis Missio - Instituto Diocesano de Comunicação
Centro Pastoral Diocesano - Casa Nova
Rua Vandelli, nº 2
3004-547 COIMBRA
Agradecimentos

Ao professor Antonio Nitrola pelo estímulo sereno, pela crítica inteligente e


pelo rigor permanente. Agradeço, sobretudo, os vários encontros, comentários, de-
safios e sugestões. Esta tese tem muito do seu contributo e do seu empenho. Uma
presença que reforça a ideia de que a teologia se faz em conjunto e em diálogo.
À Pontifícia Universidade Gregoriana, concretamente ao Departamento de
Teologia Dogmática, pelas oportunidades concedidas ao longo dos dois anos da
Licenciatura Canónica e dos três de doutoramento, quer pelas matérias leciona-
das, quer pelas diferentes vivências académicas.
À diocese de Coimbra, na pessoa do Sr. Bispo D. Virgílio Antunes, pelo convite
e pela oportunidade que me foi dada de aprofundar os conhecimentos teológicos.
Foi a diocese, onde muito aprendi com os diversos trabalhos pastorais, a motivação
e a razão principal deste meu empenho que espero poder colocar agora ao serviço.
Ao Pontifício Colégio Português, na pessoa do então Reitor, Pe. Fernando
Caldas, pelas condições que me foram concedidas e pela comunidade que foi a
minha ‘casa’ e a minha ‘família’ nesses anos em que estive em Roma. Uma ‘pre-
sença’ que foi um importante ‘suporte’ e uma preciosa ajuda na troca de ideias,
especialmente, com colegas de outras áreas.
A toda a minha família pelo carinho e pela preocupação constante. Uma
presença à distância encurtada pela certeza dos laços profundos de amor que
nos ligam e nos definem. O que escrevo e o que aprofundo academicamente tem
a marca de uma vivência que muito lhes agradeço – continuam a ser a minha
primeira ‘universidade’ humana e teológica e o lugar onde a existência se diz a
partir do essencial.
Aos vários amigos que são presença e são motivação não só quando se tornam
próximos mas também pela exigência a que o seu testemunho me desafia e pelo en-
tusiasmo com que partilhamos o caminho, as dúvidas, as alegrias e as dificuldades.

5
A todos os que indireta e diretamente me ajudaram a concretizar esta tese e a
sua publicação, sobretudo, ao Pe. António Calixto que me ajudou na correção da
mesma, à Helga Andrade, ao David Duarte e à Diana Ferreira; e ainda à Diocese
de Coimbra que, através do Instituto Diocesano Communis Missio, assume esta
publicação e a sua distribuição.
Por fim, mas não menos importante, um agradecimento a Deus-Trindade
pela inspiração e pelo entusiamo que senti. Acredito sinceramente que na teo-
logia a ‘secretária’ e o ‘sacrário’ devem tocar-se. De facto, quando confiamos o
nosso trabalho a Deus o trabalho tem as ‘marcas da eternidade’. Espero ter sido
um oportuno e honesto ‘instrumento’ da ação do Senhor ao serviço de todos.

6
Introdução

1. As razões da escolha da ‘esperança’ como tema


O cristianismo começou como uma pequena comunidade de seguidores de
Jesus, que vieram de Jerusalém, da Galileia e de outros lugares próximos. Ho-
mens e mulheres que sentiram ter algo de importante para partilhar com todas
as pessoas. Passados 2000 anos o cristianismo encontra-se difundido por, prati-
camente, toda a terra. No entanto, será que os cristãos ainda estão convencidos
de que têm algo a dizer a todas as pessoas ou será algo apenas para ‘dentro’ do
cristianismo? Será que podemos defender a convição de que o Deus anunciado
pela Igreja é um Deus para todas as pessoas, respeitando obviamente os fun-
damentos da liberdade de religião conquistadas com tanto esforço a partir da
prática da não-violência?1 Hoje aquele ‘mundo distante’ onde era preciso levar
a mensagem de Deus está muito ‘próximo’ e penetrou amplamente no nosso
‘mundo cristão’. Hoje esse mundo surge diante das nossas portas e não raro den-
tro delas. Por isso, todo o cristão ‘praticante’ encontra-se numa situação missio-
nária e é questionado sobre a sua atuação2.
Este contexto exige uma reflexão renovada e sistemática sobre as razões do
nosso acreditar e, por isso mesmo, sobre as razões da nossa esperança. Qual é o
específico da esperança cristã? Qual o seu fundamento? Qual o seu conteúdo?
Qual o ‘seu’ tempo? Que consequências tem essa esperança para a vida concreta
de cada um de nós hoje? Se não enfrentarmos estas e outras questões podemos
correr o risco de um cristianismo tão teórico e abstrato quanto inútil e insignifi-
cante3. Uma reflexão de que ninguém se deve excluir, sobretudo a teologia dog-
1
  Sobre este princípio da «não-violência» aconselhamos: Francisco, Mensagem para o Dia Mundial
da Paz 2017, 8 de dezembro de 2016.
2
 Cf. J.B. Metz, Mística de olhos abertos, São Paulo 2013, 91-92.
3
  Para aprofundar a relação entre a esperança cristã e o mundo onde o cristianismo se insere aconse-

7
mática. Uma reflexão que deve ser feita sem medo nem ‘pre-conceitos’.
Apesar da esperança parecer um tema em ‘contra-corrente’ no mundo oci-
dental(izado)4, a verdade é que tem sido um tema bastante presente na reflexão
teológica5. No entanto, deve também a teologia dogmática, a partir do ‘seu’ mé-
todo e da ‘sua’ perspetiva, contribuir radicalmente para esta reflexão que a con-
temporaneidade exige e reclama. Nesse sentido, com este trabalho queremos dar
um contributo para a necessária reflexão sobre a ‘esperança cristã’.
De facto, são muitos os escritos que falam da esperança e insistem na sua im-
portância, são muitos os artigos científicos e os livros de teologia que retomam
o tema da esperança cristã, são muitas as tentativas de ‘adentrar-se’ neste tema,
sobretudo, depois do teólogo evangélico Jürgen Moltmann ter publicado a Teo-
logia da esperança (Theologie der Hoffnung), em 1964, onde discute a tese d’O
princípio esperança (Das Prinzip Hoffnung) do filósofo marxista Ernst Bloch.
Todavia, será que conseguimos dizer com clareza qual é o conteúdo e o tempo
específico da ‘nossa’ esperança?
Neste contexto o apelo do Papa Francisco faz ainda mais sentido: «Não deixeis
que vos roubem a esperança» (EG 86). Um pedido que surge como um grito num
mundo que parece ‘privado’ de esperança6. Um pedido que reabre a porta que nos

lhamos: M. Bruno, Il terreno della speranza, Milano 2012; J.-L. Souletie, «L’espérance chrétienne dans
les sociétés postmodernes», NRTh 131 (2009) 588-599; M. Acquaviva, «La speranza cristiana e le sfide
culturali oggi», FiRat 1 (2008) 115-126; M. Grilli, «Le metafore della speranza nel disincanto della
storia», OrPast 54 (2006) 24-32; Aa.Vv., Speranza cristiana e speranze del nostro tempo, Roma 1971.
4
  Esta expressão «ocidental(izado)» e a sua explicação encontra-se em: S. Formosinho, J.O. Branco,
A pergunta de Job, Lisboa 2003, 528.
5
  Longe vai o tempo em que com razão Ernst Bloch dizia que a esperança estava tão inexplorada
quanto a Antártida, daí ele sentir a necessidade de ‘levar’ a esperança à filosofia. Cf. E. Bloch, Il prin-
cipio speranza, Milano 20092, 9.
6
  Bruno Forte, apesar de identificar muitos sinais positivos, diz que hoje vivemos numa cultura
pós-ideológica que se apresenta sempre pobre de esperança e de grandes razões porque onde parece
faltar a paixão pela verdade tudo é possível, até a solidariedade se conjuga com cálculos vulgares. Cf.
B. Forte, «Cristo, ‘nuestra esperanza’, revela el sentido de la vida y de la historia», ScrTh 33 (2001)
829-830. Terminou o tempo das ideologias que tinham a capacidade de dar uma leitura global do
mundo e de catalisar energias em vista a um grande projeto. Falar hoje de esperança parece querer
dizer apenas não deixar-se aprisionar à dura realidade presente. Cf. L. Margaria, «Lo scacco della
speranza», ATT 15 (2009) 299. «La speranza ha perso terreno nel nostro spazio pubblico e nel pensiero
contemporaneo» e «La crisi contemporânea è anche una crise della speranza». J.T. Mendonça, «‘Spe-
rare contro ogni speranza’», RCI 46 (2015) 175. Por muitos a ‘crise’ da esperança foi indicada como a
‘crise’ da modernidade. Cf. M. Salvi, «L’indebolimento della speranza», Milano 2000, 52. Ghislain
Lafont diz que parece que, até hoje, aquilo que chamavamos de modernidade faliu naquilo que até há
pouco tempo seria um projeto humanista. Cf. G. Lafont, Che cosa possiamo sperare?, Bologna 2011,
7. Ernst Bloch dizia que a falta de esperança era a coisa mais insuportável, absolutamente intolerável,

8
faz ‘adentrar’ neste dinamismo existencial essencial do cristianismo – a esperan-
ça. De facto, os cristãos são ‘aqueles que esperam’ (cf. 1Ts 4,13; 1Cor 15,19). Tra-
ta-se de uma atitude que é dinamismo estruturante e fundamento identitário do
‘ser cristão’. Assim, podemos dizer, como Michele Masciarelli, a esperança pode
exprimir por si só tudo o que significa ser cristão7. Com efeito «Nós, cristãos,
somos mulheres e homens de esperança»8. Daí que o ‘grito’, lançado pelo Papa na
Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, pode servir precisamente de saudável
provocação para a teologia refletir o sentido mais profundo da esperança cristã9.
Esta provocação exige uma resposta. Exige, pelo menos, um itinerário teológi-
co que nos possa ajudar a fazer uma reflexão sistemática sobre a própria esperança.
Não basta identificarmos a importância de um princípio-esperança, precisamos de
nos confrontar com o princípio da esperança10. Não basta dizer que os cristãos são
pessoas de esperança, não basta dizer que a esperança orienta a nossa vida, não
basta dizer que é uma ‘virtude teologal’, é preciso procurar identificar o conteúdo e
o tempo dessa esperança que se revela princípio fundante do ‘ser cristão’.
O autor da Primeira Carta de Pedro diz-nos: ‘estai sempre dispostos a dar a
razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça’ (cf. 1Pe 3,15). Mas só pode-
mos dar razões do que conhecemos, do que experimentamos e do que vivemos.
Se soubermos o conteúdo e o tempo específico da nossa esperança certamente
estaremos mais preparados para dar razões profundas dessa realidade tão es-
sencial quanto existencial. Também aqui julgamos que é importante que toda a
teologia, especialmente a teologia dogmática católica, seja essencial e existencial,
como desafiou, ‘profeticamente’, Karl Rahner11. É nesta linha que o presente es-
tudo pretende repropor a esperança cristã.
Na verdade, a existência humana desde o nascimento até à morte é uma opor-
tunidade de sentido – essencial e existencial. Mas o sentido tem muito a ver com

para as necessidades humanas. Cf. E. Bloch, Il principio speranza, Milano 20092, 7.


7
 Cf. M.G. Masciarelli, La grande speranza, Città del Vaticano 2008, 8. Em sentido contrário, o
filósofo italiano Salvatore Natoli diz que: O cristão, em sentido estrito, não espera porque crê. Cf. S.
Natoli, «Speranza», Milano 20097, 120.
8
  Francisco, Audiência Geral, 01 de fevereiro de 2017.
9
  O Papa Francisco iniciou, no dia 7 de dezembro de 2016, um ciclo de Audiências Gerais dedicado ao
tema da esperança cristã. Este ciclo terminou a 25 de outubro de 2017. Todo um itinerário que merece
ser relido e aprofundado teologicamente. Estes conjunto de catequeses, feitas pelo Papa Francisco,
revela não só a atualidade e importância deste tema como o quanto esta reflexão permanecerá sempre
incompleta e, em certa medida, ‘desatualizada’.
10
  O. González-Cardedal, Raiz de la esperanza, Salamanca 19962, 480.
11
 Cf. K. Rahner, «Saggio di uno schema di dogmatica», Roma 1965, 75.

9
a capacidade que temos de fazer perguntas e de ‘enunciar’ respostas ou, pelo me-
nos, itinerários que nos ajudem a fazer esse caminho. Assim, diante de inúmeros
relatos de vida, podemos afirmar que é diante da morte que surgem algumas das
perguntas mais inquietantes e mais existenciais. Será também diante da mor-
te que poderemos ser confrontados com a profundidade existencial não só das
nossas esperanças mas sobretudo da nossa esperança. Podemos afirmar que ‘a
dimensão do Homo mortalis exige a presença do Homo Sperans que encha de sen-
tido toda a ‘viagem’ do Homo viator’12. Uma esperança que tendo ligações ao ‘fim’
se revele desde o ‘princípio’. Afinal qual é a esperança que ‘ilumina’ os nossos dias
e ‘alimenta’ a nossa fome de sentido e de eternidade?
Esta esperança não pode ser ambígua como se revela a ἐλπίς de Pandora, no
mito de Prometeu; nem pode ser apenas uma intuição individual e intra-histó-
rica em relação ao futuro como indicava Platão e Aristóteles. A esperança que
determina os passos do quotidiano tem que ser maior do que o próprio quoti-
diano. Caso contrário, a esperança não passa de uma projeção, mais ou menos
fundamentada, mais ou menos acertada, que tem o ‘tamanho’ do nosso olhar e
a ‘força’ das nossas capacidades. A esperança, que dá esperança profunda, não
pode encontrar a sua fonte em nós mesmos nem pode ter o ‘tamanho’ desta vida.
De facto, se ‘temos esperança apenas para esta vida somos os mais miseráveis de
todos os homens’ (cf. 1Cor 15,19).

2. No princípio está a necessidade de um método


A primeira palavra da bíblia é Bereshit [‫אׁשית‬֖ ִ ‫]ּב ְֵר‬13, que pode ser traduzida
como ‘princípio’ com sentido cronológico, mas também como ‘quando’ num ho-
rizonte relacional-existencial de fundamento14. Este ‘princípio’ (cronológico) que,
ao mesmo tempo, é ‘quando’ (ontológico) - revela um Deus em ‘ação’ e em ‘rela-
ção’. Deste modo, Deus não só está desde o princípio como é princípio de cada
‘criação’, de cada ‘tempo’ e de cada pessoa. Por outras palavras, o que está desde
o princípio transforma-se em fundamento. Um fundamento que não é tanto um
‘princípio’ cronológico e distante, mas um ‘princípio’ de relação que alimenta

12
  Cf. C. Freni, «Morte e corpo nella prospettiva fenomenológica», Roma 2013, 62-63.
13
  Gn 1,1: «‫ֱֹלהים אֵ ֥ת ַהּׁש ַ ָ֖מי ִם וְאֵ ֥ת הָאָ ֶֽרץ‬
֑ ִ ‫אׁשית ּב ָ ָ֣רא א‬
֖ ִ ‫»ּב ְֵר‬. BHS.
14
  Alguns autores falam da possibilidade de traduzir a palavra bereshit não tanto como ‘princípio’ mas
como ‘quando’; ou seja, ‘quando Deus começou a criar o céu e a terra…’. Deixamos assim o horizonte
cronológico e entramos sobretudo no horizonte existencial-relacional da presença criadora de Deus,
desde a origem. Cf. F. Giuntoli (a cura di), Genesis 1,1-11,26, Cinisello Balsamo 2013, 72-73.

10
permanentemente a ‘criação’, em geral, e cada ‘criatura’, em particular. Este pon-
to de partida poderá servir também aqui como ponto de referência para explicar
o método usado para esta pesquisa sobre a esperança.
Pensar seriamente a teologia exige sempre um método. Deste modo, pensar a
esperança teologicamente exige também um método. Um método que seja capaz
de revelar a esperança enquanto fundamento que está desde o princípio como
princípio. Só assim se pode revelar como um dinamismo teológico que transfor-
ma profundamente a ‘terra’ e recriar permanentemente a humanidade. Por isso,
não se pode pensar a esperança banalmente ou superficialmente, mas com um
método e com o rigor próprio de uma investigação académica.
Não basta lançar questões, nem formular meras possibilidades. Na verdade,
a questão do método é fundamental para a Teologia. É preciso percorrer um iti-
nerário, é preciso fazer teologia (θεός + λόγος – que quer dizer, literalmente,
discurso racional sobre Deus). Neste discurso racional sobre Deus, a razão é in-
tra-teológica; não é pré-teológica nem sequer caminha ao lado, está dentro. No
entanto, em teologia a razão não basta. Trata-se de procurar fazer uma reflexão
com um método (μετά + ὁδός). O método é a estrada (ὁδός) que se atravessa para
chegar à meta (μετά). A estrada que se percorre na pesquisa e na investigação15.
Por isso, sempre que começamos um caminho precisamos de saber qual é o ‘ca-
minho mais ajustado’ ou a ‘estrada certa’ que nos leva até ao fim. Mas qual será
radicalmente o fundamento do ‘método teológico’?
No evangelho, Jesus diz que é ‘o caminho, a verdade e a vida’ (Jo 14,6a)16. Jesus
diz que é esse caminho (ὁδός)17 que temos de percorrer. Interessante reparar que
esta é a resposta que Jesus dá à pergunta colocada por Tomé: «como podemos nós
saber o caminho?» (Jo 14,5b)18. Ele não é tanto o caminho que conduz à verdade
e à vida, mas essencialmente, Ele é caminho porque é a verdade e a vida19. Jesus
é o caminho quando ‘agarrado’ na sua totalidade – uma totalidade que começa
no mistério da Incarnação e termina no mistério Pascal. Por isso, na expressão
de Rahner, Jesus morto e ressuscitado é o ‘critério de discernimento’20. Assim, no

15
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 256.
16
  Jo 14,6a: «ἐγώ εἰμι ἡ ὁδὸς καὶ ἡ ἀλήθεια καὶ ἡ ζωή». NA28.
17
  Cf. C. Rusconi, «ὁδός», in DGNT, S. Paulo 2003, 327. Aqui ὁδός aparece com os seguintes significa-
dos: caminho, estrada (Mt 8,28); itinerário, caminho, viagem, via (Mt 15,32; Jo 14,6); doutrina, fé (At
24,14), conduta moral, modo de viver (1Cor 4,17), projeto, desígnio, intenção (Tg 1,8).
18
  Jo 14,5b: «πῶς δυνάμεθα τὴν ὁδὸν εἰδέναι». NA28.
19
  Cf. B. Maggioni, Il terreno della speranza, Milano 2012, 12.
20
  Cf. K. Rahner, Corso fondamental sulla fede, Milano 20056, 212.

11
método teológico Jesus é o caminho, não no sentido geográfico mas no sentido
existencial, não como conceito abstrato mas como vida feita relação.
Contudo, não basta um caminho (ὁδός) é preciso uma direção (μετά)21. Deste
modo, o método teológico coloca em conjunto, é ‘ponte’ que une, o princípio ao
fim, é relação que faz do ‘caminho’ a própria ‘meta’ e, talvez, da ‘meta’ o próprio
‘caminho’. Também no tema da esperança Jesus é o ‘caminho a percorrer’. De fac-
to, como refere Rinaldo Fabris, o conteúdo e o fundamento da esperança cristã é
definido pelas ações e palavras de Jesus de Nazaré22. É aí que vamos à procura da
‘esperança’, sobretudo nos encontros de Jesus nos evangelhos.
Assim, neste itinerário teológico partimos dos dados bíblicos porque, como
insistiu Karl Rahner, a teologia bíblica deve ser a fonte da dogmática23. Mas não
será tanto um procurar saber de como se fala da esperança na bíblia, nos Padres
da Igreja ou mesmo na teologia; não será tanto um saber sobre o lugar onde
aparece a palavra esperança (ἐλπίς) na Escritura; será, essencialmente, um tentar
saber qual é a esperança que surge nos encontros de Jesus capaz de transformar
a vida daqueles que se sentiram encontrados. Ou seja, tentaremos sugerir uma
reflexão sistemática sobre a esperança a partir da exegese dos encontros com Jesus
narrados nos evangelhos, evidenciando assim ‘a esperança que Jesus dá’ a todos.
Uma esperança que deu e que quer continuar a dar.
Neste itinerário pela Sagrada Escritura, é interessante sublinhar que a pala-
vra ἐλπίς não aparece nos evangelhos. Todavia, apesar da ausência da palavra, o
dinamismo que designamos de ‘esperança’ está presente e qualifica a atividade e
as palavras de Jesus de Nazaré. Os gestos e as palavras de Jesus estão ‘cheios’ de
esperança. Nesse sentido, talvez não se fale da esperança porque está abundante-
mente presente. De facto, o fundamento da esperança que Jesus é, e o conteúdo da
esperança que ele dá, expressa-se em todo o seu ‘programa’ – o reino de Deus24.
Esse programa serve de enquadramento geral capaz de uma axiologia in-
terpretativa da esperança presente em cada encontro. A tradição sinótica, desde
logo, apresenta a vida pública de Jesus sob esse desígnio: «Completou-se o tempo
e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho» (Mc
1,15) ou «Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu» (Mt 4,17b). Uma

21
  Esta palavra μετά pode ter muitos significados: em conjunto, entre, com, em direção a, para, depois.
Cf. C. Rusconi, «μετά», in DGNT, S. Paulo 2003, 303-304.
22
  Cf. R. Fabris, Attualità della speranza, Brescia 1984, 11.
23
  Cf. K. Rahner, «Problemi della cristologia d’oggi», Roma 1967, 12-14.
24
  Cf. R. Fabris, Attualità della speranza, Brescia 1984, 16.

12
dimensão que pode ser testemunhada, ainda que de outra forma, nos encontros
de Jesus descritos no quarto evangelho.

3. A especificidade e a originalidade desta reflexão dogmática


Com efeito, a esperança cristã, segundo esta nossa perspetiva, deve ser pro-
curada em Jesus – Jesus há de ser sempre o ponto de partida e de referência para
a reflexão teológica. Trata-se de procurar a possibilidade de falar da esperança a
partir do que podemos saber da história concreta de Jesus. No entanto, teremos
de procurar a esperança mesmo e, principalmente, onde não se fala dela explicita-
mente. Nnão procuraremos a evidência de uma palavra mas iremos tentar iden-
tificar e descrever o dinamismo relacional onde a esperança nasce. Talvez a espe-
rança mais profunda não esteja nas linhas mas nas entre-linhas, talvez não esteja
na circunstância concreta mas no significado que cada encontro traz à vida de cada
pessoa. Eis o início da especificidade e da originalidade deste trabalho.
Esta opção metodológica pode parecer um pormenor. Mas acreditamos que
seja um pormenor que faça a diferença. Trata-se de pensar a esperança a partir
não tanto da projeção, do futuro ou da promessa mas, sobretudo, a partir da
relação. Uma relação concreta e objetiva – Jesus Cristo25. Neste sentido, iremos
procurar reler a história de Jesus não tanto à luz de cada encontro (individual-
mente considerado) mas a partir de um denominador comum – a esperança que
Jesus oferece a cada pessoa com quem se encontra. Poderá ser um trabalho mais
‘discreto’ porque mais ‘subtil’ mas queremos acreditar que não menos profundo.
Por vezes, a profundidade e o essencial é um dinamismo existencial que não se
deixa ‘ler’ e ‘agarrar’ facilmente. Trata-se de ver para além de cada acontecimento
e de cada encontro. Este modo de abordar o tema da esperança, depois de alguma
recolha bibliográfica, não nos parece frequente. Por isso, pensamos que a maior
originalidade deste trabalho residirá no modo como a questão se coloca e, princi-
palmente, no modo como se procura a resposta a essa mesma pergunta.
Durante muito tempo a esperança, quando inserida nas três virtudes teolo-
gais, parecia estar quase exclusivamente ligada à moral e à espiritualidade. Um

25
  Na verdade já muitos tentaram olhar para Jesus de Nazaré sobre a perspetiva da relação, desde psi-
cólogos a psiquiatras, mas também neste ponto continua a falta um olhar mais profundo e teológico
que possa tocar o essencial da identidade de Jesus o Cristo. Para aprofundar este tema sugerimos um
interessante artigo, sobretudo do ponto de vista da teologia fundamental, sobre a psicologia humana
de Jesus Cristo: G. Tanzella-Nitti, «La psicologia umana di Gesù di Nazaret», AT(R) 27 (2013) 267-
292.

13
caminho fortemente ligado ao ‘crescimento espiritual’ e ao ‘progresso individual’
de cada cristão. Contudo, não foi sempre assim, nem este é o único caminho para
a reflexão. Efetivamente, hoje cada um de nós que é cristão só pode esperar o que
a Igreja espera. Entramos assim num horizonte que não se esgota no contexto
individual mas que se abre ao âmbito eclesiológico porque a Igreja é ela mesma
«comunidade de fé, esperança e caridade» (LG 8). Esta tensão revela a centrali-
dade cristológica porque a Igreja só pode esperar na esperança que Jesus dá onde
cada gesto e cada palavra de Jesus na história da humanidade tem a força do
amor trinitário que Deus é – porque «a esperança é realmente cristã se é plena-
mente trinitária»26.

4. Delimitando o tema: elementos principais deste itinerário teológico


A ‘esperança’ é o nome de Deus ou pelo menos, como disse Jürgen Molt-
mann, ‘é o fundamento e o motor do pensamento teológico enquanto tal’27. De
facto, falar do Deus da esperança, mais do que dizer que a esperança é uma pro-
priedade de Deus, é sobretudo dizer que a esperança é o conteúdo da forma como
Deus se revela aos homens28. Não deixa de ser significativo que Dante fale do
inferno como a ausência da esperança quando, na Divina Comédia, diz: deixai
toda a esperança, vós que entrais [no inferno]29.
Por isso, no centro deste itinerário teológico da esperança estão os encon-
tros de Jesus nos evangelhos. É aí que vamos ‘procurar’ o conteúdo e o tempo
da esperança cristã. Nós começámos por identificar 46 encontros. Este núme-
ro poderia ser maior se incluíssemos todos os diálogos de Jesus, nomeadamente
com os discípulos, os fariseus, os doutores da Lei, os saduceus, os sumos sacer-
dotes e as autoridades romanas. Contudo, neste número procurámos identificar,
essencialmente, os ‘encontros’ que mudaram vidas, encontros que se revelaram
significativos e determinantes para entender a missão e a pessoa de Jesus Cristo.
Assim, privilegiámos os ‘encontros’ de chamamento, de conversão, de cura, de
perdão dos pecados, de reanimação dos mortos e de aparição do ressuscitado.
26
  M.G. Masciarelli, La grande speranza, Città del Vaticano 2008, 60.
27
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 13.
28
  Olegario González de Cardedal pergunta-se: «Cuando décimos Dios de la esperanza, ¿estamos di-
ciendo que la esperanza es una propiedad de Dios o más bien que es la forma en que Dios se revela y
el don que Dios da a los hombres?». O. González-Cardedal, Raiz de la esperanza, Salamanca 19962,
186.
29
  «Lasciate ogni speranza voi ch’entrate» (Canto Inf. III, 9). Dante Alighieri, A Divina Comédia,
Lisboa 2011, 47.

14
Por outro lado, neste ‘itinerário’, distinguimos os ‘encontros’ que acontecem nos
evangelhos sinóticos dos ‘encontros’ que aparecem no quarto evangelho, dada a
sua especificidade teológica. É uma divisão que nos parece natural e de grande
consenso entre os exegetas.
Podemos, desde já, antecipar alguns dados ‘globais’, destes 46 encontros que
identificámos: (a.) apenas 4 aparecem nos quatro evangelhos ainda que com
nuances diferentes - Jesus chama os primeiros discípulos, Jesus alimenta cin-
co mil pessoas, Jesus celebra a ‘última ceia’ com os Doze e Jesus ressuscitado
aparece aos Onze; (b.) outro dado interessante é que destes 46, mais de 30 são
com pessoas individuais, ou seja, encontros pessoais de Jesus com alguém; (c.)
desses encontros pessoais cerca de 20 são com homens e cerca de 10 com mu-
lheres; (d.) podemos ainda dizer que grande parte destes encontros são curas,
cerca de 15, algumas das quais associadas a exorcismos e ao perdão dos pecados;
(e) para além dos encontros de cura temos ainda cerca de 6 encontros de Jesus
ressuscitado, cerca de 4 encontros de conversão, 3 encontros de ‘reanimação’ e 2
encontros de chamamento.
Contudo, na impossibilidade de analisarmos exegeticamente cada um des-
tes 46 encontros decidimos escolher os que consideramos mais ‘significativos’,
depois de justificar e apresentar as razões principais dessa mesma escolha. Nos
encontros de Jesus narrados nos evangelhos sinóticos aprofundámos 12: Jesus
encontra-se com os que vai chamar para discípulos; Jesus encontra-se com o filho
único da viúva de Naim; Jesus encontra-se com uma pecadora arrependida; Jesus
encontra-se com um homem possesso por vários demónios; Jesus encontra-se
com a mulher com um fluxo de sangue e com a filha (única) de Jairo; Jesus en-
contra-se com uma mulher ao sábado na sinagoga; Jesus encontra-se com os dez
leprosos; Jesus encontra-se com o ‘jovem’ rico; Jesus encontra-se com o cego de
Jericó; Jesus encontra-se com Zaqueu; Jesus encontra-se com o ‘bom Ladrão’ na
cruz; Jesus ressuscitado encontra-se com os discípulos de Emaús. Já nos encon-
tros de Jesus narrados no quarto evangelho aprofundámos 6: Jesus encontra-se
com os que vai chamar para discípulos; Jesus encontra-se com Nicodemos; Jesus
encontra-se com a samaritana; Jesus encontra-se com uma mulher adúltera; Je-
sus encontra-se com os discípulos na ‘última ceia’; Jesus ressuscitado encontra-se
com os discípulos – em especial com Tomé.
Assim a grande centralidade deste nosso itinerário teológico será precisa-
mente a identificação dos elementos comuns a todos estes 18 encontros de Jesus.
Ou seja, o que é que Jesus oferece a todos que seja capaz de fundamentar e ‘ali-

15
mentar’ a esperança de cada um. Uma esperança que muda a vida e recria um
novo contexto existencial. Em todos estes encontros com Jesus as vidas ganham
uma esperança que está para além do mero encontro e da mera circunstância. A
esperança não parece ser o facto preciso, a cura concreta, o perdão oferecido, o
alimento dado, a dúvida esclarecida. O dinamismo da esperança é a própria rela-
ção, o tempo que essa relação revela e o desafio que essa mesma relação provoca.
De cada um destes encontros emerge a categoria existencial de tempo como o
elemento central e comum a todos os encontros. Isto é, o conteúdo da esperança
que Jesus oferece tem muito a ver com o próprio ‘tempo’. Jesus não dá um pas-
sado, não dá apenas um presente – Jesus dá um futuro. Podemos dizer que Jesus
abre cada vida a um futuro novo. A vida ganha esperança porque Jesus recria o
futuro de cada pessoa. A importância deste aspeto decorre da certeza de que este
encontro de Jesus com alguns tornar-se-á encontro de Jesus com todos. Ou seja,
este futuro que Jesus dá a cada um será o futuro que Jesus oferece a todos – como
dádiva e como presente.
Contudo, de que futuro falamos quando falamos do tempo que Jesus dá?
Entramos aqui na conceção hermenêutica do tempo, problematizando a especi-
ficidade da existência cristã a partir da dimensão escatológica. Trata-se de aco-
lher o futuro mas não um futuro qualquer. Ou seja, não é tanto o futuro que
nos ‘alcança’ através do χρόνος (tempo mensurável e do ‘relógio’), mas o futuro
que atravessa e plenifica o χρόνος - esse futuro chega-nos pelo καιρός (tempo
‘condensado’, ‘tempo pleno’, ‘tempo afetivo da comunhão plena’). Assim, talvez
possamos concluir, como Luigi Lorenzetti, que os diferentes encontros nos evan-
gelhos revelam que em Cristo o futuro é presente e que cada presente é aberto
ao seu cumprimento final, universal e cósmico30. Na esperança cristã o tempo
torna-se presente - um presente cronológico que se abre permanentemente à sua
profunda dimensão kairológica.
Neste sentido, entre o passado que recordamos e o futuro que acolhemos, este
presente kairológico não aparece apenas como mais um tempo, nem tão pouco
como uma mera ponte mas, sobretudo, como o tempo condensado e o ‘ponto de
encontro’ existencial. Só neste sentido é que a afirmação de Michele Giulio Mas-
ciarelli alcança profundidade - o presente é o lugar da esperança porque aquilo
que a esperança promete não o promete apenas, mas começa a dá-lo e a fazê-lo
fruir no presente. Deste modo, a esperança não é só a espera daquilo que ainda

  Cf. L. Lorenzetti, «La speranza ultima e le speranze penultime», RTM 158 (2008) 195.
30

16
não existe, mas é, sobretudo, a tomada de consciência de um bem que já existe,
mas deve crescer até à sua plenitude. Por isso, a esperança não qualifica o tempo
apenas como vigília, mas especialmente como um advento, ou seja, como lugar
e espaço da concretização da graça e da realização salvífica31. Este presente, que
o καιρός nos faz experimentar, revela-se como um ‘tempo novo’, um tempo que
enche a vida de esperança.
Mas quando é que começa este ‘tempo novo’? Qual o fundamento e o ponto
de partida para este tempo pleno de graça que se revela salvação? Qual é o en-
contro determinante que está na base de todos os outros encontros? Procurar o
‘encontro’ fundamental que é base deste ‘tempo novo’ que Jesus dá a cada um não
quer dizer procurar o ‘encontro primeiro’ na ordem cronológica. Jesus foi tendo
muitos encontros ao longo dos evangelhos, mas todos eles se ‘encaminham’ e
ganham sentido pleno à luz dos encontros com o ressuscitado.
Assim, o que aparece em ‘último’ revela-se progressivamente ‘primeiro’, o
que aparece no ‘fim’ revela-se a chave de leitura de cada um dos encontros. Deste
modo, só quem ressuscita pode ser plenitude do tempo e principalmente dar essa
plenitude de tempo a cada pessoa com quem se encontra. Por tudo isto, pode-
mos dizer que no início da história cristã, e da própria esperança cristã, está a
experiência fundante de um encontro com o ressuscitado: «A eles [aos apóstolos]
também apareceu vivo depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas
com as suas aparições, durante quarenta dias, e falando-lhes também a respeito
do Reino de Deus» (At 1,3).
No entanto este tempo novo, que é plenitude e graça, um tempo que é da
ordem do καιρός, para ser verdadeiramente ‘tempo em nós’, precisa de ser aco-
lhido e tocado. Caso contrário, seria apenas uma abstração teórica incapaz de
transformar a vida concreta de cada pessoa. Falamos da experiência pascal
como o reconhecimento e o acolhimento do ressuscitado por parte dos discípu-
los. De facto, a transformação dos discípulos é resultado do encontro inesperado
e surpreendente com o Senhor32. Por outras palavras, o tempo novo que o res-
suscitado oferece reclama a conversão pessoal. Jesus dá um tempo a cada pessoa
com quem se encontra, mas cabe a cada pessoa aceitar ou recusar esse tempo.
O tempo que Jesus dá traz em si um dinamismo de liberdade, que a própria
natureza do amor exige. Sendo da natureza do amor trinitário, Jesus não pode
impor-se nem impor o tempo que oferece. Deste modo, o καιρός exige atenção
 Cf. M. Masciarelli, La grande speranza, Città del Vaticano 2008, 22.
31

  Cf. H. Kessler, La risurrezione di Gesù Cristo, Brescia 20102, 194-197.


32

17
porque é um instante, reclama liberdade porque é oferta e desafia à conversão
porque é reconhecimento e acolhimento.
O tempo que Jesus dá em cada encontro não fala apenas do ‘meu’ tempo, mas
do tempo de todos os outros. A matriz da esperança cristã não é um tempo de
vida isolado, mas sempre, inevitavelmente, o tempo dos outros33. Neste contex-
to, podemos concluir que Jesus quis ‘dar-nos’ um tempo partilhado com outros,
um tempo que se tornasse comum-unidade (comunidade). Um tempo novo que,
começando na Páscoa, revela e faz ‘nascer’ a primeira comunidade cristã34. Cada
encontro de Jesus com alguém desafia à comum-unidade. Comunidade essa que
foi, desde logo, chamada ‘comunidade’ dos ‘discípulos’ e da qual o grupo dos
‘Doze’ é o primeiro paradigma. Gerhard Lohfink diz precisamente que Jesus en-
contra-se com cada pessoa individualmente mas não pensa num grupo que seja
apenas a soma de cada uma dessas pessoas. Jesus tem um interesse extremo pela
comunidade35.
Neste contexto, podemos dizer que a esperança que Jesus dá é relacional em
dois sentidos: por um lado, nasce da relação; e por outro lado, leva à relação.
Uma relação que, sendo profunda e centrada no mistério pascal da morte e res-
surreição de Jesus Cristo, faz de um grupo de pessoas individuais uma verdadei-
ra comunidade cristã. Cada encontro com Jesus leva ao seguimento e conduz à
comunidade. Essa experiência comunitária da esperança, bastante referida em
Paulo, leva-nos a concluir, como Luis Tagle, que, por um lado, a comunidade
brota da esperança e, por outro, uma verdadeira comunidade produz esperança.
Ou seja, a comunidade é não só um fruto da esperança como também portadora
de esperança36.

5. Etapas principais deste itinerário reflexivo


Este itinerário será constituído essencialmente por três grandes partes: na
primeira parte iremos fazer ‘um itinerário teológico que nos irá revelar Jesus
como a fonte da esperança’; na segunda parte iremos aprofundar ‘a esperança
que emerge dos múltiplos encontros com Jesus’ através de um trabalho mais exe-

33
 Cf. J.B. Metz, Mística de olhos abertos, São Paulo 2013, 29.
34
  «In fact the first Christian community was born from the faith in the Risen Christ». L.A. Tagle,
Easter People, New York 2005, 16.
35
 Cf. G. Lohfink, Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 101.
36
  «Community springs forth from hope and a true community brings forth hope. Thus, community
is both a fruit and a bearer of hope». L.A. Tagle, Easter People, New York 2005, 92.

18
gético; e na terceira parte iremos apresentar qual é ‘a esperança que Jesus dá’, a
partir dos elementos comuns que emergem dos diferentes encontros anterior-
mente estudados, e o quanto essa esperança nos ‘re-cria’.
Mais detalhadamente podemos dizer que, na primeira parte deste itinerá-
rio, vamos sublinhar alguns elementos que nos ajudam a ‘adentrar’ na esperan-
ça37, onde referimos, por um lado, o ‘regresso’ da esperança na segunda metade
do século XX com filósofo ateu Bloch e o teólogo evangélico Moltmann e, por
outro, o sentido mais ‘longínquo’ de ἐλπίς que podemos encontrar no mito de
Prometeu e na antiguidade grega; depois iremos falar da esperança no AT a
partir da categoria da promessa; em seguida falaremos da esperança no NT a
partir da relação com Jesus Cristo que é fonte da esperança, distinguindo entre
a esperança ‘não explícita’ nos evangelhos e esperança ‘explícita’, sobretudo, nos
escritos paulinos; por último, iremos tentar perceber como é que os Padres da
Igreja ‘acolheram’ esta esperança revelada no NT e a transmitiram nos primei-
ros cinco séculos do cristianismo.
Na segunda parte falaremos da esperança a partir dos múltiplos encontros
com Jesus. Analisaremos 12 encontros de Jesus narrados nos evangelhos sinóti-
cos e 6 encontros de Jesus narrados no quarto evangelho. Esta segunda parte será
a mais longa e extensa, não só pela exigência que decorre de um trabalho exegé-
tico necessário para ‘entrar’ dentro de cada encontro, mas também porque quise-
mos apresentar um número alargado e diversificado de encontros que pudessem
‘representar’ a diversidade e a densidade dos muitos encontros que Jesus teve nos
evangelhos. São 18 encontros que ‘iluminam’ o itinerário e nos revelam elemen-
tos capazes fundamentar e estruturar a ‘novidade’ desta reflexão teológica.
Claro que um teólogo dogmático não é um exegeta. Estou bem consciente
disso. Contudo, como diz Edward Schillebeeckx, um teólogo sem escritura está
perdido. Nesse sentido a sua pergunta é legítima e acertada: estará um teólogo
(dogmático) dependente dos exegetas profissionais? A resposta terá de ser «não».
De facto, um teólogo está dependente não dos exegetas profissionais mas da exe-
gese profissional. Também entre os exegetas, como é natural em todas as ciências,
há muitas opiniões divergentes. Deste modo, um teólogo (dogmático) não deve

37
  Hans Urs von Balthasar afirma que a história da esperança no ocidente se desenvolve em quatro
fases: a antiga, a bíblica, a do pensamento cristão e a moderna. Todavia, continua o autor, enquanto
a esperança bíblica se funda sobre os melhores resultados do pensamento dos antigos, na esperança
moderna, onde falta este pressuposto, o homem é posto diante de uma escolha apocalíptica. Cf. H.U.
von Balthasar, La verità è sinfonica, Milano 19913, 123.

19
escolher as interpretações que lhe dão mais jeito, mas deve julgar o valor dos
argumentos exegéticos para determinada opção de tradução e/ou de interpreta-
ção. Na verdade, conclui Schillebeeckx, sem exegese todo o trabalho do teólogo
permanece suspenso no ar38. Assumimos assim esse trabalho com a seriedade e a
responsabilidade inerente a qualquer estudioso.
Dada a extensão dos textos analisados e ao facto de ser um trabalho do âmbito
da teologia dogmática e não da teologia bíblica, importa esclarecer que com a pa-
lavra exegese, presente no sub-título, quisemos dizer, essencialmente, três passos,
que realizámos: (1) consultámos o texto no seu original grego; (2) procuramos
fazer uma tradução para português propondo justificadamente várias alterações,
quer a partir do texto grego quer a partir do contributo de alguns exegetas; (3) por
fim, escrevemos um comentário bíblico, no âmbito do objetivo desta reflexão aca-
démica, onde consideramos, para além da delimitação da perícopa e os títulos que
esta recebe em alguns exegetas, a relação do texto com outras passagens no AT e
NT, os elementos da análise estrutural e o sentido teológico. No entanto, apesar de
todo este trabalho de exegese, que nos pareceu necessário e importante, temos a
consciência de que este nosso trabalho não tem a profundidade que o processo da
exegese científica exige39. Não é a nossa área nem sequer o nosso objetivo.
Por último, chegamos à terceira parte. Depois de termos analisado longa-
mente estes 18 encontros, começamos por sublinhar os dados que emergem des-
ses mesmos encontros. Neste sentido, referimos que a esperança começa no en-
contro pessoal de Jesus com cada pessoa, um ‘ser-se-entre’ que se revelou, desde
logo, no chamamento dos discípulos e que levou à cura e a reanimação de muitos;
depois vimos que nesse encontro Jesus dá a cada pessoa um ‘tempo novo’, que
se compreende na tensão entre χρόνος e καιρός, onde o καιρός surge como a
plenitude do tempo iniciado na ressurreição e a precisar de ser acolhido em per-
manente conversão; por fim, cada um desses encontros com Jesus conduz cada
pessoa à comunidade, uma comum-unidade convocada que se define como fila-
délfia e que, consequentemente, se torna diakonia e martyria.
Este trabalho não conclui com um resumo de todo o trabalho, não procura

38
 Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 29-31.
39
  De facto, como nos diz Antonio Artola e José Manuel Caro, a exegese tem cinco passos: (1) fase pre-
paratória do texto; (2) leitura sincrónica; (3) leitura diacrónica; (4) interpretação histórica e (5) leitura
hermenêutica. Aprofundando cada uma destas etapas percebemos a complexidade e a exigência ine-
rente à exegese científica no sentido estrito da palavra. Cf. A. Artola, J.M. Caro, Introduccion al estudio
de la biblia, II, Estella 1989, 367-402. Aconselhamos ainda: R. Aguirre Monasterio, «Introduccion a
los Evangelios sinópticos», Estella 1992, 79-80.

20
repetir o anteriormente dito, não se centra nas grandezas e nos limites do ca-
minho percorrido, nem arrisca ‘um ponto final’, mas procura abrir horizontes a
partir do dinamismo hermenêutico existencial e performativo da esperança. Re-
fletir é sempre um caminho inacabado. Daí que o título destas últimas páginas
seja «a modo de conclusão». Com efeito, neste último ponto iremos refletir sobre
o dinamismo existencial performativo da esperança na sua articulação de mútua
reciprocidade entre pessoa-tempo-comunidade. Um dinamismo que gera factos
e muda vidas. De facto, quem tem esperança, vive diversamente, porque lhe foi
dada uma vida nova (cf. SS 2). Um dinamismo que reclama a força transfor-
madora da esperança que Jesus continua a dar em cada encontro de hoje. Uma
verdadeira hermenêutica da esperança que Jesus dá - daí que seja ‘dá’ e não ‘deu’
ou ‘dará’, daí que se conjugue o verbo no ‘presente’ e não ‘passado’ ou ‘futuro’. Na
verdade, a esperança que Jesus dá é um presente contínuo que continua a trans-
formar vidas e comunidades.

21
22
PRIMEIRA PARTE

Um itinerário teológico
que nos revela Jesus como fonte da esperança
Capítulo I

Elementos que nos fazem ‘adentrar’


no itinerário da esperança

«Eu vivo, logo eu espero, é um silogismo justíssimo…»1, diz o filosofo ateu


italiano Salvatore Natoli. Mas não será a esperança uma ilusão? Paul Ricoeur
diz que não2. A esperança não é a mesma coisa que o otimismo? Jean Daniélou
responde categoricamente dizendo que a esperança não só não é otimismo como
o otimismo é o pior inimigo da esperança3. Se não é otimismo e se não é uma
ilusão, então o que podemos esperar? Já Emanuel Kant se tinha colocado diante
desta interrogação quando formulou a três famosas perguntas: «Que posso sa-
ber? Que devo fazer? O que me é permitido esperar?»4.
Estas afirmações e, sobretudo, estas perguntas introduzem a esperança na
dimensão constitutiva do ser humano. Neste mesmo sentido, afirma o teólogo
espanhol jesuíta Juan Alfaro, a esperança está presente em todas as dimensões

1
  Cf. S. Natoli, «Speranza», in Dizionario dei vizi e delle virtù, Milano 20097, 117.
2
  «Espérance n’est pas illusion». P. Ricoeur, Philosophie de la volonté, Paris 1949, 451.
3
 Cf. J. Daniélou, «La speranza», in Saggio sul mistero della storia, Brescia 2012, 370. Na página
seguinte o autor, que escreve em 1953, dirá que o marxismo é uma forma deste otimismo, quando
afirma que com a transformação das condições económicas o homem pode transformar a sua condi-
ção e alcançar o absoluto.
4
  «Was Kann ich wissen? Was soll ich tun? Was darf ich hoffen?» [A.805/B.833], in I. Kant, Critica
della ragion pura, Milano 2004, 1132. Importa chamar a atenção que esta formulação conduz, em
parte, à prejudicial separação, no pensamento iluminista, entre saber, agir e esperar. Cf. G. Angelini,
«La speranza ‘militante’», Milano 2000, 13-14. Um processo que termina na sepação entre o objeto da
esperança e o motivo da esperança, numa dissociação entre fé e esperança. Cf. A. Bertuletti, «Il ris-
catto della speranza», Milano 2000, 98. Jürgen Moltmann também faz um crítica ao modo como Kant
formula estas três questões. Cf. J. Moltmann, Etica della speranza, Brescia 2011, 13-15. Ver ainda: G.
Lafont, Che cosa possiamo sperare?, Bologna 2011, 30-32.

25
fundamentais da existência humana, ou seja, na consciência do homem, na sua
liberdade, na sua historicidade e temporalidade, na sua relação com o mundo e
com os outros5. Assim, talvez possamos dizer que o homem não tem esperança
mas que é esperança. Existir é aspirar e aspirar é esperar6. O homem vive a sua
própria existência como ‘ser-em-esperança’, como projeto a realizar-se, olha sem-
pre para além do presente até às suas possibilidades no futuro7. De facto, a no-
ção de esperança não nasce com o cristianismo. Esperar é uma experiência que
acompanha a vida de cada ser humano, um dado comum da experiência8. Talvez
por isso, seja ‘importante aprender a esperar’9 porque a espera é uma dimensão
constitutiva da natureza humana10 - «logo, viver humanamente é esperar»11. Mas
a pergunta que se impõe é: ‘O que é verdadeiramente a esperança’?12

1. O ‘regresso’ da esperança na segunda metade do século XX


Apesar de várias publicações como Über die Hoffnung, do filósofo tomista
alemão Joseph Pieper, em 1935; ou de Homo viator: Prolégomènes à une métaphy-
sique de l’espérance, publicada pelo filósofo francês Gabriel Marcel, em 194413;
ou ainda de La espera y la esperanza, do médico e filósofo espanhol Pedro Laín
Entralgo, publicada em 195714, foi o contributo do filósofo ateu alemão Ernst Blo-
ch que marcou radicalmente a reflexão da segunda metade do século XX sobre
a esperança. O filósofo alemão, Ernst Bloch, defende a importância do Princípio
Esperança [Das Prinzip Hoffnung], nos seus escritos entre 1938-1947 (revistos

5
 Cf. J. Alfaro, «Les espoirs intramondains et l’espérance chrétienne», Conc(F) 59 (1970) 53.
6
  «El hombre no tiene esperanza; es esperanza. Existir es aspirar y aspirar es esperar». O. González-
-Cardedal, Raiz de la esperanza, Salamanca 19962, 213.
7
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 17.
8
 Cf. U. Occhialini, La speranza della chiesa pellegrina, Assisi 1965, 25.
9
  Cf. E. Bloch, Il principio speranza, Milano 20092, 5.
10
 Cf. P. Laín-Entralgo, La espera y la esperanza, Madrid 19582, 539-540.
11
  J.H.S. Brito, «O desafio da esperança», Brot. 168 (2009) 158.
12
  Cf. J. Ratzinger, «Sulla speranza», II, Brescia 1984, 10.
13
  Cf. P. Poupard, «Speranza e disperazione nella cultura contemporanea», I, Brescia 1984, 90-91.
14
  O subtítulo da obra «Historia y teoria del esperar humano» diz muito do conteúdo da mesma.
Publicada pela primeira vez em 1957, o autor divide a obra em cinco partes: constituição da teoria
cristã da esperança (onde falará da esperança em S. Paulo, Sto Agostinho, S. Tomás de Aquino e S.
João da Cruz); a esperança no mundo moderno (onde falará entre outros de Lutero, Calvino, Bossuet,
Newman, Bultmann, Comte, Kant, Marx, Hegel); a esperança na crise do nosso tempo (onde falará de
Martin Heidegger, Gabriel Marcel e Jean-Paul Sartre); a esperança na Espanha contemporânea (onde
falará de Miguel Unamuno, Antonio Machado e Ortega); e, por fim, antropologia da esperança (um
capítulo sobretudo antropológico-filosófico). Cf. P. Laín-Entralgo, La espera y la esperanza, Madrid
19582.

26
e publicados em 1953 e 1959)15, sempre dentro do materialismo marxista, mas
numa perspetiva ontológica16. Alguns anos depois, o teólogo evangélico Jürgen
Moltmann publica a Teologia da esperança [Theologie der Hoffnung] (1964)17
onde discute a tese d’O princípio esperança de Ernst Bloch18, concluindo que a
escatologia cristã poderá, por um lado, exprimir-se a favor do princípio esperança
e, por outro, poderá receber do mesmo o impulso para melhor se delinear19.

1.1. A importância do «Princípio Esperança» do filósofo Ernst Bloch


De facto, em Ernst Bloch encontramos, por diversos caminhos, um ‘trans-
cender sem transcendência’, numa espécie de ‘imanência interiorizada’20, mas

15
  Cf. E. Bloch, Il principio speranza, Milano 20092, 14.
16
  Ibidem, 246. Sobre a vida, o pensamento e bibliografia sobre Ernst Bloch aconselhamos: B. Mon-
din, I teologi della speranza, Roma 1970, 17-27. Aqui conta-se que Bloch fez parte do movimento filo-
sófico conhecido com o nome de «marxismo esotérico» e que esta sua obra recebeu críticas de muitos
lados, inclusive dos seus companheiros marxistas que o acusaram de revisionismo e heresia. Bloch fez
com a ‘esperança’ o que antes Heidegger tinha feito com o ‘ser’, trazendo-a para o centro da filosofia.
No fundamento da sua filosofia da esperança coloca a tese marxista que o homem se encontra num
estado de alienação, não numa perspetiva económica (como Marx) mas num horizonte ontológico.
Para Bloch o homem está alienado porque, como o universo de que faz parte, está essencialmente
incompleto e está em tensão para a plenitude. Ver ainda: S. Formosinho, J.O. Branco, A esperança,
utopia impossível?, Coimbra 2017.
17
  Sobre a vida e principalmente sobre a obra de Jürgen Moltmann aconselhamos: J.C. Carvalho,
«Notas biográficas e teológicas sobre Jürgen Moltmann», HumTeo 28 (2007) 51-65; R. Bauckham, The
Theology of Jürgen Moltmann, Edinburgh 1995; R. Bauckham, ed., God Will be All in All. The Escha-
tology of Jürgen Moltmann, Edinburgh 1998; J.-L. Souletie, La croix de Dieu. Eschatologie et histoire
dans la perspective christologique de Jürgen Moltmann, Paris 1997; S.-K. Tang, God’s History in the
Theology of Jürgen Moltmann, Bern 1996; N.S. Gonçalves, «Moltmann: esperança escatológica e
empenho no mundo», Brot. 126 (1988) 21-27; A.J. Conyers, God, Hope and History. Jürgen Moltmann
and the Christian Concept of History, Macon 1988; B.F. García, Cristo de esperanza. La cristología
escatológica de J. Moltmann, Salamanca 1985; A. Skvorcevic, Ecclesiologia escatologico-messianica di
Jürgen Moltmann, Roma 1982; E. Carli, La teologia della speranza di Jürgen Moltmann, Roma 1980;
W.D. Marsch, Dibattito sulla teologia della speranza di Jürgen Moltmann, Brescia 1973.
18
 Battista Mondin irá apresentar a influência que Ernst Bloch teve na teologia da esperança; falando
sobretudo da vida e do pensamento daqueles que designa como os teólogos da esperança: Jürgen
Moltmann, Wolfhardt Pannenberg, Harvey Cox, Johannes Metz, Edward Schillebeeckx, Ferdinand
Kerstiens e Hendrikus Berkhof. Cf. Mondin, I teologi della speranza, Roma 1970, 45-139. Especifi-
camente sobre a influência de Bloch em Moltmann aconselhamos: G. Angelini, «La speranza ‘mi-
litante’», Milano 2000, 35-37; T. Healy, «A esperança humana: um desafio interdisciplinar», Brot.
137 (1993) 129-133; M. Matic, Jürgen Moltmanns Theologie in Auseinandersetzung mit Ernst Bloch,
Frankfurt-Bern-New York 1983; S.P. Maraschi, «La struttura concettuale della teologia della spe-
ranza», VP 55 (1972) 86-90.
19
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 373.
20
  Cf. A.T. Queiruga, «Elpidología: La esperanza como existenciario humano», ThX 154 (2005) 177.

27
sempre intra-histórica. O homem é sempre um projeto por realizar (pro-jeto),
um ser incompleto (dever-ser), uma realidade que procura a sua identidade, que
só o futuro pode manifestar plenamente num processo evolutivo. Uma tensão
onde a esperança aparece como uma procura prometaica de um ser que não é
ainda e procura tornar-se naquilo que deve ser. Assim, o ser perfeito é alcançado
escatologicamente no ponto ómega e não no ponto alfa, ou seja, não existe na
origem21. No entanto, para ele a esperança é o único Deus que existe. Não há
um princípio da esperança mas apenas a esperança é o princípio e o fim22. Deste
modo, nesta «enciclopédia da esperança»23, Bloch levou ao extremo esta interpre-
tação afirmando que Deus é esperança e a esperança é Deus (Deus Spei = Spes
Deus). Ele designou assim o ‘princípio esperança’, como última forma de mar-
xismo humanista e última depuração do cristianismo no ateísmo24. Bloch teve o
objetivo de ‘combinar’ o cristianismo com o marxismo, de modo que o marxis-
mo pudesse purificar o cristianismo da sua fé em Deus e o cristianismo salvasse
o marxismo de degenerar em vulgar ateísmo. A esperança cristã foi a mais ampla
esperança que Bloch encontrou, propondo contudo uma interpretação ateia em
que a tradição judaico-cristã fosse uma antecipação do marxismo25. A esperança
era vista por ele como a alma mais íntima de toda a realidade, quase como o seu
respiro ou o sopro vital26. Apesar de todas as críticas que podemos, e devemos,
fazer à sua tese27, temos que reconhecer o grande mérito de ter reproposto o tema
da esperança no contexto do pensamento filosófico28.
O teólogo Juan Alfaro dirá, a este propósito, que se deve reconhecer a Bloch o
mérito de ter visto na esperança o fundamento permanente que sustem a huma-

21
  Cf. O. Bettini, «La speranza cristiana stravolta in Ernst Bloch», I, Brescia 1984, 152-153.
22
 Cf. O. González-Cardedal, Raiz de la esperanza, Salamanca 19962, 12. «La speranza, descritta
da Bloch, è un prodotto dell’opera dell’uomo. Essa viene portata a compimento dallo stesso uomo nel
‘laboratorium spei’». J. Ratzinger, «Sulla speranza», II, Brescia 1984, 14.
23
 E. Bloch, Il principio speranza, Milano 20092, 22.
24
 Cf. O. González-Cardedal, Raiz de la esperanza, Salamanca 19962, 38.
25
  Cf. T. Healy, «A esperança humana: um desafio interdisciplinar», Brot. 137 (1993) 131.
26
 Cf. P. Poupard, «Speranza e disperazione nella cultura contemporanea», I, Brescia
1984, 92.
27
  Sugerimos a leitura de B. Puthur, From the Principle of Hope, Kerala 1987, sobretudo o quarto
capítulo intitulado «The Passage from the Principle of Hope to a Theology of Hope» (106-148), onde se
enumeram vários limites do ‘princípio esperança’ de Bloch. Trata-se de uma publicação decorrente da
dissertação de doutoramento apresentada na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Ver ainda:
O. Bettini, «La speranza cristiana stravolta in Ernst Bloch», I, Brescia 1984, 151-192.
28
  «È noto che un ateo dichiarato, Ernst Bloch, con il suo ‘Principio della Speranza’ há fatto di questo
tema piuttosto dimenticato com incredibile forza il vero centro di attenzione di tutta la filosofia». J.
Ratzinger, «Sulla speranza», II, Brescia 1984, 10.

28
nidade na sua ação transformadora do mundo e de ter descoberto a correspon-
dência entre ‘o que ainda não se tornou consciente’ no homem e ‘o que ainda não
se tornou real no mundo’. Contudo, precisamente dentro do seu mesmo ‘princí-
pio-esperança’, torna-se evidente a enorme fragilidade da última conclusão lógi-
ca do seu pensamento: o futuro como a realização da harmonia total do homem
com o mundo transformado por ele, com os outros e consigo mesmo, ou seja,
como plenitude do homem no mundo. Ao excluir a possibilidade de um provir
transcendente e afirmar o futuro definitivo da história como imanente dentro da
mútua relação ‘humanidade-mundo’, destruiu nada menos que o seu ‘princípio-
-esperança’. Ou seja, no dia em que o homem dominasse totalmente o mundo,
não poderia esperar nada, somente aguardar o retorno indefinido do mesmo: a
esperança, condição fundamental do existir humano, teria desaparecido; restaria
apenas a náusea desesperada do sempre-igual29.

1.2. O contributo do teólogo Jürgen Moltmann para uma «Teologia da


Esperança»
A Teologia da esperança (1964), de Jürgen Moltmann, como refere Rosino Gi-
bellini, teve o mérito, por um lado, de iniciar um novo debate teológico que rom-
pia com as posições cristalizadas da teologia evangélica dos anos 60, muito ‘refém’
das referências a Barth ou, em contraposição, a Bultmann30; e por outro, este texto
passa a ser o texto chave do confronto entre a esperança cristã e a esperança mar-
xista. No entanto, este mesmo autor indica quatro limitações: a escatologia cristã
não pode excluir a categoria da epifania; tem de se diferenciar claramente de uma

29
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 25-26. «Bloch è so-
prattutto l’uomo della speranza, il pioniere di un ‘messianismo’ terreno, tutto pervaso di aspettative
esaltanti’». Cf. O. Bettini, «La speranza cristiana stravolta in Ernst Bloch», I, Brescia 1984, 189.
30
  A teologia da esperança é constituída pela preocupação de fundamentar a teologia não em cha-
ve metafísica-trascendental nem em chave existencial individualística. A teologia dialética de Barth
resolve o problema ‘fé-razão’, colocado pela teologia liberal, com o binómio ‘fé-graça’, reduzindo a
história da salvação a uma ‘supra-história’; a escatologia de Bultmann, responde à mesma questão com
o binómio ‘fé-existência’, resolvendo assim a história na historicidade da existência; e os teólogos da
esperança, respondem com um duplo binómio: fé-história e história-futuro. Deste modo, a história tor-
na-se o horizonte da teologia cristã, onde cada pergunta e cada resposta de ordem teológica tem o seu
sentido apenas no âmbito da história que constrói com os homens. Os instrumentos para esta passagem
de quadro concetual encontram-se sobretudo no pensamento marxista de Ernst Bloch e na teologia
bíblica de Gerhard von Rad. Wolfhart Pannenberg foi um dos que mais se preocupou em aprofundar o
horizonte concetual desta nova leitura teológica, trabalhando sobretudo a relação entre história e reve-
lação. Cf. S.P. Maraschi, «La struttura concettuale della teologia della speranza», VP 55 (1972) 86-87.
Ver ainda: E.A. Higuet, «‘Teologia da Esperança’ - Primeiro balanço crítico», EstRel 11 (1995) 27-52.

29
futurologia filosófica para o processo e progresso histórico; tem a sua fundação
na cristologia, no justo equilíbrio entre cruz, ressurreição e futuro de Cristo; por
último, a missão da Igreja e do cristianismo deve ser apresentada concretamente e
não apenas como uma ideia ‘vaga’ do ponto de vista da esperança31.
Esta obra, que representou uma mudança radical a respeito da tendência do-
minante da teologia protestante da primeira metade do século XX, teve um aco-
lhimento imediato na teologia católica já que interpretava uma exigência difusa
no catolicismo pós-conciliar32, onde devemos recordar nomes como o teólogo
australiano Gerald O’Collins33, o espanhol Juan Alfaro34, o suiço Hans Urs von
Balthasar35, o alemão Johann Baptista Metz36, o peruano Gustavo Gutiérrez37,
o holandês Edward Schillebeeckx38, ou mais recentemente o espanhol Olegario
González de Cardedal39.
Esta reflexão da esperança no contexto católico tem na constituição conciliar
Gaudium et spes (1965) um ponto de referência. Neste documento ‘inaugurou-se’
um sentido novo da relação entre a Igreja e o mundo em que esta se insere, num
diálogo que, superando o dualismo entre história e o fim transcendente, ‘incarna’
as esperanças e as conquistas da humanidade40. Diz-se que «a importância das

31
  Cf. R. Gibellini, «Jürgen Moltmann», Brescia 1978, 737-744. Paul Poupard, apesar de reconhecer o
mérito desta obra, insiste na tentação de um pensamento teológico obcecado pelo futuro. Cf. P. Pou-
pard, «Speranza e disperazione nella cultura contemporanea», I, Brescia 1984, 95.
32
  Cf. A. Bertuletti, «Il riscatto della speranza», Milano 2000, 89.
33
  Este teólogo jesuita publicou, em 1968, o livro «The theology of hope».
34
  Este teólogo jesuita publicou, em 1972, o livro «Esperanza cristiana y liberación del hombre».
35
  Este teólogo publicou, em 1972, um capítulo onde fala dos ‘três rostos da esperança’ no seu livro
«Die Wahrheit ist symphonisch».
36
  Foi aluno de Karl Rahner, acabou por ‘desligar-se’ da teologia transcendental do seu mestre para
defendender uma teologia fundamental socialmente comprometida – sendo um dos fundadores e
máximo representante da teologia política, que muito influenciou a teologia da libertação.
37
  Este teólogo dominicano publicou, em 1971, o famoso livro: «Teología de la liberacion». Por isso,
ficou conhecido precisamente como o ‘pai’ da Teologia da Libertação.
38
  A teologia deste dominicano é descrita como uma ‘teologia da praxis’ e, neste sentido, considerada
próxima, sobretudo, da teologia da libertação. Basta recordar o subtítulo do seu livro «O Cristo», pu-
blicado originalmente em holandês em 1977, que diz na versão italiano «La storia di una nuova prassi».
39
 O. González Cardedal publicou, em 1995, «Raiz de la Esperanza».
40
  Esta nova perspetiva afasta-se do modelo ‘político’ da esperança sustentado quer pela eclesiologia
do catolicismo pré-conciliar – onde a Igreja era a ‘sociedade perfeita’ que dava acesso à salvação (em
alternativa e contra o mundo contemporâneo edificado sobre ideais contrários à fé); quer pelo modelo
escatológico existencial – onde havia uma clara separação entre o futuro histórico-mundando e o fu-
turo da existência (modelo proposto pela teologia liberal e reformulado por Bultmann). De facto, esta
nova perspetiva conciliar aproxima-se muito mais do modelo da teologia transcendental defendida
sobretudo por Karl Rahner. Cf. A. Bertuletti, «Il riscatto della speranza», Milano 2000, 90.

30
tarefas terrenas não é diminuída pela esperança escatológica, mas que esta antes
reforça com novos motivos a sua execução» (GS 21). Daí a pergunta: «Para que
fim tendem os esforços dos indivíduos e das sociedades?» (GS 33) à qual ‘respon-
de’: «uma coisa é certa para os crentes: a atividade humana individual e coletiva,
aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos séculos, tentaram
melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus» (GS 34). Contu-
do, o Concílio Vaticano II conclui: «embora o progresso terreno se deva cuida-
dosamente distinguir do crescimento do reino de Cristo, todavia, na medida em
que pode contribuir para a melhor organização da sociedade humana, interessa
muito ao reino de Deus» (GS 39). De facto, nenhum outro concílio tratou da es-
perança com a mesma extensão e profundidade41.
Contudo, nos últimos anos, parece que a esperança é um tema sempre em
‘contra-tempo’ e sobretudo ‘fora de estação’, mesmo dentro do cristianismo, com
exceção da Encíclica Spe Salvi de Bento XVI (2007)42. Porém, apesar desta encícli-
ca e de toda a reflexão que se seguiu, não se pode comparar a épocas anteriores43.
É verdade que se escreve sobre a esperança e que se insiste na importância da
esperança; é verdade que são vários os artigos científicos, os livros de teologia
e os congressos que retomam o tema da esperança cristã44. Mas tudo isso não

41
  Cf. G. Frosini, «La risposta alla grande domanda di speranza», RTM 158 (2008) 165. Ver ainda: P.
Poupard, «Speranza e disperazione nella cultura contemporanea», I, Brescia 1984, 98-99.
42
  «La speranza è un tema anticiclico, fuori stagione». J.T. Mendonça, «‘Sperare contro ogni speran-
za’», RCI 46 (2015) 174. De facto, devemos referir que em 2007 a Encíclica Spe Salvi, de Bento XVI, foi
uma exceção e permitiu que a seguir muitos comentários e reflexões sobre a esperança fossem publi-
cados. Destacamos entre outros: M.G. Masciarelli, La grande speranza. Commento organico all’En-
ciclica ‘Spe Salvi’ di Benedetto XVI, Città del Vaticano 2008; Aa.Vv., Salvati nella speranza. Commento
e guida alla lettura dell’Enciclica ‘Spe Salvi’ di Benedetto XVI, Milano 2008; F. Brancato, «La lettera
enciclica Spe Salvi di papa Benedetto XVI», Syn. 26 (2008) 7-44; J. Moltmann, «Horizons of Hope: A
Critique of ‘Spe Salvi’», ChrCent 125 (2008) 31-33; G. Angelini, «‘Spe salvi’: Realismo della speranza
e forma pratica della fede», Teol (M) 33 (2008) 315-326; D.V. Henry, «Hope’s Promise for Christians
in the Not Yet and In Between», in LCath 14 (2011) 104-132; D.G. Guillén, «El rosto de la esperanza:
Lectura cristológica de Spe salvi», ScrVict 58 (2011) 151-221; L.M. Epicoco (ed), Futuro presente. Con-
tributi sull’Enciclica Spe Salvi di Benedetto XVI, Todi 2009; D. Doyle, «Spe Salvi on Eschatological
and Secular Hope», TS 71 (2010) 2, 350-379.
43
 J.T. Mendonça, «‘Sperare contro ogni speranza’», RCI 46 (2015) 175.
44
  Referimos alguns congressos realizados nos últimos anos sobre este tema: Jornadas de estudos
teológicos da Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Lisboa (11 a 13 de fevereiro de 2015)
«Esperar contra toda a esperança»; Convénio Eclesial de Verona (16 a 20 de outubro de 2006) com o
tema: «Testimoni di Gesù risorto, speranza del mundo!»; IX Congresso Nacional da Colômbia (7 a 9
outubro 2004) com o tema «La esperanza cristiana»; Congresso Nacional da Associação teológica Ita-
liana para o estudo da Moral (9 a 12 setembro 2002) – com o título «Speranza escatologica e speranza
umana»; X Jornadas de Teologia Fundamental em Pamplona (7 a 9 Junho 2001); Convénio de estudo

31
significa necessariamente aprofundar um tema e, principalmente, alargar o hori-
zonte desse mesmo tema. Deste modo, talvez mais que ‘fora de estação’ o grande
‘problema da esperança’ é que volta sempre ‘às mesmas estações’. Neste sentido,
Giuseppe Angelini diz que na cultura europeia, moderna e laica, a esperança
parece que se reduz exclusivamente à consciência individual e ao seu destino
escatológico. Fechada no espaço exclusivo da consciência subjetiva e privada a
esperança surge quase como uma questão ‘afastada’ do empenho histórico45. Mas
temos de reconhecer que nos momentos obscuros e inquietantes o Espírito sopra
ainda mais forte. De facto, é o Espírito Santo de esperança que, mesmo entre
ambiguidades e incertezas, nos lança na procura e na construção de uma huma-
nidade nova e de um novo modo de viver como ser humano46.
De facto, a vida do cristão é e tem de ser vida em esperança47. Mas o que espe-
ramos? E o que nos espera?48 Ou melhor ainda, o que esperamos nós quando di-
zemos que ‘esperamos’? No fundo, qual é o conteúdo da esperança?! Todas estas
perguntas exigem um itinerário teológico e semântico que não podemos ignorar.
Percebendo a necessidade da esperança para o mundo e para a história, o termo
‘esperança’ acaba por ser usado, e abusado, em todos os âmbitos e a propósito de
todos os desejos49. Isso pode significar que poucos têm a coragem de verdadei-
ramente enfrentar com seriedade o seu significado porque, talvez, nos obrigasse
a repensar o nosso modo de habitar o mundo50. Interessante sublinhar que os
autores orientais, gregos, latinos e europeus (des)escreveram a esperança como
indispensável ao desenvolvimento do homem, enquanto ‘peregrino do absolu-
to’51. No fundo enfrentar o tema da esperança é arriscar um itinerário exigente
e, ao mesmo tempo, desafiante. Como afirma o jesuíta Gustavo Bustamante, a
esperança é um daqueles temas sobre os quais todo o ser humano parece ter
alguma experiência e possui alguma ideia; todavia quando se trata de precisar a

sobre a «Crisi della speranza» em Bérgamo (março 1999); Congresso intitulado «La Speranza» no
Pontifício Ateneu ‘Antonianum’ em Roma (30 de maio a 2 de junho de 1982).
45
  Cf. G. Angelini, «La speranza ‘militante’», Milano 2000, 12-13.
46
  Cf. L.A. Tagle, Easter People, New York 2005, 13.
47
 Cf. P. Laín-Entralgo, La espera y la esperanza, Madrid 19582, 23.
48
  «Chi siamo? Da dove veniamo? Dove andiamo? Che cosa ci aspetiamo? E che cosa ci aspetta?». E.
Bloch, Il principio speranza, Milano 20092, 5.
49
  O jesuíta Giuseppe Bortone faz um interessante percurso literário da esperança, onde sublinha a
presença da esperança na cultura egípcia, greco-latina, bíblica, contemporânea (sobretudo italiana).
Cf. G. Bortone, «La speranza, incrocio tra virtù naturale e teologale», L’Aquila 2002, 133-202.
50
  Cf. L. Margaria, «Lo scacco della speranza», ATT 15 (2009) 299.
51
  Cf. G. Bortone, «La speranza, incrocio tra virtù naturale e teologale», L’Aquila 2002, 133.

32
identidade e a realidade concreta parece que esta nos escapa, e talvez isso acon-
teça mais ainda quando se trata da especificidade da ‘esperança cristã’ enquanto
tal52. Neste itinerário, norteia-nos a afirmação de González de Cardedal: antes de
um princípio-esperança deve haver um princípio da esperança53.

2. O ‘regresso’ à esperança não pode ignorar o sentido mais ‘longínquo’


de ἐλπίς
Com este itinerário do sentido da palavra esperança queremos evitar um cris-
tocentrismo teológico que confunda centralidade com início. Efetivamente Cristo
é o centro, porque é o coração, o fundamento de toda a escatologia, ele próprio é
o ἔσχατος54. No entanto, o facto de ser centro não quer dizer que seja o início, por
isso, queremos começar este caminho (ὁδός) pela ἐλπίς dos gregos para chegarmos
(μετά) à conceção de ἐλπίς para o cristianismo. Este itinerário (μέθοδος55) que le-
vará ao confronto entre estes conceitos de esperança não é mera curiosidade histó-
rica, semântica ou cultural, mas uma exigência metodológica se queremos colher a
originalidade do Evangelho. São dois os motivos principais. Antes de mais, porque
os evangelhos foram escritos em grego e, como tal, precisamos de aprofundar o
sentido de ἐλπίς presente nessa mesma língua. Tendo sido o NT escrito em grego,
este acaba por ser uma fonte, literária e cultural, que a teologia não pode prescin-
dir. A tradução dos textos bíblicos não é, por si mesma, suficiente para assegurar
uma verdadeira compreensão e autêntica interpretação. Por outro lado, afirma o
teólogo Antonio Nitrola, a constatação das nossas duas matrizes (hebraica e gre-
ga) leva-nos a reconhecer que o nascimento da esperança, da nossa esperança, é
confiado a uma narração longínqua, mas inevitavelmente próxima, àquele mito
de Prometeu que repetidamente procuramos reler para compreender algo de nós
mesmos56. De facto, a Prometeu está associado o fogo, a técnica e a esperança.

52
 Cf. G.B. Bustamante, «La esperanza en la vida critiana», ThX 154 (2005) 210.
53
  O. González-Cardedal, Raiz de la esperanza, Salamanca 19962, 480.
54
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 257.
55
  A palvra μέθοδος significa ‘caminho para atingir algo’. Contudo, não deixa de ser curioso que asso-
ciado ao verbo μεθοδεύω esteja a ideia de ‘usar a sedução da eloquência’. Cf. C. Rusconi, «μεθοδεία»,
in DGNT, São Paulo 2003, 299.
56
  Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza», L’Aquila 2002, 262. Vários autores fazem referên-
cia a uma esperança prometaica, referimos alguns: H.U. von Balthasar, La verità è sinfonica, Milano
19913, 124; E. Bloch, Il principio speranza, Milano 20092, 1399-1404; G. Visonà, «Introdução», in La
speranza nei Padri, Milano 1993, 15; S. Formosinho, J.O. Branco, A esperança, utopia impossível?,
Coimbra 2017, 435 e seguintes. Contudo, apenas neste artigo do teólogo Antonio Nitrola, que aqui segui-
mos de perto, encontrámos uma análise profunda do mito capaz de nos fazer entrar na ἐλπίς dos gregos.

33
2.1. Mito de Prometeu – a ἐλπίς como um dom ambíguo
Hesíodo (VIII-VII a.C.) conta na sua Teogonia que Zeus confiou a Prome-
teu, que significa ‘prudente’ ou ‘previdente’57, a missão de dividir os homens dos
deuses porque até àquela altura viviam em conjunto (vv.535-616)58. Para estabe-
lecer um critério para esta separação Prometeu mata um boi e separa os ossos
da carne, mas reveste os ossos com uma apetitosa gordura, enquanto a carne
escondeu-a no estômago do boi com um aspeto exterior bastante repulsivo. Zeus,
deixa-se enganar pelo aspeto apetitoso da gordura, abrindo assim um precedente
para os futuros sacrifícios59. Fica estabelecida uma diferença entre os deuses e
os homens. A partir de então os seres humanos comiam a carne dos animais
que sacrificavam, dedicando aos deuses apenas os ossos sobre a forma de fumo.
Contudo, isto quer dizer também que os deuses, ao contrário dos humanos, não
precisam de se alimentar. Assim os homens para viver têm de comer. No entanto,
ao comer são obrigados a entrar em contacto com a carne dos animais mortos,
ou seja, com a morte – sendo por isso mortais, enquanto os deuses são imortais.
Mas a história continua, porque os homens para comerem a carne precisam de a
cozinhar, e Zeus, para os punir, tira-lhes o fogo – o bem mais essencial e necessá-
rio para a vida. Prometeu, um pouco por filantropia e um pouco por desrespeito
a Zeus, tira o fogo aos deuses e dá novamente o fogo aos homens (vv.561-564)60. A
vingança de Zeus não tardou, Prometeu foi acorrentado a uma rocha numa mon-
tanha do Cáucaso e condenado a uma terrível punição: cada dia vinha uma águia
devorar-lhe o fígado que entretanto regenerava durante a noite tornando, deste

57
  Prometeu, como diz o seu nome, era aquele que conhece antecipadamente por isso sabe como se
deve mover e que coisa deve fazer. De facto, Προμηθεύς vem de προ-μανθάνω e quer dizer ‘o que
conhece por antecipação’, ou seja, o ‘pre-vidente’. Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza»,
L’Aquila 2002, 262. Ernst Bloch, para além deste sentido de ‘premeditante’, refere ainda outra ligação
do nome Prometeu, agora com o sânscrito ‘pramantha’ que significa ‘turbina de fogo’. Cf. E. Bloch,
Il principio speranza, Milano 20092, 1400. Ver ainda: H.J. Rose, «Prometeo», Roma 1963, 225; J.-P.
Vernant, Mythe et pensée chez les Grecs, Paris 1988, 263; «Promèteo», in Dizionario di mitologia (a
cura di M. Gislon e R. Palazzi), Bologna 2003, 350.
58
 Cf. Esiodo, Teogonia, Milano 201317, 97-103.
59
  Cf. «Prometeo», in L. Biondetti, Dizionario di mitologia classica, Milano 1997, 610.
60
 Cf. Esiodo, Teogonia, Milano 201317, 99. Jean-Pierre Vernant diz que Prometeu não aparece na
mitologia grega como o inventor da técnica do fogo, é Hermes que, no Hino Homérico, nos será apre-
sentado como aquele que primeiro descobriu os meios para fazer surgir a chama. Neste sentido, são
muito questionadas todas as tentativas etimológicas de ligar o nome de Prometeu ao fogo, a partir do
sânscrito ‘pramantha’ – o bastão que se usava para fazer surgir o fogo por fricção. Cf. J.-P. Vernant,
Mythe et pensée chez les Grecs, Paris 1988, 263. Ver ainda: «Promèteo», in Dizionario di mitologia (a
cura di M. Gislon e R. Palazzi), Bologna 2003, 350.

34
modo, sem fim o seu sofrimento61. Por outro lado, Zeus manda aos homens qual-
quer coisa que não conheciam ainda: um κακόν, um mal (v.570)62. Zeus enviou
um ‘mal’, a mulher [γυνή], para viver com os homens (v.600)63. Não tanto um
mal em si, mas um mal enquanto portadora da vingança de Zeus e, neste sentido,
portadora dos males no mundo64. Nesta ‘versão’ não é referida explicitamente o
seu nome mas esta é a primeira mulher e representa um dom ambíguo porque é,
ao mesmo tempo, bela e também portadora de desgraça65.
O mesmo Hesíodo contou novamente a história de Prometeu na sua obra
Os trabalhos e os dias66 (vv.42-105), dando outra versão desta punição. Zeus
manda uma mulher – Pandora [Πανδώρην] (v.81)67 como presente a Epime-
teu68. Pandora era aquela que tinha recebido todos os dons [πᾶν δῶρον], ou
melhor um dom de cada habitante do Olimpo69. Epitemeu, ao contrário do
nome do seu irmão Prometeu, significava ‘o que pensa depois’ ou ‘o que chega
tarde’, isto é, o que age de forma ‘irrefletida’70. Este aceita o presente, deixa-se

61
  O texto diz que Héracles matou a águia e acabou por libertar Prometeu dos tormentos (vv.526-528)
mas não o libertou das suas cadeias (v. 616). Cf. Esiodo, Teogonia, Milano 201317, 97 e 103. Ver ainda:
«Promèteo», in Dizionario di mitologia (a cura di M. Gislon e R. Palazzi), Bologna 2003, 350.
62
  «Αὐτίκα δ’ ἀντὶ πυρὸς τεῦξεν κακὸν ἀνθρώποισι». Esiodo, Teogonia, Milano 201317, 99. Também
encontramos esta mesma referência em Esiodo, Le opere e i giorni, Milano 201315, vv.57-58: «τοῖς δ’
ἐγὼ ἀντὶ πυρὸς δώσω κακὸν, ᾧ κεν ἅπαντες / τέρπωνται κατὰ θυμὸν ἑὸν κακὸν ὰμφαγαπῶντες».
63
  «Ὣς δ’ αὔτως ἄνδρεσσι κακὸν θνητοῖσι γυναῖκας» Ibidem, Milano 201317, 100.
64
  Cf. G. Arrighetti, «Commento e note al testo», Milano 201317, 148.
65
  Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza», L’Aquila 2002, 262-263; ainda cf. H.J. Rose,
«Prometeo», Roma 1963, 225. Neste sentido, podemos dizer que Prometeu é, por um lado, um benfei-
tor para a humanidade, ao dar-lhe o fogo; e, por outro lado, a origem de todas as infelicidades dessa
mesma humanidade, já que a sua atitude desplotou vingança de Zeus. Cf. J.-P. Vernant, Mythe et
pensée chez les Grecs, Paris 1988, 264.
66
  Esiodo, Le opere e i giorni, Milano 201315, 94-99.
67
  «Πανδώρην, ὅτι πάντες Ὀλύμπια δώματ’ ἔχοντες / δῶρον ἐδώρησαν, τῆμ’ἀνδράσιν ἀλφηστῇσιν»
[vv.81-82]. Ibidem, Milano 201315, 96.
68
  Cf. «Prometeo», in L. Biondetti, Dizionario di mitologia classica, Milano 1997, 611.
69
  De facto, o texto indica que Pandora recebeu dons de todos os habitantes do Olimpo: Atenas deu-lhe
as habilidades dos trabalhos femininos; Afrodite deu-lhe beleza e poder da sedução; mas Hermes deu-
-lhe a capacidade de mentir e de enganar os outros. Cf. Esiodo, Le opere e i giorni, Milano 201315, vv.
63-68. Outros autores dizem que Afrodite deu-lhe o fascínio e a arte do prazer; Atena os ormamentos
mais esplêndidos e mais ricos; Hermes as astúcia e a eloquência; Apolo ensinou-lhe a arte do canto. Cf.
«Pandòra», in Dizionario di mitologia (a cura di M. Gislon e R. Palazzi), Bologna 2003, 315.
70
  Epimeteu era exatamente o contrário do seu irmão Prometeu, já que Ἐπιμηθεύς quer dizer ‘o que
sabe depois’ ou ‘o que chega sempre tarde’. Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza», L’Aquila
2002, 262. Trata-se de alguém que reflete o já realizado. Cf. E. Bloch, Il principio speranza, Milano
20092, 1400. Neste sentido, podemos falar de alguém que reflete depois das coisas feitas e, por isso, age
de forma ‘irrefletida’. Ver ainda: J.-P. Vernant, Mythe et pensée chez les Grecs, Paris 1988, 263; «Pan-
dòra», in Dizionario di mitologia (a cura di M. Gislon e R. Palazzi), Bologna 2003, 315.

35
seduzir por Pandora e casa com ela, contrariando assim a advertência do ir-
mão que lhe tinha dito para nunca aceitar um presente de Zeus (vv.86-87)71.
Pandora torna-se assim, para os homens, um mal dissimulado sob o perigo das
seduções72. Eis o seu modo de entrar na ‘história’ da humanidade. Esta mulher
tem um jarro cheio de vários males [κακά] - que tinha sido oferecido pelo pai
dos deuses. Esta jarra estava bem fechada e ela estava proibida de a abrir. Mas
devido à sua curiosidade, um dia Pandora decidiu levantar um pouco a tampa
para ver o que lá se escondia. Nesse momento todos os males, que até aí os
homens não conheciam, difundiram-se no mundo73: as doenças que levavam à
morte e a necessidade de trabalhar74. Assustada Pandora tenta tapar novamente
a jarra, mas era demasiado tarde. Ficou apenas um no fundo da jarra: ἐλπίς, a
esperança (v.96)75. Só a ‘esperança’ permite ao homem enfrentar uma vida cheia
de dores76. Esta mesma esperança permite evitar que todos cometam suicídio.
Portanto, a esperança, por um lado, não é propriamente um mal, já que não se
revolta contra o homem, permanece com a humanidade e está à sua disposição;
mas, por outro lado, foi o modo como Zeus quis punir a humanidade e, neste
sentido, precisamos de pensar que esta esperança é também um mal77. Neste
contexto, a esperança permanece ambígua já que é ‘um mal belo, contrapartida
de um bem’ (v.585)78.

71
 Cf. Esiodo, Le opere e i giorni, Milano 201315, 97.
72
  Cf. J.-P. Vernant, Mythe et pensée chez les Grecs, Paris 1988, 276.
73
  Esta ‘jarra’ ficou conhecido como ‘caixa de pandora’ – ‘origem’ de todos os males. É interessante
que à primeira mulher, Pandora, é atribuída assim a responsabilidade da introdução do mal no mun-
do. Neste contexto, Giuseppe Visonà usa uma curiosa comparação ao dizer que ela é a ‘Eva grega’.
Cf. G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 15. Também Luisa Biondetti
faz referência a esta comparação entre Pandora e Eva – pelo facto de ser a primeira mulher e porque
é através dela que o mal entra no mundo. Cf. «Pandora», in L. Biondetti, Dizionario di mitologia
classica, Milano 1997, 535.
74
  Cf. «Prometeo», in L. Biondetti, Dizionario di mitologia classica, Milano 1997, 611.
75
 Cf. Esiodo, Le opere e i giorni, Milano 201315, 98. Se a mulher não tivesse tido a curiosidade de saber
o que estava dentro da jarra e não tivesse levandado a tampa desta, onde estavam fechados todos os
males, os homens teriam continuado a viver ‘sem sofrimento, sem doenças, sem morte’. Cf. J.-P. Ver-
nant, Mythe et pensée chez les Grecs, Paris 1988, 38. Ver ainda: «Pandòra», in Dizionario di mitologia
(a cura di M. Gislon e R. Palazzi), Bologna 2003, 315; «Pandora», in L. Biondetti, Dizionario di
mitologia classica, Milano 1997, 535.
76
  Cf. G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 15.
77
  Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza», L’Aquila 2002, 263-264.
78
  «Καλὸν κακὸν ἀντ᾽ἀγαθοῖο». Esiodo, Teogonia, Milano 201317, 100.

36
Para além da Protagora de Platão79, há ainda outra versão deste mito, que po-
demos encontrar na tragédia Prometeu acorrentado de Ésquilo (séc. VI-V a.C.)80.
Este texto ajuda-nos a conhecer melhor esta esperança. Aqui apresenta-se, pode-
mos dizer, o ponto de vista de Prometeu81. Aqui, sobre a montanha onde a águia
vinha todos os dias devorar-lhe o fígado, lamenta-se com o coro, dizendo que a sua
punição é injusta porque ele só fez o bem, ainda que tenha melindrado Zeus. Antes
do seu dom, os homens eram ‘sem palavra’ [νήπιοι de νη-ἔπος]82, porque sem fogo
olhavam mas não viam, ouviam sons mas não sentiam ninguém, não sabiam fazer
nada. Por isso, foi para eles a fonte de ‘todas as ciências’ ao dar-lhes aquele benefício
que é o fogo [πῦρ] a estrada mestra de ‘todas as técnicas’ (vv.110-111)83. De facto,
Ésquilo concebeu o fogo no sentido lato, por isso, na sua tragédia, Prometeu quer
comunicar aos homens todos os bens reservados aos deuses84.
Analisando melhor a tragédia podemos concluir que este dom é mais com-
plexo do que podemos imaginar. Na verdade, Prometeu confessa ao coro que
conseguiu impedir que os homens tivessem o olhar fixo no seu destino a partir
do momento que conhecessem antecipadamente o dia da sua morte. E o coro
pergunta como é que fez e qual o fármaco [φάρμακον] (v.249)85 que inventou para
que estes não ficassem bloqueados pela consciência da sua mortalidade. Prome-

79
 Cf. Platão, Protagora 320c322d, Roma-Bari 2003, 26-30. Aqui Protagora irá contar o mito a Só-
crates. Todavia, segundo Antonio Nitrola, o mito foi modificado, nesta versão, em função da intenção
daquele que o conta para sublinhar as consequências do dono do fogo, ou seja, a capacidade técnica
dos homens. Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza», L’Aquila 2002, 264 (nota 8). Aqui, por
exemplo, Prometeu não oferceu aos homens todas as artes do céu porque, a mais importante e nobre
‘arte do estado’ permaneceu com Zeus. Assim aos homens foram dadas as ‘artes necessárias’ para a
vida quotidiana mas não a grande arte de governar – o saber estatal (Protagora, 321d). Cf. E. Bloch,
Il principio speranza, Milano 20092, 1402. Aconselhamos ainda: J.-P. Vernant, Mythe et pensée chez
les Grecs, Paris 1988, 268-271; «Prometeo», in L. Biondetti, Dizionario di mitologia classica, Milano
1997, 612.
80
  Eschilo, Prometeo incatenato, Milano 2010. «Un autre caractère du Prométhée d’Hésiodo se re-
trouve chez celui d’Eschyle et chez celui de Platon». J.-P. Vernant, Mythe et pensée chez les Grecs,
Paris 1988, 267.
81
  Cf. A. Nitrola, Pensare l’attualità, Roma 2005, 211.
82
  A palavra νήπιος tem a idea de ‘sem palavra’ ou aquele que ‘não-fala’ [cf. lat. in-fans], traduzindo-se
habitualmente por ‘criança’ ou ‘menino’. Cf. C. Rusconi, «νήπιος», in DGNT, São Paulo 2003, 319.
83
  Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza», L’Aquila 2002, 264. O fogo [Πύρος] (v.110) é ín-
tima essência [πηγὴν κλοπαίαν] e mestre de todas as técnicas [ἣ διδάσκαλος τέχνης] (v.111). Eschilo,
Prometeo incatenato, Milano 2010, 28.
84
  Cf. E. Bloch, Il principio speranza, Milano 20092, 1400. Nesta página, o mesmo autor, refere que
a fé prometaica é a ‘religião da tragédia grega’ e que o ‘Prometeu acorrentado’ de Éschilo é a tragédia
grega central.
85
  Eschilo, Prometeo incatenato, Milano 2010, 40.

37
teu responde: «eu fiz habitar neles cegas esperanças [τυφλὰς ἐλπίδας]»86. É im-
portante referir, como diz o teólogo Antonio Nitrola, que aqui o adjetivo ‘cegas’
não especifica um particular tipo de esperanças – se são ‘esperanças cegas’ ou
‘esperanças não cegas’ – mas a esperanças enquanto tal, revelando a característi-
ca pela qual essa pode representar um benefício, ou seja, o fármaco, a ‘salvação’,
para evitar uma vida sem energia e sem capacidade para agir e fazer87. Para que a
esperança seja eficaz tem de ser cega88. Neste mesmo sentido, já Giuseppe Visonà
tinha recordado que estas ‘cegas esperanças’ aparecem como um analgésico para
uma vida que é dor, tendo assim a esperança um certo sentido de ilusão89. Por um
lado, só a ‘cega esperança’, a não consciência do dia da morte e a ilusão de poder
viver mais, permite ao homem utilizar o fogo, isto é, viver tecnicamente. Se ele
conhecesse o dia da sua morte, pensaria que não valeria a pena fazer nada, ou
seja, fazer projetos, e ficaria ‘curvado sobre si mesmo’, sobre o seu presente, cheio
de ‘morte’. Por outro lado, só tendo o fogo, a técnica, a possibilidade de agir no
mundo para o transformar, isto é, fazer projetos, pode desviar o seu olhar do dia
da morte: ser cego, isto é, esperar90.
Deste modo, o mito, nas suas variadas formas, quer contar o aparecimento
do homem, do ἄνθρωπος [ἀνα-τρέπω, ‘virar-se para’], que é aquele que se vira de
baixo para cima, aquele que olhar para cima, em frente, aquele que usa o fogo.
Por isso, o homem é ‘autonomia’ dos deuses, porque tem o fogo; mas ao mesmo
tempo ‘dependência’, já os deuses entram na humanidade ‘através’ da Pandora91.
Esta ‘imagem’ do Prometeu foi assumindo, na história e na cultura, um sentido
‘religioso-ateu pleno’: por um lado, representa a capacidade do homem, o domí-
nio humano e a sua ‘autonomia dos deuses’ (sentido ateu); no entanto, por outro
lado, sem ele no homem não haveria nada de eterno (sentido religioso)92.

86
  «Τυφλὰς ἐν αὐτοîς ἐλπίδας κατώικισα». Ibidem, 40 (v.250).
87
  Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza», L’Aquila 2002, 264-265.
88
 Cf. P. Laín-Entralgo, La espera y la esperanza, Madrid 19582, 27.
89
  Cf. G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 15.
90
  Cf. A. Nitrola, Pensare l’attualità, Roma 2005, 212-213.
91
  Id., «La postmodernità e la speranza», L’Aquila 2002, 265-266. O autor retoma o tema em: A. Ni-
trola, Pensare l’attualità, Roma 2005, 213.
92
  Cf. E. Bloch, Il principio speranza, Milano 20092, 1404. Na verdade, o mito de Pometeu, retomado
por Marx, foi assumido, sobretudo, no contexto das grandes conquistas do séc. XIX, como ‘símbolo’
e expressão da esperança do humanismo ateu. Prometeu era visto como aquele que tinha ido contra
a vontade dos deuses e que deu à humanidade o fogo, melhorando assim radicalmente a situação do
homem sobre a terra. Porém, um século depois, o mito de Prometeu vê-se confrontado com o mito de
Sísifo, retomado por Camus. Este sublinha a inutilidade e o absurdo de qualquer esforço humano para
mudar radicalmente a sua própria situação. Neste mito Sísifo foi condenado a empurar uma pedra

38
Deste modo, o homem está assinalado pela ambiguidade, a sua vida está sim-
bolizada pela Pandora, onde o mal é escondido no bem e o bem no mal. Se a
sua vida não tivesse esse bem/mal da esperança seria inútil. Por isso, o homem
espera. Ou seja, só porque o bem e o mal são confusos, antes escondem-se um
no outro, tem necessidade da esperança e faz sentido esperar. Assim a ‘cega es-
perança’ promete não ver os males, sobretudo, o último grande mal - a morte.
Deste modo, o homem pode olhar para o futuro como um bem, trabalhando,
cultivando, construindo, no fundo, fazendo história93. Trata-se de um mal, uma
vez que também estava no jarro de Pandora, que continha todos os males, mas
um mal que poupa os homens já que não os deixa ver o sofrimento, o ‘fatalismo’ e
o ‘determinismo’. Um mal porque é uma ilusão. O homem, por sorte (se a Pando-
ra não tem fechado rapidamente o jarro seria diferente), não sabe o que o espera
e, por isso, vive94. Deste modo, a ἐλπίς é apresentada efetivamente como um dom
ambíguo, um bem que é um mal e um mal que é um bem, um dom que não nos
deixa ver os males e, por isso mesmo, nos faz acreditar no futuro e nos permite
comprometer no presente. Esta tensão inscrita no interior da própria ἐλπίς aju-
dar-nos-á a compreender melhor o seu sentido na antiguidade grega.

2.2. A ἐλπίς na antiguidade grega – uma correta prospetiva ou ingénua ilusão


O conceito de ἐλπίς no mundo grego, segundo alguns autores, especialmente
filósofos, não está suficientemente estudado. Basta repararmos na atenção dimi-
nuta que, nos diferentes dicionários e léxicos, lhe é dada, comparado, por exem-
plo com a spes romana pagã ou cristã. Quem tem estudado o tema são, sobretu-
do, teólogos em vista da compreensão das raízes do pensamento escatológico no
mundo cristão – sempre num quadro teológico. Sendo assim a análise propria-
mente filosófica permanece pouco desenvolvida95.

até ao topo de uma montanha, quando ele estava quase a atingir esse topo, a pedra rolava novamente
pela montanha abaixo, tornando todo o esforço inútil. Neste contexto impõe-se uma pergunta: para
quê fazer tanto esforço se depois tudo se torna inútil? Cf. P. Poupard, «Speranza e disperazione nella
cultura contemporanea», I, Brescia 1984, 81-83. Sobre o mito de Sísifo aconselhamos: «Sisifo», in L.
Biondetti, Dizionario di mitologia classica, Milano 1997, 653-654.
93
  Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza», L’Aquila 2002, 266.
94
  Cf. G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 22. Aconselhamos ainda: P.
Laín-Entralgo, La espera y la esperanza, Madrid 19582, 27-28.
95
  Cf. M.M. Martins, «O conceito de ‘elpis’ no Fédon de Platão», RFLFilos. 23-24 (2006-07) 165-166.
Particularmente sobre a elpís no mundo grego, sugerimos: F. van Menxel, Ἐλπίς.Espoir.Espérance,
Frankfurt am Main 1983, 22-160.

39
Comecemos por referir que o tema elp- em elpizō e elpís é formada da raiz
vel (presente no latim ‘velle’, no francês ‘vouloir’ e no italiano ‘volere’ - querer)
com alargamento do p (presente também no latim voluptas - prazer)96. Esta raiz
indo-europeia, onde esperar significa aguardar que se realize o que se deseja
ou o que se quer, refere-se a um objeto que não se tem agora97. Mas esta mesma
raiz, como referimos, dá em latim velle e também dá origem a voluptas. Isto
significa que o futuro que o homem espera e em que se projeta está ligado à
mistura de ‘querer’ e de ‘prazer’ que é o desejo. O homem espera aquilo que
deseja, por isso, o futuro da esperança será um futuro de espera mas, ao mesmo
tempo, também desejado e querido, sendo por isso, de certo modo, procurado
ou ‘projetado’ . Trata-se da esperança do próprio futuro no sentido mais pleno
mas também limitado da expressão. Ou seja, esperar, qualquer que seja o ob-
jeto, é sempre um ‘esperar-se a si mesmo’, um ‘ver-se a si mesmo para além de
si mesmo’. Espera que os seus projetos se realizem, espera que o mundo seja
sempre mais humano, que seja sempre cada vez mais seu98.
Contudo, como alerta Giuseppe Visonà, os estudos sobre o significado de
ἐλπίς na antiguidade clássica chegam a resultados diferentes e às vezes contra-
postos. Por isso, temos que procurar evidenciar um ‘mínimo denominador co-
mum adquirido’ que se deve contentar com conclusões de carácter geral já que
se reconhece a ἐλπίς um campo semântico muito amplo com a natureza de vox
media, isto é, de termo neutro suscetível de conotações tanto positivas quanto
negativas, podendo assim designar quer a nossa ‘esperança’ quer, paradoxal-
mente, o ‘temor’99. Neste sentido o filólogo clássico italiano Franco Montanari
diz que ἐλπίς tem três perspetivas de significado: ‘expectativa’ e ‘previsão’; ‘es-
perança’ e ‘confiança’; ‘temor’, ‘ânsia’ e ‘presságio’. Já o verbo ἐλπίζω tem, na voz
ativa, o sentido de ‘esperar’, ‘supor’ e ‘acreditar’; e na voz passiva, o sentido de
‘ser esperado’100. Neste mesmo sentido, o vocabolario greco-italiano refere que
ἐλπίς pode significar: ‘pessoa ou coisa em que se põe a esperança’; ‘previsão’; e
‘temor’101. No entanto, importa recordar que no mundo grego é desconhecida a

96
  Cf. E. Hoffmann, «ἐλπίς», in DCBNT, Bologna 1976, 1776. Ver ainda: A. Nitrola, Pensare l’attua-
lità, Roma 2005, 217.
97
 Cf. X. Léon-Dufour, «espérance, espérer», Paris 19752, 240.
98
  Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza», L’Aquila 2002, 266-267.
99
  Cf. G. Visonà, «Dalla ‘elpís’ dei greci alla ‘speranza’ dei cristiani», RCI 72 (1991) 261. A mesma ideia
é desenvolvida em G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 21.
100
  Cf. F. Montanari, «ἐλπίζω», in VLG,Torino 20133, 794.
101
  Cf. «ἐλπίς», in Vocabolario greco-italiano, Città di Castello 196316, 605-606.

40
esperança como atitude religiosa102.
A ἐλπίς é, deste modo, toda a ‘espera’ humana, espera essa que pode ser ‘boa’
ou ‘má’103. Assim, o termo tendo um significado ambivalente, precisa de uma
especificação adjuntiva para especificar se a esperança é boa ou má104. Ou seja,
ἐλπίς define uma perspetiva de futuro que pode levar tanto uma alegre expec-
tativa como a um medo angustiante. Por um lado, se ἐλπίς é uma consideração
do futuro, a ‘boa esperança’ (εὔελπίς) não é a nossa ‘esperança’ nem sequer uma
esperança religiosa no ‘além’, mas apenas a ‘consideração correta’, a ‘correta pros-
petiva’105, o que equivale a dizer, aquela que tem em conta o que é o homem e não
ultrapassa os limites que lhe estão impostos. Essa é substancialmente a ‘prudên-
cia crítica’. Aqui a esperança aparece como ‘boa deusa’, a primeira e a última a
quem devemos entregar sacrifícios. Ao contrário, por outro lado, a ἐλπίς é dano-
sa quando não é conforme as condições humanas, neste caso é ‘cega’, ‘vã’ e ‘vazia’
porque não passa de uma ilusão. Torna-se assim claro que esta ἐλπίς no momento
em que é correta não é verdadeira ‘esperança’ e no momento em que se torna es-
perança é condenada ou vista como um perigo. Este é drama do mundo grego106.
Este é o mesmo sentido que encontramos em Homero, em Hesíodo e nos poetas
mais representativos do séc. V – como Sólon, Teogonis, Píndaro e Tucídides107.
Será com Platão108 que o discurso sobre a ‘esperança’ começa a ser inserida num
quadro rigorosamente especulativo. Aqui o conceito de ἐλπίς é tomado generica-
mente no seu sentido de ‘espera’ ou ‘expectativa’, reforçando o sentido positivo de

102
  Cf. E. Hoffmann, «ἐλπίς», in DCBNT, Bologna 1976, 1776.
103
  Cf. H.U. von Balthasar, La verità è sinfonica, Milano 19913, 123.
104
  Cf. B. Studer, «Speranza», in NDPAC, Genova-Milano 2008, 5078.
105
  Trata-se de um juízo sobre as coisas presentes que permitam fazer uma pequena previsão sobre
as coisas que virão – uma primeira e elementar ‘futurologia’. Cf. H.U. von Balthasar, La verità è
sinfonica, Milano 19913, 124. Cf. Índice remissivo.
106
  Cf. G. Visonà, «Dalla ‘elpís’ dei greci alla ‘speranza’ dei cristiani», RCI 72 (1991) 261-262. Encon-
tramos vários exemplos na literatura clássica grega que fundamentam estas afirmações em G. Visonà,
«Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 18-24; e também em P. Laín-Entralgo, La
espera y la esperanza, Madrid 19582, 28-33.
107
  Cf. M.M. Martins, «O conceito de ‘elpis’ no Fédon de Platão», RFLFilos. 23-24 (2006-07) 163.
108
  Cf. G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 26. Platão usou ἐλπίς 67 ve-
zes nas variantes ἐλπίδα (12), ἐλπίδας (5), ἐλπίδες (2), ἐλπίδι (4), ἐλπίδος (13), ἐλπίδων (5), ἐλπίς (24),
ἐλπίσιν (2); e usou a forma verbal ἐλπίζω 21 vezes nas variantes ἐλπίζει (1), ἐλπίζειν (2), ἐλπιζόμενον
(1), ἐλπίζοντας (1), ἐλπίζοντες (1), ἐλπίζω (8), ἐλπίζων (2), ἐλπίσειε (1), ἐλπίσειεν (1), ἐλπίσωσιν (1),
ἤλπιζον (2). Cf. R. Radice, «ἐλπίζω» e «ἐλπίς», Milano 2003, 319. Nesta obra podemos encontrar a
indicação não só do número das ocorrências mas também o lugar das passagens nas obras de Platão.
Sobre o pensamento de Platão onde se pode inserir toda a problemática da esperança aconselhamos
ainda: G. Lafont, Che cosa possiamo sperare?, Bologna 2011, 45-52.

41
ἐλπίς como esperança109. Trata-se de uma perspetiva sobretudo otimista, ao contrá-
rio da perspetiva estoica para quem a apatheia devia superar a esperança110. Platão
propõe μνήμη, αἴσθησις, ἐλπίς como as disposições da alma que referem respeti-
vamente o passado, o presente e o futuro. Diz que ‘todas as coisas são esperança
enquanto orientadas para o futuro’ e que ‘nós somos cheios de esperança’111. As es-
peras podem ser boas ou más, verdadeiras ou falsas, e dependem de juízos justos ou
errados no que diz respeito ao futuro. Neste contexto, falará ‘esperança vazia’ como
aquela que procura o que é impossível de acontecer112. Contudo, a alma purificada
na contemplação do sumo bem colhe ainda uma esperança que pertence ao mundo
das ideias, que é conjuntamente visão da verdade e do bem113. Deste modo, a ἐλπίς
resulta de um primeiro e fundamental ponto de vista separado da predeterminação
relativa aos valores, só depois pode adquirir uma ligação capaz de a classificar po-
sitivamente, na medida em que se trata daquela esperança que se move no mundo
das ideias, enquanto expressão de uma autêntica tensão para o verdadeiro bem, e
que a alma purificada na contemplação começa a fazer sua como sinal e garantia de
bens futuros114, porque a vida futura oferece a esperança grandíssima de seremos
restabelecidos da nossa antiga natureza (alcançando assim a felicidade)115.
Aristóteles116, na mesma linha de muitas reflexões de Platão, contextualiza
a esperança na espera do futuro, entendida ontologicamente como uma dispo-
sição da alma que implica esse mesmo futuro. Diz que ‘as coisas agradáveis são

109
  Cf. M.M. Martins, «O conceito de ‘elpis’ no Fédon de Platão», RFLFilos. 23-24 (2006-07) 163.
110
  Cf. B. Studer, «Speranza», in NDPAC, Genova-Milano 2008, 5078.
111
 Cf. Platão, Filebo XXIII, 39e, Roma-Bari 1985, 103.
112
  Id., Protagora 345c7, Roma-Bari 2003, 80.
113
 Cf. M. Marassi, «Speranza», Milano 2006, 10948.
114
  Cf. S.P. Bonanni, «La speranza fra grazia e virtù», ATT 15 (2009) 249.
115
 Cf. Platão, Simposio 193d, in Platone, tutti gli scritti, Milano 20013, 503. Manuela Martins desen-
volverá o conceito de εὔελπίς (boa esperança) de Sócrates, presente no diálogo de Fédon – em Platão,
não só como algo que se espera depois da morte, mas sobretudo como qualquer coisa de melhor - que
será mais para bons do que para maus. Trata-se do lugar onde se vai realizar verdadeiramente tudo
aquilo que se procurou ao longo da existência. Cf. M.M. Martins, «O conceito de ‘elpis’ no Fédon de
Platão», RFLFilos. 23-24 (2006-07) 176-178.
116
  Aristóteles usou ἐλπίς 30 vezes, menos de metade das vezes que Platão, nas variantes ἐλπίδ’ (1),
ἐλπίδα (7), ἐλπίδας (1), ἐλπίδες (4), ἐλπίδι (7), ἐλπίδος (4), ἐλπίς (5), ἐλπίσιν (1); e usou a forma ver-
bal ἐλπίζω 23 vezes, pouco mais do que Platão, nas variantes ἐλπίζει (2), ἐλπίζειν (6), ἐλπίζοντα (1),
ἐλπίζοντας (1), ἐλπίζοντες (6), ἐλπίζοντι (1), ἐλπίζουσα (1), ἐλπίζουσι (3), ἐλπίζουσιν (1), ἐλπίσαι (1). Cf.
R. Radice, «ἐλπίζω» e «ἐλπίς», Milano 2005, 399. Nesta obra podemos encontrar a indicação não só
do número das ocorrências mas também o lugar das passagens nas obras de Aristóteles. Sobre o pen-
samento de Aristóteles onde se pode inserir toda a problemática da esperança aconselhamos ainda: G.
Lafont, Che cosa possiamo sperare?, Bologna 2011,109-161.

42
ou presente na sensação, ou passado na recordação, ou futuro na esperança’ e o
‘futuro espera-se com esperança’117. Todavia sublinha de forma mais evidente a
componente racional da esperança118. Com Aristóteles confirma-se, deste modo,
a tendência da filosofia de ter uma ideia de esperança basicamente ‘neutra’. Mas
esta ‘esperança’ para os filósofos é compreendida num quadro caraterizado pelas
coordenadas da ψυχή e a centralidade desta reflexão é seguramente a alma, seja
numa perspetiva mais platónica, seja numa perspetiva mais aristotélica119. Assim,
Aristóteles falará da esperança como ‘boas expectativas para o futuro’120.
Deste modo, no pensamento grego, ἐλπίς, designa a relação que uma pessoa
estabelece com o futuro e corresponde, por isso, ao conceito de espera sem ne-
nhuma conotação positiva ou negativa, já que essa conotação depende sobretudo
do contexto em que o desejo foi formulado. Esta relação do homem com o futuro
foi compreendida de diferentes modos: como hipótese ilusória que deriva da ex-
pectativa otimista que o tempo e a realidade revelam a necessidade de assumir
uma distância crítica proposta desde o início da cultura grega; como previsão
racional ou verosimilhança racionalmente fundada em que esperar é sinónimo
de ter como verdadeiro, permitindo distinguir entre suposição adequada e uma
espera impossível; como confiança existencial na possibilidade futura onde a es-
perança assume explicitamente uma função positiva; como consolação diante da
realidade, mas aqui pode ter um sentido negativo enquanto pode promover uma
passividade diante da realidade prolongando o sofrimento do homem121.
No entanto, Giuseppe Visonà dirá que na conceção grega, não há lugar para a
esperança, não no sentido moral mas no sentido técnico. Ou seja, para os gregos,
segundo este autor, o mundo concebe-se como um sistema fechado que se repete
indefinidamente, onde o novo não só não pode como não deve irromper porque
seria o colapso do próprio sistema. Há assim uma espécie de busca de anulamen-
to no homem de todas as ‘paixões’ (apatheia)122. Segundo esta perspetiva, a espe-
rança é vista, sobretudo, como ‘ilusão’ que tenta mascarar a realidade, como uma
ideia enganadora em si mas que acaba por fazer bem. Só os mais advertidos é que
não se deixam seduzir por essa ideia, principalmente diante do momento em que

117
 Cf. Aristóteles, Retorica I,1370a, Milano 1996, 88.
118
 Cf. M. Marassi, «Speranza», Milano 2006, 10948.
119
  Cf. S.P. Bonanni, «La speranza fra grazia e virtù», in ATT 15 (2009) nº2, 249-250.
120
 Cf. Aristóteles, Etica nicomachea IX,4,1166a, Milano 1979, 386. Já Pindaro tinha dito que o ho-
mem deve cuidar da boa esperança: «Χρὴ δ’ ἀγαθὰν ἐλπίδ’ ἀνδρὶ μέλειν». Pindaro, Istmiche VIII,30.
121
 Cf. M. Marassi, «Speranza», Milano 2006, 10947-10948.
122
  Cf. G. Visonà, «Dalla ‘elpís’ dei greci alla ‘speranza’ dei cristiani», RCI 72 (1991) 257-258.

43
tudo parece acabar. Já que a perspetiva de uma sobrevivência no Hades era vista
não como uma esperança mas como uma ameaça: na lúgubre vida para além da
morte dos gregos a alma estava destinada a ter uma vida puramente vegetativa,
uma espécie de coma acordado mas sem vida pessoal nem relacional123.
No desenvolvimento semântico do termo ἐλπίς faz-se progressivamente uma
aceção não racional que conduz, ainda no contexto grego, ao valor da ‘esperança’
enquanto dimensão que se concentra mais sobre a carga emocional do sujeito
(‘expectativa’ para o futuro) do que sobre a racionalização do objeto (‘previsão’
do futuro)124. Será neste horizonte da compreensão que podemos perceber me-
lhor a proposta do epicurismo que, através da libertação, não só do destino mas
também dos deuses, e projetando uma esperança que termina num horizonte
que se fecha com a existência, diz que o homem é no próprio momento, no aqui
e agora, e é em cada instante que pode encontrar a plena felicidade. Assim, uma
esperança que o projeta completamente no futuro será alienação, retirando-lhe o
hoje sem lhe dar o amanhã que promete. Contudo, Plutarco, sublinha que Epicu-
ro, sugerindo a dissolução do homem no nada, prescinde da única verdadeira es-
perança que em definitivo interessa ao homem – a esperança da imortalidade125.
Dito isto, temos que colocar várias questões: Em que medida esta ‘conceção’
da ἐλπίς grega influenciou a conceção bíblica da ‘esperança’?, Esta esperança bí-
blica será totalmente diferente e distinta da ‘esperança’ grega? É essa problemáti-
ca que iremos procurar enfrentar começando por falar do conceito e do contexto
teológico no AT para depois entrarmos no tema da ἐλπίς no NT. Uma esperança
que aparece explicitamente reflectida nos escritos paulinos e que surge implicita-
mente nos evangelhos como dinamismo da vida e dos encontros de Jesus.

123
  Ibidem, 259-260. Neste contexto, dirá este mesmo autor, podemos imaginar o efeito que deveria
suscitar nos gregos as inscrições fúnebres cristãs que, sobre o símbolo da âncora, diziam simplesmen-
te: spes in Deo ou então spes in Christo. A isto podemos juntar o impacto que causaria o anúncio de
Cristo como Aquele que devastou o Hades e venceu a morte.
124
  Ibidem, 262.
125
  Ibidem, 263.

44
Capítulo II

Uma promessa – a relação com Deus


é o horizonte da esperança do AT

A teologia cristã enfrenta essencialmente a relação entre a história e a revela-


ção . É nessa relação que a história da fé judaico-cristã é, desde o seu início, his-
1

tória de esperança. Essa inicia muito antes que se reflita sobre o futuro do indiví-
duo ou que se fale da ressurreição dos mortos; inicia com as antigas promessas da
terra e da particular proteção da parte de Deus2. Uma esperança que se baseia na
relação com um Deus pessoal e se funda sobre os grandes eventos históricos ope-
rados por Deus e sobre a sua fidelidade imutável3. Por isso, Bento XVI afirmou
que a esperança é uma palavra central da fé bíblica (cf. SS 2) porque podemos ler
a Sagrada Escritura como um inexaurível reservatório de esperança e ver nela um
permanente objetivo de instruir na esperança, infundindo perseverança e conso-
lação, no contexto da promessa de Deus e do seu cumprimento4. Uma promessa
que no AT revela a esperança como libertação do homem5. Os que esperam em
Deus confiam em Deus e nas suas promessas6. É certo que a referência teológica
da esperança aparece sobre o fundo reflexivo dos filósofos da antiguidade grega,
mas o que acontece à esperança quando, no espaço em que a tentamos definir,

1
  Nesta relação entre a história e a revelação, Wolfhart Pannenberg, defenderá que Deus se revela di-
retamente nos factos da história (primeira tese). Neste sentido, essa é única e universal, mas também
sempre parcial e provisória (terceira tese). A revelação definitiva de Deus acontecerá apenas no fim
da história (segunda tese). É neste fim que a totalidade da história se manifestará como o processo de
autorrevelação de Deus, que abre à necessária relação entre história e salvação. Cf. S.P. Maraschi, «La
struttura concettuale della teologia della speranza», VP 55 (1972) 87-88.
2
 Cf. F.-J. Nocke, Escatologia, Brescia 1984, 17.
3
  Cf. H.U. von Balthasar, La verità è sinfonica, Milano 19913, 125.
4
 Cf. R. Vignolo, «Speranza della Scrittura, speranza cristologica», RCI 83 (2002) 111-112.
5
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 11.
6
  Cf. J. Everts, «Hope», Illinois 1993, 415.

47
entra um Deus como aquele da tradição hebraico-cristã?7 Neste sentido, o teó-
logo Jean Daniélou dirá que o fundamento da esperança acenta na fidelidade de
Deus às suas promessas8. Uma promessa de que se faz memória permanente para
que a esperança seja verdadeiramente esperança9.

1. Uma esperança ‘revolucionária’ e ‘paradoxal’ centrada na relação com


Deus
A ἐλπίς que atravessa toda a nossa história, tem, como referimos, a prove-
niência da cultura grega. No entanto, nesta mesma história que somos, sobretudo
no mundo ocidental(izado), revela-se uma outra ἐλπίς – contraditória, revolucio-
nária e provocatória – a ἐλπίς bíblica10. Neste contexto a esperança no cristianis-
mo revela uma raiz no mundo grego pagão e outra no mundo judaico bíblico11.
Mas temos que sublinhar, desde logo, que a ἐλπίς dos gregos tem um valor e um
sentido enquadrado na sua compreensão do mundo, do homem e dos valores.
Por isso, esta compreensão não pode ser exatamente igual à compreensão bíblica
da esperança12. No entanto, é incorreto qualquer comparação e confronto que
se configure como uma relação entre vazio e cheio ou entre negativo e positivo.
Trata-se antes de aproximar duas distintas conceções de ἐλπίς e não de ler uma
à luz da outra13: De facto, a esperança puramente intramundana pode ser uma
motivação ao agir e, em geral, a viver; mas se a esperança quer ser mais do que
um ‘instinto cego’ deve referir-se a algo que suporte todo o ser que vacila14.
Assim, a primeira grande diferença é que a perspetiva bíblica de esperança é
mais do que uma ‘consideração correta’ do futuro, ou do que uma ‘correta pros-
petiva’ e sobretudo mais do que apenas uma ‘boa ἐλπίς’, do que uma ‘prudência
crítica’15. A segunda grande diferença é que na bíblia a esperança emerge como

7
  Cf. S.P. Bonanni, «La speranza fra grazia e virtù», ATT 15 (2009) 250.
8
 Cf. J. Daniélou, «La speranza», in Saggio sul mistero della storia, Brescia 2012, 373.
9
  Sobre a relação entre memória e promessa a partir do contexto da história e do tempo de Israel,
aconselhamos: Cf. J. Granados, Teología del tiempo, Salamanca 2012, 62-63.
10
  Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza», L’Aquila 2002, 267.
11
  Cf. G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 9.
12
 O homo biblicus espera de Deus o cumprimento da promessa da Aliança. Nisto a esperança bíblica
distingue-se radicalmente do uso grego de ‘elpís’. Cf. R. Koch, «La speranza nel Vecchio Testamento»,
VP 55 (1972) 20.
13
  Cf. G. Visonà, «Dalla ‘elpís’ dei greci alla ‘speranza’ dei cristiani», RCI 72 (1991) 261.
14
  Cf. H.U. von Balthasar, La verità è sinfonica, Milano 19913, 123.
15
  Cf. G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 21-22.

48
ato de fé e não da razão16. Assim, se em Platão a ‘esperança’ é um ato da razão, no
homem bíblico a esperança é um ato da fé. A esperança deixa de estar no próprio
homem e passa a estar em Deus, trazendo grandes consequências no modo de ver
e de viver a esperança17. Somos diante de um novum que não pode ser compreen-
dido se prescindirmos do horizonte teofânico em que se revela constitutivamente
inscrita a esperança18. Assim, na Bíblia a esperança é relacional e, por isso, teolo-
gal: o homem dirige-se a Deus invocando-o como ‘esperança de Israel’ (Jer 14,8;
Eclo 34,14)19. Esta dimensão relacional centrada em Deus é a radical diferença
da esperança bíblica. Neste sentido, a tradição hebraica não só não conhece uma
esperança neutra, como a designa sempre de expectativa confiante segura de um
bem futuro. Esta foi precisamente a promessa que Deus dirigiu ao seu povo es-
tabelecida na Aliança, confirmada no próprio exílio da Babilonia, e que se foi
orientado para uma forma de espera escatológica20.
Contudo, será a versão grega dos LXX que, através do uso de ἐλπίς, fornece
um concreto ‘cruzamento’ entre a fé bíblica e o mundo clássico, anteriormente
referido. Para percebermos melhor essa importância pode citar-se o facto de que
o substantivo ἐλπίς e o verbo ἐλπίζω apareçam 90 vezes nos 150 Salmos. Esta
recorrência permite sustentar a tese que teria sido nos Salmos que ἐλπίς assumiu
a conotação religiosa passada no NT e na fé cristã. No entanto, não podemos ig-
norar que a LXX não é uma simples tradução do hebraico mas sobretudo uma re-
leitura da história de Israel, indelevelmente marcada pela experiência do exílio21.
De facto, os LXX traduzem habitualmente com ἐλπίζειν (ἐλπίς) o verbo he-
braico ‫[ ָ ּבטַח‬bāṭaḥ] e substantivos derivados22. O verbo hebraico ‫[ ָ ּבטַח‬bāṭaḥ] tem

16
 Cf. L. Manicardi, «L’altro occhio della speranza», RCI 87 (2006) 563. No entanto, se é verdade que
a esperança bíblica não é ‘saber’ também é verdade que não se espera sem uma razão. A criação é a
primeira razão que motiva a esperança. Atestando o poder de Deus e a ordem que rege o mundo (Gn
1). Cf. F. Mies, «Speranza», Cinisello Balsamo 2010, 1330.
17
  Cf. G. Visonà, «Dalla ‘elpís’ dei greci alla ‘speranza’ dei cristiani», RCI 72 (1991) 265-266.
18
  Cf. S.P. Bonanni, «La speranza fra grazia e virtù», ATT 15 (2009) 250.
19
  Cf. F. Mies, «Speranza», Cinisello Balsamo 2010, 1329.
20
 Cf. M. Marassi, «Speranza», Milano 2006, 10949.
21
  Cf. G. Visonà, «Dalla ‘elpís’ dei greci alla ‘speranza’ dei cristiani», RCI 72 (1991) 267. Este assunto
será desenvolvido de forma mais profunda pelo autor em G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei
Padri, Milano 1993, 33-37.
22
  Cf. R. Bultmann, «ἐλπίς», in GLNT, III, Brescia 1967, 517. Todavia há várias exceções, por exemplo
qawah (traduzido por ‘esperança’ ou ‘esperar’ nas versões modernas) não é traduzido nos Salmos
dos LXX com ἐλπίς mas com ὑπομονή (que quer dizer sobretudo ‘paciência’ e ‘perseverança’). Cf. G.
Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 10; R. Koch, «La speranza nel Vecchio
Testamento», VP 55 (1972) 20. Ver ainda: Cf. P.R. Scalabrini, «La speranza non delude», Milano

49
muitos significados: confiar, fiar-se, crer, contar com; apoiar-se; abandonar-se;
estar ou sentir-se seguro, tranquilo, sereno, sossegado; confiar-se, ser um ilu-
dido, um otimista, fazer-se ilusões; pôr, depositar, fundar a confiança. Neste
contexto podemos considerar três dimensões onde se aplica o termo: o aspeto
físico – atitude de apoiar-se (como em Is 36,6; 50,10; Sl 21,8; Pr 3,5; Eclo 15,4);
o uso absoluto – a atitude de estar ou sentir-se seguro, com valor positivo ou
negativo (como em Jz 18,27; Is 32,9; Pr 11,15; 28,1; 2Rs 18,24; Jr 7,8); com comple-
mento – confiar em alguém ou em algo, com valor também positivo ou negativo
conforme o contexto (como em Is 26,3; 42,17; Sl 44,7; 52,9; 112,7; Jr 17,5; 49,4; Ez
16,15; Pr 28,26; Eclo 6,7)23.
No entanto, o mundo bíblico veterotestamentário não confia a ideia de espe-
rança a um único termo, mas a um conjunto variado de verbos e substantivos24.
Para além do verbo hebraico ‫[ ָבּטַח‬bāṭaḥ], podemos indicar, pelo menos, quatro
verbos que se relacionam com este sentido de esperar25: qawah (ligado a qaw que
significa ‘fio de prumo’ usado na construção dos muros) que quer dizer estar em
tensão para, esperar ardentemente26 (ocorre, referido a Yhwh, 26 vezes) – os LXX
traduzem este verbo nos Salmos (por ex. Sl 25,3.5.21; 40,2; 130,5) com hypoméno
mas em Job (6,8) e em Provérbios (10,28) com elpís27; jikhēl que se pode traduzir
por aguardar, esperar (referido a Yhwh aparece 27 vezes); khikkāh que significa
aguardar com confiança e desejo (aparece 7 vezes referido a Yhwh); sibbēr que se

2000, 110 e F. Mies, «Speranza», Cinisello Balsamo 2010, 1328.


23
  Cf. L.A. Schökel, «‫» ָ ּבטַח‬, in DBHP, São Paulo 1997, 97-98. Ver ainda R. Koch, «La speranza nel
Vecchio Testamento», VP 55 (1972) 21.
24
  Cf. G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 10.
25
 Françoise Mies indica precisamente estas quatro raízes: qwh, yḥl, ḥkh e śbr. Dizendo ainda que há
151 (excluindo o Eclo), sendo que as primeiras duas são as mais frequentes e quarta é rara. Este léxico
será completado com a raiz bṭḥ que aparece 134 vezes. Cf. F. Mies, «Speranza», Cinisello Balsamo
2010, 1327. Outros autores referem um campo mais alargado de termos como bāṭaḥ (confiar, sentir-se
seguro), qārâ (ser impaciente, esperar), jāḥal (esperar), ḥāsâ (procurar refúgio, esconder-me), ḥākâ
(esperar com nostalgia, saudosamente), śābar (confiar, querer, esperar),ʼāmēn (ser firme e confiante,
crer, confiar, esperar). Cf. F. Kerstiens, «Speranza», in SM, VII, Brescia 1977, 745. Ver ainda Cf. P.R.
Scalabrini, «La speranza non delude», Milano 2000, 109-112.
26
  ‫[ ׇק ׇוח‬qaw] tem o sentido de esperar, confiar, aguardar e também pode ter o sentido de espreitar. Cf.
L.A. Schökel, «‫»ק ׇוח‬, ‫ ׇ‬in DBHP, São Paulo 1997, 573. Ver artigo mais desenvolvido em E.J. Waschke,
«‫»ק ׇוח‬,
‫ ׇ‬in GLAT, VII, Brescia 2007, 889-899. Aqui falamos da forma verbal, em piel, qawah e dos seus
dois substantivos tiqweh e miqweh. Cf. R. Koch, «La speranza nel Vecchio Testamento», VP 55 (1972)
20. O termo ṭiqwāh (da mesma raiz de qaw), com o sentido de esperança, podemos encontrar em Jb
6,8 e Pr 10,28. Cf. «ָ‫»חתִ ְקו‬, in P. Reymond, Dictionnaire d’Hébreu et d’Araméen Bibliques, Paris 2010,
410. Ver ainda F. Mies, «Speranza», Cinisello Balsamo 2010, 1328.
27
 Cf. R. Koch, «La speranza nel Vecchio Testamento», VP 55 (1972) 21.

50
traduz por esperar, desejar28 (aparece 4 vezes referido a Yhwh). Os relativos subs-
tantivos são poucos e apenas em 9 passagens há uma referência à esperança em
Deus. O esperar como ato é atestado nos contextos de promessa e de consolação:
na maior parte dos casos é uma ‘declaração de confiança’, sobretudo nos Sal-
mos. Os verbos hebraicos que exprimem esperança estão em relação estreita com
aqueles que indicam confiança. Das 146 passagens nas quais verbos e substanti-
vos indicam esperar ou esperança, pelo menos metade, refletem uma esperança
no sentido profano. É uma espera cheia de confiança e de tensão, voltada para um
bem ou um evento concreto e desejado, mas ainda futuro29.
Deste modo, a esperança, no AT, se na sua estrutura psicológica se trata
de uma esperança semelhante à profana ele diferencia-se fundamentalmente
pelo conteúdo, pelas motivações e pelos efeitos que produz. Diferencia-se so-
bretudo porque se centra em Deus. Tocamos assim o núcleo crucial do espe-
rar. A esperança não é só um ato, um projeto, uma vontade, mas é sobretudo
uma relação real, um esperar-em alguém e não simplesmente um esperar-que as
coisas sejam de determinada maneira. Deste modo, pode exprimir a sua fé na
esperança apenas aquele que reconhece não um conceito, uma conceção, uma
ideologia religiosa, mas a presença de Deus. Presença que não funciona como
resposta a cada questão da existência, que não torna imunes ao sofrimento e à
morte e que todavia faz sentir ao ser humano que não está abandonado. Antes
pelo contrário, torna-o radicalmente filho ou filha30. Deste modo, a uma típica
conotação dinâmica da esperança como expectativa no AT impõe-se uma certa
conotação, primariamente estática, que configura a esperança como confiança
no Deus de Israel31.
No entanto, esta esperança ‘revolucionária’, porque centrada em Deus e já
não no homem, revela-se, ao mesmo tempo, ‘paradoxal’. Paradoxal e dialética
fundamentalmente por duas grandes razões. Em primeiro lugar, porque é uma
relação entre Deus e o Homem, um ‘pacto’ bilateral. Como tal, sendo relação,
requer uma determinada postura da parte do Homem: uma confiança e uma fé
autêntica mesmo quando parece que Deus não está presente; a observância dos
mandamentos sobretudo no empenho pela justiça na relação uns com os outros.
Bem sabemos, pela história, das dificuldades em assegurar estas condições na

28
  ‫שׂבֶד‬
ֵ [sebbēr] tem o sentido de espera ou de esperança. Cf. L.A. Schökel, «‫שׂבֶד‬
ֵ », in DBHP, São Paulo
1997, 636.
29
  Cf. E. Hoffmann, «ἐλπίς», in DCBNT, Bologna 1976, 1777.
30
  Cf. R. Mancini, «Le sorti della speranza nell’era post-moderna», RTM 158 (2008) 177-178.
31
  Cf. G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 31.

51
relação, por parte dos homens e das mulheres do povo de Israel. A esperança no
AT é ‘paradoxal’, em segundo lugar, porque inicialmente Israel espera um futuro
terrestre, sem considerar uma imortalidade pessoal (Is 38,18; Jb 17,15; Ez 37,11).
A esperança, nos primeiros tempos, ligava-se a uma ajuda imediata de Deus e
só, pouco a pouco, se foi orientado, cada vez mais, para uma visão escatológica.
Visão essa que primariamente se centra na ressurreição do povo e não de cada
pessoa, individualmente falando. Tratava-se de um horizonte de futuro salvífico
em sentido genérico que será, definitivamente, ultrapassado no contexto do NT32.
Esta dimensão ‘paradoxal’ vaia travessando todo o AT. Efetivamente, Israel
dirige-se a Deus como ‘minha esperança’. Por exemplo o salmista diz ‘Tu és a
minha esperança, ó Senhor Deus’ (Sl 71,5a), ou ‘a nossa alma espera no Senhor;
Ele é o nosso amparo e o nosso escudo’ (Sl 33,20), ou apenas ‘Tu, Senhor, és a
esperança de Israel’ (Jr 17,13a; cf. 14, 8a). Yhwh é por isso a meta, a essência,
a garantia da esperança do seu povo. Nos textos escatológicos, o conteúdo da
esperança não é expresso abstratamente, mas formulado em visões, por isso as
vozes típicas da esperança são frequentemente raras (cf. Is 25,9; 42,4; 51,5; Hab
2,3). A esperança veterotestamentária supera os limites estreitos da vida indivi-
dual porque faz referência ao Povo de Israel33. Determinante para a conservação
desta genuína esperança é a luta dos grandes profetas contra as falsas miragens
de esperança e de salvação. Quando o futuro aparece fechado, Oseias, Jeremias
e Ezequiel anunciam a perspetiva divina de um novo início (cf. Os 2; Jr 29,1ss;
31,31-34; Ez 36-37)34.

2. Categoria de ‘promessa’ como o conteúdo da esperança


A esperança salvífica no AT vai-se dilatando num processo histórico-exis-
tencial dinâmico. Neste processo iremos usar sobretudo a categoria da promessa,
ainda que não haja nenhum termo correspondente no hebraico. Contudo, o facto
de não haver um termo hebraico não significa que aquilo que o nosso termo quer
exprimir não esteja presente, tanto mais que o grego ἐπαγγελία surge muitas
vezes no NT para exprimir a tensão de Israel e da sua história35. De facto, a re-
velação, como sublinha Jürgen Moltmann, tem uma natureza escatológica que

32
  Cf. H.U. von Balthasar, La verità è sinfonica, Milano 19913, 125-126.
33
  Não é o individuo o portador da esperança mas o povo da Aliança. Cf. R. Koch, «La speranza nel
Vecchio Testamento», VP 55 (1972) 21-22. Aqui o autor desenvolve o tema da esperança coletiva.
34
  Cf. E. Hoffmann, «ἐλπίς», in DCBNT, Bologna 1976, 1777.
35
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 323.

52
assume na promessa um caráter constitutivo e fundamental. Mas a promessa não
ilumina um futuro que é, desde sempre, inerente à realidade; pelo contrário, o
‘futuro’ é aquela realidade em que na promessa se completa e encontra repouso
porque corresponde e é perfeitamente conforme. Por tudo isto, o evento da pro-
messa da revelação de Deus só se pode exprimir de modo articulado dentro e em
relação com a problematicidade da realidade complexa do mundo e do próprio
homem, mas não se esgota nela nem com ela se identifica36.
Sendo impossível desenvolver aqui a profundidade deste tema, sobretudo em
termos exegéticos, queremos referir os elementos teológicos principais de modo
que possamos colher o essencial da relação entre promessa e esperança. Há que
começar por fazer uma importante referência ao processo da passagem de um
povo nómada e semi-nómada a um povo sedentário em Canaã, em que decorrem
imensas inter-ações e influências sobretudo com a religiosidade de outros povos
nómadas e do povos agrícolas cananeus. Uma tensão que percorre toda a histó-
ria de Israel. O Deus transmigrado dos nómadas não está vinculado a nenhuma
localidade ou território; e é um Deus que conduz a um futuro que não é mera re-
petição, onde os acontecimentos têm a marca de acontecerem em ‘movimento’37.
Este olhar exige que estejamos atentos para não ficarmos prisioneiros de uma
conceção ingénua e objetivista da promessa porque é no AT, onde está registada
a interpretação da própria história por Israel, que a promessa emerge como tal,
sendo, deste modo, uma expressão de uma leitura crente da história38. De tal
modo que, entre a história da promessa e a história de Israel, não é possível su-
blinhar delimitações claras já que uma se ‘confunde’ na outra e, na sua reciproci-
dade, reclamam mútuos contributos que determinam a peculiaridade de Israel39.
A fé de Israel assentava não em axiomas, mas numa narrativa, num recontar a
sua própria história; e no início dessa história está precisamente uma promessa40:
«Quando, amanhã, os teus filhos te perguntarem que regras, leis e preceitos são
estes que o Senhor, nosso Deus, vos impôs, dirás, então, aos teus filhos: ‘Éramos
escravos do faraó, no Egipto, e o Senhor tirou-nos do Egipto com mão forte. À
nossa vista, o Senhor fez sinais, prodígios enormes e terríveis no Egipto contra o
faraó e toda a sua casa. Quanto a nós, tirou-nos de lá, para nos introduzir aqui e

36
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 82-83.
37
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 96-97. Este tema será desenvolvido até à
página 102.
38
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 326.
39
  Ibidem, 329.
40
 Cf. F.-J. Nocke, Escatologia, Brescia 1984, 17.

53
nos dar a terra que prometera em juramento a nossos pais’» (Dt 6,20-23). Efetiva-
mente, «Deus revela-se em forma de promessa e na história relativa à promessa»41
porque o Deus que cumpriu as suas promessas a Israel no passado, continuará a
ser fiel no presente e no futuro42.
A categoria da promessa, até agora invocada, exige que se esclareça o que
se entende por promessa, especialmente promessa de Deus. Jürgen Moltmann
sublinha sete elementos que aqui retomamos: a promessa é uma declaração que
preanuncia uma realidade que não existe ainda, não sendo uma projeção nem
um desenvolvimento a partir das possibilidades do presente mas do que é possí-
vel ao Deus da promessa; a promessa vincula o homem ao futuro e torna-o capaz
de ter o sentido da história porque o envolve na sua própria história; a história
determinada e iniciada a partir da promessa não consiste no recorrente retorno
às mesmas coisas mas também não é desenvolvimento e progresso; a palavra da
promessa não encontra ainda coincidência com a realidade, antes pelo contrário
já que se coloca em contradição com essa realidade de que se faz experiência
hoje e no passado; a palavra da promessa cria sempre um espaço de tensão entre
obediência e desobediência, já que oferece ao homem um particular espaço da
liberdade; estando a promessa ligada a Deus significa que contém em si elemen-
tos que podem constituir uma surpresa e uma novidade em relação à originária
compreensão da promessa; por fim, o caráter particular das promessas no AT é
que não terminaram nos acontecimentos, nem nos mais dramáticos, da história
de Israel, antes pelo contrário foi interpretada de modo sempre novo e cada vez
mais amplo43.

3. A esperança como acolhimento da promessa: Abraão, Moisés e David


Interessante sublinhar que a própria história de Abr(a)ão44 começou com
uma promessa: «O Senhor disse a Abrão: ‘Deixa a tua terra, a tua família e a casa
do teu pai, e vai para a terra que Eu te indicar.  Farei de ti um grande povo, aben-
çoar-te-ei, engrandecerei o teu nome e serás uma fonte de bênçãos. Abençoarei
aqueles que te abençoarem, e amaldiçoarei aqueles que te amaldiçoarem. E todas

41
 J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 38.
42
  Cf. J. Everts, «Hope», Illinois 1993, 415.
43
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 103-106.
44
  A mudança do nome de Abrão para Abraão decorre também desta promessa que Deus lhe faz: «5Já
não te chamarás Abrão, mas sim Abraão, porque Eu farei de ti o pai de inúmeros povos. 6Tornar-te-ei
extremamente fecundo, farei que de ti nasçam povos e terás reis por descendentes» (Gn 17,5-6). BS.

54
as famílias da Terra serão em ti abençoadas’» (Gn 12,1-3). Para um nómada, a
promessa de uma terra, e para quem não podia ter filhos, a promessa de uma
descendência numerosa, eram precisamente a novidade que abre ao futuro e, por
isso, cria esperança45. A reação de Abraão é extremamente significativa: «Abrão
partiu» (Gn 12,4a). Aos 75 anos, diz o texto, Abraão parte sem discutir nem pro-
curar esclarecimentos. O fundamento da promessa é Deus e nada de humano,
por isso, não pode mais do que obedecer e, assim, confiar o presente em nome de
um futuro que parece contradizê-lo. Como irá referir o autor da Carta aos He-
breus: «Pela fé, Abraão, ao ser chamado, obedeceu e partiu para um lugar que ha-
via de receber como herança e partiu sem saber para onde ia» (Hb 11,8)46. Neste
sentido, podemos dizer que a esperança nesta promessa permite fazer a experiên-
cia da fidelidade de Deus, não obstante as incertezas e os imprevistos da vida47.
Este sentido da vivência da promessa, em Abraão, é comum às três gran-
des religiões monoteístas: judaísmo, islamismo e cristianismo. Por isso, Abraão
é quem acolhe e guarda a memória comum destas religiões. Apesar disso não
podemos dizer que seja o ‘fundador’ destas tradições religiosas porque a perso-
nalidade que deu ao judaísmo a sua fisionomia particular foi Moisés, ao Islamis-
mo foi Maomé e ao cristianismo foi Jesus Cristo48. Podemos assim pensar numa
esperança comum às três religiões que encontra no acolhimento da promessa
a sua origem. Neste ponto, como disse Tolentino Mendonça, não é indiferente
escolher desenvolver um pensamento a partir de uma história de vida em vez de
um conceito. Sabemos que uma imagem tem a força expressiva de mil palavras
porque não fala só à razão mas toca o coração49. Falar da esperança a partir da
vida de Abraão é escolher uma narrativa profunda de vida que ilumina e desafia
o modo como vivemos a nossa esperança.

45
  Os principais objetos da esperança bíblica são precisamente a ‘terra’ e a ‘descendência’ – que Deus
promete. Assim ‘fecundidade’ e ‘prosperidade’ são frutos da bênção de Deus (Dt 28,1-14). Cf. F. Mies,
«Speranza», Cinisello Balsamo 2010, 1328. Luis Tagle insiste muito da ideia de uma ‘esperança absurda’
em várias figuras bíblicas, a começar por Abraão. Diz o autor – como podia Abraão acreditar que iria
ter muitos descendentes se nem sequer um filho tinha? A promessa pode parecer absurda, mas quem
confia, confia totalmente naquele que a faz. Cf. L.A. Tagle, Easter People, New York 2005, 90-92.
46
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 341; R. Koch, «La speranza nel
Vecchio Testamento», VP 55 (1972) 24.
47
  «Hope allows us to experience the fidelity of God despite life’s uncertainties and unpredictability».
L.A. Tagle, Easter People, New York 2005, 99.
48
  Cf. J.L. Ska, «Abramo nella tradizione ebraica», CivCatt 151 (2000) 341.
49
  Cf. J.T. Mendonça, «‘Sperare contro ogni speranza’», RCI 46 (2015) 182. Já Robert Koch desenvol-
verá uma releitura da vida de Abraão à luz da esperança e do modo como foi acolhendo a promessa
que Deus que fez. Cf. R. Koch, «La speranza nel Vecchio Testamento», VP 55 (1972) 24-27.

55
Será precisamente em Paulo, na carta aos romanos, que iremos encontrar
a força e o específico da esperança de Abraão, quando diz: «Foi com uma es-
perança, para além do que se podia esperar [παρ’ ἐλπίδα ἐπ’ ἐλπίδι], que ele
[Abraão] acreditou e assim se tornou pai de muitos povos, conforme o que tinha
sido dito: Assim será a tua descendência» (Rm 4,18)50. O versículo seguinte irá
clarificar a razão pela qual esta promessa estava para além do que os seres hu-
manos podiam esperar que acontecesse: «Sim, ele não vacilou na fé ao ver como
o seu corpo já estava sem vida - com quase cem anos - como sem vida estava o
seio de Sara» (Rm 4,19)51.
Contudo, apesar de aqui não se falar tanto da esperança [ἐλπίς] quanto da fé
[πίστις] de Abraão, acaba-se por estabelecer uma relação que importa compreen-
der e analisar. A fé de Abraão é antes de mais ἐπ’ ἐλπίδι, ou seja, uma fé que assen-
ta numa esperança (ἐπί com dativo diz isso mesmo). Ora esta ἐλπίς é precisamente
aquela de que falámos em Prometeu, ou seja, a fé de Abraão está aberta ao futuro
através de um desejo – deseja encontrar-se com aquele em que crê e ama. Mas a fé
de Abraão que se refere a ἐλπίς é, ao mesmo tempo, παρ’ ἐλπίδα (onde παρά com
acusativo indica um para além de, uma não conformidade, um contraste, um ser
contra). A esperança em que está a fé [πίστις] de Abraão é uma ἐλπίς que vai ‘con-
tra toda a esperança’, porque o texto grego não diz este ‘toda’, mas ‘contra a própria
ἐλπίς’52, ou melhor, ao que habitualmente se entende por ἐλπίς53.
Mas que coisa significa que é ‘contra a própria ἐλπίς’? Como é que se pode
pensar tal incoerência? Podemos dizer que a πίστις de Abraão é uma ἐλπίς que
obriga a rever o próprio significado de ἐλπίς. Mais, é uma ἐλπίς que transforma a
ἐλπίς – uma ἐλπίς nova que se apresenta como um outro modo de intender e viver a
esperança – uma esperança aberta ao futuro54. Deste modo, a esperança de Abraão
baseia-se numa relação de confiança incondicionada, sem interrupções ou reser-
vas; e o único fundamento desta esperança era a própria promessa55. Na verdade,

50
  Rm 4,18 «Ὃς παρ’ ἐλπίδα ἐπ’ ἐλπίδι ἐπίστευσεν εἰς τὸ γενέσθαι αὐτὸν πατέρα πολλῶν ἐθνῶν κατὰ
τὸ εἰρημένον· οὕτως ἔσται τὸ σπέρμα σου». NA28.
51
  Cf. T. Schreiner, Romans, Michigan 1998, 236.
52
  Se na versão portuguesa que aqui citamos encontramos: «uma esperança, para além do que se podia
esperar» é frequente encontrar noutras versões «esperança contra toda a esperança» como por exemplo
numa tradução italiana aprovada pela CEI publicada em 2008: «nella speranza contro ogni speranza».
53
  Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza», L’Aquila 2002, 268-269.
54
  Id., Pensare l’attualità, Roma 2005, 221-222.
55
 Cf. J.T. Mendonça, «‘Sperare contro ogni speranza’», RCI 46 (2015) 182. «Abraham’s faith in
God was not a mere abstraction». T. Schreiner, Romans, Michigan 1998, 236. Ver ainda: J. Everts,
«Hope», Illinois 1993, 415.

56
«acreditar significa superar os confins, transcender os limites, empenhar-se num
êxodo. Mas fazê-lo de modo a não suprimir ou a saltar a angustiosa realidade»56.
A promessa feita a Abraão é a primeira formulação da promessa para Israel
como substituição daquela via salvífica da criação que o pecado tinha destruído.
Por isso, é exemplar para as sucessivas formulações representando o horizonte
interpretativo. A esta se fará referência em vários momentos e encontramo-la so-
bretudo em Isaac (Gn 26,3)57 e em Jacob (Gn 28,13-15)58. Deste modo a promessa
feita a Abraão assinala toda a história de Israel. O acolhimento desta promessa
e a resposta obediente caraterizam a abertura de Israel ao mistério inerente ao
futuro, que aqui se revela não tanto um processo de projeção nem de criativi-
dade mas essencialmente de obediência a uma palavra que sempre o precede, o
direciona, o orienta para a frente. Deus faz uma aliança com Abraão e dirá que
este será pai de inúmeros povos, estabelecendo uma aliança perpétua com toda
a sua descendência (cf. Gn 17, 4.7). Assim, a humanidade inteira entra no mesmo
dinamismo da relação com Deus e de abertura ao futuro que a promessa feita por
Deus e acolhida por Abraão significa59.
Em Moisés, escolhido para guiar o povo de Israel, Yhwh renova esta sua pro-
messa dizendo: «Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e
o Deus de Jacob» (Ex 3,6a). Mas a mesma promessa enfrenta agora um contexto
histórico e existencial diferente. Diante da opressão e sofrimentos no Egipto o
Senhor disse: «E agora, vai; Eu te envio ao faraó, e faz sair do Egipto o meu povo,
os filhos de Israel» (Ex 3,10). A promessa torna-se agora libertação do Egipto e
sobretudo da escravidão que o Egipto representa. A promessa de uma outra terra
«boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel» (Ex 3,8b). A mesma pro-
messa agora vai ser enriquecida – Yhwh vai revelar a Moisés o seu próprio nome,

56
 J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 13.
57
  Gn 26,3: «Vive aí durante algum tempo; Eu estou contigo [Issac] e abençoar-te-ei, pois é a ti e à
tua descendência que Eu darei toda esta terra e cumprirei o juramento que fiz a Abraão, teu pai». BS.
58
  Gn 28,13-15: «13Eu sou o Senhor, o Deus de Abraão, teu pai, e o Deus de Isaac. Esta terra, na qual te
deitaste, dar-ta-ei [Jacob], assim como à tua posteridade.14A tua posteridade será tão numerosa como o
pó da terra; estender-te-ás para o ocidente, para o oriente, para o norte e para o sul, e todas as famílias da
Terra serão abençoadas em ti e na tua descendência. 15Estou contigo e proteger-te-ei para onde quer que
vás e reconduzir-te-ei a esta terra, pois não te abandonarei antes de fazer o que te prometi». BS.
59
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 341-342. Paulo, reinterpretando,
coloca esta promessa feita a Abraão no contexto escatológico universal, onde o ‘país’ se torna o ‘mun-
do’ e a ‘descendência’ passa a ser ‘todos os povos’. Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia
20088, 153.

57
o que não tinha acontecido com Abraão: «Eu sou aquele que sou» (Ex 3,14a)60.
Mas esta revelação do nome emerge no contexto da (in)figuração divina do mo-
noteísmo de tradição abraâmica.
Esta revelação do nome não só não inaugura a própria revelação de Deus,
como se insere num dinamismo de continuidade já que o nome revelado não é
outro que o Deus dos patriarcas. Contudo, é preciso aprofundar esta revelação e
colher a novidade intrínseca. Antes de mais, não se trata tanto de uma questão
de etimologia do nome de Yhwh mas sobretudo uma definição da essência divi-
na, no sentido ontológico [LXX: ἐγώ εἰμι ὁ ὤν]. Todo o contexto narrativo deixa
entender que Yhwh está para fazer uma comunicação não sobre o que ele é, mas
sobre como se apresentará a Israel, não no sentido de um ‘ser’ absoluto, mas de
um ser relativo e operante, ou seja, ‘serei’ (para vós). No contexto bíblico o nome
exprime em certa medida a própria substância61. Uma revelação que permite uma
nova profundidade na relação entre Yhwh e o seu povo, sempre na lógica de que
Deus não revela outro senão ‘ele mesmo’ onde a finalidade e o futuro da sua re-
velação estão nele mesmo. Se essa revelação é feita ao próprio homem, então ela
tem o objetivo de fazer com que o homem acolha a própria autenticidade e ori-
ginalidade que o constitui62. Mas este revelar-se de ‘Deus mesmo’ não pode dizer
simplesmente ‘Deus em pessoa’ mas Deus no mistério do seu ‘eu’ – ‘ser o próprio’
na fidelidade histórica à sua promessa, confirmando-a, renovando-a, continuan-
do-a e cumprindo-a. De facto, a essência e a identidade do Deus da promessa
consiste na constante relação que livremente escolheu com as suas criaturas, na
fidelidade e na graça63. A experiência de Israel revela, deste modo, um Deus que
se manifesta como mestre do futuro e destina o homem a um futuro. O próprio
nome de Yhwh - como foi revelado em Ex 3,14 – constitui talvez já a segurança
de um futuro64. Assim, o específico do AT é que Yhwh é ele mesmo a esperança
de Israel (Sl 71,5; Ger 14,18; 17,13) e que a esperança, graças à fé, torna-se certeza
fundada sobre a própria fidelidade de Deus (Is 8,17; Mi 7,7)65.
Para além da revelação do nome de Deus, no sentido mais profundo e onto-
lógico, encontramos aqui um segundo elemento que irá enriquecer a promessa:

60
  Ibidem, 342. Em concreto esta última frase diz-se em hebraico «‫»אֶ ֽ ְה ֶי֖ה ֲא ֶ ׁ֣שר אֶ ֽ ְה ֶי֑ה‬. Ex. 3,14a, in BHS.
Uma tradução mais próxima do original será: «sou o que sou».
61
  Cf. G. von Rad, Teologia dell’Antico Testamento, I, Brescia 1972, 211-213.
62
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 42.
63
  Ibidem, 117.
64
  Cf. J.Y. Lacoste, «Speranza», Roma 2005, 1277.
65
 Cf. X. Léon-Dufour, «espérance, espérer», in DNT, Paris 19752, 240.

58
a ligação entre Yhwh e o seu povo assume agora uma dimensão formal, quase
jurídica, na aliança - «Tomar-vos-ei para mim como povo e Eu serei para vós
Deus» (Ex 6,7a). Uma relação que se manifesta num conteúdo concreto e especí-
fico, feito de direitos e deveres típicos de cada pacto, aqui identificado no ‘decá-
logo’ (cf. Ex 20,1-18)66. Esta Lei oferecida está também ela em íntima relação com
a promessa, não é outra coisa nem sequer está ao lado67. Os mandamentos são
a dimensão ética da promessa e a obediência a estes é o fruto da esperança. Por
isso, os mandamentos não são vistos como normas rígidas mas acompanham a
promessa, dando impulso à história em direção ao futuro prometido68.
Por fim, importa sublinhar que com a libertação do Egipto se abre espaço
para a memória, ou seja, este acontecimento passa a ser recordado todos os anos.
Mas este acontecimento não é celebrado apenas como memória que se recorda
mas como memorial que se atualiza. Em cada ano cada israelita renova e atua-
liza a promessa de Yhwh: «Aquele dia será para vós um memorial, e vós feste-
já-lo-eis como uma festa em honra do Senhor. Ao longo das vossas gerações, a
deveis festejar como uma lei perpétua» (Ex 12,14). Torna-se assim uma metáfora
viva, sobretudo pelo facto de introduzir no presente a vitalidade da abertura que
reclama. Um dinamismo hermenêutico, de promessa e abertura, a partir do já
interpretado (fé) em conjunto com o que é ainda de interpretar (esperança) numa
prática correspondente ao acolhimento obediencial à lei (caridade). Assim, o cul-
to serve para celebrar e a manter a esperança a partir de alguns elementos que a
teologia litúrgica evidencia – recordação, agradecimento e invocação69.
Se a primeira coisa que Deus diz a Abraão, o primeiro Patriarca, é um ape-
lo a meter-se em caminho e fazendo-lhe uma promessa de futuro, ficando assim
estabelecido o conteúdo da promessa, a que regressam muitas páginas do AT (a
terra, a descendência e uma relação especial com Deus), mais tarde acrescentará
um quarto elemento à promessa, também esse repetido com frequência, que tem
a ver com a regalidade em Israel, onde Jerusalém como capital e David como rei
têm um papel determinante na concretização dessa promessa (cf. 2Sam 7, 8-16)70.
Efetivamente, com David há uma nova esperança: tranquilidade na relação com os
inimigos, um bom enraizamento na terra, estabilidade e continuidade da dinastia.
66
  Sobre o significado do decálogo no contexto da tradição histórica de Israel aconselhamos sobretu-
do: G. von Rad, Teologia dell’Antico Testamento, I, Brescia 1972, 222-236.
67
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 343.
68
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 123.
69
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 344.
70
 Cf. F.-J. Nocke, Escatologia, Brescia 1984, 18-19.

59
O rei de Israel deverá ser considerado entre os grandes do mundo. A que se junta
um relacionamento especial com Deus, já que o Senhor tem com ele um relaciona-
mento como de um pai para um filho. Esta promessa não é uma promessa privada,
feita a David ou à sua família, mas diz respeito a todo o povo de Israel. Assim a
esperança de Israel em Yhwh une-se agora à esperança num homem com o qual
Yhwh estabeleceu uma relação particular, como já tinha acontecido com Abraão71.
Poderia parecer que com o reino de David todas as grandes promessas feitas
a Israel (a certeza de uma pátria, um futuro para a descendência e a particular
proximidade de Yhwh) estivessem completamente realizadas. Com a entrada em
Canaã, a terra prometida, parecia que a promessa tinha chegado ao fim, parecia
que ficaria anulada na coincidência com a realidade72. Mas o futuro positivo es-
perado na própria terra não está garantido. Poucos capítulos mais à frente, fala-se
do abuso de poder por parte do rei (2Sam 11,1ss); nas gerações seguinte o reino
divide-se (o norte separa-se do sul) e seguem-se séculos de decadência política
e ético-religiosa; o reino do norte, e depois o do sul, acabam sob um domínio
estrangeiro; a classe influente e dominante de Jerusalém acaba exilada na Babi-
lónia. Deste modo, neste contexto do exílio, a esperança de Israel dilata-se para
além das promessas enunciadas até àquele momento. Assim, o profeta Isaías, no
séc. VIII, quando o reino está enfraquecido e os seus territórios a norte parecem
já perdidos, articula a antiga esperança, ligada ao trono de David, no modo novo
e mais ambicioso, na promessa de um novo príncipe da paz (Is 9,1-6)73. A pro-
messa supera a antiga: a guerra cessará para sempre; haverá paz perpétua que
será mais do que ausência de guerra; haverá justiça; e haverá boas relações entre
todos os seres vivos. Tudo isto será realizado mediante um novo sobrano no tro-
no de David74. A promessa revela assim a sua própria inexauribilidade, ou seja, na
realidade ela indica muito mais do que um simples lugar ou uma simples pessoa.

71
  Ibidem,, 19-20.
72
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 345.
73
  Is 9,1-6: «1O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; habitavam numa terra de sombras,
mas uma luz brilhou sobre eles. 2Multiplicaste a alegria, aumentaste o júbilo; alegram-se diante de ti
como os que se alegram no tempo da colheita, como se regozijam os que repartem os despojos. 3Pois
Tu quebraste o seu jugo pesado, a vara que lhe feria o ombro e o bastão do seu capataz, como na jor-
nada de Madian. 4Porque a bota que pisa o solo com arrogância e a capa empapada em sangue serão
queimadas e serão pasto das chamas. 5Porquanto um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado;
tem a soberania sobre os seus ombros,  e o seu nome é: Conselheiro-Admirável, Deus herói, Pai-Eter-
no, Príncipe da paz. 6Dilatará o seu domínio com uma paz sem limites, sobre o trono de David e sobre
o seu reino. Ele o estabelecerá e o consolidará com o direito e com a justiça, desde agora e para sempre.
Assim fará o amor ardente do Senhor do universo». BS.
74
 Cf. F.-J. Nocke, Escatologia, Brescia 1984, 20-21.

60
4. Julgar o presente à luz da promessa: a esperança dos profetas
O tema da esperança não só é frequente como também é característico do
AT, especialmente na literatura exílica e pós-exílica. Trata-se sobretudo de uma
época messiânica, que se fundamenta na segurança e na confiança em Yhwh,
sempre fiel à sua promessa75. Neste sentido, no AT o tema da esperança move-se
em duas direções: a da confiança e a da espera. A primeira tem sobretudo uma
conotação estática e a segundo, pelo contrário, uma conotação dinâmica. A es-
perança como confiança está intimamente ligada ao fundamento da fé de Israel,
isto é, a ideia de eleição que é intrínseca à de Aliança. É na consciência de uma
relação privilegiada com Deus que se funda a esperança como certeza confiante
que Yhwh não abandonará o seu povo. Mas, por outro lado, a esperança tem a
ver com o futuro onde se revela como espera enquanto se manifesta através de
outra categorial fundamental da fé bíblica que é a promessa76.
Neste horizonte, o profeta parte do presente, de uma situação histórica con-
creta, e nesse presente quer ser uma palavra crítica à luz do futuro da promessa
que é sempre critério de todos os juízos. Nas situações limites, onde o tempo de
exílio releva a máxima dramaticidade, Israel sente a ameaça de ser aniquilada e,
desse modo, ver terminada a história da promessa. Aqui a interpretação profética
vê aquele presente à luz do juízo de Yhwh sobre o seu povo infiel. Com esta in-
fidelidade é preciso fazer uma rutura profunda entre o passado e o futuro, o pe-
cado e a graça. A esperança é a intervenção de Deus capaz de operar uma radical
novidade77. Por isso, a história de Israel não pode ser descrita como uma ascensão
em linha reta, como uma história de um progresso linear. Trata-se antes de mais
de uma história feita de esperança em crescimento. Mas não é uma esperança que
despreza os interesses atuais do povo, antes pelo contrário, são sempre expressas
em conexão com as expectativas suscitadas pelas concretas situações históricas,
não querendo com isto significar que essas promessas constituam simplesmente
a confirmação das esperas humanas78.

75
 Cf. G.B. Bustamante, «La esperanza en la vida critiana», ThX 154 (2005) 213. Este tema da espe-
rança associado ao exílio aparece bem retratado na literatura portuguesa no famoso texto de Luís de
Camões – ‘Sôbolos rios que vão’. Aqui o autor fala da sua esperança à luz do Sl 137, onde a Jerusalém, a
verdadeira Pátria, é o símbolo da esperança que se apresenta não apenas como uma meta para o fim da
vida mas como uma força para resistir ao exílio e para não deixar de sonhar com o regresso à Pátria. Cf.
N. Santos, «A esperança de Camões nas redondilhas ‘Sôbolos rios que vão’», in Brot. 182 (2016) 62-74.
76
  Cf. G. Visonà, «Dalla ‘elpís’ dei greci alla ‘speranza’ dei cristiani», RCI 72 (1991) 266-267.
77
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 347.
78
 Cf. F.-J. Nocke, Escatologia, Brescia 1984, 22.

61
As imagens relacionadas com a esperança vão mudando. Mas nas novas ima-
gens – que resultam sobretudo do segundo ‘êxodo’ – são reconhecíveis as antigas
imagens da esperança e dos acontecimentos do passado. Por isso, a esperança
funda-se sobre experiências históricas. Israel reconheceu o próprio Deus nos
eventos históricos do passado e por isso, em última análise, a esperança de Israel
radica-se no próprio Deus. Mas precisamos de sublinhar duas coisas: o motivo da
esperança não está simplesmente na história enquanto tal, mas em Deus que se
deu a conhecer através dos acontecimentos históricos; por outro lado, este Deus
não é um Deus distante, ou um Deus relegado para o além, mas é o Deus da his-
tória, é como se manifestou na história. Por tudo isto, a esperança fundada em
Yhwh não é qualquer coisa de abstrato mas algo muito visível79.
Todavia, a esperança na promessa de Deus não é uma esperança em Deus
mesmo ou em Deus enquanto tal, mas uma esperança que espera que a sua futu-
ra fidelidade traga o cumprimento do que por Ele foi prometido, que passa pela
sua própria vinda80. De facto, Israel viveu a (sua) história como a sucessão de
interpretações da promessa de Yhwh, revelando a incapacidade da história de
encontrar em si mesma os factos que confirmem totalmente a promessa, por isso,
a promessa está sempre e aponta sempre para além de si mesma, numa formula-
ção sucessiva da própria promessa81. Deste modo, compreendemos que para os
profetas a história não está fechada, como nas visões apocalípticas do fim, já que
a história, de que anunciam o futuro, está ainda em movimento. Eles sabem que
são, em conjunto com a sua mensagem, um fator de movimento da história de
Deus. Por isso, falam da história como ‘obra de Yhwh’ ou ‘plano de Yhwh’ (cf.
Is 10,12; 28,29) porque o Senhor do futuro a conduz no diálogo com Israel, sem
a predestinar82.

5. A esperança no contexto da apocalítica como ‘última’ interpretação da


promessa
Apesar de a apocalítica tardo-judaica constituir uma estrutura complexa e
pluri-estratificada83, podemos dizer que a apocalítica pertence a um período que
para o judaísmo foi motivo de pessimismo extremo, quer no plano político, quer

79
  Ibidem, 24.
80
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 120.
81
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 338.
82
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 134.
83
  Cf. J.B. Metz, Memoria Passionis, Brescia 2009, 130.

62
no plano religioso (aproximadamente entre o ano 200 a.C. e o ano 100 d.C.)84. Sob
dominação estrangeira, dos gregos primeiro e dos romanos depois, todas as opor-
tunidades de restaurar um estado independente pareciam cada vez menores, até
porque muitos judeus passaram-se para o lado dos dominadores - este é o contex-
to, por exemplo, do livro de Daniel, sobretudo os capítulos 2 e 7-12 (que compreen-
de o período do reino de Antíoco IV Epifânio – 175-164 a.C.). Mas Deus não deixa
de falar ao seu povo através de ‘videntes’ que comunicam à comunidade aquilo
que viram – a revelação que Deus fez do sentido da história. Daqui surge o sentido
do movimento que é conhecido por apocalítica (do grego ἀποκάλυψις que quer
dizer ‘re-velação’, isto é um ‘des-velar’ para voltar a colocar o véu)85. Mas o que é
a apocalítica? Antonio Nitrola chama a atenção para a complexidade da questão
apocalítica, desde logo, a partir da definição do termo ἀποκάλυψις que pode ter
três significados: um género literário; um movimento religioso; e um conjun-
to de ideias86. Enquanto género literário é uma expressão de uma determinada
conceção da história, caraterizada por uma longa experiência humana, radicada
no sofrimento e nos fracassos, de uma pessoa ou de um povo. Neste contexto, as
forças do mal alcançam domínio sobre este mundo87.
Tanto os profetas como os escritores apocalíticos têm um interesse pelas coi-
sas futuras e uma orientação escatológica. Contudo, precisamos de fazer algumas
distinções importantes: a conceção apocalítica privilegia uma visão religiosa e de-
terminística da história, enquanto nos profetas se sublinha o movimento e, por
isso, não determinada desde o início do tempo; na conceção apocalítica o elemento
que se contrapõe a Deus é o ‘mundo’ que está submetido à potência do mal, nos
profetas encontramos a ‘tensão’ entre Deus e Israel; a expectativa apocalítica não
espera o cumprimento da criação a partir da vitória do bem sobre o mal, como
acontece frequentemente com os profetas, mas procura a separação do bem do
mal e, por isso, a substituição deste ‘mundo’ pelo mundo novo da justiça; o juízo
de Deus não é considerado como algo que Deus, na sua liberdade e misericórdia,
pode revogar mas como um facto imutável; os profetas vivem no meio do povo de

84
  Falamos sobretudo do período sucessivo à revolta dos Macabeus (167 a.C.) até à guerra judaica
- onde se destacam dois momentos: a destruição do templo (70 d.C.) e a segunda revolta judaica de
Bar Kochba (135 d.C.). Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 113. Sobre estas temáticas aconse-
lhamos: J. Collins (ed), The Oxford Handbook of Apocalyptic Literature, Oxford 2014; E. Bosetti, A.
Colacra (a cura di), Apokalypsis, Assisi 2005.
85
 Cf. F.-J. Nocke, Escatologia, Brescia 1984, 27-28.
86
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 351-352. Ver ainda: J. Meier,
«L’apocalittica nell’ebraismo», in Aa.Vv., Apocalittica ed escatologia, Brescia 1992, 50-80.
87
 Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 115-116.

63
Israel e, deste modo, no meio da sua história, já os autores apocalíticos vivem na
comunidade pós-exílica dos justos de Yhwh; as previsões dos profetas coloca-os
muito abertamente no seu presente histórico, já os autores apocalíticos ‘escondem’
o seu próprio lugar na história88.
A literatura e a linguagem apocalítica, frequentemente obscura e simbólica,
foi paradoxalmente um veículo da esperança dos homens por mais de três séculos.
Um tempo que liga o AT ao NT, por isso, a apocalítica é a ‘natural’ abertura ao
NT e sobretudo a sua decisiva e ‘última’ interpretação da promessa89. No entanto,
apesar das imagens e da linguagem que usa poder parecer que se está a falar do
fim do mundo e dos acontecimentos relacionados com o fim da história, a litera-
tura apocalíptica, sobretudo a que encontramos na bíblia, é essencialmente uma
literatura de resistência religiosa e de esperança. Esta literatura floresce quando
as comunidades judías e cristãs estão a viver os momentos mais difíceis das suas
histórias. Trata-se principalmente de momentos em que estão a experimentar
uma dura perseguição (religiosa, política ou económica) por parte dos poderes
dominantes90. Com efeito, os sofrimentos e os fracassos, individuais ou da nação,
sociais e políticos, decorrentes ou promotores da guerra e da opressão, são terreno
fértil para a afirmação existencial de que só se pode confiar em Deus e esperar o
cumprimento da sua promessa.
Jesus surpreende os seus contemporâneos, sobretudo, pela autoridade com
que falava e pela liberdade diante da Lei. O seu modo de se relacionar com Deus
não é formal nem instrumental como o dos fariseus, mas essencialmente filial e
obedencial. Jesus recusa e critica o legalismo farisaico revelando a grandeza do
serviço – «pelo amor, fazei-vos servos uns dos outros» (Gal 5,13c). Um amor que
tem múltiplas faces, tantas quantas as necessidades concretas das pessoas com
quem se encontra91. Deste modo, podemos dizer que há, na cultura de Israel,

88
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 135-136. Franz-Josef Nocke, neste mesmo
contexto, sublinha que na promessa profética a esperança num futuro é dentro da história onde Deus
age salvando, punindo e perdoando o povo oferecendo a Israel sempre nova oportunidade; já nas
previsões apocalípticas a esperança é depois da história onde Deus acelera o tempo da catástrofe para
abrevar o tempo do sofrimento uma vez que este mundo está definitivamente perdido. Cf. F.-J. Noc-
ke, Escatologia, Brescia 1984, 29. Podemos ainda ver vários destes pontos referidos e desenvolvidos em
A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo, 360-365.
89
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 365-269.
90
 Cf. X. Alegre, «Marcos 13: un llamado a la resistencia y la esperanza cristianas en tiempos difí-
ciles», RLAT 95 (2015) 201-202.
91
 Cf. V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 72-73. Efetivamente, podemos en-
contrar muitos exemplos nos evangelhos em que Jesus toma uma posição diferente da interpretação

64
sobretudo, duas perspectivas: a farisaica (mais ligada à lei, à pureza ritual, liga-
da ao passado) e a apocalítica (que ‘relativiza’ o passado e se centra num futuro
que dá a cada pessoa). A história de Jesus, como afirma Johann Baptist Metz, é
claramente uma história apocalítica na qual a abstrata universalidade da razão é
transfomada definitivamente em tempo e história92. Uma perspetiva apocalítica
que procura ‘traços’ de Deus no rosto de todas as pessoas, especialmente nos
mais sofredores93.
Os sinóticos fazem eco de algumas destas reflexões apocalíticas, a propósito
da profanação e destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 d.C. Destes, o
testemunho mais antigo que encontramos é Mc 13, que terá sido escrito, na sua
redação final, na época em que Jerusalém foi conquistada e destruída por Tito.
Diz Jesus a um dos seus discípulos, a propósito do Templo: «Vês estas grandiosas
construções? Não ficará delas pedra sobre pedra; tudo será destruído» (Mc 13,2).
Jesus alerta os seus discípulos: «Tomai cuidado convosco! Hão-de entregar-vos
aos tribunais, sereis açoitados nas sinagogas e comparecereis diante dos governa-
dores e dos reis por minha causa, para dar testemunho diante deles» (Mc 13,9). O

dos fariseus - «Se a vossa justiça não superar a dos doutores da Lei e dos fariseus, não entrareis no
Reino do Céu» (Mt 5,20): «21Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não matarás. Aquele que matar terá
de responder em juízo. 22Eu, porém, digo-vos: Quem se irritar contra o seu irmão será réu perante o
tribunal; quem lhe chamar ‘imbecil’ será réu diante do Conselho; e quem lhe chamar ‘louco’ será réu
da Geena do fogo» (Mt 5,21-22); «27Ouvistes o que foi dito: Não cometerás adultério. 28Eu, porém, di-
go-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu
coração» (Mt 5,27-28); «31Também foi dito: Aquele que se divorciar da sua mulher, dê-lhe documento
de divórcio. 32Eu, porém, digo-vos: Aquele que se divorciar da sua mulher - excepto em caso de união
ilegal - expõe-na a adultério, e quem casar com a divorciada comete adultério» (Mt 5,31-32); «33Do
mesmo modo, ouvistes o que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás diante do Senhor os
teus juramentos. 34Eu, porém, digo-vos: Não jureis de maneira nenhuma: nem pelo Céu, que é o trono
de Deus» (Mt 5,33-34); «38Ouvistes o que foi dito: Olho por olho e dente por dente. 39Eu, porém, digo-
-vos: Não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a
outra» (Mt 5,38-39); «43Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. 44Eu, po-
rém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem» (Mt 5,43-44). Estes exemplos
podemos juntar outros: «24Os fariseus diziam-lhe: ‘Repara! Porque fazem eles ao sábado o que não é
permitido?’ (…) 27E disse-lhes: ‘O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. 28O
Filho do Homem até do sábado é Senhor’» (Mc 2,24.27-28); «5Perguntaram-lhe, pois, os fariseus e dou-
tores da Lei: ‘Porque é que os teus discípulos não obedecem à tradição dos antigos e tomam alimento
com as mãos impuras?’» (Mc 7,5). Por fim, fazemos referência especial a Mt 23,1-36 onde Jesus faz uma
forte crítica ao farisaísmo dizendo, por exemplo: «Fazei, pois, e observai tudo o que eles disserem,
mas não imiteis as suas obras, pois eles dizem e não fazem» (v.3); «Gostam das saudações nas praças
públicas e de serem chamados ‘mestres’ pelos homens» (v.7); «Quanto a vós [falava às multidões e aos
discípulos], não vos deixeis tratar por ‘mestres’, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos»
(v.8); «Quem se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado» (v.12).
92
 Cf. J.B. Metz, Mística de olhos abertos, São Paulo 2013, 26.
93
  Cf. Id., Memoria Passionis, Brescia 2009, 132.

65
texto termina com Jesus a insistir - «vigiai» (cf. Mt 13,33a.35a.37b). Mas diante de
todo este capítulo verificamos que o mais importante não é saber quando e como
será o fim do mundo mas que Deus espera da comunidade que mantenha viva a
resistência frente ao império injusto. Uma esperança que parte da certeza de que
Deus nunca abandona o seu povo, ainda que não possa evitar os sofrimentos que
comportam a própria perseguição. Seguramente que este capítulo 13 foi lido e
influenciou outras passagens que encontramos em Mt e Lc94.
Chegamos assim ao único livro neotestamentário com traços inteiramente
apocalíticos – o Apocalipse atribuído a João95. A situação da comunidade a quem
é destinado carateriza-se pela perseguição dos cristãos que partiu de Roma. É fácil
notar muitos paralelismos com a apocalítica veterotestamentária, presentes em
Daniel, Ezequiel e Isaías. Contudo, no Apocalipse o centro é Cristo crucificado,
o ‘cordeiro imolado’ (13,8), é através dele que os cristãos obterão a vitória sobre a
morte. Em toda esta literatura apocalítica encontramos elementos essenciais que
referem o conteúdo da esperança cristã: a fé no poder absoluto de Deus, superior
a qualquer outro poder do mundo; a esperança que Deus, mesmo na catástrofe
total, pode abrir o acesso a um futuro; um futuro que passa pela esperança na
ressurreição dos mortos96; e a extensão da esperança, que originariamente se des-
tinava apenas para Israel, à humanidade inteira (universalismo apocalítico).
Esta esperança é revelada através da luta da Igreja contra o mal, à luz da ba-
talha escatológico-apocalítica que tem como protagonistas, por um lado, Deus
– Cristo Imolado – Jerusalém, por outro, o dragão – a besta – Babel. Trata-se
sobretudo da batalha entre Cristo e Satanás (cf. Ap 12 e 13)97. Nesta luta a espe-
rança reacende-se no recordar da promessa do ‘novo céu e a nova terra’ [οὐρανὸν

94
 Cf. X. Alegre, «Marcos 13: un llamado a la resistencia y la esperanza cristianas en tiempos difí-
ciles», RLAT 95 (2015) 204 e 227. Ver ainda: T.B. Slater, «Apocalypticism and Eschatology: A Study
of Mark 13:3-37», PRSt 40 (2013) 7-18; S. MacMillen, «A Sociologist Appeals to Theological Hope in
Postmodern Apocalypses», CrossCur 61 (2011) 232-244.
95
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: G. Biguzzi, «Sviluppi delle criti-
ca testuale per l’Apocalisse di Giovanni», EstBíb 74 (2016) 77-87; J. Frey, J.A. Kelhoffer, F. Tóth
(eds), Die Johannesapokalypse: Kontexte-Konzepte-Rezeption, Tübingen 2012; C. Doglio (a cura di),
Apocalisse, Padova 2012; S. Grasso, Apocalipse, Roma 2011; A. Macala, A escatologia no livro do
Apocalipse, Roma 2008; G. Biguzzi, Apocalisse, Milano 2005; U. Vanni, L’Apocalisse, Bologna 2001;
G.K. Beale, The Book of Revelation, Grands Rapids 1999.
96
  O livro da Sabedoria dará o passo decisivo, no contexto do AT, quando proclama a esperança na
‘imortalidade’ de todos os homens (por ex. Sab 3,4; 4,1; 8,13; 15,3), alcançando assim o ponto culmi-
nante da antropologia veterotestamentaria. Cf. R. Koch, «La speranza nel Vecchio Testamento», VP
55 (1972) 31.
97
  Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 503-504.

66
καινὸν καὶ γῆν καινήν] (Ap 21,a). Uma promessa que se faz lugar e um lugar que
coincide com Jerusalém, ainda que seja sempre ‘nova’. Nesta releitura neotesta-
mentária, a promessa tem cumprimento na história de Cristo. É Cristo que ‘re-
vela’ este novo céu e esta nova terra já anunciada pelo profeta Isaías: «Olhai, Eu
vou criar um novo céu e uma nova terra; o passado não será mais lembrado e não
voltará mais à memória. Alegrem-se e rejubilem para sempre por aquilo que vou
criar. Olhai, vou criar uma Jerusalém cheia de alegria e um povo cheio de entu-
siasmo» (Is 65,17-18). Neste lugar não se recordará mais o passado apenas restará
a alegria e o entusiasmo. Este lugar coincide com a Jerusalém do futuro, mas não
com uma Jerusalém de outro mundo. Nesta Jerusalém não se ouvirá mais ‘choro’
nem ‘lamentos’ (cf. Is 65,19) porque Cristo «enxugará todas as lágrimas dos seus
olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor» (Ap 21,4abc)98.
O autor termina o livro dando ‘voz’ a Jesus que diz: «Eis que Eu venho em
breve. Feliz o que puser em prática as palavras da profecia deste livro» (Ap 22,7).
Jesus insiste: «Eis que Eu venho em breve e trarei a recompensa para retribuir a
cada um conforme as suas obras» (Ap 22,12). E conclui: «Sim. Virei brevemente
[ταχύ]» (Ap 22,20b). Jesus fala e insiste na brevidade da sua vinda [ταχύ]99. Uma
vinda que é confirmação da promessa e alimento da esperança. Ele assegura uma
‘retribuição’ a cada um segundo as suas obras. Nesse dia os bons entrarão pelas
‘portas da cidade’ e os maus ficarão fora (cf. Ap 22,14-15).
Contudo, precisamos de sublinhar de forma crítica elementos que tiveram
muita importância na história da piedade cristã mas que não estão em consonân-
cia com os conteúdos próprios da esperança cristã: a tendência a definir o fim e,
por isso, a substituir a esperança por um conhecimento certo desse fim; o des-
valorizar o mundo atual em favor do mundo futuro num dualismo pessimista;
em consequência o risco do desinteresse ou da resinação nos confrontos do dever
de dar forma à história humana; e sobretudo a compreensão errada de um reino
de Deus que só possa ter início depois da eliminação total de qualquer domínio
negativo100.

98
  Cf. B. Moriconi, «‘E vidi un cielo nuovo e una terra nuova’ (Ap 21,1 – 22,5)», Todi 2008, 169. Acon-
selhamos a leitura de todo o artigo, onde o autor desenvolve, sobretudo, conteúdo do sentido da ‘nova
criação’ e da ‘cidade santa’. Sobre a relação entre a cidade de Jerusalém versus Babel e a esperança,
aconselhamos o artigo: N. Santos, «A esperança de Camões nas redondilhas ‘Sôbolos rios que vão’»,
in Brot. 182 (2016) 62-69.
99
  O advérbio ταχύ tem precisamente o significado de ‘imediatamente’, ‘depressa’, ‘sem demora’. Cf.
C. Rusconi, «ταχύ», in DGNT, São Paulo 2003, 451.
100
 Cf. F.-J. Nocke, Escatologia, Brescia 1984, 34-36.

67
68
Capítulo III

Uma vida – Jesus como fonte da esperança no NT

A vida e as palavras de Jesus são o conteúdo e o fundamento da esperança


cristã1. Por isso, precisamos de ‘entrar’ nessa vida e nessas palavras para poder-
mos aprofundar o sentido mais profundo da esperança. Uma esperança que não
é abstrata, não é teórica, não é extra-terreste, nem ultra-mundana. Trata-se de
uma esperança inserida na história (intra-histórica) ainda que não se esgote na
mesma (meta-histórica), uma esperança feita de palavras e de gestos concretos
(incarnada) ainda que não se esgote aí (pascal), uma esperança que tem em Jesus
a referência (mistério visível) ainda que nos revele a plenitude da Trindade (mis-
tério invisível).

1. Jesus Cristo é o ‘rosto’ e a plenitude da promessa


Antes de mais, para os cristãos ‘o Deus da esperança’ [θεὸς τῆς ἐλπίδος]2 é
o Deus que se revela na história como o Deus da promessa [ἐπαγγειλάμενος] e
que alcança a sua plenitude em Jesus (Hb 10,23)3. Isto mesmo confirma Zacarias,
pai de João Batista, quando ‘anuncia’ Aquele que está para chegar: «Bendito o
Senhor, Deus de Israel, que visitou e redimiu o seu povo e nos deu um Salvador
poderoso na casa de David, seu servo, conforme prometeu pela boca dos seus
santos, os profetas dos tempos antigos; (…) recordando a sua sagrada aliança;

1
  Cf. R. Fabris, Attualità della speranza, Brescia 1984, 11.
2
  Rm 15,13: «Que o Deus da esperança vos encha de toda a alegria e paz na fé, para que transbor-
deis de esperança, pela força do Espírito Santo». BS. Em grego encontramos: «Ὁ δὲ θεὸς τῆς ἐλπίδος
πληρώσαι ὑμᾶς πάσης χαρᾶς καὶ εἰρήνης ἐν τῷ πιστεύειν, εἰς τὸ περισσεύειν ὑμᾶς ἐν τῇ ἐλπίδι ἐν
δυνάμει πνεύματος ἁγίου». NA28.
3
  Hb 10,23: «Conservemos firmemente a profissão da nossa esperança, pois aquele que fez a promes-
sa é fiel». BS. Em grego encontramos: «κατέχωμεν τὴν ὁμολογίαν τῆς ἐλπίδος ἀκλινῆ, πιστὸς γὰρ ὁ
ἐπαγγειλάμενος». NA28.

71
e o juramento que fizera a Abraão, nosso pai, que nos havia de conceder esta
graça» (Lc 1, 68-73). Neste mesmo sentido, são particularmente interessantes os
testemunhos do velho Simeão e da profetiza Ana (Lc 2,25-38) atestando Jesus
como aquele que Israel esperava – o ‘rosto’ da promessa e o sinal da fidelidade
de Deus à sua promessa. Por isso, Simeão pode dizer: «Agora, Senhor, segundo a
tua palavra, deixarás ir em paz o teu servo, porque meus olhos viram a Salvação
que ofereceste a todos os povos, Luz para se revelar às nações e glória de Israel,
teu povo» (Lc 2,29-32). Na verdade, a essência de Jesus não reside em si mesmo
mas na fidelidade com que revela e se identifica na história com a promessa feita4,
retomando os elementos e as referências da esperança veterotestamentária5.
González Cardedal, depois de sublinhar a importância de uma reflexão sobre
a raiz da esperança e não apenas sobre a razão da esperança, afirma que essa
raiz é dupla: uma de natureza metafísica (a transcendência do homem) e outra
de natureza histórica (a promessa de Deus adivinhada pelos sábios, explicitada
pelos profetas e consumada em Cristo). Uma mais de desejo de felicidade, de um
esperar que se dirige para o absoluto, na qual se está sempre a caminho e à qual
nunca se chega plenamente; e outra que tem mais a ver com a própria promessa
de Deus, antecipada pelos profetas e realizada na plenitude dos tempos em Cris-
to6. No entanto, para evitarmos dualismos e divisões, importa reforçar a ideia
de que a esperança evangélica é uma viagem do coração inquieto em direção à
plenitude de ser7.
Com efeito, se os gregos elaboram uma esperança positiva como previsão
racional a partir de uma realidade presente, a tradição veterotestamentária vai
para além da realidade presente em nome de uma promessa de Deus. A espe-
rança torna-se antecipação do futuro prometido daquilo que deverá chegar. No
entanto, Jesus, apesar de dar continuidade a este sentido, revela o novo sentido
da escatologia: a ressurreição dos mortos torna-se forma e conteúdo de um novo
sentido da história. Por isso, Jesus inaugura a sua pregação dizendo que «com-
pletou-se o tempo» (Mc 1,15a)8. De facto, «muitas vezes e de muitos modos, falou

4
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 147.
5
  Cf. G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 42.
6
 Cf. O. González-Cardedal, Raiz de la esperanza, Salamanca 19962, 23-24.
7
  «Ecco che cos’è la speranza evangelica: un viaggio del cuore inquieto verso la pienezza dell’essere».
E. Ronchi; M. Marcolini, Perché avete paura?, Cinisello Balsamo 2013, 45.
8
 Cf. M. Marassi, «Speranza», Milano 2006, 10949-10950. «Ma se la speranza di Abramo si fondava
esclusivamente su di una promessa, oggi, per noi, non è più la stessa cosa. Perché la promessa fatta
ad Abramo è già in gran parte compiuta e ciò che è già acquisito garantisce ciò che ancora è atteso.

72
Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que
são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho» (Hb 1,1-2a). Deste ‘diálogo’ de
Deus com a humanidade Jesus é a plenitude da comunicação, o Verbo [λόγος]
por excelência, a Palavra feita carne (cf. Jo 1, 14a)9. Deus «enviou o Seu Filho, isto
é, o Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e
manifestar-lhes a vida íntima de Deus (cfr. Jo. 1, 1-18)» (DV 4). Um mistério que
a definição dogmática de calcedónia (no ano 451) procura sublinhar ao afirmar
que ‘Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem’, sendo consubstancial
ao Pai pela divindade e consubstancial a cada um de nós pela humanidade - uma
só pessoa em duas natureza (sem confusão, imutável, indivisa e inseparável)10.
Este Mistério da Incarnação que encontra no Mistério Pascal da morte e res-
surreição o seu cume – é onde a esperança cristã ganha sentido. Por isso, Jürgen
Moltmann dirá que a esperança cristã para o futuro nasce da perceção de um de-
terminado e único evento, o da ressurreição e das aparições de Jesus Cristo11. Es-
tabelece-se, assim, uma ‘descontinuidade’ entre a esperança judaica e a esperança
cristã. Enquanto a esperança judaica parte do que é ainda incompleto e dirige-se
para uma plenitude que se vai formando; a cristã, partindo da plenitude alcan-
çada em Cristo, ilumina o que no Homem e no mundo está ainda incompleto12.
Deste modo, a esperança torna-se pessoal e, sobretudo, liga-se a Cristo, cau-
sa da esperança; ou melhor ainda, ele mesmo é a esperança. Se a esperança é o
próprio Cristo, então esperar pode consistir apenas em abandonar-se a Ele. A

(...) Con la risurrezione di Cristo l’essenziale delle promesse di Dio è già realizzato; e a conferire fon-
damento incrollabile alla nostra speranza». J. Daniélou, «La speranza», in Saggio sul mistero della
storia, Brescia 2012, 373.
9
  Jo 1,14a: «E o Verbo [λόγος] fez-se homem [σάρξ] e veio habitar [ἐσκήνωσεν] connosco [ἐν ἡμῖν]».
BS. Traduzindo mais à letra seria: «E o Verbo fez-se carne [σάρξ] e acampou [ἐσκήνωσεν] entre nós [ἐν
ἡμῖν]». De facto, o verbo σκηνόω, aqui usado no aoristo, pode significar ‘acampar’ ou ‘morar’. Cf. C.
Rusconi, «σκηνόω», in DGNT, São Paulo 2003, 419. Sobre esta passagem aconselhamos: C. Doglio,
Imparare Cristo, Cinisello Balsamo 2014, 20ss.
10
  Diz a definição dogmática de Calcedónia: «O Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na sua divindade
e perfeito na sua humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem (…) consubstancial [ὁμοούσιον]
ao Pai pela divindade e consubstancial [ὁμοούσιον] a nós pela humanidade (…) uno e mesmo Cristo
Senhor unigénito, reconhecido em duas naturezas [ἐν δύο ϕύσεσιν], sem confusão, imutável, indi-
visa, inseparável, não havendo diferença da natureza por causa da sua união, mas estando, salva-
guardada a propriedade de cada natureza, formando uma só pessoa [ἓν πρόσωπον] e hipóstase [μίαν
ὑπόστασιν]…». DH 301-302. Para a interpretação e aprofundamento desta definição aconselhamos: P.
Sguazzardo, Incarnazione, Assisi 2013, 98-100 e 112-115; N. Santos, «Do Mistério da Incarnação à
relação com o Incarnado, in Brot. 180 (2015) 497-510.
11
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 199.
12
  Cf. H.U. von Balthasar, La verità è sinfonica, Milano 19913, 127.

73
esperança do homem tem, por isso mesmo, um nome e um rosto - Jesus Cris-
to13. Ele é o cumprimento de uma promessa prévia, que é a vivida, conservada
e relatada no AT, mas é o suscitar de uma esperança maior. Ele não é uma mera
resposta a textos, paradigmas ou atitudes consideradas messiânicas no AT; não
se identifica com nenhum título, texto, figura, oração ou promessa prévios mas,
recolhendo todos, os refunda e os expressa a partir da sua própria identidade de
Filho14. Por isso, Jesus vive a sua própria esperança na base da sua relação filial,
que se exprime como fidelidade ao Pai. Essa relação única e vital com Deus (abbá)
é o conteúdo da sua esperança15.
No entanto, com Jesus a promessa deixa de ser exclusiva de um povo esco-
lhido e torna-se uma promessa universal16. Uma universalidade que assenta no
kerygma primitivo, referido na 1Cor 15,3: «Transmiti-vos, em primeiro lugar, o
que eu próprio recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escri-
turas»17. Jesus morreu e ressuscitou «segundo as escrituras» [κατὰ τὰς γραφάς]
- fica estabelecida uma relação com o AT que não é apenas justaposição mas uma
interpretação e, sobretudo, uma atualização. A promessa realiza-se plenamente
em Jesus Cristo18. Deste modo, a Incarnação ‘des-vela-nos’ que «há um só Deus, e
um só mediador entre Deus e os homens, um homem: Cristo Jesus, que se entre-
gou a si mesmo como resgate por todos» (1Tm 2, 5-6a). Em Jesus Cristo vemos a
continuidade com o AT e, ao mesmo tempo, uma descontinuidade decorrente da
novidade que Ele revela com a sua vida19. Assim, a esperança cristã baseia-se no
ato escatológico divino de salvação em Cristo20.
A existência de Cristo, desde a Incarnação até à sua morte e ressurreição, apa-
rece nos escritos do NT como acontecimento escatológico para o homem, o seu
mundo e a sua história. No mistério total da Incarnação cumpre-se e revela-se o

13
 Cf. M.G. Masciarelli, La grande speranza, Città del Vaticano 2008, 20.
14
 Cf. O. González-Cardedal, Raiz de la esperanza, Salamanca 19962, 509-510.
15
  Cf. R. Fabris, Attualità della speranza, Brescia 1984, 23.
16
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 151.
17
  1Cor 15,3: «παρέδωκα γὰρ ὑμῖν ἐν πρώτοις, ὃ καὶ παρέλαβον, ὅτι Χριστὸς ἀπέθανεν ὑπὲρ τῶν
ἁμαρτιῶν ἡμῶν κατὰ τὰς γραφὰς». NA28.
18
  Cf. A. Nitrola, Trattato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 370. Inicialmente esta ‘Escritura’
não era o que mais tarde se torna o AT, mas era a ‘sua’ escritura viva, à luz da qual os primeiros cristãos
‘liam’ ou ‘interpretavam’ os novos acontecimentos históricos e experiências. Cf. E. Schillebeeckx,
Gesù, Brescia 19803, 556.
19
  Sobre a problemática da continuidade e descontinuidade entre o AT e o NT, sugerimos especial-
mente: J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 152-158.
20
  Cf. J. Everts, «Hope», Illinois 1993, 415.

74
sentido último da existência humana. O que aconteceu na humanidade de Cristo
é decisivo por nós e, por isso, para o nosso mundo e para a nossa história. Com a
encarnação acontece na história o absolutamente novo e qualitativamente supre-
mo. Na humanidade de Cristo, Deus faz sua a historicidade da nossa existência,
participa na nossa história, que fica assim integrada na própria plenitude de Deus
(orientada para Deus como futuro absoluto). O sentido da história fica indelevel-
mente marcado com o sinal da salvação pela presença de Cristo nela, passou a ser
história ‘salva’. A Incarnação tem em si mesmo o carácter de acontecimento úni-
co e irrepetível (Heb 9,26) que exprime na história o sentido único do último; é o
começo do fim e a plenitude futura. Neste processo, a morte deve ser considerada
como a etapa decisiva da Incarnação. Na sua morte coincidem a sua identificação
com a situação histórica da humanidade e a sua identificação com o ato salvífico
de Deus. Aberta ao mundo na sua dimensão horizontal e a Deus na sua dimen-
são vertical, a cruz de Cristo realiza e expressa o sentido último do mundo e da
história e ergue-se sobre o mundo como sinal supremo de esperança21.
«Cristo Jesus, nossa esperança» (1Tm 1,1b)22 – eis o fundamento da esperança
dos cristãos. Cristo é o ‘eschaton’ (o último e o definitivo) em si mesmo e para si
mesmo, mas também para os outros e para a história. A sua presença na história
representa o começo da plenitude da história23. Deste modo, Cristo é o cumpri-
mento da esperança. Trata-se de uma ‘esperança melhor’ que supera a lei (cf.
Heb 7,18-19)24. Isto mesmo reforça o autor da carta aos Hebreus quando depois
de dizer: «Abraão, tendo esperado com paciência, alcançou a promessa» (Heb
6,15), afirma «Nessa esperança temos como que uma âncora segura e firme da
alma, que penetra até ao interior do véu onde Jesus entrou como nosso precursor,
tornando-se Sumo Sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec»
(Heb 6,19-20). Assim, no confronto com o judaísmo, a novidade cristã está toda
contida em Cristo.
Todo este itinerário percorrido permite-nos compreender que a revelação de
Cristo constitui uma nova situação. Com a vinda de Cristo prometido a situação
descrita no AT muda radicalmente. A esperança continua a estar centrada na re-
lação com Deus e, por isso, a esperança é, como no AT, teologal. Contudo, o dia
da salvação para o mundo é o da vinda do ‘hoje’ de Deus. Ou seja, o que até então

21
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 148-151.
22
  1Tm 1,1b: «Χριστοῦ Ἰησοῦ τῆς ἐλπίδος ἡμῶν». NA28.
23
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 38.
24
  Cf. G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 49.

75
constituía o futuro, em Cristo torna-se o presente da fé. O presente da salvação é
colocado em evidência pelo evangelho de João que se revela como uma ‘escatolo-
gia presencial’. Com esta nova situação, a esperança do NT mudou no conteúdo e
nas motivações, não é mais egocêntrica mas cristo e teocêntrica. O seu aspeto cen-
tral não é a felicidade do singular mas a universal senhoria de Deus, quando Ele
for ‘tudo em todos’ (1Cor 15, 28). O conteúdo tem a ver sobretudo com a salvação
(1Ts 5,8), a justiça (Gal 5,5), a ressurreição (1Cor 15; At 23,6; 24,15), a vida eterna
(Tt 1,2; 3,7), a visão de Deus (1Jo 3,2), a glória de Deus (Rm 5,2). No essencial po-
demos dizer que a esperança não está fundada sobre as boas obras (lei), mas sobre
a graça de Deus que é em Jesus Cristo: Ele é a nossa ‘esperança’ (Tt 1,1; Col 1,27)25.
Contudo, com a vinda de Cristo, cumprimento da promessa do AT, não ter-
mina o dinamismo da esperança como espera, que na fé cristã se orienta para a
parusia, vindo a ocupar o espaço entre o já e ainda não. O já funda a certeza da es-
perança, e o ainda não garante a tensão dinâmica e confirma o caráter escatológico
desta – aquela que o autor da primeira carta de Pedro chama de «esperança viva»
(1Pe 1,3c)26. Mas essa esperança só pode surgir de uma experiência de Deus, um
entrar no seu próprio interior, para que descubram por si mesmas essa presença
profunda de Deus. Por outras palavras, a esperança cristã pode ocorrer se o crente
se integra, pela fé e com todo o seu ser, no espírito do Ressuscitado que o habita27.
Deste modo, «o centro da esperança escatológica está no ‘por nós’ da mor-
te de Jesus Cristo»28. Trata-se de perceber que a ressurreição foi primariamente
um ‘por ele’ e secundariamente um ‘por nós’. Esta perspetiva escatológica tem
um significado soteriológico existencial profundo e universal. Neste sentido, diz
Walter Kasper, a cruz deve ser a auto-revelação escatológica de Deus – um amor
que livremente se comunica. Somente um amor omnipotente se pode dar intei-
ramente ao outro e tornar-se amor impotente e frágil29. Efetivamente, «a morte
de Cristo (…) é a máxima amplitude da Sua missão: ‘amou até ao fim’ (Jo 13,1)»30.
O NT tem no seu ponto de partida cronológico, no seu centro objetivo e no seu
último olhar, a ressurreição de Jesus Cristo, com que se deu o início da nova fase
da esperança para a humanidade31.

25
  Cf. E. Hoffmann, «ἐλπίς», in DCBNT, Bologna 1976, 1779-1780.
26
  Cf. G. Visonà, «Dalla ‘elpís’ dei greci alla ‘speranza’ dei cristiani», RCI 72 (1991) 269.
27
 Cf. G.B. Bustamante, «La esperanza en la vida critiana», ThX 154 (2005) 225.
28
  M. Carvalho, A consumação do homem e do mundo, Lisboa 20042, 54.
29
 Cf. W. Kasper, Il Dio di Gesù Cristo, Brescia 20119, 264-265.
30
  M. Carvalho, A consumação do homem e do mundo, Lisboa 20042, 55.
31
 Cf. O. González-Cardedal, Raiz de la esperanza, Salamanca 19962, 193.

76
2. A esperança surge no NT mas não está ‘explícita’ nos evangelhos
As palavras que exprimem esperança ou espera no grego neotestamentário
são ἐλπίς (aparece 53 vezes) e ἐλπίζω (aparece 31 vezes) com as suas variantes.
Estas palavras, sendo as mais significativas e frequentes, indicam, antes de
mais, o ato do esperar mas compreendem também o objeto – a coisa espera-
da32. Se aprofundamos um pouco mais o sentido, no contexto do NT, verifi-
camos que o substantivo grego ἐλπίς, que se traduz por esperança, aparece
sobretudo com duas perspetivas: de razoável expectativa, como acontece na
carta aos romanos (Rm 4,18); e de vida sobrenatural, como acontece nos atos
dos apóstolos (At 2,26) 33. Já o verbo grego ἐλπίζω, que se traduz por esperar,
aparece com dois sentidos: por um lado, esperar por alguém ou esperar por algo
(Mt 12,21; Rm 15,12); por outro, depositar a esperança em alguém ou em algo
(Jo 5,45; 1Tm 5,5)34.
No entanto, o substantivo ἐλπίς não aparece nos evangelhos e o verbo grego
ἐλπίζω surge apenas cinco vezes: uma vez em Mt, numa citação do AT – «E, no
seu nome, hão-de esperar [ἐλπιοῦσιν] os povos (literalmente - ‘gentios’)!» (12,21);
três vezes em Lc - «E, se emprestais àqueles de quem esperais [ἐλπίζετε] receber,
que agradecimento (literalmente - ‘recompensa’) mereceis? Também os pecado-
res emprestam aos pecadores, a fim de receberem outro tanto» (6,34), «Ao ver
Jesus, Herodes ficou extremamente satisfeito, pois havia bastante tempo que o
queria ver, devido ao que ouvia dizer dele, esperando [ἤλπιζεν] (literalmente
- ‘esperava’) que fizesse algum milagre na sua presença» (23,8), «Nós esperá-
vamos [ἠλπίζομεν] que fosse Ele o que viria redimir (literalmente – ‘libertar’)
Israel, mas, com tudo isto, já lá vai o terceiro dia desde que se deram estas coi-
sas» (24,21); e uma última em Jo «Não penseis que Eu vos vou acusar diante do
Pai; há quem vos acuse: é Moisés, em quem continuais a pôr a vossa esperança
[ἠλπίκατε] (literalmente – ‘em quem vós esperaste’)» (5,45)35. Destas cinco cita-
ções apenas a de Lc 24,21 está inserida num ‘encontro’ de Jesus. Trata-se da pas-
sagem da aparição de Jesus ressuscitado aos dois discípulos de Emaús e refere-se

32
  Cf. E. Hoffmann, «ἐλπίς», in DCBNT, Bologna 1976, 1776. Ver ainda: Cf. F. Mies, «Speranza»,
Cinisello Balsamo 2010, 1330.
33
  Cf. C. Rusconi, «ἐλπίς», in DGNT, São Paulo 2003, 164.
34
 Id., «ἐλπίζω», in DGNT, São Paulo 2003, 164.
35
 Cf. X. Léon-Dufour, «espérance, espérer»,in DNT, Paris 19752, 240. «Even if the noun ‘hope’ is not
found at all in the Gospels and the verb ‘to hope’ is found only five times in the Gospels». T. Prender-
gast, «Hope», New York 1992, 282. Ver ainda: R. Fabris, Attualità della speranza, Brescia 1984, 11-12.

77
às esperanças que estes tinham em Jesus de Nazaré – que o profeta poderoso em
obras e palavras (Lc 24,19b) libertasse Israel (Lc 24,21a).
Já nos Atos o verbo e o substantivo (2 e 8 vezes) referem-se sobretudo à ‘espe-
rança de Israel’, interpretada no sentido de esperança na ressurreição. Ainda, neste
contexto do NT, podemos encontrar outras palavras com a mesma raiz, especial-
mente duas: ἀπελπίζω (o prefixo από tem valor de negação) que significa perder a
esperança ou parar de esperar (que só aparece em Lc 6,35 com o sentido de ‘não
esperar’ nada em troca pelo bem realizado); προελπίζω com o sentido de esperar em
primeiro lugar (só aparece em Ef 1,12 com o sentido de que Paulo e outros discípu-
los, enquanto judeo-cristãos, já tinham começado a esperar em Cristo primeiro que
os cristão provenientes do paganismo). Todavia, será nos escritos paulinos que esta
terminologia terá grande importância (o verbo aparece 19 vezes e o substantivo 36),
sobretudo na carta aos Romanos (respetivamente 4 e 13 vezes)36. A estes escritos po-
deríamos juntar ainda a presença destas palavras na 1Pt (2 e 5 vezes) e na carta aos
Hebreus (1 e 5 vezes), ambas ligadas à tradição paulina ainda que não lhe estejam
atribuídas37. Deste modo, podemos concluir que Paulo é um ‘mestre da esperança’ e
faz da esperança um dos elementos chave da existência cristã38, como nos recorda a
primeira frase da Encíclica de Bento XVI: «‘SPE SALVI facti sumus’ – é na esperança
que fomos salvos: diz São Paulo aos Romanos e a nós também (Rm 8,24)» (SS 1).
O facto de a palavra ἐλπίς se encontrar quase exclusivamente nas cartas pau-
linas e esteja ausente nos evangelhos, não quer dizer que a esperança não seja
uma realidade forte e presente em todo o NT39, inclusive nos evangelhos, como
sublinhámos com a palavra ‘promessa’ no que dizia respeito ao AT. Com efeito,
para compreendermos o conteúdo essencial e originário do NT não podemos
ficar apenas numa análise das palavras usadas, mas precisamos de examinar
o evento em relação ao qual as palavras se referem40. Podemos dizer que nos
evangelhos não está a palavra esperança porque tem a realidade41. De facto, não
só consideramos que essa realidade da esperança está presente nos evangelhos
como consideramos que possa ser uma das categorias mais profundas que revela
o conteúdo essencial dos encontros com Jesus.

36
  Na referência da esperança na carta aos Romanos, aconselhamos: P.R. Scalabrini, «La speranza
non delude», Milano 2000, 109.
37
  Cf. E. Hoffmann, in DCBNT, «ἐλπίς», Bologna 1976, 1778-1779.
38
  Cf. J.T. Mendonça, «‘Sperare contro ogni speranza’», RCI 46 (2015) 176.
39
  Cf. B. Studer, «Speranza», in DPAC, Casale Monferrato 1984, 3268-3269.
40
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 144.
41
 Cf. E. Ronchi, M. Marcolini, Perché avete paura?, Cinisello Balsamo 2013, 47.

78
Por tudo isto, podemos dizer que a esperança bíblica não está apenas na sua
afirmação explícita e direta. Precisamos de afirmar e sublinhar a narração implí-
cita da própria esperança ao longo de toda a bíblia. São disso exemplo a conclu-
são dos livros proféticos (Is 35; 55; 66; Jr 30-33; Ez 40-48; Dn 12; Am 9,11-15; Os
13,6-9…), onde se fala do tempo em que Deus vai restaurar Israel, do tempo do
regresso a Sião, da reconstrução do templo e da renovação da Aliança. Podemos
juntar a estes oráculos proféticos as grandes obras da historiografia de Israel que
revelam fragmentos onde essa esperança implícita é claramente narrada (espe-
cialmente a descrição do famoso Édito de Ciro em 2Cr 36,22-23 e Esd 1). Nesta
descrição da esperança implícita devemos referir ainda o efeito que provoca al-
gumas conclusões dos livros bíblicos, nos respetivos leitores, onde destacamos:
o final do livro de Job (Jb 42,10-17), o final do Apocalipse (Ap 22-23) e o final de
Mateus (Mt 28,20b: «Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos»)42.
Esta afirmação da esperança implícita na narração bíblica não se esgota nos
próprios textos mas reside também nas diversas personagens protagonistas dessa
esperança que acontece na relação. Desde logo temos de destacar Abraão, como
o primeiro paradigma da esperança em Deus, toda a sua história desde o início
ao fim reflete a ‘marca’ e a forma transformadora dessa esperança43. À luz desta
história podemos registar a história de outros personagens do AT, como Moisés
e de muitos profetas como Ezequiel. Depois, como já referimos anteriormente,
encontramos o cumprimento desta esperança no próprio Jesus de Nazaré. Se,
por um lado, dá continuidade ao AT na expressão filial de relação com Deus-Pai,
por outro lado, traz consigo a novidade no NT ao revelar a plenitude dos tempos
iniciada no Mistério da Incarnação e completada no Mistério Pascal. Neste con-
texto das referências implícitas à esperança expressas na bíblia, podemos falar
ainda das metáforas da esperança e, mais concretamente, das parábolas da espe-
rança (como a parábola do semeador em Mc 4, 1-20; as parábolas do Reino como
a da semente lançada à terra em Mc 4, 26-29 e a do grão de mostarda Mc 4,30-32;
e a do ‘pai misericordioso’ – habitualmente identificada como ‘parábola do filho
pródigo’ – em Lc 15,11-32).
Não deixa de ser interessante referir que Jesus nunca é o sujeito do verbo
esperar, mas ele que foi esperado também espera. A sua oração exprime precisa-

 Cf. R. Vignolo, «Speranza della Scrittura, speranza cristologica», RCI 83 (2002) 113-115.
42

  Para aprofundamento da história de Abraão como expressão concreta da esperança aberta ao seu
43

cumprimento pleno em Jesus aconselhamos o artigo de R. Vignolo, «Speranza della Scrittura, spe-
ranza cristologica», RCI 83 (2002) 212-221.

79
mente uma esperança em ato. A sua esperança, alicerçada na relação com o Pai,
é esperança para os outros e para a humanidade44. Deste modo, diante de um
mundo que, muitas vezes, parece ter reduzido a esperança a um esperar efémero
e desarticulado, o evangelho recorda que a esperança é aquilo de que o homem
tem necessidade para viver. De facto, o evangelho não se limita a confirmar a
necessidade da esperança, mas mostra como esta é autorizada por uma palavra
de Deus que se faz companheira do caminho do homem, indicando-lhe a meta e
dando-lhe permanentemente o vigor e a coragem de escutar o desejo do próprio
coração45. Por conseguinte, esta esperança evangélica é uma relação concreta
com uma pessoa muito concreta – Jesus Cristo.

3. A esperança explícita na teologia paulina

3.1. Esperança como critério fundamental nas Cartas de Paulo


No NT são as cartas paulinas que dedicam particular atenção ao tema da
esperança46 - a palavra ἐλπίς aparece 36 vezes (das quais 13 em Rm) e o verbo
ἐλπίζω aparece 19 vezes47. Todos estes escritos paulinos se dirigem à Igreja como
uma comunidade escatológica de esperança: fundamentada no ato divino de sal-
vação em Cristo, vivendo no poder do Espírito Santo e movendo-se em direcção
à plena realização dos propósitos de Deus. De facto, a esperança cristã implica e
exige esta dimensão comunitária escatológica. Nas suas cartas podemos ver que
Paulo entende esta esperança cristã como realização das promessas de Deus a
Israel, como ressalta no capítulo 4 de Romanos ao falar da fé de Abraão48. Nesta
Carta aos Romanos Paulo apresenta a esperança como aquele dinamismo espiri-
tual que qualifica a fé no meio das provações e tribulações (cf. Rm 5,1-4)49.

44
  Cf. F. Mies, «Speranza», Cinisello Balsamo 2010, 1330-1331.
45
  Cf. P.R. Scalabrini, «La speranza non delude», Milano 2000, 107.
46
  Cf. G. Barbaglio, «La speranza cristiana secondo S. Paolo», VP 55 (1972) 33. «Tra gli autori del
Nuovo Testamento, colui che forse più di tutti gli altri si preoccupa di rendere ragione della qualità
della speranza cristiana è Paolo». P.R. Scalabrini, «La speranza non delude», Milano 2000, 108.
«Hope is an essential characteristic os the Christian life and a central feature of Paul’s theology». J.
Everts, «Hope», Illinois 1993, 415. Aconselhamos ainda a leitura de: B. Mayer, «ἐλπἰς», Brescia 2004,
1168-1172; S. Butticaz, Pâques, et après? Paul et l’espérance chrétienne, Bière 2014.
47
  Cf. G. Di Palma, «Qui spem non habent», Asp. 55 (2008) 61.
48
  Cf. J. Everts, «Hope», Illinois 1993, 415. Ver também: T. Schreiner, Romans, Michigan 1998, 237.
49
  Cf. R. Fabris, Attualità della speranza, Brescia 1984, 45-46.

80
Nas cartas paulinas, é possível distinguir quatro esquemas distintos sobre a
esperança50: o primeiro aparece em Rm 15,451, onde a esperança é um efeito da
paciência e consolação das escrituras, onde se revela a experiência concreta de
um povo que sente a proteção de Yhwh; um segundo esquema encontramos em
Rm 5,3-552, onde a esperança, longe de ser uma virtude autónoma, aparece no-
vamente como efeito da paciência e o seu fundamento é o amor de Deus dado ao
crente; um terceiro esquema aparece em Gl 5,5-653, onde a esperança é apresen-
tada como resultante da fé, enquanto âmbito de acolhimento da ação do Espírito
Santo e do que se espera da justiça de Deus; um quarto esquema, ainda que venha
considerado em último lugar, é propriamente o ponto de partida e de fundamen-
to dos outros três esquemas, a esperança nasce do espírito do Ressuscitado que
atua no Evangelho – em 1Ts 1,3-554.
O contexto e a polissemia da palavra esperança em Paulo ajuda-nos a perce-
ber que a esperança não tem apenas um sentido: por um lado, tem uma clara di-
mensão temporal; por outro lado, uma forte dimensão relacional. Deste modo, é
uma tensão, um desejo, um ‘esperar que’; e, ao mesmo tempo, pressupõe uma re-
lação de confiança com o outro, como um pacto dialógico que te faz dizer ‘espero
em ti’. De facto, Paulo descreve a esperança não só como uma ‘espera de Deus’,
colocando-nos numa expectativa de horizonte de sentido meta-histórico, que se
configura como um diálogo com a salvação que virá (espero em); mas também,
na linha da virtude e da constância, seguindo o modo em que os cristãos devem
viver o presente (espero que). Na gramática paulina podemos, por isso, referir
sobretudo duas perspetivas: uma de horizonte mais alargado que se refere ao

50
 Cf. G.B. Bustamante, «La esperanza en la vida critiana», ThX 154 (2005) 213-215. Giuseppe Bar-
baglio fala de três motivos fundamentais e específicos do tema da esperança em Paulo (que depois
desenvolve): a espera, a confiança e a constância. Cf. G. Barbaglio, «La speranza cristiana secondo S.
Paolo», VP 55 (1972) 33.
51
  Rm 15,4: «E a verdade é que tudo o que foi escrito no passado foi escrito para nossa instrução, a fim
de que, pela paciência e pela consolação que nos dão as Escrituras, tenhamos esperança». BS.
52
  Rm 5,3-5: «3Mais ainda, gloriamo-nos também das tribulações, sabendo que a tribulação produz a
paciência, 4a paciência a firmeza, e a firmeza a esperança. 5Ora a esperança não engana, porque o amor
de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado». BS.
53
  Gl 5,5-6: «5Porque nós, é em virtude da fé, pelo Espírito, que aguardamos a justiça que espera-
mos. 6Pois, em Cristo, nem a circuncisão vale alguma coisa, nem a incircuncisão, mas sim a fé que
actua pelo amor». BS.
54
  1Ts 1,3-5: «3A vosso respeito, guardamos na memória a actividade da fé, o esforço da caridade e a
constância da esperança, que vêm de Nosso Senhor Jesus Cristo, diante de Deus e nosso Pai, 4conhe-
cendo bem, irmãos amados de Deus, a vossa eleição, 5pois o nosso Evangelho não se apresentou a vós
apenas como uma simples palavra, mas também com poder e com muito êxito pela acção do Espírito
Santo; vós sabeis como estivemos entre vós para vosso bem». BS. 

81
futuro de Deus e ao cumprimento escatológico da história (1Cor 15,12); e outra
que se refere ao presente e ao quotidiano que faz referência ao mistério pascal de
Cristo (Rm 5,5)55.
Assim, sobretudo a partir da teologia paulina, podemos dizer, como Juan
Alfaro, que o ato de esperança cristã inclui sobretudo quatro aspetos unidos en-
tre si: a espera (aguardar) da salvação futura na definitiva revelação de Cristo
glorificado (ἀπεκδέχομαι, προσδέχομαι: 1Cor 1,7-8; 1Tes 1,10; Rm 8,23; 25; Flp
3,20-21; Tit 2,13); a confiança na promessa de Deus por Cristo (ἐλπίς, ἐλπίζω,
πεποίθησις: Rm 4,18; 5,2-5; 8,24; 1Cor 15,19; 2Cor 3,4.12; Gál 5,5; Ef 3,12; 1Tim
4,10; Col 1,27; Heb 3,6; 6,11; 1Pe 1,3; At 24,5; 1Jo 3,3); a resistência paciente e
perseverante que não cede ao desalento nas tribulações, mas antes se mantém
com firmeza na promessa divina (ὑπομένω, ὑπομονή: Mt 10,22; 24,13; Rm 5,5;
8,24.25; 12,12; 15,5; 1Cor 13,7; 2Cor 1,6; 1Tes 1,3; 2Tes 1,4; Tit 2,2; Heb 10,32.36;
12,1-3; Ap 2,2.19; 13,10; 14,12); a atitude de liberdade e audácia de espírito que
confia e se gloria unicamente no amor e no poder salvífico de Deus por Cristo
(παρρησία, καύχησις: Rm 5,2; 8,15; 15,17; Flp 1,20; 3,3; Ef 3,12; 1Tim 3,13; Heb
3,6; 4,16; 10,19.35-36; 1Jo 2,28; 3,21; 4,17)56.

3.2. A esperança ligada à ressurreição de Cristo e ao envio do Espírito


Santo
Paulo fala de Abraão como aquele que acolheu totalmente a promessa de
Deus, na sua vida, num exercício inaudito de confiança que supera tudo (cf. Rm
4). Mas reconhecerá que Deus realizou em Cristo uma esperança escandalosa-
mente superior à de Abraão. Cristo realiza a promessa de Deus a Abraão e, na
sua morte e ressurreição, abre definitivamente as portas da esperança a todos
os povos, de todos os tempos e de todas as geografias57. Não se trata, por isso,
de uma esperança fundada sobre as capacidades de cada um, ou sobre um vago
otimismo, ou ainda sobre a particular força de vontade, mas sobre o evento de
Jesus Cristo crucificado e ressuscitado58. Efetivamente, Paulo vê todo o plano
salvífico de Deus (μυστήριον) cumprido definitivamente na incarnação, morte
e ressurreição do Filho de Deus (Rm 11,13; Gál 4,4; Ef 1,3-14; 3,4-13; Col 2,3-16;

55
  Cf. J.T. Mendonça, «‘Sperare contro ogni speranza’», RCI 46 (2015) 177.
56
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 40.
57
 J.T. Mendonça, «‘Sperare contro ogni speranza’», RCI 46 (2015) 186. Ver ainda: J. Ware, «Paul’s
Hope Ours», in ConJ 35 (2009) 130.
58
  Cf. P.R. Scalabrini, «La speranza non delude», Milano 2000, 121-122.

82
1,13-20; 2Tim 3,16). Por isso, a nossa esperança é Cristo (Ef 1,12; 3,12.16; Col 1,27;
Flp 3,3; 1Tim 1,1; 2Tim 1,12). Neste mistério de Cristo está garantida não apenas a
salvação do homem, mas também a do mundo e a da história. De facto, também
o mundo, através do homem, está chamado a participar na glória de Cristo (Rm
8,19-23)59.
A comparação entre Rm 5,560 e 8,14-1761, os dois textos onde Paulo apresenta
com mais evidência o fundamento da esperança cristã, permite ver que para o
Apóstolo a esperança em Cristo não pode enganar porque o amor de Deus inte-
riorizou ‘nos nossos corações’ o dom do Espírito, que cria, em cada um de nós,
a atitude de confiança filial no Pai, que na ressurreição de Cristo nos prometeu
a salvação futura62. Assim, para Paulo, a realidade da esperança cristã assenta
sobre dois pilares: a certeza da vitória de Deus sobre o mal, com a morte e a res-
surreição em Cristo; e o dom atual do Espírito Santo. Com efeito, em Rm 8,18-27,
fica claro que a esperança não pode sobreviver sem o dom do Espírito e sem a
vida nova que os cristãos recebem como filhos e herdeiros63.
Assim, segundo a perspetiva paulina, diante da morte os pagãos são sempre
«aqueles que não têm esperança» e os cristãos são os que esperam - «Irmãos,
não queremos deixar-vos na ignorância a respeito dos que faleceram, para não
andardes tristes como os outros, que não têm esperança» (1Ts 4,13)64; no entanto
os cristãos são os que esperam não apenas nesta vida - «E se nós temos esperança
em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens»
(1Cor 15,19). De facto, a resposta cristã à ‘esperança de imortalidade’ da filoso-

59
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 36-37. «Paolo basa il
proprio discorso sulla speranza non certamente su un ottimismo del temperamento, su una sorta di
favorevole predisposizione interiore a ritenere che in nostri desideri saranno appagati, ma sull’espe-
rienza della comunione con Cristo, di un legame con il Risorto che genera la speranza, legame che
essa, a sua volta, contribuisce a rafforzare e a rendere più vitale». P.R. Scalabrini, «La speranza non
delude», Milano 2000, 113.
60
  Rm 5,5: «Ora a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações
pelo Espírito Santo que nos foi dado». BS.
61
 Rm 8,14-17: «14De facto, todos os que se deixam guiar pelo Espírito, esses é que são filhos de
Deus. 15Vós não recebestes um Espírito que vos escravize e volte a encher-vos de medo; mas recebes-
tes um Espírito que faz de vós filhos adoptivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai! 16Esse mesmo
Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus. 17Ora, se somos filhos de Deus,
somos também herdeiros: herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, pressupondo que com Ele
sofremos, para também com Ele sermos glorificados». BS.
62
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 39.
63
  Cf. J.T. Mendonça, «‘Sperare contro ogni speranza’», RCI 46 (2015) 179.
64
  Sobre o sentido da esperança neste texto (1Ts 4,13-18), aconselhamos: G. Di Palma, «Qui spem non
habent», Asp. 55 (2008) 62-76.

83
fia pagã é a ‘esperança de ressurreição dos mortos’, a esperança da vida eterna
fundada sobre a promessa de Deus (cf. Tt 1,2)65. Estabelece-se assim uma ligação
inseparável entre a esperança para o homem e a ressurreição dos mortos: «Se não
há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. Mas se Cristo não
ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã é também a vossa fé» (1Cor 15,13-14).
A esperança cristã é, por isso, começo e antecipação da plenitude de vida que
o crente receberá na ressurreição (Col 2,12; 3,1; Ef 2,6)66. Uma esperança que une
a esperança pessoal da ressurreição corporal com a esperança cósmica da nova
criação67. A esperança que radica na transformação de todos (1Cor 15,51-52)68 e
de toda a realidade em Cristo, pela ação do Espírito Santo. Por isso, Paulo insiste:
«Ele transfigurará o nosso pobre corpo, conformando-o ao seu corpo glorioso,
com aquela energia que o torna capaz de a si mesmo sujeitar todas as coisas» (Fil
3, 21). Uma transformação que reclama o mistério de, também nós, à imagem do
autor do Apocalipse, podermos dizer «vi, então, um novo céu e uma nova terra»
(Ap 21,1a), porque «até a criação se encontra em expectativa ansiosa» (Rm 8,19a)
nessa glória que se há de manifestar em nós (cf. Rm 8,18). Deste modo, os cristãos
são membros de uma comunidade escatológica determinada pela realidade de
um futuro que já começou, mas que ainda aguarda a consumação final69.
Por tudo isto, a esperança viva (1Ped 1,3) é a salvação (1Ts 5,8), a ressurreição
(At 23,6; 24,15; 1Cor 15,19), a vida eterna (Tit 1,2; 3,7), a visão de Deus (1Jo 3,2)
e a sua glória (Rm 5,2; 2Cor 3,12; Col 1,27). Neste sentido, a esperança não é um
bem-estar terreno mas advento do reino de Deus que transformará os nossos
corpos e o mundo inteiro (Rm 8,20s; Fil 1,20); objeto da esperança é só Deus e
o seu Filho Jesus (Mt 12,21; 1Tim 1,1)70. Com efeito, a esperança cristã assenta,
sobretudo, na própria ressurreição de Cristo e no envio do Espírito Santo. É este
dom do Espírito Santo que permite uma base experimental para a esperança no

65
  Cf. G. Visonà, «Introdução», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 48.
66
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 39. A meta da esperança
é a configuração a Jesus ressuscitado. Cf. R. Fabris, Attualità della speranza, Brescia 1984, 56.
67
 Cf. J. Ware, «Paul’s Hope Ours», in ConJ 35 (2009) 130-131. Este artigo sublinha muito a necessida-
de de recuperar, para a teologia luterana, a ideia paulina de esperança a partir duma criação renovada
em Cristo. Unindo sempre a ressurreição de Jesus à nossa ressurreição e, sobretudo, à `transformação’
de toda a realidade criada.
68
  1Cor 15, 51-52: «51Vou revelar-vos um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos trans-
formados; 52num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final - pois a trombeta
soará - os mortos ressuscitarão incorruptíveis e nós seremos transformados». BS.
69
  Cf. J. Everts, «Hope», Illinois 1993, 415.
70
 Cf. X. Léon-Dufour, «espérance, espérer», in DNT, Paris 19752, 240.

84
presente71. Por isso, Paulo conclui que o Deus dos cristãos é, pela ação do Espíri-
to, o Deus da esperança - «Que o Deus da esperança vos encha de toda a alegria
e paz na fé, para que transbordeis de esperança, pela força do Espírito Santo»
(Rm 15,13). De facto, o homem pode compreender o mistério de Cristo mediante
o dom do Espírito Santo (1Cor 2,10-16) e só o Espírito sustenta a esperança da
humanidade em Cristo. Neste sentido, a esperança cristã tem como único funda-
mento a graça de Deus72.

3.3. A esperança em Paulo não é ‘autónoma’


Paulo sintetiza a existência cristã na fé, na esperança e na caridade (1Cor
13,13; 1Tes 1,3-4; Rom 15,13; Gál 5,5-6; Col 1,4-5; 1Tim 6,11; 2Tim 3,10; Tit 2,2).
Fé na ressurreição de Cristo, constituído por Deus como Senhor e Salvador da
humanidade, dominada pelo poder do pecado e da morte; esperança na salvação
futura, como revelação definitiva da glória de Cristo ressuscitado e participação
do homem e do mundo nela; amor de Cristo concretizado no amor e serviço
dos homens. Fé, esperança e caridade, ainda que sejam três dimensões distintas,
estão estreitamente unidas, ainda que sob o primado da caridade73. De facto,
na teologia paulina encontramos a fé, a esperança e o amor (caridade) juntas74,
contudo o amor é ‘maior’, como recorda 1Cor 13,13: «Agora permanecem estas
três coisas: a fé, a esperança e o amor; mas a maior de todas é o amor»75. A
caridade, plenitude da esperança, exige do cristão que ele espere para os outros
como para si mesmo, isto é o mesmo que dizer que ame o próximo como a si
mesmo76. Deste modo, podemos afirmar que a «fé, esperança e caridade são
indivisíveis na nossa experiência cristã»77. Neste sentido, é particularmente in-
teressante, reler Rm 12,10-13: «Sede afectuosos uns para com os outros no amor
fraterno; adiantai-vos uns aos outros na estima mútua. Não sejais preguiçosos

71
  Cf. J. Everts, «Hope», Illinois 1993, 415-416.
72
  Cf. P.R. Scalabrini, «La speranza non delude», Milano 2000, 123.
73
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 35.
74
  As três virtudes teologais (fé, esperança e caridade), como as quatro virtudes cardiais (justiça, for-
taleza, prudência e temperança), inseriram profundas raízes sobretudo no homem da cultura ociden-
tal europeia. As primeiras vêm diretamente da revelação cristã, enquanto as segundas do encontro da
civilização grega-romana com a civilização cristã. Cf. G. Bortone, «La speranza, incrocio tra virtù
naturale e teologale», L’Aquila 2002, 129.
75
  «Νυνὶ δὲ μένει πίστις, ἐλπίς, ἀγάπη, τὰ τρία ταῦτα· μείζων δὲ τούτων ἡ ἀγάπη». NA28.
76
 Cf. J. Alfaro, «Les espoirs intramondains et l’espérance chrétienne», Conc(F) 59 (1970) 61.
77
  M.G. Masciarelli, La grande speranza, Città del Vaticano 2008, 161.

85
na vossa dedicação; deixai-vos inflamar pelo Espírito; entregai-vos ao serviço
do Senhor. Sede alegres na esperança, pacientes na tribulação, perseverantes
na oração. Partilhai com os santos que passam necessidade; aproveitai todas as
ocasiões para serdes hospitaleiros».
Por tudo isto, podemos afirmar que, nos textos paulinos, a esperança cristã
não é propriamente uma dimensão autónoma, senão apenas dependente da fé e
em função do amor. Ou seja, a fé surge como fundamento da esperança e esta
revela-se o pressuposto ativo e essencial do amor78. Para a vida cristã a priorida-
de pertence à fé mas o primado pertence à esperança. Sem o conhecimento de
Cristo, que se dá pela fé, a esperança tornar-se-ia uma utopia suspensa no ar. Mas
sem a esperança a fé torna-se morna e depois acabaria morta. Pela fé o homem
encontra o sentido da verdadeira vida, mas somente a esperança o mantém79. Por
outro lado, nesta mútua reciprocidade, a esperança é o fruto da fé e da caridade,
enquanto esta contribui com o seu exercício para tornar possível as ‘existência’
das outras80 porque «a esperança é a fé que espera e a caridade a fé que ama»81.
Desta unidade, fala Paulo aos habitantes de Tessalónica: «a vosso respeito, guar-
damos na memória a actividade da fé, o esforço da caridade e a constância da es-
perança, que vêm de Nosso Senhor Jesus Cristo, diante de Deus e nosso Pai» (1Ts
1, 3). No entanto, como referiu Charles Péguy: «a pequena esperança caminha
entre as suas irmãs mais velhas [fé e caridade] e não lhe é dada a devida atenção.
(…) O povo cristão só vê as duas grandes irmãs. (…) E quase não repara na que
caminha no meio»82. Pelo menos, nem sempre sentimos o mesmo destaque que é
dado quer à fé, quer à caridade.
A esperança é essencialmente o modo atual da vida cristã - a dimensão atual-
mente possível de uma realidade ainda não plenamente completa83. Ou seja, a es-
perança é mais uma dimensão teológica da vida nova em Cristo do que uma qua-
lidade moral84. No entanto, dizer que a esperança não é tanto uma virtude não
significa que não seja teologal. A esperança é sempre uma relação. Sendo cristã,
a esperança é sempre uma relação fundada e alicerçada em Deus e, por isso, pro-
fundamente teologal. Assim, na visão profunda de Paulo, o núcleo da esperança

78
  Cf. G.B. Bustamante, «La esperanza en la vida critiana», ThX 154 (2005) 214-215.
79
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 14.
80
 Cf. O. González-Cardedal, Raiz de la esperanza, Salamanca 19962, 53.
81
  Cf. G. Frosini, «La risposta alla grande domanda di speranza», RTM 158 (2008) 167.
82
 C. Péguy, Os portais do mistério da segunda virtude, Prior Velho 2014, 20.
83
  Cf. G. Visonà, «Dalla ‘elpís’ dei greci alla ‘speranza’ dei cristiani», RCI 72 (1991) 271.
84
  Cf. P.R. Scalabrini, «La speranza non delude», Milano 2000, 113.

86
cristã reside, precisamente, na entrega total do homem pecador ao Deus do amor
e do perdão em Cristo. Uma entrega total que significa renúncia radical a toda a
autossuficiência, a todo o intento de salvar-se por si mesmo e pelas suas obras, e a
toda a segurança no que pode dispor sobre o mundo. O ato de esperança implica,
assim, o abandono radical de nós mesmo ao amor misericordioso de Deus como
garantia única da nossa salvação e o reconhecimento da nossa impotência para
nos salvarmos85.

3.4. A esperança paulina não é uma experiência individual


No NT, o acontecimento da ressurreição de Cristo foi vivido, pela Igre-
ja nascente, como objeto central da fé (1Cor 15,1-22; Rm 10,9-10; Flp 2,9-11; At
2,24.32.38; 3,15; 4,10; 10,40; 13,34; 17,31; 26,23) e como fundamento da esperan-
ça na salvação futura (1Cor 15,19-28; 2Cor 1,19-20; Rm 8,34; At 1,11; 2,33.39;
3,21; 4,10-12). A Igreja apresenta-se, desde o seu começo, como comunidade dos
que creem em Cristo e esperam a manifestação divina da sua glória no fim dos
tempos (1Cor 8,6; 12,3; 16,22). Os homens pertencem à comunidade eclesial en-
quanto estão unidos entre si pela mesma confissão de fé em Cristo (At 2,41;4,2-4;
5,13-14; 6,7; 10,36.43.47-48; 11,20-21.26; 13,12.48-49; 14,27; 17,3-4), pela mesma
esperança em Cristo (1Tes 1,3.10; 4,16-18; 1Cor 1,7-8; Flp 3,20-21; Tit 2,13; Gál
3,29; Ef 1,12; 4,4; 1Tim 1,1; Heb 9,28; 10,23; 1Pe 1,11; 3,8-13) e pelo amor mútuo
(At 2,44; 4,32; Jo 13,34-35; 15,12; 1Jo 3,23-24)86. Por conseguinte, a esperança nas-
ce com a Igreja que nasce, cresce com a comunidade que cresce e é a virtude para
o tempo da peregrinação e da profecia – o nosso tempo87. Mas não é a Igreja que
espera são antes os cristãos que constituem a Igreja que esperam.
Este é o contexto para a passagem mais importante de Paulo, sobre a dimen-
são comunitária da esperança, em Ef 4,4-6: «Há um só Corpo e um só Espírito,
assim como a vossa vocação vos chamou a uma só esperança; um só Senhor, uma
só fé, um só baptismo; um só Deus e Pai de todos, que reina sobre todos, age por
todos e permanece em todos»88. Estes versículos são antecedidos com o pedido de
Paulo para que na comunidade haja um esforço por manter a unidade, mediante
o vínculo da paz, sendo suporte uns dos outros no amor. Depois dessa exortação

85
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 40-41.
86
  Ibidem, 115.
87
 Cf. E. Ronchi, Al mercato della speranza, Milano 20132, 51.
88
  Ef 4, 4-6: «4 Ἓν σῶμα καὶ ἓν πνεῦμα, καθὼς καὶ ἐκλήθητε ἐν μιᾷ ἐλπίδι τῆς κλήσεως ὑμῶν·5εἷς κύριος,
μία πίστις, ἓν βάπτισμα, 6εἷς θεὸς καὶ πατὴρ πάντων, ὁ ἐπὶ πάντων καὶ διὰ πάντων καὶ ἐν πᾶσιν». NA28.

87
à unidade são indicados, nos versículos acima referimos, os elementos que consti-
tuem essa unidade e os fundamentos que a sustêm. Começa-se por falar da unida-
de da Igreja como um ‘só Corpo e um só Espírito’, cuja cabeça é Cristo (Ef 1,22-23;
4,11-16; 5,23-30; Col 1,18.24); neste ‘único corpo’ são incorporados os homens e
as mulheres mediante o batismo e a fé em Cristo (Ef 4,25; 5,30; 1Cor 12,12-13;
Gál 3,26-27; Rm 12,4-5). Cada um destes cristãos é chamado, na unidade, a viver
uma ‘só esperança’ [ἐλπίδι], um ‘só Senhor’ [κύριος], uma ‘só fé’ [πίστις] e um ‘só
batismo’ [βάπτισμα]. Por um lado, a unidade da Igreja, mantida pela presença do
mesmo Espírito em todos os seus membros, cumpre-se concretamente na união
dos cristãos numa ‘só esperança’ que constitui a vocação comum e solidária entre
todos eles (Ef 1,18; Rm 8,17-18.29; Tit 3,7). Esta esperança, que une os cristãos en-
tre si e constitui a unidade da Igreja, é obra do Espírito Santo (Rm 5,5; 15,13; 8,23;
Gál 5,5), cuja presença na Igreja e no coração dos crentes é garantia e cumprimen-
to antecipado da salvação futura (Ef 1,18; Rm 8,11.23; 2Cor 1,22; 5,4-5). Por outro
lado, a unidade da Igreja baseia-se na unidade de um ‘só Senhor’, Cristo (Ef 4,5;
1Cor 8,6), e realiza-se na unidade da confissão comum da mesma fé em Cristo –
uma ‘só fé’ (Ef 4,5; 4,13-14; 1Cor 12,3; Rm 10,9-10; Flp 2,11) e na unidade do mes-
mo batismo, como incorporação de todos em Cristo (1Cor 10,12; 12,13; Gál 3,28)89.
A esperança dos cristãos pertence à unidade da Igreja e tem o mesmo fun-
damento. Por isso, não é meramente pessoal, mas essencialmente comunitária;
une os cristãos entre si na sua relação comum com Cristo. É uma esperança de
todos e de cada um para todos, porque nela todos e cada um entra em comunhão
de vida com Cristo pelo mesmo Espírito. Um evento que, como recordou Jürgen
Moltmann, não constitui um mero renovamento do Povo de Deus mas dá vida a
um ‘novo povo de Deus’, formado não apenas de judeus, mas agora também de
gentios90. Esta afirmação encontra contexto nos escritos paulinos que apresentam
o amor imenso de Deus em Cristo como fundamento de uma esperança sem li-
mites de todos para todos (Rm 5,8-11; 8,31-39; Ef 1,3-14; 2,4-7) e do amor de uns
para com os outros (Ef 4,32; 5,1-2.25; Col 3,12-14; Flp 2,1-9; 2Cor 8,7-14). Deste
modo, a solidariedade de Cristo com todos os homens, judeus e gentios, exige a
solidariedade dos homens entre si na mesma esperança e no amor mútuo, como
dois aspetos da mesma resposta ao amor de Deus. Se o vínculo da caridade tem
o primado na união dos homens entre si, deve-se concluir que a solidariedade de

 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 116-117.
89

  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 149.


90

88
todos na mesma esperança radica no amor mútuo91. Na verdade, a esperança na
sua dimensão comunitária exprime aquilo que é na sua essência, um mistério de
comunhão92. De facto, muitas vezes, concebemos a esperança de um modo dema-
siado individual, mas na realidade a esperança tem por objeto a salvação de todos
os homens e, apenas enquanto faço parte desse ‘todos’, tem a ver também com
cada um de nós93. A esperança cristã é, por tudo isto, fortemente comunitária e
é na comunidade que se configura a esperança para com cada um dos batizados.

3.5. Em Paulo a esperança é uma vivência prática


A esperança não é abstrata nem teórica, mas uma vivência que exige o com-
promisso concreto. De facto, o quietismo não tem nada a ver com a esperança
cristã. Esta, pelo contrário, significa empenho efetivo no presente em vista ao fu-
turo que vem94. Um futuro que o empenho e o compromisso aproxima, não tanto
no sentido cosmológico, mas no sentido de ser mais próximo à vida concreta de
cada um. Podemos encontrar muitas expressões que revelam a ‘tradução’ desta
esperança, nas cartas de Paulo, como quando diz que ‘o amor que tudo crê, tudo
espera’ (1Cor 13,7)95, sublinhando assim a relação entre as palavras ἐλπίς e ἀγάπη
- o ‘amor tudo espera’96. De facto, «amor e esperança reclamam-se mutuamente,
evocam-se necessariamente, sem poderem dispensar-se»97. Essa dimensão práti-
ca da esperança, e essa relação, é confirmada, de forma clara, quando Paulo diz
que: «ouvimos falar da vossa fé em Cristo Jesus e do amor que tendes para com
todos os santos, por causa da esperança que vos está reservada nos Céus» (Col
1,4-5a). Um amor que decorre da esperança. Por isso, ele pede aos cristãos de
Éfeso que sejam ‘suporte uns dos outros no amor’98.
91
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 118-119.
92
  M. Masciarelli, La grande speranza, Città del Vaticano 2008, 34.
93
 Cf. J. Daniélou, «La speranza», in Saggio sul mistero della storia, Brescia 2012, 380.
94
  Cf. G. Barbaglio, «La speranza cristiana secondo S. Paolo», VP 55 (1972) 48.
95
  Cf. J.T. Mendonça, «‘Sperare contro ogni speranza’», RCI 46 (2015) 180.
96
 Michele Masciarelli sublinha, neste horizonte, a relação que há entre as duas primeiras encíclicas de
Bento XVI – ‘Deus caritas est’ e Spe Salvi’. No fundo esta relação entre o amor e a esperança pode ser
vista em três dimensões: Deus só faz esperar enquanto coloca no homem uma esperança insuperável,
no sentido de uma esperança que o procede e o supera; o amor é prévio à esperança porque a salvação
decorre da graça e da caridade de Deus; a caridade torna universal a esperança. Cf. M.G. Masciarel-
li, La grande speranza, Città del Vaticano 2008, 3-4.
97
  Ibidem, 11.
98
  Ef 4,1-2: «Eu, o prisioneiro no Senhor, exorto-vos, pois, a que procedais de um modo digno do
chamamento que recebestes; com toda a humildade e mansidão, com paciência: suportando-vos uns
aos outros no amor». BS.

89
A esperança, na verdade, desempenha uma função libertadora: se a salvação
do homem e da história não pertence unicamente ao futuro, mas começa já no
presente, a dinâmica do próprio futuro é já antecipada e experimentada como
alegria, como força, como coragem e como paixão intensa pelos valores mais
profundos99. Com efeito, a esperança difunde uma nova luz sobre a morfologia
do mundo porque é um facto extrínseco, uma rutura nas nossas visões parcela-
res, um afastamento crítico das nossas próprias perspetivas100. O cristianismo é
inteiramente, desde o início até ao fim, escatologia, isto é, esperança, prospeti-
va, olhar para a frente e, por isso, abertura e transformação do presente101. Uma
transformação que exige não só uma atitude crítica, mas também um compro-
misso concreto.
Efetivamente, para o cristão não é indiferente que neste mundo reine a jus-
tiça ou a injustiça, a violência ou a paz, a humanização ou a desumanização. O
cristão não é um extraterrestre mas um realista não resignado porque sabe que
a última palavra não é o sofrimento, a violência, nem a injustiça. O seu empe-
nho na história não é indiferente, nem em vão. Deste modo, podemos dizer que
a esperança última leva a sério e tem no coração as esperanças humanas e ter-
renas102. A esperança não gera a ação, mas gera a disponibilidade. A esperança
é a força do possível, que faz passar do ‘tu deves’ para o ‘tu podes’103. Por isso,
a esperança última está para além da história mas não fora da história e, longe
de nos afastar das esperanças penúltimas, leva-nos antes a cultivá-las e a assu-
mi-las com maior empenho e responsabilidade (cf. SS 15 e 35)104. Deste modo,
o cristão deve assumir o empenho histórico, colaborando na obra da salvação
do Homem e do mundo, sabendo que esta obra não pode ser levada ao seu fim
pleno no horizonte intramundano105.

99
  Cf. P.R. Scalabrini, «La speranza non delude», Milano 2000, 124.
100
  Cf. J.T. Mendonça, «‘Sperare contro ogni speranza’», RCI 46 (2015) 182-184.
101
  Cf. E. Scognamiglio, «Oltre le nostre utopie», ED 61 (2008) 97.
102
  Cf. L. Lorenzetti, «La speranza ultima e le speranze penultime», RTM 158 (2008) 193-194. Sobre
esta tensão ver ainda: J.D. Larrú, «El realismo de la esperanza: La simbiosis entre las esperanzas y la
gran esperanza», AnVal 35 (2009) 141-159.
103
  Cf. M. Cozzoli, «Da una morale senza speranza a una morale di speranza», RTM 136 (2002) 506.
104
  Cf. L. Lorenzetti, «La speranza ultima e le speranze penultime», RTM 158 (2008) 193.
105
  Cf. H.U. von Balthasar, La verità è sinfonica, Milano 19913, 133.

90
A esperança olha sempre em frente em direção à meta, quando, através da
parusia de Cristo, Deus for ‘tudo em todos’ (1Cor 15,28)106. A espera do fim dos
tempos, ainda que de forma variável, permanece inteiramente atual na medi-
da em que a parusia, que está próxima, qualificar e relativizar o que acontece
no presente e o que pode ser necessário para o futuro107. Noutro sentido, nas
cartas pastorais, o interesse coloca-se no que aconteceu, pretendendo ensinar
aos crentes da terceira geração cristã a viverem a espera com sábio equilíbrio e
corajoso testemunho. Assim a esperança não se coloca mais na esfera da ‘espera
eminente’ mas no ‘entusiasmar o cristão a viver o quotidiano’, o que implica
luta e empenho (cf. 1Tm 4,10)108. Trata-se de uma certeza existencial implicada
vitalmente na mesma decisão radical de tomar toda a nossa existência (no seu
presente e no seu futuro) nas nossas mãos para a colocar sem reservas nas mãos
de Deus109. Uma decisão de empenho vital que não se pode entender de modo
privatístico, mas sempre como responsabilidade comunitária e ação edificadora
da própria história110.
A certeza da esperança não é, segundo Paulo, uma certeza intelectual de
sincera resposta pessoal à graça de Deus em Cristo, nem do acontecimento
futuro da salvação pessoal, mas da confiança firme no amor imenso de Deus,
revelado em Cristo111. Deste modo, a atitude da esperança cristã é difícil porque
exige a experiência de renunciar a toda a segurança de salvação em si mesmo
e no mundo, e de abandonar-se à garantia única da palavra que Deus pronun-
ciou em Cristo. Esperar em Deus é ter a coragem de cortar as amarras que nos
agarram às seguranças tangíveis de tudo aquilo que podemos dispor e calcular,
para lançar a âncora da nossa existência na profundidade insondável do amor
de Deus que se revela na cruz de Cristo (Heb 6,18-20). A esperança cristã é, por
isso mesmo, uma decisão existencial, que compromete a liberdade do homem
na renúncia radical a si mesmo para lançar-se nas mãos de Deus112, sem renun-
ciar ao seu compromisso com o mundo. Como insiste Paulo: não nos devemos

106
  Cf. P.R. Scalabrini, «La speranza non delude», Milano 2000, 128.
107
  Cf. G. Virgilio, «La speranza e la durata del tempo», RTM 136 (2002) 518.
108
  Ibidem, 524.
109
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 104.
110
  Cf. G. Barbaglio, «La speranza cristiana secondo S. Paolo», VP 55 (1972) 49.
111
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 64.
112
  Ibidem, 43. «The hope of believers will be vindicated because they have experienced God’s love at
conversion». T. Schreiner, Romans, Michigan 1998, 250.

91
acomodar a este mundo, precisamos de nos deixar transformar113, para depois
transformarmos o mundo em que vivemos com o nosso compromisso e teste-
munho cristão. Por tudo isto, os cristãos que vivem na esperança são ‘colabo-
radores’ de Cristo, não só porque também amam e lutam pelo Reino glorioso,
como também o aguardam pacientemente114.

113
  Rm 12,2: «Não vos acomodeis a este mundo. Pelo contrário, deixai-vos transformar, adquirindo
uma nova mentalidade, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que lhe é
agradável, o que é perfeito». BS.
114
  Cf. J. Everts, «Hope», Illinois 1993, 416.

92
Capítulo IV

O ‘acolhimento’ da esperança nos Padres da Igreja


Depois de falarmos dos trê modelos da esperança - o modelo pagão, o mo-
delo judaico e o modelo cristão1, falamos agor de como a esperança foi ‘acolhida’
e transmitida nos Padres da Igreja. De facto, o tema da esperança nos Padres
da Igreja não é simples nem linear. Simplificar seria trair a profundidade desta
realidade2.

1. A esperança nos primeiros três séculos da Patrística


Ao falarmos da esperança nos primeiros séculos da Igreja, comecemos por
reforçar a ideia de que no cristianismo antigo notamos a importância quer do
mundo grego pagão quer do mundo judaico bíblico. Do primeiro os cristãos
recebem sobretudo o termo com que designam esperança (ἐλπίς), ainda que lhe
atribuam um significado diferente; do segundo recebem os traços teológicos
fundamentais e a estrutura histórico-salvífica3. Deste modo, teríamos não só a
ideia de perseverança ou de paciência, já presente na própria noção de esperan-
ça na cultura clássica, mas, sobretudo, uma perspetiva cristã que se empenha
na existência temporal com os olhos na eternidade, da qual há, por isso, uma
experiência antecipada nesta vida através da graça divina. Esta espera é radi-
calmente orientada para Deus que é garantia e meta da esperança humana.
Uma orientação especificamente escatológica4.

1
  Esta afirmação dos três modelos da esperança encontra-se em: H.U. von Balthasar, La verità è
sinfonica, Milano 19913, 127.
2
  Em 1991 foi publicado, pela primeira vez, um interessante manual de escatologia na Patrística, pelo
jesuíta Brian Daley, intitulado The Hope of the Early Church. Neste livro podemos encontrar uma
reflexão sintética que vai desde o primeiro ao sexto século. Esta obra foi corrigida e ampiada em 2003.
3
  Cf. G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 9.
4
  Cf. F. Russo, «Speranza», in Agostino. Dizionario enciclopedico, Roma 2007, 1319.

93
Podemos, assim, chegar à conclusão de que o pensamento cristão sobre a
esperança, fundado sobre a bíblia veterotestamentária e sobre o judaísmo con-
temporâneo, se distingue por duas características: um sentido positivo; e uma
convicção sólida da sua realização. Por um lado, falamos de um sentido posi-
tivo da realidade da esperança contra a ideia ambígua presente na antiguidade
greco-romana, enquanto para os cristãos, a esperança é sempre a ‘espera’ de
uma realidade futura boa. Por outro lado, a esperança cristã não se identifica
com uma conjetura mais ou menos racional do futuro, mas é uma convicção
sólida e uma certeza firme na sua realização. Uma certeza que advém da fé no
poder do criador do mundo e na fidelidade de Deus. Neste sentido, os Padres
da Igreja encontram o fundamento da esperança no amor misericordioso que
Deus demonstrou no cumprimento das suas promessas e no exemplum resur-
rectionis Christi. Por tudo isto, o cristianismo apresenta-se como a religião da
esperança, não uma esperança baseada apenas na natureza humana mas sobre-
tudo e, de modo especial, na ressurreição de Cristo5.
Esta ‘síntese’, este encontro entre o mundo grego e o mundo bíblico, tem
dois momentos importantes: a tradução grega da Bíblia, conhecida por LXX
– por onde os Padres liam o AT (com particular referência os Salmos); e os mo-
mentos dos judeus em diáspora (ao qual pertence Paulo), que se disseminaram
no mundo helenístico – onde a língua era o grego e não mais o hebraico. Por
estas razões, podemos afirmar que os Salmos e os escritos de Paulo são o gran-
de reservatório, quase único, de que se alimentam os Padres da Igreja quando
escrevem sobre a esperança6.
Comecemos por referir que o tema da esperança está, obviamente, no cora-
ção e no centro da tradição apostólica: Deus é visto como o Deus da esperança
(Rm 15,13). Os cristãos têm a alegria da esperança (Rm 12,12) porque, para
eles, Cristo é a esperança da glória (Col 1,17); nesta, eles opõem-se aos pagãos,
que não possuem nenhuma esperança (1Tes 4,13). Esta insistência sobre a espe-
rança é característica do apóstolo Paulo7. No entanto, se é verdade que o tema

5
  Cf. B. Studer, «Speranza», in NDPAC, Genova-Milano 2008, 5084-5086.
6
  Cf. G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 9-10. Para aprofundar o
sentido da esperança na patrística aconselhamos: «ἐλπίς», in A patristic Greek Lexicon, Oxford 1961,
452-453. Este dicionário organiza o tema da esperança em 7 subtemas, dando exemplos presentes
nos Padres da Igreja, a saber: definição e descrição da esperança e, especificamente, da esperança
cristã; Deus como a meta e a causa da esperança; Cristo como a esperança dos cristãos; os principais
objetos da esperança; o papel da esperança na vida cristã; a relação com as outras virtudes; e as falsas
esperanças.
7
  Cf. B. Studer, «Speranza», in DPAC, Casale Monferrato 1984, 3268.

94
da esperança está no centro da tradição apostólica, não é menos verdade que
se difundiu a ideia de que a esperança, antes de Agostinho, não foi um tema
central da patrística. Esta ideia tem muito a ver com a análise quase exclusiva
da palavra ἐλπίς e spes8. No entanto, precisamos de referir que a teologia da
esperança não se ‘esgota’ no uso específico da palavra. Os escritores da Igre-
ja antiga certamente retomaram a tradição apostólica da esperança e reintre-
pretaram-na, segundo as exigências pastorais, apologéticas e espirituais9. Esta
reinterpretação foi condicionada pela preferência dada a certos textos bíblicos,
sobretudo aos Salmos e às Cartas de Paulo. Contudo, não podemos ficar reféns
de uma mera análise ao ‘quadro linguístico’ devendo considerar igualmente o
‘quadro bíblico’10.
Quando refletimos sobre a esperança nos Padres temos que identificar, desde
logo, uma primeira grande dificuldade: a referência à esperança, enquanto ob-
jeto específico dos seus escritos, tem um ‘material’ relativamente escasso (com
exceção a Agostinho) e será um tema quase inexistente nos três primeiros sécu-
los. Todavia, será uma grande injustiça à real imagem da Igreja pré-constantina,
que apesar de ter falado pouco de esperança (por ex., Ireneu de Leão não fala11)
muito a viveu. Basta recordar, neste mesmo sentido, que nos evangelhos nunca
aparece o termo ‘esperança’ mas que isso não significa que a esperança não
esteja presente nem esse pode ser o critério para evidenciar a esperança cristã,
porque todo o evangelho é uma mensagem de esperança. Claro que há várias
referências mas não há propriamente a configuração de uma secção ontológica.
Uma segunda dificuldade é que este tema concreto da esperança nos Padres tem

8
  Importa recordar que ἐλπίς e spes não têm uma relação etimológica. Os latinos não tiveram necessi-
dade de ir buscar à língua grega uma palavra para dizer ‘esperança’ porque tinham uma raiz própria:
‘spe’ (sperāre - spēs, spĕi). ‘Spes’ tem sobretudo o sentido, por um lado de expectativa e de prospetiva;
por outro, de confiança e segurança em alguém. Spes, com maiúscula, refere a deusa clássica Esperan-
ça. Já o spero tem a ver, por um lado, com aguardar qualquer coisa de bom; por outro, esperar ou temer
qualquer coisa de mau. Cf. «spes» e «spero», in Il latino. Vocabolario della lingua latina, Milano 20103,
1438. Alguns autores assinalam ainda que o latim utiliza dois verbos associados à ideia de ‘esperança’:
sperare para designar o que no futuro confiamos alcançar por nós mesmos e expectare para designar o
que confiamos alcançar com a ajuda do próximo. Cf. O. González-Cardedal, Raiz de la esperanza,
Salamanca 19962, 18.
9
  Cf. B. Studer, «Speranza», in NDPAC, Genova-Milano 2008, 5072-5074.
10
 Id., «Speranza», in DPAC, Casale Monferrato 1984, 3270.
11
 Na verdade há uma referência, mas apenas numa enumeração: «Τὸν δέ Ἄνθρωπον καί αὐτὸν
προβαλεῖν μετὰ τῆς Ἐκκλησίας Αἰῶνας δώδεκα, οἷς ταῦτα τὰ ὀνὸματα χαρίζονται ∙ Παράκλητος
καὶ Πίστις, Πατρικὸς καὶ Ἐλπὶς, Μητρικός καὶ Ἀγάπη, Ἀείνους καὶ Σύνεσις, Ἐκκλησιαστικὸς καὶ
Μακαριότης, Θελητὸς καὶ Σοφία». Irineu de Leão, Contre les hérésies I,1,2. SCh 264, 33.

95
sido pouco estudado, sendo a sua bibliografia, segundo Giuseppe Visonà, pouco
consistente. Por fim, divulgou-se o ‘lugar-comum’ segundo a qual a reflexão
cristã sobre a esperança começa apenas a partir da segunda metade do séc. IV
com os tratados Sobre a fé, a esperança e a caridade de Zenão de Verona [300-
371] e de Agostinho [354-430]12.
No entanto, não podemos deixar de referir a importância do confronto dos
Padres com os Judeus, com as Heresias e com as perseguições, para o desen-
volvimento e afirmação da importância da esperança. Na polémica contra os
Judeus encontramos, por ex., Barnabé a estigmatizar a vã esperança de Israel13
e a reafirmar a ‘esperança na vida que é do início ao fim da fé’14 e exalta a ‘nova
aliança’ de Jesus que não só dá cumprimento como supera a aliança de Moisés,
gravando-a no nosso coração15. Pouco depois, Justino, dirigindo-se aos pagãos e
aos hebreus, desenvolve a sua teologia da história caracterizada pela tensão entre
as duas parusias16 e pela insistência na esperança em Cristo crucificado17. Já no
confronto com as heresias, por ex. contra os que metiam em causa a unidade da
fé, Inácio de Antioquia não cessa de recordar a ‘nossa esperança comum em Je-
sus Cristo’18; diante dos valentinianos e de Marcião, que negavam a salus carnis,
Tertuliano sublinha a verdadeira paixão de Cristo - ‘única esperança do mundo
inteiro’19 e defende a regula spei com o exemplum dominicae resurrectionis20. No
tempo das perseguições há um convite à confiança em Deus, sobretudo através
da esperança perseverante, como demonstram numerosos escritos de Tertulia-
no, de Origines e de Cipriano. Tertuliano sublinha sobretudo a paciência como a
perseverança no sofrimento; Cipriano considera a esperança como espera, afir-
mando que toda a vida cristã não é algo mais do que esperança21, uma esperança

12
  Cf. G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 11-12.
13
  «Ἐγνώκατε, ὅτι ματαία ἡ ἐλπὶς αὐτῶν». Barnabé, Épître de Barnabé 16,2. SCh 172, 188.
14
  «Ζωῆς ἐλπίς, ἀρχὴ καὶ τέλος πίστεως ἡμῶν». Ibidem, 1,6. SCh 172, 77.
15
  «Καὶ συνῆκεν Μωϋςῆς και ἔριψεν τὰς δύο πλάκας ἐκ τῶν χειρῶν αὐτοῦ . καὶ συντρίβη αὐτῶν ἡ
διαθήκη, ἵνα ἡ τοῦ ἠγαπημένου Ἰησοῦ ἐνκατασφραγισθῇ εἰς τὴν καρδίαν ἡμῶν ἐν ἐλπίδι τῆς πίστεως
αὐτοῦ». Ibidem, 4,8. SCh 172, 98.
16
 Cf. Justino, Apologie I,52,1-12 SCh 507, 262.
17
 Id., Diálogo com Trifone 96,1. CorpAp II, 346.
18
  «Ἔρρωσθε ἐν θεῷ πατρὶ καὶ ἐν Ἰησοῦ Χριστῶ, τῇ κοινῇ ἐλπίδι ἡμῶν». Inácio de Antioquia, Aux
Éphésiens XXI,1. SCh 10bis, 92. Ver ainda: Id., , Aux Magnésiens XI,1. SCh 10bis, 106; Id., Aux Tral-
liens II,2. SCh 10bis, 112; Id., Aux Philadelphiens V,2; XI,2. SCh 10bis, 114; 152.
19
  «Unicae spei totius orbis». Tertuliano, De carne Christi V, 3. CCSL 2, 881.
20
 Id., De resurrectione mortuorum XLVIII, 2. CCSL 2, 987.
21
 Cf. Cipriano, De zelo et livore 16. CCSL, III A, 84-85.

96
que conduz a Cristo22. Mas voltamos a sublinhar que as muitas referências à
esperança não chegam a configurar uma reflexão sistemática e ontológica da
própria esperança cristã.
Outro aspeto importante para o desenvolvimento da reflexão sobre a espe-
rança neste período da patrística é o diálogo com a filosofia. Neste sentido, Ori-
gines, respondendo à acusação segundo a qual os cristãos seduziam os homens
com esperanças vãs, afirma que há ‘pontos em comum’ entre os cristãos e os
filósofos pagãos, como as afirmações sobre a ‘imortalidade da alma’, com ex-
plicita referência a Platão e a Pitágoras. Depois desta afirmação do que há em
comum, sublinha a superioridade do cristianismo, referindo a diferença entre as
doutrinas humanas e a doutrina divina23. Clemente de Alexandria faz referência
a Platão (principalmente à sua obra Fédon) e aos pitagóricos dizendo que também
eles falam da esperança depois da morte (ainda que se possa distinguir entre ‘boa
esperança’ e ‘má esperança’)24. Mas depois de ter citado Fédon de Platão pergun-
ta: «Não te parece que esta manifestação da esperança do justo depois da morte
decorre do prestar fé nas Escrituras hebraicas?»25.
Neste itinerário, que se propõe ilustrar a passagem da ἐλπίς grega à ‘esperan-
ça cristã’, através da fé bíblico-judaica, o hebreu Filão de Alexandria, contem-
porâneo de Jesus26, tem um papel muito importante, que influenciará posterior-
mente o cristianismo, sobretudo no campo da exegese. De formação filosófica
grega (principalmente platónica e estoica), ele tenta conjugar os dados bíblicos
com a sabedoria clássica para elaborar assim uma ‘filosofia mosaica’. No que diz
respeito ao nosso tema, ele constrói as bases para uma verdadeira e própria me-
tafísica da esperança, passando de uma fenomenologia da esperança a uma es-

22
 Id., De bono patientiae 13. SCh 291, 212-216. Ver ainda: B. Studer, «Speranza», in NDPAC, Geno-
va-Milano 2008, 5075-5076.
23
 Cf. Origenes, Contre Celse 3,80-81. SCh 136, 178-185. O tema da esperança em Origines encontra-
-se mais desenvolvido em: B. Studer, «Speranza», in NDPAC, Genova-Milano 2008, 5079-5081; e em
G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 46-47.
24
  «Τὴν δὲ ἐλπίδα τὴν μετὰ θάνατον οὐ μόνον οἱ τὴν βάρβαρον σοφίαν μετιόντες ἴσασι τοῖς μὲν
ἀγαθοῖς καλήν, τοῖς δὲ φαύλοις ἔμπαλιν, ἀλλὰ καὶ οἱ Πυθαγόρειοι τέλος γὰρ κἀκεῖνοι τὴν ἐλπίδα
ὑπηγόρευον τοῖς φιλοσοφοῦσιν, ὅπου γε καὶ ὁ Σωκράτης ἐν Φαίδωνι “μετὰ ἀγαθῆς ἐλπίδος” φησί
τὰς καλὰς ψυχὰς ἐνθένδε ἀπιέναι, καὶ πάλιν τοὺς πονηροὺς κακίζων ἀντιτίθησι ζῶσι γὰρ “μετὰ κακῆς
ἐλπίδος” λέγων». Clemente de Alexandria, Stromate IV,144,2. SCh 463, 296-297.
25
 «Ἆρ’ οὐ δοκεί σοι [πἰστεως] ἐκ τῶν Ἑβραϊκῶν γραφῶν τὴν μετὰ θάνατον ἐλπίδα τοῦ δικαίου
σαφηνίζειν». Ibidem, I,93,1. SCh 30, 118.
26
  O nascimento de Filão de Alexandria situa-se entre 20 e 13 a.C., sendo que temos notícias suas até
ao fim de 41 d.C. Jesus de Nazaré terá nascido por volta do ano 6 a.C. e provavelmente morreu no ano
30 d.C. Cf. Nota 16 de G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 37.

97
perança ontológica, associada ao constitutivo humano. Para Filão de Alexandria
a esperança é a ‘mola’ do agir humano porque é a ‘fonte de vida para todos os
domínios’27, segundo um conceito divulgado na antiguidade clássica28 e retoma-
do também pelos Padres da Igreja: sem esperança de um ganho o negociante não
faria nenhum negócio, sem a esperança da vitória o atleta não se empenharia nas
corridas29; e sem esperança nada acontece na vida dos homens porque os homens
esperam muitas coisas relativas a esta terra30. Da tradição clássica vem também
a ideia da esperança como ‘consolação natural’ na adversidade31, que motiva a
encontrar remédio para os males. De resto Filão adota a clássica definição da
ἐλπίς como «espera de bens» [προσδοκία ἀγαθῶν], onde a ‘esperança’ surge mui-
tas vezes no sentido clássico como consideração racional e expectativa neutra32,
contrapondo-a com o medo como «espera de males»33, juntando a bela definição
da esperança como alegria primeira da alegria34. A essência do homem define-se
na relação com Deus e esta relação é a esperança35. O homem é, por isso, aquele
que espera36 e a verdadeira identidade do homem está, para Filão de Alexandria,
quando este começa a esperar em Deus37. Deste modo, à luz da revelação bíblica
a essência do homem não é tanto um ‘ter esperança’ mas um ‘ser esperança’.

2. A esperança em Deus e na vida eterna que emerge nos séculos IV e V


Toda a teologia da esperança, nesta época patrística, foi favorecida sobretudo
pela exegese bíblica, com particular destaque para os Comentários aos Salmos de
Basílio (330-379), de Crisóstomo (347-407) e de Agostinho (354-430)38. Porém,
nesta reflexão mais sistemática e ontológica sobre a esperança temos que reco-

27
  «Ταύτης δ’ ὁ πρῶτος σπόρος ἐστὶν ἐλπίς, ἡ πηγὴ τῶν βίων». Filão de Alexandria, De praemiis
et poenis 10, Paris 1961, 46.
28
  Entre outro, encontramos este sentido em Platão: ‘Toda a nossa vida está plena de esperança’ aqui
no sentido de ‘expectativa’ [Filebo 39e], in Platone, tutti gli scritti, Milano 20013, 453.
29
 Cf. Filão de Alexandria, De praemiis et poenis 11, Paris 1961, 46 e 48.
30
  «Videmus enim modo homines multa terrena sperare, et secundum saeculum ipsa vita nullius ho-
minis est sine spe». [Sermo 313/F,2]. Agostinho, Discorsi, V, Roma 1986, 712.
31
 Cf. Filão de Alexandria, De praemiis et poenis 72, Paris 1961, 78.
32
 Id., De posteritate Caini 26, Paris 1972, 58 e 60.
33
 «Οὐδὲν γάρ οὕτως ἐχθρὸν ἄλλο ἄλλῳ φασίν, ὡς ἐλπίδα φόβῳ καὶ φόβον ἐλπίδι». Id., De Abrahamo
14, Paris 1966, 28.
34
  «Ἐλπὶς δὲ χαρὰ πρὸ χαρᾶς ἐστιν». Id., De praemiis et poenis 161, Paris 1961, 120 e 121.
35
  Ibidem, 142, Paris 1961, 112.
36
 Id., De Abrahamo 10, Paris 1966, 26.
37
 Id., De praemiis et poenis 14, Paris 1961, 48.
38
  Cf. B. Studer, «Speranza», in NDPAC, Genova-Milano 2008, 5075-5076-5077.

98
nhecer a importância determinante de Agostinho. Ele desenvolve o conceito da
esperança, inspirando-se manifestamente na tradição filosófica, especialmente
platónica39. Um desenvolvimento do conceito esperança que encontramos, so-
bretudo, nos seus Sermões e nas Enarrationes in Psalmos. Podemos ainda con-
siderar, enquanto sistemática, De civitate Dei. Porém, é fundamentalmente nas
Enarrationes que Agostinho fala da esperança. São mais de 350 passos em que
uma ou mais vezes se recorre ao verbo esperar e ao substantivo esperança, sem
contar as vezes em que o conceito é expresso com termos equivalentes. Todavia,
todos estes passos não nos oferecem propriamente uma doutrina sistemática da
esperança, já que Agostinho fala dela quando surge a ocasião no decorrer do seu
comentário ao salmo40.
A promessa de um Deus fiel permanece na base da doutrina dos Padres so-
bre a esperança41. Nas Enarrationes Agostinho fala muitas vezes da promessa
de Deus como o fundamento da esperança42. Nesse sentido, dirá: «é porque me
prometeste que me fizeste esperar»43. Já Ambrósio diz, depois de citar o salmo -
«lembra-te da palavra que deste ao teu servo, pois nela me fizeste colocar a minha
esperança» (Sl 119,49) - a ‘Palavra de Deus faz surgir em nós o desejo de eternida-
de’44. Deste modo, insiste Agostinho: «A nossa esperança é tão certa que é como
se se tivesse já tornado realidade. Não temos de facto nenhum temor, porque
a prometer esteve a Verdade. A Verdade não pode nem enganar-se, nem enga-
nar»45. Com efeito, podemos concluir, como Crisóstomo, que a nossa esperança
é certa e inamovível46. Esta certeza é o fundamento da alegria cristã: «a alegria
que encontramos na tranquila certeza da nossa esperança»47. Trata-se de uma

39
  Ibidem, 5083.
40
 Cf. U. Occhialini, La speranza della chiesa pellegrina, Assisi 1965, 16 e 20-21.
41
  Cf. G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 44.
42
 Cf. U. Occhialini, La speranza della chiesa pellegrina, Assisi 1965, 38. Na pág 42, o autor dirá que,
segundo Agostinho, esta promessa de Deus tem uma história e que essa história tem um centro para
o qual ‘as promessas’ convergem e do qual de novo se irradiam – o centro é Cristo.
43
  «Quoniam promisisti, me sperare fecisti». Agostinho, Enarrationes in Psalmos 118,XV,1. CCSL
40, 1711. [PL 37, 1541].
44
  «Verbum dei deiectos nos atque depressos ad caelestem gratiam provocauit, ut desideremus aeter-
nitatem». Ambrósio, Expositio psalmi 118,VII,2. CSEL 62.
45
  «Spes autem nostra tam certa est, quasi iam res perfecta sit: neque enim timemus promittente
Veritate. Veritas enim nec falli potest, nec fallere». Agostinho, Enarrationes in Psalmos 123,2. CCSL
40, 1823-1824. [PL 37, 1640].
46
 Cf. Crisóstomo, Homilia ad Romanos IX,3. PG 60,470.
47
  «Ipsum autem gaudium in tranquillitate spei nostrae, sabbatum nostrum est». Agostinho, Enar-
rationes in Psalmos 91,2. CCSL 39, 1280. [PL 37, 1172].

99
esperança que nos ajuda a caminhar - como nos diz Agostinho: «A esperança é
necessária ao peregrino, ela consola no caminhar»48.
Neste contexto, uma dimensão sublinhada pelos Padres é a distinção fun-
damental entre ‘esperanças’ e Esperança, entre esperança em Deus e todas as
outras esperanças – a primeira é certa e inamovível, enquanto as segundas são
transitórias e caducas. Assim, por um lado temos a contraposição entre as ‘fal-
sas esperanças’ (colocadas no poder, nas honras, na riqueza, etc.) e a ‘verdadeira
esperança’ (colocada em Deus); por outro lado, temos o confronto entre a insufi-
ciência das esperanças humanas ‘naturais’ (saúde, serenidade familiar, nascimen-
to dos filhos, etc.) e a esperança em Deus como única capaz de saciar o homem49.
Neste sentido, podemos ler em Agostinho: «Tudo coisas agradáveis, tudo coisas
belas, tudo coisas boas. Procura aquele que as fez. Ele é a tua esperança»50; ou «a
tua esperança seja o Senhor teu Deus. Não esperes outra coisa do Senhor Deus,
mas seja ele mesmo a tua esperança»51. Agostinho reforça sempre a ideia de que a
esperança deve ser em Deus e não em nós, concluindo: «A nossa esperança seja o
nosso Deus. Aquele que fez todas as coisas é melhor que as coisas; aquele que fez
as coisas belas é o mais belo de todos; aquele que fez a força é o mais forte; aquele
que fez o grande é maior que tudo. Qualquer coisa que ames, Ele deverá ser o teu
amor. Aprende a amar na criatura o criador, na obra o artífice»52.
Agostinho parte do princípio de que «os homens estão cheios de esperanças
terrenas (…). Até ao momento de morrer não há nenhum que não nutra uma
qualquer esperança»53. Todavia, recorda a radical distinção entre a esperança
pagã que nasce do homem e se apoia no homem, e a esperança cristã que vem de
Deus e se apoia em Deus. Como nos recorda a Escritura: «Tu és a minha espe-

48
  «Etenim ipsa spes peregrinationi necessária est, ipsa est quae consolatur in via». Id., Sermones
158,8. PL 38, 866.
49
  Cf. G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 44-45.
50
  «Delectant ista, pulchra sunt ista, bona sunt ista. Quaere, qui fecit. Ipse est Spes tua. Ipse est modo
Spes tua, ipse erit postea res tua». Agostinho, Sermones 22,3. PL 46, 917. Ou ainda: «quaere qui fecit,
ipse est spes tua» [Sermo 313/F,3]. Id., Discorsi, V, Roma 1986, 714.
51
  «Sit Dominus Deus tuus spes tua: non aliud aliquid a Domino Deo tuo speres, sed ipse Dominus
tuus sit spes tua». Id., Enarrationes in Psalmos 39,7. CCSL 38, 430. [PL 36, 437-438].
52
  «Sit spes nostra Deus noster. Qui fecit omnia, melhor est omnibus; qui pulchra fecit, pulchrior est
omnibus; qui fortia, fortior est; qui magna, major est: quidquid amaveris, ille tibi erit. Disce amare in
creatura creatorem, et in factura factorem». Ibidem, 39,8. CCSL 38, 431. [PL 36, 439].
53
  «Videmus enim modo homines multa terrena sperare (…). Ipsa vita nullis hominis est sine Spe, et,
donec moriatur, quisque non est sine Spe». Id., Sermones 22,2. PL 46, 916. Ver ainda Sermo 313/F,2 em
Agostinho, Discorsi, V, Roma 1986, 712.

100
rança, ó Senhor Deus» (Sl 71,5b)54. Agostinho irá reforçar esta ideia dizendo que
Deus é a nossa esperança, a nossa fortaleza, a nossa firmeza, o nosso perdão, o
nosso louvor, a nossa ajuda, o nosso fim em que podemos descansar55. Não de-
vemos esperar em nós mas apenas em Deus – diz Agostinho56. Para os que não
esperam no Senhor a sua esperança é mortal, caduca, frágil, volátil, transitória,
e vã57. Por isso, dirá que «o medo decorre da fragilidade humana, a esperança da
promessa divina»58 e reitera que ‘quando esperamos no Senhor a esperança não
nos engana’59. Este Deus, em quem esperamos, é um Deus que assume a natureza
humana em Cristo, por isso, conclui que esta é a esperança cristã60.
De facto, segundo Agostinho, precisamos de nos incorporar em Cristo
porque ele é a nossa esperança. Nele é que podemos ultrapassar o pecado que,
enquanto género humano, todos assumimos em Adão, através de Eva61. Deste
modo, para renascer a esperança é necessário que cada ser humano seja incorpo-
rado em Cristo62. Mas só podemos ser incorporados em Cristo porque o Verbo
assumiu a nossa carne e a nossa natureza63. Portanto, tal como Adão foi a origem
do pecado assim Cristo é a origem da nossa esperança. Coloca-se desta forma,

54
  «Agostino non si ferma però ad analizzare la speranza nella sua dimensione umana. La vera, gran-
de speranza è quella donata da Dio al Corpo di Cristo pellegrinante su questa terra: la Chiesa». Cf. U.
Occhialini, La speranza della chiesa pellegrina, Assisi 1965, 25.
55
  «Spes tua Deus sit, fortitudo tua Deus sit, firmitas tua Deus sit, exoratio tua ipse sit, laus tua ipse sit,
finis in quo requiescas ipse sit, adiutorium cum laboras ipse sit». Agostinho, Enarrationes in Psalmos
32,II,23. CCSL 38, 269. [PL 36, 297].
56
  «Noli sperare de te, mas de Deo tuo». Ibidem, 41,12. CCSL 38, 469. [PL 36, 472].
57
  «Illi enim sperant non in Dominum: spes illorum mortalis, spes illorum caduca, fragilis, volatica,
transitoria, inanis erit». Ibidem, 36,I,4. CCSL 38, 340. [PL 36, 358].
58
  «Pavor est ex humana infirmitate, spes ex divina promissione». Ibidem, 30,II,3. CCSL 38, 192.
[PL 36, 231].
59
  «Fiat misericordia tua, Domine, super nos sicut speravimus in te: fiat misericordia tua, Domine,
super nos; spes enim non confundit, quia speravimus in te». Ibidem, 32,22. CCSL 38, 247. [PL 36, 277].
60
  «Haec enim spes est, quod naturam humanam in Christo suscipere dignatus est». Ibidem, 3,10.
CCSL 38, 13. [PL 36, 77-78]. A partir dos escritos de Agostinho, conclui Umberto Occhialini que: «Il
Cristo si è fatto nostra speranza, perche ci guida come un capo, ci porta in sè come una via, ci conduce
a sè come alla patria». Cf. U. Occhialini, La speranza della chiesa pellegrina, Assisi 1965, 45.
61
  «Omnes enim fuimus in illo uno, quando omnes fuimus ille unus, qui per feminam lapsus est in
peccatum, quae de illo facta est ante peccatum». Id., De civ. Dei 13,14. CCSL, 48, 395.
62
  «Respice ad Adam, unde genus humanum. Unde enim nisi ab illo propagata miseria est? Unde
enim nisi ab illo hereditaria ista paupertas? Dicat ergo cum spe iam in corpore Christi positus, ille ali-
quando in suo corpore desperatus: Percussum est sicut fenum, et aruit cor meum». Id., Enarrationes
in Psalmos 101,I,5. CCSL, 40, 1429.
63
  «Omnis caro fenum, et Verbum caro est factum. Quanta ergo spes feni, quando Verbum caro fac-
tum est? Illud quod manet in aeternum, non dedignatum est suscipere fenum, ne de se desperaret
fenum». Ibidem, 102,23. CCSL, 40, 1471.

101
com muita clareza, a importância da incarnação do Verbo, em quem se realiza-
ram as promessas de Deus64.
Devido a esta incorporação em Cristo ‘a salvação que temos agora não é uma
realidade mas uma esperança certa’65. Por isso, seja em condições difíceis, seja
em períodos de paz, a pregação, especialmente as catequeses batismais, evoca a
esperança em Deus e na vida eterna66. Diz o Santo de Hipona: «A vida da vida
mortal é a esperança da vida imortal»67. Podemos, neste sentido, dizer que toda
a sua espiritualidade, existencial e experiencial, se apoia nesta verdade. Sem es-
perança não se poderia compreender nem o sacrifício, nem o amor. Vivemos de
desejo, de amor e de esperança – são as etapas que precisamos de ir percorrendo
para chegarmos à pátria, para chegarmos a Deus celeste. A esperança realiza-se,
segundo Agostinho, nessa espera e na união a Ele68. Ele insiste: ‘suspirai pela Je-
rusalém eterna, de onde procede a vossa esperança, lá continuará a vossa vida e lá
seremos com Cristo’69. Por isso, a vida eterna e a felicidade celestial é a pátria do
cristão70. Agostinho sublinhou bastante o desejo desta ‘pátria’ que é a eternidade.
Não deixa de ser interessante recordar o contexto histórico em que viveu Agosti-
nho, sobretudo o impacto que teve a queda da cidade de Roma, que acentua a sua
pregação sobre a esperança nos bens futuros eternos71.

3. Cristo é a nossa esperança – a afirmação central dos primeiros cinco


séculos
«Onde está a vossa esperança, cristãos?»72. Esta radical pergunta exige uma
resposta clara. A novidade cristã centra-se inteiramente em Cristo. Se temos
de falar da continuidade entre a esperança cristã e a teologia veterotestamen-
64
 Cf. U. Occhialini, La speranza della chiesa pellegrina, Assisi 1965, 48-49.
65
 Cf. Agostinho, Enarrationes in Psalmos 50,19. CCSL, 38, 614. Ver ainda: U. Occhialini, La spe-
ranza della chiesa pellegrina, Assisi 1965, 61.
66
 Cf. Zenão de Verona, Tratactus de fide, spes et caritate I,36. CCSL 22, 92-100.
67
  «Vita vitae mortalis, spes est vitae immortalis». Agostinho, Enarrationes in Psalmos 103,IV,17.
CCSL, 40, 1534. [PL 37, 1389].
68
 Ibidem, 76,1. PL 36, 970-971; e também 145,11. PL 37,1891-1892.
69
  «Sed suspirate in aeternam Ierusalem; quo praecedit spes vestra, sequitur vita vestra: ibi erimus cum
Christo». Ibidem, 136, 22. CCSL 40, 1978. [PL 37, 1774]. Este é um refrão na época patrística como teste-
munham muitos textos. Por exemplo, Basílio dirá que - «Mas a tua pátria é a Jerusalém celeste» - «Ἀλλ’
ἔχεις πατρίδα τὴν ἐπουράνιον Ἱεροθσαλήμ». Basilio, Homilia De gratiarum actione 7. PG 31, 236.
70
  Cf. J. Moran, «Introduccion general», in Obras de San Agostin, XIX, Madrid 1964, 55-59.
71
  Cf. F. Russo, «Speranza», in Agostino. Dizionario enciclopedico, Roma 2007, 1319.
72
  «Ubi spes vestra est, christiani?» Hilário de Poitiers, Commentaire sul le psaume 118,15,7. SCh
347, 164.

102
tária da promessa, temos também de sublinhar a radical afirmação de que,
em Cristo, a promessa é totalmente realizada. Cristo é o cumprimento da es-
perança. Os cristãos falam de uma ‘esperança melhor’ [κρείττονος ἐλπίδος]73,
como afirma a Cartas aos Hebreus referindo a superação da Lei. De facto, nos
Padres há uma leitura tipológica que orienta para Cristo todas as esperanças
do AT, sublinhando que em Mt 12,2174 e Rm 15,1675 são aplicadas a Jesus,
respetivamente, as profecias de Is 42,476 e Is 11,1077, ou seja, n’Ele esperam as
nações e os povos78.
Neste sentido, Justino no Diálogo com Trifone (cerca de 160 d.C.) desenvolve
esta ideia de Cristo como nova Lei e nova Aliança: «A nossa esperança não está
confiada a Moisés e à Lei, desse modo teríamos seguido a vossa própria prática
[está a falar para o judeu Trifone] (…). A Lei dada sobre o Horeb foi superada
e é só vossa; pelo contrário, esta vale para todos os homens indistintamente79.
Cristo foi-nos dado como Lei eterna e como Aliança fiel. Esta é a nova Lei e a
nova Aliança e a expectativa de quantos em cada povo esperam a manifestação
da vontade divina. Contudo, importa recordar sempre que para Israel só Deus
era a esperança, por isso, esperar ‘em Cristo’ é uma blasfêmia que incorre em
censura, como recorda Jer 17,5b: «Maldito aquele que confia no homem». É este,
precisamente, o contexto da crítica de que se faz portador Trifone, que introduz
o confronto com a esperança pagã80. A Justino, que lhe narrou a sua conversão
do platonismo ao cristianismo, o judeu rebate: «Talvez fosse melhor continuar a
exercitares-te com a filosofia de Platão ou de qualquer outro filósofo, praticando
a fortaleza, a temperança e a sabedoria [trata-se do conceito de ‘boa ἐλπίς’ de

73
  Cf. Heb 7,18-19: «18Assim, dá-se, por um lado, a abolição do mandamento precedente, devido à sua
fraqueza e inutilidade 19pois a Lei nada levou à perfeição - e, por outro, a introdução de uma esperança
melhor, mediante a qual nos aproximamos de Deus». BS.
74
  Mt 12,21: «E, no seu nome, hão-de esperar os povos!». BS.
75
  Rm 15,16: «ser para os gentios um ministro de Cristo Jesus, que administra o Evangelho de Deus
como um sacerdote, a fim de que a oferenda dos gentios, santificada pelo Espírito Santo, lhe seja agra-
dável». BS.
76
  Is 42,4: «Não desanimará, nem desfalecerá, até estabelecer na terra o direito, as leis que os povos
das ilhas esperam dele». BS.
77
  Is 11,10: «Naquele dia, a raiz de Jessé, estandarte dos povos, será procurada pelas nações e será
gloriosa a sua morada». BS.
78
  Cf. G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 50.
79
 «Ἠλπίκαμεν δέ οὐ διὰ Μωϋσέως οὐδὲ διὰ τοῦ νόμον. ἦ γὰρ ἂν τὸ αὐτὸ ὑμῖν ἐποιοῦμεν . (…) Ὁ γὰρ
ἐν Χωρὴβ παλαιὸς ἤδη νόμος καὶ ὑμῶν μόνων, ὁ δὲ πάντων ἁνπλῶς». Justino, Diálogo com Trifone
11,1-2. CorpAp II, 40.42.
80
  Cf. G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 51.

103
Platão], ao contrário de te deixares por histórias semelhantes. (…) Mas uma vez
abandonado Deus e recolocada a esperança num homem (Cristo), qual salvação
podes agora esperar?»81.
O que nesta crítica se manifesta é que muitos não viam em Jesus mais do que
um homem, ao contrário dos cristãos que quando aplicam a Cristo o título de
‘esperança’ fazem-no no contexto da Trindade, confirmada em 325, no Concílio
de Niceia, quando afirma que o Filho é da mesma substância [‘consubstancial’ -
όμούσιος] do Pai82. Assim, com o decorrer do tempo, a doutrina cristológica da
Igreja vai sendo cada vez mais completa e precisa na afirmação de que a esperan-
ça cristã radica em Cristo. Uma afirmação que se vai tornando sempre mais clara
e profunda. Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, torna-se funda-
mento da esperança e esperança para ‘todos os confins da terra’ (cf. Sl. 65,6)83.
Se ele não fosse verdadeiramente homem e plenamente Deus não poderia ser a
esperança para o homem. Na verdade, ele é a esperança do homem porque expe-
rimentou as dificuldades da humanidade, as tribulações, os sofrimentos, a morte;
mas é sobretudo a esperança do homem porque foi ressuscitado através destas
realidades. Assim, a paixão e ressurreição tornam-se dimensões da esperança84.
Neste dinamismo fica estabelecida uma estreita ligação entre a soteriologia, cris-
tologia e antropologia85.
Neste contexto podemos ler as interessantes e essenciais formulações de
Agostinho na sua ‘defesa’ de Cristo como fundamento da nossa esperança. Co-
meça por perguntar: como é que se tornou a nossa esperança? Depois diz que é a
nossa esperança porque foi tentado, sofreu, foi ressuscitado. Por isto tornou-se a
nossa esperança. Nele cada um de nós pode ver o seu esforço e a sua recompensa,
o esforço na paixão e recompensa na ressurreição. Com os seus esforços, as ten-
tações, os sofrimentos, a morte, Cristo faz-nos ver a vida em que estamos, com
a ressurreição faz-nos ver a vida em que estaremos. Nós sabíamos que o homem

81
  «Ἄμεινον δὲ ἦν φιλοσοφεῖν ἔτι σε τὴν Πλάτωνος ἢ ἄλλου του φιλοσοφίαν, ἀσκοῦντα καρτερίαν καὶ
ἐγκράτειαν καὶ σωφροσύνην, ἢ λόγοις ἐξαπατηθῆναι ψευδέσι καὶ ἀνθρώποις ἀκολουθῆσαι οὐδενός
ἀξίοις. (…) Καταλιπόντι δὲ τὸν Θεὸν καὶ εἰς ἄνθρωπον ἐλπίσαντι ποία ἔτι περιλείπεται σωτηρία».
Justino, Dialogo con Trifone 8,3. CorpAp II, 34.
82
 «Όμούσιος τῷ πατρί». DH 125.
83
  No comentário ao Sl 64, Agostinho insistirá muito neste aspeto. Depois de dizer que o Salvador é
especificamente Jesus Cristo, diz que Ele é esperança de todos os confins da terra e dos mares distan-
tes, não apenas de uma região. «Spes omnium finium terrae et mari longe». Agostinho, Enarrationes
in Psalmos 64,9. CCSL 39, 832. [PL 36, 780].
84
  Cf. G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 53.
85
  Ibidem, 58.

104
nasce e morre, mas não sabíamos que ressuscita e vive eternamente. Ele tomou
aquilo que conhecíamos e fez-nos ver aquilo que não conhecíamos. Por isso, tor-
nou-se a nossa esperança nas tribulações e tentações. Ele próprio tornou-se a
nossa esperança, e agora estamos a caminhar para a esperança86 - ‘a esperança
na vida futura’87. Importa sublinhar que nesta esperança da vida eterna, de que
somos herdeiros, somos todos irmãos88.
«As promessas do mundo enganam sempre, as do Senhor não enganam nun-
ca» - como insiste Agostinho. De facto, ‘a esperança que está ao alcance dos
89

olhos não é esperança’90. Neste sermão 157 sublinha a tensão entre a esperança
nas vaidades temporais [«vanitas temporalium»], pelas quais o homem se deixa
escravizar91, e a necessidade de colocarmos a nossa esperança na ressurreição
de Cristo92, que é a cabeça divina de um corpo do qual todos fazemos parte93.
Aqui recorda-nos: «Ele é agora a tua esperança, um dia será a tua realidade. É a
esperança de quem crê, será a realidade do que vê»94 porque «quando a realidade
chegar não haverá mais a esperança»95.
Esta dimensão de Cristo como fundamento e cumprimento da esperança,
retoma a conotação estática da esperança veterotestamentária como ‘segura con-
fiança’, mas sobretudo abre-nos ao carácter dinâmico da esperança como vinda,
sublinhada na expectativa do retorno glorioso e definitivo de Cristo – parusia96.
Este aguardar da ‘feliz esperança’97 foi descrito profundamente, na Carta aos Ro-
86
  «Unde factos est spes nostra? Ecce sic quomodo audistis quia tentatus est, quia passus est, quia re-
surrexit, factos est spes nostra. Quid enim nobis dicimus quando haec legimus? Non enim perdet nos
Deus propter quos Filium suum misit tentari, crucifigi, mori, resurgere; non enim vere nos despicit
Deus, propter quos Filio próprio non pepercit, sed pro nobis omnibus tradidit eum, Sic ergo factos
est spes nostra. In illo vides et laborem tuum, et mercedem tuam; laborem in passione, mercedem in
resurrection. Sic ergo factus est spes nostra». Agostinho, Enarrationes in Psalmos 60,4. CCSL 39, 767.
[PL 36, 725].
87
  «Ad spem futuri saeculi». Ibidem, 136,6. CCSL 40, 1967-1968. [PL 37, 1763].
88
  Ibidem, 25,2 [CCSL 39, 142-143]: «frater illa spe caelestis hereditatis».
89
  «Mundi enim promissa semper fallunt; Dei autem promissa nunquam fallunt». Id., Sermones 157,1.
PL 38, 859.
90
  «Spes autem, inquit, quae videtur, non est spes». Ibidem, 157,1. PL 38, 859.
91
  «Cum vos eis quae videntur temporalibus subditi». Ibidem, 157,5. PL 38, 861.
92
  «Et firmavit nos exemplo suae resurrectionis». Ibidem, 157,3. PL 38, 860.
93
  «Sed corpus sumus illus capitis, in quo iam perfectum est quod speramus». Ibidem, 157,3. PL 38, 860.
94
  «Ipse est modo Spes tua, ipse erit postea res tua. Spes est credentis, res erit videntis». Ibidem, 22,3.
PL 46, 917.
95
  «Cum enim res venerit, Spes non erit». Ibidem, 22,1. PL 46, 915. Reforça esta mesma ideia noutro
sermão: «Cum enim res venerit, spes non erit» [Sermo 313/F,1]. Id., Discorsi, V, Roma 1986, 710.
96
  Cf. G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 63.
97
  Tt 2,13: «Aguardando a bem-aventurada esperança e a gloriosa manifestação do nosso grande Deus

105
manos, quando Paulo diz que ‘a criação se encontra em expectativa ansiosa’ ‘na
esperança de que também ela será libertada da escravidão da corrupção, para
alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus’; por isso insiste que ‘foi na
esperança que fomos salvos’ – uma esperança que precisamos de ‘aguardar com
paciência’98. De referir que esta ‘paciência’ reclama o sentido original do texto que
é a ‘perseverança’ [ὑπομονῆς]99. Não deixa de ser interessante que o substantivo
ὑπομονή possa ter três sentidos: constância ou perseverança (Lc 8,15); capacida-
de de suportar ou paciência (1Cor 1,6); e espera ou esperança (Ap 1,9)100. Neste
sentido, devemos reforçar o sentido ativo e dinâmico presente na ‘perseverança’
mais do que o sentido passivo e estático que muitas vezes associamos à palavra
‘paciência’. Em Paulo encontramos este dinamismo muito presente – a esperança
como uma espera perseverante (cf. Rom 5,3-4;15,4; 1Cor 13,7).
A fé cristã reclama, deste modo, na escatologia, o cumprimento de toda a
criação e de toda a história. No AT testamento a esperança revela-se na tensão
entre a promessa e o seu cumprimento; já no NT a esperanç revela-se na tensão
entre o ‘já’ e o ‘ainda não’, onde o ‘já’ fundamenta a certeza da esperança e o
‘ainda não’ confirma o dinamismo deste carácter escatológico da esperança101.
Talvez possamos recordar, neste contexto, as palavras de Agostinho: ‘agora, a
nossa vida é esperança, depois será eternidade’102 e sobretudo, «fixai em Deus a
vossa esperança, desejai os bens eternos, atendei às realidades eternas»103. Neste
mesmo sentido, Basílio diz que a esperança cristã significa ‘esperança de ressur-
reição, gozo da beatitude angélica, o reino dos céus e bens anunciados, que supe-
ram a força da mente e do intelecto’104. No entanto, as realidades presentes não

e Salvador Jesus Cristo». BS.


98
  Rom: 8,19-25: «19Pois até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos
filhos de Deus. 20De facto, a criação foi sujeita à destruição - não voluntariamente, mas por disposição
daquele que a sujeitou - na esperança 21de que também ela será libertada da escravidão da corrupção,
para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus. 22Bem sabemos como toda a criação geme e
sofre as dores de parto até ao presente. 23Não só ela. Também nós, que possuímos as primícias do
Espírito, nós próprios gememos no nosso íntimo, aguardando a adopção filial, a libertação do nosso
corpo. 24De facto, foi na esperança que fomos salvos. Ora uma esperança naquilo que se vê não é es-
perança. Quem é que vai esperar aquilo que já está a ver? 25Mas, se é o que não vemos que esperamos,
então é com paciência que o temos de aguardar». BS.
99
  Rom: 8,25: «εἰ δὲ ὃ οὐ βλέπομεν ἐλπίζομεν, δι’ ὑπομονῆς ἀπεκδεχόμεθα». NA28.
100
  Cf. C. Rusconi, «ὑπομονή», in DGNT, São Paulo 2003, 474.
101
  Cf. G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 64.
102
  «Vita nostra modo spes est; vita nostra postea aeternitas erit». Agostinho, Enarrationes in Psal-
mos 103,IV,17. CCSL 40, 1534. [PL 37, 1389].
103
  «Figite spem in Deum, aeterna concupiscite, aeterna exspectate». Id., Sermones 105,11. PL 38, 623.
104
  «Ἀναστάσεως ἐλπίδες, ἀγγελικῶν ἀγαθῶς ἀπολαύσεις, ἡ ἐν οὐρανοῖς βασιλεία, τὰ ἐν ἐπαγγελίαις

106
são desvalorizadas mas relativizadas em função de um bem maior. Esta tensão
entre o tempo presente e o tempo futuro, entre o tempo da esperança (presente) e
o tempo da realidade (futuro), é muito sublinhado por Agostinho, sobretudo no
comentário ao Sl 123, onde afirma: ‘Aquele do crer é o tempo da esperança [spes]
no tempo presente; aquele do ver será o tempo da realidade [res] do tempo futu-
ro’105. Quando possuirmos este tempo a tensão deixará de ser de ser ‘esperança’ e
passa a ser ‘realidade’ porque encontro106.

4. Depois do século V a esperança tende a ser ‘reduzida’ a uma virtude


pessoal
Em Agostinho, segundo Giuseppe Visonà, encontramos todos os temas de-
senvolvidos na idade da patrística e sobretudo encontramos a inteira parábola da
esperança, desde a esperança psicológica à esperança escatológica107. De facto,
trata-se de uma abordagem unitária que jamais perde de vista o cristocentrismo
da esperança – Cristo é o fundamento da esperança pela sua morte e pela sua
ressurreição. Ele, sendo itinerário de esperança para o homem, é a meta da espe-
rança na perspetiva de plenitude escatológica e também via para a esperança no
caminho da Igreja peregrina108. Essa esperança é a força dos peregrinos no seu
longo caminho, sobretudo, nos momentos com mais tribulações. Trata-se por
isso do dom de Deus distribuído por aqueles que, chamados a fazerem parte da
Igreja, renascem nas águas do batismo e se tornam membros de Cristo109.
Contudo, a partir de Agostinho, constatamos a progressiva concentração da
catequese patrística da esperança sobre temas com imediato interesse pastoral
(como por ex.: a esperança como consolação na adversidade da vida, a necessida-

ἀγαθὰ, καὶ διανοίας καὶ λόγου δύναμιν ὑπερβαίνοντα». Basilio, Homilia De gratiarum actione 2. PG
31, 224.
105
  «Cum credimus, spes est in isto saeculo; cum videbimus, res erit in futuro saeculo». Agostinho,
Enarrationes in Psalmos 123,2. CCSL 40, 1826. [PL 37, 1640]. Tomás de Aquino dirá: «Mas no céu não
haverá esperança» - «Sed spes non erit in pátria». [2-2,q.19,a.11, dificuldades §3]. Tomás de Aquino,
Suma Teologica, VII (BAC), Madrid 1959, 593. Isso mesmo diz António Vieira, em 1669: «nem no
Céu, nem no Inferno pode haver esperança». A. Vieira, «Sermão do Santíssimo Sacramento», Lisboa
2014, 221, 2.
106
  «Tunc esse desinat spes, quando tenebitur res» [Sermo 313/F,1]. Agostinho, Discorsi, V, Roma
1986, 710. Ver ainda: U. Occhialini, La speranza della chiesa pellegrina, Assisi 1965, 66-68.
107
  Por ex. o Sermão 157 fala inteiramente sobre a esperança cristã, começando precisamente com a
frase «spes christianorum de aeternis». Agostinho, Sermones 157,1. PL 38, 859.
108
  Cf. G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 67.
109
 Cf. U. Occhialini, La speranza della chiesa pellegrina, Assisi 1965, 129 e 187-188.

107
de de paciência e de perseverança, o não perder a esperança de perdão e de salva-
ção). É verdade que os textos sobre a esperança aumentam; contudo, restringe-se
o ângulo de visão e a profundidade da reflexão ficando-se, muitas vezes, pela re-
petição das expressões bíblicas. Por último, a esperança foi praticamente ‘hipos-
tatizada’ como virtude. Neste contexto, insiste-se muito na afirmação de Paulo
‘somos salvos na esperança’ (Rom 8,24) com a ideia de que só seremos salvos se
exercitarmos a esperança. Está assim aberto o caminho para o entendimento da
esperança como uma remuneração pessoal na vida eterna que se conquista com
o comportamento ético individual, empobrecendo quer a dimensão escatológica,
quer a dimensão cristológica da Igreja. Assistimos, assim, à progressiva passa-
gem de Cristo-esperança à esperança como virtude pessoal110.
Com efeito, há uma certa perda de profundidade na reflexão patrística, sobre-
tudo no que diz respeito ao tema da esperança, deixando-se de falar da spes quae,
enquanto conteúdo da esperança, e na própria spes qua, enquanto dinamismo da
esperança, permanece-se muito no conceito de uma virtude pessoal necessária
para alcançar a vida eterna. Uma reflexão que será confirmada por muitos au-
tores como Bernardo Claraval que apresenta a esperança não só como virtude,
mas sempre associada à fé e à caridade. Diz-nos Bernardo de Claraval que ‘é por
causa da fé e da caridade que existe em nós a esperança do regresso ao Pai’111,
concluindo que ‘a fé ilumina a razão, a esperança elevou a memória e a caridade
purificou a vontade’112.
Neste mesmo sentido, Tomás de Aquino113, diz: «por isso, é evidente que a es-
perança é virtude, já que faz boa a ação do homem e se molda à devida regra»114.
Neste contexto da esperança como virtude teologal, dirá que é preciso para a
salvação que o homem espere em Deus115 porque «a esperança dirige-se princi-
palmente à bem-aventurança eterna e secundariamente às outras coisas que se

110
  Cf. G. Visonà, «Introduzione», in La speranza nei Padri, Milano 1993, 72-73.
111
  «Itaque per haec duo, id est fidem et caritatem, facta est spes redeundi ad Patrem». Bernardo de
Claraval, Sermons divers XLV,4. SCh 518, 304.
112
  «Et fides quidem illuminavit rationem, spes erexit memoriam, caritas vero purgavit voluntatem».
Ibidem, XLV,4. SCh 518, 304.
113
  Na Suma Teológica o tema da esperança é tratado em: 2-2,q.17,a.1 à q.22,a.2. Estando organizado
do seguinte modo: q.17-De Spe; q.18-De subjecto spei; q.19-De dono timoris; q.20-De desperatione;
q.21-De praesumptione; q.22-De praeceptis pertinentibus ad spem et timorem.
114
  «Et ideo patet quod spes est virtus: cum faciat actum hominis bonum et debitam regulam attin-
gentem». [2-2,q.17,a.1, resposta]. Tomás de Aquino, Suma Teologica, VII (BAC), Madrid 1959, 528.
  «Et quia debitum est ad humanam salutem ut speret homo de Deo». [2-2,q.22,a.1, resposta s§3].
115

Ibidem, 636-637.

108
pedem a Deus em ordem à bem-aventurança eterna»116. A esperança passa, so-
bretudo desde Tomás de Aquino, a ser tratada dentro do âmbito da doutrina das
virtudes teologais, quer na dogmática, quer na moral. A esperança direciona-se,
assim, para um bem futuro, que é difícil, mas não impossível de alcançar. É um
impulso da vontade, tornado possível pela vontade, em virtude da qual o homem,
confiado na omnipotência de Deus, espera dele a vida eterna e os meios para a
alcançar. A esperança é a virtude do homem in statu viatoris. Essa segue a fé, é se-
melhante à caridade ainda em estado ‘concupiscente’ e precede a caridade perfei-
ta. O homem pode esperar para si e para os que ama. A ameaça e a confirmação
extrema desta esperança verifica-se na própria morte. Diante esta perspetiva, os
dois pecados contra a esperança são o desespero e presunção. Desespero enquan-
to antecipação do ainda não completo cumprimento de si mesmo; e a presunção
como antecipação do próprio cumprimento. Em ambos, o homem procura fugir
da sua existência como peregrino e não se aceita de Deus117.
Este horizonte teológico é confirmado com Bento XII, na Constituição Be-
nedictus Deus (1336), quando afirma que ‘a fé e a esperança são particulares
virtudes teológicas’118. Virtudes essas que terminariam na visão da essência
divina, na eternidade. Um ‘itinerário’ que encontra no Concílio de Trento, no
Decreto sobre a justificação (1547), um momento marcante onde se insiste na
‘esperança como virtude que nos prepara para a justificação’119 e, por isso, ne-
cessária para alcançar a vida eterna, afirmando, em seguida, que ‘a fé, a espe-
rança e a caridade são dons infusos’120. A esperança é sublinhada, aqui, como
uma virtude pessoal em ordem à salvação e à vida eterna. A esperança apre-
senta-se sobretudo como ato da vontade que se propõe a obter a vida eterna e
os meios para a conseguir alcançar121. Deste modo a esperança afirma-se como
um ‘meio’ e como uma ‘virtude’ perdendo-se progressivamente a reflexão teo-
lógica sobre o conteúdo da esperança centrado em Cristo e, mais ainda, sobre a
sua dimensão comunitária e eclesial.

  «Unde et spes principaliter quidem respicit beatitudinem aeternam; alia vero quae petuntur a Deo
116

respicit secundario, in ordine ad baetitudinem aeternam». [2-2,q.17,a.2, soluções a§2]. Ibidem, 530.
117
  Cf. F. Kerstiens, «Speranza», in SM, VII, Brescia 1977, 744-745.
118
  DH 1001: «Fides et spes propriae theologicae sunt virtutes».
119
  DH 1526: «Peccatores se esse intelligentes, a divinae iustitiae timore, quo utiliter concuntiuntur,
ad considerandam Dei misericordiam se convertendo, in spem eriguntur, fidentes, Deum sibi propter
Christum propitium fore».
120
  Cf. DH 1530.
121
  Cf. G. Manise, «Speranza», Roma 1954, 1293.

109
Talvez a reflexão sobre a esperança só tenha reencontrado verdadeiramente
essa dimensão escatológica pessoal e eclesial, centrada no próprio mistério pas-
cal da morte e ressurreição de Cristo, no Concílio Vaticano II122, na constituição
dogmática LG (1965), sobretudo quando diz: «Cristo, mediador único, estabelece
e continuamente sustenta sobre a terra, como um todo visível, a Sua santa Igreja,
comunidade de fé, esperança e amor, por meio da qual difunde em todos a ver-
dade e a graça» (LG 8) 123. Este texto significa que o Concílio considera o vínculo
comunitário da fé, esperança e caridade como constitutivos da sacramentalida-
de da Igreja. A sacramentalidade da Igreja implica tanto a dimensão vertical da
existência humana (união do homem com Deus por amor) como a sua dimensão
horizontal (união dos homens entre si pelo amor mútuo). A caridade cristã inse-
re-se na mesma índole comunitária do homem que não pode alcançar a plenitude
pessoal sem o dom sincero de si mesmo aos outros. A esperança cristã surge como
vínculo comunitário e eclesial, radicado no amor mútuo, ficando assim excluída
toda a atitude privatizada da esperança. Nesta solidariedade da esperança, funda-
da na fé e vivificada pelo amor, tem lugar o acontecimento da Igreja como sacra-
mento universal de salvação124.

122
  Sobre a reflexão da esperança no Vat II aconselhamos: T. Healy, «A esperança humana: um desa-
fio interdisciplinar», Brot. 137 (1993) 133-135.
123
  Sublinhamos, não só LG 8, mas também o cap. VII da LG (intitulado - A índole escatológica da
igreja peregrina e a sua união com a igreja celeste) onde a Igreja é apresenta como «universal sacra-
mento de salvação» (LG 48).
124
 Cf. J. Alfaro, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972, 119-120.

110
SEGUNDA PARTE

A esperança
que emerge dos múltiplos encontros com Jesus
Capítulo I

Uma ‘topografia’ dos encontros de Jesus

Falar da ‘topografia’ [τοπογραφία] é, desde logo, falar de ‘lugar’ [τόπος]1 –


um lugar que precisamos de ‘descrever’ [γραφή]2. Não um lugar que se resuma
a uma qualquer geografia mas que ‘espaço’ e um ‘modo’ de ser, de estar e de se
relacionar. Por isso, neste início de novo capítulo, importa começar por identi-
ficar e descrever esse ‘lugar’ que é o enquadramento teológico de cada um dos
encontros. Um processo sempre complexo e inacabado que aqui não esgotamos,
mas do qual não podemos prescindir, com o risco de perdemos profundidade no
momento de analisar pormenorizadamente alguns desses encontros. Para colher
essa esperança que emerge dos múltiplos encontros de Jesus precisamos, neces-
sariamente, de nos ‘a-dentrarmos’ mais profundamente na ‘envolvente’ de cada
encontro, precisamos de uma análise ‘topográfica’. Esta análise do ‘lugar’ servirá
de ‘alicerce’ à reflexão e permitir-nos-á uma maior ‘segurança’ na reflexão sobre
os encontros que aqui iremos analisar.

1. Do(s) evangelho(s) aos encontros

1.1. Os evangelhos como o ‘lugar’ dos encontros


Entre todas as formas em que se pode manifestar a receção de uma obra, uma
das mais significativas é o próprio título, sobretudo quando é escolhido não pelo
autor mas pelo leitor. Este é o caso dos evangelhos. Hoje é quase impossível pen-

1
  O substantivo masculino τόπος pode ser traduzido por: ‘lugar’, ‘situação’, ‘localidade’ e ‘argumento’.
Cf. I. Pereira, «Τόπος», in DGPPG, Braga 19907, 577.
2
  O substantivo feminino γραφή pode ser traduzido por: ‘ação de escrever’, ‘texto de uma lei’, ‘escri-
tura’, ‘catálogo’, ‘desenho’ e ‘quadro’. Id., «Γραφή», in DGPPG, Braga 19907, 116.

113
sar estes escritos sem este título e sem esta referência. Contudo, este termo, em si
mesmo, não transmite a ideia de um livro.
Se pensarmos no sentido etimológico da palavra εὐαγγέλιον concluímos que
decorre da junção de εὖ (que quer dizer ‘bem’) com ἀγγελία (que quer dizer ‘no-
tícia’ ou ‘mensagem’). Deste modo, podemos pensar numa notícia boa, num bem
que vem anunciado ou num bem que chega por mensagem3. Neste sentido, a pala-
vra evangelho evoca mais a ideia de um mensageiro a correr para transmitir uma
notícia - como na vitória da maratona4; ou então o caminho do profeta sobre a
montanha para levar a Sião a mensagem da salvação (Is 52,7)5.
De facto, o ‘evangelho’ indica uma mensagem que se transmite, antes de
mais, uma mensagem proclamada oralmente. Neste contexto da antiga Grécia,
indicava uma boa notícia que enche de alegria quem a recebe e que anuncia um
acontecimento marcante e especial - como a vitória sobre os inimigos (contexto
militar) ou a entronização de um novo soberano (contexto político)6. Essa ‘boa
notícia’ também podia vir inserida numa carta. No entanto, nem sempre a notí-
cia correspondia totalmente aos factos, procurando, dessa forma, dar coragem,
por exemplo, aos soldados exaustos. Pelo isso, apesar de habitualmente se fazer
fé da notícia era preciso confirmá-la e, só depois disso, era paga a recompensa
estipulada ao mensageiro7.
Apesar de haver uma certa continuidade do sentido grego da palavra
εὐαγγέλιον, importa sublinhar que no NT essa mesma palavra assumirá uma
especificidade técnica própria. Antes de designar propriamente um ‘livro’ (ou
quatro), o evangelho é uma ‘notícia’. Esta mesma palavra ocorre no início do es-
crito de Marcos: «Princípio do Evangelho [εὐαγγελίου] de Jesus Cristo, Filho de

3
 Cf. P. Tremolada, «Ricerca di senso ed esperienza della salvezza nella comunità apostolica», Mi-
lano 2008, 40.
4
  Segundo a lenda, por volta do ano 490 a.C., Fidípides foi mandado por Milcíades a Atenas para
anunciar a vitória grega sobre os persas. A distância que separava Maratona de Atenas era cerca de 42
quilómetros. Fidípides terá feito todo o caminho a correr e após ter anunciado a vitória com a frase -
‘Alegrai-vos, atenienses, nós vencemos!’, terá caído morto devido ao esforço. Este episódio deu origem
à prova olímpica ‘maratona’, que atualmente tem a distância oficial de 42Km e 195m.
5
  Is 52,7: «Que formosos são sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que apregoa a
boa-nova, e que proclama a salvação! Que diz a Sião: ‘O rei é o teu Deus!’». BS.
6
  Cf. V. Fusco, «Introduzioni general ai sinottici», Torino 20082, 60. De facto, quer no mundo grego,
quer no AT, a palavra εὐάγγελος é usada para: indicar o anúncio da vitória de um exército; a morte ou
captura do inimigo; o nascimento de alguém muito importante. Cf. G. Friedrich, «εὐαγγελίζομαι»,
in GLNT, III, Brescia 1967, 1032-1033 e 1068-1069.
7
  Ibidem, 1033.

114
Deus» (Mc 1,1)8. Neste contexto, fui atribuído a Marcos a ‘autoria’ do género lite-
rário chamado ‘evangelho’. No entanto, com ‘evangelho’ [εὐαγγέλιον]9, substan-
tivo que quer dizer ‘boa notícia’ ou ‘boa nova’10, não se refere uma biografia, no
sentido estreito do termo, enquanto narrativa que se limita a descrever os factos
e os acontecimentos da vida de alguém11; nem um tipo de elogio que insiste nos
milagres e nos prodígios realizados por Jesus. Sendo um texto essencialmente
narrativo, o género literário ‘evangelho’, concentrando-se na pessoa e no anún-
cio, faz de Jesus a chave de leitura da história12.
O evangelho é a própria mensagem de Jesus sobre a vinda do reino de Deus,
difundida através da sua pregação itinerante e pela Igreja primitiva. Sendo uma
‘alegre notícia’, por definição, o evangelho inclui necessariamente a ‘notícia’ e a
‘alegria’, isto é, o testemunho do evento realizado na história de uma vez para
sempre e a ressonância salvífica em todos aqueles que o acolham13. No entan-
to, esta mensagem reclama o próprio mensageiro - o evangelho seria de Jesus e,
ao mesmo tempo, sobre Jesus14. Deste modo, podemos dizer que radicalmente
o ‘mensageiro’ e a ‘mensagem’ coincidem, já que o conteúdo do evangelho é o
próprio Jesus, o Cristo15. Esta ‘coincidência’ permite-nos sublinhar e compreen-
der «que entre todas as Escrituras, mesmo do Novo Testamento, os Evangelhos
têm o primeiro lugar, enquanto são o principal testemunho da vida e doutrina
do Verbo encarnado, nosso salvador» (DV 18). Mas este testemunho da ‘vida e

8
  O teólogo Edward Schillebeeckx refere que esta frase tem, desde logo, uma dificuldade gramatical: o
genitivo é entendido no sentido objetivo ou subjectivo? Ou seja, será um alegre anúncio sobre Jesus de
Nazaré, reconhecido como o Cristo; ou será o evangelho anunciado por Jesus Cristo? Este pormenor
filológico pode ter consequências teológicas na compreensão e na interpretação cristológica que se faz
dos textos. Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 104.
9
  Em Mc o verbo εὐαγγελίζομαι nunca aparece, já o substantivo εὐαγγέλιον ocorre oito vezes. Em
Mt o verbo εὐαγγελίζομαι ocorre apenas uma vez e o substantivo εὐαγγέλιον quatro vezes. Em Lc o
verbo εὐαγγελίζομαι ocorre dez vezes, mas o substantivo εὐαγγέλιον nunca ocorre (só nos At duas
vezes). Para além de Mc ser quem usa mais vezes o substantivo também podemos dizer que - tirando
Mc 1,1 e 1,14 - a palavra surge sempre na boca de Jesus: Mc 1,15; 8,35; 13,10; 14,9; 10,29; 16,15. Cf. G.
Friedrich, «εὐαγγελίζομαι», in GLNT, III, Brescia 1967, 1049 e 1075-1077.
10
  Cf. C. Rusconi, «εὐαγγέλιον», in DGNT, São Paulo 2003, 203.
11
  «Mancano (…), soprattutto in Marco, elementi normali della biografia greca: antenati, nascita e
infanzia, ritratto físico, psicologico, morale». Cf. V. Fusco, «Introduzioni general ai sinottici», Torino
20082, 82.
12
  Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 11. Aconselhamos ain-
da: R. Aguirre Monasterio , «Introduccion a los Evangelios sinópticos», Estella 1992, 17-20.
13
  Cf. V. Fusco, «Introduzioni general ai sinottici», Torino 20082, 61 e 63.
14
 Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 106.
15
 Cf. G. Friedrich, «εὐαγγελίζομαι», in GLNT, III, Brescia 1967, 1086.

115
doutrina’ está intimamente ligada ao anúncio kerigmático pascal, contexto em
que os evangelhos são elaborados.
Todavia, o itinerário do reconhecimento do evangelho como género literário
precisa de ser percorrido. Se queremos aprofundar o tema teremos de confrontar
o género literário ‘evangelho’ com os modelos greco-romanos (como a comédia,
a tragédia, a historiografia, o mito e a biografia) e com os modelos hebraicos (com
o midraš, os textos de tipo histórico, a Haggadā pascal). Um aspeto que parece
certo é que sempre foi pressuposta a sua pertença à narrativa histórica. Embora
entre as narrativas existentes na época o mito gozasse de grande prestígio, nos
quais era fácil encontrar a verdade mais profunda através das ‘alegorias’, os evan-
gelhos nunca foram recebidos como mitos entre outros mitos. Os pagãos eram os
primeiros a protestar quando os cristãos recorriam à referência da alegoria para
fugir a qualquer dificuldade no plano histórico16.
Com efeito, os evangelhos pretendem transmitir tradições do que Jesus disse
e fez durante a sua vida terrena. No entanto, a experiência pascal, ao transformar
profundamente os discípulos e a sua relação com Jesus, também transformou as
tradições sobre Jesus e sobre a maneira de as transmitir. Deste modo, o surgir dos
evangelhos escritos exigiu um certo espaço de tempo, respondeu a motivos con-
cretos e supõe uma maneira própria de entender a tradição anterior. Assim, ao
estudar os evangelhos precisamos sempre de ter presente e distinguir três etapas:
grupo pré-pascal; comunidade pós-pascal e redação dos evangelhos17. Ou seja, na
formação dos evangelhos podemos distinguir três etapas: a vida e os ensinamen-
tos de Jesus; a tradição oral; os evangelhos escritos (cf. CIC 126).
Neste sentido, identificar o ‘lugar’ dos encontros de Jesus significa ter presente
este ‘itinerário’ e estas etapas. Um processo que se materializa na própria redação
dos evangelhos. Todavia, os autores sagrados «escreveram os quatro Evangelhos,
escolhendo algumas coisas entre as muitas transmitidas por palavra ou por escrito,
sintetizando umas, desenvolvendo outras, segundo o estado das igrejas, conservan-
do, finalmente, o carácter de pregação, mas sempre de maneira a comunicar-nos
coisas autênticas e verdadeiras acerca de Jesus» (DV 19). Efetivamente, neste pro-
cesso redacional podemos sublinhar três verbos: escolher, sintetizar e desenvolver.
Daí que possamos encontrar nos diferentes evangelhos opções e especificidades
decorrentes de cada autor e da tradição das suas comunidades.

16
  Cf. V. Fusco, «Introduzioni general ai sinottici», Torino 20082, 78-84.
17
  Cf. R. Aguirre Monasterio , «Introduccion a los Evangelios sinópticos», Estella 1992, 16.

116
No essencial podemos dizer que os evangelhos são textos narrativos que
apresentam o percurso da vida de Jesus e dos seus ensinamentos. Ainda que pos-
samos fazer outras considerações, a teologia judia e cristã tem uma dimensão úl-
tima e irredutível de caráter narrativo. O caraterístico da narração é que transmi-
te acontecimentos e experiências históricas. Este enredo narrativo é semelhante,
sobretudo nos três sinóticos, e está centrado em alguns aspetos comuns: baseia-se
em personagens chave (Jesus, os discípulos, os fariseus e autoridades judaicas,
Pilatos e multidão); tem um ponto de partida (o ministério de Jesus na Galileia);
um desenvolvimento (o eco popular que suscita, incompreensões, hostilidade
crescente por parte das autoridades, agudização do conflito, profundidade do
ensinamento, decisão de ir até Jerusalém, viagem até à cidade); um desenlace
(o conflito desemboca na paixão e morte de Jesus na cruz, que é seguida da sua
ressurreição). Deste modo, não se trata de narrações de pura ficção, nem sequer
crónicas do passado. Os evangelhos são narrações teológicas enquanto revelam
a vida de Jesus, a ação de Deus e o cumprimento do AT. Neste processo há uma
evocação da história passada (é Jesus de Nazaré – o crucificado), uma actualiza-
ção (é o Senhor glorioso) e um recurso à Escritura (é o esperado e prometido – o
Filho enviado por Deus). Estas três dimensões são permanentes no relato evan-
gélico18. Um relato que nos chega pelas ‘mãos’ de Mc, Mt, Lc e Jo19.
Em todo este percurso percebemos que o evangelho não esgota a pessoa de
Jesus porque, desde logo, a realidade total de uma pessoa não é passível de ser
totalmente conhecida, mesmo que ninguém negue a sua existência real. Esta
afirmação recorda-nos apenas que, pela sua própria natureza, todo o conheci-
mento histórico acerca de alguém é limitado – o que acontece, também, com
Jesus. Neste caso, fazer história é sempre interpretar dados e, nesse sentido
estrito, o ‘evangelho’ não fala do Jesus ‘real’ mas de Jesus ‘histórico’. Todavia, o
esforço de identificar este Jesus histórico presente no evangelho é um empenho
particularmente moderno. Também esta busca só pode reconstruir fragmentos
de um mosaico, um ligeiro esboço. Por tudo isso não se pode separar adequa-
damente o ‘Jesus da história’ e o ‘Jesus da fé’. Na verdade, um desemboca no
outro. Isso não significa que não devamos considerar a crítica textual, antes

  Cf. R. Aguirre Monasterio , «Introduccion a los Evangelios sinópticos», Estella 1992, 41-46.
18

  Isto mesmo nos recorda o Concílio Vaticano II: «Com efeito, aquelas coisas que os Apóstolos, por
19

ordem de Cristo, pregaram, foram depois, por inspiração do Espírito Santo, transmitidas por escrito
por eles mesmos e por varões apostólicos como fundamento da fé, ou seja, o Evangelho quadriforme,
segundo Mateus, Marcos, Lucas e João» (DV 18).

117
pelo contrário20. Aliás, o evangelho apresenta-nos Jesus, filho de Deus, a agir
pela ação do Espírito Santo.

1.2. A identificação e classificação de cada um dos encontros


Qualquer classificação é útil mas, mas ao mesmo tempo, comporta uma certa
limitação. Quando falamos dos encontros de Jesus nos evangelhos também cor-
remos esse risco: por um lado, podemos indicar os diferentes encontros eviden-
ciando a quantidade e diversidade; por outro lado, uma distinção dessas corre
o risco não só de não identificar todos os encontros, como de não assumir a
complexidade de cada encontro. Todas as generalizações correm o risco de per-
der a grandeza do pormenor e qualquer divisão corre o risco de perder o sentido
e a profundidade da dimensão unitária. Assim, esta proposta de identificação e
classificação deve ser apenas isso mesmo, uma proposta de leitura, uma sugestão
para ‘adentrar-se’ numa temática complexa. Um ‘entrar dentro’ sem ter a pre-
tensão de esgotar o tema ou de ‘cristalizar’ uma abordagem, que no entanto é
possível e defensável.
Nesta nossa proposta identificámos 46 encontros. Este número poderia ser
maior se incluíssemos todos os diálogos de Jesus, nomeadamente com os dis-
cípulos, os fariseus, os doutores da Lei, os saduceus, os sumos sacerdotes e as
autoridades romanas. Neste número procurámos identificar, essencialmente, os
‘encontros’ que mudaram vidas, encontros que se revelaram significativos e de-
terminantes para entender a missão e a pessoa de Jesus Cristo. Assim, privilegiá-
mos os ‘encontros’ de chamamento, de conversão, de cura, de perdão dos peca-
dos, de reanimação dos mortos e de aparição do ressuscitado. Nesta abordagem
iremos distinguir os ‘encontros’ que acontecem nos evangelhos sinóticos dos ‘en-
contros’ que aparecem no quarto evangelho, dada a sua especificidade teológica.
É uma divisão que nos parece natural e de grande consenso.
Podemos, desde já, antecipar alguns dados ‘globais’, destes 46 encontros que
aqui apresentamos. (1) Começamos por advertir que destes, apenas 4 são relata-
dos nos quatro evangelhos, ainda que com diferentes pormenores: Jesus chama
os primeiros discípulos; Jesus alimenta cinco mil pessoas; Jesus celebra a ‘última
ceia’ com os Doze; Jesus ressuscitado aparece aos Onze. (2) Outro dado interes-
sante é que destes 46, mais de 30 são com pessoas individuais, ou seja, encontros

20
  Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, I, New York 1991, 24-31. Nesta página o autor chama a atenção para
a confusão entre ‘Jesus real’ e ‘Jesus histórico’; e fala da ambiguidade do termo ‘Jesus terreno’.

118
pessoais de Jesus com alguém. Claro que muitas vezes, os discípulos ou a multi-
dão estão presentes, mas os evangelistas reforçam o sentido do encontro pessoal.
(3) Desses encontros pessoais cerca de 20 são com homens e cerca de 10 com
mulheres. (4) Podemos ainda dizer que grande parte destes encontros são curas
- cerca de 15, algumas das quais associadas a exorcismos e ao perdão dos peca-
dos; temos ainda vários encontros de Jesus ressuscitado - cerca de 6; encontros
de conversão - cerca de 4; por fim, 3 encontros de ‘reanimação’ e 2 encontros de
chamamento.
Feita esta ‘abertura’ e assumindo as grandezas e os limites desta nossa esco-
lha, apresentamos agora, de modo mais concreto, cada um deste 46 encontros,
distinguindo não só os que se encontram nos sinóticos dos que se encontram em
Jo, mas também os que são específicos de cada um dos sinóticos ou os que ocor-
rem apenas em dois deles.

1.2.1. Encontros nos sinóticos:


Comuns aos três sinóticos: chamamento dos primeiros discípulos – Pedro,
André, Tiago e João (Mc 1,16-20; Mt 4,18-22; Lc 5,1-11); cura da sogra de Pedro
(Mc 1,29-31; Mt 8,14-15; Lc 4,38-39); cura de um leproso (Mc 1,40-44; Mt 8,1-1;
Lc 5,12-14); cura de um paralítico e perdão dos pecados (Mc 2,1-12; Mt 9,1-8;
Lc 5,17-26); chamamento de Levi ou Mateus (Mc 2,13-17; Mt 9,9-13; Lc 5,27-32);
cura da mão paralisada de um homem (Mc 3,1-6; Mt 12,9-14; Lc 6,6-11); milagre
da tempestade acalmada (Mc 4,35-41;Mt 8,23-27; Lc 8,22-25); cura de um (dois
em Mt) possesso, ‘enviando’ essa possessão para uma vara de porcos (Mc 5,1-
20; Mt 8,28-34; Lc 8,26-39); reanimação da Filha de Jairo (Mc 5,21-24.35-43; Mt
9,18-19.23-26; Lc 8,40-42.49-56); cura da mulher com hemorragia (Mc 5,25-34;
Mt 9,20-22; Lc 8,43-48); diálogo com os concidadãos na sinagoga de Nazaré (Mc
6,1-6; Mt 13,54-58; Lc 4,16-30); Jesus alimenta 5 mil pessoas (Mc 6,34-44; Mt
14,13-21; Lc 9,10-17); cura do jovem epiléptico possesso (Mc 9,14-29; Mt 17,14-21;
Lc 9,37-43); impõe as mãos às crianças (Mc 10,13-16; Mt 19,13-15; Lc 18,15-17);
diálogo com o homem rico (Mc 10,17-27; Mt 19,16-26; Lc 18,18-27); cura de um
(dois em Mt) cego de Jericó (Mc 10,46-52; Mt 20,29-34; Lc 18,35-43); Jesus celebra
a ‘última ceia’ com os Doze (Mc 14,22-25; Mt 26,26-29; Lc 22,14-20); Jesus ressus-
citado aparece aos Onze (Mc 16,14-18; Mt 28,16-20; Lc 24,36-43).
Ocorre em dois sinóticos: cura de um possesso em Cafarnaum (Mc 1, 21-
28; Lc 4,31-37); cura de uma filha possessa da mulher cananeira ou siro-fenícia

119
(Mc 7,24-30; Mt 15,21-28); Jesus alimenta 4 mil pessoas (Mc 8,1-10; Mt 15,32-
39); cura de um (dois em Mt) cego (Mc 8,22-26; Mt 9,27-31); diálogo com a
mulher que lhe unge os pés em Betânia (Mc 14,3-9; Mt 26,6-13); cura do servo
do centurião (Lc 7,1-10; Mt 8,5-13); cura de um mudo possesso (Mt 9,32-34; Lc
11,14-15).
Ocorre apenas em um dos sinóticos: Mc: cura de um surdo-mudo (Mc 7,31-
37); Mt: Jesus ressuscitado aparece a Maria Madalena e a outra Maria (Mt 28,9-
10).; Lc: reanimação do filho único da viúva de Naim (Lc 7,11-16); diálogo com
a pecadora arrependida (Lc 7,37-50); diálogo com o doutor da lei (Lc 10,25-28);
diálogo em casa de Marta e Maria, provavelmente as irmãs de Lázaro (Lc 10,38-
42); cura de mulher curvada na sinagoga (Lc 13,10-17); a cura do hidrópico ao
sábado (Lc 14,1-6); cura de dez leprosos (Lc 17,11-19); diálogo com Zaqueu (Lc
19,1-10); diálogo com o ‘bom’ ladrão na cruz (Lc 23, 33-43); Jesus ressuscitado
aparece aos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35).

1.2.2. Encontros no quarto evangelho:


Chamamento dos primeiros discípulos – Pedro, André, Filipe e Natanael (Jo
1,35-51); diálogo com Nicodemos (Jo 3,1-21); diálogo com uma mulher samari-
tana (Jo 4,1-42); cura do servo do centurião (Jo 4,46-54); cura de um paralítico
junto à piscina (Jo 5,1-9); Jesus alimenta 5 mil pessoas (Jo 6,1-15); diálogo com
mulher apanhada em adultério (Jo 8,1-11); cura de um cego de nascença (Jo 9,1-
40); reanimação de Lázaro (Jo 11,1-44); Jesus celebra a ‘última ceia’ com os Doze
(Jo 13,1-20); Jesus na cruz entrega João à sua Mãe (Jo 19,26-27); Jesus ressuscita-
do aparece a Maria Madalena (Jo 20,11-18); Jesus ressuscitado aparece aos Onze
(Jo 20,19-23); Jesus ressuscitado aparece a Tomé (Jo 20,24-29); Jesus ressuscitado
volta a aparecer aos Onze (Jo 21,1-14); Jesus ressuscitado entrega uma ‘missão’ a
Pedro (Jo 21,15-23).

1.3. Os encontros como epifania messiânica e revelação do profeta


escatológico
Apesar do termo ‘esperança’ não se encontrar nos evangelhos, como já refe-
rimos no primeiro capítulo, o dinamismo que designamos por ‘esperança’ está
presente e qualifica a atividade e as palavras de Jesus de Nazaré. De facto, o funda-
mento da esperança que Jesus é, e o conteúdo da esperança que ele dá, expressa-se

120
no seu ‘programa’: o reino de Deus21. Esse programa serve de enquadramento ge-
ral capaz de uma axiologia interpretativa da esperança presente em cada encontro.
A tradição sinótica, desde logo, apresenta a vida pública de Jesus sob esse desígnio:
«Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acre-
ditai no Evangelho» (Mc 1,15) ou «Convertei-vos, porque está próximo o Reino
do Céu» (Mt 4,17b). No entanto, o texto mais explícito, desse mesmo programa,
encontramos em Lc (4,16-30). Jesus regressa a Nazaré e no dia de sábado vai à
sinagoga e é convidado a ler uma passagem do profeta Isaías sobre o restabeleci-
mento escatológico Israel: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me un-
giu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos
cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos,
a proclamar um ano favorável da parte do Senhor» (Lc 4,18-19)22. Depois de ler
esta passagem, sentou-se e disse a todos os que estavam na sinagoga: «Cumpriu-se
hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir» (Lc 4,21b).
Eis o ‘início’ da sua missão. Ao dizer que a Escritura se cumpre naquele
‘hoje’, Jesus apresenta-se como o ‘ungido de Deus’ que irá realizar todas aquelas
maravilhas: libertará os cativos, recuperará a vista aos cegos; dará a liberdade
aos oprimidos. Esta será a ‘boa-nova’ (o evangelho) que Jesus anunciará. Um
evangelho que se cumpre ‘hoje’. Jesus age no ‘hoje’. Um ‘hoje’ que trás o ‘futuro’
anunciado para o ‘presente’ onde se vive e, por isso, é fonte de esperança. Ma-
tteo Crimella reforça a importância e o sentido deste ‘hoje’ dizendo que o ad-
vérbio não indica simplesmente o espaço cronológico de um dia, mas assinala a
manifestação escatológica da salvação no tempo, o cumprimento da escritura e
a superação das esperas humanas. Jesus sugere aos presentes que estejam aten-
tos aos sinais que anunciam a ‘novidade’ já presente. Nesta proclamação, Jesus
oferece, desde logo, uma chave de leitura muito importante: o Messias não será
um guerreiro ou um ser celeste, mas aquele que liberta da escravidão, trazendo
uma ‘notícia’ de alegria, de graça e de esperança23. Gerhard Lohfink diz que
não existe outra passagem que coloque tão claramente diante dos nossos olhos

21
  Cf. R. Fabris, Attualità della speranza, Brescia 1984, 16.
22
  Is 61,1-2: «1O espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu: enviou-me para
levar a boa-nova aos que sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a libertação aos exilados
e a liberdade aos prisioneiros; 2para proclamar um ano da graça do Senhor, o dia da vingança da parte
do nosso Deus; para consolar os tristes». BS. Não podemos deixar de referir que Jesus terminou a
leitura no v.2a, omitindo assim o resto do versículo: «o dia da vingança da parte do nosso Deus; para
consolar os tristes» (v.2bc).
23
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 107-108.

121
a tensão entre o já e o ainda não24. Assim, este texto pode, e deve ser, o ‘ponto
de partida’ para a compreensão do conteúdo da esperança e para a consequente
interpretação de cada encontro.
Esta mensagem de ‘apresentação’ do Messias será, posteriormente, confirmada
por Jesus aos discípulos de João Batista. Contudo, aqui não se trata apenas de ‘inten-
ções’ mas de factos já realizados (Lc 7,21): «Ide contar a João o que vistes e ouvistes:
Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos
ressuscitam, a Boa-Nova é anunciada aos pobres» (Lc 7, 22). Neste contexto, Edward
Schillebeechx diz que Jesus, com os seus milagres, leva uma alegre mensagem aos
pobres não só de palavras, mas de atos25. São os ‘sinais’ visíveis do ‘hoje’ que se cum-
pre. A esperança ganha vida e dá mais vida a cada pessoa. Também aqui, os gestos
concretos falam mais alto do que as palavras – o reino já está a ‘acontecer’. Talvez pu-
déssemos dizer como Jesus aos fariseus, quando estes perguntam quando chegaria o
reino de Deus: «Ninguém poderá afirmar: ‘Ei-lo aqui’ ou ‘Ei-lo ali’, pois o Reino de
Deus está entre vós» (Lc 17,21). O reino está a ‘incarnar’. «Esta ‘economia’ da reve-
lação realiza-se por meio de acções e palavras intimamente relacionadas entre si, de
tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e
confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por
sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido» (DV 2)26. Neste
contexto, podemos dizer que todos os encontros de Jesus são uma epifania messiâ-
nica e, por isso mesmo, revelam a ‘ação divina no mundo’ (na natureza e na histó-
ria)27. Uma ação que, pela sua própria natureza divina, é absoluta, transcendente e
criadora. Mas enquanto transcendente é, ao mesmo tempo, imanente – porque se
assim não fosse não podia ser uma ‘ação na história’. Uma imanência onde a trans-
cendência se manifesta sem perder a sua própria transcendência28.

24
  Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 44.
25
 Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 189.
26
  Mt corrobora este mesmo sentido ao dizer: «30Vieram ter com Ele numerosas multidões, trans-
portando coxos, cegos, aleijados, mudos e muitos outros, que lançavam a seus pés. Ele curou-os,31de
modo que as multidões ficaram maravilhadas ao ver os mudos a falar, os aleijados escorreitos, os coxos
a andar e os cegos com vista. E davam glória ao Deus de Israel» (Mt 15,30-31).
27
  A grande questão que teríamos de enfrentar aqui seria de saber se Deus ‘pode’ manifestar-se e,
sobretudo, agir, na natureza e na história. Será que ‘essa’ interferência de Deus não vai contra as leis
da ‘natureza’ e o próprio sentido da história ‘evolutiva’ da humanidade? Será que é possível defender
essa intervenção divina na natureza e na história sem ‘diminuir’ ou ‘atraiçoar’ nem o conceito de
‘Deus’ nem o ‘conceito de natureza ou história’? Sobre esta problemática aconselhamos dois artigos
fundamentais: A. Balsas, «Ciência Contemporânea e Causalidade», RPF 63 (2007) 631-661 e G. Tan-
zella-Nitti, «Il miracolo e le scienze della natura», AT(R) 29 (2015) 429-470.
28
 Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 666.

122
Esta ação divina no mundo encontra eco, desde logo, no AT. Na história do
Povo de Deus encontramos teofanias (experiências de Deus e visões apocalípticas
como a ‘sarça ardente’ – Ex 3; manifestações a Moisés no Sinai – Ex 19,16-25),
curas (como do leproso Naaman por Eliseu – 2Rs 5,1-15; do rei Ezequías por
Isaías – 2Rs 20,1-11; reanimação do filho da viúva de Sarepta por Elías – 1Rs
17,17-24; reanimação do filho da chunamita por Eliseu – 2Rs 4,8-37), ações salví-
ficas (como o maná – Ex 16; passagem do mar vermelho – Ex 14; a presença das
codornizes fáceis de capturar, decorrente de um fenómeno de migração – Nm
11,31-35; multiplicação dos pães por Eliseu – 2Rs 4,42-44). Todos estes aconte-
cimentos revelam não só a ação permanente de Deus no mundo como nos con-
duzem à ideia de Jesus como um profeta escatológico. Contudo, Jesus é mais do
que um profeta e os seus ‘milagres’ não são uma legitimação da sua identidade
e da sua missão. As suas curas anunciam o cumprimento e, ao mesmo tempo, a
superação das curas do AT. Jesus cumpre a esperança messiânica que se revela
libertadora e salvadora, sobretudo, para os mais necessitados e mais pecadores29.
Importa, porém, recordar que havia duas tradições, historicamente distintas,
que se vão ‘unir’ em Jesus: a tradição do messianismo davídico e a tradição do
profeta escatológico. Na verdade, a ideia de profeta escatológico é, inicialmente,
‘amessiânico’ no sentido dinástico. Só posteriormente estas as tradições se to-
cam. Deste modo, Jesus vai sendo, progressivamente, reconhecido como o profe-
ta escatológico messiânico30. A identificação deste dinamismo será fundamental
para compreender cada um dos encontros, quer nos sinóticos, quer no quarto
evangelho – nomeadamente no próprio enquadramento dos ‘milagres’.
No entanto, o facto de Jesus ser reconhecido como ‘profeta escatológico’, a
quem se atribuem determinados ‘milagres’, mais do que indicar que todos são
milagres históricos de Jesus, diz que todos são acontecimentos que deram ocasião
a identificar Jesus com esse mesmo profeta escatológico. Deste modo, chegamos
àquilo que Edward Schillebeechx chama um ‘círculo hermenêutico’: por um lado,
o comportamento de Jesus leva-nos a reconhecê-lo como ‘profeta escatológico’;
por outro lado, uma vez reconhecida esta identidade, com base na tradição da
profecia escatológica, atribuem-se a Jesus de Nazaré, sem hesitação, os milagres

29
  Cf. J. González-Faus, Clamor del Reino, Salamanca 1982, 106-121.
30
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 471. Esta afirmação é enquadrada pelo autor numa
reflexão mais âmpla sobre os modelos judaicos pré-constituídos das figuras salvíficas escatológicas,
onde falará sobretudo de três aspetos: a) o profeta escatológico; b) o filho de David messiânico escato-
lógico; c) e o filho do homem. Trata-se de uma reflexão que se estende aos capítulos seguintes.

123
‘tradicionalmente’ atribuídos a um profeta escatológico. Ou seja, uma vez reco-
nhecido, por motivos históricos, como ‘profeta escatológico’, são-lhe atribuídos
vários milagres que historicamente não terá realizado. Este fenómeno, chamado
‘concentração épica’, não é estranho à literatura – por exemplo, a Carlos Magno
foram atribuídos atos heróicos de outros. Por tudo isto, importa sublinhar a dis-
tinção entre ‘atos históricos de potência’ realizados por Jesus e o seu ‘significado
kerigmático’. Assim, as narrações de milagres que não se apoiam diretamente so-
bre uma base histórica na vida de Jesus assumem um significado eminentemente
teológico. No entanto, o principal e último critério terá que ser sempre o de Jesus
de Nazaré histórico e real31.

2. Os encontros com Jesus reclamam um ‘adentrar-se’ na noção de


‘milagre’
Depois de termos falado dos encontros como epifania messiânica, que nos re-
velam Jesus de Nazaré como o profeta escatológico, precisamos agora de reflectir
sobre as próprias manifestações. Quando falamos dessas manifestações, falamos,
sobretudo, de ‘milagres’32. Não de ‘milagres’ numa aceção banal e superficial mas
do conceito bíblico de ‘milagre’. Efetivamente, o conceito bíblico, não correspon-
de totalmente à ideia mais apologética da neoescolástica do séc XIX e início do
séc XX. Os evangelhos falam de ‘prodígios’ e de ‘sinais’. Não se trata de ‘leis da
natureza’ ou da sua violação, mas de uma ação de Deus que seja inusual, inex-
31
  Ibidem, 188-190. Para exemplificar o quanto alguns ‘milagres’ não deve ser entendidos como ‘his-
tóricos’ (ou lidos literalmente), mas muito mais como ‘parábolas’ (no contexto dos escritos pós-pas-
cais), o autor recorda-nos a passagem de Mt 17,24-27: «Entrando em Cafarnaúm, aproximaram-se de
Pedro os cobradores do imposto do templo e disseram-lhe: ‘O vosso Mestre não paga o imposto?’ 25Ele
respondeu: ‘Paga, sim’. Quando chegou a casa, Jesus antecipou-se, dizendo: ‘Simão, que te parece? De
quem recebem os reis da terra impostos e contribuições? Dos seus filhos, ou dos estranhos?’ 26E como
ele respondesse: ‘Dos estranhos’, Jesus disse-lhe: ‘Então, os filhos estão isentos. 27No entanto, para não
os escandalizarmos, vai ao mar, deita o anzol, apanha o primeiro peixe que nele cair, abre-lhe a boca e
encontrarás lá um estáter. Toma-o e dá-lho por mim e por ti’». BS. Recordo que um ‘estáter’ [στατῆρα]
é moeda de prata que vale quatro dracmas e corresponde à taxa de duas pessoas. Cf. G. Michelini (a
cura di), Matteo, Cinisello Balsamo 2013, 291.
32
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: E. Lohse, Die Wundertaten Jesu,
Stuttgart 2015; C. Prieto, Jésus thérapeute, Geneva 2015; S. Alkier, A. Weissenrider (eds), Miracles
Revisited, Berlin-Boston 2013; D.F. Watson (ed), Miracle Discourse in the New Testament, Atlanta
2012; T. Söding, «Berührung als Heilung. Die handfeste Gnade in den Wundern Jesus», BK 67 (2012)
36-40; W. Cotter, The Christ of the Miracle Stories, Grand Rapids 2010; R. Serrano, «Los Milagros
de Jésus: Semillas o anticipo del Reino», ITER 21 (2010) 59-72; J. Doré, «La portée révélatrice des mi-
racles de Jésus», RSR 98 (2010) 559-579; R.A. Kereszty, Fundamentals of Christology, New York 2002,
101-118; J. Doré, «La signification des miracles de Jésus», RevSR 74 (2000) 275-291.

124
plicável e desconcertante. O milagre é sempre um caso especial da ação de Deus
que age continuamente no mundo. Esta amplitude do conceito bíblico originário
oferece à teologia hodierna a possibilidade de formular a especificidade do mila-
gre a partir do sentido mais original33.

2.1. O sentido das palavras que ‘dizem’ milagre: δύναμις e σημεῖον


Todos sabemos que a palavra humana tem uma força inquietante – pode des-
truir ou pode construir. Há palavras que marcam determinantemente a nossa
vida, palavras que unem e palavras que afastam, palavras que ajudam e palavras
que desencorajam, palavras que nos fazem crescer e palavras que nos diminuem.
Se as palavras humanas podem ter tanto poder quanto mais as palavras divinas!
Jesus é a Palavra (ὁ λόγος – Jo 1,1). Mas a Palavra que é, é uma Palavra incarnada
(cf. Jo 1,14a), um Palavra feita vida. Por isso, a Palavra, que quis habitar entre nós,
está marcada por gestos e atitudes que a iluminam e a explicitam. Uma Palavra
Incarnada que ‘cura’, que ‘transforma’, que ‘dá vida’ – uma Palavra criadora de
acontecimentos especiais. A esses acontecimentos especiais a Igreja chama habi-
tualmente ‘milagres’; já os evangelhos usam, sobretudo, as palavras: ‘prodígios’
[δύναμις ] e ‘sinais’ [σημεῖον]34. Neste contexto, Léon-Dufour faz uma interes-
sante distinção entre δύναμις e σημεῖον, dizendo que os primeiros sublinham a
ideia de ação divina percebida pelo homem enquanto que os segundos assume
sobretudo o ponto de vista do homem capaz de descobrir a ação divina35.
A palavra δύναμις, tendo etimologia incerta, tem sempre a ver com a ideia de
‘poder’, ‘força’ e ‘capacidade’36. A palavra δύναμις pode implicitamente significar

33
  Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 174-175. Ver ainda: V. Croce, Gesù il Figlio e il
Mistero della croce, Torino 2010, 76-78.
34
  Ibidem, 160. John Meier indica-nos cinco palavras que, na linguagem dos evangelhos, procuram
traduzir a ideia de ‘milagre’: δυνάμεις [obras de poder], σημεῖα [sinais], τέρατα [prodígios], παράδοξα
[atos surpreendentes] e θαυμάσια [maravilhas]. Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, II, New York 1994,
646. Ver também: E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 184; I. Sibaldi, I miracoli di Gesù, Milano
1989, 42-43.
35
  Cf. X. Léon-Dufour, «Approches diverses du miracle», Paris 1977, 21.
36
  Cf. C. Rusconi, «δύναμις», in DGNT, São Paulo 2003, 138. Igor Sibaldi recorda que o termo δύναμις
significava muitas coisas no I séc. para além deste sentido de ‘força’ e ‘poder’: pode indicar o princípio
cósmico e a energia primordial que enche e move o universo inteiro e cada ser (os estóicos identifi-
cavam esta energia com o divino – com um ser impessoal); também podia ser uma paráfrase que
servia para indicar o nome de Yhwh (sobretudo no tardo-judaísmo); nos sinóticos encontramos com
o sentido de Deus Pai – como em Mc: «E vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poder e vir sobre
as nuvens do céu» (Mc 14,62b). O termos δύναμις indicava, no contexto judaico, a essência da Torá: a
potência da Lei que suportava o universo. Δύναμις, na linguagem corrente do helenismo, indicava o

125
‘energia’ presente em toda a vida. Walter Grundmann começa por recordar que
no AT o ideal messiânico associava precisamente a ideia de potência com a do
Messias: este terá um «espírito de conselho e de fortaleza» (Is 11,2c); ou «o Se-
nhor é a minha rocha, fortaleza e protecção; o meu Deus é o abrigo em que me
refugio, o meu escudo, o meu baluarte de defesa» (Sl 18,3). Ao longo do AT são
muitas as passagens que falam do Messias como um soberano potente (como
2Sm 22,32.33.40; Sl 18,33.40)37. No NT ao messias é ‘reconhecida’ uma ‘potên-
cia profética’, sobretudo em Lc. Este evangelista não só atribui a Jesus o ‘poder’
profético, como vê no seu nascimento um prodígio especial e incomparável da
potência divina. Assim a δύναμις consiste numa ação do Espírito. Uma ‘ener-
gia’ que age através de Jesus e é capaz de realizar mudanças profundas na vida
das pessoas: curas físicas, expulsar demónios, conversões, reanimações. Neste
contexto a palavra ganha o sentido técnico de ‘milagre’. Encontramos um exem-
plo concreto dessa aceção quando, na entrada em Jerusalém, se diz: «estando já
próximo da descida do Monte das Oliveiras, o grupo dos discípulos começou a
louvar alegremente a Deus, em alta voz, por todos os milagres [δυνάμεων] que
tinham visto» (Lc 19,37). É verdade, que no tempo de Jesus, no mundo hele-
nístico-judaico, havia muitos prodígios e muitos taumaturgos. No entanto, os
milagres de Jesus distinguem-se desses outros prodígios do seu tempo por três
características: não estão ligados a nenhuma técnica ou procedimento mágicos;
acontecem apenas após uma ‘ordem’ de Jesus que nada tem a ver com fórmulas
mágicas; pressupõem a fé de quem o cumpre e de quem o recebe, concretizan-
do-se uma relação pessoal38.
Neste sentido, Mc, o primeiro a analisar a relação entre os milagres e a men-
sagem de Jesus, diz que os primeiros estão ao serviço da mensagem, são sinais
proféticos extraordinários que se percebem definitivamente à luz do núcleo cen-
tral do evangelho – a ressurreição. Mt, nesta mesma linha, sublinha ainda mais
esta relação dos milagres ao serviço da mensagem. Lc, insiste na mesma ideia
mas reforça a ideia de que são sinais visíveis da divindade de Jesus. Contudo,
enquanto Mc e Mt tendem a privilegiar a mensagem de Jesus, onde os milagres

poder de cura da medicina e da magia, como a própria arte médica e a arte mágica. Neste contexto,
o termo δυνάμεις era usado também para os instrumentos e os fármacos do médico ou os meios com
que trabalhava o mago. Por último, δύναμις são os ‘prodígios’ e os ‘milagres’ (termo usado nos sinóti-
cos).Cf. I. Sibaldi, I miracoli di Gesù, Milano 1989, 42-43.
37
  Sobre os ‘sinais’ e ‘prodígios’ no AT aconselhamos: H.C. Kee, Medicine, Miracle and Magic in New
Testament Times, Cambridge 1986, 11-16.
38
  Cf. W. Grundmann, «δύναμις», in GLNT, II, Brescia 1966, 1510-1518.

126
estão sempre ao serviço da palavra, Lc parece equilibrar habilmente estes dois
elementos, evidenciando uma compreensão mais madura de Jesus como profeta
dos últimos tempos, como ele próprio refere no diálogo de Emaús onde Jesus
de Nazaré é apresentado como «profeta poderoso em obras e palavras diante de
Deus e de todo o povo» (Lc 24,19)39. Neste sentido, Jesus revela-se, mediante as
suas obras, sobretudo milagres e na sua própria ressurreição, uma epifania da
δύναμις de Deus, inseparável da sua pessoa40.
Nesta mesma linha do ‘Jesus dos sinóticos’ move-se o ‘Jesus do quarto evan-
gelho’. Todavia, a palavra δύναμις não ocorre, nem no singular, nem no plural.
A palavra que surge para significar o ‘poder’ da ação de Deus será, sobretudo,
σημεῖον - que quer dizer ‘sinal’41. Na linguagem do evangelho de Jo esta palavra
tem um significado especificamente messiânico – obras únicas e incomparáveis,
como expressão de uma particular δύναμις de Cristo42. De facto, também aqui Jo
se distingue dos sinóticos; estes σημεῖον são ‘sinais’ que servem para suscitar a
fé revelando Jesus como Messias e Filho de Deus. Sinais que só podem ser com-
preendidos e integrados à luz da fé. Sinais que assumem uma dimensão de ‘epifa-
nia’ da glória divina e, ao mesmo tempo, manifestam um significado profundo de
salvação43. Por isso, o termo ‘sinal’ está ligado a duas outras palavras importantes
do vocabulário joânico: ‘glória’ – enquanto manifestação da própria missão de
Jesus; e ‘acreditar’ – enquanto adequada resposta humana à ação de Jesus. Assim,
o ‘sinal’, enquanto manifestação da ‘glória’ divina, conduz à adesão da ‘fé’44.
A palavra σημεῖον ocorre 73 vezes no NT (excluindo Mt 16,3 que é considera-
do por alguns exegetas como um ‘acrescento’). Destas vezes, 7 são em Mc; 10 em
Mt; 10 em Lc; 17 em Jo; 13 nos At; 6 no Ap; 8 em Paulo e 1 nos Hb. Portanto, o
autor que mais usa é Jo (Evangelho e Ap dá um total de 24 vezes). Importa agora

39
  Cf. G. Pagano, I miracoli di Gesù, Milano 2008, 51-60. Para um aprofundamento da perspectiva
de cada um dos sinóticos diante dos milagres, aconselhamos ainda: R. Latourelle, Miracles de Jésus
et théologie du miracle, Paris 1986, 285-292; J.G. González-Faus, Clamor del Reino, Salamanca 1982,
53-66.
40
 Cf. R. Latourelle, Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 28.
41
  Cf. C. Rusconi, «σημεῖον», in DGNT, São Paulo 2003, 416. Para quem quiser aprofundar esta pala-
vra no contexto do quarto evangelho aconselhamos: H. Förster, «Der Begriff σημεῖον im Johanne-
sevangelium», NovT 58 (2016) 47-70.
42
  Cf. W. Grundmann, «δύναμις», in GLNT, II, Brescia 1966, 1520-1521.
43
  Cf. G. Pagano, I miracoli di Gesù, Milano 2008, 61-63. Sobre o sentido teológico que quarto evan-
gelho atribui aos ‘milagres’ aconselhamos: J. González-Faus, Clamor del Reino, Salamanca 1982,
66-69; E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 434-435.
44
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 16.

127
perceber o sentido mais profundo que esta palavra adquire no NT. Por um lado,
temos um termo que é colocado como objeto de um conjunto alargado de verbos
que colocam em relevo a atividade humana (como por exemplo em - Jo 2,18; 4,54;
Mt 26,48; Lc 11,16; At 8,6); por outro lado, a palavra σημεῖον tem o sentido de
qualquer coisa que não tem o homem na origem, mas que ‘vem do céu’ (cf. Mc
8,11) ou ‘é do céu’ (cf. Ap12,1) e tem por autor Deus (cf. Mt 12,39)45.
Jo utiliza a palavra σημεῖον, tal como os sinóticos e os At, com o sentido de
‘sinal’, ‘indicação’ e ‘contra-sinal’ - referindo ações prodigiosas quer de Jesus,
quer de ‘potencias’ hostis a Deus e a Cristo. No entanto, no Evangelho de Jo esta
palavra relaciona-se, sobretudo, com Jesus. Os σημεῖα levam a que se procure sa-
ber quem ele é (Jo 6,14) e são um meio para revelar o ser verdadeiro ser (Jo 2,11),
permitindo reconhecer nele o Filho de Deus que vem do Pai e ao Pai retorna (Jo
14,9ss). Deste modo, em Jo o termo σημεῖον torna-se uma designação exclusiva
de determinados factos prodigiosos, procurando ‘traduzir’ o sentido que os sinó-
ticos atribuem a δύναμις. Com esta palavra σημεῖον, em Jo, descrevem-se os mi-
lagres de Jesus – de certo modo podemos dizer que são os ‘milagres messiânicos
da epifania’. Esta palavra σημεῖα ocorre explicitamente em algumas passagens:
bodas de caná (2,11); a cura do filho do funcionário real (4,54); a multiplicação
dos pães e dos peixes (6,14); a cura do cego de nascença (9,16); a ‘reanimação’ de
Lázaro (12,17-18). Há ainda que referir outros episódios que são considerados,
implicitamente, ‘sinais’ como a cura do paralítico ao sábado na piscina de Betza-
tá (5,1ss) e os ‘sinais’ encontrados no túmulo que conduzem à manifestação do
Senhor Ressuscitado – uma espécie de ‘sétimo sinal’: «Então, entrou também o
outro discípulo [João], o que tinha chegado primeiro ao túmulo. Viu e começou a
crer, pois ainda não tinham entendido [Pedro e João] a Escritura, segundo a qual
Jesus devia ressuscitar dos mortos» (20,8-9)46.

45
  Cf. K. Rengstorf, «σημεῖον», in GLNT, ΧII, Brescia 1979, 90-93.
46
  Ibidem, 125-133. Este mesmo autor, nestas páginas, diz houve outros ‘sinais’, que não estão neste
livro e que Jesus terá feito: em Jo não se encontra, a cura de um leproso, quando nos sinóticos de dá
tanto relevo a este ‘milagre’; nem encontramos nenhum exorcismo de Jesus contra os demónios, como
encontramos nos sinóticos. Edward Schillebeeckx fala também destes 7 sinais, ainda que com algu-
mas diferenças: o vinho das bodas de caná (2,11); a cura do filho do funcionário real (4,54); a cura de
um paralítico (5,1-9); a multiplicação dos pães (6,14); caminhar sobre as águas (5,16-21 – sendo que
aqui não se fala explicitamente de ‘sinal’); a cura do cego de nascença (9,16); e a ‘reanimação’ de Lázaro
(11,1-44). Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 434. Ver ainda: R. Latourelle, Miracles de
Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 292-294.

128
Não deixa de ser interessante que o capítulo 20, considerada a primeira con-
clusão do livro, termine com a seguinte afirmação: «Muitos outros sinais mira-
culosos [σημεῖα] realizou ainda Jesus, na presença dos seus discípulos, que não
estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para acreditardes que Jesus
é o Messias, o Filho de Deus, e, acreditando, terdes a vida nele» (20,30-31). Diz-se
não só que houve outros ‘sinais’ como se estabelece uma relação intrínseca entre
os milagres e o acreditar, entre σημεῖον e πίστις. Trata-se de ver em cada ‘sinal’
uma auto-manifestação de Deus através de Jesus, uma ‘epifania messiânica’ que
permite reconhecer em Jesus o Messias – o Filho de Deus. Um acreditar que per-
mite entrar na vida do ressuscitado, que é a vida eterna. Neste sentido, Edward
Schillebeeckx diz que os ‘sinais’ de Jesus, em Jo, não antecipam mas atualizam a
salvação escatológica que se torna presente nas obras de Jesus47.
Dito isto, podemos referir que os milagres, quer nos sinóticos, quer no quarto
evangelho, têm três grandes dimensões: estão estreitamente ligados à pessoa de
Jesus Cristo – exercendo uma função de revelação e de atestação (cf. DV 4); estão
ligados à vinda do reino de Deus, que a própria pessoa de Jesus manifesta (cf. LG
5 e AG 2); são sinais e dons de Deus que reclamam a livre decisão de fé48. Neste
sentido, podemos ler, no documento do Concílio Vaticano II, sobre a liberdade
religiosa, a declaração Dignitatis Humanae: «Com efeito, Cristo, nosso Mestre e
Senhor, manso e humilde de coração, atraiu e convidou com muita paciência os
seus discípulos. Apoiou e confirmou, sem dúvida, com milagres, a sua pregação;
mas para despertar e confirmar a fé dos ouvintes, e não para exercer sobre eles
qualquer coacção» (DH 11).
Não deixa de ser surpreendente, neste contexto, que quando os fariseus pe-
dem um ‘sinal’[σημεῖον] a Jesus a sua resposta tenha sido: ‘nenhum sinal será
dado’ (cf. Mc 8,11-13; Mt 16,1-4). No entanto, precisamos de sublinhar que os
fariseus com este pedido não só queriam por Jesus ‘à prova’ (cf. Mc 8,11b), como a
própria pergunta denota, implicitamente, uma forma de resistência que antecede
a sucessiva recusa ou a insuficiência do ‘sinal’ – como tinha acontecido no AT
quando o Povo, depois de tantos ‘sinais’ (cf. Dt 6,21-23), foi ‘infiel’ e pecou contra
Deus (cf. Dt 32,5-7)49. De facto, aqui o ‘sinal’ é entendido no sentido veterotesta-
mentario, isto é, um sinal para legitimar, distinto dos ‘sinais’ vistos como ‘força’
ou ‘potência’ de Deus. Neste sentido, os milagres, sobretudo em Mc, não são legi-

47
  Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 435.
48
 Cf. R. Latourelle, Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 30.
49
  Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 169.

129
timação de Deus mas atos bons da potência de Deus que respondem às necessida-
des do momento. Com isto não se toma posição pró ou contra os milagres. A Mc
interessa a questão cristológica da verdadeira personalidade e essência de Jesus50.

2.2. A dificuldade em ‘acreditar’ nos milagres


Com o nascimento da ciência moderna no séc. XVII e da filosofia no séc.
XVIII, filósofos e teólogos começaram a questionar a noção tradicional da ação
divina, especialmente a crença em atos especiais de Deus e, sobretudo, os pró-
prios milagres. Neste processo destacamos quatro contributos: Isaac Newton
(1642-1717) introduz as noções de espaço e tempo absolutos e um modelo me-
cânico para o universo, onde já não parece haver espaço para ações particulares
de Deus, ainda que pudesse ser o criador; Pierre Laplace (1749-1827) formula
explicitamente uma visão da natureza auto-suficiente e fechada, dotada de um
determinismo mecânico absoluto, governado por leis absolutas e exatas; David
Hume (1711-1776) e Immanuel Kant (1724-1804) minam a noção de causalida-
de, reduzindo-a a uma categoria do entendimento51. Hume será talvez um dos
mais proeminentes filósofos a atacar a noção de milagre – enquanto ação divina
especial direta – argumentando que tal seria uma ‘violação das leis da natureza’
o que seria totalmente impensável. Uma ideia que teve muita influência e que
ainda persiste na atualidade como base de argumentação. No século XIX, esta
mentalidade científica é reforçada pelas ideias evolucionistas de Darwin. A este
percurso da ciência e da filosofia juntamos a não menos importante introdução
da abordagem histórico-crítica nos estudos bíblicos. Com este método o movi-
mento modernista tenta acomodar as novas ideias da ciência às doutrinas tra-
dicionais, colocando o acento tónico na imanência de Deus. Todo um processo,
mesmo dentro da própria teologia, que conduziu à rejeição do conceito de ‘inter-

50
 Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 192-193.
51
  Em todo este processo, Giuseppe Tanzella-Nitti começa por sublinhar a importância e a influência
da opinião de Baruch Spinoza (1632-1677) que, tendo dedicado aos milagres um capítulo do seu Tra-
tado Teológico-Político, afirma duas convições principais: o milagre está em contrate com a natureza
e fora das suas leis, ainda que tenhamos dela um conhecimento limitado e imperfeito; o milagre não
permite reafirmar racionalmente à existência de Deus, podendo inclusive ter o efeito de aumentar a
dúvida sobre a sua existência. Estas ideias serão retomadas e desenvolvidas por David Hume. Se para
Spinoza o milagre é um absurdo para Hume é simplesmente impensável. Cf. G. Tanzella-Nitti, «Il
miracolo e le scienze della natura», AT(R) 29 (2015) 431-433. Ver ainda o texto de René Latourelle que
irá falar deste processo, sobretudo, em Spinoza, Hume, Voltaire, Kant, Bultmann: R. Latourelle,
Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 38-45.

130
ferência divina’ nos processos naturais e à crença de que os milagres podem ser
explicados cientificamente ou considerados meramente como criações literárias
não históricas52.
Neste contexto, perante os milagres descritos no NT, podemos sempre colo-
car inúmeras questões. Não terão sido puras invenções da Igreja Primitiva para
desenvolver a sua apologética missionária? Não terão sido ‘alucinações coletivas’
ou não terão exagerado alguns, dos que dão testemunho, fazendo de um acon-
tecimento ‘normal’ uma releitura de ação extraordinária? Não terão mesmo in-
ventado alguns ‘milagres’ em função da ideia de reforçar o poder divino de Jesus
– reconhecido como Cristo? Ou ainda, utilizando a expressão de Rudolf Bult-
mann, como podemos usar a luz eléctrica e a rádio (hoje diríamos a Televisão
e a Internet), ou fazer recurso, em caso de doença, às modernas descobertas no
campo médico e cirúrgico e, ao mesmo tempo, acreditar no mundo neotesta-
mentário dos milagres?53. Suportados pelo mesmo autor, podemos formular a
pergunta: Acreditar nos milagres não destrói a ideia de omnipotência divina?
Não supõe que Deus em geral não age, se consideramos que os acontecimentos
especiais são distintos da sua ação quotidiana?54 Por fim, como podemos aceitar
como justo que Jesus não tenha ‘curado’ todos os doentes, não tenha ‘reanimado’
todos os que morreram, nem tenha ‘alimentado’ todos os que tiveram fome? Será
justo que Jesus tenha intercedido, de forma extraordinária, ‘apenas’ por alguns?55

52
 Cf. A. Balsas, «Ciência Contemporânea e Causalidade», RPF 63 (2007) 634-637. Aconselhamos
ainda: G. Tanzella-Nitti, «Il miracolo e le scienze della natura», AT(R) 29 (2015) 431-438; G. Paga-
no, I miracoli di Gesù, Milano 2008, 66-69; J. González-Faus, Clamor del Reino, Salamanca 1982,
125-150.
53
 Cf. R. Bultmann, Nuovo Testamento e mitologia, Brescia 19734, 110. No ano 2015, o número 3
da revista teológica Ephemerides theologicae Lovanienses, dedica vários artigos ao pensamento de
Bultmann sobre milagres, dos quais destaco: M. Labahn, «Den frühchristlichen Wundergeschichten
Sinn für die Gegenwart entlocken», ETL 91 (2015) 393-414; A. Lindemann, «Jesus Christus und die
Mythologie: Bultmanns Mythos-Verständnis und seine Evangelienauslegung», ETL 91 (2015) 365-
391; G. van Belle, «‘Blessed are those who have not seen and yet have come to believe’: Rudolf Bult-
mann’s Interpretation of the ‘Signs’ in the Fourth Gospel», ETL 91 (2015) 521-546.
54
 Ibidem, 141. Sobre as perguntas que podemos fazer diante dos milagres aconselhamos ainda: J.P.
Meier, A marginal Jew, II, New York 1994, 517.
55
 René Latourelle indica, desde logo, duas dificuldades de pre-compreensão: uma primeira mais a
nível redacional, ou seja, com os textos em que os milagres acontecem; uma segunda que tem mais a
ver com a própria ideia de milagre. Cf. R. Latourelle, Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris
1986, 37-38.

131
O milagre é uma forma de publicidade eficaz mas ilusória, porque pode sus-
citar expectativas ilusórias. Explode como uma bomba emotiva, agita a imagi-
nação da multidão, deixando pouco espaço a distinções e precisões. Parece mais
uma excelente forma para atrair as atenções do que um instrumento de reflexão
teológica. A razão é que o milagre é sempre portador de ambiguidade. Chama e
afasta ao mesmo tempo. Atrai alguns e afasta outros. Não é dito, no entanto, que
ao aproximarmo-nos sejamos os mais sábios. Por isso, ‘adentrar-se’ no insólito e
no inexplicável torna difícil estabelecer os limites subtis entre o extraordinário
e o estranho, entre o que supera a razão e o que, pelo contrário, a suprime. Para
além de que o próprio termo ‘milagre’ é sujeito a inevitável interpretação, ou seja,
o que é milagre para alguns não o é, de facto, para outros. Assim, o milagre pode
ser um ‘motivo’ para acreditar e, ao mesmo tempo, parece poder ser um moti-
vo para não acreditar56. Neste contexto, podemos colocar uma última pergunta:
porque necessitou Jesus de fazer milagres, não bastava a força inegável do ensina-
mento verbal? Não seria já a sua palavra, enquanto tal, capaz de ‘acender um fogo’
no coração dos seus ouvintes, como aconteceu com os discípulos de Emaús?57.
De facto, a associação constante entre Jesus e os ‘prodígios’ e ‘sinais’ é um
mistério que, segundo o exegeta Gianmario Pagano, parece afastar alguns es-
tudiosos e teólogos que preferem ‘ignorá-los’, procurando apresentar um Jesus
sem milagres, uma espécie de Jesus ‘light’, de mais fácil ‘digestão’ segundo os
princípios de uma dieta intelectual racionalista e secularizada, alérgica ao sobre-
natural58. Deste modo, não só é negado o Jesus dos evangelhos (ou, como muitos
preferem dizer, o ‘Jesus da fé’), mas também uma componente essencial da per-
sonagem que os evangelhos descrevem. Ainda que possa ser difícil provar a ‘his-
toricidade’ de alguns milagres, ignorar sistematicamente e desvalorizar a ação
constante de Jesus acompanhada de milagres contradiz, em muito, os princípios
racionalistas da própria historicidade. Um Jesus sem milagres não é o Jesus da
fé nem o da história – é só um Jesus cómodo. Jesus não se pode separar dos seus

56
  «Il miracolo sembra esserne diventato un ostacolo ingombrante». V. Croce, Gesù il Figlio e il Mis-
tero della croce, Torino 2010, 75. A este propósito, Rudolf Bultmann sublinha que, para quem tem
dúvidas, o milagre não significa necessariamente uma prova clara e inequívoca da existência de Deus
e da sua ação. Cf. R. Bultmann, Gesù, Brescia 20086, 142.
57
  Cf. G. Pagano, I miracoli di Gesù, Milano 2008, 5-7. O texto lucano sobre os dois discípulos de
Emaús afirma: «Disseram, então, um ao outro: ‘Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo
caminho e nos explicava as Escrituras?’» (Lc 24,32).
58
  Ibidem, 7-8. Neste contexto, Gerhard Lohfink apresenta vários teólogos, sobretudo do tempo ilu-
minista, que procuraram encontrar razões científicas, ou explicações meramente racionais e simbóli-
cas para os milagres de Jesus. Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 167-169.

132
milagres. De facto, os milagres não só são inseparáveis da figura de histórica de
Jesus como contribuem para a determinar. Em todas as fontes ‘históricas’ Jesus é
associado a atos prodigiosos. A crítica histórica pode ter dificuldade em ‘provar’
a historicidade de algumas narrativas de milagres, mas se os nega corre o risco
de negar essas mesmas fontes. Se estas fontes não fossem válidas para considerar
os ‘milagres’, como poderíamos aceitar essas mesmas fontes como válidas para
os outros aspetos? O risco inevitável da desvalorização histórica dos milagres de
Jesus é o mesmo da desvalorização da realidade histórica de Jesus em todos os
seus âmbitos59. Por isso, conclui René Latourelle, é impossível conceber a vida e
os ensinamentos de Jesus sem os milagres que os acompanham60. Não podemos
evitar este ‘confronto’.
A pergunta impõe-se: é possível um discurso teológico sobre os milagres que
seja respeitoso para com os conhecimentos científicos e que tenha em conta as
objeções avançadas em âmbito filosófico-racional? Muitos autores falam dos mi-
lagres, por um lado, como ações de Deus ‘contra-natura’; por outro, como ações
que ‘suspendem’ ou infringem os comportamentos legais e cientificamente co-
nhecidos dos fenómenos naturais. Outros ainda, falam dos milagres como ex-
pressão de uma mentalidade ‘pré-científica’ inaceitável para o homem moderno61.
Rahner diz que o homem de hoje não pode deixar de duvidar da demonstrabili-
dade histórica dos milagres atribuídos a Jesus, nem os pode explicar como uma
ação imediata do próprio Deus que infringe todas as leis da natureza62. Por isso,
Rudolf Bultmann, de forma mais crítica, dirá que a ideia de milagre, e com esta
também a ideia de Deus, significa renunciar à compreensão dos acontecimentos
do mundo a partir de um determinismo geral. A ideia de milagre e a ideia de
Deus, no pensamento de Jesus, anulam a ideia de natureza63.
Contudo, Tanzella-Nitti, apresar de reforçar a importância dos contributos so-
bre a ‘possibilidade’ racional dos milagres que os tornam mais inteligíveis à men-
talidade científica, afirma que nem todos os milagres do NT se ‘encaixam’ nessas
possibilidades: causas naturais ainda desconhecidas ou acontecimentos incomuns,
probabilisticamente possíveis. De facto, encontramos testemunhos credíveis que

59
  Ibidem, 8 e 41.
60
 Cf. R. Latourelle, Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 75. «Nessuno storico serio
oserebbe oggi tentare di ricostruire la vicenda di Gesù di Nazaret spogliandola dai racconti di mira-
coli». V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 75.
61
 Cf. G. Tanzella-Nitti, «Il miracolo e le scienze della natura», AT(R) 29 (2015) 431 e 440.
62
  Cf. K. Rahner, Corso fondamental sulla fede, Milano 20056, 333.
63
  Cf. R. Bultmann, Gesù, Brescia 20086, 144.

133
nos transmitiram acontecimentos ‘fisicamente impossíveis’ e que parecem ultra-
passar todas as possibilidades futuras de conhecimento dos fenómenos naturais.
Este autor parece inclinar-se assim para uma ação de Deus ‘fora do mundo das
leis da natureza’. Ele defende que se trata de ações radicalmente divinas, que não
pertencem à natureza, nem pertencem à ciência e que, por isso mesmo, a ciência
não as pode desmentir. Deste modo, ao observador científico não lhe é pedido que
subescreva eventos ‘epistemologicamente contraditórios’. Com efeito, o reconhe-
cimento do milagre não pertence à ciência, porque se trata de uma noção teológi-
ca-religiosa e não científica. O cristianismo é uma religião de salvação e não uma
gnose. A fé cristã dirige-se a um Deus que liberta e redime da dor, não a um Deus
que se explica, de modo convincente, a origem e o porquê64.
Por tudo isto, a fé é parte essencial para a identificação e compreensão dos
milagres, razão pela qual não pode ser excluída por princípio do seu estudo65.
Negar a priori a fé é impedir o acesso à sua hermenêutica mais profunda. Uma
vez retiradas das premissas seria impossível, e intelectualmente desonesto, fa-
zê-la ‘entrar’ quando se está a tirar as conclusões. Incluir a fé não significa
excluir o contributo das diversas disciplinas e ciências66. Neste contexto, Tan-
zella-Nitti afirma que qualquer definição que a teologia possa dar de ‘milagre’,
essa terá de ter sempre uma referência a Deus como sujeito agente e isso é sufi-
ciente para dispensar a ciência do encargo da prova, tratando-se de uma agente
que não pertence ao seu domínio de análise. O método científico, uma vez que
só tem competência para estudar fenómenos ‘naturais’, não pode ‘julgar’ nem
‘atestar’ um milagre. Contudo, pode ajudar a ‘desmascarar’ falsos milagres ou
ajudar a compreender as probabilidades estatísticas de ocorrência de um ‘fenó-
meno’, que o teólogo deve considerar na análise de um acontecimento conside-
rado divino67.

64
 Cf. G. Tanzella-Nitti, «Il miracolo e le scienze della natura», AT(R) 29 (2015) 441-445 e 468.
«Affermare dunque che Dio ha agito, in un preciso momento e in un preciso contesto, non è di per sé
un giudizio storico, né scientifico, ma è un giudizio di fede, perciò un giudizio teologico». G. Pagano,
I miracoli di Gesù, Milano 2008, 16.
65
  Diz Rudolf Bultmann que a fé em Deus é necessariamente um pressuposto da fé nos milagres. Cf.
R. Bultmann, Gesù, Brescia 20086, 143.
66
  Cf. G. Pagano, I miracoli di Gesù, Milano 2008, 21. Ver ainda: W. Kasper, Gesù il Cristo, Brescia
201312, 129-130.
67
  Neste mesmo sentido, John Meier, insiste que profissionalmente um historiador, ou um físico, ou
um médico, apenas pode dizer, depois de um exame exaustivo dos dados, que não há possibilidade
de falar de uma causa razoável ou de uma explicação adequada para um determinado acontecimento
extraordinário. Esta afirmação é tão válida para crentes como para não crentes. Dizer que ‘Deus
curou milagrosamente este doente’ ou ‘Deus não curou milagrosamente este doente’ transcende o

134
De facto, devemos olhar para os milagres interrogando-nos acerca do seu
significado na economia do anúncio do Reino, ou seja, mais do que questio-
narmos se Jesus de Nazaré fez verdadeiramente milagres temos que procurar
o porquê de os ter feito68. «Jesus acompanha as suas palavras com numerosos
‘milagres, prodígios e sinais’ (At 2,22), os quais manifestam que o Reino está
presente n’Ele. Comprovam que Ele é o Messias anunciado» (CIC 547). Efetiva-
mente, o milagre procura sempre comunicar qualquer coisa, pondo-se ao ser-
viço da mensagem como um sinal forte do invisível e do inacessível. O mistério
está escondido, mas o sinal, que o indica, é visibilíssimo. O milagre propõe-se
assim não como uma prova, em sentido estreito, mas como um testemunho da
bondade de Deus e do seu amor salvífico e transformante nos ‘encontros’ com
a humanidade69. Deste modo, como afirmou René Latourelle, através dos mila-
gres de Jesus o futuro invade o presente70. Por outras palavras, podemos dizer
que em cada milagre o céu ‘toca’ a terra e revela-se o fundamento e o horizonte
permanente para tudo e para todos.

2.3. Uma definição alargada do conceito ‘milagre’


Podem acontecer milagres? Os milagres ocorrem de facto?71 O mais inte-
ressante é que, para o homem hodierno, a palavra ‘miraculoso’ parece confun-
dir-se com ‘maravilhoso’. Deste modo, miraculoso tem dois grandes contextos:
natureza e intervenção humana. Miraculoso é, desde logo, a ‘aparente’ regu-
laridade da natureza e a sua ordem. Mas também se usa a palavra ‘milagre’
para uma prestação humana num processo. Neste caso, fala-se dos milagres
da técnica, ou dos milagres da economia. Esta dupla prespetiva reforça uma
dupla problemática no campo dos milagres de Jesus: uma de tipo histórico (su-
gere um ceticismo em relação às narrações evangélicas procurando sublinhar,
por um lado, as incoerências e diferenças entre os quatro evangelhos; por ou-
tro, que todos os escritos são pós-pascais com todas as consequências que daí
decorrem); outra de tipo científico-natural (sugere um ceticismo em relação
ao próprio milagre sublinhando fatores essencialmente ‘psicológicos’, princi-

estritamente verificável pela investigação médica e histórica. Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, II, New
York 1994, 514-516.
68
 Cf. V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 78.
69
  Cf. G. Pagano, I miracoli di Gesù, Milano 2008, 27-28.
70
 Cf. R. Latourelle, Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 299.
71
  Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, II, New York 1994, 511.

135
palmente, ligados às doenças, reclamando o fascínio carismático que emanava
da pessoa de Jesus Cristo e da fé que suscitava nos seus ouvintes). Estas duas
problemáticas lançam-nos o desafio da definição do próprio conceito – o que é
afinal um milagre?72
Neste itinerário para encontrar uma definição, comecemos por dizer que
noção de milagre entre os gregos não tem o mesmo significado que para a teo-
logia cristã, segundo a qual, com este termo se faz referência a ações de Deus
que estão para além da ‘ordem natural’. A palavra latina miraculum (‘prodígio’,
‘portento’, ‘maravilha’) deriva do verbo mirari, que quer dizer ‘admirar-se’ e
‘maravilhar-se’. Trata-se da tradução do grego θαῦμα, proveniente do verbo
θαυμάζω que significa ‘admirar-se’. Numa ‘cosmovisão médica da época’ carac-
terizada mais pela crença no dinamismo do cosmos e na relação entre o macro
e o microcosmos, do que por uma conceção elaborada a partir de leis naturais,
tudo o que causa assombro e admiração entre os homens, é produto do exer-
cício de uma δύναμις especial que não é exclusiva dos deuses mas também é
partilhada por alguns homens73. Mesmos entre os homens que fazem ‘mila-
gres’ há diferenças entre os ‘milagres’ dos gregos e os de Jesus. Com efeito, os
milagres de Jesus não castigam, nem prejudicam directamente ninguém. Nis-
so contrasta claramente com os papiros mágicos gregos, onde se encontravam
feitiços para causar enfermidades ou insónia, impedir casamentos, silenciar
opositores, fomentar discórdias entre amigos ou entre o casal e desfazer-se de
inimigos74.
Diante toda esta realidade, Rahner insiste que só é possível sustentar um con-
ceito homogéneo ou unívoco com muitas reservas e muitas limitações. Por isso,
fala do milagre como um ‘sinal’, condicionado e dependente da natureza, que se
revela numa história da salvação e participa dessa mesma história da salvação.
Trata-se de ‘momentos de graça’, isto é, de ‘auto-comunicação divina’ inscrita já
na própria criação do mundo. Segundo a sua perspetiva, o milagre pressupõe um
homem disposto a deixar-se envolver na profundidade da sua própria existência,
numa abertura voluntária ao singularmente miracoloso presente na sua vida –

72
  Cf. W. Kasper, Gesù il Cristo, Brescia 201312, 115-120. De facto, as dificuldades começam logo na
definição objetiva de milagre, antes mesmo de passar à consideração das condições de possibilidade.
Cf. G. Pagano, I miracoli di Gesù, Milano 2008, 14.
73
 Cf. J.C. Alby, «Milagros de curación en la tradición médica tardo-antigua», TV 56 (2015) 221. Ver
ainda: X. Léon-Dufour, «Approches diverses du miracle», Paris 1977, 21; C. Doglio, Imparare Cris-
to, Cinisello Balsamo 2014, 88.
74
  Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, II, New York 1994, 548-549.

136
uma característica da sua natureza espiritual em função da qual pode fazer expe-
riência da proximidade de Deus75.
Segundo Jose González Faus, o milagre, em primeiro lugar, seria entendido
como uma garantia da existência de Deus omnipotente ou do caráter divino de
algumas das suas ações; em segundo lugar, seria sobretudo um sinal de como
é Deus ou da misericórdia vitoriosa de Deus. Deste modo, o milagre seria mais
um convite a descobrir os sinais da presença de Deus do que uma garantia –
apontando mais para o desígnio misericordioso de Deus do que para o seu
poder. Neste sentido, o milagre não é tanto uma segurança que se dá ao anúncio
do reino que chega mas, essencialmente, uma confirmação da sua chegada76.
Ou seja, o milagre não é um facto que serve para convencer a todos, mas sinais
que vêm em ajuda de quem está disposto a crer. Neste sentido, o milagre é a
revelação da superabundância do amor de Deus e da sua capacidade de fazer
sempre coisas novas77.
Para Gerhard Lohfink, o verdadeiro milagre, que é sempre realizado por
Deus, não exclui a ação do homem nem suspende as leis da natureza. Cada mi-
lagre é, ao mesmo tempo, uma realização do que o homem e a natureza podem
fazer. Neste caso, as leis da natureza não são infringidas mas elevadas a um nível
mais alto78. Deus atua, desta forma, na e através da causalidade das criaturas
como sua fonte e origem ontológica. Assim, a ação divina no mundo pode ser
descrita sem entrar em colisão com as leis da natureza, que são a manifestação da
fidelidade incessante de Deus à sua criação79.
Deste modo, alguns tipos de ‘milagre’ poderiam ser interpretados no senti-
do em que não violariam as regularidades da natureza, mas apenas o conheci-
mento que temos delas. Tais eventos, não explicados pelas leis atuais, poderiam
sê-lo no futuro através de leis mais amplas. No entanto, temos de colocar uma

75
  Cf. K. Rahner, Corso fondamental sulla fede, Milano 20056, 334-340.
76
  Cf. J. González-Faus, Clamor del Reino, Salamanca 1982, 30-31.
77
 Cf. V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 79-80.
78
  Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 175.
79
 Cf. A. Balsas, «Ciência Contemporânea e Causalidade», RPF 63 (2007) 651-653 e 656-658. O autor
alerta, nestas páginas, que o próprio indeterminismo quântico nos confronta com um certo princípio
de potencialidade que deve ser reintroduzida como categoria de causalidade na natureza. Em física,
química e biologia existe um crescente reconhecimento de que o comportamento dos sistemas, con-
siderados na sua totalidade, não pode ser explicado em termos das suas partes. Dentro dessas totali-
dades emergem novas propriedades e leis que não se encontram nas suas partes. Por isso, os sistemas
não podem ser tomados como a soma das suas partes componentes. Acresce ainda que na natureza há
mais do que simples combinações de matéria ou transformações de energia.

137
questão mais radical e essencial – Será que Deus pode e é capaz de atuar no
mundo à margem da causalidade das criaturas de forma direta e especial? Deus
age exercendo o poder criado quando as causas criadas são insuficientes para
produzir certos efeitos criados, especialmente quando tal é requerido para a
nossa salvação (por exemplo, operando a ressurreição). Deus ajuda as criaturas
a atingir efeitos que, de outro modo, estariam para além das suas capacidades.
Assim, para a teologia, os milagres são sempre ‘sinais’ através dos quais o mun-
do escatológico se torna ‘já’ presente no mundo natural, embora ‘ainda não’
de modo definitivo e completo – transformações escatológicas das condições
fundamentais da natureza80.
Por isso, Walter Kasper, diz que, segundo a interpretação tradicional, o mila-
gre é um acontecimento perceptível que transcende as possibilidades naturais e
vem produzido pela omnipotência divina infringindo, ou pelo menos iludindo,
a causalidade natural. Este conceito apologético contraria claramente o pensa-
mento cientifico-natural. Mesmo quando se fizesse uma tentativa de conciliação
teríamos sempre de considerar que os milagres são obra de Deus. Contudo, o
conceito de ‘leis naturais’ é estranho ao homem da antiguidade e o homem da Bí-
blia não considera a realidade como natureza mas essencialmente como criatura.
Por isso, o milagre orienta o seu olhar para o alto, para Deus. De facto, a proble-
mática bíblica dos milagres não apresenta um caráter cientifico-natural mas reli-
gioso e teológico – apontando a atenção à fé e à glorificação de Deus. Este aspeto
sublinha que o conceito de milagres só pode ser adequadamente aprofundado
quando se tem em conta o seu contexto religioso e a sua linguagem teológica81.
Na verdade, os milagres estão diretamente relacionados com a mensagem cristã
e, por consequência, com Cristo que é o seu autor82.
John Meier acaba por sublinhar três grandes dimensões quando procura defi-
nir genericamente o milagre como: a) um acontecimento insólito, surpreendente
ou extraordinário que, em linha de princípio é percetível por qualquer observador
interessado e imparcial; b) um acontecimento que não encontra nenhuma explica-
ção razoável nas capacidades humanas ou em outras forças conhecidas que exis-

80
 Cf. A. Balsas, «Ciência Contemporânea e Causalidade», RPF 63 (2007) 658-659.
81
  Cf. W. Kasper, Gesù il Cristo, Brescia 201312, 120-121. Na mesma linha, John Meier sublinha que
se deve evitar a descrição frequente de milagre como um acontecimento que transgride, infringe ou
contradiz as ‘leis da natureza’ a ou ‘lei natural’, uma vez que o conceito é ambíguo e teve conotações
nas diferentes filosofias da época greco-romana e, sobretudo, na filosofia moderna. Cf. J.P. Meier, A
marginal Jew, II, New York 1994, 512.
82
 Cf. R. Latourelle, Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 26.

138
tem no nosso mundo de tempo e espaço; c) um acontecimento que é o resultado
de uma ação especial de Deus, mediante a qual realiza algo que nenhum poder
humano pode fazer83.
Chegamos assim a duas tipologias de acontecimentos: por um lado, aconteci-
mentos extraordinários, altamente improváveis ou ainda desconhecidos, mas de
certo modo, ainda do âmbito da natureza; por outro lado, temos acontecimentos
fisicamente impossíveis e, por isso, radicalmente associados a uma ação criativa de
Deus. No primeiro caso, o ‘milagre’ teria a ver sobretudo com uma dimensão de
agradecimento e de reconhecimento diante da beleza da natureza, da gratuidade
das suas leis, da coincidência dos seus processos num acontecimento que se tor-
nou ‘favorável’. Um reconhecimento da ação permanente de Deus que age através
da natureza que criou e sustenta. No segundo caso, de acontecimentos ‘fisicamen-
te impossíveis’, estamos perante uma ação concreta de Deus, uma antecipação
escatológica da radicalidade do ‘reino’ e de uma ‘nova criação’ e de um ‘mundo
novo’ na futura transformação que se dará em Cristo – primícia do novo céu e da
nova terra (Ap 21,1)84.
De facto, neste contexto, os milagres são a legitimação da missão profética e
o sinal do início do tempo da salvação85. Os milagres são sinais do reino de Deus
que está a irromper. Um reino que não é apenas qualquer coisa de espiritual mas
que toca o homem inteiro, também na sua dimensão corpórea. Uma concretiza-
ção e, em certa medida, uma ‘antecipação’ da dimensão escatológica anunciada
por Jesus. Neste sentido, uma ‘prefiguração’ da nova criação – a esperança pri-
mordial do homem no totalmente Outro e no totalmente Novo, no advento de
um mundo novo e reconciliado. Os milagres falam ao homem desta esperança.
Assim, negar por princípio o milagre significa renunciar a esta esperança pri-
mordial do homem86.
Deste modo, os milagres de Jesus são o lugar privilegiado de toda e qualquer
teologia do milagre, são o arquétipo do verdadeiro milagre: os do AT, os da vida
dos santos e da Igreja universal. Na sua própria fenomenologia podemos encon-
trar alguns elementos que revelam uma certa estrutura do milagre:
a. O próprio Jesus impõe-se com o prestígio da sua pessoa e das sua obras
e, com isso, funda a confiança daqueles que dele se aproximam;

83
  Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, II, New York 1994, 512.
84
 Cf. G. Tanzella-Nitti, «Il miracolo e le scienze della natura», AT(R) 29 (2015) 441-446.
85
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 470.
86
  Cf. W. Kasper, Gesù il Cristo, Brescia 201312, 126-127.

139
b. Os milagres de Jesus são testemunhados quer pelos discípulos quer pela
multidão;
c. Aquele que está doente algumas vezes suplica claramente a cura outras
vezes fá-lo em silêncio, através de um gesto, um olhar ou um movimento;
d. Há um diálogo de oração e de confiança, seguido de uma cura realizada
sem ‘barulho’ e com autoridade;
e. Da parte de Jesus há um convite à conversão, à fé naquele que cura e
que anuncia;
f. Estabelece-se uma relação pessoal e, muitas vezes, transformante entre
Jesus e o miraculado;
g. A cura não se esgota no ‘corpo’ ou na ‘alma’, mas atinge a pessoa toda;
h. Por vezes, o milagre transforma o beneficiário num discípulo ou num
pregador do Reino87.

87
 Cf. R. Latourelle, Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 31-32. Jose González Faus
também sublinha algumas ‘características’ associadas aos relatos dos milagres, das quais destacamos:
o motivo de Jesus é a misericórdia; têm um contexto de fé, com múltiplas expressões; são típicas as
discussões associadas à legitimação do milagre; são usadas técnicas curativas como ‘tocar’, ‘barro’,
‘saliva’. Cf. J. González-Faus, Clamor del Reino, Salamanca 1982, 40-42.

140
Capítulo II

Os encontros de Jesus narrados nos evangelhos sinóticos

A esperança cristã, como referimos no primeiro capítulo, encontra as suas


raízes na grande tradição bíblica, enquadrada no contexto helenístico e judaico.
No entanto, o conteúdo e o fundamento da esperança cristã serão definidos pelas
ações e palavras de Jesus de Nazaré. A imagem de Deus, revelada pelos gestos e
pelo ensinamento de Jesus torna-se o fundamento de uma nova esperança que
passa pela libertação do mal e pela plena realização da vinda da salvação. Para
‘entrarmos’ nesse conteúdo da esperança precisamos de ‘entrar’ nos textos evan-
gélicos, concretamente nos encontros que Jesus teve, desde logo, nos sinóticos1.

1. Fundamento do itinerário e critérios de escolha dos encontros em Mc,


Mt e Lc

1.1. As razões de um itinerário que tem o terceiro evangelho por


referência
Indiquemos agora as razões principais que nos levaram a escolher o evange-
lho de Lc como referência para um itinerário dos encontros de Jesus nos sinóti-
cos2. Podíamos ter optado por Mc por ser o evangelho mais antigo, ou pelo de Mt

1
  Cf. R. Fabris, Attualità della speranza, Brescia 1984, 11. Para aprofundar o desenvolvimento da pro-
blemática sinótica aconselhamos: A. McNicol, «The Synoptic Problem: Have We Reached a Failure
of Nerve?», RestQ 54 (2012) 137-148; K. Jaroš, U. Victor, Die synoptische Tradition, Köln 2010; J.C.
Poirier, «The Roll, the Codex, the Wax Tablet and the Synoptic Problem», SNT 35 (2012) 3-30.
2
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: L.D. Chrupcala, Everyone Will
See the Salvation of God, Milan 2015; H. Gunkel, Der Heilige Geist bei Lukas, Tübingen 2015; S.
Bieberstein, Jesus und die Evangelien, Zurich 2015; X. Aletheia, «Localización de la comunidad de
Lucas», EstBíb 69 (2011) 289-300; M. Mullins, The Gospel of Luke, Dublin 2010, 15-99; W. Anderson,
The Gospel of Luke, Liguori 2012; J. Carroll, Luke, Louisville 2012; D. Jeffrey, Luke, Grand Rapids

141
por ser o evangelho mais catequético e litúrgico. É verdade que o terceiro evange-
lho não tem a estrutura pedagógica da composição de Mt, com a sua alternância
entre episódios narrativos e discursos catequéticos; muito menos, possui uma
estrutura simbólica, como o evangelho segundo Jo, que se divide claramente em
duas seções: o livro dos sinais e o livro da glória. No entanto, não se pode negar
que o terceiro evangelho manifesta o interesse do autor em oferecer um relato
da atividade de Jesus a partir de uma ótica global e não puramente analítica3.
Justamente por isso foi considerado, durante séculos, como um pintor. Distin-
gue-se por apresentar os acontecimentos na sua dimensão concreta e visível, não
citar ideias abstratas sem aclarar com um exemplo ou uma parábola. Devemos
destacar ainda, em relação a Mc e Mt, a sua ‘arte de composição’, o cuidado e o
‘domínio da língua’ e a ‘elegância do estilo’ – que valorizam este evangelho tanto
no plano literário como no plano teológico4. Deste modo, decidimos escolher
o evangelho de Lc, como referência para este itinerário dos encontros, por três
razões principais que iremos de seguida procurar explicar.

a) Lc é o mais ‘completo’ e o que apresenta mais encontros ‘inéditos’


Ainda que de forma sucinta, comecemos por fundamentar as nossas opções
referindo, desde logo, a data de composição dos sinóticos. De facto, os estudiosos
e os especialistas afirmam que Lc será posterior a Mc e mesmo a Mt. O primeiro
evangelho a ser escrito terá sido o de Mc, numa data anterior ao ano 70 – data
da destruição do Templo, já que Mc, ao contrário de Mt e Lc, não faz nenhuma
referência a este acontecimento5. Em seguida, cronologicamente falando, temos
o evangelho segundo Mt, ainda que no cânone apareça em primeiro lugar6, que
terá sido escrito depois da guerra judaica que culminou com a já referida destrui-

2012.
3
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 162-163.
4
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 22-23. O autor nesta mesma pági-
na deixa alguns exemplos que justificam a afirmação feita. Quando Lc fala do duplo mandamento do
amor, ilustra essa afirmação com a parábola do bom samaritano e com o diálogo de Jesus com Marta
e Maria (10,25-42). O mesmo acontece com os problemas teológicos mais difíceis como o nascimento
virginal de Jesus onde o evangelista procura iluminar o acontecimento com o diálogo entre Maria e
o anjo (1,26-38).
5
  Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 31.
6
  O evangelho de Mt foi sempre considerado o evangelho por excelência, o ‘primeiro evangelho’, não
só porque abre o cânone do NT, mas também porque, com Jo, foi o mais comentado pelos Padres. Cf.
G. Michelini (a cura di), Matteo, Cinisello Balsamo 2013, 9. Ainda que não seja o mais antigo, como
anteriormente se pensava, permanece como o primeiro na ordem: Mt, Mc, Lc e Jo.

142
ção do Templo de Jerusalém no ano 707. Por fim, temos o evangelho de Lc que
foi composto provavelmente entre o ano 80 e 858. A esta indicação corresponde
o facto do evangelho de Lc falar da destruição de Jerusalém e olhar para ela com
alguma distância temporal, considerando-a uma punição (21,20-24)9. Lc apre-
senta-se, assim, como o ‘último’ dos sinóticos, aquele que teve possibilidade de
contactar com mais fontes e, por isso, de fazer opções de releitura mais profun-
das, capazes de dar sentido maior ao evangelho10.
No entanto, importa sublinhar que não só cerca de trinta e cinco por cen-
to da narração de Lc provem de Mc, como também o terceiro evangelho segue
substancialmente a ordem de Mc: ministério de Jesus na Galileia, caminho para
Jerusalém, paixão, morte e ressurreição. Deste modo, o evangelho segundo Lc
terá recorrido ao evangelho de Mc e terá usado uma fonte comum também a Mt
- «Q». Para além disso introduziu uma série de narrações próprias que não têm
nenhum paralelo nem nos sinópticos nem em João. Deste ‘material próprio’ des-
tacamos, para além de muitas parábolas: a ‘ressurreição’ do filho único da viúva
de Naim (7,11-17); o encontro com Marta e Maria (10,38-42); a cura da mulher
curvada curada ao sábado (13,10-17); a cura do hidrópico (14,1-6); a purificação
dos dez leprosos (17,11-19); episódio de Zaqueu (19,1-10); o encontro com o ‘bom
ladrão’ (23,39-43); aparição aos discípulos de Emaús (24,13-35) e a aparição aos
onze (24,36-49)11.

7
  Ibidem, 31.
8
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 35.
9
 Cf. D. Rusam, «Il Vangelo di Luca», Brescia 2012, 243. Lc 21,20-24: «20Mas, quando virdes Jerusalém
sitiada por exércitos, ficai sabendo que a sua ruína está próxima. 21Então, os que estiverem na Judeia
fujam para os montes; os que estiverem dentro da cidade retirem-se; e os que estiverem no campo
não voltem para a cidade, 22pois esses dias serão de punição, a fim de se cumprir tudo quanto está
escrito.23Ai das que estiverem grávidas e das que estiverem a amamentar naqueles dias, porque haverá
uma terrível angústia no país e um castigo contra este povo. 24Serão passados a fio de espada, serão
levados cativos para todas as nações; e Jerusalém será calcada pelos gentios, até se completar o tempo
dos pagãos». BS.
10
  Sobre as fontes do evangelho lucano aconselhamos: F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I,
Genève 1991, 25-27; G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 14-16; D. Rusam, «Il Vangelo di Luca»,
Brescia 2012, 230-235.
11
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 11-13. Lc terá tido como fonte o evan-
gelho de Mc e é claro que ficou inevitavelmente condicionado por esta fonte. Todavia, não é simples-
mente uma narração como o evangelho de Mc: a este último falta, por exemplo, o início da vida de
Jesus e os anos que precedem a vida pública. Cf. G. Michelini (a cura di), Matteo, Cinisello Balsamo
2013, 11.

143
b) Lc apresenta-se mais ‘organizado’ em função do leitor
Desde logo o evangelho segundo Lc não é uma mera transmissão do kerigma
tradicional, mas uma verdadeira reflexão sobre esses dados do kerigma. Essa ca-
pacidade reflexiva do evangelista manifesta-se pela sua atitude crítica em relação
à tradição e também pela sua criatividade pessoal na apresentação da narrativa.
De facto, a estrutura da sua narração evangélica revela a sua mentalidade teoló-
gica12. De facto, Lc não só conservou a tradição sinótica de uma única viagem de
Jesus a Jerusalém, ao contrário de Jo que menciona três viagens à cidade, como
lhe conferiu uma transcendência particular. Ele coloca Jesus a ensinar-nos o ca-
minho para Jerusalém e desafia-nos a percorrer o mesmo caminho: «Jesus per-
corria cidades e aldeias, ensinando e caminhando para Jerusalém» (Lc 13,22).
Como afirma Joseph Fitzmyer, Jerusalém não é unicamente o lugar geográfico
da paixão, morte, ressurreição e glorificação de Jesus, mas é também o lugar do
cumprimento definitivo da salvação e o ponto de partida para a proclamação
kerigmática dos apóstolos13. Por isso, a ‘subida’ para Jerusalém faz progredir a
cristologia presente em Lc. As raízes desta cristologia de Jesus mergulham na
própria dimensão e intenção teológica: ela abre-nos ao mistério do ser ‘ser-Filho’
e revela-nos a escolha de ‘Deus seu Pai’14.
Contudo, uma das primeiras perguntas que devemos colocar é: se já existiam
duas biografias de Jesus (Mc e Mt) porque é que sente Lc necessidade de escre-
ver uma outra?15. Talvez o prólogo deste terceiro evangelho nos possa ajudar en-
trar nesta questão: «Visto que muitos empreenderam compor uma narração dos
factos que entre nós se consumaram, como no-los transmitiram os que desde o
princípio foram testemunhas oculares e se tornaram ‘Servidores da Palavra’, re-
solvi eu também, depois de tudo ter investigado cuidadosamente desde a origem,
expô-los a ti por escrito e pela sua ordem, caríssimo Teófilo, a fim de reconhece-
res a solidez da doutrina em que foste instruído» (Lc 1,1-4)16.

12
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 162.
13
  Ibidem, 164-165. «Oggi gli studiosi sono sempre più convinti che il vangelo e gli Atti degli Apostoli
siano da leggere insieme, come una sola opera pensata e scritta dall’evangelista come un’unità. La
continuità dell’opera lucana è narrativa ma pure teologica. Al centro del racconto di Luca-Atti v’è
Gerusalemme». Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 16. Ver ainda: D. Rusam,
«Il Vangelo di Luca», Brescia 2012, 225-228.
14
  Cf. J.-N. Aletti, Le Jésus de Luc, Paris 2010, 154-155.
15
  Ibidem, 19.
16
  Com efeito, no evangelho de Lc podemos pressupor quatro ‘fases’: os acontecimentos com a ex-
periência feita pelas testemunhas oculares; a tradição oral anunciada e transmitida pelos diferentes

144
Com efeito, Lc reconhece que outros já escreveram sobre os mesmos factos e re-
vela a sua intenção – para que Teófilo reconheça a solidez da doutrina em que tinha
sido instruído. Mas Mc e Mt não teriam mostrado suficientemente essa solidez dos
acontecimentos? O prefácio lucano não nos permite uma resposta clara e definiti-
va a esta pergunta. No entanto, ao escrever sobre os mesmos episódios, Lc indica,
implicitamente, uma certa insatisfação. Esta insatisfação não diz apenas respeito à
quantidade de acontecimentos relatados, mas também à maneira de lidar com as
fontes e de as orientar, em função de um projeto17. Devemos ainda referir que a ideia
de explicar os acontecimentos ‘transmitidos pelas testemunhas oculares’ (Lc 1,2) a
Teófilo (Lc 1,3b), sugere não só a ideia de passagem da primeira para a segunda ge-
ração de cristãos, mas também a passagem da ‘tradição oral’ para a ‘tradição escrita’.
Mas a palavra ‘Teófilo’ pode ajudar-nos a compreender melhor a preocupação
de Lc com o Leitor. A palavra ‘Teófilo’ [Θεόφιλος – Lc 1,3b] é composta pela jun-
ção das palavras Θεός (‘Deus’) e φίλος (‘amigo’)18, isto é, ‘amigo de Deus’. A dis-
cussão é se este ‘Teófilo’ é uma pessoa concreta e individual ou se é uma pessoa
coletiva abstrata que, por isso, pode ser todo aquele que se ‘considera’ amigo de
Deus, a começar por qualquer leitor. Contudo, François Bovon diz que este Teófi-
lo é uma personagem histórica e não uma figura abstrata. O evangelista, continua
o mesmo autor, espera de Teófilo que difunda o seu livro19. Em todo o caso, Lc
não deseja ser autor de um escrito privado, por isso, se deve supor que esta pessoa
concreta, de nome Teófilo, tem um papel de representar todos os destinatários do
evangelho de Lc (e dos Atos dos Apóstolos)20. Tudo isto reforça a forte relação de
Lc com o leitor do seu evangelho.

c) Lc revela uma conceção histórico-salvífica aberta ao universalismo


Lc esforça-se por determinar as coordenadas históricas dos seus escritos. Este
aspeto revela-se ainda mais determinante do que a sua perspetiva geográfica.

‘ministros da palavra’; os diferentes escritos existentes correspondendo a diferentes tradições; e, por


fim, a própria redação de Lc que, depois de cuidadosa investigação, procura de forma organizada
manifestar a solidez da mensagem de Jesus. Cf. E. Ebner, «La questione sinottica», Brescia 2012, 82.
17
  Cf. J.-N. Aletti, Le Jésus de Luc, Paris 2010, 21.
18
  Cf. Cf. C. Rusconi, «Θεόφιλος», in DGNT, São Paulo 2003, 225.
19
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 28. De igual forma Gérard Rossé
fala de uma personagem concreta, que já teria recebido a catequese batismal, a quem Lc quer mostrar
não tanto a ‘boa notícia’ mas a solidez dos ensinamentos que este tinha recebido. Cf. G. Rossé, Il
Vangelo di Luca, Roma 20125, 36.
20
 Cf. D. Rusam, «Il Vangelo di Luca», Brescia 2012, 240.

145
No entanto, é importante recordar que a historicidade do relato lucano não é o
mesmo que a perspetiva histórica da obra21. Ainda que haja a preocupação exe-
gética de determinar a historicidade da obra, os acontecimentos históricos, que
revelam várias incongruências, não eram o objectivo prioritário da proclamação
kerigmática. De facto, na perspetiva lucana não é a ‘história’ que é vista como
‘salvação’, mas antes que a ‘salvação’ entra na história e configura-a a partir de
dentro. Por isso, o interesse de Lc centra-se nessa ‘invasão’ da história por parte
da actividade salvífica de Deus que aconteceu com o nascimento de Jesus de Na-
zaré22. Aquele que será indicado como o Filho do Altíssimo, o Santo, o Senhor e
Rei é, ao mesmo tempo, o Messias Salvador que realiza as promessas e a chegada
da salvação elencadas no cântico colocado na boca de Zacarias –Benedictus (Lc
1,68-79). Esta dimensão ‘programática’ é anunciada pelo anjo aos pastores acerca
do nascimento de Jesus em Belém: «Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um
Salvador, que é o Messias Senhor» (Lc 2,11)23.
Esta conceção histórico-salvífica de Lc concretiza-se numa abertura ao uni-
versalismo. Ou seja, a salvação de Deus, ao entrar na história humana, cria um
movimento dinâmico que ultrapassa as velhas fronteiras do único destinatário
da eleição divina. Esta mudança de perspetiva implica uma conceção nova do
significado de Israel e uma releitura das atitudes com os diferentes níveis da so-
ciedade humana. Tanto Mc como Mt possuem igualmente uma certa dimensão
universalista da salvação, mas não de forma tão clara e tão abundante quanto
em Lc. Em toda esta problemática do universalismo em Lc, o que fica claro é
que a salvação não só se difunde para além dos confins do mundo judaico, como
exige uma autêntica reconstituição da conceção de Israel. É verdade que em Lc

21
  Até porque é difícil separar detalhadamente e com precisão nos evangelhos os dados históricos
de Jesus terreno e os dados que decorrem da escrita pós-pascal feita à luz da experiência pascal. Na
verdade, Jesus não deixou uma recolha de orações, nem nenhum escrito, muito menos um diário. Cf.
E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 422.
22
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 171-172 e 179. François
Bovon dirá: «Luc veut convaincre plutôt qu’informer, son ouvrage ressemble à une monographie his-
torique et se rapproche de l’historiographie juive, qui se meut certes sur les traces des auteurs vétéro-
testamentaires, mais se sert abondamment de l’historiographie hellénistique». F. Bovon, L’Évangile
selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 24. Matteo Crimella também dirá a este propósito: «Luca
indubbiamente è uno storico, ovverosia un narrator che racconta una serie di vicende ancorate nella
trama del tempo (…). Il suo interesse non è tuttavia solo storiografico, ma pure teologico, in quanto
racconta una storia nella quale interviene Dio». Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo
2015, 25.
23
 Cf. V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 206. Ver ainda: G. Lohfink, Gesù
come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 192.

146
o termo Israel não perdeu a sua referência ao povo judeu; contudo, agora alar-
ga-se a outros setores: judeus ‘arrependidos’ ou ‘convertidos’ (ou seja, cristãos),
e judeus obstinados nas suas convições. O termo relaciona-se directamente com
os judeus e não se alarga aos pagãos. Será apenas através dos judeus que aceita-
ram a mensagem do cristianismo que os pagãos se associam como participantes
dessa promessa feita realidade. Por isso, não se trata propriamente de um novo
Israel, mas de um Israel reconstituído24. Porém este universalismo não se limita à
relação entre judeus e não judeus, mas percebe-se bastante bem na descrição dos
comportamentos de Jesus com os diferentes representantes de todas as classes
sociais: samaritanos, publicanos, pecadores, mulheres, pobres. Muitos destes, no
tempo de Jesus, eram completamente marginalizados pela sociedade25.
Neste sentido, podemos dizer que a este universalismo corresponde, desde
logo, a genelogia lucana de Jesus que termina em Adão (3,23-38) e não em Abraão,
como em Mt (1,1-16). Por isso, existem bons motivos para afirmar que o evangelho
de Lc se dirigia a uma comunidade pagã-cristã26. Com efeito, este universalismo
atravessa toda a obra e está presente desde a intenção inicial do autor do terceiro
evangelho de expor por escrito a narração dos factos (Lc 1,1-4). Uma intenção que
se relaciona, indirectamente, com a explicação sistemática das Escrituras pelo res-
suscitado, como surge no fim deste evangelho, no episódio dos dois discípulos de
Emaús (Lc 24,27.32)27. De facto, encontramos uma explicação e uma (re)leitura de
todo o percurso, de todo o itinerário e de toda a revelação. No fim explicam-se as
Escrituras no que dizia respeito ao próprio Jesus, a começar por Moisés e passando
por todos os profetas. Deste modo, Jesus ressuscitado revela-se como sendo a con-
cretização da própria história da salvação de Deus na história de todos os homens.

1.2. Critérios que presidiram à escolha de 12 encontros


A existência dos três evangelhos sinóticos é um fenómeno literário singular.
Uma unidade que exige uma abordagem distinta do quarto evangelho. A estru-

24
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 187 e 191.
25
 François Bovon reforça esta ideia afirmando que quer a preocupação pelas mulheres, pelas crian-
ças, por todos os abandonados; quer a reflexão sobre a pobreza e a debilidade, confirmam uma atitude
totalmente nova no mundo de então. Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991,
30. Este evangelista centra-se no homem enquanto homem e homem amado por Deus – sem fazer
aceção ou discriminação de pessoas. Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 12-13.
26
 Cf. D. Rusam, «Il Vangelo di Luca», Brescia 2012, 241.
27
  Cf. J.-N. Aletti, Le Jésus de Luc, Paris 2010, 28.

147
tura, o enquadramento e a linguagem destes dois ‘grupos’ reclama uma distinção
entre encontros de Jesus nos sinóticos e os encontros de Jesus no quarto evange-
lho. Nesta fase iremos abordar os encontros apenas nos sinóticos. Neste contexto,
faz sentido colocarmos, desde logo, uma pergunta: Como é possível existirem
estes três evangelhos com semelhanças tão notáveis, mas que não são uma mera
cópia uns dos outros?28 Efetivamente, grande parte dos textos sinóticos, pode ser
colocada em colunas paralelas, de modo a perceber as grandes semelhanças e as
grandes diferenças29.
Os critérios que iremos usar para apresentar os encontros de Jesus nos sinó-
ticos são: (1) procurar escolher os encontros mais emblemáticos e capazes de
nos colocar diante da grande questão da esperança que Jesus oferece a cada um;
(2) procurar um leque alargado de encontros para que possamos ter uma ideia
mais geral desses dinamismos nos sinóticos; (3) procurar não repetir os encon-
tros semelhantes, por exemplo, falar apenas de um episódio de ‘cegueira’ ou de
um episódio de ‘lepra’; (4) algumas vezes a opção recaiu sobre textos que não
tinham nenhum paralelo, podendo assim colher alguma especificidade ou par-
ticularidade que configura o sentido fundamental da mensagem geral dos pró-
prios sinóticos; (5) procurar juntar encontros ou fazer referência aos paralelos
para facilitar a compreensão e aprofundar a análise; (6) procurar fazer emergir
o trabalho de análise ‘exegética’, feito previamente, que permite trabalhar com
maior segurança quer com o texto original em grego, quer com a tradução em
português; (7) por fim, elegemos o itinerário de Lc como a referência, respei-
tando a ordem por que cada encontro se encontra no próprio evangelho - deste
modo, o itinerário começa em Jesus que chama os seus discípulos, passa pelos
vários encontros de cura, conversão e reanimação, sem deixar de assinalar os
encontros no calvário, e termina com os encontros do ressuscitado.

28
  Cf. R. Aguirre Monasterio , «Introduccion a los Evangelios sinópticos», Estella 1992, 16. Recor-
damos que a palavra ‘sinótico’ vem do grego σύνοψις (συν-‘junto’ + οψις-‘ver’) - que significa essen-
cialmente ‘visão geral’ ou ‘visão global’. Cf. F. Montanari, «σύνοψις», in Vocabolario della Lingua
Greca, Torino 20133, 2305. Trata-se de uma palavra que está ligado ao verbo συνοράω e que pode sig-
nificar: na ativa - ‘compreender’ e ‘ver’; e na passiva - ‘ser visto junto’. Cf. F. Montanari, «συνοράω»,
in Vocabolario della Lingua Greca, Torino 20133, 2304.
29
  Cf. E. Ebner, «La questione sinottica», Brescia 2012, 81 e 83-88.

148
2. O ‘conteúdo’ da esperança a partir de alguns encontros de Jesus nos
sinóticos

2.1. Jesus encontra-se com os que vai chamar para discípulos30


Os encontros de chamamento dos primeiros discípulos são determinantes
para conhecer Jesus e o seu ‘evangelho’. O texto do chamamento dos primeiros
discípulos – Simão (Pedro), André, Tiago e João31, que aqui analisamos de perto
- Mc 1,16-2032, está presente também em Mt 4,18-22 e Lc 5,1-11. Ainda que com
algumas pequenas distinções, Mc e Mt têm muita proximidade, já Lc apresenta
um texto um pouco mais elaborado associando o chamamento dos primeiros
discípulos ao episódio da pesca milagrosa. Já o evangelho segundo João se dis-
tancia dos sinóticos quer na geografia, quer na sequência, quer no conteúdo (Jo 1,
35-51). Aqui seguimos a versão de Mc por ser considerada a mais antiga. Vários
exegetas inclinam-se para a tese de que esta redação seja anterior ao ano 70 e de-
pois do incêndio de Roma (no ano 64) que levará à perseguição dos cristãos por
Nero33. Apesar da complexidade de muitas questões relacionadas com a redação
dos evangelhos, segundo a teoria das duas fontes, este evangelho Mc, que aqui
seguimos, teria estado na origem dos outros dois sinópticos – Mt e Lc34.
O contexto deste chamamento é-nos dado pelos versículos anteriores: «De-
pois de João ter sido preso, Jesus foi para a Galileia, e proclamava o Evangelho de
Deus, dizendo: ‘Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrepen-
dei-vos e acreditai no Evangelho’» (Mc 1,14-15). Deste modo, o leitor compreende

30
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: M. Mullins, The Gospel of Luke,
Dublin 2010, 183-186; F. Bassin, L’évangile selon Luc, I, Vaux-sur-Seine 2006, 209-212; R. Calhoun,
«The Power of the Call», EC 6 (2015) 67-88.
31
  Três, deste grupo dos quatro primeiros discípulos, acompanharão Jesus em alguns momentos es-
peciais como na cura da filha de Jairo (Mc 5,37; Lc 8,51) e no episódio da Transfiguração (Mc 9,2; Mt
17,1; Lc 9,28). Cf. C.S. Mann, Mark, New York 1986, 209.
32
  O texto que analisamos é unanimemente delimitado pelos exegetas. John Donahue e Daniel Har-
rington ou Joel Marcus, intitularam como «The Call of the First Disciples». Cf. J. Donahue, D. Har-
rington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 73. Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 179.
Giacomo Perego, na mesma linha, intitula «Gesù chiama i primi discepoli». Cf. G. Perego (a cura di),
Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 54. Xabier Pikaza intitulou «Primeros discípulos: os
haré pescadores de hombres». Cf. X. Pikaza, Para vivir el evangelio. Lectura de Marcos, Estella 1995,
37.
33
  Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 31.
34
  «This episode is another Lucan transposition, for it is influenced by Mark 1:16-20, even though the
Lucan account is largely independent os it». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New
York 1981, 560.

149
que, em Jesus, o Reino de Deus está próximo. É ele quem anuncia porque agora
o tempo está completo, como nos recorda o autor da carta aos Hebreus: «Muitas
vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por
meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do
Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o
mundo» (Heb 1,1-2). Assim, temos Jesus a anunciar a boa nova – completou-se o
tempo e o Reino de Deus está próximo. Deste modo, Jesus chama alguns para o
acompanharem nessa sua missão35.
Xabier Pikaza fala de Mc como o evangelho da vocação cristã, por isso, pa-
rece-lhe lógico que, no início do mesmo, como prólogo de tudo o que se segue,
se encontre uma narrativa vocacional – o chamamento de Jesus36. De Jesus ‘cha-
mado’ pelo Pai (1,9-11), conduzido pelo espírito (1,12-13), chegamos agora ao Je-
sus que chama outros a segui-l’O (1,16-20). O sujeito que chama é Jesus, é sua
a iniciativa e a sua proposta não aponta para uma série de conteúdos mas para
uma ideia de movimento – ‘caminhando’, ‘viu’, ‘disse’, ‘chamou’. Segundo alguns
autores, a relação entre Jesus e os discípulos tem alguma semelhança com Eliseu
(2Re 6,1; 9,1); a casa é, para ambos, um lugar privilegiado de ensino e cura (2Re
4,38); e ele, como Eliseu, preocupa-se pela alimentação daqueles que o seguem
(2Re 4,42-44)37.
Neste chamar de Jesus há, desde logo a particularidade, de ele procurar os
seus discípulos no seu próprio ambiente, no meio das suas ocupações e trabalhos.
Não fica no deserto como João Baptista38, não se isola, nem fica à espera que os
‘discípulos’ o procurem como Mestre, como acontecia na relação entre os discí-

35
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Marc, XVI, Pendé 2014, 53.
36
  Cf. X. Pikaza, Para vivir el evangelio. Lectura de Marcos, Estella 1995, 21.
37
  Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 54-55. Há ainda quem
defenda essa proximidade na própria vocação de Eliseu: «19Elias partiu dali e encontrou Eliseu, filho
de Chafat, que andava a lavrar com doze juntas de bois diante dele; ele próprio conduzia a duodécima
junta. Elias aproximou-se e lançou o seu manto sobre ele. 20Eliseu deixou logo os seus bois, correu
atrás de Elias e disse-lhe: ‘Deixa-me ir beijar meu pai e minha mãe, que depois te seguirei’. Elias disse:
‘Vai, mas volta, pois sabes o que te fiz’.21Eliseu, deixando Elias, tomou uma junta de bois e imolou-os.
Com a lenha do arado cozeu as carnes, dando-as depois a comer à sua gente. Em seguida, pôs-se a ca-
minho e seguiu Elias para o servir». BS. Cf. K. Berger, Commentario al Nuovo Testamento, I, Brescia
2014, 170-171. Sobre o paralelismo entre as duas passagens, ver ainda: R. Stein, Mark, Michigan 2008,
76; J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 183.
38
  Mc 1,4-5: «4João Baptista apareceu no deserto, a pregar um baptismo de arrependimento para a
remissão dos pecados. 5Saíam ao seu encontro todos os da província da Judeia e todos os habitantes de
Jerusalém e eram baptizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados». BS.

150
pulos e os Rabinos39. Jesus não começa a sua missão subindo a Jerusalém – não
procura Deus na sacralidade do templo, não dedica a sua vida à perfeição ritual
dos sacrifícios, nem transforma o culto que os sacerdotes realizam no grande
santuário nacional. Jesus nem sequer vai procurar discípulos à escola onde en-
sinam os escribas, em grande parte de tendência farisaica. Estes queriam cul-
tivar a sacralidade do templo (dos sacerdotes) no seu próprio ambiente, na sua
própria casa. Por isso, preocupam-se com a lei do sábado, com a pureza ritual
das pessoas e dos alimentos, com a separação entre o puro e o impuro. Têm a
intenção de construir um povo a partir de uma lei nacional, iniciada na Escritura
e concretizada nos costumes, nas normas e nas tradições dos ‘anciãos’. Jesus, pelo
contrário, liga o chamamento e a presença de Deus à fé dos homens, entendida
como conversão ou transformação humana. Neste sentido, evita qualquer tipo de
elitismo: nem procura os fortes nem os sãos (para fazer a sua guerra santa), nem
os sábios nem os puros (para construir com eles o templo da lei). Procura todos e,
de modo especial, encontra-se com os pobres, os marginais e os doentes40.
É particularmente importante sublinhar que esta perícopa de Mc, embora
omita alguns detalhes geográficos indicados por Mt 4,1341, coloque o início da
vida pública de Jesus na Galileia – sua pátria, em oposição ao evangelista João,
que antepõe uns meses de atividade na Judeia e Jerusalém e uma viagem através
da Samaria (Jo 1,29-4,43). A Galileia foi, desde a época da conquista assíria até à
dos Macabeus, uma zona habitada predominantemente por uma população pagã
e com muitas influências culturais, sendo a cultura helenística de especial impor-
tância como testemunham os nomes de origem grega (André e Filipe) entre os
discípulos de Jesus. Trata-se ainda de uma região periférica e distante do centro
religioso do judaísmo – Jerusalém. Uma distância geográfica agravada, desde a
morte de Herodes – o Grande (4 a.C.), com a separação política com a Judeia.
Todavia, economicamente a Galileia era a parte mais rica e fértil da Palestina42.
Reforçando a ideia de ‘periferia’ e de ‘quotidianeidade’, sublinhamos a ideia de

39
  Há aqui uma diferença interessante com o contexto da época em que é o discípulo que segue o
rabino. Uma ideia de descontinuidade em relação ao seu tempo. A diferença aqui é muito evidente, ao
contrário de Jesus, um rabino não chama o seu discípulo, mas é chamado por este. Cf. E. Schweizer,
Il vangelo secondo Marco, Brescia 1971, 54.
40
  Cf. X. Pikaza, Para vivir el evangelio. Lectura de Marcos, Estella 1995, 31-32. Ver ainda: E. Sch-
weizer, Il vangelo secondo Marco, Brescia 1971, 53; Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco,
Cinisello Balsamo 2011, 54.
41
  Mt 4,13: «Depois [Jesus], abandonando Nazaré, foi habitar em Cafarnaúm, cidade situada à beira-
-mar, na região de Zabulão e Neftali». BS.
42
  Cf. J. Schmid, El evangelio según San Marcos, Barcelona 1967, 43.46-47.

151
que o evangelho segundo Mc começa na Galileia e terminará também aí – por-
que, na manhã de páscoa, a mensagem do ‘anjo’ no sepulcro diz que os discípulos
devem ir ao encontro do ressuscitado na Galileia43. É na Galileia que Jesus chama
Simão e André, Tiago e João.
Nesta passagem, Marcos não pretende transmitir-nos uma descrição de or-
dem histórica e, menos ainda, totalmente completa dos acontecimentos44. Todos
os aspetos particulares relativos ao tempo, ao lugar concreto, às circunstâncias
precisas, são negligenciadas. Sabemos apenas que Simão e André são pessoas
modestas45. Pelo contrário, João e Tiago, fariam parte de uma família com mais
posses, uma vez que trabalhavam para o pai e este tinha um barco e assalaria-
dos46. Há quem veja uma ligação entre esta discrepância económica e o pedido
que Tiago e João irão fazer ao Senhor de se sentarem um à sua direita e outro à
sua esquerda, na vida eterna (Mc 10,35-37)47. Assinalamos que Mc é o único que
refere os ‘assalariados’ de Zebedeu, pai de Tiago e João48. Por outro lado, parece
que os dois episódios aconteceram no mesmo dia, mas na verdade podem ser
encontros que se deram em horas e, mesmo dias, diferentes49.
Neste texto de Mc temos dois paralelos internos que envolvem o chamamento
de Simão e André (1, 16-18) e o chamamento de Tiago e João (1,19-20)50. Aqui,
o chamamento de Simão em primeiro lugar pressupõe já o primado de Simão
(Pedro) no grupo dos doze, que será indicado e reforçado ao longo do evangelho

43
  Mc 16,5-7: «5Entrando no sepulcro, viram um jovem sentado à direita, vestido com uma túnica
branca, e ficaram assustadas. 6Ele disse-lhes: ‘Não vos assusteis! Buscais a Jesus de Nazaré, o crucifi-
cado? Ressuscitou; não está aqui. Vede o lugar onde o tinham depositado. 7Ide, pois, e dizei aos seus
discípulos e a Pedro: ‘Ele precede-vos a caminho da Galileia; lá o vereis, como vos tinha dito’». BS.
44
  Cf. J. Schmid, El evangelio según San Marcos, Barcelona 1967, 60.
45
 Cf. E. Schweizer, Il vangelo secondo Marco, Brescia 1971, 53.
46
  Cf. R. Stein, Mark, Michigan 2008, 80. «James and John are portrayed as being at a higher eco-
nomic level than Peter and Andrew». J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota
2002, 76.
47
  Cf. J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 76. Mc 10,35-37: «35Tiago
e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se dele e disseram: ‘Mestre, queremos que nos faças o que te
pedimos’. 36Disse-lhes: ‘Que quereis que vos faça?’ 37Eles disseram: ‘Concede-nos que, na tua glória,
nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda’. BS.
48
  Cf. C.S. Mann, Mark, New York 1986, 210. Ver ainda: J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of
Mark, Minnesota 2002, 76.
49
 Cf. E. Schweizer, Il vangelo secondo Marco, Brescia 1971, 53.
50
  Cf. R. Stein, Mark, Michigan 2008, 76. Ver ainda: S. Briglia, «Vangelo secondo san Marco», Roma
2005, 569. Refira-se ainda que Lc não cita o nome de de André, mas que a utilização dos verbos no
plural (Lc 5,4.6.7 e 9) sugere que pelo menos outra pessoa estaria com Pedro no barco. Cf. J. Fitzmyer,
The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 566.

152
segundo Mc51. Do ponto de vista histórico não foi o primeiro encontro de Jesus
com estes quatro pescadores (quatro é um sinal de totalidade). Pelo evangelho de
João ficamos a saber que Jesus os tinha conhecido quando ainda eram discípulos
de João Batista (Jo 1,35-51)52. No entanto, o que Marcos narra é o chamamento
definitivo a ser discípulo em sentido pleno. Este facto, permite-nos conhecer o
processo de quem entra neste ‘seguimento’ de Jesus. Primeiro Jesus olha estes
homens e chama-os a si. Em segundo lugar, trata-se de um ir atrás de Jesus - «dis-
se-lhes Jesus: ‘Vinde atrás de mim’53» (v.17a). Um ir atrás que não é só literal, dos
discípulos que seguem atrás do Mestre, mas sobretudo espiritual, dos discípulos
que entram em comunhão de vida com o Mestre. Em terceiro lugar, o objetivo do
discipulado é expresso na frase – farei de vós pescadores de homens. Trata-se de
deixar a profissão (pescador) e ir com Jesus ‘pescar’ homens para Deus54.
Qual o contexto e o sentido desta ‘estranha promessa’? Elencamos quadro
enquadramentos que nos podem ajudar. Comecemos pelo ambiente Greco-Ro-
mano onde ser ‘pescador de homens’ é habitualmente entendido como ser um
professor. Também encontramos imagens parecidas nos círculos judaicos. A fa-
vor desta interpretação, Mc insiste na ideia de Jesus que ensina nas sinagogas55.

51
  Cf. S. Briglia, «Vangelo secondo san Marco», Roma 2005, 569.
52
  Cf. C.S. Mann, Mark, New York 1986, 208. Jo 1,35-42: «35No dia seguinte, João encontrava-se de
novo ali com dois dos seus discípulos. 36Então, pondo o olhar em Jesus, que passava, disse: ‘Eis o Cor-
deiro de Deus!’ 37Ouvindo-o falar desta maneira, os dois discípulos seguiram Jesus.38Jesus voltou-se
e, notando que eles o seguiam, perguntou-lhes: ‘Que pretendeis?’ Eles disseram-lhe: ‘Rabi - que quer
dizer Mestre - onde moras?’ 39Ele respondeu-lhes: ‘Vinde e vereis’. Foram, pois, e viram onde morava e
ficaram com Ele nesse dia. Eram as quatro da tarde. 40André, o irmão de Simão Pedro, era um dos dois
que ouviram João e seguiram Jesus. 41Encontrou primeiro o seu irmão Simão, e disse-lhe: ‘Encontrá-
mos o Messias!’ - que quer dizer Cristo. 42E levou-o até Jesus. Fixando nele o olhar, Jesus disse-lhe: ‘Tu
és Simão, o filho de João. Hás-de chamar-te Cefas’ - que significa Pedra». BS.
53
  A tradução portuguesa (BS) diz ‘comigo’, mas o sentido específico de ὀπίσω é ‘seguir atrás de’. Por isso,
sugerimos ‘atrás’. Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 55. Opção
que repetimos no fim do v.20. Robert Stein sugere essa mesma tradução usando a expressão inglesa ‘come
after me’ com o sentido de ‘seguir alguém’. Os seus seguidores não o seguiram nos estudos da lei mas
seguiram-n’O. Assim, esses seguidores serão chamados, mais tarde, ‘cristãos’ (At 11,26) porque não se-
guiram um particular ensinamento, teoria ou ética, mas uma pessoa – Jesus Cristo, filho de Deus (Mc 1,1).
Cf. R. Stein, Mark, Michigan 2008, 77-78. Ver ainda: W. Lane, The Gospel According to Mark, Michigan
1974, 66-67; C.S. Mann, Mark, New York 1986, 209; J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 180.
54
  Cf. R. Schnackenburg, El evangelo según san Marcos, I, Barcelona 1980, 42-43. Aqui a expressão
compreende-se no sentido dos discípulos passarem a ser testemunhas da proclamação da proximida-
de do reino e da necessidade para o homem de voltar a Deus através do arrependimento total. Cf. W.
Lane, The Gospel According to Mark, Michigan 1974, 68.
55
  Por ex. Mc 1,21-22: «21Entraram em Cafarnaúm. Chegado o sábado, veio à sinagoga e começou a
ensinar. 22E maravilhavam-se com o seu ensinamento, pois os ensinava como quem tem autoridade e
não como os doutores da Lei». BS. 

153
No ambiente da literatura de Qumran os membros da comunidade alertam para
as ‘três redes de Satan’ e, neste contexto, o ‘pescador de homens’ seria aquele que
retirava o ser humano das ‘redes de Satan’ e o transferia em segurança para as
redes de Deus. A favor desta interpretação, Mc descreve o poder dos exorcis-
mos56. No ambiente dos profetas no AT, a metáfora comum de ‘pescar’ ocorre
em contextos que têm a ver com a luta pela terra prometida57. Aqui o sentido
poderia ser acolhido como Jesus que convida os seus discípulos para participar
na luta escatológica do bem sobre o mal. A suportar esta interpretação, estariam
as expressões ‘seguimento’ e ‘atrás de mim’ na relação entre os discípulos e Jesus.
Por último, no ambiente do NT podemos considerar que o próprio chamamento
dos discípulos pode ser construído como ‘pescadores de homens’ e pode ser en-
tendido como um paradigma daquilo que os discípulos farão mais tarde. Diante
destas quatro interpretações não precisamos de escolher uma em detrimento da
outra. Muito provavelmente a imagem de ‘ser pescador de homens’ inclui uma ri-
queza de sentido que passa pela futura pregação missionária, pelo futuro ensinar,
pelos futuros exorcismos. Tudo o que seja compreendido como a participação na
escatologia de Deus, na luta contra o mal e na redenção de Israel contra a escra-
vidão do Egito58.
Neste itinerário que estamos a percorrer para procurar compreender a pro-
fundidade e o sentido da expressão – ‘farei de vós pescadores de homens’ [ἁλιεῖς
ἀνθρώπων], como surge em Mc 1,17b e em Mt 4,19b), precisamos de referir que
em Lc 5,10b se encontra uma expressão um pouco diferente: ἀνθρώπους ἔσῃ
ζωγρῶν. Mantém-se a palavra ἄνθρωπος com o sentido de ‘pessoa’, sem diferença
de género59; porém já não se usa a palavra ἁλιεῖς, que tem a ver com ‘pescar’, mas
ζωγρῶν, que tem mais a ver com ‘capturar’. Na verdade, o verbo ζωγρέω significa
essencialmente ‘capturar vivo’. Ou seja, à letra, a expressão de Lc deveria ser tra-

56
  Por ex. Mc 1,25-27: «25Jesus repreendeu-o, dizendo: ‘Cala-te e sai desse homem’.26Então, o espírito
maligno, depois de o sacudir com força, saiu dele dando um grande grito. 27Tão assombrados ficaram
que perguntavam uns aos outros: ‘Que é isto? Eis um novo ensinamento, e feito com tal autoridade que
até manda aos espíritos malignos e eles obedecem-lhe!’». BS.
57
  Por ex. Jer 16,14-16: «14Dias virão - oráculo do Senhor - em que não mais se dirá: ‘Pela vida do
Senhor, que tirou do Egipto os filhos de Israel!’ 15mas sim: ‘Pela vida do Senhor, que fez regressar os
filhos de Israel do Norte e de todos os países por onde os tinha dispersado.’ Vou fazê-los regressar à
terra que dei a seus pais. 16Vou mandar pescadores em grande número que os hão-de pescar - oráculo
do Senhor. Depois disto, enviarei numerosos caçadores, que os hão-de caçar pelas montanhas e coli-
nas e nas cavidades dos rochedos». BS. Ver outros exemplos: Am 4,2; Hab 1,14-17; Ez 29,4-5.
58
  Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 184-185. Ver ainda: J. Donahue, D. Harrington, The
Gospel of Mark, Minnesota 2002, 74.
59
  Cf. G. Michelini (a cura di), Matteo, Cinisello Balsamo 2013, 88.

154
duzida como ‘apanhai seres humanos vivos’60. Nesta expressão valoriza-se, assim,
não apenas o sentido das ‘pessoas’ mas também a ideia de as ‘retirar com vida’.
Podemos concluir, por tudo isto, que ser ‘pescador de homens’ tenha a ver, sobre-
tudo, com o libertar a humanidade de tudo que é mal. Ou seja, retirar os homens
do ‘mar’ que tem, habitualmente, na Sagrada Escritura, um sentido negativo por
estar associado ao lugar dos perigos e da morte61. Trata-se de ‘tirar o homem’,
ainda vivo, para lhe dar mais vida. Para compreendermos a força desta metáfora,
bastaria pensarmos na situação daquela pessoa que se estivesse a afogar no mar
(ou num lago, ou num rio) e alguém a fosse salvar, trazendo-a para a ‘terra firme’.
Aquele que se estivesse a ‘afogar’ passava a compreender bem o significado de
ter sido ‘salvo’ e quem o ajudou passaria a compreender o que significa ‘salvar’
alguém. Eis a profundidade da expressão do convite de Jesus – farei de vós pesca-
dores de homens. Um ‘pescar’ que conduza os seres humanos ao reino de Deus.
Deste modo, Jesus convoca alguns discípulos para iniciar com eles a grande
‘pesca escatológica’ do reino62. Com o facto de Jesus ter chamado estes quatro dis-
cípulos, logo no início do seu ministério, revela que Jesus vive essa ‘pesca escatoló-
gica’ em comunidade com um grupo de seguidores, que durará até ao fim do seu
ministério63. Jesus chamou-os a um outro tipo de fraternidade consigo. Deixando
os seus, têm agora uma nova ‘família’, até porque os discípulos de um rabbi são
considerados sempre como seus filhos. No entanto, é verdade que Jesus nunca foi
tratado por ‘pai’ pelos seus discípulos, mas por ‘Rabbi’, ‘Mestre’ ou ‘Senhor’64. Mc
revela ainda, neste sentido, a intenção de mostrar que os primeiros seguidores de
Jesus estão presentes desde o início da pregação do Mestre, podendo, por isso, ser
testemunhas de todas as ações e de todas as palavras do Nazareno65.
A resposta dos discípulos à chamada de Jesus assume um duplo movimento
expresso pelos verbos ‘deixar’ e ‘seguir’ - «E imediatamente66 deixando as re-

60
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 116-117.
61
 Cf. S. Briglia, «Vangelo secondo san Marco», Roma 2005, 569. Para quem quiser continuar
a aprofundar o sentido da metáfora ‘pesacador de homens’ aconselhamos o artigo: B. Wassell, S.
Llewelyn, «‘Fishers of Humans’, the Contemporary Theory of Metaphor, and Conceptual Blending
Theory», JBL 133 (2014) 627-646.
62
  Cf. X. Pikaza, Para vivir el evangelio. Lectura de Marcos, Estella 1995, 32. Ver ainda: W. Lane, The
Gospel According to Mark, Michigan 1974, 67-68; M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo
2015, 117.
63
  Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 182.
64
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Marc, XVI, Pendé 2014, 54.
65
  Cf. S. Briglia, «Vangelo secondo san Marco», Roma 2005, 569.
66
  A tradução portuguesa dia «deixando logo as redes», nós aqui sugerimos uma pequena alteração na

155
des, seguiram-no» (v.18). Um apelo de Jesus que os coloca no dinamismo de um
seguimento que consiste num caminhar ‘atrás’ de Jesus (1,17.20). Deste chama-
mento decorre uma missão que é associada a uma responsabilidade – fazei de
vós pescadores de homens (v.17). Um chamamento que não coloca os discípulos
num espaço reservado, separado, mas os encaminha pela estrada do mundo, em
continuidade com a vida anterior (eram pescadores – v.16). Agora o trabalho de
‘pescar’ ganha novo horizonte, a autoridade paterna de Zebedeu é substituída
pela de Jesus, o barco do ‘pai’ é substituído pela ‘barca’ da comunidade que se vai
construindo em volta do Mestre67.
Jesus emerge, ao longo de toda esta narrativa, como a personagem central:
a iniciativa é dele, é ele quem chama a partir do ‘quotidiano’ de cada um, é ele
que reúne à sua volta aqueles a quem chama, ele partilha as mesmas atividades
e missão com os seus discípulos, é ele que os envia em missão – a partir desse
encontro primordial com Ele. Chama pessoas que conhecem bem o seu pró-
prio ofício, que têm uma barca, que são especialistas nos trabalhos da pesca.
Não são perfecionistas da religião (escribas, sacerdotes), mas simples homens
que se ocupam de trabalhos normais e profanos. De tal modo que o evange-
lho se enxerta nos trabalhos que fazem parte da vida quotidiana do homem.
Não é, por isso, necessário ser especialista nas coisas de Deus para escutar o
chamamento de Jesus. Antes, parece que é importante ser ‘expert’ nos ofícios
da terra68.
Neste processo, são vários os elementos essenciais da reação dos discípulos.
Simão e André abandonam as suas redes imediatamente (v.18), depois Tiago
e João, filhos de Zebedeu, separam-se do seu pais e dos assalariados para se
unirem a Jesus. Se os primeiros irmãos abandonam o trabalho que tinham
feito até então, já os filhos de Zebedeu, segundo Mc, deixam ainda o seu pai e
a sua família. Na tradição de Lucas, diz-se que eles «deixaram tudo e seguiram
Jesus» (Lc 5,11b). O chamamento a seguir Jesus exige, por isso, fundamental-
mente, a renúncia aos bens terrenos por causa do Reino de Deus. Contudo,
esta renúncia fica ‘eclipsada’ pelo lado positivo do chamamento: os discípulos

tradução: «E imediatamente, deixando as redes». A ideia ‘e imediatamente’ é reforçada pela expressão


grega καὶ εὐθύς. O mesmo volta a acontecer no v.20. Cf. R. Stein, Mark, Michigan 2008, 76. «‘And at
once’ (…) suggests the power of Jesus’ cal and his attractiveness. There is no hesitation or reflection on
the disciples’ part». J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 74.
67
  Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 55-56. Ver ainda: J.
Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 76.
68
  Cf. X. Pikaza, Para vivir el evangelio. Lectura de Marcos, Estella 1995, 38.

156
devem ir atrás de Jesus – segui-l’O. Uma relação de comunhão que, apesar das
perseguições e da morte, promete a todos os seus seguidores a plenitude de vida
e a uma recompensa cem vezes maior que todas as renúncias e privações (Mc
8,35s; 10,17.23ss.29s). Deste modo, os discípulos não só partilham a vida pobre
do Senhor como também os seus poderes e as suas alegrias (Mc 6,7-13)69.
Os leitores, segundo Rudolf Schnackenburg, devem ver nesta passagem,
para além do primeiro êxito de Jesus, a incipiente convocatória do povo de
Deus, o primeiro passo para a formação da sua comunidade. Neste contexto,
a convocatória não é casual que os discípulos sejam apresentados com os seus
nomes próprios. Para os leitores não são uns desconhecidos mas antes os que
vão fazer parte do círculo mais íntimo dos discípulos de Jesus – os primeiros
companheiros de Jesus, que partilham as mesmas atividades e que mais tarde
poderão dar testemunho deste ‘encontro’70.
Neste sentido, Xabier Pikaza diz que estes pescadores surgem no início do
texto como um sinal de todos os homens e todas as mulheres que continuam
a ser chamados por Jesus. Tornam-se, por isso, imagem de uma promessa que
passa pela oferta de uma missão escatológica – serem companheiros ‘pescado-
res’ na grande tarefa do reino. Contudo, entre chamamento e comprimento há
um longo período de maturação e de prova, de incompreensão e de morte71.
Ser discípulo é sobretudo: ‘estar com’ Jesus e fazer o que ele faz72. Aqui o que se
é (identidade) tem a ver com quem se está (relação). Não se faz, por isso, uma
preparação para se ser qualquer coisa, mas é-se qualquer coisa porque se ‘pre-
para na relação’. A comunhão dá identidade e é o ‘estar com Jesus’ que define
o ‘discípulo’. Trata-se sempre de uma chamada que toca o coração e que nos
lança no dinamismo próprio da linguagem performativa.

69
  Cf. R. Schnackenburg, El evangelo según san Marcos, I, Barcelona 1980, 44-45.
70
  Ibidem, 45.
71
  Cf. X. Pikaza, Para vivir el evangelio. Lectura de Marcos, Estella 1995, 37-39.
72
  «Two essential elements in the call to discipleship are ‘being with’ Jesus and doing the tasks of Je-
sus». Cf. J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 76-77.

157
2.2. Jesus encontra-se com o filho único da viúva de Naim73
Esta narrativa, presente em Lc 7,11-1774, não encontra outro paralelo nos
evangelistas, trata-se, por isso, de um texto único na literatura neotestamentá-
ria75. Alguns exegetas indicam que este texto se encontra dentro de uma seção
procedente de Q (6,20 – 7,10; 7,18-35), mas deve vir de outros lugares, até por-
que se Mt o tivesse conhecido, seguramente que não deixaria de o considerar.
Se é verdade que esta perícopa contém muitos elementos típicos de Lc, tam-
bém é verdade que nela encontramos alguns elementos que não lhe pertencem:
no v.11 temos Ναΐν (‘Naim’)76; no v.12 temos ἐκκομίζω (‘transportar’ ou ‘levar
para a terra’) e τεθνηκώς (‘morto’); no v.13 temos σπαγχνίζομαι (‘comover-se
nas entranhas’) e μὴ κλαῖε (‘não chores’, ‘deixa de chorar’); no v.14 temos o
gesto de tocar o caixão e o verbo ἐγείρω (‘despertar’, ‘levantar’); no v.15 temos
ἀνακαθίζω (‘sentar-se’); no v.16 temos προφήτης μέγας (‘um grande profeta’).
No entanto, Lc deverá ter tido à sua disposição um modelo grego que proce-
de, sem dúvida, da sua fonte própria. Lc adaptou tão bem o seu modelo com

73
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: M. Mullins, The Gospel of Luke,
Dublin 2010, 234-236; F. Bassin, L’évangile selon Luc, I, Vaux-sur-Seine 2006, 255-257; P.P. Parackal,
«Jesus’ Saving Visit to Nain (Intertextual Study of Lk 7:11-17), BiBh 40 (2014) 3-24; J. Puthenkulam,
«The Widow of Nain (Lk 7:11-17): The Significance of ‘Widows’ in Luke-Acts, VJTR 78 (2014) 503-512;
A. Thompson, «Parallel Composition and Rhetorical Effect in Luke 7and 8», JSNT 38 (2015) 169-190;
H. Giesen, «Gottes Zuwendung zu seinem Volk. Die Auferweckung eines jungen Mannes Aus Naïn»,
SNTU 35 (2010) 11-33.
74
  Este texto inserido no capítulo 7 do terceiro evangelho é delimitado, consensualmente, entre o v.11
e o v.17. Joseph Fitzmyer intitulou «Nain: Raising of the Widow’s Son». Cf. J. Fitzmyer, The Gospel
According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 655. Darrell Bock intitula «Resuscitation of a Widow’s Son
and Questions about Jesus». Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 646. François Bovon intitulou «Le
fils de la veuve de Naïn». Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 347. Matteo
Crimella intitulou «La risurrezione del figlio della vedova di Nain». Cf. M. Crimella (a cura di), Luca,
Cinisello Balsamo 2015, 145. No entanto, Roland Meynet, apresenta uma pequena diferença, deste
consenso generalizado, ao não incluir o v.17 – tendo designado esta passagem como «Jésus ressuscite
le fils de la veuve juive». Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 312.
75
  «Questo miracolo fa parte del materiale proprio del terzo vangelo, sicché non ha paralleli negli altri
racconti». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 145. Ver ainda: D. Bock, Luke, I,
Michigan 1994, 646; J. Schmid, El evangelio según san Lucas, Barcelona 1968, 206.
76
  A cidade de Naim trata-se, muito provavelmente, da moderna Nein, entre Gilboa e o monte Tabor.
Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 145. Josef Schmid diz que hoje esse lugar
é uma aldeia insignificante e está situada a SE de Nazaré, na fronteira da Galileia, na zona norte do
chamado ‘pequeno Hermon’. Diz-nos ainda que é a única vez que a palavra ocorre na Bíblia e que na
época de Jesus não deveria ser mais do que uma aldeia. Mas Lc dá repetidamente o nome de ‘cidade’
a pequenos lugares’. Cf. J. Schmid, El evangelio según san Lucas, Barcelona 1968, 207. Ver ainda: G.
Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 255; J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New
York 1981, 658.

158
o seu próprio estilo que é difícil encontrar a forma exata que teria o relato na
tradição77.
Por um lado, podemos dizer que este texto tem uma ligação ao episódio ime-
diatamente anterior da cura do servo do centurião (Lc 7,1-10)78. Nesta ligação
fazemos notar a progressão narrativa: a eficácia da palavra de Jesus que cura um
homem quase a morre (7,2), cura agora um que já tinha morrido (7,12); nos dois
casos, o milagre é realizado em razão de terceiros – o centurião e, agora, a viúva;
por fim, Lc coloca junto, uma vez mais, duas narrações que têm por protago-
nistas, sucessivamente, um homem e uma mulher79. Contudo, Rolando Meynet,
sublinhando o paralelismo entre estas duas passagens, diz que a situação desta
viúva de Naim é infinitamente mais dramática do que a do centurião pagão: um
estava a perder o seu querido servo, mas aquela mãe tinha perdido o ‘filho úni-
co’80. Por outro lado, este texto, também pode ser considerado como um episódio
que tem um carácter prefigurativo. De facto, uns versículos à frente Jesus vai
responder aos enviados de João Baptista com uma série de sinais que revelam a
sua identidade e o seu ministério: «Tomando a palavra, disse aos enviados: ‘Ide
contar a João o que vistes e ouvistes: Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos
ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a Boa-Nova é anunciada
aos pobres’» (7,22). Trata-se assim de revelar acontecimentos para compreender

77
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 348. Sobre o processo de com-
posição do texto ver ainda: G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 254; J. Fitzmyer, The Gospel
According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 656.
78
 Lc 7,1-10: «1Quando acabou de dizer todas as suas palavras ao povo, Jesus entrou em Cafar-
naúm. 2Ora um centurião tinha um servo a quem dedicava muita afeição e que estava doente, quase
a morrer. 3Ouvindo falar de Jesus, enviou-lhe alguns judeus de relevo para lhe pedir que viesse sal-
var-lhe o servo. 4Chegados junto de Jesus, suplicaram-lhe insistentemente: ‘Ele merece que lhe faças
isso, 5pois ama o nosso povo e foi ele quem nos construiu a sinagoga’.6Jesus acompanhou-os. Não
estavam já longe da casa, quando o centurião lhe mandou dizer por uns amigos: ‘Não te incomodes,
Senhor, pois não sou digno de que entres debaixo do meu tecto, pelo que 7nem me julguei digno de
ir ter contigo. Mas diz uma só palavra e o meu servo será curado. 8Porque também eu tenho os meus
superiores a quem devo obediência e soldados sob as minhas ordens, e digo a um: ‘Vai’, e ele vai; e a
outro: ‘Vem’, e ele vem; e ao meu servo: ‘Faz isto’, e ele faz’. 9Ouvindo estas palavras, Jesus sentiu admi-
ração por ele e disse à multidão que o seguia: ‘Digo-vos: nem em Israel encontrei tão grande fé’.10E, de
regresso a casa, os enviados encontraram o servo de perfeita saúde». BS.
79
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 254. «It has been inserted here to show progress in
yet another way, because Jesus’ power has been describeb at work in the preceding episode on behalf
of a gravely ill person, but now it is to be exercised on a person who is dead and about to be buried». J.
Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 655.
80
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 316. Para além de Roland Meynet, também
Luke Timothy Johnson apresenta e analisa estes dois textos de forma conjunta mas não de forma tão
aprofundada. Cf. L. Johnson, The Gospel of Luke, III, Minnesota 1991, 116-121.

159
cada uma das expressões, aqui em concreto – ‘os mortos ressuscitam’. Não são
apenas palavras mas gestos já realizados81.
Sendo um texto único nos evangelhos devemos referir que no evangelista Lc
encontramos dois textos referentes ao encontro de Jesus com um ‘cadáver’: este
do filho único da viúva de Naim (Lc 7, 11-17) e, no capítulo seguinte, a filha única
de Jairo (Lc 8, 49-55)82. Deste modo, Lc será o único dos quatro evangelistas que
apresenta dois episódios de reanimação de um cadáver83. Nestas duas passagens o
autor sublinha a relação de uma mãe com um filho único agora morto; e a relação
de um pai com uma filha única que também morreu84. Este paralelismo sublinha,
em ambos os casos, a morte de pessoas jovens e de filhos únicos; elementos que
reforçam a dimensão da dor, da perda e do sofrimento diante de uma morte ines-
perada, sobretudo de um filho ou de uma filha85. Talvez o facto de Jesus também
ser filho único o fizesse entender melhor aquela dor e aquele sofrimento. Em
ambos os casos notamos muitas semelhanças: Jesus é ‘informado’ da morte de al-
guém muito concreto, estabelece um diálogo com os que mais sofrem – a mãe ou
o pai, aproxima-se do que morreu, ‘toca’ o ‘caixão’ ou o ‘cadáver’, fala ao morto e
termina dizendo ‘levanta-te’ ou ‘desperta’.
Devemos considerar ainda que nos At, atribuídos a Lc, encontramos mais
duas passagens de ‘reanimação’: a de Tabitá pelo apóstolo Pedro (At 9, 36-43) e a

81
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 655.
82
  Lc 9,40-42.49-55: «40Quando regressou, Jesus foi recebido pela multidão, pois todos estavam à sua
espera.41Veio ao seu encontro um homem chamado Jairo, que era chefe da sinagoga. Caindo aos pés
de Jesus, suplicava-lhe que entrasse em sua casa, 42porque tinha uma filha única, de uns doze anos,
que estava a morrer. E, quando Ele se dirigia para lá, a multidão apertava-o, a ponto de o sufocar. (…)
49
Ainda Ele estava a falar, quando alguém da casa do chefe da sinagoga veio dizer: ‘A tua filha morreu;
não continues a incomodar o Mestre’. 50Mas Jesus, que tinha ouvido tudo, respondeu: ‘Não tenhas
receio; crê somente e ela será salva’. 51Ao chegar a casa, não deixou entrar ninguém com Ele, a não ser
Pedro, João e Tiago, assim como o pai e a mãe da menina. 52Todos a choravam e pranteavam. Jesus
disse: ‘Não choreis, porque ela não está morta, mas dorme’. 53E, por saberem que ela tinha morrido,
troçavam de Jesus. 54Mas Ele, tomando-a pela mão, chamou-a, dizendo em voz alta: ‘Menina, levanta-
-te!’ 55O espírito voltou-lhe, e imediatamente se levantou. Jesus mandou que lhe dessem de comer». BS. 
83
  Cf. M. De Santis, La visita di Dio alla vedova di Nain (Lc 7,11-17), RivBib 62(2014)1,55. Neste artigo
o autor apresenta, entre outros aspetos, vários elementos que diferenciam estes dois relatos presentes
em Lc.
84
  O termo ‘único’ (μονογενής) é usado três vezes em Lc para indicar ‘filho único’: filho único da
viúva de Naim (7,12); filha única de Jairo (8,42); e um pai que tinha um filho único epiléptico (9,38).
Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 146. Ver ainda: J. Fitzmyer, The Gospel
According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 658. Sublinhe-se que Lc é o único dos três sinópticos que
diz que a filha de Jairo é filha única.
85
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 349.

160
do jovem Eutico pelo apóstolo Paulo (At 20, 7-12)86. Contudo, apesar das seme-
lhanças, temos de assinalar também as diferença. A história de Tabitá87 parece,
em alguns aspetos, uma lenda pessoal (coloca-se o acento nas boas obras desta
jovem e não nos seus parentes). Por outro lado, Tabitá era já discípula. Só a situa-
ção de luto se pode comparar à viúva de Naim. O apóstolo Pedro teve de suplicar
a força divina enquanto Jesus tinha essa força em si mesmo. O contacto corporal
em Pedro é maior e menos poderoso enquanto Jesus bastou tocar no ‘caixão’.
No caso do filho da viúva de Naim, o que estava morto testemunha o milagre
sentando-se e falando, no caso de Tabitá, abrindo os olhos e sentando-se. Por
outro lado, tal como a história de Tabitá, a história de Eutico88 está ligada ao lugar
onde se reúnem os cristãos – na sala de cima. Tal como Pedro, também Paulo,
transmite a vida de forma visível, com um gesto concreto. A atmosfera nocturna,
as lâmpadas e o contexto, criam um ambiente litúrgico que permite ver ali sobre-
tudo uma alegoria – da vida nova pela fé. No entanto, a reanimação do filho da
viúva de Naim está longe desta interpretação cristã89.
Pelo estilo e pela estrutura literária, estes quatro relatos de ‘reanimação’ es-
tão próximos de algumas passagens do AT. Mas a proximidade maior de todas é,
de facto, entre o texto do filho da viúva de Sarepta (1Rs 17, 17-24; mais detalhado

86
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 646. Ver ainda: J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke
(I-IX), I, New York 1981, 656.
87
  At 9,36-42: «36Havia em Jope, entre os discípulos, uma mulher chamada Tabitá, que significa ‘Ga-
zela’. Era rica em boas obras e nas esmolas que distribuía. 37Ora, nesses dias, caiu doente e morreu.
Depois de a terem lavado, depositaram-na na sala de cima. 38Como Lida era perto de Jope e ouvindo
os discípulos dizer que Pedro estava lá, mandaram-lhe dois homens com o seguinte pedido: ‘Vem
depressa ter connosco!’ 39Pedro partiu imediatamente com eles. Logo que chegou, levaram-no à sala
de cima e encontrou lá todas as viúvas, que choravam e lhe mostravam as túnicas e mantos feitos por
Dórcada, enquanto ela estava na sua companhia. 40Pedro mandou sair toda a gente, pôs-se de joelhos
e orou. Voltando-se depois para o corpo, disse: ‘Tabitá, levanta-te!’ Ela abriu os olhos e, ao ver Pedro,
sentou-se. 41Tomando-a pela mão, Pedro ajudou-a a erguer-se. Chamando então os santos e as viú-
vas, apresentou-lha viva. 42Toda a cidade de Jope soube deste acontecimento e muitos acreditaram no
Senhor. 43Pedro ficou em Jope bastante tempo ainda, em casa de um curtidor chamado Simão». BS.
88
  At 20,7-12: «7No primeiro dia da semana, estando nós reunidos para partir o pão, Paulo, que devia
partir no dia seguinte, começou a falar com eles e prolongou a sua pregação até à meia-noite. 8Havia
bastantes lâmpadas na sala de cima, onde estávamos reunidos. 9Ora um jovem, de nome Eutico, que
estava sentado numa janela, adormeceu profundamente, enquanto Paulo se alongava no seu sermão.
Dominado pelo sono, caiu do terceiro andar e levantaram-no já morto. 10Paulo desceu e, lançando-se
sobre ele, apertou-o nos braços e disse: ‘Não façais barulho, pois a alma ainda está nele’. 11Depois,
voltou para cima, partiu o pão, comeu e falou demoradamente até de madrugada. Só então se reti-
rou. 12Quanto ao jovem, levaram-no vivo, o que foi motivo de grande consolação». BS.
89
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 349-350.

161
em 2Rs 4,30-37) e o texto do filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17)90. Assinalemos
as principais semelhanças: as duas narrações pertencem ao mesmo género lite-
rário – o milagre; a estrutura, a sequência e o vocabulário são muito semelhan-
tes; ambos os relatos falam da porta da cidade, de uma mulher viúva, da morte
de um filho único e do regresso à vida de uma criança91; têm um programa
narrativo semelhante - passagem da morte à vida; há um reconhecimento da
identidade do profeta (pela viúva em Sarepta ou pela multidão em Naim). Mas
importa referir também algumas diferenças: Elias já conhecia a mulher e o filho,
enquanto Jesus era a primeira vez que os via; Elias faz o milagre no primeiro
andar da casa, enquanto Jesus faz o milagre num espaço público, numa rua às
portas da cidade92; a viúva de Sarepta dirige-se ao profeta, a viúva de Naim não
se dirige a Jesus e não luta pela vida do seu filho, parece apenas conformada na
sua imensa dor. Neste sentido, François Bovon afirma que é provável a influên-
cia destes relatos no ambiente judeo-cristão que viam em Jesus um grande pro-
feta (Lc 7,16). Contudo, a passagem da reanimação do filho de Naim não é uma
imitação desses textos do AT93.
Lc descreve uma mulher que fica totalmente só – aquela que tinha perdido o
marido, leva agora o seu filho único para o cemitério94. Trata-se da morte do filho
único de uma viúva. A relação mãe-filho, a mais estreita de todas, estava orienta-
da para o futuro, já que o filho era a única riqueza que restava a uma viúva pobre
e a sua segurança para os seus últimos dias. Lc pensa não só na situação descrita

90
  «Gli studi relativi a Lc 7,11-17 hanno dato ampio spazio alla comparazione del brano della risur-
rezione del figlio della vedova di Nain, operata da Gesù, con quello della risurrezione del figlio della
vedova si Sarepta, operata dal profeta Elia in 1Rs 17,17-24». M. De Santis, La visita di Dio alla vedova
di Nain (Lc 7,11-17), RivBib 62(2014)1,49. Matteo Crimella, depois de apontar as proximidades entre os
dois textos diz que Lc fez uma autêntica reescritura, adaptando alguns aspetos e compondo a narração
para o novo contexto geográfico, social e cristológico. Estes processos são identificados como ‘re-e-
laboração’ e ‘adatação’. Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 146. Deste modo,
sem excluir de modo categórico a possibilidade de um evento histórico, trata-se sobretudo de uma
‘re-elaboração’ cristológica. No entanto, não se quer dizer com isto que, os autores do NT, criaram o
‘evento’ Jesus a partir do AT, mas que releram o AT a partir do ‘evento’ de Jesus. Cf. G. Rossé, Il Van-
gelo di Luca, Roma 20125, 258. Sobre esta mesma relação aconselhamos ainda: F. Bovon, L’Évangile
selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 350; J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New
York 1981, 656.
91
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 146.
92
  Cf. M. De Santis, La visita di Dio alla vedova di Nain (Lc 7,11-17), RivBib 62(2014)1,58-59.
93
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 350. Ver ainda: J. Fitzmyer, The
Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 656.
94
  «La femme est désormais seule totalement: elle avait perdu son mari (v.12c) et la voilà maintenant
privée de son fils unique (v.12b)». R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 313.

162
no livro dos Reis (1Rs 17 e 2Rs 4) como também na tragédia de perder um filho
único testemunhada pela tradição sapiencial: «O luto será como o que se faz por
um filho único, e o seu fim, um dia de amargura» (Am 8,10c); «Cobre-te de luto
como por um filho único» (Jr 6,26b); «Chorarão por ele como se chora um filho
único e lamentá-lo-ão como se lamenta um primogénito» (Za 12,10c)95. 
De facto, estamos diante de um momento especialmente doloroso, tão dolo-
roso que não conseguimos dar nome. Quando um(a) filho(a) perde uma mãe ou
pai é órfão(ã), quando um homem perde a esposa (ou o contrário) é viúvo(a), mas
quando uma mãe ou pai perde um(a) filho(a) não há nome, nem designação, o
que sublinha a angústia da morte – uma morte ‘inominável’. Os pais estão ‘feitos’
para gerar e não para enterrar – o ser mãe ou pai decorre do filho porque é o filho
que dá nome aos pais. Se perder um pai ou uma mãe é perder o ‘passado’; se per-
der um(a) amigo(a), um(a) irmão(irmã), o(a) marido (esposa) é perder o ‘presen-
te’; perder um filho ou uma filha é perder o ‘futuro’. Daí que Roland Meynet diga
que aqui o que está em jogo é o futuro. É um filho que se perde. O desapareci-
mento do futuro não tem comparação com a perda do passado. Aquela mãe tinha
acabado de perder o seu filho único, todo o seu apoio e toda a sua esperança96.
É verdade que era natural a participação de uma grande multidão neste enterro
– que tinha lugar, habitualmente, ao entardecer do dia do falecimento – porque
no judaísmo, este ‘acompanhar’ ao cemitério, era um dever de caridade, de tal
maneira que até o estudo da Lei era interrompido por este motivo97; mas também
teremos de referir que essa multidão não é alheia à ‘dimensão’ desta dor – a dor
de perder um filho único.
Diz o texto, que Jesus diante daquele funeral se aproximou e «tocou no caixão
[ἥψατο τῆς σοροῦ]98» (v.14a). O gesto de tocar o caixão era considerado um gesto

95
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 353-354.
96
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 316.
97
  Cf. J. Schmid, El evangelio según san Lucas, Barcelona 1968, 207.
98
  Decidimos manter a tradução portuguesa ‘caixão’. Contudo, o termo σορός quer dizer ‘ataúde’ ou
‘esquife’. Cf. C. Rusconi, «σορός», in DGNT, São Paulo 2003, 422. Ou seja, tratar-se de uma espécie
de ‘caixão aberto’, uma estrutura plana onde é colocado o corpo daquele que morre, uma espécie de
pequena cama – ou seja, um esquife. Corroboram a nossa opção outros autores. «[He] touched the cof-
fin». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 655. «Il toucha le cercueil». F.
Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 347. «Toccò la bara». M. Crimella (a cura
di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 147. Ver ainda: G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 253. No
entanto, Darrell Bock traduz por ‘esquife’ – «he touched the bier». D. Bock, Luke, I, Michigan 1994,
648. Ver ainda: M.-L. Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013, 111.

163
que trazia a contaminação segundo a Lei (Nm 19,11-1699). Jesus não teme esta
impureza ritual100. Esta impureza tinha não só a ver com o ‘tocar o cadáver’, ou
‘ossos humanos’, ou ‘sepultura’; como também estar no mesmo espaço. Ficariam
impuros durante sete dias e, depois, precisavam de cumprir os ritos de purifi-
cação para poderem voltar ao templo. Importa esclarecer que, segundo Darrell
Bock, o termo σορός, que só se encontra aqui em todo o NT e que traduzimos
por caixão – tendo mais o sentido de esquifo, refere-se a um ‘caixão’ aberto, uma
prancha, onde o cadáver estava envolvido num pano – daí que a criança se pos-
sa ter sentado, depois de despertar. De facto, Jesus disse «Eu te ordeno: desper-
ta! [νεανίσκε, σοὶ λέγω, ἐγέρθητι]101» (v.14b). No entanto, Jesus pode ter tocado
no ‘caixão’ para que aqueles que o transportavam parassem102. A forma verbal
ἐγέρθητι (verbo ἐγείρω), usada por Jesus, que os evangelistas irão utilizar mais
tarde para descrever a sua própria ressurreição, possui dois sentidos (reanimação
e ressurreição), fazendo com que este ‘filho’ possa ser visto como uma prefigura-
ção do que Jesus irá viver103.
Um aspeto importante é que esta reanimação se deve exclusivamente a Je-
sus, já que não se exige uma atitude de fé nem à mãe daquele que morreu, nem

99
  Nm 19,11-16: «11Quem tocar no cadáver de qualquer pessoa ficará impuro sete dias. 12Esse deve
purificar-se no terceiro e no sétimo dia; mas, se não se purificar no terceiro e no sétimo dia com essa
água, não ficará puro. 13Todo o que tocar no cadáver de qualquer pessoa que tenha morrido e não se
purificar, profanará o tabernáculo do Senhor e será exterminado de Israel; porque as águas da puri-
ficação não correram sobre ele, ficará impuro enquanto a impureza estiver nele. 14Esta é a lei: Quando
um homem morrer numa tenda, todos os que entrarem nessa tenda e todos os que lá estiverem ficarão
impuros durante sete dias; 15e todo o vaso aberto, que não tiver cobertura, ficará impuro também. 16E
todo aquele que, em pleno campo, tocar num homem trespassado pela espada ou num cadáver ou em
ossos humanos ou numa sepultura, ficará impuro durante sete dias». BS. 
100
  «Senza temere di contrarre l’impurità rituale (...), Gesù si avvicina e tocca la bara». G. Rossé, Il
Vangelo di Luca, Roma 20125, 257. No mesmo sentido, Marie-Laure Veyron diz: «Qu’il touche l’un ou
l’autre, ce geste relève de la grande libertè de Jésus, car il y a de toute façon une transgression social
(toucher une femme) ou des règles de pureté (être en contact avec la/le mort)». M.-L. Veyron, Le tou-
cher dans les Évangiles, Paris 2013, 112.
101
  Traduzimos a palavra grega ἐγέρθητι por ‘desperta’ e não por ‘levanta-te’, como sugere a tradução
portuguesa. François Bovon traduziu por ‘réveille-toi’. Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-
9,50), I, Genève 1991, 347. No entanto, o verbo ἐγείρω pode significar: ‘acordar’, ‘despertar’; ‘fazer er-
guer’, ‘por de pé’; ‘ressuscitar’, ‘ressurgir’; ‘erguer’, ‘endireitar’. Cf. C. Rusconi, «ἐγείρω», in DGNT, São
Paulo 2003, 143. Por exemplo, Matteo Crimella traduz por ‘alzati’, à imagem da tradução portuguesa.
Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 147. Neste mesmo sentido, ver ainda: G.
Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 253; J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New
York 1981, 655.
102
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 652. Ver ainda: J. Schmid, El evangelio según san Lucas,
Barcelona 1968, 207.
103
  Cf. M.-L. Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013, 120-121.

164
aos familiares e amigos que a acompanhavam naquele funeral104. Deste modo,
este gesto tem como única motivação a compaixão [ἐσπλαγχνίσθη – v.13]105 e
o poder do mensageiro de Deus. Jesus entra nesta história de modo especial e
inesperado. E a sua motivação está referida claramente nesta passagem quando
diz que «Vendo-a, o Senhor compadeceu-se dela e disse-lhe: ‘Não chores’» (v.13).
O Senhor que se enche de compaixão diante do sofrimento, revelando um amor
profundo, que ‘estremece as entranhas’ (ἐσπλαγχνίσθη106). Pela primeira e única
vez, Lc diz que Jesus se comoveu profundamente107. Ele não é indiferente à dor
daquela viúva que acaba de perder o seu filho único108. A esse amor profundo de
Jesus, traduzimos por ‘compadecer’ (v.13)109. No entanto, nesta palavra compai-
xão (cum-passionis - ‘sofrer-com’) mais do que sublinhar o ‘sofrer’ evidencia-se
o ‘com’. Trata-se, como diz Marie de Hennezel, de se ‘colocar-no-lugar-do-outro’,
não como quem se identifica com o outro porque é necessário uma distância,
mas como quem se pergunta: se estivéssemos naquele lugar, como gostaríamos
de ser ajudados?110 Por isso, a compaixão, como afirma Paul Ricoeur, não é um
‘gemer-com’, como a piedade, a comiseração, figuras da lamentação; mas um ‘lu-
tar-com’, um verdadeiro acompanhamento111. Diante daquele cortejo fúnebre Je-
sus revela uma atitude profunda de compaixão (‘sofrer-com-o-que-sofre’). Jesus
aproxima-se, fala com o que sofre, toca o ‘caixão’, dá vida e leva a esperança. Fica,
assim, estabelecida uma ‘aliança entre tocar, compaixão e cura112.

104
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 657-658.
105
  Este termo volta a surgir em duas parábolas de Lc: o samaritano (10,33) e o pai misericordioso
(15,20). Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 146-147.
106
  Inicialmente o termo surge no contexto sacrificial com o significado de comer das entranhas de
uma vítima, mas, em ambiente helenístico vai assumindo um sentido antropológico figurado signifi-
cando entranhas do homem, no contexto de uma cultura que vê nas entranhas o centro da sensibilida-
de e do sentimento, enquanto o coração (καρδία) seria sobretudo para os sentimentos mais elevados.
Progressivamente esta palavra foi assumindo, na cultura bíblica, mais do que as entranhas, o sentido
de sede da misericórdia. Podemos por isso, concluir que a palavra compaixão tem a ver com interio-
ridade profunda, com um amor visceral, um amor de misericórdia. Cf. H. Köster, «σπλάγχνον», in
GLNT, XII, Brescia 1979, 903-934. Ver ainda: M.-L. Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013,
110-111.
107
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 256.
108
  «Le Dieu de Luc est compatissant (6,46), son Messie l’est aussi et de façon fortement émotionnelle».
F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 354.
109
  «Luke describes Jesus’ reaction as the expression of his compassion». D. Bock, Luke, I, Michigan
1994, 650.
110
  Cf. M. Hennezel, La mort intime, Paris 1996, 155.
111
 Cf. P. Ricoeur, Vivant jusqu’à la mort, Paris 2007, 46-47.
112
  Trata-se de uma expressão que encontrámos em Marie-Laure Veyron: «L’alliance du toucher, de
la compassion et de la guérison se retrouve dans deux autres passages (Mt 20,34; Mc 1,40-45)». M.-L.

165
De facto, o centro deste relato encontra-se nos vv.13-15, onde o evangelista
apresenta os sentimentos de Jesus, que neste caso são de compaixão – de como-
ção profunda diante daquela mãe chorava o seu filho único morto. Neste con-
texto, fortemente emocional, Jesus pode mudar o ‘destino’ daquele ‘funeral’. Por
isso, diz àquela mãe para não chorar (v.13), não porque fosse contra o choro ou o
não compreendesse – Ele que vai chorar diante da morte do seu amigo Lázaro (Jo
11,35), mas porque o Senhor queria juntar a esperança àquela dor, queria restituir
a vida onde todos os outros viam apenas ‘morte’113.
Deste modo, a reanimação deste filho único, tem três características especí-
ficas que queremos agora sublinhar: a espontaneidade da intervenção de Jesus,
um dom que surge diretamente da iniciativa gratuita de Jesus; a superação de
qualquer expectativa das pessoas que estavam presentes, revelando-se uma ex-
periência imprevista e, por assim dizer, de ‘confim’; por último, o relato assume
uma dimensão simbólica enquanto apela à actividade salvífica puramente gratui-
ta de Jesus, que é símbolo da vinda do Reino de Deus que se realiza com a morte
e ressurreição de Cristo. Assim, este relato deixa transparecer o extraordinário
poder de Jesus que reanima um cadáver, e poderá ser interpretado como uma
antecipação de quanto Deus fará pelo próprio Jesus114. De facto, com este milagre,
que tem o carácter de uma epifania, Jesus estabeleceu uma relação que tinha sido
quebrada pela morte. Jesus ‘reanimou’ a vida daquele jovem e entregou-o à sua
mãe (v.15)115. Este ‘devolver o filho à mãe’ pode ser interpretado não apenas no
sentido imediato – uma mãe que volta a ter o seu filho com vida; mas também
no sentido analógico como uma realidade de fé, possível e existencial – o mesmo
Jesus que devolveu o filho à sua mãe pode devolver-nos, em nome de Deus, uma
nova existência na fé116.
No final desta passagem diz-se que este milagre teve impacto, não apenas
naquela mãe e nas pessoas que ali se encontravam - «esta palavra117 sobre ele

Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013, 122.


113
  Sobre a comoção de Jesus aconselhamos: N. Santos, «Um Deus que chora – Jesus enche-se de
compaixão e chora diante da morte», in EsTeol 19 (2015) 2-24.
114
  Cf. M. De Santis, La visita di Dio alla vedova di Nain (Lc 7,11-17), RivBib 62(2014)1,50-52.
115
  Alguns exegetas dizem que há vários paralelismos com a viúva de Sarepta, sobretudo nesta ex-
pressão e atitude, já referida a Elias: «entregou-o à sua mãe» (Lc 7,15b; 1 Re 17,23b). Cf. J. Schmid, El
evangelio según san Lucas, Barcelona 1968, 207. Ver ainda: J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke
(I-IX), I, New York 1981, 659.
116
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 355. Ver ainda: D. Bock, Luke, I,
Michigan 1994, 652; M.-L. Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013, 113-114.
117
  Aqui sugerimos que o original grego ὁ λόγος οὗτος seja traduzido por ‘esta palavra’ e não ‘a fama

166
espalhou-se pela Judeia e por toda a região» (v. 17). Todos davam glória a Deus
por estes sinais da sua presença no meio do povo (v.16). Enquanto nos versículos
anteriores (7,1-10), na cura do servo do centurião, era o crente que ocupava o
centro, aqui é o Senhor [ὁ κύριος]118 – o grande profeta é o Deus que visita o seu
povo (v.16) - que é o centro e surge como o vencedor da morte, aquele que, com-
padecendo-se, dá vida (e reanima). Por isso, o título de ‘Senhor’ [κύριος – v.13],
sendo a primeira vez que Lc usa o termo119, tem tanto peso como o adjectivo
‘grande’ [μέγας – v.16] ao lado da palavra ‘profeta’ [προφήτης – v.16]. O Senhor
aqui é o centro da acção e o vencedor da morte120. Claramente uma afirmação e
um reconhecimento do anúncio do Reino ao serviço do povo, no contexto da sua
missão escatológica. De facto, nesta passagem encontramos o contraste entre o
cortejo da vida (Jesus e os discípulos) e o cortejo da morte (o defunto, a mãe e os
participantes no funeral)121. Duas multidões que vão ao encontro uma da outra.
Uma que acompanha um morto ao exterior da cidade (v.12) e outra que entra na
cidade e acompanha aquele que dará vida (v.11). O caminho que sai da cidade
para o campo dos mortos traz, com a acção de Jesus, a criança à sua mãe e conduz
todos à cidade dos vivos. As duas ‘multidões’ separadas, constituem um só ‘povo
de Deus’ (v.16) – que pode agora regressar a Naim louvando o Deus único122.
Todos diziam que um ‘grande profeta’ tinha surgido e que esse era o sinal de que
‘Deus visita o seu povo’ (v.16b).
Esta ‘visita’ recorda-nos o Benedictus: «Bendito o Senhor, Deus de Israel, que
visitou e redimiu o seu povo» (1,68) e «graças ao coração misericordioso do nosso
Deus, que das alturas nos visita como sol nascente» (1,78). Assim, nesta ‘visita’
de Deus podemos ver não só uma referência à história da salvação realizada por

deste milagre’, como sugere a tradução portuguesa. Neste mesmo sentido vai a tradução de François
Bovon: «Et cette parole sur son compte se répandit dans toute la Judée et dans toute la région». Cf. F.
Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 347. Ver ainda: G. Rossé, Il Vangelo di
Luca, Roma 20125, 253. Outros autores, reconhecendo o sentido literal – ‘esta palavra’, traduzem por
‘história’ ou ‘relato’: «This account concerning him». L. Johnson, The Gospel of Luke, III, Minneso-
ta 1991, 117.119. Uma vez mais, Matteo Crimella aproxima-se da tradução portuguesa - «questa sua
fama». Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 147. Joseph Fitzmyer traduz: «and
talk like this about him». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 655.
118
  Sobre o sentido e o significado deste título (κύριος), no contexto pós-pascal da igreja primitiva,
aconselhamos: G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 256.
119
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 650. Ver ainda: M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello
Balsamo 2015, 146.
120
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 350-351.
121
  Ibidem, 349. «The Way of Life meets the way of death». D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 649.
122
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 313.

167
Deus, como também a espera do cumprimento futuro123. O povo vê em Jesus
um grande profeta, como Elias e Eliseu, e a sua presença é interpretada como
uma visita divina124. O reconhecimento de Jesus, como o grande profeta, decorre
diretamente da sua ação125. Esta ‘palavra’, ou seja, esta história sobre o milagre,
espalhou-se e difundiu-se por toda a Palestina. Assim a ‘fama’ de Jesus supera a
fronteira do país e, neste sentido, chega também aos ouvidos dos discípulos de
João Baptista. Este facto, liga este texto ao texto seguinte – o envio dos discípulos
de João ao encontro de Jesus126. Neste horizonte, o exegeta François Bovon, fala
que descobrem em Jesus o profeta escatológico e, por isso, há um sentido triplo
destes últimos dois versículos, dizendo que o milagre se ‘prolonga’ numa dimen-
são soteriológica – com a aparição do profeta é Deus que visita o seu povo, não
para julgar mas para salvar; numa dimensão eclesiológica – o que fez Jesus afeta
o povo de Deus porque se um membro é curado então todo o povo recupera a
saúde; e numa dimensão cristológica – com Deus como sujeito do verbo visitar,
Lc estabelece a relação entre a obra de Jesus e a obra de Deus, sendo que Jesus rea-
liza essa mesma obra numa identificação que o eleva à esfera divina e, ao mesmo
tempo, revela a sua função de ‘mediador obediente’127.

2.3. Jesus encontra-se com uma pecadora arrependida128


Este encontro de Jesus com a pecadora arrependida encontra-se unicamente
em Lc 7,36-50129. Este encontro pode ser considerado como um exemplo concreto

123
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 147.
124
  Cf. J. Schmid, El evangelio según san Lucas, Barcelona 1968, 208.
125
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 653-654.
126
  Lc 7,18-19: «18Os discípulos de João informaram-no de todos estes factos. Chamando dois de-
les, 19João mandou-os ao Senhor com esta mensagem: «És Tu o que está para vir, ou devemos esperar
outro?». BS.
127
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 356-357.
128
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: M. Mullins, The Gospel of Luke,
Dublin 2010, 241-246; F. Bassin, L’évangile selon Luc, I, Vaux-sur-Seine 2006, 266-269; M. Kowalski,
«‘Chi è quest’uomo che osa anche rimettere i peccati?’ (Lc 7,49)», BibAn 4 (2014) 97-120; M. Zagmann,
«Changing the Perspective. Jesus and a ‘Sinful’/‘Loving’ Woman (Lk 7,36-50), SNTU 38 (2013) 189-
209; J.A. English, «Which Woman? Reimagining the Woman Who Anoints Jesus in Luke 7:36-50»,
CurrTM 39 (2012) 435-441; K. Crabbe, «A Sinner and a Pharisee: Challenge at Simon’s Table in Luke
7:36-50», Pac. 24 (2011) 247-266.
129
  Trata-se de uma perícopa do capítulo 7, delimitada unanimemente entre os vv.36-50. Joseph Fitz-
myer intitulou «The Pardon of the Sinful Woman». Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke
(I-IX), I, New York 1981, 683. Darrell Bock intitula «Picture of Faith: a Sinful Woman Forgiven». Cf.
D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 689. François Bovon, de forma mais genérica e poética, intitulou
«L’onction d’amour». Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 375. Matteo

168
de quanto se afirmou na seção anterior – Jesus mostra-se ‘amigo dos pecadores’
(Lc 7,34)130. Com este texto o autor procura esclarecer a razão da descriminação
entre ‘o povo e os cobradores de impostos que reconheceram a justiça de Deus’
e ‘os fariseus e doutores da Lei que anularam os desígnios de Deus’ (cf. Lc 7,29-
30). Neste contexto, podemos perceber outras palavras de Lc, nomeadamente,
o ‘pai misericordioso’ (Lc 15,11-32) e do ‘fariseu e do publicano’ (Lc 18,9-14)131.
No entanto, Joseph Fitzmyer, tendo opinião diferente, diz que esta passagem não
tem nenhuma relação directa com os episódios precedentes e não lhe parece fácil
justificar, nem determinar, os motivos da inserção desta passagem precisamente
neste ponto do relato evangélico132. Na verdade, a história da pecadora arrepen-
dida, numa primeira leitura, impressiona pela sua simplicidade e pela sua coe-
rência. Contudo, nem a sua simplicidade é tão simples nem a sua coerência tem
impedido que surjam grandes controvérsias sobre a origem e a formação deste
texto133. Numa leitura mais atenta percebemos imensas tensões e questões para
explicar neste encontro: não é normal que se unjam os pés mas a cabeça (v.46 e
Mc 14,3134); os vv.44-46 que descrevem as falhas do fariseu no acolhimento dos
hóspedes não têm nenhum apoio no resto da história, onde, até pelo contrário,
este trata Jesus por ‘mestre’ (v.40); no v.50 a salvação (isto é, o perdão dos pecados)
é atribuído à fé da mulher, enquanto que no v.47a parece que é devido ao amor.
Todas estas questões indiciam estarmos perante um trabalho de composição135.
Muitos exegetas se dedicaram bastante à comparação desta passagem com
outra unção descrita nos evangelhos: unção de Betânia (Mc 14,3-9136). Se for o

Crimella, numa expressão mais descritiva das personagens, intitulou «La donna, Simone e Gesù». Cf.
M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 152. Roland Meynet intitulou «Jésus et Simon
le pharisien». Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 330.
130
  Lc 7,34: «Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizeis: ‘Aí está um glutão e bebedor de vinho,
amigo de cobradores de impostos e de pecadores’!». BS.
131
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 271. Ver ainda: D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 689.
132
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 684.
133
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 376.
134
  Mc 14,3: «Jesus encontrava-se em Betânia, na casa de Simão, o leproso. Estando à mesa, chegou
uma certa mulher que trazia um frasco de alabastro, com perfume de nardo puro de alto preço; par-
tindo o frasco, derramou o perfume sobre a cabeça de Jesus». BS.
135
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 271-272. Sobre todo este trabalho de redação e as
várias hipóteses de composição sugerimos: G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 272-274; J. Fitz-
myer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 684ss.
136
  Mc 14,3-9: «3Jesus encontrava-se em Betânia, na casa de Simão, o leproso. Estando à mesa, che-
gou uma certa mulher que trazia um frasco de alabastro, com perfume de nardo puro de alto preço;
partindo o frasco, derramou o perfume sobre a cabeça de Jesus. 4Alguns, indignados, disseram entre
si: ‘Para quê este desperdício de perfume? 5Podia vender-se por mais de trezentos denários e dar-se

169
mesmo acontecimento, será que as diferenças se devem simplesmente à tradição
oral, ou a um enfase teológico dado pelas respectivas comunidades transmisso-
ras da tradição; ou por algum interesse especial dos redatores do evangelho?137
François Bovon defende precisamente esta relação entre o texto de Lc que anali-
samos aqui e o texto da unção de Betânia (nas três versões: Mc 14,3-9; Mt 26,6-
13; Jo 12,1-8). Para ele seria uma fixação escrita de um mesmo e só acontecimen-
to evangélico. O esquema narrativo é muito semelhante: Jesus é convidado para
uma refeição; uma mulher entra e unge Jesus; este gesto desencadeia uma reac-
ção negativa; Jesus defende a mulher; e, por fim, faz-lhe um elogio. Encontramos
igualmente outros elementos que coincidem: o frasco de alabastro com perfume
(Mc, Mt e Lc); o nome de quem convida é Simão (Mc, Mt e Lc); a mulher unge os
pés de Jesus e enxuga-os com os seus cabelos (Lc e Jo); e, por fim, o dinheiro tem
um papel quer nas propostas dos críticos (Mc, Mt e Jo), quer na parábola de Je-
sus (Lc). Quem conhece as regras da literatura oral e da hagiografia, sabe que se
podem fazer usos diferentes de um episódio isolado. Deste modo, vemos como
este acontecimento foi integrado de forma distinta entre os evangelistas. Na tra-
dição de Mc faz-se uma leitura cristológica da unção, vinculando-a à teologia
da cruz: a unção messiânica da cabeça (Mc 14,3c - «partindo o frasco, derramou
o perfume sobre a cabeça de Jesus») prefigura o rito fúnebre (Mc 14,8b - «[disse
Jesus] ungiu antecipadamente o meu corpo para a sepultura»). Por isso, Mc situa
este episódio no contexto da paixão, que era estranho à sua origem. Já na tra-
dição de Lc conta-se este episódio numa perspectiva antropológica, como gesto
excepcional de uma mulher: a discussão refere-se agora ao amor a Jesus e não
ao amor de Jesus. A tensão entre o anfitrião e a mulher permite um confronto
teológico entre o ‘mais’ e o ‘menos’ do amar. Este processo e enquadramento
constitui uma dogmatização da relação entre o ‘arrependimento humano’ e o
‘perdão divino’, provavelmente com uma finalidade catequética. Inicia-se uma
reflexão sobre a iniciativa divina e as dimensões da graça que estava ausente no
episódio primitivo138.

o dinheiro aos pobres’. E censuravam-na. 6Mas Jesus disse: ‘Deixai-a. Porque estais a atormentá-la?


Praticou em mim uma boa acção! 7Sempre tereis pobres entre vós e podereis fazer-lhes bem quando
quiserdes; mas a mim, nem sempre me tereis. 8Ela fez o que estava ao seu alcance: ungiu antecipada-
mente o meu corpo para a sepultura. 9Em verdade vos digo: em qualquer parte do mundo onde for
proclamado o Evangelho, há-de contar-se também, em sua memória, o que ela fez». BS. 
137
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 377.
138
  Ibidem, 378-379. Na relação entre o texto de Lc e os textos de Mt, Mc e Jo, aconselhamos: N. Cal-
duch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 57-58.

170
Contudo, Joseph Fitzmyer, depois de fazer semelhante paralelismo entes os
dois episódios, apesar de reconhecer as afinidades prefere sublinhar as divergên-
cias: em Mc, Jesus encontra-se em Betânia não na Galileia; o episódio tem lugar
pouco tempo antes da festa da Páscoa; a mulher unge a cabeça de Jesus, não os
pés; Simão é um leproso e não um fariseu; os reparos sobre a ‘unção’ procedem
de ‘alguns’ dos presentes e não propriamente do fariseu; apresenta-se a autora
do desperdício e faz-se uma menção aos pobres, mas não se diz nada sobre a
condição da mulher; a unção de Jesus relaciona-se com a sepultura e não com o
amor ou o arrependimento da mulher139. Estas e outras diferenças, levam Dar-
rell Bock a concluir que entre Mt, Mc e Jo há muitas semelhanças quando des-
crevem o episódio da unção de Betânia; mas que entre este episódio e aquele que
é aqui descrito por Lc as diferenças são muitas, a ponto de se poder considerar
um evento distinto. Esta ideia vai, como ele próprio reconhece, contra a visão
comum, e já antiga, de que estes textos estejam todos relacionados e se refiram a
um mesmo acontecimento140.
Sem pretender reconstruir a história da formação desta perícopa, podemos
assinalar alguns momentos ou estratos distintos que podem ajudar a perceber
melhor as tensões e as incoerências presentes no texto atual e facilitar a sua com-
preensão. Num primeiro momento, o facto de haver o texto da unção de Betânia
(Mc 14,3ss) confirma que poderia circular na comunidade uma tradição que nar-
rava o encontro de Jesus com uma pecadora na casa de um fariseu. À parte de
retoques sucessivos, esta narração primitiva lê-se nos vv.36-43.50: por um lado,
temos a história de uma mulher pecadora que se lança aos pés de Jesus, arre-
pendida e em lágrimas; por outro lado, temos Jesus que se deixa tocar por uma
mulher pecadora e isso suscita, na perspectiva do fariseu, o problema da pureza.
Jesus responde em primeiro lugar ao fariseu com a parábola (cf. vv.41-42) e, de-
pois, à mulher arrependida - «Ele disse à mulher: ‘A tua fé te salvou. Vai em paz’»
(v.50). Num segundo momento, sob influência da parábola, vem acentuada a di-
ferença de comportamento entre o fariseu e a pecadora. Aqui junta-se o vv.44-46
que surgem como uma interpretação secundária dos vv.37-38. Nestes versículos o
fariseu vem descrito como de tivesse descurado alguns sinais de estima para com
o seu hóspede, contrapondo a atitude da mulher arrependida, que parece cum-

  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 684-685.
139

  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 690-691. Reconhecendo as semelhanças entre os diferentes
140

textos e registando os estudos de Bovon e Fitzmyer, este exegeta prefere insistir nas diferenças e, por
isso, na defesa de que se tratam efetivamente de dois acontecimentos distintos.

171
prir o dever da hospitalidade, onde a unção é entendida como um gesto de amor.
No terceiro elemento consideramos a inserção do v.47, que supõe uma leitura da
narrativa segundo o qual os gestos da mulher são compreendidos como amor141.
Tudo começa com um convite de um fariseu a Jesus para uma refeição. As-
sim, o contexto é de um banquete, um symposium, no qual a refeição fornece o
quadro literário para o diálogo entre o convidado e o dono da casa. Não é a única
vez que Jesus é convidado para uma refeição em casa de um fariseu. No evan-
gelho de Lc é convidado explicitamente outras duas vezes – 11,37ss e 14,1ss142.
De facto, era frequente convidar para uma refeição um mestre que estivesse de
passagem, sobretudo, quando ao sábado tivesse pregado na sinagoga local. No
entanto, a função de tal convite, no texto que analisamos, é mais literária do que
histórica. A intenção não é tanto a de mostrar a amizade de Jesus com alguns
fariseus ou o carácter universal da sua mensagem, não só destinada aos pobres e
pecadores, mas também à elite religiosa; a intenção aqui é dar o quadro adequa-
do para a discussão sobre temas típicos da doutrina farisaica, nomeadamente o
problema da pureza ritual e o do sábado143. No entanto, este início da narração é
claro mas indeterminado: Lc descreve a situação, as circunstâncias, os persona-
gens e o lugar da acção. Mas parece que falta qualquer coisa: Lc elimina os nomes
próprios, o homem que convidou Jesus é apenas um fariseu (só mais tarde o cha-
mará Simão), a mulher é apenas uma pecadora sem indicar qual o pecado (apesar
de referir que era conhecida publicamente como pecadora)144.
A ação começa com a entrada em cena de uma terceira personagem – uma
mulher sem nome – que «trouxe um frasco de alabastro145 com perfume» (v.37b).

141
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 272-273. Aqui aconselhamos a análise profunda de
Roland Meynet: R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 332-334.
142
  Havendo outras referências, neste evangelho, a refeições de Jesus, como 10,38 e 19,5 – e sobretudo
em 5,29 («Levi ofereceu-lhe, em sua casa, um grande banquete; e encontravam-se com eles, à mesa,
grande número de cobradores de impostos e de outras pessoas»). Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan
1994, 694.
143
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 274. Ver ainda: N. Calduch-Benages, Il profumo
del Vangelo, Milano 20092, 65-66.
144
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 153.
145
  Será interessante referir que outras traduções dizem apenas ‘trouxe um vaso de perfume’ não fa-
zendo referência à palavra ἀλάβαστρον presente no original grego. Preferimos aqui a proposta da
tradução portuguesa em relação a outras. «Prese un vaso di profumo». M. Crimella (a cura di), Luca,
Cinisello Balsamo 2015, 153. «Avendo portato un vasetto di profumo». G. Rossé, Il Vangelo di Luca,
Roma 20125, 271. A nossa opção de manter a tradução portuguesa é corroborada por outros autores
como François Bovon: «apporté un flacon d’albâtre contenant du parfum». F. Bovon, L’Évangile selon
saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 375. «She got an alabaster flask of perfume». J. Fitzmyer, The Gos-

172
Uma das muitas mulheres anónimas que aparecem no evangelho de Lc146. Uma
mulher que era conhecida na cidade como pecadora147. Não só era pecadora como
era uma ‘pecadora pública’. Qual o significado disso? Seria ela uma prostituta?148
É verdade que o texto não afirma explicitamente que ela fosse uma prostituta,
mas a designação ‘pecadora pública’ faz-nos pensar indubitavelmente na possibi-
lidade desta interpretação. Mesmo que não o refira, é clara a intenção do evange-
lista que deseja que os leitores identifiquem esta mulher como uma prostituta, ou
seja, uma mulher ‘pública’, da estrada149.
Entretanto, não sabemos como é que, sendo pecadora pública, conseguiu
entrar na casa do fariseu150. Talvez a pregação de Jesus na sinagoga, naquele sá-
bado, tivesse impressionado todos os presentes, inclusive aquela mulher. Nesse
contexto, talvez tivesse conseguido entrar para agradecer as palavras, levando
um vaso de perfume que depois derramou sobre os pés de Jesus – «Ela colo-
cou-se a atrás dele, aos seus pés, chorando151; começou a banhar-lhe os pés com

pel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 683. Ver ainda: D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 693.
146
  Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 55.
147
  «It is the first of two accounts where woman exercise faith in a significant way (8:1-3)». D. Bock,
Luke, I, Michigan 1994, 689. Lc 8,1-3: «1Em seguida, Jesus ia de cidade em cidade, de aldeia em aldeia,
proclamando e anunciando a Boa-Nova do Reino de Deus. Acompanhavam-no os Doze 2e algumas
mulheres, que tinham sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Mada-
lena, da qual tinham saído sete demónios; 3Joana, mulher de Cuza, administrador de Herodes; Susana
e muitas outras, que os serviam com os seus bens». BS.
148
  Para além da tradição, que sempre identificou esta mulher com uma prostituta, François Bovon,
sustenta a ideia de que é um pecado social e público, como deixa entender a expressão usada ἐν τῇ πόλει
(na cidade). Nesse sentido, o autor defende que para Lc era uma prostituta. Cf. F. Bovon, L’Évangile
selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 380-381. Nas Igrejas ocidentais, pelo menos desde a época de
Gregório magno, se identificou, muitas vezes, esta pecadora com Maria de Betânia (irmã de Marta e
de Lázaro) e também, em alguns casos, com Maria Madalena – a quem Jesus tinha expulsado sete de-
mónio (Lc 8,2). Contudo, nada no NT nos permite fazer essas associações. Cf. J. Fitzmyer, The Gospel
According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 688. Ver ainda: D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 695.
149
 Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 64-65. Edward Schillebeeckx
diz que há bons motivos para pensar que esta mulher é uma prostituta. Cf. E. Schillebeeckx, Gesù,
Brescia 19803, 209.
150
  Alguns exegetas referem que nos almoços especiais a porta da casa permanecia aberta possibili-
tando assim que entrassem mesmo os que não tinham sido convidados. Estes podiam sentar-se encos-
tados às paredes e podiam ouvir os diálogos. Contudo, o facto de acção da mulher ter sido ‘repreendi-
da’ e a sua presença não sugere, segundo alguns, que se tratasse de uma refeição especial e pública. Cf.
D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 694.
151
  Apesar da proximidade, preferimos esta tradução à sugestão da tradução portuguesa: ‘Colocando-
-se por detrás dele e chorando’. Inserimos assim, na proximidade com o texto grego, a referência aos
‘pés’ (πόδας). Seguimos de perto vários autores. «Elle se tenait derrière, à ses pieds, toute en pleurs».
F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 375. «And standing behind him at his
feet, weeping». D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 693.

173
lágrimas; enxugava-os com os cabelos e beijava os pés (dele)152, ungindo-os com
perfume» (v.38). A descrição é comovente. Lendo o texto atual, sem considerar
as incongruências decorrentes da composição, todo o comportamento da mu-
lher revela reconhecimento, gratidão, alegria e um amor sem limites no encon-
tro com Jesus. Tudo está centrado nos pés de Jesus: as lágrimas, os cabelos, os
beijos e, por fim, o perfume153.
Tudo isto sublinha a veneração daquela mulher pelo Mestre. Não menos in-
teressante é a atitude de Jesus que a deixa fazer todos estes gestos diante de um
público escandalizado. O contacto com aquela mulher, sobretudo se fosse pros-
tituta, tornava-o impuro como tocar um porco ou um cadáver. No entanto, Jesus
acolhe-a e deixa-se tocar por ela154. No versículo seguinte o fariseu dirá explicita-
mente que esta mulher estava a ‘tocar em Jesus’ [ἅπτεται αὐτοῦ - v.39b].
Esta ‘mulher do perfume’ não é cega nem leprosa, não é surda-muda nem
paralítica, não tem um fluxo de sangue nem é possuída por um demónio. O seu
‘mal’ é de outra ordem: viveu uma vida de pecado. Esta ‘mulher do perfume’ é
a mulher do muito amor, a mulher da gratidão infinita, a mulher que não sabe
exprimir em palavras quanto o seu coração sente por Jesus. Na falta das palavras,
o seu coração ‘arrisca’ um gesto audaz155. De facto, toda esta interação, quase
teatral, entre a mulher e Jesus, é caracterizada pelo silêncio daquela mulher – que
não dirá uma única palavra ao longo de todo o texto. De facto, os seus gestos

152
  A expressão grega é κατεφίλει τοὺς πόδας αὐτοῦ o que significaria à letra ‘beijava os pés dele’. De-
cidimos seguir mais de perto a versão grega, em vez da tradução portuguesa que dizia simplesmente
- ‘beijava-os’. «Kissed his feet». D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 693. «Elle baisait ses pieds». F. Bo-
von, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 375. Será interessante referir que este mesmo
verbo (καταφιλέω) é usado depois do abraço do pai ao filho pródigo: «E, levantando-se, foi ter com o
pai. Quando ainda estava longe, o pai viu-o e, enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao
pescoço e cobriu-o de beijos [κατεφίλησεν]» (Lc 15,20). BS.
153
  A descrição destes factos compreende-se melhor se recordarmos que Jesus estaria reclinado à
mesa. Uma posição que é confirmada pelo uso da palavra grega συνανακείμενοι (v.49), que traduzi-
mos por ‘comensais’, mas que tem na sua raiz o verbo συνανάκείμαι (‘estar reclinado à mesa’). Assim
percebemos mais facilmente como é que, estando Jesus ‘sentado’ à mesa, a mulher pudesse estar aos
seus pés – παρὰ τοὺς πόδας αὐτοῦ (v.38). Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève
1991, 380. Ver ainda: J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 688. «Recli-
ning (κατακλίνω) was the normal position for eating a special meal in the ancient Near East (9:14-15;
14:8; 24:30) (…). Each person would lie on his side, facing the table, and with body and feet angling
away from the table». D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 694.
154
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 274-275. Ver ainda: M. Crimella (a cura di), Luca,
Cinisello Balsamo 2015, 153.
155
  Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 56.

174
falam por mil palavras156. Todavia, esses mesmos gestos são considerados pouco
convenientes, segundo os critérios da época: uma mulher entra num banquete –
algo reservado aos homens; traz consigo um frasco de perfume - provavelmente
comprado com dinheiro da vida que levava; desata os cabelos para enxugar os
pés – considerado, para a sensibilidade judia, um gesto altamente erótico157. A
posição corporal da mulher é muito eloquente. Jesus reclinado sobre a mesa e a
mulher no chão, diante dele. Prostrada aos seus pés a mulher mostra uma atitude
de serviço, de discípula, de escuta, disposta a acolher a palavra. Esta postura re-
corda-nos: por um lado, Maria, irmã de Marta, que «sentada aos pés do Senhor,
escutava a sua palavra» (Lc 10,39); e, por outro lado, a própria atitude de Jesus
quando lavou os pés aos discípulos na última ceia (Jo 13,5)158. Esta ‘mulher do
perfume’ beija os pés e realiza-o à frente de todos – um gesto que tem a ver com
intimidade; unge os pés de Jesus – quando em Israel se ungia ritualmente o rei,
mas sempre na cabeça. Jesus, ao contrário dos fariseus, rejeita os clichés da época
e deixa-se tocar por esta mulher. Graças às lágrimas, que são de arrependimento,
percebe o verdadeiro sentido da mensagem oculta nos seus gestos159.
Perante tudo isto, o fariseu não condena Jesus por este não saber que aquela
mulher era pecadora, uma vez que ele não era daquela terra, mas conclui que Je-
sus não seria um profeta - «Se este homem fosse profeta, saberia quem é e de que
espécie é a mulher que lhe está a tocar [ἅπτεται αὐτοῦ], porque é uma pecadora!»
(v.39b). Este ‘contacto físico’ que se estabelece entre aquela mulher e Jesus repre-
sentará um escândalo para o fariseu, sobretudo, porque Jesus não recusa esse
contacto. Para Simão, este ‘tocar’ têm a conotação da reputação daquela mulher
e, por esta razão, é impensável que Jesus o aceite160. Por isso, Jesus não poderia
ser profeta. De facto, na ideia do fariseu, um profeta tem de ter pelo menos duas
qualidades: por um lado, conhecer os pensamentos e as intenções das pessoas;
por outro lado, a fidelidade à Lei de Deus e, neste sentido, não podia deixar-se

156
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 695.
157
  «Il profumo non si dona a chiunque, né si usa inutilmente. È un dono destinato a dimostrare defe-
renza a persone molto amate». N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 71. Sobre
o simbolismo social deste gesto concreto no mundo grego-romano aconselhamos: C. Cosgrove, «A
Woman’s Unbound Hair in the World. With Special Reference to the Story of teh ‘Sinful Woman’
in Luke 7:36-50», JBL 4 (2005) 675-692. Marie-Laure Veyron sublinha esta conotação do gesto: «Les
cheveux et les baisers sont évocateurs de sensualité, porteurs d’une charge érotique et relèvent de l’in-
timité, comme les larmes». M.-L. Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013, 133.
158
  Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 68.
159
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 381-382.
160
  Cf. M.-L. Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013, 135-139.

175
tocar por uma pecadora. Contudo, a resposta de Jesus ao fariseu, agora chamado
de Simão (certamente por influência de Mc 14,3)161, mostra que: por um lado,
Jesus é profeta uma vez que revela que sabe quem é esta mulher e conhece ainda
os pensamentos do fariseu; por outro lado, deixa-se tocar com plena consciência
de ir contra a ideia de pureza ritual de Simão. Estamos assim diante duas perspe-
tivas bem diferentes – a de Jesus e a do fariseu162. Com uma certa ironia a partir
da maiêutica, Lc opõe o saber profético de Jesus (v.40) ao julgamento precipitado
do fariseu (v.39)163.
Depois segue-se uma parábola164: «Um credor165 tinha dois devedores: um de-
via-lhe quinhentos denários e o outro cinquenta. Não tendo eles com que pagar,
perdoou [as dívidas] aos dois. Qual deles o amará mais?» (vv.41-42). Com esta
parábola Jesus não responde à problemática de Simão (questão de pureza), mas
dá uma certa interpretação ao comportamento da mulher onde as suas atitudes,
entendidas como arrependimento, decorrem do perdão recebido. A situação dos
dois devedores revela a situação de cada homem diante de Deus. Na perspectiva
de Jesus o homem é sempre em débito. A diferença entre os dois devedores, um
devia 500 denários e outro 50166, faz-nos pensar que Jesus considera o fariseu um
homem ‘justo’ e a mulher uma verdadeira ‘pecadora’. Numa primeira leitura, o
pecador manifesta mais agradecimento a Deus que o justo. Mas a novidade da

161
  No v.40, as interpelações ‘Simão’ (Σίμων) e ‘Mestre’ (διδάσκαλε) marcam uma nova relação peda-
gógica de mestre para discípulo. Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 383.
Ver ainda: J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 690.
162
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 275. Ver ainda: D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 697.
163
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 383. Ver ainda: R. Meynet,
L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 335.
164
  A parábola começa de forma abrupta e sem introdução. Tanto a conclusão da mesma, como a am-
biguidade do comentário, indicam que a parábola é uma adição posterior. Cf. J. Fitzmyer, The Gospel
According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 690.
165
  A tradução portuguesa sugere ‘prestamista’ que significa uma pessoa que empresta com juros.
Apesar do sentido ser esse, preferimos traduzir a palavra δανιστής por ‘credor’. Cf. C. Rusconi,
«δανιστής», in DGNT, São Paulo 2003, 115. No mesmo sentido, François Bovon traduz: «créancier».
Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 375. Ver ainda: M. Crimella (a cura
di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 155; G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 271. A tradução de
Joseph Fitzmyer é mais próxima de ‘prestamista’: «moneylender». J. Fitzmyer, The Gospel According
to Luke (I-IX), I, New York 1981, 683. Ver ainda: D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 693.
166
  Denário (δηνάριον) é uma moeda de prata em uso no império romano, correspondente ao salário
de um dia de trabalho de um operário. Cf. C. Rusconi, «δηνάριον», in DGNT, São Paulo 2003, 121.
Com efeito, na parábola dos trabalhadores da vinha é indicado que: «Ajustou com eles um denário por
dia e enviou-os para a sua vinha» (Mt 20,2). Deste modo, podemos dizer que o primeiro homem devia
um valor que correspondia a cerca de um ano e meio de trabalho, enquanto que o segundo apenas a
cerca de dois meses. Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 154.

176
mensagem de Jesus está, sobretudo, na relação que ele vai estabelecer – Deus
aproxima-se do homem como um Deus de perdão. Esta identidade inverte a si-
tuação ao ponto de que o devedor mais desfavorecido torna-se o mais favorecido.
Jesus provoca Simão com uma pregunta, segundo a técnica rabínica: «Qual deles
o amará mais?» (v.42b). A resposta deste é diplomática: «Suponho que aquele a
quem perdoou mais167» (v.43a). Mais do que temer uma armadilha na pergunta
do Mestre ele percebeu as consequências teológicas e práticas ao qual Jesus o
queria conduzir168. Jesus obriga o interlocutor a passar do plano simplesmente
económico para um plano essencialmente efetivo169.
Nos vv.44-46, sendo uma aplicação concreta da parábola, evidencia o grande
amor da mulher em contraste com o pouco amor do fariseu. Simão não arranjou
água para lavar os pés a Jesus, não deu o ‘beijo’170 de boas vindas, não ungiu a
cabeça com perfume. Como está dito, o fariseu não pecou contra a hospitalida-
de, mas falta aquele ‘mais’ que a mulher revelou ter em abundância, que é sinal
de conversão e de acolhimento do anúncio de Jesus. Neste sentido, os vv.44-46
interpretam a narração (vv.37-39) à luz da parábola (vv.41-42)171. A partir deste
momento a mulher assume o lugar central da cena, transforma-se na persona-

167
  O verbo grego ὑπολαμβάνω seguido de ὅτι, como é o caso, pode ser traduzido por ‘crer’, ‘pensar’,
‘supor’. Cf. C. Rusconi, «ὑπολαμβάνω», in DGNT, São Paulo 2003, 473. Dando enfase maior à expres-
são sugerimos esta tradução, em vez da proposta da tradução portuguesa, ainda que próxima: ‘Aquele
a quem perdoou mais, creio eu’. Outras traduções corroboram a nossa opção. «I would suppose the
one to whom he forgave more». D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 693. «I suppose, the one for whom he
cancelled the greater debt». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 683.
«Je presume que c’est celui auquel il a offert le plus». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I,
Genève 1991, 375.
168
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 276.
169
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 154. Ver ainda: D. Bock, Luke, I, Mi-
chigan 1994, 700-701.
170
  A tradução portuguesa sugere a palavra ‘ósculo’ que significa um ‘beijo de amizade’ entre pessoas
de uma comunidade cristã. Apesar da proximidade de sentido, preferimos traduzir a palavra φίλημα
por ‘beijo’. Cf. C. Rusconi, «φίλημα», in DGNT, São Paulo 2003, 482. No mesmo sentido, François
Bovon traduz por «baiser». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 375. Gérard
Rossé também traduz por ‘bacio’. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 271. Ver ainda: M. Cri-
mella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 157. Joseph Fitzmyer traduz por «kiss of welcome». J.
Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 683. Ver ainda D. Bock, Luke, I, Mi-
chigan 1994, 693. Talvez a opção da tradução portuguesa tenha a ver com o facto de não ser comum,
entre nós, o beijo entre homens, mesmo na comunidade cristã, com a exceção de familiares muito
próximos (como pai e filho). Contudo, a nossa opção, para além de respeitar o original grego, permite
perceber o contraste entre o ‘beijo’ que o fariseu não deu a Jesus e a atitude da mulher pecadora que
não cessava de lhe ‘beijar’ os pés.
171
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 277.

177
gem principal e, sobretudo, num modelo de referência de conduta. Os seus gestos
de amor contrastam com a negligência do patrão da casa. Este não cumpriu os
seus deveres e, desse modo, é um transgressor da lei. Para Jesus aquela mulher
pecadora foi a verdadeira ‘patroa’ da casa172.
Chegamos assim ao v.47 que parece uma conclusão semelhante a muitas pa-
rábolas, como uma sentença geral e parenética - «foram perdoados os seus muitos
pecados, porque muito amou; mas àquele a quem pouco se perdoa pouco ama».
A expressão ‘porque [ὅτι] amou muito’ é ambígua. De facto ὅτι (v.47a) pode in-
dicar a causa real do perdão, ou a causa cognoscitiva173. Os exegetas discutem
se este ὅτι deve ser ‘porque’ ou antes ‘para que’ – será requisito ou efeito?174. No
primeiro caso, o amor é causa do perdão, ou seja, precede-o; no segundo caso, é o
efeito, ou seja, segue-se a este. Pela gramática não conseguimos concluir a opção
mais ajustada. Resta procurar a lógica da narrativa175. Segundo François Bovon,
o sentido que salta à vista do v.47a (perdoa-se àquele que ama) parece contradito
pelo v.47b (alguém ama porque foi perdoado). Contudo, há uma subtil diferença,
aparentemente muito subtil: o que temos não é uma consequência causal dos atos
aqui descritos. Neste sentido, ὅτι não pode significar aqui ‘porque’ (amou muito)
mas ‘uma vez que’ (foi perdoada em muito). Deste modo, o seu amor seria uma
prova de já ter sido perdoada. Assim, o v.47a teria o mesmo sentido que o 47b – o
amor seguir-se-ia ao perdão e confirmá-lo-ia176.
Também, Joseph Fitzmyer, sugere que a passagem significa, sobretudo, que a
mulher se apresenta a Jesus depois de ter experimentado o perdão de Deus e quer,
por isso, manifestar com gestos exteriores o seu amor e a sua gratidão. Deste
modo, parecem fazer mais sentido, as lágrimas, os beijos, o desperdício de per-
fume. Nesta perspetiva o amor dela é fruto de ter experimentado o perdão177. Por

172
  Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 76.
173
  A palavra grega ὅτι pode significar, entre várias possibilidades: ‘porque’, ‘que’, ‘para que’ ou ‘uma
vez que’. Carlo Rusconi diz que neste caso concreto seria ‘uma vez que’. Cf. C. Rusconi, «ὅτι», in
DGNT, São Paulo 2003, 341. Esta conjunção é de muito difícil tradução, tem dividido os exegetas,
porque só podemos fazer uma opção a partir do contexto e do sentido do episódio. Muitos optam por
traduzir por ‘porque’ explicando posteriormente que o sentido é, sobretudo, que o seu muito amor é
causado pelo facto de ter sido perdoada em muito. Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50),
I, Genève 1991, 375 e 384-385. Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981,
683 e 692. Ver ainda D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 693 e 702.
174
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 210. Ver ainda: M.-L. Veyron, Le toucher dans les
Évangiles, Paris 2013, 144-145.
175
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 155.
176
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 384-385.
177
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 687. Neste mesmo sentido

178
tudo isto, este episódio constitui um dos mais significativos de todo o evangelho
de Lc, não só porque apresenta Jesus defendendo uma pecadora frente às críticas
de um fariseu, mas também porque descreve de maneira plástica a relação entre
o perdão dos pecados (realizado por Deus) e o lugar que ocupa, em todo este
processo, o amor humano178. É o perdão divino que nos abre à possibilidade de
um amor maior.
No entanto, Gérard Rossé defende, quase isoladamente, que o amor demons-
trado pela mulher – que inclui o arrependimento e a relação pessoal com Cristo
– é o motivo pela qual Deus lhe concedeu o perdão. Aqui ὅτι (v.47a) indicaria a
causa e a razão do perdão – foi perdoada (muito) porque amou (muito). Nesta
perspetiva, apenas a segunda parte da antítese (quem é perdoado pouco, ama
pouco) corresponde à parábola – exprimindo uma verdade geral. A primeira par-
te (é perdoado muito, porque amou muito) tem a ver com a mulher e a sua atitude
– o seu arrependimento e a manifestação da sua conversão nas atitudes de amor
para com Jesus é o motivo pela qual Deus lhe concedeu o perdão179. Mas esta
perceptiva não colhe consenso entre os exegetas e parece levantar dificuldades
desnecessárias de coerência interna de sentido do próprio texto.
No entanto, depois de identificarmos estas duas possibilidades, talvez possa-
mos concluir, como François Bovon: mesmo que o amor de Deus esteja no centro
da sua mensagem, ele garante sempre um lugar importante à responsabilidade
humana. Não há amor divino sem reciprocidade. Neste debate não está em causa
a pessoa de Deus e o primeiro passo, cronológico e principal, dado por ele, mas,
sobretudo, a relação que as duas personagens (a mulher e o fariseu) têm, ou não,
como resposta a este amor de Deus, concedido por Jesus. De facto, parece que Lc
sugere uma tensão neste versículo entre o perdão concedido por Deus e os gestos
de amor agradecido da mulher perdoada180. Uma tensão que nos abre à possi-
bilidade de assinalarmos uma complexa reciprocidade dialética entre o perdão
e o amor: só ama plenamente quem se sente perdoado; só pode perdoar quem

vai Matteo Crimella quando afirma: «L’amore della donna è effetto del perdono che ha ricevuto (…)
Dunque vedendo il suo amore si può dedurre che è stata perdonata». Cf. M. Crimella (a cura di),
Luca, Cinisello Balsamo 2015, 156. Darrell bock, corroborando esta mesma tese, diz de forma ainda
mais explícita: «Because the woman was forgiven much, she loves much; her love is demonstrated by
her actions, so that her great love reflects the presence of great forgiveness». D. Bock, Luke, I, Michi-
gan 1994, 703.
178
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 687.
179
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 277.
180
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 384-385.

179
verdadeiramente ama; só é perdoado quem reconhece profundamente as suas
fragilidades e se abre ao amor. De facto, perdão e amor são dois dinamismos que
se reclamam porque nenhum pode existir autenticamente sem o outro.
Depois deste versículo, Simão ‘desaparece’ da cena e Jesus diz à pecadora
arrependida: «os teus pecados estão perdoados» (v.48). Jesus, o ‘terapeuta’, aplica
um remédio de eficácia instantânea: perdoa-lhe todos os pecados. Não pergunta
pelos pecados, não os classifica. O ‘remédio’ de Jesus regenera, no coração des-
truído da mulher, os sentimentos mais delicados do ser humano: amor e gra-
tidão181. De facto, Jesus reforça a ideia do perdão dela e encoraja-a através da
garantia de que os seus pecados estão perdoados. O verbo ἀφίημι (perdoar) usado
no perfeito do indicativo (ἀφέωνται), que ocorre também no versículo anterior
(ἀφίεται), revela que ela está num estado de perdão, sugerindo que esse processo
começou algures no passado. Um processo que Jesus agora reafirma e confirma
diante do fariseu Simão.
Sem esta afirmação de Jesus, os seus gestos podiam ser interpretados de duas
maneiras: como ofensivos ou como honrosos. Jesus através da sua autoridade e
da sua aprovação mostrou que eram honrosas expressões de amor. Esta mes-
ma afirmação já Jesus tinha dito ao paralítico, descido pelo telhado: «Vendo a fé
daqueles homens, disse: ‘Homem, os teus pecados estão perdoados’» (Lc 5,20).
Em resposta «os doutores da Lei e os fariseus começaram a murmurar, dizendo:
‘Quem é este que profere blasfémias? Quem pode perdoar pecados, a não ser
Deus?’ (Lc 5,21). Esta mesma atitude têm agora os ‘comensais’182, diante do per-
dão de Jesus a esta mulher: «quem é este que até perdoa os pecados?» (v.49). Esta
pergunta, ao contrário da afirmação de Jesus sobre o perdão concedido, não é
feita em voz alta, mas ‘entre eles’ (ἐν ἑαυτοῖς) – como tinha feito anteriormente o
fariseu (v.39)183. Esta pergunta prepara o leitor do evangelho de Lc para a perple-

181
  Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 56.
182
  Apesar da proximidade de sentido, aqui sugerimos ‘comensais’ e não ‘convivas’ como sugere a
tradução portuguesa. A palavra grega συνανακείμενοι traduz-se por ‘comensais’ e, na sua raiz, está
um verbo que significa: ‘estar à mesa’ ou ‘estar reclinado à mesa’. Cf. C. Rusconi, «συνανάκείμαι»,
in DGNT, São Paulo 2003, 437. No mesmo sentido, Matteo Crimella usa a palavra ‘commensali’. Cf.
M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 157. Ver ainda: G. Rossé, Il Vangelo di Luca,
Roma 20125, 271. No entanto, François Bovon opta por ‘convives’. Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint
Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 375. Joseph Fitzmyer traduz juntando os dois sentidos ‘convidados’ e
‘reclinados à mesa’: «the guests who reclined at table». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-
IX), I, New York 1981, 683.
183
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 705-706.

180
xidade de Herodes184, para a opinião das pessoas185, para a confissão de Pedro186 e
anuncia também a paixão187.
A última frase é dirigida por Jesus à mulher - «A tua fé te salvou. Vai em
paz» (v.50). Trata-se de uma fórmula consagrada e que conclui habitualmente, na
tradição sinóptica, as narrativas de cura (cf. Mc 5,34; 10,52; Lc 8,48; 17,19; 18,42).
Talvez seja um acrescendo redaccional para fazer entender que o verdadeiro fun-
damento do perdão é a fé. O que sabemos é que é uma formulação estereotipada
e a sua posição no final deste episódio é convencional. Ao nível redaccional, a fé
da mulher significa confiança total no poder salvífico de Jesus, abertura ao per-
dão divino que ele lhe comunica. É essa a paz, que se relaciona com a fé, que só
pode vir de Deus e não de um taumaturgo. A paz que, sendo muito mais do que
ausência de guerra, implica plenitude de encontro e agora é actualizada de modo
novo na comunhão com Deus, através de Jesus188. Revela-se assim o duplo dina-
mismo: do pecado à salvação (ἡ πίστις σου σέσωκέν σε – a tua fé te salvou) e da
salvação à vida cristã (πορεύου εἰς εἰρήνην – vai em paz). A salvação não é uma
fusão passiva, infantil ou eufórica dos crentes com Deus, mas exige um regressar
à vida concreta, mas já não sós. O ‘ir em paz’ quer dizer, por isso mesmo, que
estão chamados a entrar numa comunidade e que Cristo não abandona os seus189.
Do final desta narração emerge uma sequência de causa efeito, na qual a fé
conduz ao perdão e o perdão provoca o amor190. Na base está a fé que é uma re-
lação de confiança e de entrega. Por isso, diz Darrell Bock, a referência à fé como
a razão da salvação, confirma que não foram as ações mas a fé que motivou a
atitude de Jesus. Os gestos de amor da mulher revelam que ela tinha sido primei-
ramente aceite por Deus. Ela pode ter a certeza de que Deus olhou para a sua fé
e perdoou os seus pecados. Uma fé que se expressou em amor e gratidão. Jesus

184
  Lc 9,7-9: «7O tetrarca Herodes ouviu dizer tudo o que se passava; e andava perplexo, pois alguns
diziam que João ressuscitara dos mortos; outros, 8que Elias aparecera, e outros, que um dos antigos
profetas ressuscitara. 9Herodes disse: ‘A João mandei-o eu decapitar, mas quem é este de quem oiço
dizer semelhantes coisas?’ E procurava vê-lo». BS.
185
  Lc 9,18-19; «18Um dia, quando orava em particular, estando com Ele apenas os discípulos, pergun-
tou-lhes: ‘Quem dizem as multidões que Eu sou?’ 19Responderam-lhe: ‘João Baptista; outros, Elias;
outros, um dos antigos profetas ressuscitado’. BS.
186
  Lc 9,20: «Disse-lhes Ele: ‘E vós, quem dizeis que Eu sou?’ Pedro tomou a palavra e respondeu: ‘O
Messias de Deus’». BS.
187
  Lc 9,22: «‘O Filho do Homem tem de sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacer-
dotes e pelos doutores da Lei, tem de ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar’». BS.
188
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 279.
189
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 386.
190
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 156.

181
entende que essa transformação é o coração da sua missão. Por isso, a questão
cristológica fundamental deste texto é - «quem é este que até perdoa os pecados?»
(v.49)191. Deste modo, a mulher que entrou sem dignidade e sem suporte na casa
do fariseu, sai com o reconhecimento da sua dignidade e com o perdão que Jesus
lhe concedeu. Esta atitude ‘inclusiva’ de Jesus é profundamente humana e liber-
tadora. De facto, encontrar-se com Jesus é sempre um ponto de partida, uma
janela aberta ao futuro e, sobretudo, um estímulo de esperança192.

2.4. Jesus encontra-se com um homem possuído por vários demónios193


Desde logo o texto que aqui estudamos, Lc 8,26-39194, encontra os seus paralelos
em Mc 5,1-20 e Mt 8,28-34. Contudo, das três versões encontramos mais semelhan-
ças entre Lc e Mc do que com Mt. De facto, a versão de Mt tem várias diferenças,
desde logo, porque fala de ‘dois’ possessos e não de apenas ‘um’, como Mc e Lc195.
François Bovon, depois de uma longa comparação sinótica, conclui que Mc é a
única inspiração de Lc, excluindo-se qualquer influência de Mt196. Deste modo, po-
demos dizer que Lc reelabora, adaptando, a narração de Mc 5,1-20197. Por um lado,
Lc mantém certos detalhes descritivos da apresentação do endemoniado - como a

191
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 707-708.
192
  Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 80.
193
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: M. Mullins, The Gospel of Luke,
Dublin 2010, 256-261; F. Bassin, L’évangile selon Luc, I, Vaux-sur-Seine 2006, 283-286; R. Zimmer-
mann, «Auslegungskunst. Sehepunkte zur Wundererzählung vom Besessenen aus Gerasa (Mk 5,1-
20)», BN 152 (2012) 87-115.
194
  Esta unidade literária é delimitada quase unanimemente: 8,26-39. A única exceção que encontrá-
mos foi em Roland Meynet, que suprime o v.26, definindo assim a unidade: 8,27-39. Assinalamos agora
algumas diferenças nos títulos que os vários autores atribuem a esta passagem: Joseph Fitzmyer intitu-
lou «The Gerasene Demoniac». Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981,
732. Darrell Bock intitula «Authority over Demons: Gerasene Demoniac». Cf. D. Bock, Luke, I, Michi-
gan 1994, 766. Roland Meynet intitulou «La libération du possédé de Gérasa». Cf. R. Meynet, L’évan-
gile de Luc, VIII, Pendé 2011, 364. Gérard Rossé intitulou «L’indemoniato di Gerasa». Cf. G. Rossé, Il
Vangelo di Luca, Roma 20125, 297. Matteo Crimella intitulou «Liberazione di un indemoniato». Cf. M.
Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 165. François Bovon intitulou simplesmente «Le
possédé de Gergésa». Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 417.
195
 Cf. I. Sibaldi, I miracoli di Gesù, Milano 1989, 18. Ver ainda: J. Fitzmyer, The Gospel According to
Luke (I-IX), I, New York 1981, 733. São vários os casos de ‘duplicação’ em Mt, como na passagem do
‘cego de Jericó’ (‘um’ em Mc 10,46; Lc 18,35 e ‘dois’ em Mt 20,30) ou no número de animais usados
para entrar em Jerusalém (‘um’ em Mc 11,2; Lc 19,30 e ‘dois’ em Mt 21,2). Cf. G. Michelini (a cura
di), Matteo, Cinisello Balsamo 2013, 157.
196
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 421. Ver ainda: J. Fitzmyer,
The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 733; D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 768-769.
197
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 165.

182
fúria que o levava a partir as cadeias e os grilhões com que o tentavam dominar; e
omite outros - como por exemplo, o ‘passar o dia e a noite, entre os túmulos, a gritar
e a ferir-se com pedras’ (cf. Mt 5,5). Por outro lado, na redação de Mc, o exorcismo
de Jesus consiste num mandato direto: «Sai desse homem, espírito impuro198» (Mc
5,8b), enquanto em Lc esta referência é indireta: «Jesus, efectivamente, ordenava ao
espírito impuro199 que saísse do homem» (Lc 8,29a). Este mesmo fenómeno dá-se
também na súplica dos ‘demónios’: direta em Mc (5,12b) e indireta em Lc (8,32b).
Por fim, outra diferença é que em Mc o pedido da ‘legião’ é de ‘não serem expulsos
daquela região’, já em Lc é de ‘não serem mandados para o abismo’200.
Este texto, na sua versão escrita, trata-se claramente ao género ‘exorcismo’, que
é um ‘tipo’ de cura, ainda que precise de ser diferenciado. Os exorcismos têm mais
a ver com a existência de ‘demónios’ e as curas, segundo a mentalidade da época,
mais a ver com os seus efeitos, ou seja, as doenças201. O exorcismo só pode terminar
com a ‘expulsão’ do demónio e com a consequente libertação do possesso. Neste
contexto sublinhamos cinco elementos que constituem o género ‘exorcismo’ e se
encontram nesta perícopa: 1) o encontro; 2) o demónio defende-se e luta contra o
exorcista; 3) a ‘expulsão’ [ἀποπομπή]; 4) a ‘transferência’ do demónio para outra
vítima animal (ou para um objeto, ou para um elemento natural); 5) o impacto
do exorcismo nos ‘espetadores’202. Contudo, Darrell Bock apresentará não cinco
mas sete características: 1) desprezo pela dignidade pessoal; 2) isolamento social; 3)
afastamento para uma morada básica; 4) reconhecimento da divindade de Jesus; 5)
controlo domoníaco da fala; 6) gritos; 7) força extraordinária203.

198
  Sugerimos ‘impuro’ em vez da tradução portuguesa que indica ‘maligno’. De facto a palavra que
está no texto é ἀκάθαρτον que significa ‘impuro’ ou ‘imundo’. Cf. C. Rusconi, «ἀκάθαρτος», in
DGNT, São Paulo 2003, 28. Esta nossa opção é suportada, desde logo, por Giacomo Perego que traduz:
«Spirito impuro esci dall’uomo». G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo
2011, 119.
199
  Também aqui sugerimos ‘impuro’ em vez do que a tradução portuguesa volta a propor ‘maligno’.
De facto, a palavra ἀκαθάρτῳ tem o sentido de ‘impuro’ ou ‘imundo’. Cf. C. Rusconi, «ἀκάθαρτος»,
in DGNT, São Paulo 2003, 28. Neste mesmo sentido, Joseph Fitzmyer e Darrell Bock traduzem por
«unclean spirit». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 732 e D. Bock,
Luke, I, Michigan 1994, 770. François Bovon também traduz por «l’esprit impur». F. Bovon, L’Évan-
gile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 417. Matteo Crimella traduzirá igualmente por «spirito
impuro». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 165. Já Gérard Rossé traduzirá por
«spirito immondo». G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 298.
200
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 733.
201
  Como é claro no caso da mulher curvada que estava ‘presa’ por ‘satanás’ há dezoito anos e foi cura-
da por Jesus a um sábado na sinagoga (cf. Lc 13,10-17).
202
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 422.
203
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 766.

183
É importante referir, desde já, que Lc relata apenas três exorcismos: a cura
de um homem possesso, a um sábado, na sinagoga de Cafarnaúm (cf. 4,31-37);
este episódio do homem que tinha vários demónios (cf. 8,26-39); e a expulsão
de um demónio mudo (cf. 11,14-26). Apesar de serem poucos relatos de exor-
cismo, François Bovon, afirma que Lc crê firmemente na existência e no poder
dos demónios, ‘assumindo’ que por detrás dos ‘demónios’ está o ‘diabo’204. Par-
ticularmente relevante é o facto de a cura de um homem possesso, em Cafar-
naúm, ter sido a primeira cura realizada por Jesus no território judaico205 e a
cura deste homem possesso, em Gerasa, ter sido a primeira cura realizada no
território estrangeiro.
No entanto, para Joseph Fitzmyer, este episódio não é um simples relato de
exorcismo (comparado, por exemplo, com 4,33-37), já que juntou à ‘típica narra-
ção de milagre’ elementos do mundo da fantasia, estranhos e caricatos206. Darrell
Bock falará de um texto com ‘características de lenda’ usado pela Igreja primitiva
para expressar o poder supremo de Jesus207. Gérard Rossé fala de uma história
pitoresca que emerge no meio de crenças populares sobre os espíritos - onde é
clara a perspetiva cristológica208. Estas crenças populares surgem, sobretudo, na
literatura sincretista e pré-cristã. Uma presença que acabou por influenciar a fé
popular da Palestina e, ainda que de modo menos acentuado, o judaísmo em
diáspora. Deste modo, o ‘demónio’, o ‘satanás’ e o ‘diabo’ constituem uma com-
ponente essencial da consciência religioso-cultural de todos os autores do NT,
sendo muitas as referências, principalmente nos quatro evangelhos209.
Esta passagem bíblica não deixa de criar alguma reserva e alguma perple-
xidade no leitor, suscitando uma infinidade de questões: Jesus não está aqui a
ser apresentado como alguém cruel com os animais? Como poderia ele causar
uma perda económica tão importante para os donos de tantos animais? Fará
sentido que um judeu como Jesus se dirija a um lugar onde estão tantos animais

204
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 422.
205
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 165.
206
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 734.
207
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 767.
208
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 298.
209
  Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 590. Nas páginas anteriores a esta, o autor apresen-
ta diversos exemplos destas crenças e lendas populares sobre as ‘potências demoníacas’ nos escritos
extra-bíblicos, sobretudo em: 1 Enoch, no Livro dos Jubileus, nos Testamenta XII Patriarcharum, na
Vida Adae et Evae e nos escritos proto-essênicos de Qumran. Todas estas obras foram escritas por
volta de 150 a.C. que, posteriormente, foram enriquecidas e re-elaboradas por passagens cristãs, de tal
modo que tais escritos eram lidos naturalmente no cristianismo ‘primitivo’.

184
considerados impuros? Que força seria aquela que fez com que tantos animais se
‘sentissem’ empurrados para saltarem do alto do precipício para o lago? Será que
Jesus acredita verdadeiramente na superstição popular na época sobre a ‘posses-
são diabólica’? Na verdade, tais questões desviam-se da finalidade essencial que
é de ordem simbólico-religiosa210. Trata-se, sobretudo, de uma epifania, do poder
de Deus, que acontece num encontro211.
Em concreto, este episódio, que representa um tipo diferente de milagre212,
está organizado em quatro momentos: a apresentação do homem possesso (vv.26-
29); o encontro com Jesus (vv.30-31); o afogamento dos porcos (vv.32-33); os efei-
tos do milagre (vv.34-39)213. Joseph Fitzmyer fala não apenas de quatro mas de
sete momentos nesta passagem de Lc, tendo feito uma análise a partir do texto de
Mc: chegada de Jesus à região dos gerasenos e encontro com o endemoniado (Mc
5,1-3a; Lc 8,26-27a); descrição das condições físico-psíquicas do endemoniado e
os sintomas da sua doença (Mc 5,3b-5; Lc 8,27b.29bc); reconhecimento pelos de-
mónios de Jesus como o exorcista (Mc 5,6-7; Lc 8,28); o exorcismo propriamente
dito com o seus dois elementos de ‘expulsão’ e de ‘transferência’ dos demónios
(Mc 5,8-13a; Lc 8,30-32); comprovação da saída dos demónios (Mc 5,13bc; Lc
8,33); f) reação dos presentes e dos outros (Mc 5,14-17; Lc 8,34-37); conclusão
missionária (Mc 5,18-20; Lc 8,38-39)214.
Em todos os sinóticos, esta passagem bíblica, encontra-se imediatamente a
seguir à tempestade acalmada (Lc 8,22-25; Mc 4,35-41; Mt 8,23-27). Jesus, que
estava na Galileia, quis passar para ‘a outra margem do lago de Tiberíades’ (cf. Lc
8,22b). Foi uma travessia tempestuosa - «Um turbilhão de vento caiu sobre o lago,

210
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 734. Na página seguinte,
este mesmo autor, afirma que pode parecer surpreendente que este episódio, decorrente da tradição
popular, tenha encontrado lugar na literatura canónica, no entanto, pergunta-se, não poderá a inspi-
ração bíblica, entendida correctamente, assimilar inclusive tradições com estas características? Ver
ainda: D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 767.
211
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 423.
212
  «The healing of the Gerasene demoniac represents a different kind of miracle». D. Bock, Luke, I,
Michigan 1994, 766.
213
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 165-166. Darrell Bock fará uma divi-
são semelhante apontado, contudo, duas grandes partes - ‘milagre’ (vv.26-33) e ‘efeitos do milagre’
(vv.34-39). Estas duas partes são subdivididas em seis momentos - I. Parte: a) enquadramento inicial
(vv.26-29); b) fundamento da legião (vv.30-31); c) entrada dos demónios nos porcos (vv.32-33); II.
Parte: a) reação dos pastores e das pessoas da cidade (vv.34-37a); b) despedida de Jesus e instruções ao
homem que tinha sido curado (vv.37b-39a); c) testemunho do homem curado sobre Jesus (vv.39b). Cf.
D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 770.
214
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 733-734.

185
e eles [os discípulos] ficaram inundados e em perigo» (Lc 8,23b). Depois, Jesus
‘mandou acalmar o vento e as águas’ (cf. Lc 8,24b) e perguntou-lhes «Onde está a
vossa fé?» (cf. Lc 8,25a). Não obtendo nenhuma resposta, diz-nos o narrador que
os discípulos, admirados e cheios de medo, diziam «Quem é este homem, que até
manda nos ventos e nas águas, e eles obedecem-lhe?» (cf. Lc 8,25b). Segundo Gé-
rard Rossé, este episódio da tempestade acalmada é descrito como uma espécie
de viagem missionária, uma espécie de preparação que Jesus faz aos discípulos
para enfrentar as dificuldades que encontrarão no anúncio do evangelho e, ao
mesmo tempo, uma afirmação da certeza da presença Deus em todos os mo-
mentos, especialmente nas dificuldades215. Este sentido introduz-nos no episódio
seguinte, que aqui analisamos – a libertação de um homem ‘possesso’. De facto,
depois do milagre da tempestade acalmada e da travessia do lago de Generasé, Je-
sus realizará outro milagre – um exorcismo. Trata-se de uma viagem rápida a um
território estrangeiro, não judaico, como se deduz por alguns detalhes: o número
e o nome dos demónios, a vida impura em contacto com os mortos, a presença de
porcos e o atributo de Deus ‘Altíssimo’216.
No texto que aqui analisamos o evangelista começa por dizer: «Navegaram217
até à região [χώραν] dos gerasenos [Γερασηνῶν], situada defronte da Galileia»
(v.26). Lc começa, assim, por identificar o lugar. Contudo, esta indicação levanta
várias questões, sobretudo, por causa da incerteza textual. Há três variantes: ‘re-
gião dos Gerasenos’ [Γερασηνῶν] – presente no papiro Bodmer XIV (75‫ )ק‬e no
códice Vaticano (B); ‘região dos Gadarenos’ [Γαδαρηνῶν] – presente no código
Alexandrino (A); ‘região dos Gergesenos’ [Γεργεσηνῶν] – presente no código Si-
naítico (‫)א‬218. Gerasa seria uma cidade da Decápole, na Transjordânia, que estaria
a mais de 50 km do lago – hoje chamar-se-á Jerash; a cidade de Gadara, que seria

215
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 298.
216
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 418.
217
  Sugerimos esta tradução em vez da proposta portuguesa que propõe ‘abordaram’. No texto origi-
nal encontramos a palavra κατέπλευσαν que é uma forma verbal do aoristo do verbo καταπλέω. Este
verbo tem o sentido de ‘navegar’ ou ‘aproar’. Cf. C. Rusconi, «καταπλέω», in DGNT, São Paulo 2003,
256. Joseph Fitzmyer traduz simplesmente por «Then they came to land». J. Fitzmyer, The Gospel
According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 732. Darrell Bock traduz de modo um pouco diferente:
«And they arrived». D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 770. François Bovon sugere uma tradução mais
próxima da versão portuguesa com o sentido de ‘desembarcar’: «Et ils abordèrent». F. Bovon, L’Évan-
gile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 417. Também com o sentido de ‘desembarcar’ Matteo
Crimella e Gérard Rossé traduziram por «approdarono». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello
Balsamo 2015, 165 e G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 297.
218
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 164. Para aprofundar as variantes tex-
tuais aconselhamos: J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 736.

186
também uma cidade da Decápole, estaria a cerca de 10 km – hoje chamar-se-á
Um Qeis; por fim, a cidade de Gergesa estaria encostada ao lago – hoje chamar-
-se-á (El-)Kursi219. Matteo Crimella, diz que a solução deste enigma pode estar
na palavra χώρα cujo significado, no grego do séc. I, não é apenas o de ‘região’,
mas também de ‘pedaço de terra’ pertencente a uma cidade, uma vez que estes
terrenos podiam estender-se por vários quilómetros. Em coerência com esta afir-
mação, segundo a atual crítica textual, somos conduzidos a optar pela primeira
possibilidade, até porque é também a mais difícil de harmonizar220. Também Jo-
seph Fitzmyer opta pela possibilidade de ‘região dos Gerasenos’221. No entanto,
François Bovon, ainda que com muitas reservas, inclina-se para a ‘região dos
Gergesenos’222. Este aspeto de dificuldade de localização do episódio, juntamente
com outros detalhes, obriga-nos a cuidados redobrados quando procuramos re-
construir o que realmente aconteceu223.
Depois de terem terminado a travessia do lago e de Jesus ter colocado o pé
em terra firme, somos informados que «veio ao encontro [dele]224 um homem
[ἀνήρ] da cidade [πόλεως], possuído por demónios [ἔχων δαιμόνια]225» (v.27a).

219
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 423. Giacomo Perego aprofunda
esta problemática do lugar geográfico, ainda que no contexto de Mc. Particularmente interessante é
a sua descrição da cidade ‘El-Kursi’ que se encontra na costa oriental do lago de Tiberíades, onde foi
encontrado um cemitério do séc. Ι, a poucos quilómetros de um centro habitacional que está próximo
do mar. Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 116-117. Sobre o
nome das cidades, ver ainda: J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 736.
220
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 165.
221
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 737.
222
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 423.
223
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 737.
224
  Sugerimos estra tradução em vez da versão portuguesa: «Quando desceu para terra, veio-lhes
ao encontro». De facto, quando confrontados com o original grego «ἐξελθόντι δὲ αὐτῷ ἐπὶ τὴν γῆν
ὑπήντησεν», percebemos duas coisas: por um lado, toda a frase está no singular; e, por outro, não
‘aparece’ o ‘lhes’, razão pela qual colocamos ‘dele’ entre parêntesis retos. Joseph Fitzmyer traduz sim-
plesmente por «As he stepped ashore, he met». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I,
New York 1981, 732. Darrell Bock traduz de modo um pouco diferente: «And when he came into the
land, (...) met him». D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 770. François Bovon traduz: «Comme il mettait
pied à terre, vint à sa rencontre». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 417.
Matteo Crimella traduziu «Sceso a terra gli venne incontro». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello
Balsamo 2015, 165. Gérard Rossé traduziu por «Ora a lui uscito a terra venne incontro». G. Rossé, Il
Vangelo di Luca, Roma 20125, 297.
225
  Sugerimos esta tradução em vez da versão portuguesa que propõe: ‘possesso de vários demónios’.
De facto, a expressão ἔχων δαιμόνια poderá ser traduzida mais literalmente como ‘possuído por de-
mónios’ ou simplesmente ‘tendo demónios’. A palavra ἔχων trata-se de uma forma verbal de ἔχω que
quer dizer precisamente ‘ter’ ou ‘possuir’. Cf. C. Rusconi, «ἔχω», in DGNT, São Paulo 2003, 210. Os
vários exegetas corroboram a nossa opção. Joseph Fitzmyer traduz: «was possessed by demons». J.

187
É interessante que, desde logo, se antecipe o sentido de ‘Legião’ (palavra que
ocorrerá apenas no v.30) que tem a ver com o facto de serem muitos ‘demónios’.
Mc, por exemplo, dirá «um homem [ἄνθρωπος] possesso de um espírito impuro
[πνεύματι ἀκαθάρτῳ]» (Mc 5,2b). Ou seja, Mc não fala de ‘vários’ mas apenas de
‘um’ e não diz que são ‘demónios’ mas um ‘espírito impuro’226. Porém a pergun-
ta que se impõe, desde logo, é o que significa este homem estar ‘possuído por
demónios’? Em Mc e em Lc encontramos a descrição de um homem que está
perturbado psiquicamente, sendo atribuído esse desequilíbrio a uma espécie de
‘fantasmas’ personificados, como se ‘demónios’ ou ‘espíritos impuros’ tivessem
‘entrado’ naquele homem, alterando assim a sua personalidade – ‘possuindo’ a
personalidade, alterando-a227. Deste modo, podemos concluir que este homem
‘possuído’ por ‘demónios’, está dividido em si mesmo. A sua unidade está dividi-
da. Uma unidade tão fragmentada que levará o homem a dizer, posteriormente,
que se chama ‘legião’228. De facto, a sua personalidade é uma personalidade que
carece de unidade, uma personalidade fragmentada, uma personalidade que, ao
perder o equilíbrio, fica afetada na sua identidade e nos seus comportamentos.
Neste sentido, podemos perceber melhor a conclusão deste versículo que diz
que este homem possesso, «desde há muito, não se vestia nem vivia em casa, mas
nos túmulos» (v.27b). O autor do terceiro evangelho descreve-nos, deste modo,
a miséria do seu estado. Este homem aparece assim despojado dos sinais de hu-
manidade reconhecidos naquela época: ‘a roupa’ e a ‘vida social’. Mas, pior, este
homem vive no meio dos ‘sepulcros’, ou seja, sente-se mais próximo dos mortos
do que dos vivos. Naquele tempo, em particular para os judeus, os sepulcros são
‘impuros’. Deste modo, este ‘domicílio’ expressa, de forma extraordinariamente
gráfica, o caráter ‘impuro’ da vida deste possesso229. Por isso, o facto de andar a
vaguear pelos túmulos pode ser, não só, um sinal de alienação do endemonia-

Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 732. Matteo Crimella traduz: «pos-
seduto dai demoni». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 165. François Bovon
traduz simplesmente: «avait des démons». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève
1991, 417. Do mesmo modo Darrell Bock traduz: «had demons». D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 770.
Também Gérard Rossé traduz: «aveva dei demoni». G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 297.
226
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 419.
227
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 740.
228
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 369.
229
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 423. Ver ainda: M. Crimella (a
cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 165. Talvez esta descrição faça alusão a Is 65,4, quando o pro-
feta falava do povo rebelde: «sentavam-se nos sepulcros e passavam as noites em grutas; comiam carne
de porco e punham alimentos impuros nos seus pratos». BS. Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to
Luke (I-IX), I, New York 1981, 737-738; D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 766.

188
do, mas também significar a relação do ‘demoníaco’ com o mundo da morte230.
Esta descrição não pode ignorar que nas crenças populares da antiguidade, os
espíritos habitavam nas cavernas, nos cemitérios e andavam pelos desertos231.
Em conformidade com estas crenças, Lc dirá não só que este homem possesso
‘vivia nos túmulos’ (cf. v.27b), mas também que o ‘demónio o impelia para os
desertos’ (cf. v.29b).
Voltando ao texto, o evangelista diz-nos, em seguida, que «Ao ver Jesus,
prostrou-se [προσέπεσεν] diante dele, gritando [ἀνακράξας] em alta voz [φωνῇ
μεγάλῃ]: ‘Que tens que ver comigo [τί ἐμοὶ καὶ σοί]232, Jesus, Filho de Deus Altís-
simo [ὕψιστος]?’» (v.28ab). Lc sublinha a atitude do homem ao dizer, por um lado,
que se ‘prostrou’ e, por outro, usando um pleonasmo: ‘gritou com voz forte’233. O
mais interessante é que a voz dizia ‘que tens a ver comigo’ ou, literalmente ‘que
coisa (há) entre mim e ti?’. Por outras palavras, talvez pudéssemos dizer: ‘O que
existe entre nós?’ ou ‘Poderias deixar-me em paz?’234. Por isso, este versículo ter-
mina com a ‘legião’ (os vários demónios) a pedirem a Jesus: «Peço-te que não me
atormentes!» (v.28c). Esta expressão – ‘que coisa [há] entre mim e ti?’ – é a mesma
e tem o mesmo sentido do episódio do homem que Jesus curou num sábado, na
sinagoga de Cafarnaúm: «Ah! Que tens que ver connosco [τί ἡμῖν καὶ σοί], Jesus
de Nazaré? Vieste para nos arruinar? Sei quem Tu és: o Santo de Deus!» (Lc 4,34).
Este mesmo sentido podemos encontrar no AT quando a viúva de Sarepta diz a
Elias, no contexto da doença grave do seu filho: «Que há entre mim e ti, homem
de Deus?» (1Rs 17,18a)235.
A voz (dos demónios), que continua a falar (através dos lábios do possesso),
reconhece imediatamente o poder superior de Jesus - «Filho de Deus Altíssimo

230
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 738.
231
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 300.
232
  Mantemos a versão portuguesa sublinhando apenas que uma tradução mais literal seria: ‘que coisa
(há) entre mim e ti?’. Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 165. Joseph Fitzm-
yer traduz: «What do you want with me». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New
York 1981, 732. Matteo Crimella com o mesmo sentido: «che vuoi da me». M. Crimella (a cura di),
Luca, Cinisello Balsamo 2015, 165. Darrell Bock traduz de modo mais literal: «What have I to do
with you». D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 770. François Bovon também sugere uma tradução mais
literal: «Qu’ai-je à faire avec toi». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 417.
No mesmo sentido, Gérard Rossé traduzirá: «che c’è tra me e te». G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma
20125, 298.
233
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 419.
234
  «The question could be paraphrased in one of two ways: ‘What is there between us?’ or ‘Could you
leave me alone?’». D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 772.
235
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 738.

189
[ὕψιστος]»236. Jesus foi ‘chamado’ deste modo pelo anjo Gabriel: «Será grande e
vai chamar-se Filho do Altíssimo» (1,32a). Deste modo, o leitor compreende que
‘os demónios’ conhecem bem quem é Jesus237. De facto, o que poderá haver de
comum entre aquele que está ‘possuído por vários demónios’ e o ‘Filho de Deus
Altíssimo’? Na verdade, a multiplicidade da ‘legião’ opõe-se radicalmente à uni-
cidade do ‘Altíssimo’238.
Em seguida Jesus ‘ordenou’ ao espírito impuro que saísse do homem, pois
apoderava-se dele com frequência (cf. v.29a). Este ‘ordenar’ [παραγγέλλω] é
mais forte do que o simples ‘dizer’ [λέγω] que Mc usa (cf. Mc 5,8a)239. No en-
tanto, Lc omite a ‘fórmula’ de Mc: «Conjuro-te, por Deus, que não me ator-
mentes» (Mc 5,6c) – esta ‘fórmula’ «Conjuro-te por Deus», é pronunciada es-
tranhamente pelo próprio ‘espírito impuro’240. Conclui-se o versículo a dizer
que «Prendiam-no com correntes e grilhões para o manterem em segurança,
mas ele partia as cadeias e o demónio impelia-o para os desertos» (v.29b). Este
ser ‘impelido’ para os desertos [ἐρήμους] mostra o trágico isolamento a que
conduz o demónio241.
Enquanto nesta versão de Lc se insiste no poder do ‘demónio’ sobre o ‘en-
demoniado’, na versão de Mc descreve-se a força do endemoniado: «ninguém
conseguia prendê-lo, nem mesmo com uma corrente» (Mc 5,3b)242. Com efeito,
aquele que tinha sido criado à imagem de Deus (cf. Gn 1,27a)243 está ‘alterado’ na
sua identidade. Trata-se de uma desordem de personalidade que o torna mais
próximo dos ‘animais’ do que dos homens. De facto, anda nu como uma besta
selvagem, precisa de estar preso como um animal feroz, não habita numa casa
como os homens, vive entre os túmulos e anda pelos desertos244.
Em seguida Jesus «perguntou-lhe: ‘Qual é o teu nome?’» (v.30a). O conhe-
cimento do nome do ‘demónio’, segundo uma conceção do tempo, parece ser

236
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 424.
237
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 165.
238
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 369.
239
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 419.
240
  Cf. . G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 300.
241
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 773. Não deixa de ser interessante que a palavra ἔρημος sig-
nifique: ‘deserto’, ‘vazio’, ‘desolado’ e ‘abandonado’. Cf. C. Rusconi, «ἔρημος», in DGNT, São Paulo
2003, 198.
242
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 419-420.
243
  Gn 1,27a: «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus». BS.
244
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 369.

190
uma condição necessária para ter poder sobre ele e dominá-lo245. Esta pergunta
também permitirá aos discípulos, que acompanhavam Jesus, perceber melhor
a ‘personalidade’ daquele homem e a extensão do seu problema246, preparando
assim o episódio seguinte que irá envolver os porcos247.
A resposta foi «Legião» (v.30b), explicando-nos o narrador que o nome é
«porque muitos demónios tinham entrado nele» (v.30c). Dos sinóticos, a versão
de Mt é a única que não refere o nome («Legião»)248. O nome de ‘legião’ é uma
imagem: a mesma dos exércitos e dos anjos (cf. Mt 26,53)249 e tem, sobretudo,
uma função narrativa no texto250. Uma imagem que evoca mais um número que
um nome. A palavra grega λεγιών é uma simples transcrição literal da palavra
latina legio251. De facto, esta imagem ‘conduz-nos’ à ideia da ‘legião romana’ que
era composta por seis mil soldados de infantaria e cento e vinte cavaleiros. Esta
ideia de ‘legião’ pode ser associada à principal ‘legião romana’ estacionada na
Síria-Palestina, a Legio X Fretensis, que participou na conquista de Jerusalém no
ano 70 d.C252. Trata-se, sobretudo, de uma metáfora forte que nos transmite a
ideia não apenas numérica mas, sobretudo, da grande ‘força demoníaca’ que ‘ata-
ca’ aquele homem253.
Entretanto, os espíritos, que falavam por meio do homem possesso, ‘suplica-
vam’ a Jesus «que não os mandasse ir para o abismo [ἄβυσσον]» (v.31). Em Mc
pediam para não serem ‘expulsos daquela região’ (cf. 5,10), enquanto que em Lc
pedem para não serem enviados para o abismo. A palavra grega ἄβυσσος pode
significar ‘morada dos mortos’ (cf. Rm 10,7)254 ou ‘lugar da punição e de prisão’

245
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 166. Ver ainda: F. Bovon, L’Évangile
selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 422; J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New
York 1981, 738; G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 301. Do ponto de vista dos géneros literá-
rios, perguntar o nome do demónio faz parte do procedimento mágico e não tanto do ‘rito’ cristão do
exorcismo. Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 425.
246
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 773.
247
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 301.
248
 Cf. I. Sibaldi, I miracoli di Gesù, Milano 1989, 18.
249
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 425.
250
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 301.
251
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 738. Ver ainda: D. Bock,
Luke, I, Michigan 1994, 774.
252
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 166.
253
  «Il paragone con la legione romana rende l’idea della grande forza demoniaca che possiede l’uo-
mo». Ibidem, 166.
254
  Cf. C. Rusconi, «ἄβυσσος», in DGNT, São Paulo 2003, 15. Rm 10,7: «Nem digas: Quem descerá ao
abismo? Seria para fazer com que Cristo subisse de entre os mortos». BS.

191
das ‘potências malignas’ (cf. Ap 20,1-3)255. Na versão dos LXX, ἄβυσσος era a
tradução mais frequente da palavra hebraica ‫( תְּ הֹום‬těhôm) que, na cosmologia do
AT, designa ‘as águas primordiais’ ou as ‘águas debaixo da superfície da terra’,
símbolo do caos. Por isso, conscientes do seu verdadeiro destino, que é o ‘abismo’,
os ‘demónios’ pedem a Jesus que não os envie para esse lugar. Segundo a demo-
nologia da época, os demónios deveriam andar errantes, vagueando de um lugar
para outro e procurando encontrar ‘morada’ nos desertos, entre os sepulcros ou
até nas pessoas psiquicamente perturbadas256.
Posteriormente o narrador diz-nos que «andava ali uma grande vara de por-
cos a pastar no monte» (v.32a). Mc é o único que especifica que eram dois mil
porcos (cf. Mc 5,13c)257. Há, no entanto, um pormenor interessante que deve-
mos aqui referir, é que os judeus também ‘associavam’ os romanos aos ‘porcos’.
Uma ironia da história provocada pelos próprios romanos, já que as insígnias
da, já referida, décima legião (Fretensis), tinha a imagem de um porco258. Então,
«eles259 suplicaram a Jesus que os deixasse entrar neles» (v.32b). Este pedido, por
um lado, é o reconhecimento de que Jesus tinha autoridade para o fazer260; e,
por outro lado, eles sabiam que os porcos, animais considerados impuros para

255
  Ap 20,1-3: «1Vi, depois, um anjo que descia do céu. Trazia na mão a chave do Abismo e uma grande
corrente. 2Agarrou o Dragão, a Serpente antiga, que também se chama Diabo ou Satanás: prendeu-o
por mil anos 3e lançou-o no Abismo que depois fechou e selou, para que ele não mais enganasse as
nações, até que se completassem mil anos. Depois deste período, o Diabo deve ser solto por algum
tempo». BS.
256
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 739. Ver ainda: D. Bock,
Luke, I, Michigan 1994, 775.
257
 Cf. I. Sibaldi, I miracoli di Gesù, Milano 1989, 18.
258
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 426. Ver ainda: M. Crimella (a
cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 166.
259
  Preferimos colocar o pronome pessoal ‘eles’ e não a palavra ‘demónios’ como se encontra na
tradução portuguesa. De facto, a expressão ‘os demónios’ [τὰ δαιμόνια] não é usada no texto gre-
go, ainda que se subentenda. Esta expressão ocorrerá no versículo seguinte e o tradutor português
sugere que apareça neste versículo omitindo-o no versículo seguinte. Darrell Bock suporta a nossa
opção ao traduzir: «and they begged him to let them enter into these». D. Bock, Luke, I, Michigan
1994, 770. Também François Bovon traduz faz a mesma opção ao traduzir: «ils le prièrent de leur per-
mettre d’entrer en eux». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 417. Matteo
Crimella traduzirá no mesmo sentido: «lo scongiurarono che permettesse loro di entrare in quelli».
M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 167. Gérard Rossé traduz simplesmente: «e
lo supplicarono che permettesse loro di entrare in quelli». G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125,
301. Apenas Joseph Fitzmyer faz uma opção diferente, próxima da tradução portuguesa: «and the
demons begged him to give them leave to enter those pigs». J. Fitzmyer, The Gospel According to
Luke (I-IX), I, New York 1981, 732.
260
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 775.

192
os judeus (cf. Lev 11,7), não colocariam nenhum obstáculo a serem a nova mo-
rada destes ‘demónios, que eram considerados ‘espíritos impuros’. Porém, estes
pedem apenas uma morada ‘substitutiva’ que seja ‘temporária’261. Diante dessa
súplica o evangelista conclui que ‘Jesus permitiu’ (v.32c). Assim os ‘demónios’, ao
‘entrarem nos porcos’ iriam entrar num mundo ‘impuro’ a que eles mesmos per-
tencem262. Por outras palavras, podemos dizer, como Roland Meynet, que os ‘de-
mónios’ preferem ‘entrar’ nos porcos do que ‘serem mandados para o abismo’263.
O que é interessante é que, ao contrário de outros relatos de exorcismo (como Lc
4,35), Jesus acede ao pedido dos demónios264.
Chegamos ao momento mais ‘inesperado’ desta passagem: «Os demónios265
saíram, pois, do homem, entraram nos porcos e a vara lançou-se do alto do preci-
pício ao lago, e afogou-se» (v.33). O mar, lugar que evoca o mal, torna-se o túmulo
quer dos espíritos impuros, quer dos próprios animais266. O facto de os porcos se
terem precipitado no mar e se terem afogado é uma prova do êxito do exorcismo,
confirmando assim que Jesus tem poder sobre o mundo demoníaco267. Contudo,
Lc não considera Jesus responsável pela morte dos porcos, foram os demónios
que o propuseram e que, por isso, acarretam essa responsabilidade268. No en-

261
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 739.
262
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 426.
263
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 366.
264
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 167. De facto, Jesus não quer falar com
o ‘demónio’ em Lc 4,33-36: «33Encontrava-se na sinagoga um homem que tinha um espírito demonía-
co, o qual se pôs a bradar em alta voz: 34‘Ah! Que tens que ver connosco, Jesus de Nazaré? Vieste para
nos arruinar? Sei quem Tu és: o Santo de Deus!’ 35Jesus ordenou-lhe: ‘Cala-te e sai desse homem!’ O
demónio, arremessando o homem para o meio da assistência, saiu dele sem lhe fazer mal algum». BS.
265
  Aqui sugerimos a expressão ‘os demónios’ [τὰ δαιμόνια], uma vez que é usada no texto grego, ao
contrário da tradução portuguesa que omite a palavra. Joseph Fitzmyer corrobora a nossa opção ao
traduzir: «When the demons came out of the man, they entered the pigs». J. Fitzmyer, The Gospel
According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 732. Darrell Bock reforça esta mesma opção ao traduzir:
«And the demons came out of the man into the swine». D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 770. Tam-
bém François Bovon faz a mesma opção ao traduzir: «Sortis de l’homme, les demons entrèrent dans
les porcs». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 417. Matteo Crimella e Gé-
rard Rossé traduziram no mesmo sentido: «I demoni, usciti dall’uomo, entrarono nei porci». M. Cri-
mella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 167 e G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 301.
266
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 167.
267
  A propósito do ‘poder de Jesus’ sobre as diversas ‘forças’, Lc, neste capítulo, entre os vv.22-56,
conta quatro milagres que falam desse poder: sobre a tempestade – no episódio da ‘tempestade acal-
mada’ (vv.22-25); sobre os ‘demónios’ – no episódio da cura do homem possesso de Gerasa (vv.26-
39); sobre a doença - no episódio da mulher (hemorroíssa) que tinha um fluxo de sangue há 12 anos
(vv.43-48); sobre a morte – no episódio da filha de Jairo (vv.40-42 e 49-56). Cf. D. Bock, Luke, I,
Michigan 1994, 766.
268
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 426-427.

193
tanto, não faz sentido transferir e confrontar esta passagem com a sensibilidade
contemporânea no que diz respeito ao ‘problema’ ecológico e económico269. Em
todo o caso, podemos ver aqui uma mensagem subliminar de que para Jesus uma
pessoa vale mais do que muitos animais. Ele mesmo dirá: «até os cabelos da vossa
cabeça estão contados. Não temais: valeis mais do que muitos pássaros» (12,7).
O efeito deste milagre é, aqui, particularmente desenvolvido. O narrador
começa por dizer que «ao verem o que se tinha passado, os pastores270 fugiram
e levaram a notícia à cidade e aos campos» (v.34). A situação terá parecido tão
estranha e inesperada que as pessoas «vieram ter com Jesus» (v.35b). Queriam
ver [ἰδεῖν] (cf. v.35a), ‘com os próprios olhos’ o que tinha acontecido271. Quando
chegaram ao local «encontraram o homem, de quem tinham saído os demónios,
sentado aos pés de Jesus272, vestido e em perfeito juízo» (v.35b). Aquele que antes
se agitava agora está tranquilo, que antes vagueava agora está sentado, que antes
andava nu agora está vestido, que antes vivia entre os ‘túmulos’ agora está em ‘per-

269
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 302. A propósito desta passagem, na versão de Mc,
Giacomo Perego indica que entre as diferentes interpretações não faltam os que propõem uma leitura
de teor mais político, referindo-se a uma clara polémica anti-romana, sublinhando assim, por um
lado o facto de os espíritos impuros pedirem para não abandonarem a região e, por outro lado, a espe-
rança que decorre da força de Jesus sobre esses mesmos espíritos. Diz-nos ainda que outros sugerem
uma leitura mais socio-psicológica, fazendo do acolhimento da alteridade a chave através da qual
se pode aceder ao sentido do episódio. Concluindo que apesar de serem um contributo interessante
para a interpretação dessa perícopa, não podemos ceder à tentação de ‘fechar’ o sentido a um único
horizonte interpretativo, isolando-o do contexto. Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco,
Cinisello Balsamo 2011, 118.
270
  Sugerimos esta tradução em vez de ‘guardas’, como encontramos na tradução portuguesa. A pa-
lavra grega é βόσκοντες que é uma forma verbal do verbo βόσκω e que quer dizer essencialmente
‘apascentar’ ou ‘conduzir à pastagem’. Cf. C. Rusconi, «βόσκω», in DGNT, São Paulo 2003, 101. Assim
estes ‘guardas’ seriam os que tratavam do rebanho. Joseph Fitzmyer e Darrell Bock corroboram a
nossa opção ao traduzirem por «herdsmen». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New
York 1981, 732 e D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 770. Matteo Crimella e Gérard Rossé traduziram
igualmente com o sentido de ‘pastores’: «mandriani». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsa-
mo 2015, 167 e G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 301. Apenas François Bovon traduz de forma
mais próxima da proposta portuguesa ao traduzir por «gardiens». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc
(1,1-9,50), I, Genève 1991, 417.
271
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 777.
272
  Propomos esta tradução em vez da proposta pela versão portuguesa que diz ‘sentado aos seus pés’.
Procuramos assim maior coerência com a expressão original que é παρὰ τοὺς πόδας τοῦ ᾽Ιησοῦ. No
mesmo sentido, François Bovon traduz por «Aux pieds de Jésus». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc
(1,1-9,50), I, Genève 1991, 417. Tal como Matteo Crimella e Gérard Rossé que traduziram por «ai piedi
di Gesù». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 167 e G. Rossé, Il Vangelo di Luca,
Roma 20125, 301. Na mesma linha, Darrell Bock traduz por: «at the feet of Jesus». D. Bock, Luke, I, Mi-
chigan 1994, 770. Apenas Joseph Fitzmyer faz uma opção semelhante à proposta da versão portuguesa
ao traduzir por: «at his feet». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 732.

194
feito juízo’273. «Os que tinham visto contaram-lhes como o possesso274 tinha sido
salvo [ἐσώθη]» (v.36). Este homem tinha voltado a ser um homem275, isto é, tinha
sido libertado de tudo o que o ‘desumanizava’. A ação de Jesus libertou o homem
do mal que destruía a sua personalidade276. Esta libertação e o regresso à norma-
lidade é o primeiro resultado do exorcismo277. Mas a descrição não termina com
o regresso à ‘normalidade’, a ‘salvação’ é apresentada pelo narrador na expressão
‘estava aos pés de Jesus’. Esta expressão, que aparece unicamente em Lc, dá ao
homem ‘exorcizado’ ‘traços’ de discípulo, ou seja, o homem libertado ‘tornou-se’
discípulo. Com efeito, este acrescento redacional apresenta a postura clássica do
discípulo278. Jesus torna o homem liberto num discípulo. Por isso, a ação de Jesus,
como afirma Matteo Crimella, não realiza apenas a cura física, mas estabelece
também a pessoa na sua plenitude, segundo o desígnio salvífico de Deus279. Este
homem fica assim restabelecido humanamente na sua capacidade de relação con-
sigo, com os outros, com o mundo que o rodeia e, sobretudo, com Deus.
O final desta passagem é, à partida, um pouco estranho, uma vez que «toda
a população da região dos gerasenos pediu a ele [Jesus]280 que se afastasse deles»

273
  «L’intervento salvifico di Gesù restituisce l’uomo sai alla sanita mentale, sia alla vita sociale da cui
era tagliato fuori». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 167.
274
  Aqui decidimos manter a mesma tradução da versão portuguesa. No entanto, esclarecemos que a
palavra grega é δαιμονισθείς, que se traduz à letra por ‘endemoniado’ ou ‘endemoninhado’. O subs-
tantivo δαίμων que dizer literalmente ‘dividido’. Cf. C. Rusconi, «δαίμων», in DGNT, São Paulo 2003,
114. Neste sentido, podemos dizer que um endemoniado ou um possesso é alguém dividido interior-
mente. Joseph Fitzmyer traduz por ‘possessed’. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I,
New York 1981, 732. Darrell Bock traduz por ‘demon-possessed’. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994,
770. François Bovon traduz por ‘possédé’. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève
1991, 417. Já Matteo Crimella e Gérard Rossé traduziram por ‘indemoniato’. M. Crimella (a cura di),
Luca, Cinisello Balsamo 2015, 167 e G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 303.
275
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 302.
276
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 740.
277
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 778.
278
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 427-428. Ver ainda: J. Fitzmyer,
The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 739. Esta mesma atitude podemos encontrar em
Maria quando escutava o Mestre (cf. 10,39) e em Saulo quando era educado por Gamaliel (cf. At 22,3).
Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 166.
279
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 167. «Egli non soltanto è stato guarito,
ma salvato, cioè liberato dal male físico e spirituale, reinstaurato nella sua integrità umana e nel ra-
pporto con Dio». G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 303.
280
  Sugerimos a palavra ‘ele’ uma vez que o texto grego tem apenas o pronome pessoal αὐτόν. Con-
tudo, para facilitar a compreensão decidimos manter a palavra ‘Jesus’, que é usada na tradução por-
tuguesa, sendo que a colocámos entre parêntesis retos, uma vez que não se encontra no original. No
entanto, todos os exegetas que seguimos usam apenas o pronome pessoal. Joseph Fitzmyer e Darrell
Bock traduzem por ‘him’. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 732 e D.

195
(v.37a). A razão desse pedido, segundo Lc, era o «grande temor [φόβῳ μεγάλῳ]»
(v.37b). Ou seja, quando esperávamos que a ação de Jesus ‘despertasse’ a fé nos
‘espetadores’ acabou por provocar o ‘temor’. Este medo é negativo porque não
permite a fé281. Mas qual seria a razão deste ‘grande temor’? Joseph Fitzmyer
avança duas possibilidades: o receio de perder outras coisas, para além dos por-
cos, se Jesus ficasse mais tempo naquele território ou o assombro diante da ma-
nifestação do poder de Deus realizado naquele exorcismo282. Recordamos que, no
início deste evangelho, Lc diz-nos que os pastores tiveram muito medo diante da
manifestação do anjo que anunciou o nascimento de Jesus: «Um anjo do Senhor
apareceu-lhes [aos pastores], e a glória do Senhor refulgiu em volta deles; e tive-
ram muito medo [φόβον μεγάν]» (Lc 2,9). Também os discípulos, segundo Lc,
no episódio da tempestade acalmada, que antecede precisamente esta perícopa,
tinham manifestado medo. Diz o texto: «Cheios de medo e admirados, diziam
entre eles: ‘Quem é este homem, que até manda nos ventos e nas águas, e eles
obedecem-lhe?’» (8,25bc)283.
Contudo, François Bovon sublinha um outro aspeto bastante interessante: a
‘população’ tinha recebido a notícia sem a ‘presenciar’, sem ‘interpretação’, so-
bretudo, sem ‘intenção kerigmática’. Esse facto, não ajudaria a despertar a fé,
já que será o testemunho do próprio homem curado, que se tornou crente, que
poderá ‘proclamar’ a fé. Com efeito, só a ‘interpretação’ cristã transforma o relato
histórico em ‘evangelho’ (boa notícia). Sem uma interpretação desta ‘libertação’,
no contexto da salvação escatológica que Jesus realiza através das suas obras, tão
presente na soteriologia lucana, fica apenas o ‘medo’ e o ‘temor’284.
Então «Ele285 subiu para o barco e afastou-se dali» (v.37c)286. Ele que tinha-

Bock, Luke, I, Michigan 1994, 771. François Bovon traduz por ‘lui’. Bovon, L’Évangile selon saint Luc
(1,1-9,50), I, Genève 1991, 417. Matteo Crimella e Gérard Rossé traduziram por ‘gli’. M. Crimella (a
cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 167 e G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 303.
281
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 778-779.
282
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 740.
283
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 303.
284
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 428.
285
  Aqui sugerimos a palavra ‘ele’, uma vez que no texto grego é usado apenas o pronome pessoal αὐτός.
A tradução portuguesa, que aqui não corroboramos, propõe a palavra ‘Jesus’. Nesse sentido, Darrell
Bock traduz por ‘he’. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 771. François Bovon traduz por ‘lui-même’. Bo-
von, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 417. Matteo Crimella e Gérard Rossé traduzi-
ram por ‘egli’. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 167 e G. Rossé, Il Vangelo di Luca,
Roma 20125, 303. Joseph Fitzmyer será o único que apresenta a palavra ‘Jesus’, aproximando-se da pro-
posta da tradução portuguesa. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 732.
286
  «L’ora dell’evangelizzazzione dei pagani non è ancora giunta: Luca riserva questo momento per il

196
chegado de barco, tinha acalmado a tempestade, agora regressa novamente à
Galileia, atravessando o mesmo mar287. Não era a primeira vez que Jesus sentia
necessidade de ‘seguir o seu caminho’. Basta recordar, por exemplo, quando os
habitantes de Nazaré o levaram ao cimo do monte, sobre o qual a cidade esta-
va edificada, para o lançarem dali abaixo – nessa altura, Jesus, passando pelo
meio deles, seguiu o seu caminho (cf. 4,29-30). Neste versículo, não deixa de ser
interessante sublinhar que, neste ‘subir para o barco’, os discípulos não sejam
referidos. Os discípulos são apenas subentendidos no plural do início da nossa
perícopa quando se diz – ‘navegaram’. Mas na mente do evangelista estarão pre-
sentes ao longo de todo o episódio288.
Chegamos assim à última parte da nossa passagem. Este final parece um
‘apêndice’, até porque Jesus já tinha ‘subido para o barco’289. Contudo, quanto
Jesus já está no barco, «O homem, de quem os demónios tinham saído, pediu-lhe
para ficar com Ele» (v.38). A pergunta que nos surge imediatamente é: Qual a
razão deste pedido? Terá medo de uma possível recaída?290 Ou será que se trata
da decisão própria de quem quer ser discípulo de Jesus?291 Ou seja, seria a neces-
sidade de proteção de Jesus ou o desejo de aprender com ele?292 Não sabemos. O
que sabemos é que enquanto o ‘homem libertado’ deseja proximidade de Jesus, a
‘população’ pede para que Jesus se afastasse293.
Contudo, Jesus não respondeu positivamente ao pedido daquele homem. Ro-
land Meynet ajuda-nos a formular as perguntas. Porque é que Jesus recusa que
este homem fique com ele? Estranho até porque Jesus tinha permitido que Maria
Madalena, depois de ter sido curada de sete demónios, o seguisse (cf. 8,1-2)294. Se-

suo secondo tomo, gli Atti degli Apostoli (cf. At 10)». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Bal-
samo 2015, 168.
287
  «Il racconto è incorporato nel ciclo di miracoli che comprende anche il racconto della tempesta
calmata, al quale ormai il nostro episodio è legato mediante la traversata del lago». G. Rossé, Il Van-
gelo di Luca, Roma 20125, 299.
288
  Ibidem, 299 e 303.
289
  Ibidem, 303.
290
  Não podemos esquecer o que Jesus irá alertar, no contexto de outro exorcismo, para o perigo da
recaída em Lc 11,24-26: «24Quando um espírito maligno sai de um homem, vagueia por lugares áridos
em busca de repouso; e, não o encontrando, diz: ‘Vou voltar para minha casa, de onde saí’. 25Ao chegar,
encontra-a varrida e arrumada. 26Vai, então, e toma consigo outros sete espíritos piores do que ele; e,
entrando, instalam-se ali. E o estado final daquele homem torna-se pior do que o primeiro». BS.
291
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 740.
292
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 779.
293
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 428.
294
  Lc 8,1-2: «1Em seguida, Jesus ia de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, proclamando e anuncian-

197
ria pelo facto de Maria Madalena ser judia, enquanto o homem de Gerasa ser pa-
gão?295. François Bovon dirá simplesmente que aceder ao pedido daquele homem
seria uma ‘solução’ demasiado fácil e, sobretudo, alimentaria uma ‘dependência
infantil’. Ser curado e estar salvo é, para Lc, tornar-se discípulo assumindo um
compromisso. Neste caso, Jesus convida-o a regressar a sua casa, ele que tinha
vivido ‘fora de casa’296. Por isso, «Jesus, despediu-o, dizendo: ‘Volta para a tua
casa e conta o que Deus fez por ti’» (v.39a). É interessante referir que este Jesus
que pede a este homem para regressar à sua família é o mesmo que pede a outros
discípulos que deixem a sua família (cf. 9,59-60; 14,26; 18,28).
Este ‘regresso a casa’ é sinal de libertação. Contudo, não é um simples regres-
so ou uma simples reintegração, que já é muito, mas Jesus confia-lhe uma mis-
são – ‘contar o que Deus fez por ele’297. Este homem será o primeiro ‘apóstolo’ dos
pagãos298. Provavelmente a futura evangelização desta região, que em Lc só acon-
tecerá plenamente a partir do Pentecostes, deve muito a este homem salvo por Je-
sus299. Deste modo, podemos afirmar que esta passagem sublinha dois grandes as-
petos: que a ‘expulsão dos demónios’ ‘confirma’ que o Reino de Deus já chegou (cf.
11,20)300; e que a incursão de Jesus e dos discípulos ao outro lado do lago, representa
o início o anúncio do ‘evangelho’ a todas as nações, para além do ‘Povo de Israel’301.
A perícopa que aqui estudamos termina precisamente com a informação do
narrador que nos diz que aquele que foi salvo «foi anunciando [κηρύσσων] por
toda a cidade tudo o que Jesus lhe fizera» (v.39b). A escolha do termo ‘teológico’
κηρύσσων significa que não se trata apenas de contar o que lhe aconteceu, mas
essencialmente de ‘anunciar’ e de ‘proclamar’302. Mais, este homem não apenas
anunciou em casa as ‘maravilhas que Deus fez nele’ mas também a ‘toda a ci-
dade’. Deste modo, a passagem do ‘temor’ e do ‘medo’ à fé torna-se acessível a

do a Boa-Nova do Reino de Deus. Acompanhavam-no os Doze 2e algumas mulheres, que tinham sido
curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído
sete demónios». BS.
295
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 370.
296
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 428-429.
297
  Ibidem, 429.
298
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 370.
299
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 304.
300
  Lc 11,20: «Mas se Eu expulso os demónios pela mão de Deus, então o Reino de Deus já chegou
até vós». BS.
301
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 370. Neste sentido, Darrell Bock afirma: «With
such a setting, the account previews how all humanity benefits from God’s message. Jesus’ ministry
goes beyond Israel». D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 766.
302
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 780.

198
todos303. A experiência de encontro que teve leva-o a anunciar com entusiasmo
o que Deus fez por ele.
Não deixa de ser interessante que Jesus lhe tenha pedido para ‘contar’ o que
Deus fez por ele, e o evangelista nos diga que ele ‘anunciou’ o que Jesus lhe fizera.
O leitor é induzido a pensar que a ‘narração’ se transformou em ‘anúncio’ e que
este homem reconhece que Jesus é Deus. No entanto, Darrell Bock diz que, so-
bretudo, a segunda conclusão é improvável, uma vez que os próprios discípulos,
que estavam com Jesus há tanto tempo, ainda não tinham alcançado plenamente
esse sentido, no horizonte lucano304. O que é certo é que Deus age através de
Jesus, que o poder de Deus se manifesta nos gestos e nas palavras do seu Filho.
Concluímos esta análise reforçando a ideia de que também esta perícopa
‘rescrita’ no âmbito da Igreja e, por isso, à luz da fé pós-pascal e à luz da relação
que a comunidade cristã agora vive com o Ressuscitado. A este facto determi-
nante devemos juntar que, sendo particularmente um exorcismo que começou
a ser transmitido oralmente, é normal que o episódio tenha sido ampliado e
nutrido traços populares. No entanto, a intenção teológica de Lc é clara: apre-
sentar Jesus como aquele que poderá salvar o homem das suas alienações e dos
males existenciais. Daí que este encontro de cura seja já anúncio do seu poder
para destruir definitivamente o mal que ainda existe na humanidade305. É uma
esperança não apenas para aquele homem que voltou a ser homem mas para
todos os que contactam com esta cura e este encontro.

2.5. Jesus encontra-se com a mulher com um fluxo de sangue e com a filha
de Jairo306
Entre os três relatos sinópticos sobre a reanimação da filha de Jairo (Mc 5,21-
24.35-43; Mt 9,18-19.23-26; Lc 8,41-42.49-56), o de Mc, que aqui tomamos como
referência, é considerado o mais antigo. Esse foi colocado no fim de uma série de

303
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 429.
304
  Cf. D. Bock, Luke, I, Michigan 1994, 781.
305
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 304.
306
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: M. Mullins, The Gospel of Luke,
Dublin 2010, 261-266; F. Bassin, L’évangile selon Luc, I, Vaux-sur-Seine 2006, 286-294; B. Baert (ed.),
The Woman with the Blood Flow (Mark 5:24-34), Leuven 2014; R. Bomford, «Jairus, His Daughter, the
Woman and the Saviour», PrT 3 (2010) 41-50; H. Hodges, J. Poirier, «Jesus as the Holy One of God:
The Healing of the Zavah in Mark 5.24b-34», JGRCJ 8 (2011-2012) 151-184; F. Gaiser, «In Touch with
Jesus: Healing in Mark 5:21-43», WorWor 30 (2010) 5-15.

199
episódios de milagres que conduzem a um climax cristológico (Mc 4,35 – 5,43).
De facto, Jesus revela o seu poder não só sobre os ‘demónios’ e as doenças, mas
também sobre a morte307. No entanto, esta reanimação da filha de Jairo é ‘inter-
rompida’ pela cura de uma mulher que tinha um fluxo de sangue (Mc 5,25-34;
Mt 9,20-22; Lc 8,43-48) – que ficou conhecida na tradição por ‘a hemorroíssa’308.
Assim, o evangelista junta dois episódios, apresentando-os em forma de ‘san-
dwich’309. Por tudo isto, analisaremos aqui estes dois episódios em conjunto, na
versão de Mc (5,21-43)310.
É possível que estas duas histórias originalmente pertencessem a tradições
orais independentes, tendo posteriormente sido associadas por causa dos mui-
tos elementos comuns311. Neste sentido, a relação entre as duas cenas não é sim-
plesmente narrativa porque não se reduz ao facto de ter introduzido no meio
da história principal (a reanimação da filha de Jairo) uma outra história (um
mulher que sofria de um fluxo de sangue). Trata-se, sobretudo, do encontro de
Jesus com duas mulheres em perigo – uma que está a morrer e outra que está
doente312. Assim, entre estes dois episódios podemos estabelecer vários parale-
lismos: ambos os milagres têm como destinatário uma mulher, a primeira tem
uma doença há ‘doze anos’ (v.25), a segunda é uma menina com ‘doze anos’ de
idade (v.42) – ou seja, o nascimento da menina coincide com o início do sofri-
mento da mulher313; a primeira toca Jesus (v.27) a segunda foi tocada por Jesus
(v.41); Jesus chama ‘filha’ à mulher doente (v.34), já a menina é a ‘filha’ querida

307
  Cf. M. De Santis, La visita di Dio alla vedova di Nain (Lc 7,11-17), RivBib 62(2014)1,54.
308
  Hemorroíssa é precisamente uma doença do foro ginecológico que está relacionada com hemorra-
gias, ou seja, uma mulher que sofre de fluxos de sangue contínuos.
309
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Marc, XVI, Pendé 2014, 163. «Seguendo la tecnica della costruzione
a incastro (nota pure com il nome de ‘interposizione’, ‘intercalazione’ o, più coloquialmente, di sand-
wich), abbastanza frequente nel Vangelo di Marco (3,20-35; 11,12-25; 14,53-73), il narratore intreccia
il raconto dell’emorroissa com quello della figlia di Giairo». N. Calduch-Benages, Il profumo del
Vangelo, Milano 20092, 17. Ver ainda: J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 364; R. Stein, Mark,
Michigan 2008, 262-263.
310
  De facto, é unânime, entre os exegetas, que esta perícopa, do capítulo 5, faça um conjunto literário.
Robert Stein intitula esta parte de «Jesus – Lord of Disease and Death». Cf. R. Stein, Mark, Michigan
2008, 262. Joel Marcus, de modo diferente, intitula «Jesus Heals a Woman and Raises a Girl to Life». Cf.
J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 354. Valorizando outros aspetos desta perícopa, Roland Meynet,
intitula «Deux femmes restituées à la fécondité». Cf. R. Meynet, L’évangile de Marc, XVI, Pendé 2014,
163. Giacomo Perego sublinha outra perspetiva ao intitular: «La liberazione dall’isolamento e dalla
morte». Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 122.
311
  Cf. R. Stein, Mark, Michigan 2008, 262-263.
312
  Cf. X. Pikaza, Para vivir el evangelio. Lectura de Marcos, Estella 1995, 79.
313
  Cf. S. Briglia, «Vangelo secondo san Marco», Roma 2005, 595.

200
de Jairo (v.23)314; a referência a ter fé ou a necessidade de ter fé (vv. 28.34.36); a
presença do medo em ambos os relatos (vv. 33.36)315; quer a doença da mulher,
quer a morte da menina, são duas situações consideradas ‘impuras’ (doença e
morte); quem pede a cura (a mulher no v.33 e Jairo no v.22) assume um gesto
de reconhecimento de Jesus, prostrando-se aos seus pés; o tema da fé é central
nos dois episódios (vv.34.36); nos dois casos a intervenção de Jesus não é ape-
nas um ato de cura mas de verdadeira salvação (vv.23.28.34). Para além destes
paralelismos, registamos um jogo de contrastes: de um lado o protagonista é
um homem, Jairo, com um nome e uma função pública e reconhecida (chefe da
sinagoga), do outro, temos uma mulher anónima316 que age no total anonima-
to; ele seria rico, ela teria empobrecido por causa do dinheiro que gastou com
os médicos317; ao primeiro milagre assistem todos (multidão e discípulos), ao
segundo, apenas três discípulos e os pais da criança; um acontece na rua, outro
na casa – lugares muito significativos para o evangelho de Mc318.
A narração começa com a indicação de que Jesus tinha «atravessado [no bar-
co] para a outra margem320» (v.21a). Quando estava à ‘beira-mar’, rodeado de
319

grande multidão, apareceu um homem chamado Jairo (o significado do nome


pode ser entendido como uma promessa do poder de Deus321), que pediu ‘ins-

314
  Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 364-365.
315
  Cf. R. Stein, Mark, Michigan 2008, 262.
316
  Apesar do relato bíblico sublinhar este anonimato, a sucessiva tradição apócrifa dá-lhe o nome
de Verónica e diz que é originária de Cesareia de Filipe. Cf. R. Pesch, Il vangelo di Marco, I, Brescia
1980, 483.
317
  Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 366.
318
  Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 122-124. Sobre a relação
entre estes duas histórias aconselhamos ainda: N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano
20092, 17-18.
319
  A referência à barca (ἐν τῷ πλοίῳ) permanece incerta. Por um lado, parece uma harmonização in-
troduzida por alguns escribas sob influência de Lc 8,37b - «Jesus subiu para o barco e afastou-se dali»;
por outro lado, é confirmada pela sua presença nos códigos antigos – Sinaítico e Alexandrino. Cf. G.
Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 122.
320
 Roland Meynet faz um paralelismo interessante desta passagem com a atravessia do mar verme-
lho, no êxodo, suportado-se neste primeiro versículo. Cf. R. Meynet, L’évangile de Marc, XVI, Pendé
2014, 174-175.
321
  Jairo quer diz ‘Deus ilumina’ ou ‘Deus ressuscita’, ainda que se trate de um nome simbólico. Cf.
R. Schnackenburg, El Evangelio según San Marcos, I, Barcelona 19803, 136. Outros autores, dizem
apenas que o nome Jairo significa ‘ele vai iluminar’ (he will enlighten) ou ‘ele vai despertar’ (he will
arouse, awaken). Cf. J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 173. O nome
de Jairo (j’jr = brilhe a divindade; ou ainda j‘jr = ele, Deus, ressuscitará) pode ser intendido como uma
promessa. Assinalamos que durante toda a narração ele só é tratado uma vez por Jairo (v.22) e depois
será sempre mencionado como ‘chefe da sinagoga’ (vv.35.36.38). Cf. R. Pesch, Il vangelo di Marco, I,

201
tantemente’ ajuda a Jesus322. Este homem, que era chefe da sinagoga, prostrou-se
aos pés de Jesus e disse-lhe: «A minha querida filha [θυγάτριόν]323 está a morrer;
vem impor-lhe as mãos para que seja salva e viva» (v.23). Um pai ‘desesperado’
que pede a Jesus que vá depressa324 com ele a sua casa para impor as mãos sobre a
sobre a sua filha que está a morrer (cf. 7,32)325. Este gesto da imposição das mãos,
como nos recorda Rudolf Pesch, tem a função de transmitir a força que cura (cf.
6,5; 7,32; 8,23.28; 16,18). Contudo, no AT e na tradição rabínica, este gesto não
tem esse sentido no âmbito das curas milagrosas326. Trata-se de uma atitude de
fé de quem não duvida que Jesus pode salvar a sua filha. A este pedido de Jairo,
Jesus não responde, diz o narrador que apenas ‘partiu com ele’. Interessante su-
blinhar este facto, porque Jesus ‘respondeu’ com os ‘pés’ – foi com ele. Em certas
ocasiões as palavras não são o mais eloquente327. Quando Jesus, com Jairo e a
multidão, se dirigiam ao encontro da filha deste chefe da sinagoga, surge uma
mulher que sofria muito e que toca nas vestes de Jesus. Neste ponto, Mc intro-
duz uma nova história na sua narração, uma mulher que sofria de um fluxo de
sangue há doze anos328.

Brescia 1980, 474. Ver ainda: J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 356; R. Stein, Mark, Michigan
2008, 265. Será interessante sublinhar que, para além das discípulos, Mc não usa nomes, exceto em
10,46 (Bartimeu) e aqui. Cf. C.S. Mann, Mark, New York 1986, 283.
322
  Trata-se do primeiro de três pais que pedem ajuda a Jesus para os seus filhos ao longo do evangelho
de Mc (7,26 e 9,17). Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 365.
323
  A palavra grega θυγάτριόν pode ser traduzida pelo diminutivo de filha (θυγάτηρ – v.34) – pequena
filha. Cf. C.S. Mann, Mark, New York 1986, 284. Há quem proponha a tradução literal. Cf. J. Mar-
cus, Mark 1-8, New York 2000, 355; R. Stein, Mark, Michigan 2008, 264. Mas aqui o sentido não tem
tanto a ver com a questão da idade mas com o afeto. Por isso, não usámos a expressão – ‘filha’ (como
a tradução portuguesa), nem a expressão – ‘pequena filha’ (sentido literal), mas a expressão ‘querida
filha’, suportados por alguns exegetas. «My dear daughter: the diminutive thygatrion of ‘daughter’ (lit.
‘little daughter’) here conveys affection and not simply age or size». J. Donahue, D. Harrington, The
Gospel of Mark, Minnesota 2002, 173. Outros autores referem três sentidos para esta palavra grega:
sentido de jovem rapariga ou menina; sentido de menina em idade de casamento; sentido de carinho
e afeto, independentemente da idade. Cf. R. Stein, Mark, Michigan 2008, 266.
324
  Também na reanimação de Tabitá pedem a Pedro «vem depressa ter connosco!» (At 9,38c).
325
  Mc 7,32: «Trouxeram-lhe um surdo tartamudo e rogaram-lhe que impusesse as mãos sobre ele». BS.
326
  Cf. R. Pesch, Il vangelo di Marco, I, Brescia 1980, 474-475.
327
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Marc, XVI, Pendé 2014, 164.
328
  Aconselhamos o interessante artigo de Candida Moss que fala, sobretudo, do poder de Jesus. Tra-
ta-se de um artigo que reflete apenas sobre a história desta mulher (vv.25-34). Desde logo chamamos
a atenção para o título, em contraponto com o fluxo de sangue da mulher: «O homem com o fluxo de
poder». Cf. C. Moss, «The Man with Flow of Power», in JBL 3 (2010) 507-519.

202
Com efeito, na história desta mulher, com menstruações irregulares, o elemen-
to que assume maior importância é o seu isolamento329. No livro do Levítico en-
contramos a descrição das normas e, sobretudo, das consequências de impureza,
quer para homens, quer para mulheres330. Deste modo, uma mulher afetada por
esta ‘impureza’ estava condenada a um isolamento social e religioso. A isto junta-se
o facto de esta doença impedir a fecundidade da mulher. Explica-se, assim, o modo
como se aproximou de Jesus, por trás, no total anonimato e sozinha. É provável que
uma doença deste género tivesse levado o marido a divorciar-se. Esta mulher, «que
sofrera muito331 nas mãos de muitos médicos» (v.26a), tinha procurado durante
muito tempo cura nos médicos mas sem sucesso. Para além da desilusão e do can-
saço de, pelo menos, doze anos, ela tinha gasto todos os seus bens332. Os resultados
eram trágicos: estava cada vez pior e tinha perdido os seus recursos financeiros333.
Mc insiste na ideia que gastou ‘todos os seus haveres’ com os médicos, sem ter sido
curada por nenhum (cf. v.26b). Com esta informação Mc não quer desacreditar a
medicina, mas mostrar que há situações em que o único e verdadeiro médico é o
Senhor. Por isso, descreve o gesto da mulher como simples mas carregado de fé334.

329
 Joel Marcus faz uma curiosa distinção entre a mulher que ouviu falar de Jesus (v.27) e o Jairo que
viu Jesus (v.22), concluindo que o facto de a mulher apenas ‘ouvir’ reflecte o ostracismo da sociedade
por causa do rito de impureza. Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 358.
330
  Lv 15, 19-30: «19Quando uma mulher tiver o fluxo de sangue que corre do seu corpo, permane-
cerá durante sete dias na sua impureza. Quem a tocar ficará impuro até à tarde. 20Todo o objecto
sobre o qual ela se deitar, durante a sua impureza, ficará impuro; tudo aquilo em que se sentar, ficará
impuro. 21Quem tocar no seu leito, deverá lavar as vestes, banhar-se-á em água e ficará impuro até à
tarde. 22Quem tocar em qualquer objecto em que ela tenha estado sentada lavará as vestes, banhar-se-á
em água e ficará impuro até à tarde. 23Quem tocar nalguma coisa que estiver sobre a cama ou sobre o
móvel em que ela se sentou, ficará impuro até à tarde. 24Se um homem coabitar com ela e a sua impu-
reza o atingir, ficará impuro durante sete dias, e todo o leito em que se deitar ficará impuro.25Quando
uma mulher tiver um fluxo de sangue durante vários dias, fora do tempo normal de impureza, isto
é, se o fluxo se prolongar para além do tempo da sua impureza, ficará impura durante todo o tempo
desse fluxo, como no tempo da sua impureza. 26Durante todo o tempo desse fluxo, todo o leito em que
se deitar será para ela como o leito em que se deitava durante a sua impureza; qualquer móvel sobre o
qual se sentar ficará impuro, como no tempo da sua impureza; 27quem os tocar ficará impuro; deverá
lavar as suas vestes, banhar-se-á em água e ficará impuro até à tarde. 28Quando terminar o fluxo de
sangue, contará sete dias e, depois, ficará pura. 29No oitavo dia, tomará duas rolas ou dois pombos, e
levá-los-á ao sacerdote, à entrada da tenda da reunião. 30O sacerdote oferecerá um em sacrifício pelo
pecado e outro em holocausto; e purificá-la-á da impureza do fluxo diante do Senhor». BS. Ver ainda:
J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 367-368.
331
  A repetição, na mesma frase de πολλά e de πολλῶν, que significa ‘muito’, reforça a ideia de grande
sofrimento. Cf. J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 174.
332
  Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 124-125.
333
  Cf. R. Stein, Mark, Michigan 2008, 267.
334
  Cf. S. Briglia, «Vangelo secondo san Marco», Roma 2005, 596. Ver ainda: Cf. R. Meynet, L’évan-

203
Com esta informação também ficamos a saber que esta mulher seria de uma classe
elevada da sociedade e teria alguma riqueza, uma vez que possuía recursos finan-
ceiros independentes, ainda que os tivesse gasto ao longo dos anos335.
Neste contexto, resta a esta mulher a última esperança – tocar no manto
de Jesus [ἥψατο - v.27b]. A razão desta esperança e desta atitude está explica-
da no v.28: «Se ao menos tocar [ἅψωμαι] nem que seja as suas vestes, serei salva
[σωθήσομαι]336». Ela acredita que Jesus, ao contrário dos médicos, a pode aju-
dar337. ‘Tocar o manto’ tem um sentido de tocar a ‘intimidade’ e a ‘força interior’
(δύναμις - v.30) - trata-se de uma ideia difundida na antiguidade. Essa ideia é
reforçada pela noção de que a cura acontecia tocando nas vestes de alguém santo
mesmo sem que este tivesse consciência disso338. Essa força, capaz de curar, trans-
mitia-se por contacto com o doente, não só pelas vestes339 mas até pela sombra340.
É evidente que esta ideia pressupõe uma forte ‘fé’, ainda que insipiente341, naquele
em quem se procura ajuda. Uma ‘fé’ que favorece o restabelecimento psicotera-
pêutico, quando a doença é causada por factores prevalentemente psíquicos342.
Este contexto reforça a ligação entre o ‘tocar as vestes’ e ‘ficar’ curada. Aliás, Mc,
no capítulo seguinte, falará desse mesmo poder dizendo: «Nas aldeias, cidades ou
campos, onde quer que entrasse, colocavam os doentes nas praças e rogavam-lhe
que os deixasse tocar pelo menos as franjas das suas vestes. E quantos o tocavam
ficavam curados» (Mc 6,56). Nesta mesma perspectiva, Lc dirá: «toda a multidão
procurava tocar-lhe, pois emanava dele uma força que a todos curava» (Lc 6,19).
De facto, a coragem de ter tocado no manto, curou-a. Usando a imagem de Can-

gile de Marc, XVI, Pendé 2014, 167; H. Anderson, The Gospel of Mark, Oliphants 1976, 152.
335
  Cf. J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 174.
336
  O verbo σώζω pode ser traduzido por ‘curar’ ou ‘ser salvo’. Cf. C. Rusconi, «σώζω», in DGNT, São
Paulo 2003, 447. Alguns autores, referindo que o sentido literal é ‘ser salvo’ (be saved), sugerem a tra-
dução ‘ser curado’ (be cured), sem deixar de sublinhar a forte conotação escatológica que este verbo
tem em Mc. Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 365 e 368. Nós sugerimos a tradução ‘salva’ e
não ‘curada’, como encontramos na tradução portuguesa, unido o sentido aos vv. 23 e 34, seguindo
alguns exegetas. «I will be saved». Cf. J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota
2002, 175. Ver ainda: R. Stein, Mark, Michigan 2008, 264.
337
  Cf. R. Stein, Mark, Michigan 2008, 268.
338
  Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 359.
339
  At 19,11-12: «11Deus fazia milagres extraordinários por intermédio de Paulo,12a tal ponto que bas-
tava aplicar aos doentes os lenços e as roupas que tinham estado em contacto com o seu corpo, para
que as doenças e os espíritos malignos os deixassem». BS.
340
  At 5,15: «A tal ponto que traziam os doentes para as ruas e colocavam-nos em enxergas e catres, a
fim de que, à passagem de Pedro, ao menos a sua sombra cobrisse alguns deles». BS.
341
 Cf. H. Anderson, The Gospel of Mark, Oliphants 1976, 152-153.
342
  Cf. R. Pesch, Il vangelo di Marco, I, Brescia 1980, 477-478.

204
dida Moss, podemos dizer que o fluxo de energia que saía do corpo de Jesus estan-
cou o fluxo de sangue que saía do corpo daquela mulher343. Este gesto de ‘tocar’
torna-se o ‘centro’ deste ‘encontro’ e determina a transformação desta mulher344.
Jesus quer saber quem é que o tocou. A mulher estava cheia de medo de
ser descoberta345. De facto, não só sabia que tinha transgredido as prescrições
judaicas sobre a pureza, como também tinha vergonha da sua doença. Prova-
velmente deu-se conta de que o contacto poderia ser interpretado como uma
tentativa de libertar-se da sua doença transmitindo-a aos outros. Contudo, o
narrador sublinha a boa intenção da mulher, sublinha a ideia da confiança e da
fé que está para além da legitimidade, da fé que é provada no meio das dificulda-
des. A mulher enfrentou os limites impostos pelo tabú e pelas leis, mas da parte
de Jesus, em vez de receber reprovação, recebeu encorajamento e aprovação346.
Mas porque terá conscientemente transgredido a Lei? A resposta é simples: quer
ser curada e este seu desejo é mais forte do que a lei, a cultura ou a tradição347.
Aquela ‘mulher intocável’348 arrisca uma última oportunidade – tocar Jesus.
Diante deste ‘arriscar’, percebemos melhor a resposta de Jesus: «Filha, a tua fé
salvou-te; vai em paz e permanece349 curada do teu mal» (v.34). Provavelmente
esta seria uma fórmula baptismal350. Trata-se, sobretudo, de uma resposta que,
por um lado, ‘acolhe’ aquela mulher e, por outro, devolve-lhe o poder e a con-
fiança que existia dentro dela. A fé e o acreditar dela, transformou-a. Foi capaz
de superar o isolamento e libertar-se da enfermidade - tomou a iniciativa e foi
ao encontro de Jesus. Por isso, Xabier Pikaza dirá que a confiança é que salva e
dignifica a pessoa351.

343
  «The flow of power from Jesus mirrors the flow of blood from the woman». C. Moss, «The Man
with Flow of Power», JBL 3 (2010) 516.
344
  Cf. M.-L. Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013, 80.
345
  «This reaction is natural in the situation, but fear is also the standard biblical response to a theo-
phany. (…) The combination ‘fear and trembling’ occurs in a theophanic context in 4 Macc 4:10; and
in Phil 2:12». J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 359-360.
346
  Cf. R. Pesch, Il vangelo di Marco, I, Brescia 1980, 480-481.
347
 Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 30.
348
  Trata-se de uma expressão usada por Marie-Laure Veyron: «La femme (…) ‘intouchable’». M.-L.
Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013, 72.
349
  Apesar de na tradução portuguesa sugerir ‘sê curada’, nós optámos pela tradução ‘permanece
curada’. Seguimos a ideia de valorizar o novo estado e a necessidade de que seja constante. «‘Remain
healed’ translates the imperative of the verb ‘be’ with a nuance of a new and constant state». Cf. J.
Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 176.
350
  Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 369.
351
  Cf. X. Pikaza, Para vivir el evangelio. Lectura de Marcos, Estella 1995, 81.

205
De facto, o verbo usado é σώζω (vv.23.28.34) que quer dizer ‘salvar’. Por um
lado, trata-se de um verbo usado no AT referindo-se à libertação do povo por
parte de Deus, sublinhado que a cura de Jesus é continuação da própria ação
de Deus; por outro lado, pelo contexto escatológico e soteriológico deste termo
na narração de Mc, o verbo ajuda-nos a interpretar a ação de Jesus não apenas
como uma cura física mas como um restabelecimento na plenitude do desígnio
salvífico de Deus352. Na verdade, a cura provém da fé, que deve permanecer e ser
alimentada. Jesus não agiu como um médico, mas como alguém que despertou a
fé em Deus e liberta os homens e mulheres dos seus tormentos353.
Por fim, Jesus trata-a por ‘filha’. No entanto, esta mulher não tinha uma re-
lação com Jesus nem sequer era necessariamente mais jovem do que ele. No AT
e na tradição judaica tardia, ‘minha filha’ é um tratamento típico de respeito
e afecto, independentemente da idade e da relação familiar (cf. Rut 2,8; 3,10).
Aqui o sentido desta expressão pode ligar-se à ideia da comunidade cristã como
a nova família354. Assim, com a palavra ‘filha’, Jesus retira-a no seu isolamento e
‘dá-lhe’ uma família. A sua fé tornou-a filha de Deus. Basta recordar o que Jesus
tinha dito anteriormente: «Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu
irmão, minha irmã e minha mãe» (Mc 3,35)355. Esta expressão, serve também de
ligação com a história da ‘filha’ de Jairo. Depois de a tratar por ‘filha’ diz-lhe que
viva em paz. Esta ‘paz’ que lhe concede não é tanto a paz da liberdade exterior,
mas da paz da totalidade de vida que decorre do verdadeiro e profundo encontro
com Deus356. Ou seja, não é tanto uma expressão genérica de ‘paz de espírito’ pes-
soal, quanto o desejo de uma paz divina que é antecipação escatológica de salva-
ção357. Depois de tanto sofrimento e de tanto isolamento podemos bem imaginar
a importância desta cura e da grande alegria que significou, para aquela mulher,
aquele momento. Podemos imaginar como terá regressado diferente a sua casa e
à sua comunidade!

352
  Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 123. Ver ainda: H. An-
derson, The Gospel of Mark, Oliphants 1976, 153-154.
353
  Cf. R. Pesch, Il vangelo di Marco, I, Brescia 1980, 482.
354
  Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 360. Ver ainda: R. Stein, Mark, Michigan 2008, 270.
355
  Esta referência familiar está em contraste com os gestos de adoração e de respeito que ela teve com
Jesus e reclama outra passagem: Mc 3,31-35. Cf. J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark,
Minnesota 2002, 176.
356
 Cf. H. Anderson, The Gospel of Mark, Oliphants 1976, 154. Ver ainda: J. Marcus, Mark 1-8, New
York 2000, 361.
357
  Cf. R. Stein, Mark, Michigan 2008, 271.

206
Entretanto, «Ainda Ele estava a falar, quando, da casa358 do chefe da sinagoga,
vieram dizer: ‘A tua filha morreu; de que serve agora incomodares o Mestre?’»
(v.35). Os que trazem a notícia pensam que Jesus possa ser um bom médico para
os casos desesperados, mas não pensam que seja o Senhor da vida359. A inclusão
da história da mulher com um fluxo de sangue nesta história da filha de Jairo,
pode ser entendida como um ‘dar tempo’ para que a criança tivesse morrido,
preparando-nos assim para o próximo milagre. Agora parecia tarde de mais, por
isso, já não valia a pena ‘importunar o mestre’360. «Mas Jesus, não dando relevo a
quanto estavam a dizer [παρακούσας]361, disse ao chefe da sinagoga: ‘Não tenhas
medo; crê somente’» (v.36).
De facto, a superação do medo está ligada a muitos milagres362. Jesus aqui
faz eco da voz do anjo a Maria363 ou da voz de Deus a Adão (e, por isso, a to-
dos os homens em todos os tempos) na primeira palavra com que este se dirige
a Deus: ‘Tive medo’ (cf. Gn 3, 10). Ao longo do Evangelho podemos encontrar
muitos outros lugares em que esta expressão ‘entra’: quando Jesus caminha sobre
as águas e os ventos são fortes364 ou no episódio da ‘tempestade acalmada’365. Na
ressurreição voltamos a ouvir ‘não temais’: «O anjo tomou a palavra e disse às
mulheres: ‘Não tenhais medo. Sei que buscais Jesus, o crucificado; não está aqui,
pois ressuscitou» (Mt 28, 5-6a) e uns versículos mais à frente Jesus saiu ao encon-
tro dessas mulheres e disse-lhes «Não temais. Ide anunciar aos meus irmãos que
partam para a Galileia. Lá me verão» (Mt 28, 10). Não ter medo é um ‘sinal’ da

358
  No texto grego não se encontra a expressão ‘da casa’. Contudo, pelo sentido, as traduções incluem
essa expressão. Provavelmente será um exemplo de elipse em que o termo ‘casa’ foi omitido. Cf. R.
Stein, Mark, Michigan 2008, 271.
359
  Cf. S. Briglia, «Vangelo secondo san Marco», Roma 2005, 596.
360
  Cf. R. Stein, Mark, Michigan 2008, 271.
361
  O prefixo παρα que se junta ao verbo κούσας (παρακούσας) confere uma conotação negativa que
indica: escuta distraída, não atento, vontade de deixar cair quando escutado. Cf. G. Perego (a cura di),
Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 124-125. Por isso, sugerimos a tradução ‘não dando
relevo a quanto estavam a dizer’ em vez da proposta da tradução portuguesa, de difícil compreensão -
‘que surpreendera as palavras proferidas’. Outros exegetas falam do sentido ambíguo de παρακούσας,
que pode significar ‘não escutar’ ou então ‘ouvir em conjunto’. Cf. R. Pesch, Il vangelo di Marco, I,
Brescia 1980, 469. Ver ainda: J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 176;
H. Anderson, The Gospel of Mark, Oliphants 1976, 154; J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 362.
362
  Cf. J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 176.
363
  Maria ouviu da boca do anjo Gabriel:  «Maria, não temas, pois achaste graça diante de Deus» (Lc
1, 30b). BS. Esta afirmação suporta-se na certeza de que para Deus «nada é impossível» (cf. Lc 1, 37). 
364
  Mc 6, 50b: «Mas Ele logo lhes falou: ‘Tranquilizai-vos, sou Eu: não temais!’». BS. 
365
  Mt 8, 26: «Disse-lhes Ele: ‘Porque temeis, homens de pouca fé?’ Então, levantando-se, falou impe-
riosamente aos ventos e ao mar, e sobreveio uma grande calma». BS.

207
ressurreição e uma afirmação da esperança cristã n’Aquele que tudo pode, sobre-
tudo n’Aquele que dá a vida para sempre. Efetivamente, o medo é o contrário da
fé, o medo torna-nos auto-referenciais e afasta-nos dos outros, o medo não nos
deixa ver para além do sofrimento e da morte nem nos deixa viver (plenamente)
o ‘milagre’ da vida.
Diante destes acontecimentos o chefe da sinagoga terá de se confrontar com
duas questões essências: por um lado, deixar Jesus entrar em sua casa, já que
ele tinha sido tocado por uma mulher impura; por outro, tinha que decidir o
que fazer diante da notícia de que a sua filha já tinha morrido – pois à morte
também estava ligada a situação de impureza366. Aceitou o desafio lançado por
Jesus - manter a fé. Ter confiança como recusa do medo da morte. Assim, a sua
confiança em Jesus, depois de saber que a sua filha está morte, reforça a própria
fé. Volta-se a ligar a fé às situações de grande dificuldade onde se podem ‘superar
os limites’. Jairo acolhe, deste modo, a confiança expressa no sentido do seu pró-
prio nome: Deus reanimará a sua filha por meio de Jesus. A fé transcende o que
é possível ao homem367.
Jesus dirige-se à casa de Jairo, apenas com Pedro, Tiago e João (Mc e Lc)368,
os que chamou em primeiro lugar, os mesmos que depois estarão presentes no
momento da Transfiguração do Senhor, no Monte das Oliveiras e no Getséma-
ni369. O grupo dos apóstolos, dos quais se destacam estes três, serão sempre um
importante testemunho para a comunidade primitiva e para a própria Tradição.
Daí a importância de estarem presentes nos momentos mais marcantes da ação
de Jesus. Agora, o contexto já não será a rua, nem Jesus se faz acompanhar pela
multidão. Será na intimidade da casa e acompanhado por um grupo restrito, pais
e os três discípulos, que realizará o milagre da reanimação da filha de Jairo370.

366
  Cf. G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 125-126.
367
  Cf. R. Pesch, Il vangelo di Marco, I, Brescia 1980, 484.
368
  «This is the first clear reference to them [Peter, James and John] in Mark as a core group of the
disciples». R. Stein, Mark, Michigan 2008, 272.
369
  «Peter and James and John are the only ones present also with Jesus at the transfiguration (9:2),
in Gethsemane (14:33), and (together with Andrew) on the Mount of Olives (13:3)». H. Anderson,
The Gospel of Mark, Oliphants 1976, 154. «Jésus congédie toute cette foule et ne garde avec lui que les
trois premiers de ses apôtres; comme il le fera pour monter sur la montagne de la Transfiguration et
au jardin de Gethsémani». R. Meynet, L’évangile de Marc, XVI, Pendé 2014, 169. Pela primeira vez
aparecem como testemunhas privilegiadas do poder de Jesus e de maneira especial lhes é comunicado
os ‘mistérios do Reino’ (cf. Lc 8, 10). Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York
1981, 749. Seria possível fazer uma ligação entre um Jesus que se vai revelando como Filho de Deus e a
‘capacidade’ dos mais ‘íntimos’ de verem a ‘transfiguração’ onde Jesus se revela como Cristo.
370
  «It is not a public spectacle for the crowd but a revelation for those who are in the company of

208
Ao chegarem a casa encontraram um grande alvoroço com gente a chorar
(Mc e Lc) – lamentos (Lc), gritos (Mc) e os flautistas (Mt)371. A confusão na casa
e o lamento fúnebre serve para sublinhar a morte da menina e procura excluir a
ideia da morte aparente372. Jesus vendo tudo isto disse: «A criança [παιδίον]373 não
morreu, está a dormir» (v.39b)374. Esta afirmação contrasta com o v.35, quando
algumas pessoas foram ter com Jairo dizendo que a sua filha já tinha morrido.
Trata-se de uma típica ironia do evangelho segundo Marcos, apesar de, no AT e
com os primeiros cristãos, o termo ‘dormir’ ser frequentemente usado como um
eufemismo para a morte375. O racionalismo crítico do século XIX e XX encontrou
nesta afirmação suporte para a teoria de que a criança estaria apenas em coma.
Mesmo que aceitássemos esta hipótese, continuaria a ser um milagre, já que Je-
sus sabia antecipadamente que ela seria curada376. Com efeito, esta afirmação,
de difícil de compreensão, pode ser entendida apenas em sentido metafórico e,
ao mesmo tempo, paradoxal. A partir de Jesus a inevitabilidade da morte é que-
brada – Jesus é o profeta escatológico377. No entanto, diante desta afirmação, os
presentes riram-se de Jesus. Também se riram de Paulo quando falou da ressur-
reição, no areópago de Atenas378. Mas o nosso Deus «não é um Deus de mortos,
mas de vivos» (Mc 12,27a)379.

Jesus». H. Anderson, The Gospel of Mark, Oliphants 1976, 155.


371
  Os flautistas estariam ligados aos ritos fúnebres judaicos. Cf. R. Schnackenburg, El Evangelio
según san Marcos, I, Barcelona 19803, 141. Ver ainda: J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of
Mark, Minnesota 2002, 177.
372
  Cf. R. Pesch, Il vangelo di Marco, I, Brescia 1980, 486. Ver ainda: R. Stein, Mark, Michigan
2008, 273.
373
  Procurando seguir mais perto o texto grego, quisemos distinguir a palavra ‘criança’ (παιδίον –
vv.39c.40c.40e.41a) da palavra que ocorrerá posteriormente - ‘menina’ (κοράσιον – vv.41e.42a). Cf. R.
Meynet, L’évangile de Marc, XVI, Pendé 2014, 169. Robert Stein, na sua proposta de tradução, dis-
tingue precisamente ‘criança’ (chil) de ‘pequena rapariga’ ou ‘menina’ (little girl). Cf. R. Stein, Mark,
Michigan 2008, 264. A tradução portuguesa usa sempre a mesma palavra – menina. Ver ainda: M.-L.
Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013, 68-69.
374
 Joel Marcus assinala a ‘evolução’ da situação. Jairo diz: «A minha filha está a morrer» (v.23); os da
casa de Jairo vieram dizer-lhe: «A tua filha morreu» (v.35); e Jesus diz aos que estavam em casa de
Jairo: «A menina não morreu, está a dormir» (v.39). Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 370-371.
375
  Cf. J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 177.
376
  Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 362. Ver ainda: R. Stein, Mark, Michigan 2008, 273.
377
  Cf. R. Pesch, Il vangelo di Marco, I, Brescia 1980, 486.
378
  At 17,32: «Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, uns começaram a troçar, enquanto outros
disseram: ‘Ouvir-te-emos falar sobre isso ainda outra vez’». BS. Hugh Anderson defende que o evan-
gelista Mc escreve esta história como a descrição de uma ressurreição. Cf. H. Anderson, The Gospel
of Mark, Oliphants 1976, 155.
379
  Sobre a força do acreditar na ressurreição aconselhamos: G. Greshake, Vita – più forte della mor-
te, Brescia 2009.

209
Xabier Pikaza diz que a morte da menina deve ser contextualizada na impos-
sibilidade da sua realização pessoal. De facto, sendo uma menina que pertencia
a uma família rica, o seu pai era chefe da sinagoga, ao fazer os doze anos entrava
na vida adulta. Nesta idade começavam os contratos esponsais e passaria a ser
‘serva’ de um marido que não escolhia. Este ‘submeter-se’ significava perder a
sua liberdade e a sua possibilidade de realização. Por isso, restava-lhe a morte380.
Todavia, esta perspetiva, sendo bastante interessante, parece-nos uma argumen-
tação contextualizada nos nossos dias e na nossa cultura ocidental – que valoriza
muito a autonomia, a liberdade e a realização pessoal – e não tanto da realidade
vivida e sentida à época.
Voltando à frase paradoxal de Jesus, é importante sublinhar que esta afirma-
ção não quer dizer que a morte seja só aparente, mas que a morte tem ‘limites’,
como um ‘sono’. Segundo alguns exegetas, referem, deste modo, que a morte não
é um estado permanente mas transitório, onde podemos ver uma certa alusão à
ressurreição381. Contudo, não podemos confundir uma reanimação, um voltar
a esta vida, como é este caso, com a ressurreição no sentido escatológico de al-
cançar a vida eterna – ou talvez melhor ainda, ser alcançado pela vida eterna382.
Muitas vezes não vemos o cuidado desta distinção, mesmo entre grandes teólo-
gos383, correndo o risco de deixar perceber a ressurreição como um retornar a
‘esta’ vida dificultando a perceção do significado profundo e carácter ‘excecional’
da ressurreição de Jesus onde todas as nossas vidas poderão um dia ressuscitar
para a vida eterna. No entanto, a verdade é que onde todos viam (apenas) ‘morte’
Jesus vê possibilidade de ‘vida’ – eis o caminho do milagre.
Neste contexto Jesus, acompanhado pelos três discípulos, na intimidade da
família e da casa (quarto da menina384), «tomando-lhe a mão, disse: ‘Talitha

380
  Cf. X. Pikaza, Para vivir el evangelio. Lectura de Marcos, Estella 1995, 81.
381
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 749.
382
  Ibidem, 744.
383
  Vários exegetas referem-se a esta passagem como uma ressurreição. Cf. R. Pesch, Il vangelo di
Marco, I, Brescia 1980, 467.484.488; R. Meynet, L’évangile de Marc, XVI, Pendé 2014, 163.173.
384
  Mc 5,40b: «Levando consigo apenas o pai, a mãe da menina e os que vinham com Ele, entrou onde
ela jazia». BS. «The existence of a separate bedroom is testimony to Jairus’ wealth; most Palestinian
dwellings from this time were poor, one-room affairs». J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 362.

210
qûm!’385, isto é, ‘Menina [κοράσιον]386, sou Eu que te digo: levanta-te!’387»(v.41)388.
Uma clara manifestação da força de Deus, que nos liga à própria ressurreição de
Jesus389. O milagre é feito de ‘toque’ da mão e da ‘palavra’ proferida. Um aspe-
to muito importante que certamente nos liga a muitos outros milagres de Jesus
onde gesto e palavra se iluminam e se unem como força capaz de curar e de dar
(mais) ‘vida’, numa hierarquia (radical e evangélica) onde o gesto precede a pala-
vra e não o contrário. Este ‘toque’ (primeiro) unido à ‘palavra’ (depois) restitui a
plenitude de vida, é sinal de proximidade e de não indiferença. Num momento de
dor e de sofrimento o toque, mais do que a palavra, são sinal profundo de com-
paixão e ajudam a ‘viver’390. Jesus que ‘toca’ a menina é o mesmo que versículos
antes, quer saber quem lhe tocou no meio da multidão (cf. Mc 5, 30b). As duas
curas são acompanhadas com dois ‘toques’: num Jesus é o ‘objeto’ noutro ele é o
‘sujeito’ dessa ação391.
385
  «In Aramaic this phrase literally means ‘little lamb, arise’; the word ‘lamb’ (talitha) can be a term
of affection, especially for a young child (see 2Sam 12:1-6). Foreign words (rhēsis barbarikē» in hea-
ling stories often function like magical incantations. Mark, however, retains and translates Aramatic
terms in contexts other than miracle stories, often to underscore his point of view (3:17; 7:11.34; 11:9;
14:36; 15:22.34)». J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 178. Segundo
Joel Marcus, esta expressão aramaica tem um sentido misterioso que constitui parte importante do
próprio milagre. Cf. J. Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 363.
386
  Já não se fala de ‘criança’ (39c.40c.40e.41a) mas de ‘menina’ (41a.42a). Cf. R. Meynet, L’évangile
de Marc, XVI, Pendé 2014, 169.
387
  A palavra grega significa literalmente – ‘acorda do sono’, mas também pode significar ‘levanta-te’.
No entanto, trata-se sempre de um ‘acordar’ em duplo sentido: do sono ou da morte (do sono da mor-
te). Cf. J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 178.
388
  Aqui será interessante referir algumas semelhanças e diferenças entre os relatos sinópticos: todos re-
ferem que Jesus ‘tomou a mão’ desta menina que tinha cerca de 12 anos (Lc e Mc); só Mc e Lc dizem que
Jesus falou para a menina e a mandou levantar-se; só Mc registou a expressão aramaica Talitha qûm!.
389
  «Jesus tells the girl to ‘rise’ (egeire), just as he will ‘be raised’ from the dead (ēgerthē, 16:6), and
she ‘arises’ (anestē), just as he will arise (anastēsetai) from death after three days (8:31; 9:31; 10:34)». J.
Marcus, Mark 1-8, New York 2000, 372-373. Ver ainda: R. Stein, Mark, Michigan 2008, 275.
390
  Sobre o ‘toque’ nesta passagem específica sugerimos o excelente texto de: M.-L. Veyron, Le toucher
dans les Évangiles, Paris 2013, 63-98. Nos últimos anos, na área da saúde, especialmente na enferma-
gem, fala-se muito da importância do ‘toque terapêutico’ como técnica complementar não invasiva.
Uma técnica vista como bastante importante na melhoria do conforto, alívio da dor, diminuição da
tensão emocional, da superação da ansiedade, aumento de confiança nos profissionais de saúde - so-
bretudo em unidades de cuidados intensivos e em pessoas com doença oncológica. Nestes doentes os
parâmetros vitais alteram-se com o toque terapêutico. De facto, esta ‘presença’ em momentos de fra-
gilidade, faz a diferença e dá ‘mais’ vida. Neste sentido, Marie de Hennezel, fala da ‘haptonomia’ como
‘aproximação pelo toque afetivo’ que no seu serviço de cuidados terminais em Paris ‘abriu incontesta-
velmente caminhos de uma maneira de ser mais humana’. Ela explica em nota que o termo vem do gre-
go hapto que significa ‘tocar’ e ‘entrar em relação’ e nomos designa ‘regras’ que presidem a este encontro
táctil (o fundador desta ‘técnica’ é Frans Veldman). Cf. M. Hennezel, La mort intime, Paris 1996, 70.
391
  Cf. M.-L. Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013, 65.

211
Por isso, este gesto do ‘tocar o cadáver’ tem um significado ainda mais pro-
fundo, num contexto judaico, onde a pessoa que o fizesse era também considera-
da impura, como nos recorda Xabier Pikaza, dizendo que o ritual fúnebre era do-
minado pelo medo da morte. Jesus ao tocar no cadáver tornar-se-ia impuro. Mas
ele não teve medo desse ‘tocar’. Ao restituir a vida Jesus, sem lhe pedir nada nem
impondo nenhuma lei, torna-a capaz de autonomia e de liberdade, na coincidên-
cia dos doze anos que era a idade de passagem para a fase adulta392. «Deixando-se
tocar e tocando, Jesus vive em con-tacto com pessoas e coisas, realizando, contra
todos os preceitos e preconceitos religiosos, a presença de um Deus que, de facto,
não é insensível nem intocável»393.
Diz o narrador que a menina se levantou e começou a andar. Ela aos doze
anos pode levantar-se e caminhar por si394. É interessante insistir que o texto
grego usa duas palavras diferentes para falar da filha de Jairo. Antes de ser curada
é tratada por ‘criança’ [παιδίον – vv.39c.40c.40e.41a] e depois do encontro com
Jesus passar a ser tratada por ‘menina’ [κοράσιον – vv.41e.42a]395. Há certamente
uma intenção de ligar o milagre com a idade, da autonomia com a fase adulta –
deixar de ser criança.
Em seguida Jesus pede para não dizerem nada do acontecido (Mc e Lc),
tendo Mt referido que a notícia se espalhou por toda a terra. Aqui o que é es-
pecífico de Mc tem muito a ver com a ligação deste ‘silêncio’ à ideia de ‘segredo
messiânico’ que encontramos neste evangelista como fio condutor e dinamis-
mo para ‘des-cobrirmos’ que Jesus é o Messias396. Uma experiência que se faz
pessoalmente e não indiretamente. Como diz Sergio Briglia, é preciso chegar à
compreensão total do mistério pascal para poder proclamar o poder de Cristo
sobre a morte397.
O texto termina exactamente com Jesus a dizer para darem de comer à me-
nina. Este facto não é tanto um testemunho da preocupação humana de Jesus

392
  Cf. X. Pikaza, Para vivir el evangelio. Lectura de Marcos, Estella 1995, 82. Ver ainda: J. Donahue,
D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 178; J.P. Meier, A marginal Jew, IV, New York
2009, 345-246.
393
  J.F. Correia, Entre-tanto, Prior Velho 2014, 164.
394
  Cf. R. Pesch, Il vangelo di Marco, I, Brescia 1980, 490.
395
 Roland Meynet assinala essa evolução: «Ta fille» (35c), depois «l’enfant» quatro vezes
(39c.40c.40e.41a), e, por fim, depois da acção de Jesus, «Jeune fille» (41a.42a). Cf. R. Meynet, L’évan-
gile de Marc, XVI, Pendé 2014, 169. Ver ainda: H. Anderson, The Gospel of Mark, Oliphants 1976, 156.
396
  Cf. R. Stein, Mark, Michigan 2008, 276.
397
  Cf. S. Briglia, «Vangelo secondo san Marco», Roma 2005, 596. Ver ainda: J. Donahue, D. Har-
rington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 178-179.

212
com as necessidades da criança mas, sobretudo, uma impressionante confirma-
ção do restabelecimento da existência corporal normal, ou seja, o evangelista
quer confirmar a realidade do milagre398. Não deixa de ser interessante relacio-
nar este pedido de Jesus com o pedido que ele mesmo faz aos seus discípulos,
no capítulo seguinte, diante da multidão que não tinha alimento: «Dai-lhes vós
mesmos de comer» (Mc 6,37).
A relação entre as duas histórias não é simplesmente narrativa, na verdade,
existe uma conexão temática mais profunda. Trata-se de duas mulheres em ‘pe-
rigo’399. Nestas duas narrativas Jesus não só resgata as duas mulheres da ‘morte’,
mas, sobretudo, devolve-lhes a sua capacidade de darem a vida. A mulher que
tinha um fluxo sanguíneo não pode ter relações sexuais e conceber; já a menina
tinha morrido na passagem da infância para a vida adulta e, por isso, não che-
gou a casar e a ser mãe400. Agora ambas ‘recuperaram’ a sua capacidade de dar
vida. Neste sentido, tornam-se, assim, modelo da comunidade, a partir de uma
narrativa teológica da fé que vence o mal, a doença e a morte401. Uma fé que, não
só supera os limites, como renova a capacidade intrínseca de dar vida.

2.6. Jesus encontra-se com uma mulher ao sábado na sinagoga402


Jesus continua a sua viagem para Jerusalém. Neste percurso surge numa si-
nagoga, de uma cidade de que não sabemos ao nome, a ensinar a um sábado.
Durante a sua pregação cura uma mulher que estava ali na sinagoga403. Este tex-
to encontra-se exclusivamente em Lc 13,10-17404. Assim, depois de sentenças, de

398
 Cf. H. Anderson, The Gospel of Mark, Oliphants 1976, 156. Ver ainda: J. Marcus, Mark 1-8, New
York 2000, 364.
399
 Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 17.
400
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Marc, XVI, Pendé 2014, 171.
401
  Cf. J. Donahue, D. Harrington, The Gospel of Mark, Minnesota 2002, 181-182.
402
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: M. Mullins, The Gospel of Luke,
Dublin 2010, 354-355; F. Bassin, L’évangile selon Luc, II, Vaux-sur-Seine 2012, 109-112; P. Chakkala-
kal, «Jesus’ Radical Option for Woman: A Feminist Critical Reading of the Bent Woman on Luke
13:10-17, Jeev. 44 (2014) 58-76.
403
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1010. «Storicamente
il fatto ebbe luogo, con ogni probabilità, in una sinagoga della Galilea... se di sinagoga si tratta». G.
Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 539.
404
  A perícopa que aqui estudamos é comumente delimitada como aqui sugerimos: 13,10-17. No en-
tanto, Roland Meynet, apresenta uma pequena diferença, deste consenso generalizado, ao não incluir
o v.17. Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 580. Joseph Fitzmyer intitulou «The Cure
of the Crippled Woman on the Sabbath». Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV),
II, New York 1985, 1009. François Bovon intitulou de forma mais genérica «Dieu redresse les corps et

213
diálogos e de parábolas, Lc insere aqui a história de um milagre. Este milagre não
é mais do que a primeira de várias disputas de Jesus com o judaísmo do seu tem-
po. Por isso, é importante reforçar a ideia de que o texto começa por nos colocar
num tempo sagrado – sábado, e num espaço sagrado – ‘sinagoga’. Mais, até aqui
Jesus falava, mas agora, na sinagoga, Jesus ensina (v.10)405.
Este texto liga-se a outras curas, presentes em Lc, realizadas ao sábado. Antes
desta passagem temos: «Num outro sábado, entrou na sinagoga e começou a en-
sinar. Encontrava-se ali um homem cuja mão direita estava paralisada. Os douto-
res da Lei e os fariseus observavam-no, a ver se iria curá-lo ao sábado, para terem
um motivo de acusação contra Ele» (Lc 6,6-7). Depois da passagem que aqui
estudamos, encontramos outro texto: «Tendo entrado, a um sábado, em casa de
um dos principais fariseus para comer uma refeição, todos o observavam. Acha-
va-se ali, diante dele, um hidrópico. Jesus, dirigindo a palavra aos doutores da
Lei e fariseus, disse-lhes: ‘É permitido ou não curar ao sábado?’ Mas eles ficaram
calados. Tomando-o, então, pela mão, curou-o e mandou-o embora» (Lc 14,1-4).
No entanto, talvez na fonte própria de Lc, este último relato (Lc,14,1-6) estivesse
muito próximo da passagem que aprofundamos (Lc13,10-17). Deste modo, esta-
ríamos perante duas narrações que apresentavam uma personagem feminina e
uma personagem masculina, muito comum em Lc406. Todavia, este texto tem es-
pecificidades únicas: por um lado, trata-se do único texto dos sinópticos que faz
de uma mulher a beneficiada de uma cura realizada por Jesus num dia de sábado;
por outro, é a última vez que, no evangelho de Lc, Jesus ensina numa sinagoga a
um sábado407.
Este episódio pode ser estudado no contexto das ‘narrações sobre Jesus’, con-
tudo, existem algumas dificuldades da própria composição narrativa que levam
alguns investigadores a considerar o episódio, no seu conjunto, uma composição
tardia. No entanto, esta passagem tem todos os elementos típicos do designado

libère les personnes». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (9,51 – 14,35), II, Genève 1996, 345. Matteo
Crimella intitula «Guarigione della donna curva». Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Bal-
samo 2015, 237. Roland Meynet intitula «C’est aujourd’hui qu’il faut se faire guérir». Cf. R. Meynet,
L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 580.
405
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (9,51 – 14,35), II, Genève 1996, 346. «He [Jesus] uses that
power to heal not only in a synagogue, but even on a Sabbath. The temporal and spatial setting for
the cure thus enhances the effect wrought on ‘a daughter of Abraham’ for whom in God’s providence
Jesus was sent, because she had ‘to be released’». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV),
II, New York 1985, 1011.
406
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 539.
407
  Cf. G. Kibeti, «Narration et christologie en Lc 13,10-17», EstBíb 73 (2015) 45-46.

214
‘relato de milagre’, exceto o pedido expresso da cura. Assim, podemos concluir
que não deixam de ter razão os que reconhecem a ‘forma híbrida’ deste texto, já
que é uma cura que dá origem a uma controvérsia sobre o sábado408. De facto,
a narrativa parte de uma cura e, depois, conclui numa controvérsia sobre ques-
tões que têm a ver não tanto com a situação histórica de Jesus, mas sobretudo
com o confronto entre a comunidade pós-pascal e o judaísmo409. Deste modo, o
episódio é articulado em dois planos: no primeiro (vv.11-13) estão em jogo duas
personagens – Jesus e a mulher curvada, ela será curada e termina a dar glória
a Deus; no segundo (vv.14-17) temos Jesus e o chefe da sinagoga, os adversários
serão envergonhados e a multidão termina a dar glória410.
A mulher teria um problema de coluna que a impedia de se endireitar. Não
era propriamente um caso de possessão, como por exemplo em Lc 4, 33-35411,
mas um «espírito de enfermidade412» (v.11a), uma doença, sobretudo, física. Mas
esta fragilidade da coluna, que tem sentido de debilidade, é atribuída a Satanás
(v.16) – um ‘espírito’ que entrou no seu corpo para a ‘curvar’. Esta relação é a
explicação judaica para a doença desta mulher413. Aqui sente-se que, na cultura
de então, não há uma distinção clara entre uma ‘cura’ e um ‘exorcismo’414. Diz

408
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1010-1011.
409
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 539.
410
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 237-238.
411
  Lc 4,33-35: «33Encontrava-se na sinagoga um homem que tinha um espírito demoníaco, o qual se
pôs a bradar em alta voz:  34‘Ah! Que tens que ver connosco, Jesus de Nazaré? Vieste para nos arruinar?
Sei quem Tu és: o Santo de Deus!’ 35Jesus ordenou-lhe: ‘Cala-te e sai desse homem!’ O demónio, arre-
messando o homem para o meio da assistência, saiu dele sem lhe fazer mal algum». BS.
412
  A expressão grega πνεῦμα ἔχουσα ἀσθενείας é de difícil tradução. Carlo Rusconi sugere que se
traduza πνεῦμα ἀσθενείας por ‘um espírito que provoca enfermidade’. Cf. C. Rusconi, «ἀσθένεια»,
in DGNT, S. Paulo 2003, 81. Neste sentido, sugerimos ‘estava lá uma mulher que tinha um espírito de
enfermidade’, em vez da proposta da tradução portuguesa que diz – ‘estava lá certa mulher doente por
causa de um espírito’. Neste mesmo sentido vai a proposta de Matteo Crimella: «una donna che aveva
da diciotto anni uno spirito di infermità». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015,
237. Roland Meynet traduz com o mesmo sentido: «espirit de maladie». R. Meynet, L’évangile de Luc,
VIII, Pendé 2011, 580. Ver ainda: G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 538. «L’expression ‘qui
avait un esprit de maledie’, littéralment ‘de faiblesse’ (v.11) fait difficulté. Elle est unique chez Luc et
dans le Nouveau Testament. (…) Ici, toutefois, il n’est pas question d’un esprit impur, mais d’esprit de
faiblesse, c’est-à-dire de ‘maladie’. Aux yeus de Luc, qui reprend l’expression de sa source, le πνεῦμα,
l’esprit, de cette maladie s’est répandu dans le corps de cette femme pour la courber et la bloquer».
F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (9,51 – 14,35), II, Genève 1996, 352. Josef Schmid reforça a ideia
de que não se tratava de uma pessoa possessa. Cf. J. Schmid, El evangelio según san Lucas, Barcelona
1968, 340. Outros autores traduzem ‘enferma e aflita por causa de um espírito’. Cf. J. Fitzmyer, The
Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1009.
413
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 238-239.
414
  Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 166.

215
o texto que postura daquela mulher, doente e ‘possuída’, era ‘curvada’. Pelo ad-
jectivo παντελής (v.11b), que significa ‘acabado’ ou ‘completo’415, podemos dizer
aquela mulher seria ‘incapaz de se endireitar completamente’, com o sentido que
teria uma ‘incapacidade total para se endireitar para sempre’. Uma dificuldade
que a impedia de olhar para o alto (faz-nos pensar no sursum corda da liturgia –
‘corações ao alto’). Esta mulher estava impedida, de algum modo, de uma parte
da sua humanidade na relação com os outros e também da relação com Deus.
Certamente a esta ‘degradação’ social juntavam-se as dores físicas decorrentes
da sua doença, mas o texto não nos fala disso. Esta mulher pode ser interpretada
como a humanidade ‘decaída’ e incapaz de estabelecer relação e de se ‘elevar’416.
Assim percebemos melhor a relação entre ‘endireitar-se’ (v.13a) e o ‘começar a
dar glória a Deus’ (v.13b).
O texto diz que esta mulher sofria desta doença há dezoito anos (cf. v.11b)417.
Desde logo, com esta informação, o narrador coloca em confronto dois tempos: o
da ‘doença prolongada’ (v.11a) com o da ‘cura rápida’ (v.13a)418. Normalmente, nas
narrações dos milagres evangélicos, a intervenção de Jesus é breve, a sua palavra
é potente e a cura instantânea419. Esta indicação dos ‘dezoito anos’ é usada duas
vezes no texto, uma primeira como indicação do narrador aos leitores (v.11) e uma
segunda nas palavras de Jesus no diálogo com os presentes (v.16). O facto de Jesus
dizer que «esta mulher, que é filha de Abraão, presa420 por Satanás há dezoito anos»
(v.16a), revela que Jesus conhecia o seu passado de sofrimento. Provavelmente, co-
nhecia os seus dezoito anos de sofrimento, por isso, vai intervir a seu favor. Des-
te modo, pode chamá-la ‘filha de Abraão’. Esta designação pode compreender-se

415
  A expressão εἰς τὸ παντελές, presente neste texto, significa: ‘absolutamente’, ‘de toda a maneira’ e
‘definitivamente’. Cf. C. Rusconi, «παντελής», in DGNT, S. Paulo 2003, 349.
416
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (9,51 – 14,35), II, Genève 1996, 353.
417
  A palavra ‘dezoito’ (δεκαοκτώ) é a junção do número ‘dez’ (δέκα) com o número ‘oito’ (ὀκτώ). Em
alguns manuscritos o número é escrito de forma abreviada - ῖη, exactamente como o nome de Jesus.
Devido a este facto alguns autores especulam que nos anos da doença desta mulher estava inscrito o
nome do seu salvador. Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 239.
418
 Joseph Fitzmyer também sublinha este ‘confronto’ de tempo, nas suas notas exegéticas ao texto. Cf.
J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1013.
419
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 540.
420
  Aqui o sentido de ‘presa’ é ‘manter amarrada’ para contrapor, directamente, com a ideia seguinte
da necessidade de ‘desligar’ ou ‘libertar desse laço’ (v.16) e, indirectamente, com a ideia anterior de
‘soltar’ ou ‘desligar das amarras’ o boi ou o jumento (v.15). Neste sentido, Joseph Fitzmyer traduz:
«and Satan has kept her tied up for eighteen long years». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke
(X-XXIV), II, New York 1985, 1010. Gérard Rossé, na mesma linha, traduz: «che Satana teneva legata
già da diciotto anni». G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 538.

216
melhor se considerarmos o encontro com Zaqueu, onde Jesus dirá: «Hoje veio a
salvação a esta casa, por este ser também filho de Abraão» (Lc 19,9). Tal como fará
com Zaqueu, Jesus restitui, a esta mulher, a plenitude da sua dignidade como ‘filha
de Abraão’. Uma dignidade associada à promessa feita por Deus a Abraão e à sua
descendência: «Farei de ti um grande povo, abençoar-te-ei, engrandecerei o teu
nome e serás uma fonte de bênçãos» (Gn 12,2)421. De facto, para Jesus esta mulher
tem todos os direitos como membro do povo da aliança enquanto que, para os
judeus, a sua condição era interpretada como um sinal da possessão demoníaca422.
É interessante referir que o texto não nos diz nada sobre qualquer pergunta,
pedido ou acção desta mulher para ser curada por Jesus, como por exemplo em
Lc 5,12 quando um homem coberto de lepra, ao ver Jesus, caiu com a face por
terra e dirigiu-lhe esta súplica: «Senhor, se quiseres, podes purificar-me»; ou em
Lc 8,43-44 quando uma mulher com um fluxo de sangue há doze anos toma a
iniciativa de tocar em Jesus para ficar curada. Também não se fala de nenhuma
iniciativa em favor daquela mulher por parte dos presentes na sinagoga, como
acontece por exemplo em Lc 5,18-19 quando uns homens subiram ao tecto e,
através das telhas, desceram um paralítico com a sua enxerga, para o colocar a
frente de Jesus423. De facto, é Jesus que provoca este acontecimento, a mulher não
pediu nada, mas ele não é insensível ao sofrimento. Jesus toma a iniciativa, diante
da realidade: vê a mulher, chama-a, fala-lhe (v.12)424, depois impõe-lhe as mãos
(v.13a)425. Para a comunidade pós-pascal, este gesto tem o sentido de transmissão
de uma força divina – o Espírito Santo426. Eis que a mulher, que ‘não podia endi-
reitar-se completamente’ (v.11b), ‘no mesmo instante, endireitou-se’ (v.13b).
Perante esta cura, a ‘reacção’ surgiu imediatamente. Apesar de se poder con-
siderar dispensável, é perfeitamente compreensível. O chefe da sinagoga, res-

421
  Cf. G. Kibeti, «Narration et christologie en Lc 13,10-17», EstBíb 73 (2015) 49-51. «Se ‘figlia di
Abramo’ è redazionale (cf. Lc 19,9), l’espressione è da leggere in prospettiva storico-salvifica. Per Luca,
Abramo è il primo che ha ricevuto le promesse di Dio. La donna ricurva, come pure Zaccheo, sono
da annoverare nel numero dei beneficiari di tali promesse divine che con Gesù hanno trovato il loro
compimento». G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 542.
422
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 239.
423
  Cf. G. Kibeti, «Narration et christologie en Lc 13,10-17», EstBíb 73 (2015) 47.
424
  «Il [le narrateur] commence par souligner que c’est Jésus qui prend l’initiative de la rencontre. Il
utilize pour cela trois verbes qui ont tous Jésus comme le sujet grammatical: ‘la voyant, Jésus l’inter-
pella et lui dit...’». G. Kibeti, «Narration et christologie en Lc 13,10-17», EstBíb 73 (2015) 47.
425
  Sobre este impor das mãos aconselhamos: G. Kibeti, «Narration et christologie en Lc 13,10-17»,
EstBíb 73 (2015) 54-55. «Il contatto mediante imposizione delle mani appartiene agli usi terapeutici
dell’epoca». G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 540.
426
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 165.

217
ponsável aí pela disciplina, chama a atenção de que era sábado e, indignado,
recorda o regulamento à assembleia – curiosamente não a Jesus, talvez por co-
bardia (v.14). O que tinha acabado de acontecer era, na sua perspectiva, um tra-
balho que Jesus tinha realizado em dia de sábado427. O decálogo parecia muito
claro acerca desta situação: «Guarda o dia de sábado para o santificar, como te
ordenou o Senhor, teu Deus. Trabalharás durante seis dias e neles farás todos
os teus trabalhos; mas, o sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus: não farás
trabalho algum, nem tu, nem os teus filhos e filhas, nem o teu escravo ou escra-
va, nem o teu boi, o teu jumento ou qualquer outro animal, nem o estrangeiro
que está dentro das tuas portas, para que o teu servo e a tua serva descansem
como tu. Lembra-te que foste escravo na terra do Egipto, donde o Senhor, teu
Deus, te tirou com mão forte e braço estendido. Por isso te ordenou o Senhor,
teu Deus, que guardasses o dia de sábado» (Dt 5,12-15). Percebemos melhor a
‘natural’ irritação do chefe da sinagoga.
Gabriel Kibeti, fazendo uma interessante comparação entre este texto (Dt
5,12-15) e um texto paralelo anterior (Ex 20,8-11), distingue as motivações para
cumprir a prescrição legal do sábado, fazendo notar que no livro do Êxodo a
motivação está associada à própria criação (Ex 20,11); já no Deuteronómio a
motivação está associada à libertação do Egito (Dt 5,15). Deste modo, o tex-
to de Lc está inscrito na linha de Dt que liga o sábado à libertação428. Neste
contexto, o sábado foi dado aos filhos de Israel para que se lembrassem de que
foram libertados da escravidão e que devem, por sua vez, libertar da servidão
do trabalho o seu boi e o seu jumento, bem como os seus filhos e as suas filhas.
Contudo, libertar pessoas e animais dos trabalhos quotidianos não significa
deixar morrer de sede ou deixar alguém definhar na doença. Jesus não deixa
de observar a lei do ‘sábado’ quando ‘desliga’ das suas ‘cadeias’ uma mulher
doente há dezoito anos429.
Com efeito, nada no texto nos diz que os cristãos não cumpram o man-
damento da Lei, nem que Jesus estava contra a Lei. O que verdadeiramente se
critica é que se considere aquela cura como trabalho e fruto de uma ação hu-
mana. Aos olhos de Jesus tratava-se de uma acção divina, algo que até favorece
o sábado como dia para Deus430. Para o chefe da sinagoga o sábado é um dia

427
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (9,51 – 14,35), II, Genève 1996, 347.
428
  Cf. G. Kibeti, «Narration et christologie en Lc 13,10-17», EstBíb 73 (2015) 52-53.
429
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 581.
430
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (9,51 – 14,35), II, Genève 1996, 356. Ver ainda: G. Kibeti,

218
para não trabalhar. Para Jesus este é o dia certo para libertar aquela mulher da
sua ‘prisão’ de dezoito anos. Para Jesus este é o dia indicado (δεῖ - ‘é preciso’)
para realizar o plano divino de salvação431 - um dia para ‘elevar’ até Deus. No
entanto, há uma tremenda ironia no texto: a oposição à actividade salvífica de
Jesus vem precisamente do ‘chefe da sinagoga’. Curiosamente, Lc usa o mesmo
verbo impessoal (δεῖ) para expressar não só este acontecimento da acção divina
(v.16), mas também para expressar a obrigação humana - «seis dias há, durante
os quais se deve [δεῖ] trabalhar» (v.14b)432. Neste confronto de ‘visões’, Jesus pro-
põe uma nova leitura da Lei, contra uma certa forma de piedade judaica. Neste
mesmo sentido, quando os seus discípulos foram acusados de comer espigas ao
sábado, Jesus diz: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sába-
do» (Mc 2,27). Dito isto, conclui: «O Filho do Homem até do sábado é Senhor»
(Mc 2,28)433. Jesus, que obedece à Lei do Sábado no seu sentido mais profundo,
revela-se, por isso, ‘Senhor do Sábado’, pelo seu poder de curar os enfermos, um
poder que pertence somente a Deus434.
É interessante, desde logo, que a contestação de Jesus se dirija não a uma pessoa
em particular mas a um plural coletivo – interpela a todos pelo vocativo crítico de
‘hipócritas’ (v.15)435. Este ‘plural coletivo’ não diz apenas respeito aos presentes, mas
a todos aqueles que têm esta visão e que, por isso, precisam de se converter436. Para
sublinhar a autoridade deste ‘ensinamento’ de Jesus, Lc chama ‘senhor’ (κύριος –
v.15) àquele que até aqui tinha chamado de Jesus (Ἰησοῦς – vv.12.14). Fazendo, em
seguida duas perguntas, uma primeira é uma comparação mais pedagógica e didá-
tica de confronto com uma prática (v.15) e a segunda é mais dogmática e retórica,

«Narration et christologie en Lc 13,10-17», EstBíb 73 (2015) 48-49; J. Fitzmyer, The Gospel According
to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1011. «Guérir, pour lui [chef de la synagogue], est un travail, un
besogne interdite durant le sabbat». R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 581.
431
  Cf. G. Kibeti, «Narration et christologie en Lc 13,10-17», EstBíb 73 (2015) 53. «Le sabbat est pré-
cisément le jour de la liberation, le jour où l’homme doit se libérer lui-même d’abord ed libérer aussi
son prochain de toutes ses ‘chaînes’, comme Dieu l’a fait lui-même!» Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc,
VIII, Pendé 2011, 581.
432
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1011.
433
  Ver ainda paralelo em Mt 12,8: «O Filho do Homem até do sábado é Senhor». BS.
434
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 581.
435
  Jesus tinha dito anteriormente: «Como podes dizer ao teu irmão: ‘Irmão, deixa-me tirar o argueiro
da tua vista’, tu que não vês a trave que está na tua? Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista e, en-
tão, verás para tirar o argueiro da vista do teu irmão» (Lc 6,42). BS. Este mesmo Jesus tinha entretanto
alertado: «Acautelai-vos do fermento dos fariseus, que é a hipocrisia» (Lc 12,1c). BS.
436
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1011.

219
com um certo sentido de ironia (v.16)437. Cada uma destas perguntas recorda-nos
um Deus que liberta – desde a experiência primordial do êxodo.
A primeira pergunta (v. 15) - «não solta cada um de vós, ao sábado, o seu boi
ou o seu jumento da manjedoura e o leva a beber?», encontra outros paralelos nos
evangelhos. A propósito da cura de um hidrópico438 ao sábado, Jesus diz: «Qual
de vós, se o seu filho ou o seu boi cair a um poço, não o irá logo retirar em dia
de sábado?» (Lc 14,5-6); e a propósito da cura da mão paralisada de um homem
numa sinagoga e também ao sábado, ele dirá: «Qual de vós, se tiver uma ovelha
e ela cair ao sábado num fosso, não a vai agarrar e tirar de lá?» (Mt 12,11). Po-
díamos, por isso, dizer, se faziam isso aos animais, ainda que suponha um certo
trabalho, como podem querer recusar a ajuda a alguém por ser sábado ou ficar
escandalizados pela acção de Jesus? François Bovon, recorda-nos que o judaísmo
se adaptou às exigências da natureza e os doutores da Lei autorizavam os pastores
e os agricultores a levar os seus rebanhos às pastagens de forma eficaz sem violen-
tar em demasia o preceito do repouso. Não tem o ser humano mais valor do que
um animal?439 De facto, Jesus dirá, capítulos à frente: «valeis mais do que muitos
pássaros» (Lc 12,7). Por isso, nesta primeira pergunta, começa por chamar ‘hi-
pócritas’ para sublinhar a incoerência das palavras e denunciar as atitudes ‘falsa-
mente religiosas’. No versículo seguinte (v.16) passa da comparação à razão, com
uma conotação dogmática que revela a tensão entre os ‘laços com que Satanás’
prende a mulher há dezoito anos e o projecto de Deus de ‘libertar’ aquela mulher
(filha de Abraão) – e nela, todo o povo: «não devia440 libertar-se desse laço, a um
sábado?» (v.16b). Eis-nos, deste modo, diante da discussão entre Jesus e o chefe da
sinagoga sobre a prática do sábado: o chefe da sinagoga insiste que não deve ser
um dia para fazer curas (v.14); Jesus faz do sábado um dia de libertação441.

437
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (9,51 – 14,35), II, Genève 1996, 347.
438
  Hidrópico (ὑδρωπικός) – trata-se de uma acumulação anormal de líquido em tecidos ou em cavi-
dades do corpo. Cf. C. Rusconi, «ὑδρωπικός», in DGNT, S. Paulo 2003, 467. De certa forma, podemos
dizer que esta doença se relaciona com má circulação de sangue.
439
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (9,51 – 14,35), II, Genève 1996, 356-357. Ver ainda: J. Fitz-
myer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1012.
440
  A forma verbal no imperfeito, aqui presente (ἔδει), remete para o sentido mais intenso de δεῖ: ‘é
necessário’, ‘é preciso’, ‘deve-se’. Cf. C. Rusconi, «δεῖ», in DGNT, S. Paulo 2003, 116. Decidimos manter
a proposta da tradução portuguesa ‘não devia’, assinalando a possibilidade de podermos traduzir por
‘não seria necessário’, ou ‘não seria preciso’, ou ‘não teria que ser’. Com efeito, Joseph Fitzmyer traduz:
«Did she not have to be released from that blond». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV),
II, New York 1985, 1010. Ver ainda: M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 239.
441
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (9,51 – 14,35), II, Genève 1996, 347-348.

220
Este episódio termina com o evangelista a dizer: «todos os seus adversários
ficaram envergonhados, enquanto442 toda a multidão443 se alegrava com todas
as maravilhas que Ele realizava» (v.17). Deste modo, Lc distingue dois grupos:
‘todos os adversários’ e ‘toda a multidão’; o grupo que trabalhava no serviço da
sinagoga, pequeno mas hierarquicamente superior, e a multidão que, sendo mui-
tos, tinham pouco poder. Os adversários ficaram envergonhados e reduzidos ao
silêncio devido à força persuasiva de Jesus. Já a multidão, duplamente impres-
sionada pelo milagre e pela argumentação, ‘alegrava-se com as maravilhas que
Jesus realizava’444. Aquela que tinha ‘dado glória a Deus’ (v.13b), depois de se ver
curada da doença que a impedia de estabelecer relação e de se ‘elevar’, é agora
‘imitada’ pela multidão que se ‘alegrava com estas maravilhas’ (17b). Também
a multidão, tal como a mulher, foi ‘curada’ e, por isso, agora que se ‘endireitou’,
pode dar glória a Deus445. O confronto entre Jesus e o chefe da sinagoga pode
representar, em Lc, o confronto entre os cristãos e os judeus. Provavelmente os
cristãos seriam acusados pelos responsáveis judeus pelo modo como viviam o sá-
bado. Lc opondo Jesus ao chefe da sinagoga não só tornou mais claro e deu mais
vida ao relato, como ajuda a encontrar as razões e as justificações para os cristãos
se defenderem dos seus adversários446.
Assim, este episódio revela algo mais sobre a personalidade de Jesus. Ele aca-
ba de curar esta infeliz ‘filha de Abraão’ (uma mulher – um modo de expressar o

442
  A tradução portuguesa sugere apenas ‘e’, já nós propomos que este καί possa ser traduzido por
‘enquanto’. De facto, a palavra grega καί pode ter um significado de ligação - ‘e’, ‘também’, ‘ainda’;
mas, na maior parte das vezes, tem um valor adversativo – ‘mas’, ‘porém’. Cf. C. Rusconi, «καί», in
DGNT, S. Paulo 2003, 244. Neste mesmo sentido, Matteo traduz por ‘mentre’. Cf. M. Crimella (a cura
di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 241. Na mesma linha Joseph Fitzmyer traduz ‘while’. J. Fitzmyer,
The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1010. Já Gérard Rossé, aproxima-se da
tradução portuguesa e traduz simplesmente por ‘e’. Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 538.
443
  A tradução portuguesa sugere apenas ‘multidão’, contudo, nós propomos ‘toda a multidão’ não só
pela proximidade com o original grego (πᾶς ὁ ὄχλος), mas também para contrapor com a primeira
parte deste versículo que indica ‘todos os adversários’. Neste mesmo sentido, traduz Matteo Crimella:
«tutti i suoi avversari si vergognavano, mentre tutta la folla gioiva». M. Crimella (a cura di), Luca,
Cinisello Balsamo 2015, 241. Ver ainda: G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 538.
444
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (9,51 – 14,35), II, Genève 1996, 348. Podemos ver aqui uma
referência ao livro de Isaías: «16Os fabricantes de ídolos, retiram-se cheios de vergonha, confundidos
e cobertos de ignomínia. 17Mas Israel será salvo pelo Senhor com uma salvação eterna, para que não
se envergonhe, nem seja confundido até ao fim dos tempos» (Is 45,16-17). BS.
445
  No entanto, pela narração deste episódio, ficamos sem saber se o chefe da sinagoga se terá, também
ele, ‘endireitado’ e corrigido o seu ‘olhar’. Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 582.
446
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (9,51 – 14,35), II, Genève 1996, 350. Ver ainda: G. Rossé, Il
Vangelo di Luca, Roma 20125, 541.

221
universalismo da salvação), precisamente ao sábado (tempo sagrado) e numa si-
nagoga (lugar sagrado). As implicações são evidentes: Jesus atua com plena auto-
ridade sobre o sábado e sobre as mais antigas tradições do judaísmo, denunciado,
diante dos responsáveis judaicos, a radical hipocrisia das suas reações de escân-
dalo447. Desenvolve-se, deste modo, toda uma nova teologia do sábado – de um
dia em que a obediência à Lei era interpretada como não fazer nada, converte-se
num dia de ‘festa’ em que o amor irradia em favor dos outros. Não só deixa de ser
um dia em que não se pode curar mas passa a ser o mais indicado para libertar
dos ‘laços de satanás’ – o que nos impede de endireitar, ou seja, da relação448.
Jesus é aquele através de quem Deus liberta o seu povo dos ‘laços’ estabelecidos
pelo Satanás449. Por isso, conclui François Bovon, que esta passagem é a afirma-
ção cristã relativa ao sábado, mais do que o relato de um milagre450. O milagre
da cura desta mulher funciona como uma ilustração da palavra sinal da salvação
que Jesus anuncia451 e é um dos sinais da proximidade do Reino de Deus452.

2.7. Jesus encontra-se com os dez leprosos453


Este episódio é contado exclusivamente por Lc454. Trata-se de um texto unani-
memente delimitado (Lc 17,11-19)455. Esta perícopa começa (v.11) e termina (v.19)

447
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1212.
448
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (9,51 – 14,35), II, Genève 1996, 357.
449
  Cf. G. Kibeti, «Narration et christologie en Lc 13,10-17», EstBíb 73 (2015) 55. Ver ainda: G. Rossé,
Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 542.
450
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (9,51 – 14,35), II, Genève 1996, 360.
451
  Cf. G. Kibeti, «Narration et christologie en Lc 13,10-17», EstBíb 73 (2015) 46.
452
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 541.
453
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: M. Mullins, The Gospel of Luke,
Dublin 2010, 398-399; F. Bassin, L’évangile selon Luc, II, Vaux-sur-Seine 2012, 196-198; L. Chi-
riankandath, «Narrative Analysis of Luke 17:11-19: Settings and Character Types of the Story»,
BiBh 41 (2015) 200-213; M.A. Medrano, «La sanación del leproso samaritano a la luz de los conflictos
étnicos (Lc 17,11-19)», EstBíb 68 (2010) 151-172.
454
  «The story of Jesus’ healing of ten lepers is a narrative unique to Luke’s Gospel». Cf. J.P. Meier, A
marginal Jew, II, New York 1994, 701.
455
  É consensual entre os exegetas esta unidade literária. Joseph Fitzmyer intitulou esta unidade de
«The Cleansing of Ten Lepers», inserindo-a no grande capítulo que designou «The Journey to Jerusa-
lem». Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1148-1156. François
Bovon também assume esta unidade literária, que intitulou simplesmente «Les dix lépreux». Cf. F.
Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 129. Matteo Crimella assume a mes-
ma unidade que também designou simplesmente por «I dieci lebbrosi». Cf. M. Crimella (a cura di),
Luca, Cinisello Balsamo 2015, 274. Gérard Rossé dirá «La guarigione dei dieci lebbrosi». Cf. G. Rossé,
Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 657. Darrell Bock refere a mesma unidade literária tendo dado um
título que procura revelar o sentido mais profundo do texto: «Healing of Ten Lepers and a Samaritan’s

222
com versículos que são claramente de composição de Lc, como se pode compro-
var pelo estilo e pelo conteúdo. Contudo, os vv.12-18 podem provir de uma fonte
anterior a Lc, própria da tradição lucana, ainda que reelaborada. Por outro lado,
devemos afirmar, que com esta passagem da cura dos dez leprosos começa, no
evangelho de Lc, a última parte da narração da viagem de Jesus até Jerusalém (Lc
17,11 – 19,27) – antes de entrar em Jerusalém. Não é por acaso que esta perícopa
começa precisamente por referir «Quando caminhava para Jerusalém» (v.11a).
Jesus caminha incansavelmente para a cidade do seu destino – onde se realizará
a salvação definitiva da humanidade456.
Este encontro de Jesus com os dez leprosos, único nos evangelhos, evoca,
contudo, outro encontro que Jesus tinha tido anteriormente com um homem le-
proso (Lc 5,12-16) – que tem dois paralelos: Mc 1,40-45 e Mt 8,1-4457. Trata-se de
dois encontros que têm em comum alguns aspetos: o que está em causa é a mes-
ma doença – lepra; quer os dez homens quer o homem único vêm ao encontro
de Jesus; em ambas as circunstâncias é feito um pedido a Jesus - os dez leprosos
pedem que ‘tenha misericórdia’ e o homem pede o ‘purifique’; a todos Jesus man-
dou que se fossem mostrar aos sacerdotes. No entanto, são muitas as diferenças
entre estes dois episódios: num são dez leprosos, noutro apenas um homem; aos
dez leprosos Jesus não lhe toca nem os cura directamente, apenas lhes diz para se
irem mostrar aos sacerdotes e é nesse percurso que ficam curados; já ao homem
leproso ‘Jesus estende a mão, toca-lhe’ (gesto) e, ao mesmo tempo, diz ‘fica puri-
ficado’ (palavra) – todos os sinóticos referem que, depois disto, ficou purificado.
Este texto de Lc, da cura dos dez leprosos, tem vários elementos específicos,
não só os que já referimos, mas, sobretudo, o facto de estar centrado sobre os que
‘voltaram ou não’ para agradecer a sua cura. Apenas um homem, dos dez lepro-
sos, voltou para agradecer – esse homem era um samaritano. Neste sentido, Jose-
ph Fitzmyer reforça a ideia de que talvez faça mais sentido o título ‘o samaritano
agradecido’ do que o tradicional ‘cura dos dez leprosos’; ou então conjugar os
dois – ‘a cura dos dez leprosos e o samaritano agradecido’. Assim, o autor deixa
antever o objetivo do evangelista: ainda que dez leprosos possam ter feito a expe-
riência da cura, nove deles não experimentaram a ‘salvação’ oferecida por Jesus

Faith». Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1397.


456
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1149.
457
  Sobre este encontro, a cura de um leproso, aconselhamos, entre outros: R. Latourelle, Miracles
de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 109-116. Neste texto, René Latourelle começa por dizer que
curar um leproso gravemente doente não era mais fácil do que ‘ressuscitar’ um morto.

223
ao samaritano (v.19b)458. Por fim, o leproso agradecido faz recordar os episódios
de Zaqueu (19,1-10) e da mulher que ungiu os pés a Jesus (7,36-50)459.
Diz o texto que os ‘dez leprosos vieram ao encontro de Jesus’ (v.12 a). O texto
fala de dez homens leprosos [δέκα λεπροὶ ἄνδρες]. Aqui o número dez tem so-
bretudo um significado que tem a ver com uma maneira popular de narrar, como
na parábola das dez virgens (cinco insensatas e cinco prudentes – cf. Mt 25,1-13),
que quer dizer que eram numerosos460. Com efeito, o narrador diz-nos que estes
dez homens leprosos ‘saíram ao encontro’ [ἀπήντησαν] de Jesus. Importa subli-
nhar que o substantivo ἀπάντησις, que quer dizer ‘encontro’ ou ‘ato de encontrar
alguém’461, em Lc, adquiriu um sentido técnico: designa o encontro com Cristo
ressuscitado no momento da parusia462. Não deixa de ser interessante referir que
esta palavra também se encontra na parábola das dez virgens: «A meio da noite,
ouviu-se um brado: ‘Aí vem o noivo, ide ao seu encontro [ἀπάντησιν]!’» (Mt 25,6).
Sabemos que este ‘noivo’ pode ser o próprio Jesus. Se percorrermos este itinerá-
rio, então podemos dizer que em Lc são dez leprosos que vão ao encontro de Jesus
que está a chegar, já em Mt, ainda que seja uma parábola, são dez virgens que vão
ao encontro de Jesus que está a chegar.
O evangelista sublinha que os dez leprosos ‘mantiveram-se à distância’
[πόρρωθεν] (v.12b). Esta distância está relacionada com as leis da pureza: «O Se-
nhor falou a Moisés: ‘Ordena aos filhos de Israel que expulsem do acampamento
todo o leproso, todo o que tiver um fluxo e todo o que estiver manchado por
ter tocado num cadáver’» (Nm 5,1-2); «E o leproso atingido por tal afecção deve
rasgar as roupas, desalinhar o cabelo, tapar-se até à boca e gritar: ‘Impuro!... Im-
puro!’ Enquanto conservar a chaga, será impuro, viverá isolado, e a sua residência
será fora do acampamento» (Lv 13,45-46). De facto, na palestina do tempo de
Jesus um leproso não era só uma pessoa que sofria de uma doença, mas também

458
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1151-1152. Gérard
Rossé diz que este episódio podia ser designado precisamente por ‘história de um samaritano agrade-
cido’. Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 658.
459
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 131. É interessante referir
que, segundo os rabinos, tanto a hidropesia como a lepra decorrem de um desequilíbrio dos compo-
nentes do corpo. Consideravam que o homem era composto por partes iguais de água e de sangue. A
saúde obedece a esse equilíbrio perfeito entre ambos os fluídos, mas quando peca, a água predomina
sobre o sangue e uma pessoa torna-se hidrópico ou o sangue sobre a água e torna-se um leproso. Cf.
J.C. Alby, «Milagros de curación en la tradición médica tardo-antigua», TV 56 (2015) 231.
460
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 134.
461
  Cf. C. Rusconi, «ἀπάντησις», in DGNT, São Paulo 2003, 59.
462
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 134.

224
uma pessoa considerada impura e, por consequência, automaticamente expulsa
da comunidade. Os leprosos eram intocáveis. Expulsos da cidade eram condena-
dos a viver completamente isolados, separados da família, dos amigos, do mundo
do trabalho e, por fim, do culto463. Por esta exclusão da sociedade e pela con-
sequente necessidade de se manterem à distância, só podiam encontrar-se com
Jesus quando este estivesse a entrar na aldeia. Tratava-se da única possibilidade
que tinham de interpelar Jesus464.
Em seguida, diz o autor deste evangelho eles gritaram: «Jesus, Mestre, tem
misericórdia de nós!» (v.13). Desde logo é interessante referir que os leprosos sa-
biam o nome daquele que estava a entrar na aldeia – Jesus [Ἰησοῦ]. Apesar de não
termos nenhuma indicação do narrador que explique este facto, não podemos
esquecer que a fama de Jesus se tinha espalhado por toda aquela região: «Jesus
voltou para a Galileia e a sua fama propagou-se por toda a região» (4,14); «A sua
fama espalhava-se cada vez mais, juntando-se grandes multidões para o ouvirem
e para que os curasse dos seus males» (5,15). O pedido daqueles homens foi muito
concreto: «tem misericórdia de nós! [ἐπιστάτα, ἐλέησον ἡμᾶς]» (v.13b). É indis-
cutível que se trata de uma súplica. Contudo, não é claro se eles pedem a cura ou
simplesmente uma esmola465. Trata-se de uma frase ‘comum’ de lamento indivi-
dual presente em vários passos da Escritura, dos quais destacamos: «Senhor, tem
compaixão de mim» (Sl 41,5a); «Tem compaixão de mim, ó Deus, pela tua bonda-
de» (Sl 51,3a); «Senhor, tem piedade de nós, porque confiamos em ti» (Is 33,2a)466;
«Senhor, Filho de David, tem misericórdia de mim! Minha filha está cruelmente
atormentada por um demónio» (Mt 15,22b); «Disseram-lhe [cego de Jericó] que
era Jesus de Nazaré que ia a passar.  Então, bradou: ‘Jesus, Filho de David, tem
misericórdia de mim!’» (Lc 18,37-38). No entanto, neste episódio dos dez leprosos,
há uma grande diferença: o lamento individual é tornado coletivo - ‘nós’.
O versículo seguinte começa por dizer que Jesus os ‘viu’ [ἰδών – ‘vendo’ ou ‘ao
ver’] (v.14a). Este é o sentido de alguém que não vira a cara, de alguém que está
atento e que acolhe os pedidos que lhe são dirigidos. Jesus ‘vê’, não passa adian-
te e, sobretudo, não é indiferente. Quando Lc falou do leproso que Jesus curou
(5,12-16), diz que Jesus quebrou a ‘distância’ porque ‘estendeu a mão e tocou-lhe’
463
 Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 20.
464
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 134. «Ten Lepers intend to
speak with him [Jesus], but they cannot approach him because of their despised disease (…), so they
call to him from a distance». D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1401.
465
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1154.
466
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 135.

225
(5,13). Este gesto de compaixão, feito gesto e palavra, tem alguma coisa a ver com
a força e o sentido deste ‘ver’. Por isso, François Bovon fala deste olhar como o
olhar de Deus, ou seja, um olhar de compaixão como o do bom samaritano da
parábola que conhecemos com o mesmo nome - «Mas um samaritano, que ia de
viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão» (10,33); ou como
o olhar do pai da parábola do ‘filho pródigo’ - «Quando ainda estava longe, o pai
viu-o e, enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço e cobriu-o
de beijos» (Lc 15,20b)467.
Depois disse aos dez leprosos: «Ide e mostrai-vos, vós mesmos468, aos sacer-
dotes» (v.14b). Trata-se de uma referência clara à Lei: «Quando um homem tiver
na pele do seu corpo um tumor, uma doença de pele ou uma mancha, podendo
degenerar numa afecção leprosa sobre a pele, será apresentado ao sacerdote Aa-
rão, ou a um dos sacerdotes seus descendentes» (Lv 13,2). Se eram os sacerdotes
que analisavam a ‘lepra’ e podia declarar alguém ‘impuro’ (cf. Lv 13,3), seriam
também os mesmos que podiam verificar quando alguém estava curado e de-
clará-lo ‘puro’ (cf. Lv 13, 39; 14,1ss) – não como médicos mas como intérpretes
da Lei469. Surpreendentemente, enquanto caminhavam, em direção ao ‘templo’,
ficaram purificados (v.14c). Esta indicação revela, por um lado, que a cura dos
dez leprosos não foi instantânea; por outro, que eles confiaram em Jesus e tive-
ram disponibilidade para seguir as suas instruções. Recordamos a atitude bem
diferente que teve o general sírio Naaman diante das instruções do profeta Eliseu
(2Rs 5,9-12)470. Estes dez homens, porque confiaram e seguiram as instruções

467
  Ibidem, 135.
468
  Inserimos na tradução o reforço ‘vós mesmos’, que no original está presente na palavra - ἑαυτούς.
Este reforço não se encontra na versão portuguesa e pareceu-nos um pormenor que pode ser interes-
sante referir. Joseph Fitzmyer suporta a nossa opção ao traduzir: «Go, show yourselves to the priests».
Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1148. François Bovon
corrobora a mesma ideia ao traduzir: «Allez, présentez-vous en personne aux prêtres». Cf. F. Bovon,
L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 129. Matteo Crimella não usa este ‘reforço’ na
tradução, dizendo simplesmente, como na versão portuguesa: «andate a presentarvi ai sacerdoti». Cf.
M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 275. Gérard Rossé, nesta mesma linha, dirá:
«andate, mostratevi ai sacerdoti». G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 658.
469
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 661.
470
  2Rs 5,9-12: «9Chegou, pois, Naaman com o seu carro e os seus cavalos e parou à porta de Eli-
seu. 10Este mandou-lhe dizer por um mensageiro: ‘Vai, lava-te sete vezes no Jordão e a tua carne fi-
cará limpa’. 11Naaman, despeitado, retirou-se, dizendo: ‘Pensava que ele sairia a receber-me e, diante
de mim, invocaria o Senhor, seu Deus, colocaria a sua mão no lugar infectado e me curaria da lepra.
12
Porventura, os rios de Damasco, o Abaná e o Parpar, não são acaso melhores do que todas as águas de
Israel? Não me poderia lavar neles e ficar limpo?’ E, virando costas, retirou-se indignado». BS.

226
de Jesus, ficaram curados471. Esta cura significava, para cada um dos leprosos, a
possibilidade de serem reintegrados na sociedade da Palestina.
O narrador diz, em seguida, que um dos dez leprosos, «vendo-se curado, vol-
tou, glorificando a Deus em voz alta» (v.15). O enfase recai novamente sobre o
particípio do verbo ‘ver’ [ἰδών - ‘vendo’ ou ‘ao ver’]. Em primeiro lugar, este ‘ver’
significa que um deles reparou que estava curado e percebe que esta cura está
relacionada com o ‘olhar’ de Jesus em relação aos leprosos. Podemos dizer que,
chegados aqui, temos dois ‘ver’ em confronto: o ‘ver’ [ἰδών - v.14a] de Jesus que
‘cura’ e é o ‘ver’ [ἰδών - v.15a] do samaritano que ‘reconhece a cura’472. Por isso,
este ‘ver’ não é puramente uma reação sensorial, mas antes o despertar da fé, um
‘abrir-se’ os olhos à transcendência e à ação salvífica de Deus. O resultado deste
‘ver’ fez com que um dos leprosos, em vez de se apresentar aos sacerdotes, vol-
tasse para se apresentar a Jesus. Este ‘voltar’ [ὑπέστρεψεν - ‘retornou’473] implica
uma ‘conversão’, isto é, um reconhecimento de Jesus como salvador. Voltou «glo-
rificando a Deus [δοξάζων τὸν θεόν]» (v.15b)474. O lamento inicial – ‘tem piedade
de nós’ (v.13), transforma-se agora, para um deles, em ação de graças ao Deus de
Israel – ‘glorificava a Deus’475.
O texto diz que o leproso curado que tinha voltado atrás «caiu aos pés de
Jesus com a face em terra e agradeceu-lhe» (v.16a). Este gesto trata-se sobretudo
de um ato simbólico de prostração que indica reconhecimento da pessoa a quem
se faz, neste caso, reconhecimento de Jesus. Pode ser interpretado como sinal
de reconhecimento do quanto Jesus é intermediário da ação salvífica de Deus.
Por isso, este homem dava graças a Deus. A palavra é ‘Deus’ [θεόν] e não Jesus
[Ἰησοῦς] (cf. v.15b)476. De facto, só um dos dez, compreendeu o sentido mais pro-
fundo do que Jesus tinha feito. Este ‘voltar’ significa que reconheceu que foi Jesus
quem lhe ofereceu a ajuda de Deus. Daqui resulta que a intenção dos ‘milagres’ de
Jesus seja colocar o próximo em comunhão (salvífica) com Deus477.

471
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1154-1155.
472
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 136.
473
  O verbo aqui presente é ὑποστρέφω que tem o significado de ‘voltar (atrás)’ ou ‘retornar’. Cf. C.
Rusconi, «ὑποστρέφω», in DGNT, São Paulo 2003, 475. Este verbo é muito usado em Lc. De facto,
o verbo ocorre trinta e duas vezes em Lc e nos At e nenhuma vez nos outros sinóticos. Cf. D. Bock,
Luke, II, Michigan 1996, 1402.
474
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1155.
475
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 136.
476
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1155.
477
 Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 196.

227
O versículo 16 termina a dizer que este homem que voltou, para agradecer a
cura, «Era um samaritano» (v.16b) – que será apresentado aos leitores como um
‘modelo de comportamento’478. Este facto, pode ser interpretado, por um lado,
como um elogio ao samaritano e nele aos samaritanos – como na parábola do
‘bom samaritano’ (10,29-37) e de desprezo pelos outros nove que não tiveram a
mesma atitude (cf. v.17); mas, por outro lado, também pode ser visto como um
certo desprezo, já que para os judeus os samaritanos eram considerados ‘seres
inferiores’479. Para além de tudo isto, esta referência revela que Jesus pode ser re-
conhecido por todos, rompendo assim todas as barreiras religiosas e, sobretudo,
todas as definições particularistas da eleição de Israel. O evangelho está destina-
do ao mundo inteiro: parte de Jerusalém, passa pela Samaria e irradia-se até aos
confins da terra (cf. At 1,8; 8,1)480. Aliás, neste episódio, o samaritano reconhece
mais facilmente a presença de Deus que os israelitas.
Diante disto, Jesus perguntou: «Não foram dez os que ficaram purificados?
Onde estão os outros nove» (v.17). O contraste entre os ‘nove’ que seguiram o
caminho e ‘um’ que voltou atrás, dá sentido à deceção de Jesus. Se pensarmos
que os ‘nove’ que não vieram talvez fossem judeus, ou seja, da casa de Israel, re-
vela que estes não conseguem ainda ver para além dos ‘sacerdotes’, para além da
‘Lei’, para além da ‘cura física’481. Neste contexto, podemos dizer que estas per-
guntas são mais dogmáticas do que psicológicas. Não se dirigem ao samaritano
que regressou mas aos ‘nove’ que continuaram o seu caminho sem ‘ver’. Aqui já
não se fala da lepra, mas da fé482. Por isso, não são perguntas que procuram uma
resposta mas que evidenciam uma certa ‘censura’ e ‘reprovação’ pela atitude dos
que não regressaram e não reconheceram a ação de Deus – estes ‘perderam’ uma
oportunidade483. De facto, não basta caminhar é preciso ‘ver’ e ‘reconhecer’. Caso
contrário, perdem-se os ‘melhores’ momentos, perdem-se as grandes oportuni-
dades, passa-se ao lado dos encontros decisivos.
Jesus continua as suas perguntas: «Não houve quem voltasse para dar glória
a Deus, senão este estrangeiro?» (v.18). Este ‘estrangeiro’ [ἀλλογενής]484, porque

478
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 662.
479
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1155.
480
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 137.
481
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1155.
482
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 137.
483
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1404.
484
  A palavra grega ἀλλογενής, que quer dizer ‘estrangeiro’ ou ‘forasteiro’, é a junção de duas palavras:
ἄλλος + γένος. Cf. C. Rusconi, «ἀλλογενής», in DGNT, São Paulo 2003, 34. A palavra ἄλλος quer

228
era ‘samaritano’ [Σαμαρίτης] (v.16b), representa todos os que não pertencem à
casa de Israel. Não deixa de ser interessante referir que esta palavra estava escri-
ta na balaustrada do tempo de Jerusalém para estabelecer uma linha de fonteira
entre o átrio dos gentios e a área sagrada que era acessível apenas aos judeus:
‘nenhum estrangeiro deve entrar no espaço delimitado em volta do templo;
quem for encontrado neste lugar será considerado culpável e será condenado
à morte’485. Esta terceira pergunta reflete uma preocupação do evangelista em
mostrar a recetividade dos samaritanos, considerados estrangeiros486. De facto,
este estrangeiro, que era samaritano, revelou mais sensibilidade espiritual do
que os outros nove leprosos que foram curados mas não ‘reconheceram’ a ‘ori-
gem’ dessa ‘cura’. Por isso, esta terceira pergunta, sendo retórica, é, sobretudo,
um elogio de Jesus e uma afirmação do ‘acolhimento’ da ação de Deus entre os
estrangeiros, mais, até do que dos Israelistas487. A salvação não é apenas a cura
de uma qualquer doença mas a experiência do poder da ação salvífica de Deus,
acessível por meio de Jesus. Para além dos pecadores (cf. 7,36-50) e dos pagãos
(cf. 7,2-10), também os samaritanos experimentam a salvação de Deus e entram
na nova comunidade daqueles que acreditam em Jesus488.
Esta perícopa termina com duas frases determinantes de Jesus: «Levanta-
-te e vai» (v.19a) e «A tua fé te salvou» (v.19b). Quanto à primeira afirmação,
Lc combina o particípio ἀναστάς (literalmente ‘levantando’) com o impera-
tivo πορεύου (‘vai’)489; quanto à segunda afirmação fala da relação entre a ‘fé’
[πίστις] e a ‘salvação’ [σέσωκέν σε – ‘salvou-te’]. Na verdade, a fé leva à sal-
vação. Mas esta ‘salvação’ pressupõe, por um lado, uma atuação salvífica de
Deus que se manifestou na atividade de Jesus; por outro, a ação de graças e
um reconhecimento desse Deus que significa um ‘voltar’ para se (re)encontrar
com Jesus490. Assim percebemos que a ‘fé’ que purificou os dez leprosos não foi

dizer ‘outro’ ou ‘diferente’. Cf. C. Rusconi, «ἄλλος», in DGNT, São Paulo 2003, 34. Já a palavra γένος
quer dizer ‘origem’, ‘nascimento’, ‘povo’, ‘nação’, ‘nação’. Cf. C. Rusconi, «γένος», in DGNT, São Paulo
2003, 108. Deste modo, percebemos que o sentido literal da palavra ἀλλογενής seja ‘de outro povo’,
ou de ‘outra origem’.
485
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 274-275.
486
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 137.
487
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1405.
488
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 275.
489
  Podemos encontrar uma expressão semelhante na parábola do ‘filho pródigo’: «levantando-se
[ἀναστάς], foi [πορεύσομαι – ‘irei’] ter com o [meu] pai» (15,18).
490
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1156.

229
‘suficiente’ para ‘salvar’ nove deles491 – afinal apenas um foi salvo. Uma salvação
que não se esgota nos que pertencem ao Povo de Israel mas que reside no reco-
nhecimento e no voltar a Jesus. O entrar ‘em relação com Jesus’ é que salva492.
No samaritano que retorna completa-se a salvação e revela-se o ‘benefício’ da
plena relação com Deus.

2.8. Jesus encontra-se com o ‘jovem’ rico493


Este é um encontro ‘diferente’ na medida em que sublinha a possibilidade
de não ‘adesão’ aos desafios decorrentes do próprio encontro com Jesus. Todos
os outros encontros terminam com o seguimento de Jesus, ou com o regresso à
comunidade, ou com o acolhimento da proposta de Jesus. Este episódio falan-
do da dificuldade de assumir radicalmente o evangelho, fala-nos, sobretudo,
da liberdade de recusar o encontro mais profundo com Jesus. Pelo menos o
texto parece indicar que há aqui uma recusa de conversão. Trata-se de um texto
que encontramos nos três sinóticos (Lc 18,18-27; Mc 10,17-27; 19,16-26). Aqui
iremos seguir a versão apresentada por Lc que deriva, segundo os exegetas, do
conhecimento do paralelo de Mc e também de Mt494.
A personagem que vem ao encontro de Jesus é apresentado como ‘um certo
chefe [ἄρχων]’. Segundo Carlo Rusconi, a palavra grega ἄρχων pode significar
‘chefe’, ‘magistrado’, ‘juiz’, ‘chefe da sinagoga’, ‘chefe dos judeus’ ou ‘chefe dos

491
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 135.
492
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 662.
493
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: M. Mullins, The Gospel of Luke,
Dublin 2010, 407-410; F. Bassin, L’évangile selon Luc, II, Vaux-sur-Seine 2012, 232-236; Y. Yang, «The
Rich Ruler (Luke 18:18-30)», AJT 26 (2012) 3-28; J. Vijayaraj, «Wealth and Social Justice in Luke
18:18-25», BiBh 37 (2011) 20-41.
494
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1196. A nossa propos-
ta de delimitação do texto tem em conta o objetivo deste estudo. Contudo, neste texto não é unânime
a sua delimitação. Matteo Crimella estabelece uma unidade literária maior – Lc 18,15-30, intitulada
«Entrare nel Regno». Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 283-287. François
Bovon sugere e justifica a sua unidade literária – Lc 18,18-30, designando-a «Hériter la vie éternelle».
Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 200ss. Darrell Bock assume
a mesma unidade literária definida por François Bovon, que designou de «Jesus’ Discussion with a
Rich Ruler and the Disciples». Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1473. Joseph Fitzmyer inseriu
este texto num grande capítulo chamado «The Synoptic Travel Account». Neste grande capítulo foi
subdividido em sete unidades literárias das quais duas são: «The Rich Young Man» (18,18-23) e «Con-
cerning Riches and the Rewards of Discipleship» (18,24-30). Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According
to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1191-1240. Roland Meynet propõe uma grande unidade – Lc
17,11-18,30, que designou «L’abandon pour le règne». Cf. R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé
2011, 708-709.

230
sacerdotes’495. Este chefe (v.18a) é o oposto das crianças, anteriormente apresen-
tadas a Jesus (v.15a): enquanto estes últimos não tinham nenhum direito, o ‘chefe’
é um notável. Não se diz a identidade do homem, mas os outros ‘chefes’ men-
cionados em Lc eram líderes religiosos - talvez este também pertença à mesma
categoria496. François Bovon, diz que poderia ser um membro do sinédrio ou um
dos dirigentes do movimento dos fariseus; sublinhando, assim, que os ‘maiores’
daquela sociedade não deixam de consultar Jesus, cuja autoridade de mestre é
reconhecida em Israel497. Joseph Fitzmyer diz que não pode ser um ‘dirigente
religioso’ ou um ‘eclesiástico’; provavelmente seria, enquanto representante da
observância da Lei, um ‘chefe da sinagoga’498. Deste modo, Jesus terá sido con-
frontado não por um líder religioso mas por um dos principais homens da sua
sociedade, por um leigo respeitado499.
Nos paralelos de Mt e de Mc não encontramos palavra ‘chefe’ [ἄρχων] mas
apenas a partícula εἷς, com o sentido de artigo indefinido (um) ou de pronome in-
definido substantivo (alguém)500. Na tradução portuguesa encontramos ‘alguém’
no caso de Mc (10,17a) e, estranhamente, ‘um jovem’ no caso de Mt (19,26a). Em
ambos os casos a palavra ‘jovem’ não aprece no texto grego. No entanto, poste-
riormente, neste mesmo texto de Mt (19,22a), diz-se que «o jovem [ὁ νεανίσκος]
retirou-se». Foi esta versão de Mt que mais influenciou a tradição ao ponto de,
habitualmente, esta perícopa ser referida como a passagem do ‘jovem rico’.
Este ‘chefe’ coloca a Jesus uma questão: «Bom Mestre, que hei de fazer para
herdar501 a vida eterna?» (v.18b). Alguns capítulos antes, o mesmo evangelista

495
  Cf. C. Rusconi, «ἄρχων», in DGNT, São Paulo 2003, 80.
496
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 284. Darrell Bock sublinha que Lc usa
este termo ἄρχων seis vezes no seu evangelho: 8,41; 14,1; 18,18; 23,13.35; 24,20. Cf. D. Bock, Luke, II,
Michigan 1996, 1476.
497
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 206.
498
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1198.
499
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1476.
500
 Carlo Rusconi diz que esta partícula pode ser equivalente a artigo indefinido e também equivalen-
te a τις. Cf. C. Rusconi, «εἷς», in DGNT, São Paulo 2003, 151.
501
  Sugerimos esta tradução em vez de ‘alcançar’, como propõe a versão portuguesa. O verbo presente
é κληρονομέω, aqui na forma futura – κληρονομήσω, que tem o significado de ‘ser herdeiro’, ‘receber
em herança’, ‘obter em herança’ e ‘herdar’. Cf. C. Rusconi, «κληρονομέω», in DGNT, São Paulo 2003,
267. Matteo Crimella suporta a nossa opção ao traduzir por ‘ereditare’. Cf. M. Crimella (a cura di),
Luca, Cinisello Balsamo 2015, 285. De igual modo, François Bovon traduz ‘hériter’. Cf. F. Bovon,
L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 200. Também Joseph Fitzmyer opta por este
sentido ao traduzir por ‘inherit’. Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New
York 1985, 1195.

231
diz-nos que um ‘doutor da Lei’ perguntou a Jesus «para o experimentar: ‘Mestre,
que hei-de fazer para possuir a vida eterna?’» (10,25). Contudo, há diferenças
entre estas duas cenas; por um lado, o doutor da Lei, estava a ‘pôr à prova’ Jesus,
enquanto este ‘chefe’ parece bem intencionado e sincero na pergunta que faz; por
outro, não sabemos se o doutor da Lei acolhe o desafio final de Jesus, enquanto
este ‘chefe’ parece ter recusado – uma vez que se ‘retira’ entristecido (v.23)502.
A pergunta deste homem começa precisamente com um ‘título’ - «Mestre Bom
[διδάσκαλε ἀγαθέ]» (v.18b). Esta mesma expressão é usada pelo paralelo de Mc
(10,17b). Já Mt irá dizer apenas ‘mestre’, sendo que associa a palavra ‘bom’ à ideia -
‘que hei de fazer de bom’ (19,16b). Todavia, Jesus recusa o apelativo ‘bom’: «Porque
me chamas bom? Ninguém é bom senão um só, Deus503» (v.19). Logo à partida
esta expressão poderá ser, segundo Darrell Bock, uma maneira do ‘chefe’ tentar
‘bajular’ Jesus504. Ora Jesus não só recusa o título porque não quer ser ‘bajulado’
como afirma que não há mais do que uma fonte de bondade. Ele próprio não é
exceção. A sua bondade é a bondade de Deus-Pai que actua nele505. Esta recusa
recorda a resposta que ele deu ao diabo no episódio das tentações: «Está escrito: Ao
Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto» (4,8). Trata-se de reforçar o
sentido do primeiro mandamento que atribui a adoração unicamente a Deus (cf.
Ex 20,2-6)506. Podemos associar ainda a frase que Jesus disse à multidão e aos dis-
cípulos, para condenar o farisaísmo judaico: «Quanto a vós, não vos deixeis tratar
por ‘mestres’, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos» (Mt 23,8).
A pergunta do ‘chefe’ era ‘como é que ele podia herdar a vida eterna’? ‘Her-
dar a vida eterna’, com estes ou com outros termos, é a ‘esperança humana por
excelência’ e o objeto de quase todas as religiões507. Jesus, que tinha sido inter-
rogado por este ‘chefe’ sobre o que devia fazer para herdar a vida eterna (v.18b),

502
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 284-285.
503
  Em vez da tradução portuguesa que diz apenas «Ninguém é bom senão Deus», sugerimos inserir,
depois de ‘senão’, a expressão - ‘um só’, que traduz melhor a expressão grega εἰ μὴ εἷς. Matteo Crimella
justifica a nossa opção ao traduzir «Nessuno è buono se non uno solo, Dio». M. Crimella (a cura di),
Luca, Cinisello Balsamo 2015, 285. François Bovon, mantém o mesmo sentido ao traduzir: «Personne
n’est bon si ce n’est le Dieu unique». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001,
200. Também Joseph Fitzmyer segue a mesma opção ao traduzir: «No one is good except God alone».
J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1195.
504
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1476.
505
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1197. Na página se-
guinte irá apresentar diferentes teorias que foram sendo apresentadas ao longo da história. Todas elas,
como reconhece o autor, com pouca credibilidade, exceto aquela que aqui apresentamos.
506
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 285.
507
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 212.

232
faz então uma primeira pergunta: «Tu sabes os mandamentos» [?] (v.20a). Aqui
Jesus alinha com a doutrina tradicional do AT: o que conduz à vida eterna é o
que Deus exige ao ser humano. Por isso, pergunta-lhe ‘se sabe os mandamentos’,
o que equivale a interrogar ‘se os tem cumprido’508. Então, ele mesmo, começa
a enumerar alguns dos mandamentos: «Não cometerás adultério, não matarás,
não roubarás, não levantarás falso testemunho; honra teu pai e tua mãe» (v.20b).
Com estes cinco mandamentos, como refere Matteo Crimella, retoma a redação
judaico helenística do decálogo, referindo-se à ‘segunda tábua’, isto é, à segunda
parte do Decálogo (cf. Ex 20,12-16)509. Não podemos deixar de assinalar que Mt,
depois da enumeração dos cinco mandamento, sugere um sexto - «Amarás o teu
próximo como a ti mesmo» (Mt 19,19b); já Mc junta um sexto mas bastante dife-
rente - «não defraudes» (Mc 10,19b)510.
Muitos consideram curioso que Jesus aqui fale dos mandamentos relaciona-
dos com a interação com os outros. Esta opção tem eticamente um significado
profundo. Como trata da relação com os outros é algo que pode ser ‘medido’.
Este homem rico é um alerta, em Lc, para o perigo do ‘centrado em si mesmo’
(‘self-focus’) que pode ser consequência das riquezas. Neste sentido, podemos
relacionar este episódio com a passagem anterior onde um doutor da Lei, quando
confrontado com a pergunta sobre quais os mandamentos que conduziam à vida
eterna, disse: «Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a
tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento, e ao teu pró-
ximo como a ti mesmo» (10,27). Todavia, nestes mandamentos, há ‘pouco’ com-
promisso com os outros e há muito ‘risco’ de ficar ‘centrado si próprio’. Por isso,
agora Jesus indica a outra parte do decálogo, que sugerem e reforçam a necessi-
dade de sair deste ‘auto-referencialismo’. Na certeza, porém, de que o amor e o
serviço aos outros decorre da própria experiência de amor e de graça de Deus511.
Depois deste ‘chefe’ ter respondido que cumpria tudo isso ‘desde a sua juven-
tude’ [νεότητος] (v.21)512, Jesus diz-lhe ‘ainda te falta uma coisa’ (v.22a) e faz-lhe

508
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1197.
509
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 284-285. Sobre a receção do Decálogo
nos diferentes paralelos aconselhamos: J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New
York 1985, 1199.
510
  Deste modo, como identifica Darrell Bock, Mc indica os mandamentos - 6,7,8,9,10 e 5; Mt indica
os mandamentos – 6,7,8,9,5 e Lev 19,18; e Lc indica os mandamentos – 7,6,8,9 e 5. Cf. D. Bock, Luke,
II, Michigan 1996, 1479.
511
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1479.
512
  A palavra grega νεότης, que quer dizer ‘juventude’, refere-se, sobretudo a um ‘jovem com maturi-
dade religiosa e legal’, que nesta cultura significa os primeiros anos da adolescência, depois dos doze

233
um desafio, agora mais radical e exigente porque muito prático e formulado na
segunda pessoa do singular: «vende tudo o que tens, distribui [o dinheiro] pelos
pobres513 e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-me» (22b). Aqui Jesus
deixa de fazer afirmações genéricas e fala diretamente àquele homem. Para ser
discípulo ‘itinerante’ era necessário que o rico abandonasse todos os seus haveres
para estar totalmente disponível514. Como nos recorda Joseph Fitzmyer, Jesus não
coloca em dúvida a sinceridade da resposta daquele ‘chefe’, quando este disse
que já cumpria os mandamentos desde a sua juventude, lança-lhe antes um novo
desafio mais pessoal e mais exigente – cria-lhe uma nova meta. Neste sentido
pede-lhe duas coisas: por um lado, que vendesse tudo o que tinha e distribuísse
o dinheiro com os pobres; e, por outro lado, que decidisse ser seu discípulo e
que o seguisse515. Neste ponto é interessante sublinhar a sequência de verbos em
cada um dos três sinópticos: enquanto Lc diz ‘vende’, ‘distribui’ e depois ‘vem’ e
‘segue-me’ (v.22b); Mc e Mt dizem ‘vai’, ‘vende’, ‘dá’ e depois ‘vem’ e ‘segue-me’
(Mc 10,21b; Mt 19,21b).
Temos que assinalar que Lc é o único dos sinóticos que sublinha a ideia de to-
talidade – ‘vende tudo’ [πάντα]516. Esta afirmação de totalidade é coerente com o
que Jesus tinha dito anteriormente aos seus discípulos: «Assim, qualquer de vós,
que não renunciar a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo» (14,33)517.
Por outro lado, Lc é o único que diz ‘distribui’ [διάδος] e não apenas ‘dá’ [δός],
como acontece em Mc e Mt518. A palavra διάδος é o imperativo, na segunda pes-
soa do singular, do verbo διαδίδωμι e tem o sentido de ‘distribuir algo a alguém’,
‘transmitir’ ou ‘dar em herança’519. Já a palavra δός é o imperativo aoristo, na

anos. Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1480.


513
  Literalmente seria apenas ‘distribui aos pobres’. Decidimos manter a tradução portuguesa porque
nos parece ajudar na compreensão do sentido. Contudo, colocamos parênteses retos na expressão ‘o
dinheiro’. Os exegetas que seguimos optam por manter o sentido literal. Matteo Crimella traduziu
«distribuiscilo ai poveri». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 285. François Bo-
von traduziu: «distribue-le aux pauvres». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève
2001, 200. Joseph Fitzmyer opta pelo sentido literal: «distribute it to the poor». J. Fitzmyer, The Gos-
pel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1195-1196.
514
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 702.
515
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1197.
516
  Apesar do texto grego de Lc ser o único dos sinóticos que tem a palavra ‘tudo’ [πάντα], a tradução
portuguesa sugere, erradamente, a mesma expressão em Mc 10,21b – ‘vende tudo o que tens’.
517
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 285.
518
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1200. Ver ainda: D.
Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1481.
519
  Cf. C. Rusconi, «διάδος», in DGNT, São Paulo 2003, 123.

234
segunda pessoa do singular, do verbo δίδωμι que quer dizer, entre outros signi-
ficados, ‘emprestar’, ‘doar’, ‘confiar’, ‘conceder’, ‘repor’ – mas sempre muito pró-
ximo do sentido principal que é ‘dar’520. De algum modo, podemos dizer que
‘distribuir’, depois de vender tudo, é muito mais exigente e comprometedor do
que simplesmente ‘dar’ aos pobres. O sentido de ‘distribuir’ não só parece envol-
ver mais quem dá e quem recebe, como também parece ligar-se mais a ‘justiça
social’ – dar a quem mais precisa.
Sabemos que a situação religiosa tinha mudado muito em relação ao tempo
do Decálogo, mas também temos de considerar que Jesus foi introduzindo uma
‘ascese nova’, onde a posse das riquezas constitui, no seu tempo, o perigo por
excelência e a dificuldade principal521. Por isso, Jesus insiste que quem distribui
pelos pobres ‘terá um tesouro no céu’. Aqui é evidente a contraposição entre os
tesouros celestes e os tesouros terrestes (12,33)522. Os tesouros terrestes apri-
sionam o coração e levam à competição entre dois ‘senhores’: «Nenhum servo
pode servir a dois senhores; ou há de aborrecer a um e amar o outro, ou dedi-
car-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (16,13).
Deste modo, não se trata unicamente de um pedido funcional de abandono dos
bens e da casa para seguir Jesus, mas antes da radical condição interior para o
‘caminho’, para ‘herdar a vida eterna’. Alerta-se assim para o poder negativo da
riqueza sobre o coração523. Neste sentido, podemos perceber melhor as palavras
que são usadas em At, ao falar da partilha de bens na comunidade: «Entre eles
não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas
vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Após-
tolos. Distribuía-se [διεδίδετο], então, a cada um conforme a necessidade que
tivesse» (At 4,34-35).
Depois de ouvir isto, o ‘chefe’, diz o evangelista, «entristeceu-se [περίλυπος],
pois era muito rico» (v.23). Temos que referir que, ao contrário dos outros dois
sinóticos524, Lc não afirma que o homem se retirou. Pelo contrário, ficou ali a

520
 Id., «δίδωμι», in DGNT, São Paulo 2003, 130.
521
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 207.
522
  Lc 12,33: «Vendei os vossos bens e dai-os de esmola. Arranjai bolsas que não envelheçam, um
tesouro inesgotável no Céu, onde o ladrão não chega e a traça não rói». BS. Ou no texto paralelo, Mt
6,19: «Não acumuleis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem os corroem e os ladrões arrombam
os muros, a fim de os roubar». BS.
523
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 285-286.
524
  Mt 19,22a: «o jovem retirou-se contristado [λυπούμενος - entristecido]». BS. Mc 10,22b: «retirou-
-se pesaroso [λυπούμενος - entristecido]». BS.

235
ouvir a ‘lição’ final de Jesus. Ainda que não haja nenhum testemunho de que,
depois disso, tenha seguido Jesus. Ao contrário, por exemplo, da afirmação do
evangelista a respeito da atitude dos primeiros discípulos - «deixaram tudo e
seguiram Jesus» (5,11b) ou de Zaqueu, que depois do ‘encontro com Jesus, disse
– «vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer
coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais» (19,8). No nosso caso, o que é comum
a todos os textos sinóticos é que, por um lado, ele se ‘entristeceu’ porque ‘era rico’;
por outro, não há nenhuma referência que tenha vendido o que possuía, nem que
teria seguido posteriormente Jesus.
Vendo-o assim, entristecido, Jesus exclamou «Como é difícil para os que têm
riquezas entrar no Reino de Deus!» (v.24b). Jesus reforça, deste modo, a ideia
da ‘dificuldade’ ao ponto de parecer incompatível. Depois faz uma comparação
dessa dificuldade, dizendo que «é mais fácil um camelo passar pelo fundo de
uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!» (v.25). A metáfora realça
o ‘enorme’ tamanho do ‘camelo’ [κάμηλον] com a pequenez do ‘buraco de uma
agulha’ [τρήματος βελόνης]. Uma metáfora que exclui radicalmente a possibili-
dade – trata-se de uma ironia dramática para com os ‘ricos’525. Nesta comparação
hiperbólica é usada uma primeira imagem marcante: o animal maior da Palesti-
na a passar pela abertura mais pequena que então se conhecia. Trata-se de uma
imagem que, de certo modo, tem o mesmo sentido que a afirmação de Jesus sobre
a ‘porta estreita’: «Disse-lhe alguém: ‘Senhor, são poucos os que se salvam?’ Ele
respondeu-lhes: ‘Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque Eu vos digo
que muitos tentarão entrar sem o conseguir’» (13,23-24)526.
Fizeram-se muitas leituras desta metáfora e tentaram-se muitas ‘harmoni-
zações’ deste paradoxo. Indicamos a que nos parece mais consistente: em alguns
dos manuscritos mais tardios, em vez da palavra ‘camelo’ [κάμηλον], é usada a
palavra κάμιλον que significa ‘corda de navios’527. Em grego os dois termos eram
pronunciados do mesmo modo: o segundo termo seria um paradoxo, mas seria
mais lógico, ainda que perdesse radicalidade, já que se tratava (apenas) de um ‘fio’
muito grosso. No entanto, seja pelos critérios externos (autoridade dos manuscri-
tos), seja pelos critérios internos (a lectio difficilior é sempre de preferir), sugere-se
que se escolha a primeira palavra – ‘camelo’528. Seja como for, a frase é clara: não

525
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 286.
526
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1204.
527
  Cf. C. Rusconi, «κάμιλος», in DGNT, São Paulo 2003, 248.
528
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 286. Ver ainda: F. Bovon, L’Évangile

236
há acesso ao reino de Deus para os ricos. A única saída é distribuir a riqueza e
reparti-la com os pobres529. A riqueza surge aqui como um obstáculo à conversão
necessária para entrar no reino de Deus, isto é, para se salvar530.
O texto, depois da pergunta feita pelos ouvintes - «Então, quem pode sal-
var-se?» (v.26), termina com uma afirmação de Jesus de caráter soteriológico:
«O que é impossível aos homens é possível a Deus» (v.27). Este final, comum às
diferentes versões dos sinóticos, opõe a humana impossibilidade e a possibili-
dade divina. Trata-se de uma máxima, enquanto não precisar como é que isso
acontecerá531. Aqui sublinha-se a incapacidade humana (impossível aos homens
[ἀδύνατα παρὰ ἀνθρώποις]) e a manifestação do poder gratuito de Deus (possí-
vel a Deus – [δυνατὰ παρὰ τῷ θεῷ])532. No fundo, diante da pergunta dos presen-
tes, se ‘há esperança de salvação para alguém’, Jesus irá responder que ‘para Deus
não há impossíveis’533. Com esta afirmação sublinham-se dois aspetos: por um
lado, o homem não se pode salvar a si mesmo – está radicalmente fora do seu po-
der534; por outro lado, Deus pode salvar, inclusive, um rico porque Deus é capaz
de romper com a fascinação que a riqueza exerce sobre cada pessoa - a salvação,
por tudo isto, é acção exclusiva de Deus535. Neste sentido, a situação dos homens
não é desesperante devido ao poder de Deus. Deus é capaz de mudar o coração
humano orientá-lo em direção à vida536.
Por fim, precisamos de reforçar a ideia de que a ‘tristeza do homem rico’
(v.23) não é necessariamente o último momento da sua vida. Nem o ‘retirar-se’
significa impossibilidade de conversão. Basta pensarmos que, por exemplo, no
relato da paixão vamos encontrar igualmente um homem ‘entristecido’ consigo
mesmo por ter negado Cristo três vezes – Pedro (22,62). Esta tristeza não foi a
última palavra da história de Pedro. Da mesma maneira, a tristeza do ‘homem
rico’ pode não ter sido a última palavra da sua vida. Quem sabe se não foi, preci-
samente, uma das primeiras?! Como na parábola do ‘filho pródigo’, a tristeza que

selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 207-208; J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke
(X-XXIV), II, New York 1985, 1204-1205; D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1485.
529
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 208.
530
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 708.
531
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 286-287.
532
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 208.
533
  «God makes salvation possible». D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1487.
534
  Cf. R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 713.
535
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1205.
536
  «God makes salvation possible». D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1487.

237
sentiu longe de casa foi o primeiro ato de conversão (cf. 15,17)537. Por isso, mesmo
quando parece ‘impossível’ - Deus pode sempre tornar ‘possível’.

2.9. Jesus encontra-se com o cego de Jericó538


No percurso que levará Jesus até Jerusalém, caminha em direcção à cidade
de Jericó539. Esta cidade, sabe o leitor pela parábola do Bom Samaritano (Lc
10,30), não está longe da capital540. Será nesta cidade que irá encontrar um cego
que irá curar. Este texto é muito importante para cada um dos três primeiros
evangelistas, de tal modo que o ‘episódio’ está presente nos três sinóticos: Mc
10,46-52; Mt 20,29-34; Lc 18,35-43. No entanto, com algumas diferenças entre
os textos, desde logo, Mt fala não de um mas de dois cegos. Aqui seguimos de
perto a versão de Lc 18,35-43541. René Latourelle refere que a cura de cegos tem
um papel importante nos evangelhos: pelo seu número, pelo seu significado e
pelo valor simbólico542.
Segundo Lc, antes de entrar em Jericó, Jesus encontra «um cego sentado a
pedir esmola à beira do caminho» (v.35b)543. Recordamos que pedir esmola cau-
sava tanta vergonha naquela época quanto causa nos nossos dias. Isto mesmo
refere a parábola do administrador desonesto, quando este diz: «‘Que farei, pois
o meu senhor vai tirar-me a administração? Cavar não posso; de mendigar tenho

537
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 208.
538
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: M. Mullins, The Gospel of Luke,
Dublin 2010, 412-414; F. Bassin, L’évangile selon Luc, II, Vaux-sur-Seine 2012, 239-241; T. A. Broo-
kins, «Luke’s Use of Mark as παράφρασις: Its Effects on Characterization in the ‘Healing of Blind
Bartimaeus’ Pericope (Mark 10.46-52/Luke 18.35-43)», JSNT 34 (2011) 70-89.
539
  A cidade de Jericó está situada a poucos quilómetros do rio Jordão e do Mar Morto – lugar da resi-
dência invernal de Herodes - o grande. Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 717. Servia como
um centro de recolha de impostos (19,2). Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1505.
540
  «Gerico è una tappa nell’avvicinarsi a Gerusalemme, termine del viaggio: non è però la distanza
chilometrica che importa, mas la vicinanza del tempo in cui si compie quanto scritto dai profeti». Cf.
G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 716.
541
  Trata-se de uma perícopa que é delimitada consensualmente: 18,35-43. Joseph Fitzmyer intitu-
lou esta unidade literária de «The Healing of the Blind Man at Jericho». Cf. J. Fitzmyer, The Gospel
According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1211. Darrell Bock intitula «Healing by the Son of
David». Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1501. François Bovon intitulou «L’aveugle de Jéricho».
Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 221. Matteo Crimella, tal como
Bovon, intitulou «Il cieco di Gerico». Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 289.
Roland Meynet intitulou «L’aveugle guéri». Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 718.
542
 Cf. R. Latourelle, Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 180-181.
543
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1211.

238
vergonha’» (Lc 16,3bc)544. Este ‘pedir esmola’ estaria relacionado com o facto de
ser cego e, por isso, ter dificuldade de executar um ofício que o pudesse susten-
tar545. Contudo, não sabemos se a sua cegueira era de nascimento ou não, se era
devido a um acidente ou a uma enfermidade, se era uma cegueira funcional ou
causada por uma perturbação histriónica546. O que sabemos é que era cego e que
a ‘cegueira paralisa os pés’ – já que um cego só com dificuldade pode caminhar
sozinho, sem guia. É preciso ver para caminhar. O cego estava à beira do cami-
nho (v.35), como se estivesse paralisado ou amputado das pernas. Por isso, neste
milagre, antes de lhe dar a visão novamente, Jesus faz com que este homem cami-
nhe até ele ajudado por outros (v.40), para depois de curado poder caminhar por
ele mesmo e seguir Jesus (v.43)547. Neste contexto, será interessante referir que
este será o quarto e último milagre - depois da cura de uma mulher ‘corcunda’
ao sábado (13,10-17), da cura do hidrópico ao sábado (14,1-6), da cura dos dez
leprosos (17,11-19). Será caracterizado, em relação aos precedentes, pela absoluta
ausência de discussões depois do próprio milagre548.
Este episódio acontece depois da conclusão redaccional que conclui o ‘tercei-
ro anúncio da paixão’ – «Eles, porém, nada disto entenderam. Aquela linguagem
era incompreensível para eles, e não entendiam o que lhes dizia» (v.34). Depois
deste versículo, Lc volta ao relato de Mc, em concreto à história do cego de Jericó
(Mc 10,46-52)549. Contudo, neste caso, o evangelista não limita a sua intervenção
a pequenas mudanças formais. Na verdade altera o tempo e o lugar do episódio,
colocando o acontecimento no momento em que Jesus e os que o acompanhavam
estavam a chegar a Jericó550. Em Mc este episódio é descrito como sendo à saída

544
 Cf. L. Johnson, The Gospel of Luke, III, Minnesota 1991, 283.
545
  «His life was dependente on the mercy of others». D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1506.
546
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 226.
547
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 720.
548
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 289. «This is the fourth and last mira-
cle-story in the lengthy Lucan travel account, which like the others (13:10-17; 14:1-6; 17:11-19) relieves
the monotony of the long list of sayings». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II,
New York 1985, 1213. Ver ainda: G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 716; D. Bock, Luke, II,
Michigan 1996, 1501.
549
  Este episódio da cura de um cego, em Jericó, tem vários paralelos nos evangelhos: Lc 18,35-43; Mc
10,46-52; Mt 20,29-34 (com a grande diferença de Mt que fala de dois cegos). Cf. M. Crimella (a cura
di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 289. Aconselhamos o estudo comparativo dos três sinóticos de V.
Fusco, «La guarigione del cieco Bartimeo», Torino 20082, 365-77. Ainda que com várias diferenças
textuais, podemos encontrar este mesmo ‘tema’ na cura de um cego de nascença a um sábado (Jo 9,1-
40); na cura de um cego em Betsaida (Mc 8,22-26) e na cura de dois cegos (Mt 9,27-31).
550
  Para Joseph Fitzmyer, o facto de Jesus encontrar o cego quando entrava na cidade, estando Lc a
seguir de perto o texto de Mc, tem a ver com um ajuste em função do próximo episódio, onde Jesus

239
da cidade. Depois, sem se saber bem qual a razão, Lc vai omitir o nome do cego,
que Mc chama de Bartimeu (Mc 10,46). Aqui o cego é conduzido a Jesus, já Mc
parece esquecer-se de que este homem era cego e diz que «ele, atirando fora a
capa, deu um salto e veio ter com Jesus» (Mc 10,50). Lc é mais coerente e parece
mais realista neste ponto551. No final do episódio, Mc sublinha a ideia do segui-
mento («E logo ele recuperou a vista e seguiu Jesus pelo caminho» Mc 10,52b),
enquanto que Lc, embora fazendo referência ao seguimento, reforça, sobretudo, a
ideia de agradecimento, neste caso duplo: do mendigo e do povo («Naquele mes-
mo instante, recuperou a vista e seguia-o, glorificando a Deus. E todo o povo, ao
ver isto, deu louvores a Deus» - Lc 18,43)552.
Sem nos determos na história da composição deste texto, a verdade é que este
episódio, em Lc, acontece à entrada de Jericó, fim do capítulo 18 («Quando se
aproximavam de Jericó» – 18,35a), onde depois Jesus irá encontrar Zaqueu, no
início do capítulo 19 («Tendo entrado em Jericó» - 19,1a). Segundo Darrell Bock
esta localização tem a ver, sobretudo, com razões literárias – uma relação lógica
entre duas histórias de salvação553. Deste modo, Jericó revela-se como lugar de
salvação – caminho para Jerusalém. Aqui temos um cego que deseja ‘recuperar
a vista’ (ver), em Zaqueu temos um homem pequeno que quer ‘ver’ Jesus; este
cego de Jericó é curado e vê Jesus, Zaqueu viu Jesus e passou a ‘ver’ as pessoas
– procurado agora restituir os bens a quem tinha prejudicado e dividir com os
mais pobres. Talvez estejamos a falar de dois cegos, cada um à sua maneira, e de
duas pessoas que, depois de se encontrarem com Jesus, experimentam a salvação
(18,42 e 19,9). Talvez seja por isso, que Luke Johnson, tenha decidido analisar
estes dois episódios unindo-os numa secção que vai de 18,35 – 19,10554.
No relato de Lc, este cego que está à beira do caminho a pedir esmola con-
trasta profundamente com a posição social do homem rico, com quem Jesus se

encontrará Zaqueu na própria cidade, uma passagem exclusiva de Lc. Cf. J. Fitzmyer, The Gospel Ac-
cording to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1213. Nesta mesma perspetiva: L. Johnson, The Gospel
of Luke, III, Minnesota 1991, 283. Gérard Rossé questiona se esta explicação é suficiente, apesar de não
indicar nenhuma outra. Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 716-717.
551
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 719.
552
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 223-224. Nestas páginas, este
exegeta, faz uma comparação muito promenorizada, entre estes dois textos, que vala pena ler, sobre-
tudo, se quisermos perceber todas as diferenças existentes. Já Joseph Fitzmyer faz uma longa análise
de comparação não só entre estes dois textos, mas também com outros paralelos. Cf. J. Fitzmyer, The
Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1211-1213.
553
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1503.
554
 Cf. L. Johnson, The Gospel of Luke, III, Minnesota 1991, 283.

240
tinha ‘cruzado’ versículos antes (18,18-23). O homem rico tem tudo e pode ver,
mas na verdade é cego. O homem cego não tem nada nem consegue ver, até que
confia em Jesus e passa a ter tudo555. Se é verdade que as duas personagens são
antípodas, também é verdade que os dois episódios são percursos da salvação. A
pergunta feita anteriormente pelos que acompanhavam Jesus: «quem pode sal-
var-se?» (v.26b), é agora respondida por Jesus no v.42b: «a tua fé te salvou»556.
Este episódio está organizado em função do encontro entre o cego e Jesus.
Num primeiro momento, vv.35-39, o cego é o sujeito e estabelece diálogo com
a multidão. Quando Jesus está a chegar (v.35), o cego, que estava a mendigar,
informa-se para saber quem era (v.36), uma vez descoberto que era Jesus (v.37)
pede auxílio (v.38). Nesse momento é censurado pela multidão (v.39a), mas o
cego insistiu com o seu pedido (v.39b). Num segundo momento, vv. 40-42, o su-
jeito é Jesus quem estabelece diálogo com o cego. Começa por pedir que o tragam
(v.40a), faz-lhe uma pergunta (vv.40b-41a) a que o cego prontamente responde
(v.41b). Jesus dá uma ordem no sentido deste recuperar a vista por causa da sua
fé (v.42). O resultado deste duplo movimento: do cego até Jesus (vv.35-39) e de
Jesus até ao cego (vv.40-42) conduz ao milagre, donde decorre o seguimento e o
agradecimento (v.43a). Tudo termina com todo o povo a dar graças a Deus por
estes acontecimentos (v.43b)557.
Diante deste encontro, muitos interrogam-se sobre se a personagem principal
é o cego ou é Jesus, se a perspetiva é mais antropológica ou mais cristológica, se é
ou não verdadeiramente um relato de milagre. François Bovon diz que, segundo
a sua opinião, se trata de um relato de milagre558, pelo menos na sua origem e
que, no decurso da transmissão oral, se foi deslocando de Cristo, que intervém
sobrenaturalmente, até àquele que recupera a vista pela sua fé. Os seus gritos de
socorro, a sua reação perante a multidão, a sua maneira de responder à palavra e
ao gesto de Jesus, tornam-se exemplares e a sua cura simbólica. É fácil imaginar
os pregadores, ou ainda mais os catequistas, a contar esta história aos simpati-
zantes e aos neófitos559.

555
 D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1501.
556
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 290. Luke Johnson também defende a
ligação, por contraste, entre estes dois textos. Cf. L. Johnson, The Gospel of Luke, III, Minnesota 1991, 283.
557
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 224.
558
  Neste mesmo sentido, Joseph Fitzmyer afirma: «Form-critically considered, the episode is a mi-
racle-story, a healing narrative». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York
1985, 1213.
559
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 225.

241
Este encontro começa precisamente quando o cego, que não era surdo, per-
cebe que está a chegar uma multidão, tenta perceber o que se passa e quem é
que esta multidão segue. Tendo sido informado de que era Jesus, o ‘Nazareno’560,
começou a gritar – «Jesus, Filho de David, tem misericórdia de mim [ἐλέησόν
με]561» (v.38b). Esta oração acabou por se converter numa das orações cristãs mais
comum562. Este grito é a expressão desesperada de um proscrito da sociedade,
que só espera compaixão por parte de Jesus563. Aquele que é apresentado pela
multidão como «Jesus, o Nazareno» (v.37), é agora reconhecido pelo cego como
o «Jesus, Filho de David» (v.38b)564. Ironicamente, o homem cego consegue ‘ver’
em Jesus - o Filho de David, em contraste com os discípulos que, na sua cegueira,
apenas conseguem ‘ver’ em Jesus - o Nazareno (cf. v.34)565.
A origem davídica de Jesus é inquestionável para as primeiras comunidades
como testemunha Paulo no início da carta aos cristãos de Roma quando diz que
foi escolhido para anunciar o evangelho acerca de Jesus «nascido da descendên-
cia de David segundo a carne» (Rm 1,3). Contudo, a presença deste título na boca
deste cego levanta várias questões. Sobretudo, qual o significado que pode ter?566
Na verdade, este título evoca o messianismo judaico, a famosa promessa feita a
David (2Sm 7). O evangelho da infância (Lc 1–2) está imerso neste clima messiâ-
nico. Israel esperava certamente a paz de um futuro sobrano, mas não imaginava

560
  A palavra grega é Ναζωραῖος, corresponde ao hebraico ‫[ נֵצֶר‬nēṣer] e que quer dizer ‘Nazareno’. Cf.
C. Rusconi, «Ναζωραῖος», in DGNT, São Paulo 2003, 316. Daí esta nossa sugestão de tradução, em vez
da proposta da tradução portuguesa que diz ‘de Nazaré’. Apoiamos a nossa opção em vários exegetas.
François Bovon traduz: «Jésus le Nazôréen». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève
2001, 221. Joseph Fitzmyer traduz: «Jesus the Nazorean». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke
(X-XXIV), II, New York 1985, 1211. Matteo Crimella traduz: «Gesù il Nazoraio». M. Crimella (a cura
di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 289. Gérard Rossé traduz: «Gesù, il Nazoreo». G. Rossé, Il Vangelo di
Luca, Roma 20125, 715. Ver ainda: R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 718. Sobre o sentido
desta palavra e a sua utilização no NT ver: F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève
2001, 227; J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1215-1216; M. Cri-
mella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 289; D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1507.
561
  O verbo grego ἐλεέω quer dizer ‘ter piedade’, ‘ter compaixão’ ou ‘ter misericórdia’. Cf. C. Rusconi,
«ἐλεέω», in DGNT, São Paulo 2003, 162. Neste caso concreto, decidimos manter a proposta da tradu-
ção portuguesa. Contudo, registamos várias possibilidades de tradução. «Aie pitié de moi». F. Bovon,
L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 221. «Have mercy on me». J. Fitzmyer, The
Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1211. «Abbi pietà di me». M. Crimella (a cura
di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 291.
562
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 227.
563
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1216.
564
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 719.
565
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1507.
566
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 718.

242
que viesse realizar milagres. Porém, se o cego interpela Jesus como Messias, é
porque pensou para consigo: se o Filho de David vai restabelecer Israel, então
também pode devolver-me a vista. Podemos considerar outra explicação para
este título. O filho de David era Salomão. Esta personagem foi dotada de múlti-
plos talentos. Ao longo dos séculos a tradição judaica ampliou a sua sabedoria até
aos domínios da ciência, da medicina e, inclusivamente, da magia. É possível que
o cego tenha apelado mais a Jesus ‘médico’ do que a Jesus ‘messias’567.
Roland Meynet vai dirimir a questão sugerindo que ao longo do diálogo o
cego vai ‘convertendo’ os seus desejos. Começa por sublinhar que o cego no pri-
meiro pedido não pede para ver, mas pede para que Jesus tenha misericórdia dele
(v.38). Um pedido que volta a repetir, depois de alguns pedirem para que ele se
calasse (v.39). Provavelmente ele pedia ‘esmolas’. Afinal era isso que ele estava a
fazer ali à beira do caminho (v.35b) – era o seu ‘ofício’. As esmolas seriam a sua
única fonte de rendimento. Mas Jesus não lhe dá nenhuma ‘esmola’. O que Jesus
faz é chamá-lo e quando o cego se aproximou não lhe perguntou: «O que queres
que eu te dê?» ou «Quanto queres?», mas antes: «Que queres que te faça?» (v.41a).
Esta pergunta ‘converteu’ o seu desejo ao ponto de abandonar a segurança do
seu ‘ofício’ para começar uma vida nova. Jesus levou-o a exprimir os seus desejos
mais profundos que agora ele sente que podem ser realizados568. A misericórdia
que o cego pedida foi correspondida pela misericórdia que Jesus tinha para dar.
Esta cura, concluindo uma série de milagres da vida pública, conduz-nos ao iní-
cio deste evangelho quando, na sinagoga de Nazaré, Jesus lê a profecia messiânica
de Isaías (Is 61,1ss), que se está a completar no seu ministério: «O Espírito do
Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres;
enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da
vista; a mandar em liberdade os oprimidos» (Lc 4,18)569.

567
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 227. Ver ainda: J. Fitzmyer,
The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1216; D. Bock, Luke, II, Michigan 1996,
1507-1508.
568
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 721. Pode ser interessante aqui referir o episó-
dio que será descrito no livro dos Atos dos Apóstolos, também atribuído a Lc: «1Pedro e João subiam
ao templo, para a oração das três horas da tarde. 2Era para ali levado um homem, coxo desde o ventre
materno, que todos os dias colocavam à porta do templo, chamada Formosa, para pedir esmola àqueles
que entravam. 3Ao ver Pedro e João entrarem no templo, pediu-lhes esmola. 4Pedro, juntamente com
João, olhando-o fixamente, disse-lhe: ‘Olha para nós’. 5O coxo tinha os olhos nos dois, esperando receber
alguma coisa deles. 6Mas Pedro disse-lhe: ‘Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, isto te dou: Em
nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda!’» (At 3,1-6). BS. Também aqui ao ‘pedido de esmola’,
Pedro e João não deram ‘moedas’ mas, pela acção de Jesus, deram-lhe a possibilidade de voltar a andar.
569
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 716.

243
O cego que começou por chamar «filho de David» [υἱὲ Δαυίδ] (vv.38-39)
agora chama «Senhor» [κύριε] (v.41) a Jesus570. A progressão é clara e dá mais
sentido às últimas palavras de Jesus neste episódio, repetindo a fórmula estereo-
tipada que ocorre com frequência nas outras narrações de milagre de cura - «A
tua fé te salvou» (42b)571. Esta resposta de Jesus, depois de o cego ter invocado
o seu nome, poderá ser iluminada pelo próprio discurso de Pedro à multidão,
na manhã de Pentecostes, quando, citando o profeta Joel, diz: «todo aquele que
invocar o nome do Senhor será salvo» (At 2,21). De facto, esta ligação da ce-
gueira-visão à fé é comum nas primeiras comunidades como testemunha, por
exemplo, a conversão de Paulo: «Então, Ananias partiu, entrou na dita casa,
impôs as mãos sobre ele e disse: ‘Saulo, meu irmão, foi o Senhor que me enviou,
esse Jesus que te apareceu no caminho em que vinhas, para recobrares a vista e
ficares cheio do Espírito Santo’. Nesse instante, caíram-lhe dos olhos uma espé-
cie de escamas e recuperou a vista. Depois, levantou-se e recebeu o baptismo’»
(At 9,17-18)572.
A cura deste cego não se limita à vista recuperada mas é uma manifestação
salvífica mais ampla, estreitamente ligada à fé. Os que caminhavam à frente
[προάγοντες] (v.39a) demonstram serem cegos quando tentam ‘calar’ um dos
destinatários privilegiados da missão de Jesus. Mas Jesus acolhe o grito do cego
(v.38) e fá-lo ‘recuperar a vista’ (v.42)573. Temos aqui o encontro de dois desejos:
o desejo do cego de ser curado da sua cegueira e o desejo de Jesus curar os cegos
que encontra à beira do caminho574. A total confiança do cego no poder de Deus
e o facto de ter gritando ainda mas alto, quando os que iam à frente o tentavam
calar, faz deste cego uma exortação à oração perseverante, para todos os cren-
tes575. Talvez estes, que caminhavam à frente, também ‘recuperaram’ a vista ou,
pelo menos, tenham reconhecido que também eram cegos. A este propósito, não
deixa de ser interessante referir a pergunta que alguns fariseus fazem a Jesus
noutra cura de um cego, ainda que noutro contexto: «Porventura nós também
somos cegos?» (Jo 9,40b). De facto, o papel da multidão é aqui muito importante.

570
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 719. Neste contexto, Roland Meynet relaciona
os vários títulos, assinalando a progressão no texto: «Jesus, o Nazareno» (v.37); «Jesus, Filho de David»
(v.38); «Filho de David» (v.39); «Senhor» (v.41); «Deus» (2 vezes no v.43).
571
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1216.
572
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 716.
573
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 291.
574
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 720-721.
575
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 719.

244
Podemos perceber três atitudes: inicialmente tem uma reacção negativa, evi-
denciando assim a perseverança do cego, que não só repete o pedido, como fala
mais alto ainda; depois, quando Jesus parou e pediu que lhe trouxesse o cego,
a multidão certamente que o ajudou a chegar até Jesus; por último, une-se ao
louvor daquele que tinha recuperado a vista, louvando também a Deus576.
O lugar da ação, Jericó, transforma-se em lugar de salvação. Este milagre,
capaz de convencer um auditório grego, edifica a comunidade cristã. O cego res-
ponde com a sua decisão à pergunta clássica: «que devemos fazer?» (Lc 3,10.12.14
e At 2,37). Jesus, pela sua misericórdia, coloca, por seu lado, a pergunta: «que
queres que te faça?» (v.41a)577, ao que o cego responde: «que eu recupere a vista578»
(v.41b). O cego, consciente do momento oportuno, aproveita a ocasião e expressa
o seu desejo a Jesus. Não se resigna e manifesta confiança579. «Naquele mesmo
instante, recuperou a vista580 e seguia-o, glorificando a Deus» (v.43a). De facto,
uma vez curado, aquele que estava sentado à beira do caminho a pedir esmola,
agora segue Jesus pelo seu próprio pé. Entrou na cidade, seguindo Jesus. O que
estava sentado agora caminha, o que estava sem ver agora recupera a vista, o que
estava a pedir esmola agora vai dali a dar graças (v.43a). Vendo isto, continua
o texto, todo o povo deu louvores a Deus (v.43b). Um louvor da ‘comunidade’

576
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 225.
577
  «The question is taken over word for word from Mark 10:51». J. Fitzmyer, The Gospel According to
Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1216.
578
  A palavra grega ἀναβλέψω tem o sentido de ‘recuperar a vista’. Cf. C. Rusconi, «ἀνάβλεψις», in
DGNT, São Paulo 2003, 40. A mesma palavra que é usada quando Jesus lê o profeta Isaías na sina-
goga de Nazaré: «enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista
[ἀνάβλεψιν]» (Lc 4,18b). BS. Neste sentido, sugerimos esta tradução em vez da proposta pela tradução
portuguesa que diz simplesmente: «Senhor, que eu veja». Vários exegetas reforçam esta nossa opção:
«Seigneur, que je recouvre la vue». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001,
221. Gérard Rossé traduz: «Signore, che (io) acquisti la vista». G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma
20125, 715. Joseph Fitzmyer traduz de modo diferente, ainda que mantenha o sentido: «Sir (…) I want
to see again». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1211. Na mes-
ma linha, Matteo Crimella traduz: «Signore, che io veda di nuovo». M. Crimella (a cura di), Luca,
Cinisello Balsamo 2015, 291.
579
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 231.
580
  A palavra grega é ἀνέβλεψεν, por isso, sempre em conformidade com o critério anteriormente
referido, voltamos a sugerir a ideia de ‘recuperar a vista’. A proposta da tradução portuguesa usa um
sinónimo ‘recobrou’. Vemos a nossa opção confirmada por vários exegetas. François Bovon traduz: «il
recouvra la vue». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 221. Gérard Rossé
traduz: «acquistò la vista». G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 715. Joseph Fitzmyer traduz de
forma um pouco diferente, sem alterar o sentido: «He was able to see again» J. Fitzmyer, The Gospel
According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1211. O mesmo acontece com Matteo Crimella que
traduz: «All’istante ci vide di nuovo». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 291.

245
pela alegria de um dos seus ‘membros’ ter ‘recuperado a vista’. Neste contexto,
Matteo Crimella recorda que a palavra ‘povo’ [λαός], em Lc, indica todo o povo
de Israel, destinatário da promessa de Deus581. Por isso, é interessante reparar
que aqueles que começaram por ser designados, simplesmente, como uma mul-
tidão [ὄχλου] (v.36a) sejam agora identificados como ‘povo’ [λαός] (v.43b). Deste
modo, um cego que recupera a vista representa, para os cristãos da Antiguida-
de, como testemunham os frescos das catacumbas, um exemplo de reabilita-
ção realizada pela força divina, uma esperança de salvação eterna para além da
precaridade humana. ‘Ver’ chegava a ser sinónimo de ‘ver o invisível’, de passar
da humanidade cega a uma comunidade crente e aberta ao essencial que se ma-
nifesta582. A centralidade da fé elimina a cegueira espiritual583.

2.10. Jesus encontra-se com Zaqueu584


A história de Zaqueu, texto que se encontra unicamente em Lc 19,1-10585,
surge no fim da viagem da Galileia para Jerusalém (9,51 – 19,27), numa secção
que pode ser designada por ‘evangelho dos excluídos’586. Neste encontro com
Zaqueu podemos analisar dois temas característicos deste evangelista: o tema
da riqueza587 e o tema do contacto de Jesus com os pecadores. Neste sentido,

581
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 48. Efetivamente, a palavra λαός pode
ter vários significados diretos como ‘multidão’ (At 3,12), ‘povo’ (Mt 26,5), ‘nação’ (Ap 5,9); mas pode
também significar, por antonomásia, ‘Israel’ (Jo 11,50), ou por extensão ‘cristãos’ (At 15,14), ou ainda
‘cidadãos da nova Jerusalém’ (Ap 21,3). Cf. C. Rusconi, «λαός», in DGNT, São Paulo 2003, 283. Ver
ainda: D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1511.
582
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 228.
583
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1501.
584
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: M. Mullins, The Gospel of Luke,
Dublin 2010, 414-416; F. Bassin, L’évangile selon Luc, II, Vaux-sur-Seine 2012, 241-246; A.-M. Cha-
pleau, «Quand le salut advient pour une maison. Lecture de Luc 19,1-10», SémBib 143 (2011) 33-48;
(e segunda parte) 144 (2011) 23-47.
585
  A delimitação deste texto é consensual entre os exegetas: 19,1-10. Darrell Bock intitula esta parte
de «Zacchaeus: Faith’s Transforming Power». Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1513. François
Bovon intitulou, sublinhando outra dimensão do mesmo relato «En visite chez Zachée». Cf. F. Bovon,
L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 232. Joseph Fitzmyer intitula simplesmente
«Zacchaeus». Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1218. De
igual modo, Matteo Crimella intitula esta perícopa apenas de «Zaccheo». Cf. M. Crimella (a cura di),
Luca, Cinisello Balsamo 2015, 291.
586
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 234.
587
 Darrell Bock relaciona com o texto de Zaqueu vários episódios sobre riqueza ao longo do evange-
lho de Lc: o apelo de João Batista à conversão (3,10-14); a conversão do cobrador de impostos chamado
Levi (5,27-32); a parábola do fariseu e do cobrador de impostos que foram rezar ao templo (18,9-14); o
homem rico que aumentou os seus celeiros para guardar toda a colheita e morreu nessa noite (12,13-

246
dizemos que o episódio da Zaqueu é a conclusão de uma série de ensinamentos
tipicamente lucanos: a parábola do fariseu e do publicano, no qual só este últi-
mo sai justificado (18,9-14); a recusa dos discípulos de levarem uma criança a
Jesus e a sua afirmação – deixai vir a mim os pequeninos (18,15-17); o episódio
do homem rico que não pode entrar no Reino pela sua incapacidade de renun-
ciar às próprias riquezas (18,18-27); a cura do cego de Jericó, iluminado pela fé
e, por outro lado, os discípulos que não compreendem a palavra de Deus (18,31-
43). Todos estes elementos reaparecem no episódio de Zaqueu. Tratava-se de
um homem rico, que vivia em Jericó e que era de pequena estatura588.
Apesar de Lc inserir, no seu relato evangélico, muito material de Mc, este tex-
to deriva basicamente da fonte própria, daí ser um episódio exclusivo de Lc, ten-
do traços próprios da redacção lucana, sobretudo, no vocabulário usado. Trata-se
de um texto que tem vários paralelismos, dentro do evangelho de Lc, especial-
mente com o chamamento de Levi (Lc 5,27-32). Também Levi era cobrador de
impostos, era rico, era considerado pecador, ofereceu um jantar a Jesus e, no fim,
converteu-se. Jesus que agora diz a Zaqueu - «o Filho do Homem veio procurar
e salvar o que estava perdido» (Lc 19,10), é o mesmo que tinha dito a Levi: «Não
são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não
foram os justos que Eu vim chamar ao arrependimento, mas os pecadores» (Lc
5,31-32). Temos aqui provavelmente um eco da célebre passagem de Ezequiel so-
bre o bom pastor: «Procurarei aquela que se tinha perdido, reconduzirei a que se
tinha tresmalhado; cuidarei a que está ferida e tratarei da que está doente. Vigia-
rei sobre a que está gorda e forte. A todas apascentarei com justiça» (Ez 34,16).
No entanto, são de assinalar algumas diferenças e alguns detalhes, como o nome
do personagem principal - Zaqueu, o facto de ser pequeno e de ter subido a uma
árvore – sicómoro (única vez que é usado o nome desta árvore589), e o facto de ter

21); o homem rico que ignorou o pobre Lázaro que vivia à sua porta (16,19-31); o homem rico que
cumprindo todos os mandamentos não foi capaz de se desfazer da sua riqueza (18,18-23). Cf. D. Bock,
Luke, II, Michigan 1996, 1514.
588
  Cf. C. Paz, A. Levoratti, «Vangelo secondo san Luca», Roma 2005, 830-831.
589
 «Συκομορέα (sycomorea, sycamore tree) appears only here in the NT, though a related term
(συκάμινος, sykaminos, sycamine tree) is found in 17:6». D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1517. «Luc,
qui a mentionné une συκάμινος, un ‘mûrier’ en 17,6, évoque ici une συκομορέα, un ‘sycomore’». F.
Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 240. «Unica occorrenza nell’intera
Scrittura del termine συκομορέα: si trata com tutta probabilità del ficus sycomorus». M. Crimella
(a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 292. «Albero della specie del fico, con rami che spuntano a
poca distanza da terra; egli può quindi occupare un posto d’osservazione senza rendersi troppo ridi-
colo». G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 723.

247
acontecido em Jericó590.
Por outro lado, a história de Zaqueu é o segundo evento em Jericó, depois da
cura de um cego que estava à beira do caminho (Lc 18,35-43). Para além desta
‘geografia’ comum, entre esta duas passagens podemos encontrar várias seme-
lhanças e diferenças591. Jesus corresponde positivamente aos desejos de ambos
(cego e Zaqueu), contra uma certa oposição dos que o acompanhavam. Zaqueu é
o exemplo de alguém que deseja ver Jesus, o cego é alguém que quer ver e, uma
vez curado, pode ver Jesus. O cego teve que gritar para ter a atenção de Jesus e
para fazer o seu pedido já Zaqueu subiu a uma árvore e acabou por ‘receber’ mais
do que esperava. A história do cego retrata a ‘fé que salva’ (Lc 18,42), enquanto
que a história de Zaqueu fala da iniciativa de Jesus ‘salvar o que está perdido’ (Lc
19,10)592. Jesus é chamado pelo cego de Jericó como ‘filho de David’ (Lc 18,38.39),
e no episódio de Zaqueu, é Jesus quem se intitula ‘filho do Homem’ (Lc 19,10)593.
Em ambos os relatos, a vontade de Jesus encontra um obstáculo na mentalidade
da multidão. Jesus permite que cada um deles experimente a novidade da vida,
numa mudança que assume dimensão eclesial, onde a atitude de cada um deles
se torna protótipo do comportamento de fé. Deste modo, em ambos os episódios
emerge o tema de Jesus como portador de salvação já no presente - quer a cura do
cego, quer o acolhimento do publicano, caracterizam bem a missão de Jesus de
‘salvar o que estava perdido’594.
Zaqueu, podendo o seu nome significar ‘puro’ e ‘inocente’ ou ‘justo’ e ‘ínte-
gro’595, é apresentado em três tempos: nome, profissão e estatuto social (v.2); reve-

590
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1218-1219. Ver ainda:
F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 234-235; G. Rossé, Il Vangelo di
Luca, Roma 20125, 721.
591
  «Strettamente collegato con il brano precedente della guarigione del cieco (cfr. 18,35-43), l’episo-
dio dell’incontro con Zaccheo sintetizza l’intera teologia di Luca». M. Crimella (a cura di), Luca,
Cinisello Balsamo 2015, 291.
592
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1513.
593
  Cf. R. Meynet, L’évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 754.
594
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 720.
595
 «Zakchaios is the grecized form of the Hebrew name Zakkai or Zaccai (Neh 7:14; Ezra 2:9 [which
appears in the LXX as Zakchos]), found also in 2 Macc 10:19 as the name of an officer in the army of
Judas Maccabee. Hebrew Zakkay means ‘clean, innocent’, a term often used in parallelism to ṣaddîq,
‘righteous, upright’». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1223.
Ver ainda: D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1516; G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 722.
Josef Schmid defende que Zaqueu é uma abreviatura de Zacarias. Cf. J. Schmid, El evangelio según
san Lucas, Barcelona 1968, 411. Ver ainda: K. Rengstorf, Il vangelo secondo Luca, Brescia 1980,
360; M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 291. Já Fançois Bovon discorda desta
afirmação dizendo que Zaqueu não é abreviatura de Zacarias e, por outro lado, afirma que Lc não dá

248
la o seu desejo e as razões porque não o consegue realizar (v.3); recusa declarar-se
vencido e busca uma solução (v.4)596. De facto, Zaqueu «era chefe de cobradores
de impostos e era rico597» (v.2b) e «procurava ver Jesus» (v.3a). Tudo começa com
o seu desejo de ver Jesus. Mas este seu desejo será interesse ou mera curiosidade?
Jesus tinha a fama de profeta e de taumaturgo598. Esta curiosidade pode ser in-
terpretada de muitas maneiras. Também Herodes procurava ver Jesus: «Herodes
disse: ‘A João mandei-o eu decapitar, mas quem é este de quem oiço dizer seme-
lhantes coisas?’ E procurava vê-lo» (Lc 9,9). O que veio a acontecer mais tarde:
«Ao ver Jesus, Herodes ficou extremamente satisfeito, pois havia bastante tempo
que o queria ver, devido ao que ouvia dizer dele, esperando que fizesse algum
milagre na sua presença» (Lc 23,8). Herodes parece que, sobretudo, quer ver um
milagre. O motivo de Zaqueu não o sabemos porque este episódio não sugere
qualquer razão para ele querer ver Jesus599. O evangelista, homem interessado na
vista e na palavra, considera o verbo ‘ver’ como uma metáfora do conhecimento,
do amor e da fé600.
Interessante que Lc inicie a história com um desejo ou uma procura. Ele sabe
que o ser humano é um ser do ‘desejo’ e da ‘procura’ e aí reside muita da sua
esperança. O verbo grego utilizado é ζητέω (v.3) e significa ‘procurar algo ou
alguém’601. Este verbo é importante em Lc e pode designar a procura da verdade,
da saúde, do sentido da vida ou da salvação602. Uns capítulos antes, reforçando a
ideia de que quem ‘procura’ acaba por ‘encontrar’, Jesus tinha dito: «Pedi e ser-
-vos-á dado; procurai e achareis; batei e abrir-se-vos-á; porque todo aquele que
pede, recebe; quem procura, encontra, e ao que bate, abrir-se-á» (Lc 11,9-10).

importância ao sentido etimológico dos nomes. Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27),
III, Genève 2001, 239.
596
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 235. Ver ainda: M. Crimella
(a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 291-292.
597
  Procurando seguir mais de perto o original grego na sua dupla repetição - καὶ αὐτὸς ἦν ἀρχιτελώνης
καὶ αὐτὸς πλούσιος – sugerimos esta tradução, em vez da tradução portuguesa: «um homem rico
[chamado Zaqueu] que era chefe de cobradores de impostos». Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According
to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1218 e 1223. Ver ainda: D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1516;
F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 232; R. Meynet, L’évangile de Luc,
VIII, Pendé 2011, 753; G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 720.
598
  Cf. A. George, El evangelio según san Lucas, Estella 19878, 63.
599
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1223. Ver ainda: Cf.
D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1517.
600
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 240.
601
  Cf. C. Rusconi, «ζητέω», in DGNT, S. Paulo 2003, 214.
602
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 240.

249
No entanto, este desejo de Zaqueu de ver Jesus tinha de superar a ‘barreira’
da multidão. Por isso, sendo de pequena estatura603, decidiu subir a uma árvore
(vv.3-4). Terá percebido que nem sempre é fácil ver através da multidão? Ou teria
medo de ser visto, procurando passar despercebido?604 Não sabemos. O que sabe-
mos é que Jesus passou por baixo da árvore. Esse momento superou todas as ex-
pectativas de Zaqueu, já que levantou os olhos, chamou-o pelo nome e manifes-
tou-lhe o desejo de ficar em sua casa (v.5). Há aqui uma inversão de papéis: aquele
que queria ver Jesus é visto por ele605. O texto não diz como é que Jesus sabe o
nome de Zaqueu: talvez seja uma manifestação das suas capacidades sobrenatu-
rais (como em Jo 1,47-48); ou terá ouvido as pessoas a chamar por Zaqueu; ou
ele mesmo teria perguntado antecipadamente o nome. Apesar da ausência deste
detalhe, o que parece claro é que quem ‘controla’ a situação, aqui, é Jesus606.
Jesus faz-se convidado da casa de Zaqueu: «depressa, pois hoje tenho de ficar
em tua casa» (v.5b). «Ele desceu imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria»
(v.6). Entretanto a multidão murmura contra esta atitude de Jesus de se ‘hospedar
em casa de um pecador’ (cf. v.7). O que para Zaqueu era um motivo de grande
alegria, torna-se para outros um escândalo607. Para estes que se julgavam jus-
tos, Jesus quer entrar na casa ‘contaminada’ de um publicano – isso só poderia
causar escândalo608. De facto, Zaqueu era mal visto na cidade porque ele seria
o chefe que administrava um centro regional romano de cobrança de impostos
(ἀρχιτελώνης)609. Na época de Jesus estas pessoas recolhiam pouca simpatia por
duas razões. Por um lado, recolhiam os impostos para os ocupantes romanos,
considerados inimigos e pagãos, e o povo tinha a impressão que o seu dinheiro
servia para o culto dos ídolos; se ao menos estes cobradores fossem romanos,
mas neste caso eram judeus ‘colaboradores’. Por outro lado, tinham a fama, com
razão a maior parte das vezes, de não serem muito honrados porque ficavam

603
  «Non bisogna dimenticare che la statura bassa non raramente nella fisiognomica dell’antichità è
una modalità per ridicolizzare una persona». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015,
292.
604
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 240.
605
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 292.
606
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1517. «Inutile chiedersi come Gesù conosca il nome del pu-
bblicano senza averlo mai visto prima: fa parte della ‘strategia narrativa’ dell’evangelista». G. Rossé,
Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 723.
607
 Cf. J. Schmid, El evangelio según san Lucas, Barcelona 1968, 411.
608
  Cf. K. Rengstorf, Il vangelo secondo Luca, Brescia 1980, 361.
609
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1516. O termo ἀρχιτελώνης só ocorre aqui, em Lc 19,2; e nem
sequer tinha aparecido antes na literatura grega. Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo
2015, 291. Ver ainda: G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 723.

250
com grandes taxas desse pagamento, sobrecarregando duramente o povo610. Nes-
te contexto, a multidão que tinha impedido Zaqueu de ver Jesus (cf. v.3) era agora
aquela que murmurava contra Jesus por este revelar a sua intenção de ficar em
casa de Zaqueu. O verbo grego usado para dizer ‘ficar hospedado’ (καταλύω),
usado com este sentido apenas duas vezes (aqui e em 9,12611), significa literal-
mente ‘desengatar’ os animais de carga para descansarem durante a noite612. Mas
o verbo tem sempre a ver com um lugar para pernoitar – Jesus que pernoitar na
casa de Zaqueu.
A gratuidade do gesto inesperado de Jesus e o encontro com a pessoa de Je-
sus provocam uma transformação neste cobrador de impostos613. Neste contexto,
Zaqueu diz: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei
alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais» (v.8). Um ‘dar’ e
um ‘restituir’ que devem ser tomados como uma decisão que decorre da atitude
de arrependimento e de fé (implícita) resultante do encontro com Jesus614. Um
sinal de conversão na linha do que estava prescrito no AT: «E quando um ho-
mem roubar um boi ou um animal do rebanho, e o abater ou o vender, pagará
cinco bois pelo boi, e quatro ovelhas pelo animal do rebanho» (Ex 21,37); ou
ainda «Pagará quatro vezes o valor da ovelha, por ter feito essa maldade e não ter
tido compaixão» (2Sam 12,6). Trata-se, segundo François Bovon, da descrição
de uma salvação escatológica que está inserida na história, uma salvação cuja
dimensão espiritual é indissociável da componente material615.
Nada de considerações sobre o passado, nem de lamentações sobre a sua in-
dignidade ou sobre os pecados cometidos, unicamente uma atitude de partilha
dos bens com os pobres e a restituição quatro vezes mais àqueles que tinha pre-
judicado616. Esta atitude contrasta com a do jovem rico (Lc 18, 18-23), descrita no
capítulo anterior, que era bom, cumpria os mandamentos, mas não foi capaz de

610
  Cf. A. George, El evangelio según san Lucas, Estella 19878, 63.
611
  Lc 9,12: «Ora, o dia começava a declinar. Os Doze aproximaram-se e disseram-lhe [a Jesus]: ‘Des-
pede a multidão, para que, indo pelas aldeias e campos em redor, encontre alimento e onde pernoitar,
pois aqui estamos num lugar deserto’». BS.
612
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1518. «Il verbo καταλύω alla lettera indica ‘sciogliere gli
animali da tiro’ e dunque ‘fermarsi’ presso qualcuno per ‘trascorrere un certo tempo’ com lui». M.
Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 292.
613
 Cf. J. Schmid, El evangelio según san Lucas, Barcelona 1968, 411.
614
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1520. Ver ainda: M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello
Balsamo 2015, 293.
615
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 243.
616
  Cf. A. George, El evangelio según san Lucas, Estella 19878, 63.

251
se desfazer da sua riqueza617. No entanto, Zaqueu, que era cobrador de impostos,
considerado pecador, depois de perceber os seus erros, é capaz de tomar a decisão
de repartir os seus bens. Jesus elogia-o e aceita-o. Este homem que surge como
um exemplo de conversão, remete-nos para outro cobrador de impostos. Refe-
rimo-nos à parábola que Jesus conta, também no capítulo anterior, onde coloca
em ‘confronto’ a atitude de um fariseu e um cobrador de impostos quando vão
rezar ao templo, concluindo que: «O cobrador de impostos, mantendo-se à dis-
tância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu; mas batia no peito, dizendo:
‘Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador’. Digo-vos: Este voltou justificado
para sua casa, e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e
quem se humilha será exaltado» (Lc 18,13-14)618.
Assinalamos que o texto não nos diz quando é que Zaqueu se converteu, nem
quando disse da sua intenção de partilhar os seus bens. Não sabemos se foi du-
rante ou depois do jantar; se imediatamente depois de descer da árvore ou quan-
do já estava no meio da multidão; não sabemos quanto tempo durou o diálogo
entre Jesus e Zaqueu, antes da sua conversão; quanto tempo estiveram na casa de
Zaqueu619. Também será interessante sublinhar que Zaqueu não implorou a Jesus
por misericórdia (como Lc 17,13; 18,38); nem expressou explicitamente arrepen-
dimento (como Lc 15,21; 18,13). Por outro lado, Jesus não faz nenhuma referência
à fé de Zaqueu (como Lc 7,50; 8,48) ou à sua conversão (como Lc 15,7.10)620. O que
Jesus diz é: «Hoje veio a salvação a esta casa» (v.9a), revelando o contraste com a
multidão que antes murmurou contra Jesus porque se tinha hospedado em casa
de um pecador (v.7)621.
A palavra grega traduzida por ‘salvação’ (σωτηρία) é rara em Lc (ocorrendo
outras vezes apenas em 1,69.71.77622) e procura descrever o restaurar da relação
que alguém tem com Deus quando este o liberta. Foi esta libertação, que acom-
panha a visita de Jesus, que tornou possível a resposta de Zaqueu ao convite. A
expressão ‘hoje’ tem a ver sobretudo com a intenção manifestada por Zaqueu, no

617
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 241. Ver ainda: G. Rossé, Il
Vangelo di Luca, Roma 20125, 721.
618
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1514.
619
  Ibidem, 1519.
620
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1220.
621
  Ibidem, 1225.
622
  Cântico de Zacarias (Benedictus) – Lc 1,69.71.77: «69e nos deu um Salvador poderoso na casa de
David, seu servo (…) 71para nos libertar dos nossos inimigos e das mãos de todos os que nos odeiam,
(…) 77para dar a conhecer ao seu povo a salvação pela remissão dos seus pecados». BS.

252
versículo anterior, entendida como uma expressão de sua vontade de mudar. Por
isso, Jesus diz a ‘salvação’ veio ‘hoje’ a esta casa (οἴκος). Nos Atos dos Apóstolos
a expressão ‘vir a salvação a esta casa’ é usada como referência a todos os mem-
bros da família (At 10,2; 11,14; 16,15.31; 18,8)623. De facto, onde há conversão há
salvação624. A salvação não é um dom ‘automático’, exige a resposta positiva do
homem à iniciativa divina625.
Esta salvação está ligada ao facto deste judeu também ser ‘filho de Abraão’
(«por este ser também filho de Abraão» - v.9b). Ou seja, Zaqueu não pode impedir
este seu potencial de acesso a Deus e a sua pertença ao povo judeu torna a sua
resposta mais adequada. Daí que Jesus não veja os cobradores de impostos como
um problema. Zaqueu tem direitos no que diz respeito à promessa de Deus, se
quiser pode usufruir deles – e é o que vai acontecer. Daí que Jesus possa revelar
a sua missão: «o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido»
(v.10)626. Esta transformação de Zaqueu representa o cumprimento dessa sua mis-
são. Ele é instrumento através do qual Deus continua a agir no mundo. De facto,
a sua missão é iniciar a relação com aqueles que não conhecem Deus e chamá-los
para que o conheçam. Esta última afirmação de Jesus é a expressão máxima do
paradigma da sua missão e do seu ministério de salvação627. Se até então Zaqueu
teve pouco em conta a sua eleição enquanto membro do povo hebraico, agora a
situação mudou radicalmente com a entrada de Jesus em sua casa. A partir deste
momento ele encontra-se na graça de Deus628.

623
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1522. Ver ainda: M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello
Balsamo 2015, 293.
624
  Cf. K. Rengstorf, Il vangelo secondo Luca, Brescia 1980, 361.
625
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 725.
626
  A propósito podemos recordar todo o capítulo 15 de Lc, sobretudo quando fala da ovelha perdi-
da e da dracma perdida: «4Qual é o homem dentre vós que, possuindo cem ovelhas e tendo perdido
uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto e vai à procura da que se tinha perdido, até a
encontrar? 5Ao encontrá-la, põe-na alegremente aos ombros 6e, ao chegar a casa, convoca os amigos
e vizinhos e diz-lhes: ‘Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida.’ 7Digo-vos Eu:
Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que
não necessitam de conversão. 8Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perde uma, não acende
a candeia, não varre a casa e não procura cuidadosamente até a encontrar? 9E, ao encontrá-la, convoca
as amigas e vizinhas e diz: ‘Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma perdida.’ 10Digo-vos: As-
sim há alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte» (Lc 15,4-10).
627
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1522-1523. Ver ainda: M. Crimella (a cura di), Luca, Cini-
sello Balsamo 2015, 294.
628
  Cf. K. Rengstorf, Il vangelo secondo Luca, Brescia 1980, 362.

253
Assim, Jesus apresenta-se como o modelo do ‘salvador’ e Zaqueu como o mo-
delo do ‘santo’. De facto, Zaqueu não só não cobrou impostos neste encontro com
Jesus, como, pelo contrário, descobriu como Deus ‘apaga’ as dívidas espirituais.
Aquele que foi enviado para buscar e salvar o que estava perdido – o filho do
homem – oferece uma esperança a quem lhe responde. A fé traz alegria, perdão,
humildade e transformação. Zaqueu simplesmente desejava ver Jesus, mas o en-
contro trouxe-lhe muito mais: trouxe Jesus a sua casa e, sobretudo, uma trans-
formação de vida629. Aqui não se pronuncia a palavra ‘perdão’ mas ‘salvação’.
Contudo, o perdão é um dos elementos essenciais da salvação. Assim, estamos
diante, sobretudo, de um relato de conversão630.
Com efeito, há duas leituras diferentes desta passagem, mas que se podem
completar: uma concerta-se na graça de Deus manifestada nesse dia com a pre-
sença salvífica do Filho do Homem (cf. v.10) – evidenciando arrependimento e
perdão; a outra sublinha o compromisso ético daquele que, em certo sentido,
‘trabalhou’ para a sua própria salvação (cf. v.8) – evidenciando as boas obras e a
recompensa. Na primeira perspectiva Zaqueu surge como um pecador despre-
zado; na segunda como um justo mal compreendido. Uma entende o v.8 como
um compromisso futuro que se concretiza ‘hoje’ (os verbos no presente tem aqui
o valor de um futuro imediato); a outra vê nesta perícopa um costume anterior
manifestado agora (aqui o tempo presente dos verbos tem um valor de duração,
de algo que é frequente ou se repete). No primeiro caso, Zaqueu é um ‘filho de
Abraão’, pois é um judeu verdadeiro; no segundo caso é declarado assim porque
reencontra, através do pecado, a redenção da promessa de Deus, beneficiando de
uma redefinição escatológica da descendência de Abraão631.
Quem faz da figura de Zaqueu o protagonista pessoal, diz que este texto é
um episódio biográfico, ou uma lenda pessoal, ou uma história de conversão,
ou um relato de busca. Quem valoriza as atitudes e sentenças do Mestre, fala
de uma história de Jesus. Já quem é sensível à polémica, situa este texto entre
os diálogos polémicos ou relatos apologéticos. Por fim, alguns exegetas acabam
por superar estas posições dizendo que este texto manifesta as características
de diferentes géneros literários: relato de conversão, de perdão, de salvação e de
controvérsia632.

629
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1524.
630
  Cf. A. George, El evangelio según san Lucas, Estella 19878, 63.
631
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001, 234-235.
632
  Ibidem, 236-237.

254
2.11. Jesus encontra-se com o ‘bom ladrão’ na cruz633
O texto de Lc (23,39-43)634 é mais completo do que os textos de Mc e de Mt,
que dizem apenas que Jesus foi crucificado entre dois ladrões635, o que nos leva
a considerar que Lc recorreu a outras fontes, tendo citado e adaptado material
próprio636. De facto, Lc não só faz referência a Jesus ter sido crucificado entre
dois malfeitores, como revela um encontro que assinala um processo de con-
versão e de oferta ‘inesperada’ de salvação. Apresenta um triângulo dramáti-

633
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: M. Mullins, The Gospel of Luke,
Dublin 2010, 500-501; F. Bassin, L’évangile selon Luc, II, Vaux-sur-Seine 2015, 183-188; M. Bilby, As
the Brandit Will I Confess You, Strasbourg 2013; P. Perotti, «Gesù e i due ‘ladroni’», BibOr 51 (2009)
133-146.
634
  Esta delimitação do texto que aqui fazemos prende-se com a intenção destes mesmo estudo. Com
efeito os exegetas apresentam diferentes unidades literárias. François Bovon apresenta a unidade – Lc
23,26-43, que intitulou «Vers la croix et sur la croix». Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-
24,53), IV, Genève 2009, 349. Darrell Bock refere uma unidade literária mais alargada – Lc 23,26-49,
intitulando-a apenas por «Crucifixion». Depois irá subdividir esta unidade em quatro partes: «To
Golgotha» (vv.26-32); «Crucifixion» (vv.33-38); «Two thieves» (vv.39-43); «Jesus’ death» (vv.44-49).
Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1836 e 1840. Roland Meynet considera uma unidade ainda
maior – Lc 23,26-56, que intitulou «Le roi des juifs, Christ de Dieu, est exécuté». Este exegeta francês,
apresenta depois sete subdivisões concêntricas: «Jésus est emmené au lieu du supplice» (vv.26-32);
«Crucifié, Jésus prie son Père» (vv.33-34); «Les juifs et les Romains en face de Jésus» (vv.35-37); «Ce
qui est écrit – ‘Celui-ci est le roi des juifs’» (este é o versículo central da apresentação concêntrica -
v.38); «Les deux brigands de chaque côte de Jésus» (vv.39-43); «Mourant, Jésus prie son Père» (vv.44-
46); «Jésus est déposé dans le tombeau» (vv.47-56). Cf. R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé
2011, 913. Matteo Crimella assume uma unidade literária mais pequena – Lc 23,32-49, que designou
simplesmente por «La crocifissione». Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015,
353. Joseph Fitzmyer faz uma grande unidade (Lc 22,39–23,56a), que intitulou «The Passion, Death,
and Burial of Jesus», onde integra esta unidade literária mais pequena – Lc 23,39-43 – que intitulou
«The Two Criminals on Crosses». Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New
York 1985, 1436-1531. Dado o sentido do nosso trabalho, nós assumimos aqui apenas a parte que
corresponde ao encontro de Jesus com os malfeitores (vv.39-43). Trata-se de uma subdivisão coerente,
dentro de todo o capítulo 23, que começa na condenação de Jesus, passa pela morte e termina na sua
sepultura. De facto, a nós interessa-nos analisar o encontro que Jesus teve e de que maneira é que esse
encontro é um sinal de esperança.
635
  Mc 15,27: «Com Ele crucificaram dois ladrões, um à sua direita e o outro à sua esquerda». BS. Mt
27,38: «Com Ele, foram crucificados dois salteadores: um à direita e outro à esquerda». BS. Assim se
realiza a profecia do Servo Sofredor: «foi contado entre os pecadores [ou malfeitores]» (Is 53,12). Cf.
R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 915. Ver ainda: J. Fitzmyer, The Gospel According to
Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1507.
636
  «Les différences de fond (il n’y a pas de bon larron chez Marc et Matthieu; il n’y a pas davantage,
chez eux, de dialogue entre les crucifiés) et de forme (le nom même de ‘Brigand’ est diferente ici et
là) sont telles que la plupart des partisans d’une dépendence lucanienne par rapport à Marc sont con-
traints d’admettre ici le recours à une autre source. Il y a donc lieu d’admettre que Luc ici (23,39-43)
cite et adapte son Bien propre». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009,
356. Ver ainda: J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1507.

255
co: dois homens malfeitores, ‘justamente condenados’ - (v.41a), e um homem,
completamente inocente – Jesus (v.41b). A palavra ‘malfeitor’ [κακούργων] é
a junção de duas outras palavras gregas: ‘mal’ ou ‘mau’ [κακόν] e ‘fazer’ ou
‘produzir’ [ἔργον]. Deste modo, estamos sempre a referirmo-nos a alguém que
‘faz o mal’637. A tradição ‘fixou’ a ideia de que estes ‘malfeitores’ eram ‘ladrões’,
sobretudo devido à expressão usada nos textos paralelos: ‘δύο λῃστάς’ (Mc
15,27) ou ‘δύο λῃσται’ (Mt 27,38) - que tem o sentido de ‘delinquente’, ‘bandi-
do’, ‘salteador’, ‘ladrão’638. Jesus estava assim crucificado entre dois ‘malfeito-
res’, que poderiam ser dois ‘ladrões’ ou, como defende Gerhard Lohfink, dois
‘terroristas’ e combatentes pela liberdade, que estavam presos juntamente com
Barrabás639. Mc diz que Barrabás foi «preso com os insurrectos que tinham
cometido um assassínio durante a revolta» (Mc 15,7). Lc reforça a mesma ideia
dizendo que foi «metido na prisão por causa de uma insurreição desencadeada
na cidade e por homicídio» (Lc 23,19).
Roland Meynet, a propósito do facto de Jesus ‘estar no meio de’ dois ‘malfei-
tores, diz que ele foi até ao fim o ‘sinal de contradição’ profetizado por Simeão
no início de evangelho: «Este menino está aqui para queda e ressurgimento de
muitos em Israel e para ser sinal de contradição» (2,34b). Os dois malfeitores
crucificados, um à direita e outro à esquerda, evocam todos aqueles que toma-
ram partido por ou contra Jesus durante a sua vida, os que o rejeitaram e os que
o seguiram640. Um ‘estar no meio’ que revela a tensão das opções e, ao mesmo
tempo, reforça a ideia de que, nessa ‘centralidade’ que Jesus crucificado é, está ‘o
caminho [ὁδός], a verdade [ἀλήθεια] e a vida [ζωή]’ (Jo 14,6a).
Se nos outros textos, sobre o episódio da paixão, se focalizam em Jesus, o
qual repercute a atenção sobre os outros, aqui acontece o contrário. Assistimos,
assim, a uma cena única nos evangelhos. Jesus está presente, mas mantém-se
mudo e inactivo, são os outros que confrontam a sua opinião sobre ele641. De
facto, os dois malfeitores, que foram ‘anunciados’ nos vv.32.33, tiveram atitu-

637
  Cf. C. Rusconi, «κακοῦργος», in DGNT, São Paulo 2003, 247. Α palavra κακός tem sobretudo dois
grandes sentidos: um sentido material (‘mau’, ‘nocivo’, ‘perigoso’, ‘pernicioso’) e um sentido moral
(‘mau’, ‘malvado’, ‘perverso’, ‘mal’, ‘crime’, ‘pecado’). Id., «κακός», in DGNT, São Paulo 2003, 246.
Já a palavra ἔργον significa: ‘ação’, ‘operação’, ‘trabalho’, ‘obra’, ‘produção’ e ‘empreendimento’. Id.,
«ἔργον», in DGNT, São Paulo 2003, 197.
638
 Id., «λῃστής», in DGNT, São Paulo 2003, 286.
639
  Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 345.
640
  Cf. R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 919.
641
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 372.

256
des diferentes. O primeiro continuava a ‘insultar’642 Jesus: o seu insulto era um
misto de escárnio e irreverência, que unia o título messiânico e a constatação
da incapacidade de se salvar a si mesmo - «Não és Tu o Messias643? Salva-te a
ti mesmo e a nós também» (v.39b). Esta provocação faz-nos recordar os in-
sultos anteriores dos ‘chefes’: «Salvou os outros; salve-se a si mesmo, se é o
Messias de Deus, o Eleito» (v.35b)644. Por oposição, o outro malfeitor contrapõe
dizendo que Jesus era inocente (v.41b), como aliás já Pilatos tinha declarado (cf.
23,4.14.16645) e também Herodes (cf. 23,15)646.
O ‘bom ladrão’, que a tradição conhece como Dimas647, na reprovação que
faz das palavras do seu colega, começa por fazer referência ao ‘temor de Deus’
(v.40b) que não diz apenas respeito à diferença entre Deus e o homem, mas tam-
bém à capacidade de distinguir a abissal diferença entre inocência e culpa648. Ao
reconhecer a sua culpabilidade, segundo alguns autores, está a expressar impli-
citamente a sua metanóia diante de Deus649. Na tradução diz-se que Jesus «nada
fez de mal650» (v.41b). A grega é ἄτοπον que à letra se traduziria ‘nada fora do

642
  Mantemos a tradução portuguesa ‘insultava-o’, sublinhando que a palavra original ἐβλασφήμει é
uma forma verbal de βλασφημέω - que significa ‘blasfemar’, ‘maldizer’ e ‘injuriar’. Cf. C. Rusconi,
«βλασφημέω», in DGNT, São Paulo 2003, 99. Joseph Fitzmyer suporta a versão portuguesa ao traduzir
‘insulting him’. Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1507.
Matteo Crimella também traduz com o memos sentido: «lo insultava». Cf. M. Crimella (a cura di),
Luca, Cinisello Balsamo 2015, 357. Já François Bovon traduz por «l’injuriait». Cf. F. Bovon, L’Évangile
selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 349.
643
  Não deixa de ser interessante que a palavra grega seja Χριστός. Apesar disso todas as traduções
que aqui seguimos traduzem, não por Cristo, mas como Messias, como sugere a edição portuguesa.
644
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1509.
645
  «This is [v.41] the sixth confession of Jesus’ innocence from a third source (Pilate and Herod also
called Jesus innocent; Luke 23,4.14.15 [twice].22)». D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1856.
646
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 356.
647
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1509. A literatura
apócrifa, para além do nome do ‘bom ladrão’ (Dimas), também indica o nome do ‘mau ladrão’, como
sendo Gestas. Esta indicação teria aparecido, pela primeira vez, no evangelho de Nicodemos.
648
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 356.
649
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1509.
650
  Apesar de ter um sentido semelhante, sugerimos esta possibilidade, mais próxima da expressão
grega οὐδὲν ἄτοπον ἔπραξεν, em vez da tradução portuguesa que diz ‘nada praticou de condenável’.
De facto, a palavra ἄτοπον pode significar ‘insólito’, ‘extraordinário’, ‘anómalo’, ‘perverso’ e ‘culpável’.
Cf. C. Rusconi, «ἄτοπον», in DGNT, São Paulo 2003, 84. François Bovon suporta a nossa opção ao
traduzir: «n’a rien fait de mal». Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009,
349. Matteo Crimella traduz: «non há fatto nulla di sconveniente». Cf. M. Crimella (a cura di), Luca,
Cinisello Balsamo 2015, 357. Já Joseph Fitzmyer opta por traduzir: «this man has done nothing impro-
per». Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1507.

257
lugar [ἀ+τόπον]’ (cf. Pr 30,20; 2Mac 14,23; At 25,5; 28,6)651. Trata-se de uma nova
declaração de inocência652.
Depois de ter repreendido o seu companheiro, o ‘bom ladrão’ dirige-se a Je-
sus num diálogo surpreendente. Começa por chamar Jesus [’Ιησοῦ - v.42] sim-
plesmente pelo seu nome – o que é único no NT653. Outros, quando se referiam
a Jesus, juntavam sempre ao nome próprio o título (Jesus Nazareno - 4,34; Jesus,
Filho de Deus Altíssimo – 8,28; Jesus Mestre – 17,13; Jesus, Filho de David –
18,38)654. Mas este ‘bom ladrão’ não só se refere a Jesus pelo nome, como lhe
faz um pedido: «lembra-te de mim [μνήσθητί μου], quando entrares655 no teu
Reino [βασιλείαν]» (v.42). Este ‘lembra-te’, que é o imperativo aoristo do verbo
μιμνῄσκομαι, revela que a ‘recordação’ que ele solicita não é evidentemente pas-
siva, antes significa uma intervenção privilegiada, essencialmente de protecção e
de salvação656.
Ainda hoje a linguagem quotidiana mantem, em parte, este sentido quando
alguém diz ao outro que foi, por exemplo promovido, ‘quando chegares lá, lem-
bra-te de mim’. Dentro desta expressão não está apenas o desejo de não ser esque-
cido, mas a expectativa de que a recordação traga ‘benefícios’ e ‘privilégios’. Neste
mesmo sentido, podemos ler o que José disse ao ‘copeiro-mor’ do Faraó: «Se te
lembrares de mim, quando fores ditoso, presta-me, por favor, um bom serviço:
fala de mim ao faraó e faz-me sair desta prisão» (Gn 40,14). Todavia, diz o tex-
to: «o copeiro-mor não se lembrou mais de José e esqueceu-se dele» (Gn 40,23).

651
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 356.
652
  «This becomes yet another declaration of Jesus’ innocence». J. Fitzmyer, The Gospel According to
Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1509.
653
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 982.
654
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 356. «Le bon larron est le seul person-
nage de tout l’Évangile de Luc – et même des quatre évangiles – qui s’adresse au Seigneur en utilisant
seulement son nom ‘Jesus’. (...) Le nom de ‘Jésus’ signifie ‘sauveur’, c’est son plus beau titre; le bon lar-
ron n’a pas besoin d’en invoquer un autre». R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 920. Ver
ainda: F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 373.
655
  Preferimos esta tradução à opção da tradução portuguesa que diz ‘quando estiveres’. A palavra
original ἔλθῃς é uma forma do verbo ἔρχομαι, que significa sobretudo ‘vir’, ‘chegar’ e ‘alcançar’. Este
verbo também pode ter o sentido de ‘voltar a casa’ ou ‘retornar à patria’. Cf. C. Rusconi, «ἔρχομαι», in
DGNT, São Paulo 2003, 199. Talvez procurando expressar melhor este sentido, Joseph Fitzmyer optou
por traduzir: «When you come into your kingdom». Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke
(X-XXIV), II, New York 1985, 1507. François Bovon reforça a ideia traduzindo: «quand tu viendras
dans ton royaume». Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 349. Mat-
teo Crimella mantém a ideia ao traduzir: «quando giungerai nel tuo Regno». Cf. M. Crimella (a cura
di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 357.
656
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 373.

258
Aqui o sentido e o contexto é da morte e da salvação. Por isso, já não falamos de
‘benefícios’ materiais mas espirituais. Tal como pede o salmista: «Lembra-te de
mim, Senhor, por amor do teu povo. Vem trazer-me a tua salvação» (Sl 106,4).
O malfeitor pede a Jesus que se lembre dele, talvez porque pensa que o destino de
Jesus podia ser diferente do seu. Este seu pedido baseia-se no título que atribuem
a Jesus no letreiro que preside à cruz: «Este é o rei dos judeus» (v.38b)657.
Jesus, diante deste pedido, mesmo agonizando na cruz, oferece-lhe a salva-
ção. Um último gesto de ‘misericórdia’ que superou, em muito, o pedido. A res-
posta de Jesus foi lapidar e introduzida pelo solene «em verdade te digo [ἀμήν σοι
λέγω]» (v.43a)658, que reforça a autoridade de quem fala. O pedido foi largamente
superado pela promessa: «hoje estarás comigo no Paraíso659» (v.43b). Este ‘hoje’
[σήμερον] é muito importante. François Bovon, diz que este ‘hoje’ revela a ‘en-
tronização messiânica’ da salvação não para um tempo distante, mas para a pro-
ximidade de um ‘hoje’660. No entanto, este ‘hoje’ não se refere ao ‘dia concreto da
crucifixão’, mas ao dia da ‘salvação messiânica inaugurada pela’ morte de Jesus.
Nesse mesmo dia, o malfeitor participará plenamente da condição ‘real’ de Jesus
– no paraíso661.
Este paraíso é o lugar definitivo que Deus prepara para os seus santos. Um
lugar de paz e de salvação onde os justos se encontram depois da morte. Não
deixa de ser interessante referir que a palavra ‘paraíso’ [παραδείσῳ] vem do persa
e quer dizer ‘jardim’ ou ‘parque’. Neste sentido, a expressão recorda o jardim do
Eden (Gn 2,8)662 e a relação pessoal, presente na expressão ‘estarás comigo’, refor-

657
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1510.
658
  Esta mesma expressão ἀμήν σοι λέγω surgiu com o mesmo sentido noutros lugares do evangelho
de Lc como 4,24; 12,37; 18,17.29; 21,32. Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1857.
659
 Matteo Crimella sugere aqui, de forma inesperada, uma interessante tradução: «oggi sarai con
me, cioè nel paradiso». Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 357. Contudo,
mantemos versão da tradução portuguesa, não só porque não encontrámos essa possibilidade noutras
traduções, mas também porque o texto grego não induz essa solução. A expressão grega ἐν τῷ é mais
‘em o’ (= ‘no’) do que ‘isto é’.
660
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 374. Este ‘hoje’ ocorre
também em 2,11; 4,21; 5,26; 13,32-33; 22,34.61. Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1857. Este ‘hoje’
surge como uma atualização do tempo da salvação no presente. Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma
20125, 982.
661
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1510. Na página se-
guinte, este mesmo autor, refere que a união do ‘hoje’ com ‘no paraíso’ cria problemas quando se tenta
relacionar esta passagem com o artigo do Credo – ‘desceu aos infernos’.
662
  Gn 2,8: «Depois, o Senhor Deus plantou um jardim no Éden, ao oriente, e nele colocou o homem
que tinha formado». BS.

259
ça a ideia de um lugar paradisíaco onde Deus e o homem estão definitivamente
juntos663. Àquele que estava verdadeiramente ‘com’ Jesus na cruz, o bom ladrão,
é-lhe prometido continuar com ele no paraíso664. Assim, o termo ‘paraíso’ e, so-
bretudo, a realidade que representa são retomados pelos judeus amantes da apo-
calítica. Neste âmbito, o vocábulo pode ser um equivalente semântico do Reino
de Deus ou do festim escatológico, mas também pode designar a morada feliz dos
justos que morreram e que esperam a ressurreição final665.
Assim, como afirma Roland Meynet, o primeiro a entrar com Jesus no reino
de Deus será um criminoso que, pela sua própria confissão, merece a condena-
ção. Trata-se de um modelo para todos aqueles que estivessem tentados a pensar
que a sua situação é irremediavelmente desesperada. O amor de Deus é mais
forte do que a morte666. Não há promessa divina mais tranquilizadora que este
‘estarás comigo’. ‘Estar com’ é uma constante da fidelidade divina daquele que é o
‘Emanuel’ - ‘Deus connosco’ (Mt 1,23b - uma citação de Is 7,14b)667. Mt, que apre-
senta este ‘Deus connosco’ no início do seu evangelho, decide terminar o mesmo,
com a promessa de Jesus ressuscitado: «sabei que Eu estarei sempre convosco até
ao fim dos tempos» (Mt 28,20b). Aqui em Lc Jesus promete ao ‘bom ladrão’ que
ele estará com ele no paraíso para sempre.
Neste caso, podemos falar do ‘último milagre’ de Jesus que nasce da com-
paixão e da misericórdia. Nas palavras de Darrell Bock, a esperança é alcançada
pela confissão e pela compaixão do Messias668. Uma vez mais, o ´divino’ rompe
com todas as lógicas ‘humanas’ e parece ignorar a ‘justiça’ (ou atravessa-a para
a elevar), excedendo-se no amor. O milagre acontece e a vida do ‘ladrão’ muda,
no último minuto, quando parecia que já estava tudo consumado, um ladrão
(pelo menos) é ‘salvo’. Jesus na cruz viu a possibilidade de futuro daquele homem
(justamente) condenado. Como teria sido diferente se aquele ‘ladrão’ não tivesse
feito um pedido!? Sobretudo, como teria sido diferente a sua vida se Jesus não

663
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 356-357.
664
  Cf. R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 920.
665
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 374-375. Há quem defenda
que nesta passagem de Lc a palavra ‘paraíso’ não quer referir imediatamente ‘céu’ ou ‘lugar de supre-
ma bem-aventurança’, mas morada dos justos depois da morte. Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According
to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1510-1511.
666
  Cf. R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 920. A expressão final ‘o amor de Deus é mais
forte do que a morte’, recorda-nos a passagem dos Cânticos dos Cânticos, onde, em rigor, se diz que o
amor é tão forte quanto a morte: «porque forte como a morte é o amor» (Cant 8,6b).
667
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 374.
668
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1857-1858.

260
estivesse ali!? Esta ‘terceira’ cruz, no Calvário, manifesta o ‘terceiro’ como espaço
de abertura, de revelação e de plenitude669.
Este milagre de ‘estar-com’ (compaixão como ‘sofrer-com’) os ‘condenados’
mesmo quando não se pode fazer mais nada - já é fazer muito. ‘Estar com’ é
sair e fazer sair o outro da condenação existencial que a solidão é. Este calvário
onde Jesus se encontra convoca-nos para a certeza de um Deus que não nos
abandona nem nos deixa sós diante das nossas dificuldade e da nossa própria
morte. Jesus também sentiu que a sua solidão era acompanhada – não só pelos
dois ladrões, a sua mãe, irmã da sua mãe, Maria, a mulher de Clopas, Maria
Madalena e o discípulo amado (cf. Jo 19, 25-26) – mas também pelo Pai e pelo
Espírito670. A cruz é esse ‘sofrer em comunhão’. Efetivamente, Jesus, antes de
morrer, «clamou com voz forte: ‘Eli, Eli, lemá sabactháni?’, isto é: ‘Meu Deus,
meu Deus, porque me abandonaste?’» (Mt 27,46). Este grito na cruz faz eco do
grito da angústia do Salmo 22671. Jesus não está só. «Sofrer em comunhão é
muito diferente de sofrer em solidão»672. Do grito de ‘abandono’ do Pai chega-
mos ao grito de um ‘abandonar-se’ ao Pai, ou seja, de «Meu Deus, meu Deus,
porque me abandonaste?» (Mt 27,46b) somos conduzidos ao «Pai, nas tuas
mãos entrego o meu espírito» (Lc 23,46b).
Por tudo o que foi dito, conclui-se que este episódio revela a maneira que Lc
tem para apresentar o aspeto salvífico da morte de Jesus: a sua condição, que será
confirmada quando ‘entrar na sua glória’ (24,26), não deixará de ter um efeito
salvífico sobre o sofrimento concreto dos seres humanos, inclusive dos malfeito-
res crucificados. Aí está resumida a ‘teologia da cruz’ de Lc que revela o caráter
salvífico da crucifixão e morte de Jesus. De facto, entre os evangelistas, Lc é o que

669
 Matteo Crimella fala do recurso comum em Lc ao que define como ‘triângulo dramático’. Ou
seja, são apresentadas duas personagens em contraposição antitética que depois serão confrontadas
com um ‘terceiro’. Esta terceira personagem – Jesus, será o ‘lugar’ da superação da tensão, criando
novidade e abrindo o horizonte da narração. Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo
2015, 14-15.
670
  «Podemos dizer, então, que Jesus atravessou a porta da nossa solidão extrema quando, na sua
Paixão, se fundou no abismo da nossa sensação de abandono. Onde já não se faz ouvir nenhuma voz é
onde Ele está. Com isso, o inferno foi vencido, ou melhor: a morte, que antes era o inferno, deixou de
existir. Morte e inferno deixaram de ser a mesma coisa, porque no meio da morte passou a haver vida,
porque agora o amor mora no meio dela. O único inferno que continua a existir é o encerramento
voluntário de si próprio». J. Ratzinger, Introdução ao Cristianismo, Cascais 2005, 218.
671
  Sl 22,2-3: «2Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste, rejeitando o meu lamento, o meu grito
de socorro? 3Meu Deus, clamo por ti durante o dia e não me respondes; durante a noite, e não tenho
sossego». BS.
672
 F. Varillon, O sofrimento de Deus, Braga 1996, 71.

261
afirma com maior clareza que o destino do cristão transcende esta vida e, inclusi-
ve, a morte, que lhe põe fim. Assim, nesta passagem, o autor, aproveita os insultos
feitos a Jesus crucificado para os transformar numa manifestação de perdão e de
misericórdia. Afinal, não podia permitir que a cena terminasse num tom negati-
vo. Pelo contrário, o episódio constitui uma afirmação implícita da vitória sobre
a morte que experimentará o próprio Jesus, porque o malfeitor arrependido vai
estar com ele ‘no paraíso’ – ou seja, vai participar na sua vitória673. É sobretudo a
revelação de uma esperança aberta a todos, por mais afastados que estejam, uma
revelação ‘plástica’ da misericórdia de Deus diante do que está perdido674.

2.12. Jesus ressuscitado encontra-se com os discípulos de Emaús675


Este encontro, que encontramos unicamente em Lc 24,13-35676, está precisa-
mente entre a ida das mulheres (e de Pedro) ao sepulcro (vv.1-12) e a aparição de
Jesus ressuscitado aos Onze (vv.36-43). Deste modo, o evangelista começa por
conduzir o leitor ao túmulo. Um túmulo que, apesar de não ter o corpo de Jesus,
não está vazio. São muitos os sinais da ressurreição testemunhados pelas mulhe-
res: ‘a pedra removida’ (v.2), a ‘ausência do corpo de Jesus’ (v.3), os ‘dois homens
em trajes resplandecentes’ (v.4), as frases que estes lhe disseram - «Porque buscais

673
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1508-1509.
674
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 979.
675
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: M. Mullins, The Gospel of Luke,
Dublin 2010, 511-516; F. Bassin, L’évangile selon Luc, II, Vaux-sur-Seine 2015, 228-236; E. Hartlieb,
C. Richter (eds), Emmaus – Begegnung mit dem Leben, Stuttgart 2014; B. Bucur, «Blinded by Invisi-
ble Light. Revisiting the Emmaus Story (Luke 24,13-35)», ETL 90 (2014) 685-707; P.A. Vicente, «Espe-
ranza y fe en Jesucristo», SalT 101 (2013) 207-219; M. Crimella, «The Transformation of Characters
in Lk 24», RevBib 119 (2012) 173-185; J.B. Chance, «The Journey to Emmaus», PRSt 38 (2011) 363-381;
H. Deuser, «Geistesgegenwart. Pneumatologie und Kategoriale Semiotik», in ZNT 13 (2010) 78-85;
T. Esposito, «The Way from Emmaus to Us», Com(US) 37(2010) 129-148.
676
  A nossa proposta de delimitação desta perícopa (Lc 24,13-35) é suportada por vários exegetas.
Joseph Fitzmyer intitulou esta unidade literária de «Jesus Appears on the Road to Emmaus». Cf. J.
Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1553. Darrell Bock designou
esta mesma passagem de «Emmaus Road and a Meal of Discovery». Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan
1996, 1903. François Bovon designou esta unidade simplesmente por «Les disciples d’Emmaüs». Cf.
F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 431. Matteo Crimella também
intitulou simplesmente por «I due discepoli di Emmaus». Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello
Balsamo 2015, 366. Apenas Roland Meynet propõe uma pequena alteração nesta unidade literária,
sugerido apenas do v.13 ao v.33a, que intitulou «Le chemin des disciples d’Emmaüs». Os vv.33b-35
seriam uma primeira parte (que designou - «Les disciples s’annoncent la résurrection de Jésus») da
segunda unidade literária desta capítulo – do v.33b ao v.53 (que intitulou - «Les témoins de la résur-
rection»). Cf. R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 940 e 951-952.

262
o Vivente entre os mortos?» (v.5b) e «Não está aqui; ressuscitou!» (v.6a). O autor
diz-nos ainda que Pedro, depois da informação partilhada pelas mulheres, tam-
bém foi ao túmulo e ‘viu apenas as ligaduras’. Todos estes elementos nos falam de
um túmulo cheio de sinais que nos ‘abrem’ à possibilidade da ressurreição. Em
todo este relato, como sublinha Edward Schillebeeckx, não se fala nunca de um
cadáver (que existe ou que não existe) mas do pensamento das mulheres que não
vão à procura de um vivo, mas de um morto. Este será o seu erro principal. Um
vivo não se procura entre os mortos (cf. v.5b)677. No entanto, nestes primeiros ver-
sículos não temos nenhum ‘encontro’ com o ressuscitado. É aqui que entram os
dois episódios seguintes: a aparição de Jesus ressuscitado aos discípulos de iam a
caminho de Emaús (vv.13-35) e a aparição do mesmo Jesus ressuscitado aos Onze
e aos seus companheiros reunidos em Jerusalém (vv.36-43)678.
No comentário a esta passagem Joseph Fitzmyer sugere uma subdivisão desta
unidade em quatro partes: o encontro entre Jesus e os dois discípulos (vv.13-16);
o diálogo durante o caminho (vv.17-27); a ceia na casa dos dois discípulos em
Emaús (vv.28-32); e o regresso a Jerusalém (vv.33-35)679. Todo este texto, segun-
do François Bovon (seguindo autores como Joseph Fitzmyer680), é fruto de uma
adaptação lucana de uma história proveniente da tradição oral, posteriormente
registada por escrito pelo autor do material próprio681. Neste contexto, podemos
pensar que o evangelista Mc faz uma breve referência a este episódio, depois de
falar da aparição de Jesus ressuscitado a Maria Madalena e antes de aparecer ao
Onze, quando diz: «Depois disto, Jesus apareceu com um aspeto diferente a dois
deles que iam a caminho do campo. Eles voltaram para trás a fim de o anunciar
aos restantes» (Mc 16,12-13a).
De facto, todo este texto está marcado pela ideia de ‘estarem a caminho’. Tam-
bém aqui, como noutras passagens de Lc, a perspetiva geográfica está subordina-
da à visão teológica de Lc. Os discípulos ‘vão a caminho’ [πορευόμενοι] (v.13), o
próprio Jesus põe-se a ‘caminhar com eles’ [συνεπορεύετο] (v.15). Podemos jun-

677
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 277.
678
  «O capítulo 24 é um tríptico sobre a Ressurreição (1-12; 13-35; 36-53) no qual a ‘narrativa de Emaús
é uma unidade de passagem que faz contemporaneamente de eixo no caminho penoso da narrativa de
todo o capítulo. (...) As três unidades do capítulo 24 situam-se, do ponto de vista temporal, num único
dia, o primeiro da semana (v.1) e, do ponto de vista temático, apresentam uma evidente continuidade
e progressão». J.A. Correia, «O caminho do reconhecimento e do anúncio», in Theol. 36 (2001) 360.
679
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1559-1560.
680
  «The use of ‘Mk’ by Luke has come to an end. If there is any tradition behind the Lucan appearance
stories, it comes to the evangelist from ‘L’». Ibidem, 1554.
681
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 440.

263
tar ainda a expressão ‘no caminho’ [ἐν τῇ ὁδῷ], que parece duas vezes no texto
(vv.32.35), referindo-se ao momento em que Jesus lhes explicava as Escrituras682.
Trata-se, por isso, de apresentar uma aparição de Jesus ressuscitado, por um lado,
como o ápice do caminho que o próprio Lc sugere ao longo de todo o evangelho
- de ‘Nazaré a Jerusalém’; por outro, como paradigma do próprio ‘caminho’: do
caminho das comunidades cristãs e do caminho que cada cristão tem de percor-
rer683. Todo este itinerário de Emaús, ainda que com muitas reservas, que pode
ser relido à luz da ideia da celebração da eucaristia, com a utilização e explicação
dos textos do AT (liturgia da palavra), com as palavras bênção e o gesto da fração
do pão (liturgia eucarística) e com a proclamação da fé na ressurreição684.
A nossa perícopa começa com a expressão «Nesse mesmo dia» [ἐν αὐτῇ τῇ
ἡμέρᾳ] (v.13a). De que dia estamos a falar? Do dia em que as mulheres e Pedro
foram ao sepulcro e não encontraram o corpo do Senhor. Joseph Fitzmyer recor-
da-nos o início deste capítulo onde podemos concluir que este ‘dia’ é o ‘primeiro
da semana’ (v.1) - unindo assim esta aparição de Jesus ressuscitado ao dia em que
se descobre que o corpo não está no túmulo685. Estabelece-se, assim, não só uma
ligação temporal entre os dois ‘episódios’ mas também, e sobretudo, uma relação
de sentido teológico e literário.
Depois desta indicação686, o evangelista diz-nos que dois discípulos687 iam a
caminho de uma cidade chamada Emaús. Estes discípulos não fazem parte do
grupo dos Doze - pelo menos Cléofas688, já que o outro não sabemos quem é. Por

682
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1557-1558. Das várias
passagens no AT que podemos relacionar com a ideia de ‘Deus’ que se revela ‘no caminho’, há uma
que se destaca e que não podemos deixar de referir aqui – quando Deus apareceu a Abraão junto ao
carvalho de Mambré (Gn 18,1-15). Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 366.
683
  Aqui, faz sentido recordar a resposta de Jesus a Tomé quando este lhe perguntou por onde era o ca-
minho: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir até ao Pai senão por mim» (Jo 14,6).
684
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1560.
685
  Ibidem, 1560.
686
  Na verdade o texto grego tem outra ordem: começa por dizer ‘dois deles [dos discípulos]’, depois
diz ‘naquele mesmo dia’ e em seguida conclui que ‘estavam a caminhar para uma aldeia à distância de
sessenta estádios de Jerusalém’.
687
  O motivo de dois personagens é frequente em Lc - indicamos alguns exemplos: João Batista envia
dois dos seus discípulos para saber informações sobre Jesus (7,18); Jesus designa os seus discípulos e
envia-os dois a dois (10,1); envia dois discípulos para trazer um jumento para a sua entrada messiância
em Jerusalém (19,29); no dia dos Ázimos envia Pedro e João a preparar a Páscoa (22,8); dois malfeito-
res são condenados com Jesus (23,32); e dois anjos testemunham que ele está vivo na manhã de Páscoa
(24,4). Não podemos esquecer que o ‘testemunho’ só é válido e credível se for de, pelo menos, duas
pessoas. Cf. J.A. Correia, «O caminho do reconhecimento e do anúncio», Theol. 36 (2001) 374-375.
688
  Este nome Cléofas [Κλεοπᾶς] é um diminutivo do grego Cleópatros [Κλεόπατρος], forma mas-

264
isso, poderiam ser do grupo dos setenta e dois mencionado anteriormente: «De-
pois disto, o Senhor designou outros setenta e dois discípulos e enviou-os dois a
dois, à sua frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir» (10,1). Pode-
mos dizer que estes dois discípulos fariam parte do grupo de «todos os restantes»
(24,9c) a quem as mulheres contaram o que viram quando chegaram ao túmulo,
como depois irão referir nos vv.22-23. François Bovon refere que habitualmente
a tradição apresentou o companheiro de Cléofas como um outro homem, ainda
que não indique o seu nome. Contudo, recorda o exegeta francês que o evange-
lista gosta de apresentar a ‘complementaridade’ – um homem e uma mulher (cf.
1,5-38; 15,3-10). Por isso, conclui, que Lc pode ter imaginado que a segunda pes-
soa tivesse sido uma mulher689. Porque não considerar a hipótese de ser a própria
mulher de Cléofas!
O evangelista diz-nos que a cidade de Emaús «ficava a cerca de sessenta está-
dios690 de Jerusalém» (v.13b). Se tivermos em conta que cada ‘estádio’ são 185 me-
tros, então estamos a falar de 11km e 100m. No entanto, alguns códices (poucos
mas não os de menor importância - como o Sinaítico) falam em 160 estádios –
cerca de 30km (29km e 600m). É verdade que o termo Emaús [Ἐμμαοῦς]691 signi-
fica ‘fonte’ ou ‘fonte quente’, mas também é evidente que muitos lugares podiam
ter esse nome692. Destacamos, sobretudo, duas possibilidades. Uma primeira se-
ria uma cidade Emaús (ou Amaús), que mais tarde foi chamada Nicopolis, mas
esta está a 176 estádios de Jesrusalém, ou seja, a 32km e 560m. Provavelmente
será esta cidade a que surge duas vezes citada no primeiro livro de Macabeus:
«Puseram-se a caminho com todas as suas tropas e acamparam na planície perto
de Emaús» (1Mac 3,40) e «Os israelitas levantaram, em seguida, os seus arraiais,
e vieram acampar ao sul de Emaús» (1Mac 3,57). A segunda possibilidade seria

culina de ‘Cléopatra’. Alguns associam este nome com Clopas, marido de uma das Marias que estava
junto à cruz de Jesus: «Junto à cruz de Jesus estavam, de pé, sua mãe e a irmã da sua mãe, Maria, a
mulher de Clopas, e Maria Madalena» (Jo 19,25). Mas na verdade não tem nada a ver com essa perso-
nagem. Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1563.
689
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 440-441.
690
  Reforçamos esta opção também presente na tradução portuguesa. O texto original diz σταδίους
ἑξήκοντα, ou seja, ‘sessenta estádios’. Vários exegetas suportam a nossa opção. François Bovon traduz:
«soixante stades». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 431. Matteo
Crimella traduz por «sessanta stadi». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 367. No
entando, Joseph Fitzmyer traduz de maneira diferente: «seven miles». J. Fitzmyer, The Gospel Accor-
ding to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1553.
691
  A palavra Ἐμμαούς vem do hebraico ‫‘[ ַע ָמּאוּס‬ammā’ûs] traduz-se por Emaús. Cf. C. Rusconi,
«Ἐμμαούς», in DGNT, São Paulo 2003, 165.
692
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 441.

265
outra Emaús, chamada posteriormente Kolonieh (do latim colonia), mas situa-
-se a 35 estádios de Jerusalém, ou seja, a 6km e 475m. É possível que Lc, ou a
tradição que ele seguiu, tenha confundido os dois lugares693. Admitir a primeira
possibilidade revela, contudo, a dificuldade de conciliar, num único dia, todos os
acontecimentos narrados em Lc 24694.
No versículo seguinte (v.14) diz-se que estes dois discípulos enquanto cami-
nhavam ‘conversavam’ [ὡμίλουν] sobre tudo o que tinha acontecido. O verbo
ὁμιλέω significa ‘ser em relação’, ‘frequentar’ e, só depois, ‘discorrer’ ou ‘conver-
sar’. O tempo imperfeito, que Lc usa aqui, sublinha que se trata de uma conversa
prolongada695. Provavelmente estariam a falar do que tinha acontecido nos últi-
mos dias em Jerusalém especialmente no que as mulheres e Pedro lhes tinham
contado naquela manhã. Talvez seja interessante pensar na razão pela qual não
foram também eles ao túmulo ‘confirmar’ as informações. Sobretudo, devemos
sublinhar, como faz Roland Meynet, que estes dois discípulos se separaram dos
outros e abandonaram o grupo dos apóstolos696. Deixar o grupo, não estar reu-
nido com os discípulos, como tinha acontecido a Tomé, ‘favorece’ a descrença, a
desilusão e a desesperança.
Enquanto conversavam e discutiam aproximou-se ‘o próprio’ [και αὐτός]
Jesus e pôs-se a caminhar com eles (v.15). Um inesperado companheiro de via-
gem! Assim, aos dois discípulos junta-se agora uma terceira personagem, crian-
do ‘triângulo dramático’ capaz de ‘abrir’ o diálogo e o ‘horizonte’ do caminho697.
Esta terceira personagem vem de trás e alcança-os como se fosse outro peregri-

693
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 366-367. François Bovon indica mais
três possibilidades, para além destas duas. Mas trata-se sempre de ‘teorias’, algumas das quais com
pouca sustentabilidade. Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 441-
442. Ver ainda: J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1561-1562.
Darrell Bock fala ainda de outro lugar. Ele diz que os cruzados consideraram ‘el-Qubeibeh’ como
Emaús e, em 1099, estabeleceram aí um forte que chamaram «Castellum Emmaus». Embora locali-
zado à distância certa de Jerusalém (cerca de sessenta e três estádios), a localização não é atestada no
primeiro século, o que torna a identificação menos provável. Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996,
1908. Ver ainda: G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 1021.
694
  Cf. J.A. Correia, «O caminho do reconhecimento e do anúncio», Theol. 36 (2001) 367.
695
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 367. O verbo ὁμιλέω significa fun-
damentalmente: ‘conversar’, ‘falar’ e ‘entreter-se’ – ‘com alguém’ ou ‘sobre algo’. Cf. C. Rusconi,
«ὁμιλέω», in DGNT, São Paulo 2003, 331. Já o substantivo deverbativo (isto é, que decorre do verbo)
ὁμιλία significa sobretudo: ‘conversação’, ‘entretenimento’ e ‘companhia’. Id., «ὁμιλία», in DGNT, São
Paulo 2003, 331.
696
  Cf. R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 951.
697
 Matteo Crimella sublinha a importância da ‘terceira’ personagem no evangelho de Lc, como também
aconteceu na cruz, por exemplo. Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 14-15.

266
no que regressava a casa, depois de ter celebrado a Páscoa em Jerusalém698. Aqui,
numa técnica literária hábil, o narrador fornece ao leitor uma informação fun-
damental que é ‘ignorada’ pelos dois discípulos – alguns exegetas designa esta
técnica como ‘fenómeno de opacidade’. De facto, o narrador revela-nos a iden-
tidade do misterioso peregrino, o que cria um desequilíbrio: ‘privilégio’ para
uns e ‘penalização’ para outros. Deste modo, o leitor sabe mais que as próprias
personagens – criando-se assim uma situação de verdadeira ironia dramática
essencial para a evolução da própria narrativa699. «O ausente (v.6) faz-se velada-
mente presente (v.15)»700.
Com efeito, Aquele que eles pensavam que estava morto agora caminha ao
seu lado e com eles. Mas eles, diz o evangelista aos leitores, não o reconheceram
[ἐπιγνῶναι] (v.16) - ou melhor, ou seus olhos estavam impedidos de o reconhe-
cer701. Estavam interiormente cegos apesar de o verem. A dor e a desesperança
cegou-os tanto que eles foram incapazes de reconhecer o rosto e a voz do mes-
tre – como se tivessem perdido a memória702. Assim, o autor coloca-nos, a nós
leitores, diante da tensão entre ‘presença’ e ‘reconhecimento’. François Bovon
sublinha que a voz passiva ἐκρατοῦντο, que se pode traduzir por ‘foram força-
dos’ ou ‘estavam impedidos’, é hábil porque o autor sugere, deste modo, tanto
a debilidade humana como a força divina, preparando de antemão a conclusão
do episódio703.
Feita esta ‘introdução’, o evangelista apresenta-nos o diálogo entre Jesus e os
dois discípulos. Tudo começa com uma pergunta704. Uma pergunta feita por Jesus

698
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1563. Darrell Bock
corrobora a mesma ideia da possibilidade de ser outro peregrino: «They probably think that he is ano-
ther worshiper returning home from Jerusalem». D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1909.
699
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 367-368.
700
 J.A. Correia, «O caminho do reconhecimento e do anúncio», Theol. 36 (2001) 363. Naquela ma-
nhã, ‘o primeiro dia da semana’, as mulheres tinham ido ao túmulo (v.1), mas não ‘acharam’ o corpo
de Jesus (v.3), então uns ‘anjos’ disseram-lhes «Porque procurais o Vivente entre os mortos?» (v.5b) e
concluíram «Não está aqui; ressuscitou!» (v.6a).
701
  Tal como estes discípulos viam Jesus ressuscitado mas não o reconheceram, assim também Ma-
ria Madalena tinha visto Jesus ressuscitado e não o reconheceu, confundindo-o com o ‘jardineiro’:
«E Jesus disse-lhe: ‘Mulher, porque choras? Quem procuras?’ Ela, pensando que era o encarregado
do horto, disse-lhe: ‘Senhor, se foste tu que o tiraste, diz-me onde o puseste, que eu vou buscá-lo’»
(Jo 20,15).
702
  Cf. R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 950.
703
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 443. Ver ainda: M. Crimel-
la (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 368.
704
  Neste capítulo 24, todas as aparições começam com uma pergunta dirigida aos destinatários:
«Porque buscais o Vivente entre os mortos?» (v.5b); «Que palavras são essas que trocais entre vós, en-

267
aos discípulos: «Que palavras são essas que trocais705 entre vós, enquanto cami-
nhais?» (v.17). Segundo Lucas estas seriam as primeiras palavras do ressuscitado.
Todavia, como não se deu a conhecer e como eles não o reconheceram, as pala-
vras de Jesus não provocaram a alegria do reencontro. Aliás, diz no fim deste v.17
que os discípulos ‘param entristecidos’ [σκυθρωποί]706. O adjetivo σκυθρωποί
significa ‘aspeto triste’ ou ‘melancólico’707. Este mesmo sentido foi dado pela LXX
na tradução de Gn 40,7: «e perguntou [José] aos eunucos do faraó que estavam
presos juntamente com ele na casa do seu senhor: ‘Porque está hoje sombrio o
vosso rosto?’»; e ainda em Sir 25,23a: «Coração abatido, semblante triste, e chaga
no coração»708.
Então Cléofas709, tomou a palavra e, em jeito de resposta, expressou a sua
tristeza com uma pergunta (a Jesus): «Tu és o único forasteiro710 em Jerusalém
a ignorar o que lá se passou nestes dias?» (v.18). Cléofas insiste na perplexidade

quanto caminhais?» (v.17a); «Porque estais perturbados e porque surgem tais dúvidas nos vossos cora-
ções?» (v.38). Cf. J.A. Correia, «O caminho do reconhecimento e do anúncio», Theol. 36 (2001) 361.
705
  Apesar de decidimos manter a tradução portuguesa queremos assinalar o sentido mais profundo
da expressão. Carlo Rusconi afirma que o verbo ἀντιβάλλω, aqui na forma verbal ἀντιβάλλετε, quer
dizer: ‘discutir’, ‘conversar’ e ‘discorrer’. Cf. C. Rusconi, «ἀντιβάλλω», in DGNT, São Paulo 2003, 55.
Vários exegetas corroboram a tradução portuguesa. François Bovon traduz: «échangez». F. Bovon,
L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 431. Joseph Fitzmyer traduz: «exchange». J.
Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1553. Matteo Crimella traduz:
«scambiate». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 369.
706
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 443.
707
  Cf. C. Rusconi, «σκυθρωπός», in DGNT, São Paulo 2003, 421.
708
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 368.
709
  A palavra grega é Κλεοπᾶς, apesar de vários exegetas traduzirem este nome por Cléopas, decidi-
mos manter a tradução portuguesa - Cléofas. Carlo Rusconi suporta a nossa opção quando diz que
Κλεοπᾶς, vem do hebraico ‫ ְקלֵיוֹפָס‬, e se ‘traduz’ por Cléofas. Cf. C. Rusconi, «Κλεοπᾶς», in DGNT, São
Paulo 2003, 267. Contudo, todas as traduções que seguimos de perto preferem a opção de ‘Cléopas’.
François Bovon traduz: «Cléopas». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009,
431. Joseph Fitzmyer traduz: «Cleopas». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New
York 1985, 1553. Matteo Crimella traduz: «Cleopa». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo
2015, 369.
710
  A palavra grega é παροικεῖς e tem o sentido de ‘habitar como estrangeiro’ ou ‘exilado’, podendo ser
traduzida por ‘residente’, ‘hóspede’ e ‘estrangeiro’. Cf. C. Rusconi, «πάροικος», in DGNT, São Paulo
2003, 359. Não sendo fácil encontrar uma palavra que signifique a plenitude do sentido, mantemos
a palavra ‘forasteiro’, proposta pela tradução portuguesa, que significa ‘aquele que é de fora da terra
em que se encontra’ (temporariamente) – não chega a ser propriamente habitante. Matteo Crimella
corrobora a nossa opção ao traduzir por ‘forestiero’. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo
2015, 369. Já François Bovon traduziu com o sentido de ‘habitar’ ao dizer ‘réside’. F. Bovon, L’Évangile
selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 431. Joseph Fitzmyer traduziu com o sentido de ‘estra-
nho’ ou ‘estrangeiro’: «stranger». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York
1985, 1553.

268
e até com alguma agressividade quando pergunta se ele é o ‘único’ [σὺ μόνος
– és tu o único]. Conclui, por isso, que só pode ser um ‘forasteiro’ [παροικεῖς]
– alguém de passagem, um habitante novo na região711. Podia ser perfeitamente
alguém que fosse peregrino e que tinha vindo celebrar a festa da Páscoa a Jeru-
salém712. Enquanto os dois discípulos se espantam com a (aparente) ‘ignorância’
daquele homem sobre os factos acontecidos nos últimos dias em Jerusalém, Jesus
e o evangelista vão revelando a ‘ignorância’ destes dois discípulos – o que reforça
e justifica a ideia destes discípulos não reconhecerem naquele ‘forasteiro’ Jesus
ressuscitado. Trata-se de um hábil recurso estilístico do autor deste evangelho –
‘uma espécie de projetar no outro a própria ignorância’713.
Efetivamente, o autor cria um certo suspense e ‘angústia’ no leitor porque este
já sabe que é Jesus ressuscitado que está ali a falar com os discípulos que, como
não o reconhecem, falam com ele como se ele fosse ‘estrangeiro’, ou um ‘estra-
nho’, ou um ‘forasteiro’. Estabelece-se assim uma tensão e uma espécie de ‘mal-
-entendido’ que serve para envolver o leitor e, sobretudo, desenvolver o diálogo.
O não reconhecimento permite expressar toda ‘desilusão’ e ‘tristeza’ dos discí-
pulos. Por um lado, trata-se de um facto muito importante quando se quer dar
um ‘passo em frente’, quando se quer ultrapassar uma dificuldade. Jesus não tem
pressas em revelar quem é porque sabe dessa importância de cada um expressar
os seus sentimentos mais profundos. Sem isso talvez os olhos dos discípulos fi-
cassem para sempre impedidos de o reconhecer. Por outro lado, esse facto será
importante para evidenciar, posteriormente, a surpresa e a alegria do reencontro
com o ressuscitado.
Neste contexto, continua o diálogo com Jesus a insistir com nova pergunta
«Que foi?» (19a). Os discípulos responderam: «O que se refere a Jesus de Nazaré714,

711
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 444. «Il verbo παροικέω
indica ‘l’abitare un luogo senza essere cittadini’, cioè ‘vivere come residenti stranieri’. Spesso è usato
per i visitatori temporanei». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 369.
712
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1564.
713
  Cf. R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 941-942.
714
  A palavra grega é Ναζαρηνοῦ (Ναζαρηνός) e não Ναζωραῖος. Ναζαρηνός parece estar mais li-
gado à origem geográfica, enquanto que Ναζωραῖος parece estar mais ligado à origem ‘étnica’. Em
todo o caso, ambas as palavras se ligam directamente a ‘Nazaré’. No entanto, Carlo Rusconi diz que
Ναζαρηνός deriva de Ναζαρέθ e que pode ter os dois significados: ‘nazareno’ e ‘de Nazaré’. Cf. C. Rus-
coni, «Ναζαρηνός», in DGNT, São Paulo 2003, 316. Explicada a tensão, decidimos manter a tradução
portuguesa – ‘de Nazaré’. Outros autores suportam a nossa opção. François Bovon traduz: «Jésus de
Nazareth». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 431. Joseph Fitzmyer
traduz: «Jesus of Nazareth». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985,
1553. Só Matteo Crimella faz a opção de traduzir por «Gesù il Nazareno». M. Crimella (a cura di),

269
que se tornou um profeta715 poderoso em obras e palavras diante de Deus e de
todo o povo» (v.19b). Os discípulos, sem saberem, começaram a falar de Jesus de
Nazaré a Jesus ressuscitado. Falaram de Jesus como um ‘profeta poderoso nas
obras e nas palavras’ e depois, no versículo seguinte, disseram que ele tinha sido
‘condenado à morte e crucificado pelos sumos sacerdotes e chefes do povo’ (cf.
v.20). Nota-se a grande admiração que nutriam pelo mestre e não deixa de ser in-
teressante quer o nome como o designa ‘profeta poderoso’ [προφήτης δυνατὸς],
quer a ordem com que elencam esse ‘poder’ – primeiro as obras e em segundo
lugar as palavras [ἔργῳ καὶ λόγῳ]. Revelam também a origem da sua tristeza – a
morte do profeta em quem eles tinham depositado tantas esperanças.
Depois de descreverem um pouco sobre quem era Jesus e como morreu, fa-
lam agora das suas expectativas. O evangelista, com grande talento, apresenta a
esperança no imperfeito – esperávamos [ἠλπίζομεν]: «Nós esperávamos que fosse
Ele o que viria libertar716 Israel» (v.21a)717. A morte de Jesus representava o fim de
todas as esperanças dos discípulos, uma esperança de libertação718. Jesus, apesar

Luca, Cinisello Balsamo 2015, 369.


715
  Onde a tradução portuguesa apresenta apenas a palavra ‘profeta’, nós sugerimos a expressão ‘que
se tornou um profeta’. De facto, a expressão grega é ὃς ἐγένετο ἀνὴρ προφήτης que à letra se pode
traduzir por ‘que se tornou (um) homem profeta’. Damos conta das várias traduções. François Bovon
corrobora a nossa opção quando traduz: «qui devint un prophète» - explicando em nota que literal-
mente seria «qui devint un homme prophète». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV,
Genève 2009, 431. Joseph Fitzmyer também traduz com o mesmo sentido: «who was a prophet». J.
Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1553. Matteo Crimella man-
tém o sentido geral ao traduzir por «che si mostrò profeta». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello
Balsamo 2015, 369.
716
  Apesar da proximidade de sentido, decidimos propor esta palavra em vez de ‘redimir’, como suge-
re a tradução portuguesa. Trata-se do verbo λυτρόω, aqui na forma verbal λυτροῦσθαι, que significa
‘resgatar’, ‘redimir’ e ‘libertar’. Cf. C. Rusconi, «λυτρόω», in DGNT, São Paulo 2003, 291. Matteo
Crimella sublinha que este verbo tem um sentido muito concreto: ‘através de um ato ou de uma in-
tervenção libertar alguém de uma situação de opressão’ ou ‘redimir alguém através do resgate’. Neste
contexto, traduziu por «riscattare Israele». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015,
369. François Bovon suporta a nossa opção ao traduzir por «libérateur d’Israël». F. Bovon, L’Évangile
selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 431. Joseph Fitzmyer mantém a mesma opção ao tradu-
zir por «deliver Israel». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1553.
717
  Esta ideia pode ser interpretada com a ajuda da passagem de Jeremias: «8Esperança de Israel, seu
salvador no tempo da desgraça! Porque hás de comportar-te nesta terra como um estrangeiro, como
hóspede que fica só uma noite? 9Por que razão procedeis como um homem desamparado, como um
guerreiro que não pode salvar? Mas, Tu, Senhor, permaneces entre nós, e sobre nós foi invocado o teu
Nome; não nos abandones!» (Jer 14,8-9).
718
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 1024. Este é o único momento em que o verbo ἐλπίζω
ocorre nos encontros aqui estudados. Como referimos anteriormente a palavra ἐλπίς nunca se encon-
tra nos evangelhos e o verbo ἐλπίζω ocorre apenas cinco vezes. Que esperança seria esta dos discípulos
de Emaús? Qual a relação que tem com a esperança que Jesus dá? O que é específico desta esperança?

270
de nunca se ter ‘apresentado’ como o profeta escatológico, interpreta a própria
missão em termos da profecia escatológica. Mas, sobretudo, Ele é reconhecido e
identificado progressivamente como o ‘profeta escatológico’ anunciado ao longo
do AT (cf. Is 61)719. O profeta que ‘viria libertar Israel’. Por isso, era uma esperan-
ça legítima mesmo que fosse ambígua.
No entanto, de que libertação de Israel se tratava? Dos romanos e da opressão
política? Do pecado e da morte inexorável? Fosse qual fosse, a esperança ‘naufra-
gou’ no passado – era já o terceiro dia. Aqui o leitor nota a ‘ironia’ presente nesta
indicação cronológica. Esta era precisamente a duração que Jesus tinha anuncia-
do aos discípulos: «O Filho do Homem tem de sofrer muito, ser rejeitado pelos
anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei, tem de ser morto e, ao
terceiro dia, ressuscitar» (9,22) e «depois de o açoitarem, vão dar-lhe a morte.
Mas, ao terceiro dia, ressuscitará» (18,33)720.
Aqui precisamos de voltar à ‘geografia’ – a Emaús. No entanto, mais impor-
tante que o lugar geográfico exato, que problematizámos no início desta secção,
é o sentido teológico que se pode atribuir a essa mesma ‘geografia’. Se uma das
possibilidades de localização geográfica estava associada à cidade onde Judas
Macabeu, no ano 167 a.C., venceu Górgias, general de Antíoco IV Epifânio (cf.
1Mac 4,1-27), então Emaús pode ter um significado político - e, sobretudo, teoló-
gico - de vitória contra um inimigo de Israel721. Neste sentido, os dois discípulos,
que agora esperavam a ‘libertação de Israel’722, vão a caminho dessa ‘Emaús’ da
‘vitória política’ – eis a sua maior cegueira. Impedidos de o reconhecerem porque
‘afinal’ não o tinham conhecido tão bem quanto julgavam. Quanto maior for o
conhecimento mais fácil se torna o reconhecimento. No entanto, é nessa ‘ceguei-
ra’ do caminho até Emaús que o Messias lhes revela a verdadeira ‘libertação de
Israel’ – a ressurreição de Jesus - a vitória definitiva sobre o pecado e principal-

O que faz com que estes discípulos estivessem ‘des-esperados’?


719
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 501-502. Nas páginas seguintes o mesmo autor vai
aprofundar bastante este tema da identificação de Jesus como o profeta escatológico messiânico. Uma
expectativa que, no entendimento inicial dos discípulos, não parece fácil conjugar com a sua morte.
720
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 444. Ver ainda: J. Fitzmy-
er, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1564-1565.
721
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 369.
722
  Estes dois discípulos parecem ter uma esperança semelhante à de Zacaria - uma libertação de
Israel fundamentalmente política: «68Bendito o Senhor, Deus de Israel, que visitou e redimiu o seu
povo 69e nos deu um Salvador poderoso na casa de David, seu servo (…) 71para nos libertar dos nossos
inimigos e das mãos de todos os que nos odeiam…» (1,68ss).

271
mente sobre a morte723. Este pode ser o enquadramento teológico que nos revela a
tensão mais profunda da ‘esperança’ presente neste episódio: a ‘esperança que os
dois discípulos têm’ versus a ‘esperança que Jesus tem para lhes dar’.
Nos versículos seguintes (vv.22-24) os discípulos falam da ida ao túmulo de
‘algumas mulheres’ (v.22) e de ‘alguns dos discípulos’ (v.24) – como tinha sido
relatado no episódio imediatamente interior (vv.1-12). De referir apenas o por-
menor de aí, para além das mulheres, se falar ‘apenas’ de Pedro (v.12) podendo
o ‘alguns’ referir-se a quem acompanhou Pedro, mas que só sabemos pelo relato
do quarto evangelho (Jo 20,3-10). No entanto, para estes discípulos que iam a
caminho de Emaús a grande questão é que nem as mulheres nem os discípulos
que lá foram viram o corpo de Jesus (vv.23a.24b). Esta ausência intriga a todos724.
De facto, só a presença do Jesus ressuscitado irá convencê-los do que aconteceu.
A ironia desta narrativa é que eles estão no ‘meio’ do que eles desejam e que
ainda ninguém tinha experimentado – mas os seus olhos ainda não conseguiam
reconhecer725. Neste contexto, há uma mensagem que sobressai da descrição que
fazem da ida ao túmulo: ‘algumas mulheres’ «vieram dizer que lhes apareceram
uns anjos, que afirmavam que Ele está vivo [αὐτὸν ζῆν] 726» (v.23b)727.
Depois de os dois discípulos justificarem toda a sua ‘tristeza’ e ‘desilusão’, Je-
sus ‘responde’ com uma exclamação quase ofensiva: «Ó homens sem inteligência e

723
  «O facto de a sua esperança não se ter realizado não significa que Jesus não seja o libertador de
Israel, mas somente que o não é em sentido exclusivo nem restritivo, como pensavam os discípulos. De
facto, a libertação ou resgate de Israel fazia parte da missão de Jesus (Lc 1,68; 2,38; 24,21) (...). O modo
de pensar dos discípulos sustenta a ideia de que não haviam compreendido as Escrituras, segundo as
quais o reinado de Cristo e a redenção que Ele protagonizava realizavam-se pela via do sofrimento
(v.26), o que deixa supôr um outro tipo de realeza e libertação». Cf. J.A. Correia, «O caminho do
reconhecimento e do anúncio», Theol. 36 (2001) 397-398.
724
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 445.
725
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1915.
726
  A expressão grega é αὐτὸν ζῆν (do verbo ζάω) que se traduz literalmente por ‘ele viver’ mas tem o
sentido de ‘ele vive’ ou ‘ele está vivo’ - uma vez que o verbo está no infinito presente ativo. Id., 1914-
1915. Por tudo isto, ainda que o sentido seja muito próximo, preferimos manter o verbo no presente,
sugerindo a tradução ‘ele está vivo’, em vez da proposta da versão portuguesa que traduz no pretérito
imperfeito ‘ele vivia’. Matteo Crimella suporta a nossa opção ao traduzir «egli è vivo». M. Crimella
(a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 371. Joseph Fitzmyer traduz mais com o sentido de ‘estava
vivo’: «he was alive». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1553. Já
François Bovon sublinha a ideia de ‘ele vivia’ ao traduzir «il vivait». F. Bovon, L’Évangile selon saint
Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 431.
727
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 445. Alguns exegetas subli-
nham que todo este episódio se desenvolve e tem como centro precisamente esta expressão dos anjos
às mulheres – ‘Ele vive’ (v.23c). Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 1018-1019.

272
lentos de coração728 para crerem em tudo quanto os profetas anunciaram!» (v.25).
François Bovon diz que o adjetivo ‘lentos’ [βραδεῖς729] é, sem dúvida, uma das cha-
ves deste episódio. A voz do ‘forasteiro’ não reprova estes dois discípulos por não
o terem reconhecido, nem de não terem acreditado nos anúncios de Jesus sobre a
sua própria morte e ressurreição. Ele critica a leitura e a interpretação das Escritu-
ras. Diz que eles são ‘insensatos’ [ἀνόητοι – literalmente ‘privados de inteligência’
(ἀ + νοῦς)] porque não acreditaram no que foi anunciado pelos profetas - lentos de
‘coração’ [καρδίᾳ]. De facto, a fé não é só intelectual mas também afetiva, pessoal e
existencial730. Como já referimos em nota, a palavra καρδία pode ter dois sentidos
- ‘coração’ e ‘espírito’. No entanto, independentemente da tradução que se faça,
tem sempre a ver com ‘a dimensão mais profunda’ de cada coisa731.
Em seguida, com nova pergunta – desta vez, uma pergunta retórica, inter-
roga-os: «Não tinha [ἔδει]732 o Messias de sofrer essas coisas para entrar na sua
glória [δόξαν]?» (v.26). Então, diz o evangelista, que Jesus ressuscitado começou a
explicar-lhes em todas as Escrituras, começando em Moisés (Lei) e passando por
todos os profetas, todo o que tinha a ver com Ele (v.27). A necessidade (ἔδει - ‘era
preciso’) da morte do Messias é inserida na história da salvação (δόξαν - entrar
na sua ‘glória’)733. Esta ‘glória’ tinha sido anunciada no episódio da transfigura-
ção onde o narrador diz que Pedro e os seus companheiros (Tiago e João) ‘viram
a glória’ [εἶδον τὴν δόξαν] de Jesus e de Moisés (Lei) e Elias (profetas)734. Também

728
  Sugerimos esta tradução mais literal em vez da proposta portuguesa ‘lentos de espírito’ - a expres-
são grega é βραδεῖς τῇ καρδίᾳ. Estamos conscientes que a palavra καρδία pode ter os dois sentidos:
‘coração’ e ‘espírito’. Trata-se sempre, segundo Carlo Rusconi, da ‘sede da vida e das suas expressões’,
quer da vida física, quer da vida espiritual. Tem um segundo significado que ilumina este primeiro:
‘parte central’ ou ‘o mais profundo de algo’. Cf. C. Rusconi, «καρδία», in DGNT, São Paulo 2003, 249.
François Bovon corrobora a nossa opção ao traduzir: «lents de coeur». F. Bovon, L’Évangile selon saint
Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 431. Joseph Fitzmyer parece aproximar-se mais da versão portu-
guesa ao traduzir por «slow of wit». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New
York 1985, 1553. Matteo Crimella, de maneira um pouco diferente, traduziu a palavra καρδία também
por ‘corações’ mas associou-a aos ‘insensatos’ e não a ‘lentos’ traduzindo: «O cuori insensate e lenti a
credere». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 371.
729
  Segundo Matteo Crimella βραδεῖς exprime a ‘extrema lentidão’ e a ‘indolência’. Cf. M. Crimella
(a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 370.
730
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 445. Ver ainda: D. Bock,
Luke, II, Michigan 1996, 1915-1516.
731
  Cf. C. Rusconi, «καρδία», in DGNT, São Paulo 2003, 249.
732
  Mantemos a tradução portuguesa mas não deixamos de assinalar que a forma verbal ἔδει (imper-
feito) nos remete para o sentido mais intenso de δεῖ: ‘é necessário’, ‘é preciso’, ‘deve-se’. Id., «δεῖ», in
DGNT, S. Paulo 2003, 116.
733
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 370.
734
  Lc 9,30-32: «30E dois homens conversavam com Ele [Jesus]: Moisés e Elias, 31os quais, aparecendo

273
aqui é preciso ‘explicar’ ou ‘interpretar’ [διερμήνευσεν – v.27] toda a Escritura:
Lei e Profetas. Deste modo, segundo Joseph Fitzmyer, com o uso da forma verbal
ἔδει, a narração de Lc relaciona definitivamente o tema do Messias sofrente com
a sua ideia da história da salvação. Nesta lógica escatológica o evangelista desafia
o leitor - tal como Jesus ‘teve’ de sofrer para entrar na ‘glória’, assim o discípulo
cristão ‘terá’ de sofrer para entrar no Reino de Deus735.
O suspense mantém-se porque o evangelista, depois de nos ter dito que Jesus
explicou toda a Escritura, não nos fala da reação de Cléofas nem da pessoa que
o acompanha. Aliás até dá a entender que eles continuam a ser ‘lentos’ para crer
e que continuam sem compreender a hermenêutica do ressuscitado. A ‘deceção’
de Jesus e dos leitores diante desta falta de compreensão adquire uma dimen-
são mais dramática pelo silêncio da parte dos dois discípulos736. Neste contexto,
mantendo o sentido do ‘suspense’, percebem-se as palavras seguintes: «Ao che-
garem perto da aldeia para onde iam, [Jesus] fez menção [προσεποιήσαντο] de
seguir para diante» (v.28). Trata-se sobretudo de um recurso literário. Um dar
a impressão de que se quer seguir para diante, para depois sublinhar o pedido
espontâneo de hospitalidade para com um ‘estranho’737. O próprio Jesus, prova-
velmente, esperava ser convidado. Se seguisse em frente, o fim desta narrativa
seria totalmente diferente.
Todavia, os dois discípulos diante da atitude do ‘forasteiro’ fazer menção de
continuar o caminho ‘insistiram’ [παρεβιάσαντο]: «Fica connosco [μεῖνον μεθ’
ἡμῶν], pois a noite vai caindo e o dia já está no ocaso» (v.29b). Jesus ressuscitado
aceitou prontamente o convite e ‘ficou com eles’ (cf. v.29c). Esta passagem faz-nos
recordar as palavras do Apocalipse: «Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém
ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele
comigo» (3,20). No entanto, este convite, que os discípulos fizeram ao ‘forasteiro’,
pode exprimir mais do que simplesmente um sentimento de hospitalidade. Eles,
que estavam desesperados e desiludidos, podem ter visto naquele companheiro
de viagem e intérprete das Escrituras - um sinal de tranquilidade e de esperan-
ça738. Talvez agora o convite ainda faça mais sentido – um sentido que ecoa em

rodeados de glória, falavam da sua morte, que ia acontecer em Jerusalém. 32Pedro e os companheiros
[João e Tiago] estavam a cair de sono; mas, despertando, viram a glória de Jesus e os dois homens que
estavam com Ele». BS.
735
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1566.
736
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 446.
737
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1567.
738
  Cf. J.A. Correia, «O caminho do reconhecimento e do anúncio», Theol. 36 (2001) 378.

274
todos os tempos. Não é por acaso que Roland Meynet fala deste ‘fica connosco’
como a ‘súplica’ de toda a humanidade - do berço ao túmulo739.
Chegamos assim ao momento decisivo. Jesus entrou na casa «E, quan-
do se reclinou [à mesa]740, tomando o pão, abençoou-o, partiu-o e deu-
-lhes741» (v.30). Jesus não só cumpriu os costumes judaicos de pronunciar uma
bênção antes de começarem a comer, como também ‘parte e re-parte o pão’. Com
estas palavras e com este gesto torna presente a Última Ceia (22,19a) celebrada
pouco antes da sua morte. De facto, a «‘fração do pão’ (…) é um momento impor-
tante e cheio de significado nesta unidade literária, porque é o sinal de que Jesus
se serve para se fazer reconhecer e, ao mesmo tempo, a ocasião ou o meio para a
renovação da fé e da esperança dos discípulos»742. Não é por acaso que, quando
os Atos dos Apóstolos falam da comunidade exemplar, indiquem quatro aspetos
entre os quais a ‘fração do pão’ com o sentido de Eucaristia: «Eram assíduos ao
ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fração do pão e às orações» (At 2,42).
Entramos assim no mistério da ressurreição pelo horizonte sacramental, ainda
que não possamos dizer que em Emaús tenha havido uma Eucaristia – trata-se
de um gesto fundamentalmente kerigmático. Gérard Rossé reforça esta ideia ao
dizer que para Lc a Eucaristia é o sinal por excelência da presença do ressuscitado
no meio dos seus, é o cume e ponto de partida para a vida cristã743.

739
  Cf. R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 946.
740
  Sugerimos esta possibilidade de tradução, para a expressão grega ἐν τῷ κατακλιθῆναι, em vez da
proposta da versão portuguesa que diz: «quando se pôs à mesa». Desde logo a expressão ‘à mesa’ não
se encontra no texto grego, daí a nossa opção de colocar esse sentido entre parênteses retos. Depois o
verbo κατακλίνω (κατά + κλίνω) significa ‘fazer estender’, ‘fazer tomar lugar’ e ‘acomodar-se à mesa’.
Cf. C. Rusconi, «κατακλίνω», in DGNT, São Paulo 2003, 253. Por fim, consideramos a ‘informação’
do exegeta italiano Renzo Infante que, a propósito do ‘Lava-pés’ na ‘Última Ceia’ (Jo 13,1-20), ex-
plicou que habitualmente as pessoas não estavam sentados mas deitados à volta da mesa. Estariam
inclinados sobre o lado esquerdo e com a cabeça apoiada sobre o braço esquerdo, de modo que seria
com a direita que serviam da mesa colocada no centro. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello
Balsamo 2015, 319.
741
  Preferimos esta tradução à versão portuguesa que diz ‘tomou o pão, pronunciou a bênção e, depois
de o partir, entregou-lho’. A expressão grega é λαβὼν τὸν ἄρτον εὐλόγησεν καὶ κλάσας ἐπεδίδου
αὐτοῖς. Indicamos as diferentes traduções. François Bovon traduz: «qu’ayant pris le pain, il le bénit,
et, l’ayant rompu, il le leur donna». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009,
431. Joseph Fitzmyer traduz: «he happened to take bread and utter a blessing; he broke it and offered
it to them». J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1554. Matteo
Crimella traduz: «preso il pane, lo benedisse e, spezzatolo, lo distribuiva loro». M. Crimella (a cura
di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 371.
742
 J.A. Correia, «O caminho do reconhecimento e do anúncio», Theol. 36 (2001) 390.
743
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 1017.

275
Neste ‘cenário’ de palavras e gestos os olhos dos dois discípulos «abriram-se
e reconheceram-no; mas Ele tornou-se invisível a eles744» (v.31). Os olhos, que
antes estavam impedidos [ἐκρατοῦντο] de o reconhecer (v.16), agora abriram-
-se [διηνοίχθησαν] e reconheceram [ἐπέγνωσαν] Jesus ressuscitado. (v.31a). «O
facto de Jesus visível não ser reconhecido sublinha a limitação ou incapacidade
dos olhos humanos para vislumbrar o divino; tornar-se invisível quando reco-
nhecido acentua a transcendência do Ressuscitado e a importância da Palavra e
da ‘fração do pão’ para a Ele aceder»745. Daí que alguns exegetas sublinhem que
estamos perante um ‘passivo teológico’ que coloca Deus como agente, com o sen-
tido de ‘Deus abriu-lhes os olhos’ – para que pudessem ver com os olhos da fé746.
Reconheceram-no ‘ao partir do pão’. Jesus, que tinha sido convidado como hós-
pede (cf. v.29b), é ele mesmo quem faz a bênção e parte o pão (cf. v.30b). Ou seja,
faz de anfitrião na casa de ‘dois’ estrangeiros.É isto que o faz ser reconhecido. Por
outras palavras, depois da sua morte, Jesus renova a comunhão convivial com os
seus. Jesus ressuscitado é reconhecido pelo facto de agir como ‘anfitrião’747.
Jesus, depois de ser reconhecido como o ressuscitado, tornou-se ‘invisível’
[ἄφαντος]. Quando se reconhece que Jesus está vivo a sua presença visível não é
mais necessária748. François Bovon diz que a vida é afetiva e essa vida afetiva tam-
bém é ‘invisível’. Neste sentido, os teólogos modernos não se equivocam quando
falam de ‘presença-ausência’. Lucas afirma assim, por um lado, a continuidade
entre Jesus histórico e Cristo ressuscitado – que permite o reconhecimento; por
outro, introduz a descontinuidade decorrente do novo ‘estatuto’ que decorre da

744
  Preferimos esta tradução, apesar da proximidade de sentido, da versão portuguesa que diz: «desa-
pareceu da sua presença». A expressão grega é ἄφαντος ἐγένετο ἀπ’ αὐτῶν. De facto, Carlo Rusconi
esclarece que a expressão γίνομαι ἄφαντος ἀπό τινος se pode traduzir por: ‘tornar-se invisível’ ou ‘de-
saparecer da vista de alguém’. Cf. C. Rusconi, «ἄφαντος», in DGNT, São Paulo 2003, 87. Deste modo
poderemos concluir que as duas variantes são possíveis. François Bovon corrobora a nossa opção ao
traduzir: «mais lui leur devint invisible». F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève
2009, 431. Também Matteo Crimella traduziu com este mesmo sentido: «ma egli divenne invisibile a
loro». M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 373. Apenas Joseph Fitzmyer se apro-
xima mais da versão portuguesa ao traduzir: «but he vanished from their sight». J. Fitzmyer, The
Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1554.
745
 J.A. Correia, «O caminho do reconhecimento e do anúncio», in Theol. 36 (2001) 385.
746
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1568. Ver ainda: M.
Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 372. Nunca é de mais recordar que no início do
seu ministério Jesus disse - citando Is 35,5 - que o Espírito do Senhor estava sobre ele para ‘recuperar
a vista aos cegos’ (4,18c). Este mesmo Jesus é quem cura o cego sentado à beira do caminho, junto da
cidade de Jericó (18,35-43).
747
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 220.
748
  Cf. D. Bock, Luke, II, Michigan 1996, 1920.

276
ressurreição – que é a razão da ‘lentidão’ do reconhecimento e da ‘possibilidade’
de ele ‘desaparecer da vista deles’749. A sua presença agora torna-se ‘visível’ à fé
que o reconhece vivo na sua realidade de ressuscitado750. Este ‘desaparecer da
frente’ dá profundidade à ressurreição porque não nos permite cair no ‘risco’ de
a pensar como uma ‘reanimação’ ou um ‘retomar a vida’ – à imagem de Lázaro,
do filho da viúva de Naim ou da filha de Jairo. Trata-se, por isso, de uma ‘presen-
ça-ausência’ profunda que os nossos olhos precisam de aprender a reconhecer.
É interessante que Lucas não refira mais nenhuma palavra ou gesto, nem
tão pouco um milagre de Jesus. Contudo, importa recordar todo o ‘caminho’:
Jesus (λόγος - Palavra) ressuscitado que se aproxima e se põe a caminhar com
eles; depois toda a explicação da Escritura (Lei e Profetas); e, finalmente, o si-
nal da ‘fração do pão’. Para os leitores cristãos de Lucas produz-se logicamente
uma identificação evidente com os discípulos de Emaús: também eles ouvem a
Palavra, também lhes é explicada as Escrituras, também repartem o pão na Eu-
caristia e, por isso, também eles podem, deste modo, reconhecer a presença do
ressuscitado – tal como os dois discípulos751. Uma vez reconhecido o ressuscita-
do tudo ganha (novo) sentido. Agora tudo faz (mais) sentido. Por isso, dizem um
ao outro: «Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos
explicava as Escrituras?» (v.32). Trata-se fundamentalmente de uma pergunta
retórica que resume a reação dos discípulos quando se dão conta do alcance da
‘catequese’ e das ações de Jesus752. Na verdade, «‘arder o coração’ é uma expres-
são forte que exprime a alegria e a transformação interior provocada por uma
palavra ou acontecimento»753.
Ao contrário do que seria natural esperar, o relato não conclui euforicamen-
te . No entanto, eles, que tinham saído de Jerusalém naquele dia, regressaram
754

‘imediatamente’ à Cidade Santa. Jerusalém, mais do que um lugar geográfico, em


Lc, é um lugar teológico e é lá que o evangelho tem de acabar. O caminho para

749
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 447.
750
 Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 1030.
751
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 447.
752
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1568.
753
  Cf. J.A. Correia, «O caminho do reconhecimento e do anúncio», Theol. 36 (2001) 378. Segundo
Matteo Crimella, trata-se de uma metáfora para exprimir: ‘ser dominado pelas emoções’. Cf. M. Cri-
mella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 372.
754
  Posteriormente, em Jerusalém, quando estavam todos reunidos e Jesus ressuscitado apareceu aos
discípulos, o evangelista ‘regista’ a alegria que estavam a viver: «E como, na sua alegria, não queriam
acreditar de assombrados que estavam, Ele [Jesus] perguntou-lhes: ‘Tendes aí alguma coisa que se
coma?’» (v.41).

277
Jerusalém é o lugar da revelação progressiva de Jesus755. Deste modo, também
estes dois discípulos regressam a Jerusalém. Quando lá chegaram, encontraram
os discípulos reunidos (cf. v.33) que lhes começaram a falar da aparição que deve
servir de referência a todas as outras: «Realmente o Senhor [κύριος] ressuscitou
[ἠγέρθη] e apareceu [ὤφθη] a Simão!» (v.34).
A autoridade de Simão Pedro no grupo dos discípulos é aqui defendida
pelo evangelista. Neste caso, o evangelista usa precisamente o vocabulário tra-
dicional da ‘ressurreição’ [ἐγείρω], que significa literalmente ‘despertar’756 (cf.
At 3,15; 4,10; Rm 4,24; 1Cor 15,4), e das ‘aparições’ [ὤφθη], que significa lite-
ralmente ‘foi visto’ ou ‘apareceu’757 (cf. 1Cor 15,5)758. Também a palavra Senhor
[κύριος] tem aqui um sentido profundo. Trata-se de uma confissão de fé, gerada
no seio da comunidade cristã primitiva, como testemunha, sobretudo, o livro
dos Atos. Aí o título ὁ κύριος é usado, por vezes, articulado com a afirmação
da ressurreição (cf. At 2,24-25; 4,33), dando a entender que este é o título usado
para falar de Jesus ressuscitado759.
Só depois de ouvirem falar da ‘aparição’ de Jesus a Simão, é que puderam
contar a todos «o que lhes tinha acontecido pelo caminho e como Jesus se lhes
dera a conhecer, ao partir do pão» (v.35). O mais interessante de assinalar aqui
é o facto de os dois discípulos de Emaús dizerem que reconheceram Jesus pela
‘fração do pão’ e não por o terem visto com os seus próprios olhos760. Trata-se
de se ‘reencontrar’ com a memória. A função do ‘gesto’ da ‘fração do pão’ é
precisamente ser um memorial: «fazei isto em memória de mim» (22,19c). O
memorial que torna presente Jesus ressuscitado no dom do seu corpo e do seu
sangue761.

755
  Cf. J.A. Correia, «O caminho do reconhecimento e do anúncio», Theol. 36 (2001) 383.
756
  O verbo grego ἐγείρω tem quatro significados principais: ‘acordar’ ou ‘despertar’; ‘fazer erguer’
ou ‘pôr em pé’; ‘ressuscitar’ ou ‘ressurgir’; ‘erguer’ ou ‘endireitar’. Cf. C. Rusconi, «ἐγείρω», in DGNT,
São Paulo 2003, 143.
757
  A forma verbal ὤφθη é a terceira pessoa do singular do indicativo aoristo passivo do verbo ὁράω
(‘ver’) e indica as aparições e as epifanias divinas (cf. Gn 12,7; 17,1; 18,1; 26,24; Lc 1,11; 24,34; At 2,3;
7,2.26.30.35; 9,17; 13,31; 16,9; 26,16; 1Cor 15,5). Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo
2015, 48-49.
758
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (19,28-24,53), IV, Genève 2009, 447. Ver ainda: J. Fitzmy-
er, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1569; J.A. Correia, «O caminho do
reconhecimento e do anúncio», in Theol. 36 (2001) 394-395.
759
  Cf. J.A. Correia, «O caminho do reconhecimento e do anúncio», Theol. 36 (2001) 401.
760
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (X-XXIV), II, New York 1985, 1569.
761
  Cf. R. Meynet, L’Évangile de Luc, VIII, Pendé 2011, 950-951.

278
Chegados a este ponto podemos concluir que Lc, mais do que estar preocu-
pado com os dados históricos, quis apresentar uma interpretação teológica dos
acontecimentos – na sua particular incidência cristológica762. Uma perspetiva
que fez do ‘caminho’ o contexto e o modo de alcançar a resposta à pergunta fun-
damental, que serve de pano de fundo a este episódio: ‘Como encontrar o Senhor
ressuscitado sem nunca o ter visto? Respondendo a esta pergunta a narrativa de
Emaús mostra que a presença do Senhor é acessível através da ‘Palavra escutada’
(Escritura) e do ‘pão partido’ (Eucaristia) – em geral, por meio da fé763. Por isso,
talvez a questão essencial não esteja na falta de sinais do ressuscitado, mas na ne-
cessidade de superar as cegueiras que (nos) impedem o reconhecimento daquele
que está vivo e caminha connosco. Por isso, dizer que ‘Jesus está vivo’ parece
resumir bem a intenção do evangelista e, sobretudo, parece resumir muito bem a
missão de qualquer cristão764.

762
  Cf. J.A. Correia, «O caminho do reconhecimento e do anúncio», Theol. 36 (2001) 360.
763
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 366-367.
764
  «Tout se résume en cette courte affirmation: ‘ils disent qu’il est vivant». R. Meynet, L’Évangile de
Luc, VIII, Pendé 2011, 944.

279
280
Capítulo III

Os encontros de Jesus narrados no quarto evangelho

1. As características de um evangelho e os critérios de escolha dos


encontros em João

1.1. Especificidade teológica do quarto evangelho no confronto com os


sinóticos
Dentro das múltiplas abordagens e dos diferentes comentários que podemos
encontrar sobre o quarto evangelho1, queremos aqui, dentro do objetivo deste
nosso trabalho, sublinhar alguns elementos da especificidade teológica que nos
permita compreender melhor, por um lado, o conteúdo de cada encontro de Jesus
descrito por João e, por outro lado, a distinção que se deve fazer, sobretudo, entre
os evangelhos sinóticos e o quarto evangelho. Nesta perspetiva procurámos con-
siderar os aspetos mais relevantes, sem pertendermos ser exaustivos, dado que de-
sejamos sublinhar o essencial de cada encontro para evidenciar os elementos fun-
damentais da esperança que Jesus dá a cada um daqueles com quem se encontra.
Comecemos, precisamente, por referir que no contexto exegético foi domi-
nando, ao longo dos anos, a tese de uma fundamental independência deste quar-
to evangelho relativamente aos evangelhos sinóticos. Contudo, nos últimos anos,
tem surgido um movimento oposto que procura ler o evangelho de Jo num ‘jogo

1
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: J. Beutle, Das Johannesevange-
lium, Freiburg im Breisgau 2013, 47-74; C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 3-330;
U.C. von Wahlde, The Gospel and Letters of John, I, Michigan 2010, 395-418; F. Marin, W. Wright,
The Gospel of John, Grand Rapids 2015, 15-26; S. Bieberstein, Jesus und die Evangelien, Zurich 2015;
V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 214-223; F. Zeilinger, Die sieben Zeiche-
nhandlungen Jesu im Johannesevangelium, Stuttgart 2011.

281
intertextual’ com os evangelhos sinóticos. Este movimento procura reforçar a
ideia de que não só Jo conheceu os outros evangelhos na sua formulação final2,
como também pressupõe esse conhecimento da parte dos seus leitores. No entan-
to, como afirma Joachim Kügler, entre os dois extremos é oportuno sustentar as
soluções intermédias3. Nesse sentido, podemos dizer, como Renzo Infante, que o
quarto evangelho, apesar de narrar a mesma história dos sinóticos, do ponto de
vista de conteúdo literário, aparece, por um lado, com autonomia em relação a
estes e, por outro lado, fornece habitualmente informações complementares úteis
para a reconstrução histórica da vida de Jesus4. De facto, em Jo não encontramos
alguns dos episódios mais significativos dos sinóticos como a narrativa do nasci-
mento de Jesus, o sermão da montanha, a oração do Pai-Nosso, a transfiguração
de Jesus; tal como não encontramos nenhum episódio de exorcismo5, Jo privilegia
a palavra ‘sinais’ para falar dos milagres de Jesus6. Já em alguns episódios, como a

2
  De facto, grande parte dos estudiosos do evangelho de Jo defendem que a sua formação deve pres-
supor três fases: as fontes e tradições; a redação de um texto base; e, por fim, a redação final. Cf. J.
Kügler, «Il Vangelo di Giovani», Brescia 2012, 260. Essa redação final, que os sinóticos demonstram
desconhecer, deve situar-se no final do I século. Raymond Brown apontava, em 1966, para o ano 100-
110 como a data mais tardia para a composição deste evangelho. Cf. R. Brown, The Gospel According
to John (I-XII), I, New York 1966, 93. Mais recentemente fala-se de uma redação final por volta do ano
90. Provavelmente, depois da morte do evangelista, o trabalho de redação terá sido terminado por um
grupo dos seus discípulos que, respeitando o pensamento e a estrutura fundamental da obra, reco-
lheram e inseriram todo o material joanino que não tinha encontrado ainda espaço no texto. Cf. R.
Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 11. Para aprofundar as diferentes teorias sobre
a formação e a data da redação final do quarto evangelho, aconselhamos: G. Ghiberti, «Introduzione
al Vangelo secondo Giovanni», Torino 2003, 84-88; R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Bal-
samo 2015, 23-26.
3
  Cf. J. Kügler, «Il Vangelo di Giovani», Brescia 2012, 263. Rudolf Schnackenburg, depois de ter apre-
sentado profundamente a questão, conclui: a) é improvável que o evangelho dependa diretamente dos
sinóticos; b) a tradição joânica é autónoma, mesmo quando tem elementos comuns com os sinóticos,
não revelando nenhuma tentativa de corrigir ou complementar os sinóticos; c) o autor pressupõe que
os seus leitores já conhecem alguns acontecimentos da tradição sinótica, mas esse conhecimento não
se funda necessariamente nos evangelhos; d) tem muitas informações complementares que devem
ser consideradas até do ponto de vista histórico - como os relatos da paixão; e) ainda que a redação
final seja mais tardia do que a dos sinóticos, não podemos prescindir de todo o processo literário em
que amadureceu o evangelho que, em alguns momentos, foi contemporâneo aos sinóticos; f) o quarto
evangelho tem um fim próprio - que é a melhor chave para explicar a surpreendente relação com a
tradição sinótica. Cf. R. Schnackenburg, «Introduzione», Brescia 1973, 50-52. Para quem quiser
aprofundar toda a questão da relação entre o quarto evangelho e os sinóticos, aconselhamos ainda: G.
Ghiberti, «Introduzione al Vangelo secondo Giovanni», Torino 2003, 80-84.
4
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 10-11.
5
  Cf. A. Köstenberger, John, Michigan 20072, 18.
6
  Como já referimos anteriormente, o autor do quarto evangelho escolhe, sobretudo, o termo ‘sinal’
para descrever as ações milagrosas de Jesus. A intenção desses ‘sinais’ é de conduzir à fé. Mas essa
intenção reclama uma ‘disponibilidade para crer’ nos que viram, ou agora lêem, esses mesmos sinais.

282
‘última ceia’, encontramos informações e abordagens que ajudam a completar o
sentido e a compreender a profundidade de algumas palavras e de alguns gestos.
Deste modo, há uma especificidade teológica do evangelho de Jo. Uma es-
pecificidade a vários níveis, que justifica a clara distinção, sem separar, entre o
quarto evangelho e os sinóticos7. Bastaria recordar: 1) as inclusões, mediante a
repetição de um ou mais termos no início e no fim de um perícopa, que ajudam
a fechar as unidades narrativas; 2) os duplos significados e mal-entendidos, me-
diante o uso do sentido ambivalente das palavras, que permitem o desenvolvi-
mento da narrativa e, ao leitor, um progresso na compreensão da revelação de
Jesus (cf. 2,1-11; 2,19-22; 3,1-11); 3) a ironia, ao o colocar na boca dos interlocuto-
res de Jesus afirmações inadequadas ou sarcásticas, que revelam precisamente o
contrário do que os mesmos pretendem (cf. 4,12; 7,35; 8,53; 11,50); 4) e as frases
parentéticas explicativas, em que o narrador comunica diretamente com o lei-
tor para explicar o significado de termos por ele desconhecidos (cf. 1,38.42), ou
encaminhar numa determinada compreensão (cf. 2,21; 12,33; 18,9), ou corrigir
possíveis erros de interpretação (cf. 4,2; 6,6), ou recordar acontecimentos já an-
teriormente narrados (cf. 7,50; 11,2; 19,39; 21,20)8.
Sublinhe-se, como característica bastante importante no quarto evangelho,
que em muitos diálogos joânicos o evangelista procura mostrar o ‘desnível’ en-
tre as intervenções de Jesus e a compreensão registada pelas palavras dos seus
interlocutores. Esta estrutura dialógica evidencia, por um lado, a potencialida-
de da palavra de Deus e, por outro, o enfraquecimento decorrente daqueles que
se fecham a essa mesma palavra de Deus9. Para concretizar este dinamismo o
evangelista usa frequentemente palavras com duplo significado que provocam

De todos estes sinais, o maior e o fundamental é a própria ressurreição de Jesus. Cf. V. Mannucci,
Giovanni il Vangelo narrante, Bologna 1993, 93-95.
7
  Também nós assumimos, neste trabalho, uma clara distinção entre os encontros de Jesus nos sinó-
ticos e os encontros de Jesus no quarto evangelho. A teologia presente faz emergir aspetos distintos
no próprio modo de descrever e interpretar cada encontro, decorrendo daí também algumas conse-
quências para a própria ‘investigação’ sobre a ‘esperança’ que Jesus dá. Obviamente que é a mesma
‘esperança’ que está presente, mas terá tonalidades e acentuações distintas que enriquecem a própria
abordagem final.
8
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 14-15. Sobre os diálogos, os mal-en-
tendidos e a ironia, aconselhamos: V. Mannucci, Giovanni il Vangelo narrante, Bologna 1993, 45-81.
Sobre o estilo joânico, aconselhamos: G. Ghiberti, «Introduzione al Vangelo secondo Giovanni»,
Torino 2003, 45-47; R. Schnackenburg, «Introduzione», Brescia 1973, 131-142; E. Schillebeeckx,
Il Cristo, Brescia 1980, 380-395.
9
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 151. Esta reflexão foi feita pelo exegeta a propó-
sito do diálogo de Jesus com Nicodemos.

283
mal-entendidos. Um recurso para, simultaneamente, envolver o leitor e o ajudar
a passar de um sentido mais ‘mundano’ a um sentido mais ‘teológico’ dessas
mesmas palavras. Neste sentido, Valerio Mannucci, afirma que o autor do quarto
evangelho é singularmente hábil na arte de ‘dizer-sem-dizer’, sugerindo mui-
to mais do que aquilo que diz explicitamente, concluindo que esta ‘técnica’ de
‘envolvimento’ é uma das principais razões que justifica o fascínio, o poder e o
mistério deste quarto evangelho10.
Contudo, a grande e principal especificidade teológica do quarto evangelho
está no enfoque: este centra-se na pessoa de Jesus Cristo, enquanto que nos sinóti-
cos se centram no reino de Deus11. O quarto evangelho centra-se em Jesus Cristo
a partir de duas perspetivas: o monoteísmo hebraico e a cristologia da pré-exis-
tência. Duas dimensões que se conciliam mediante a relação Pai-Filho: Jesus, o
Lógos incarnado, enquanto Filho é imagem do Pai12. Uma relação que o quarto
evangelho revela não tanto como uma doutrina, como aparecerá consagrado nos
concílios de Niceia (325) e Calcedónia (451), mas como experiência de vida que
se realiza quando se participa na comunhão com o Pai e com o seu Filho Jesus
Cristo, precisamente através da fé nascida dos sinais. Para todos os que não tive-
ram a ‘sorte’ de ver os sinais, o evangelista escreveu neste livro o seu ‘testemunho’
para que outros possam participar na vida divina13. Um livro que é constituído
essencialmente por duas grandes partes: o livro do ‘sinais’ (1,19 - 12,50) e o livro
da ‘gloria’ (13,1 – 20,31)14. Neste contexto de valorizar o sentido dos sinais e de
estabelecer a relação com a ‘glória’ Jo diz, no fim do evangelho: «Muitos outros

10
 Cf. V. Mannucci, Giovanni il Vangelo narrante, Bologna 1993, 40. Nesta e nas páginas seguintes,
este exegeta, desenvolve a ideia desta ‘implícita comunicação’, entre o ‘não-dizer’ e o ‘sugerir’.
11
  Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 441. Sobre a teologia no quarto evangelho aconse-
lhamos: R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 104-128. Nestas páginas o
autor irá referir especificamente a eclesiologia, a sacramentalidade, a escatologia e os motivos sapien-
ciais. Ver ainda: R. Schnackenburg, «Introduzione», Brescia 1973, 192-206. Nestas páginas fala-se
do fundamento cristológico; a doutrina da salvação; a escatologia realizada; o significado dos sacra-
mentos, da ‘mística’ e da ética; e, por ultimo, da Igreja e da missão.
12
  Cf. J. Kügler, «Il Vangelo di Giovani», Brescia 2012, 269.
13
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 15. Edward Schillebeeckx reforça
esta ideia quando afirma que para a comunidade de Jo, que não conheceu o Jesus ‘histórico’, é possível
acreditar sem ver (cf. 20,29). Neste contexto, o quarto evangelho quer mostrar aos cristãos da segunda
e da terceira geração que estes não estão em desvantagem em relação aos discípulos que viveram com
Jesus. Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 438. Sobre a relação do evangelho de Jo com os
primeiros concílios, aconselhamos: A. Köstenberger, John, Michigan 20072, 1-2.
14
  Cf. A. Köstenberger, John, Michigan 20072, 10-11. «Sebbene molte siano le ipotesi di articolazio-
ne, la più coerente risulta quella che suddivide in due parti il vangelo giovanneo, chiamate rispetti-
vamente Il libro dei segni e Il libro della gloria». S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 15.

284
sinais miraculosos realizou ainda Jesus, na presença dos seus discípulos, que não
estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para acreditardes que Jesus
é o Messias, o Filho de Deus, e, acreditando, terdes a vida nele» (20,30-31). Terá
sido esta centralidade no mistério de Jesus, o Filho de Deus, a razão que levou al-
guns teólogos a sublinhar a ‘concentração cristológica’ do pensamento joânico?15
Na verdade, ainda que consideremos a importância e a relevância do con-
texto trinitário da teologia do quarto evangelho, temos que reconhecer que o
grande esforço do evangelista é dedicado a clarificar, aos seus leitores, o enigma
da pessoa de Jesus, que é filho de José de Nazaré da Galileia (6,42a) e, ao mesmo
tempo, «Filho do Homem» (6,53) e «Filho de Deus» (5,25). Os homens pensam
que conhecem o seu pai e a sua mãe, mas Jesus revela que ‘vem de Deus’. Este ‘vir
de Deus’ é referido pelo evangelista não na aceção de um ‘homem de Deus’ ou de
‘enviado por Deus’, mas no sentido mais profundo de ‘origem em Deus’. Ele é o
próprio Filho de Deus que estava junto do Pai (17,5) e agora ‘desceu’ ao meio dos
homens para completar a obra que o Pai lhe confiou (14,31a). Terminada a missão
de mostrar o amor do Pai, oferecendo a própria vida, ele retornou ao Pai de onde
tinha saído (16,28) 16. Trata-se de um ‘modelo’, com raízes judaico-helenísticas,
que implicitamente já se encontrava em Paulo: preexistência, descida, subida e
parusia17. De facto, o objetivo principal da missão do Verbo incarnado é o de
fazer conhecer Deus ‘invisível’: «A Deus jamais alguém o viu. O Filho Unigénito
[μονογενής]18, que é Deus e está no seio do Pai, foi Ele quem o deu a conhecer»
(1,18). Esta afirmação no final do Prólogo tem um lugar e um significado de ‘pon-
to-cardial’, de um ‘ponto de transição’ entre o Prólogo e o resto de evangelho,
como uma ponte colocada entre o Lógos e a narrativa evangélica19. Deste modo,

15
 Cf. G. Ghiberti, «Introduzione al Vangelo secondo Giovanni», Torino 2003, 48. Neste contexto,
Jo, ao contrário dos sinóticos, não tem necessidade de referir a transfiguração. A própria vida de Jesus
é o único acontecimento que revela a unidade existente entre o Pai e o Filho, um acontecimento de
glorificação da vida, da morte e da ressurreição. Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 487.
16
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 16-17. Jo 17,5: «E agora Tu, ó Pai,
manifesta a minha glória junto de ti, aquela glória que Eu tinha junto de ti, antes de o mundo existir»;
Jo 14,31a: «o mundo tem de saber que Eu amo o Pai e actuo como o Pai me mandou»; Jo 16,28: «Ainda
um pouco, e deixareis de me ver; e um pouco mais, e por fim me vereis».
17
  Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 376-378. Nestas páginas o autor desenvolve este mo-
delo no quarto evangelho e confronta-o com as diferentes cartas de Paulo.
18
  Trata-se de uma palavra pouco frequente no NT – ocorre apenas nove vezes: quatro vezes em Jo
(1,14.18; 3,16.18), uma em 1Jo (4,9); três em Lc (7,12; 8,42; 9,38) e uma em Heb (11,17). À letra significa
‘único’ ou ‘de um só género’, mas por razões teológicas começou a ser traduzido, de Origens em dian-
te, como ‘unigénito’. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 52.
19
 Cf. V. Mannucci, Giovanni il Vangelo narrante, Bologna 1993, 35. Neste mesmo livro, da pág. 251 à

285
podemos afirmar, sublinhando as palavras do exegeta Andreas Köstenberger,
que este quarto evangelho penetra mais profundamente no mistério da revelação
de Deus no seu Filho do que qualquer outro evangelho e possivelmente mais do
que qualquer outro livro da bíblia20.
Trata-se assim de, por um lado, revelar progressivamente a pessoa de Jesus;
por outro lado, sublinha-se o quanto Jesus torna ‘visível’ o Pai. Este dinamismo
exige ‘fé’. Uma fé que é ‘porta’, segundo Giuseppe Ghiberti, através da qual se
entra em relação com Jesus e que abre à salvação oferecida pelo Pai21. Jesus, nes-
te sentido, foi apresentado como a Palavra, presente desde a criação, que torna
presente a plenitude da revelação de Deus22. Toda esta dimensão cristológica se
manifesta através dos diferentes títulos que, tendo paralelos nos sinóticos, as-
sumem, neste evangelho, caraterizações próprias: homem, rabbi, mestre, pro-
feta, Senhor, Filho de Deus, Filho do Homem e Messias23. Giuseppe Ghiberti
junta a estes, outros títulos cristológicos como ‘Cristo’, ‘Verbo’ (Logos), ‘Deus’ e
‘Eu Sou’ [ἐγώ εἰμι]24. Sublinhando, em seguida, que Jo é o único a chamar expli-
citamente ‘Deus’ a Jesus em duas situações: a primeira é no início do evangelho,
no prólogo - «No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo
era Deus» (1,1); a segunda é na parte final do evangelho, no episódio de Tomé,
quando este diz a Jesus ressuscitado - «Meu Senhor e meu Deus!» (20,28b).
Trata-se de uma referência importante que, estando no início e no fim, ilumina
toda a narração evangélica25.
Esta centralidade cristológica como reveladora do Pai e da própria dimensão
divina trinitária, é enriquecida e configurada a partir da ideia prevalecente de
uma escatologia já realizada, onde a vida eterna não é qualquer coisa que perten-
ce ao futuro, mas um dom já presente e oferecido aos crentes: «Em verdade, em

268, o autor dedicará todo um capítulo à ideia de Jesus como revelador de Deus. Edward Schillebeeckx
diz que este dinamismo se percebe melhor quando se analisa a relação, neste evangelho, entre sarx
[σάρξ] e doxa [δόξα]. Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 422.
20
  Cf. A. Köstenberger, John, Michigan 20072, 1. De facto, o quarto evangelho sublinha, mais do
que os sinóticos, a visibilidade da ‘glória’ de Deus no homem – Jesus Cristo. Uma presença que, sendo
incarnação, é redentora e salvadora. Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 411.
21
 Cf. G. Ghiberti, «Introduzione al Vangelo secondo Giovanni», Torino 2003, 50.
22
  Cf. A. Köstenberger, John, Michigan 20072, 13.
23
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 17.
24
 Edward Schillebeeckx desenvolve e aprofunda este ‘título’ em sete perspectivas, dividindo-o em
três categorias: aplicado de modo absoluto e sem predicado (cf. 8,24; 8,28; 8,58; 13,19); com um pre-
dicado indireto (cf. 6,20; 18,5.6.8); e com um perdicado direto – alegórico (cf. 6,35.51; 8,12; 9,15;
10,7.9.11.14; 11,25; 14,6; 15,1.5). Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 445-461.
25
  Cf. G. Ghiberti, «Introduzione al Vangelo secondo Giovanni», Torino 2003, 50-51.

286
verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a
vida eterna e não é sujeito a julgamento, mas passou da morte para a vida» (5,24).
Com a vinda de Jesus realiza-se o acontecimento escatológico definitivo. Apesar
desta valorização da ‘escatologia já realizada’, coexiste no evangelho também a
ideia da ‘escatologia futura’. Esta tensão faz pensar que o redator final quisesse
manter aberta a prespetiva para uma escatologia do último dia na relação intrín-
seca com as escolhas presentes e atuais do crente26.
Assumindo esta tensão, entre a ‘escatologia realizada’ e a ‘escatologia futura’,
podemos compreender melhor o ‘dualismo joânico’, isto é, a conceção da reali-
dade ‘dividida’ em dois campos: um primeiro tem Deus como ‘chefe’ e está cen-
trado naquele que Deus enviou – o seu Filho Jesus; o segundo tem como ‘chefe’
o ‘príncipe deste mundo’. Dois ‘mundos’ também eles em permanente tensão. O
‘mundo’ de Deus é o lugar onde os homens vivem os mandamentos do Senhor,
especialmente o mandamento do amor, e o ‘destino’ é a salvação. O outro ‘mun-
do’ é o lugar dos que recusam Deus, em Jesus; aqui vive-se no ‘pecado’ e o ‘desti-
no’ é a condenação. Neste sentido, o pecado é o ‘auto-fechamento’ à iniciativa da
salvação ‘lançada’ por Deus neste mundo, com o envio do seu Filho27. Isto mesmo
é anunciado, desde logo, no prólogo: «Ele estava no mundo e por Ele o mundo veio
à existência, mas o mundo não o reconheceu. Veio para o que era seu, e os seus não
o receberam» (1,10-11). No entanto, continua o texto: «a quantos o receberam, aos
que nele crêem, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus» (1,12). Reforça-se
aqui a ideia de que a iniciativa da salvação é de Deus, mas esta exige a resposta e
o acolhimento daqueles que entram em contacto com esta revelação. Trata-se da
fé que é exigida para reconhecer a presença ‘do Verbo que se fez homem e veio
habitar connosco’ (cf. 1,14a).
Neste sentido, os gestos e as palavras de Jesus não deixam ninguém como es-
tava antes de se encontrar com ele. Niguém sai ‘imune’. Cada encontro pressupõe
a revelação da presença de Deus no mundo, através do Verbo incarnado. Uma
revelação que, em Jo, assume a forma literária de diálogo: basta pensar no diálo-
go sobre um ‘novo nascimento’ com Nicodemos (3,1ss); sobre a ‘água viva’ com
a samaritana (4,1ss); sobre o ‘alimento’ com os discípulos (4,31-38); sobre a ‘luz’
com o cego de nascimento e com os judeus (9,1ss); sobre a ‘ressurreição e a vida’
com Marta e Maria – irmãs de Lázaro (11,20ss). A própria oração de Jo 17 tem a

26
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 19-20. Ver ainda: V. Mannucci,
Giovanni il Vangelo narrante, Bologna 1993, 312-319.
27
  Cf. G. Ghiberti, «Introduzione al Vangelo secondo Giovanni», Torino 2003, 54.

287
forma literária de diálogo entre Jesus e o Pai. Ou ainda, no fim deste evangelho,
os diálogos de Jesus ressuscitado com Maria de Magdala (20,15-17), com Tomé
(20,27-29) e com os discípulos (21,5-12)28.
Diálogos que revelam uma intencionalidade peculiar do quarto evangelho,
não surgindo com a mesma clareza nos sinóticos: atualização eclesial da recorda-
ção do que Jesus disse e fez, pela ação do Espírito Santo. Jo procura mostrar que,
em cada acontecimento, o Jesus ‘histórico’ coincide com o Jesus presente na sua
Igreja. Uma das indicações mais claras desta afirmação está na forma plural ‘nós’,
quando Jesus diz a Nicodemos: «Em verdade, em verdade te digo: nós falamos do
que sabemos e damos testemunho do que vimos» (3,11ab). Os dois planos – Jesus
e a Comunidade – cruzam-se neste ‘nós’29. Por isso, a cristologia joânica revela
de forma mais evidente e clara, do que nos sinóticos, que não é apenas uma cris-
tologia de Jesus, mas de toda a comunidade do quarto evangelho30. Deste modo,
podemos dizer que os diálogos falam da manifestação de Deus no mundo e que,
de certa forma, caraterizam e identificam a comunidade de Jesus. Uma comuni-
dade de salvação que tem origem na entrega total do Filho, até à morte na cruz,
unindo a si todos aqueles a quem tinha sido enviado: «Pai, quero que onde Eu
estiver estejam também comigo aqueles que Tu me confiaste, para que contem-
plem a minha glória, a glória que me deste, por me teres amado antes da criação
do mundo» (17,24)31.

1.2. Os critérios que presidiram à escolha de 6 encontros


Os critérios que iremos usar para apresentar os encontros de Jesus em Jo são:
(1) procurar escolher os encontros mais emblemáticos e capazes de nos colocar
diante da grande questão da esperança que Jesus oferece a cada um; (2) procurar
um leque diversificado de encontros para que possamos ter uma ideia mais geral
desses dinamismos no quarto evangelho; (3) procurar não repetir os encontros
não só internamente mas também em relação aos evangelhos sinóticos; (4) pro-
curar textos sem qualquer paralelo podendo, assim, sublinhar alguma especifi-
cidade ou particularidade que configura o sentido fundamental da mensagem
geral no conjunto dos quatro evangelhos; (5) procurar fazer emergir o trabalho
de análise ‘exegética’, feito previamente, que permite trabalhar com maior segu-

28
 Cf. V. Mannucci, Giovanni il Vangelo narrante, Bologna 1993, 44 e 47.
29
  Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 400 e 425.
30
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 157.
31
  Cf. G. Ghiberti, «Introduzione al Vangelo secondo Giovanni», Torino 2003, 59.

288
rança quer com o texto original em grego, quer com a tradução em português; (6)
por fim, escolhemos um itinerário que respeita a ordem com que cada encontro
acontece no próprio evangelho - deste modo, o itinerário começa em Jesus que
chama os seus discípulos, passa pelos encontros de conversão, sem deixar de as-
sinalar os encontros na proximidade da morte, e termina com os encontros do
ressuscitado.

2. O ‘conteúdo’ da esperança a partir de alguns encontros de Jesus no


quarto evangelho

2.1. Jesus encontra-se com os que vai chamar para discípulos32


O relato do chamamento dos primeiros discípulos no quarto evangelho (Jo
1,35-51)33 distancia-se na geografia, na sequência e no conteúdo do relato dos
sinóticos (Mc 1,16-20; Mt 4,18-22; Lc 5,1-11)34. Segundo Raymond Brown este
encontro de chamamento, em Jo, terá acontecido em Betânia, na Transjordânia,
e os primeiros discípulos eram discípulos de João Baptista, enquanto nos sinó-
ticos o encontro de chamamento dos primeiros discípulos acontece ao longo do
Mar da Galileia, onde Pedro, André, João e Tiago estavam a pescar35. Este relato
começa precisamente por falar de João Baptista e de dois dos seus discípulos, um
dos quais seria André, a quem o profeta indica Jesus como o ‘cordeiro de Deus’.

32
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: J. Beutle, Das Johannesevange-
lium, Freiburg im Breisgau 2013, 107-118; F. Marin, W. Wright, The Gospel of John, Grand Rapids
2015, 47-53; U.C. von Wahlde, The Gospel and Letters of John, II, Michigan 2010, 59-79; C. Knights,
«Nathanael and Thomas: Two Objectors, Two Confessors, ExpT 125 (2014) 328-332.
33
  Léon-Dufour propõe precisamente uma delimitação do texto como aqui sugerimos nós (1,35-51).
Este exegeta intitulou esta parte como «À la suite de Jésus». Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile
selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 183-203. Raymond Brown sugere uma primeira parte (1,19-51) com vá-
rias unidades, acabando por dividir esta nossa proposta de unidade literária em duas perícopas: «The
Baptist’s Disciples come to Jesus: the First Two Disciples and Simon Peter» (vv.35-42) e «The Baptist’s
Disciples come to Jesus: Philip and Nathanael» (vv.43-51). Cf. R. Brown, The Gospel According to John
(I-XII), I, New York 1966, 73-92. Craig Keener, na mesma linha, assume uma grande unidade (1,19-
51), distinguindo duas partes, na unidade literária que aqui consideramos: «New Disciples» (vv.35-42)
e «Philip and Nathanael» (vv. 43-51). Cf. C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 429-
491. Renzo Infante também propõe uma grande seção Jo 1,19-51, intitulada «Introduzione al ministe-
ro: Giovanni e i primi discepoli», depois subdividida em cinco partes: «La testimonianza di Giovanni
dinanzi agli inviati di Gerusalemme» (19-28); «La testimonianza di Giovanni di fronte a Gesù» (29-
34); «I primi discepoli da Giovanni a Gesù» (35-39); «La venuta di Simone» (40-42); «L’incontro con
Filippo e Natanael» (43-51). Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 58-75.
34
  Cf. C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 465-467.
35
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 77.

289
Depois seguem-se dois ‘grupos’ de diálogos, separados temporalmente por um
dia: um primeiro grupo tem três diálogos - entre Jesus e os dois discípulos de
João Baptista, entre André e o seu irmão Pedro, entre Pedro e Jesus; e um segun-
do grupo também tem três diálogos - entre Jesus e Filipe, entre Filipe e Natanael,
entre Natanael e Jesus. Sublinhe-se que Natanael, que aqui ocupa uma parte sig-
nificativa do texto, é ignorado na tradição sinótica36.
Segundo Renzo Infante todo este processo faz corresponder ao esquema re-
velador do testemunho, alicerçado no binómio ‘escutar-seguir’. Com este episó-
dio de chamamento inicia-se a descrição da experiência de fé a partir do testemu-
nho daqueles que encontraram Jesus (cf. 1,41.45; 4,29.39; 20,2.18.25)37. De facto,
os discípulos em Jo são descritos como representantes do acreditar. Jesus diz aos
seus discípulos: «é o próprio Pai que vos ama, porque vós já me tendes amor e
já credes que Eu saí de Deus» (16,27). Jesus toma a iniciativa de chamar e aos
homens requer-se a fé para o seguir. Neste processo de encontro entre Deus e os
homens, o autor do quarto evangelho não vê nenhuma contradição entre o amor
de Deus que chama, através de Jesus, e o homem que responde, através da fé.
Uma resposta que nos permite dizer que o discípulo é um crente e que um crente
não pode deixar de se tornar um discípulo (cf. 2,11)38. É este o contexto teológico
profundo presente também neste encontro de Jesus com algumas pessoas que
acolhem a sua mensagem e se disponibilizam a segui-lo.
A nossa perícopa começa precisamente por dizer ‘no diz seguinte’ (v.35a).
Falamos do dia seguinte ao baptismo de Jesus (vv.31-34), dia em que João Ba-
tista, depois de baptizar Jesus, afirmou: «eu vi e dou testemunho de que este é o
Filho de Deus» (v.34). Deste modo, segundo o texto, no dia seguinte, enquanto
Jesus passava, João Baptista disse a dois dos seus discípulos: «Eis o Cordeiro de
Deus» (v.36b)39. Mas porque não repete toda a expressão usada anteriormente no
contexto do baptismo - «Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo»
(v.29b)? Segundo Léon-Dufour a expressão não tem aqui exatamente a mesma
função que tinha na primeira situação. Primeiro o profeta exprime a sua admira-
ção por Deus que conduz a bom porto a obra da salvação, não mediante o culto
mas mediante o seu ‘cordeiro’. Aqui, pelo contrário, João baptista concentra a

36
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 184.
37
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 67.
38
  Cf. G. Ghiberti, «Introduzione al Vangelo secondo Giovanni», Torino 2003, 57.
39
  «Questa imagine esodale evidentemente è molto pregnante per descrivere la missione del messia».
Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 87.

290
atenção dos seus ouvintes sobre a pessoa que realizará o plano divino, sobre este
Jesus que está presente40.
Depois destas palavras, os dois discípulos de João ‘seguiram Jesus’
[ἠκολούθησαν τῷ Ἰησοῦ] (cf. v.37). Mas quem são estes dois discípulos? Ao longo
do texto ficaremos a saber que um deles era André (cf. v.40), mas o outro não
sabemos quem seria41. Contudo, ao evangelista importa sublinhar que ambos
seguiram [ἠκολούθησαν] Jesus42. Seguiram no sentido ‘físico’, ou seja, caminha-
ram atrás de Jesus. Para os judeus a condição de discípulo passa precisamente
por ‘seguir’ o Mestre. Um seguimento que é físico mas que se alarga aos conhe-
cimentos e à sabedoria. Aqueles que antes tinham seguido João Baptista ago-
ra começam a seguir Jesus. Neste sentido, os primeiros discípulos de Jesus não
são representados aqui como pescadores da Galileia que abandonam o seu barco
para seguir Jesus, mas como homens que estão já num processo de ‘busca’ e de
‘procura’43. Estes seguidores representam o ‘percursor’ do real discipulado não
tanto centrado no ‘aprender’ mas muito mais no ‘aderir’44. Trata-se de discípulos
que procuram um sentido para a sua vida e, por isso, aderem a Jesus que lhes ofe-
rece a esperança para esse mesmo sentido. Neste contexto, podemos recordar, o
que disse Jesus, depois de se apresentar como a ‘Luz do mundo’: «Quem me segue
não andará nas trevas, mas terá a luz da vida» (Jo 8,12b).
Em seguida, o evangelista apresenta-nos o diálogo entre Jesus e estes dois
discípulos de João Baptista. Um diálogo que começa precisamente com uma ati-
tude de Jesus – ‘voltou-se para trás’ (v.38a). Depois deste ‘voltar-se para trás’ Jesus

40
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 186.
41
  Sobre este ‘outro discípulo’ há várias teorias: podia ser o ‘discípulo amado’, tradicionalmente iden-
tificado com João, filho de Zebedeu; podia ser, seguindo a tradição sinótica, um dos quatro primeiros
discípulos - André e Pedro, João e Tiago (sendo que não seria André nem Pedro); podia ser o próprio
Filipe, uma vez que seria muito amigo de André, andavam sempre juntos e eram da mesma terra (cf.
v.44). Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 73-74.
42
  Este ‘seguimento’ - ἠκολούθησαν é o aoristo do verbo ἀκολουθέω - tem por base o verbo ἀκούω,
que ocorre 59 vezes no quarto evangelho e faz parte do seu vocabulário de fé, segundo a mais genuina
tradição bíblica que faz da escuta a dimensão prioritária e irrenunciável do encontro com Deus. O
autor insiste, neste contexto, que este seguimento que não é apenas um ‘seguir’ em sentido físico, mas
significa caminhar na mesma direção de vida. Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 87.
De facto, o verbo ἀκούω tem o significado de ‘ouvir’, ‘perceber com o ouvido’ ou ‘dar ouvidos’ (com o
sentido de prestar atenção). Cf. C. Rusconi, «ἀκούω», in DGNT, São Paulo 2003, 30.
43
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 186-187. «The theme of
‘following’ Jesus appears in vss. 37,38,40,43. This means more than walking in the same direction, for
‘follow’ is the term par excellence for the dedication of discipleship». R. Brown, The Gospel According
to John (I-XII), I, New York 1966, 78.
44
  Cf. C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 467-468.

291
toma a iniciativa e perguntou-lhes: «Que procurais?45» (v.38a). Este tomar a ini-
ciativa no chamamento será ‘confirmado’ posteriormente quando Jesus diz aos
discípulos: «Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi a vós» (Jo
15,16a). Este ‘que procurais?’ são as primeiras palavras de Jesus no evangelho de
Jo. Também aqui tudo começa com uma pergunta. Esta pergunta, feita no come-
ço do evangelho, pode recordar-nos outra semelhante que Jesus ressuscitado fará
a Maria Madalena no fim deste livro: «Quem procuras?» (29,15b). Contudo, o
contexto é outro. Na passagem que aqui estudamos a pergunta «Que procurais?»
(v.38a) facilita a decisão e, sobretudo, a pergunta que os discípulos irão fazer.
Uma pergunta que, inserida na ‘dinâmica da procura’, nos ‘revela’, enquanto lei-
tores, o programa teológico-espiritual presente, sobretudo, neste quarto evange-
lho46. Jesus vem ao encontro dos que andam à ‘procuram’ Deus.
Neste sentido, os dois discípulos respondem à pergunta de Jesus com outra
pergunta: «Rabbi (…) onde [ποῦ] moras [μένεις]?» (v.38b)47. Não se trata tanto de
conhecer a ‘morada’ do ‘mestre’ mas essencialmente de confirmar a identidade.
Esta pergunta ‘onde moras?’, depois do título ‘rabbi’, reenvia-nos à dimensão de
ensino e de relação entre o aluno-mestre. Os alunos de um rabbi (talmîdîm) não
só vão à sua escola, mas frequentemente moram com ele, para aprender não só
a sabedoria das suas palavras, mas, sobretudo, da sua própria vida. No entan-
to, quer o uso do advérbio ποῦ, quer o uso do verbo μένω, confere à pergunta
um sentido mais profundo. Este advérbio, que ocorre dezanove vezes no quarto
evangelho, quando se refere a Jesus, surge sempre em ligação com a sua identida-
de: com a origem (cf. 1,39; 7,11.35; 9,12; 11,57; 20,2.13.15) ou com a finalidade da
sua missão (cf. 8,14; 13,36; 14,5; 16,5)48.

45
  Sugerimos esta tradução, que nos parece corresponder melhor ao sentido original do texto, em vez
da proposta portuguesa que diz: «Que pretendeis?». O texto grego diz: τί ζητεῖτε. Com efeito, o verbo
ζητέω quer dizer ‘procurar alguém’ ou ‘procurar algo’. Cf. C. Rusconi, «ζητέω», in DGNT, São Paulo
2003, 214. Este verbo, para além deste significado mais ‘profano’, tem aqui um sentido mais ‘teológico’,
uma vez que é usado na linguagem, quer profética, quer sapiencial, para indicar a ‘procura’ ou a ‘não
procura’ de Deus (‘não procura’ - cf. Is 9,12; 31,1; Jer 10,21 e ‘procura’ – cf. Is 55,6; Jer 29,13; Sl 24,6;
27,8;105,4; Sab 6,12-16). Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 66-67. Léon-Du-
four reforça a nossa opção ao traduzir por: «Que cherchez-vous?». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évan-
gile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 183. Renzo Infante traduz também por: «Que cosa cercate?». R.
Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 67. No mesmo sentido, Raymond Brown traduz
por: «What are you looking for?». R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 73.
46
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 87.
47
  Só Jo usa com frequência o termo ‘Rabbi’ (Lc não usa e em Mt só Judas trata Jesus assim). Jo usa
também, muitas vezes, o termo ‘Mestre’ para designar o modo de os discípulos se referirem a Jesus.
Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 75. Sobre o uso de ‘Rabbi’ acon-
selhamos ainda: R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 67.
48
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 67-68.

292
Jesus responde com uma afirmação que é, ao mesmo tempo, um convite:
«Vinde e vereis» (v.39a). Mais do que uma resposta clara é um convite a fazer
uma experiência. De tal modo que serão eles, pelo conhecimento direto, que irão
‘descobrir’ a resposta49. Léon-Dufour diz que na linguagem deste evangelista,
‘vir (a Jesus)’ significa essencialmente ‘crer nele’ e este ‘ver’ (a habitação de Jesus)
liga-se ao ‘ver’ (a habitação definitiva) que aprece descrita no fim desta perícopa:
«vereis o Céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo por meio do Filho do
Homem» (v.51b)50. O ‘vir e ver’ revela, por isso, uma experiência de aproximação
a Cristo que conduz à adesão a ele. Uma experiência que indica a base de todo o
testemunho. Trata-se de um convite de Jesus para se colocar a caminho a fim de
poder experimentar pessoalmente a sua identidade e acreditar nele a partir dessa
experiência – um ‘seguir’ que é, essencialmente, um ‘estar’. Mc dirá, neste con-
texto: «[Jesus] Estabeleceu doze para estarem com Ele e para os enviar a pregar»
(Mc 3,14)51. Um ‘estar com’ para aprofundar as razões do ‘seguir’. Diz o autor do
quarto evangelho que ‘foram com Jesus, viram onde morava e ficaram com ele
nesse dia’ (cf. v.39b). Será nessa relação com Jesus que os discípulos irão descobrir
a sua própria identidade.
Este diálogo de Jesus com estes dois discípulos termina com a indicação de
que «era cerca da hora décima52» (v.39c) – que corresponde às quatro da tarde.
Será que esta indicação da hora tem algum significado? Muitas vezes estabele-
ce-se uma relação, como acontecerá com o ‘meio-dia’ (cf. 4,6 – encontro com a
samaritana; cf. 19,14 – início da crucifixão). Também se pode pensar que 10 seja
um número significativo no AT e um número considerado perfeito para os pita-
góricos e para Filão. Também se pode associar esta indicação ao facto de poder
ser o fim de sexta-feira, quase a entrar no sábado – que iria começar duas horas
depois. Nesse caso, essa seria uma razão forte para os discípulos ficarem com

49
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 89.
50
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 189-190.
51
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 68.
52
  Optámos aqui por seguir uma versão mais literal e mais próxima do original em vez da tradução
portuguesa que diz: «Eram as quatro da tarde». O texto original diz: ὥρα ἦν ὡς δεκάτη. A palavra
δεκάτη é o substantivo feminino de δέκατος e quer dizer décima. Cf. C. Rusconi, «δεκάτη», in DGNT,
São Paulo 2003, 118. Léon-Dufour reforça a nossa opção ao traduzir por: «c’était environ la dixième
heure». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 183. No mesmo sen-
tido, Renzo Infante traduz por: «era circa l’ora decima». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello
Balsamo 2015, 69. No entanto, Raymond Brown opta pelo sentido, à imagem da proposta portuguesa,
ao traduzir por: «it was about four in the afternoon». R. Brown, The Gospel According to John (I-XII),
I, New York 1966, 73. Efetivamente a décima hora corresponde hoje às ‘quarto da tarde’, já que às 6:00
da manhã iniciava a primeira hora.

293
Jesus53. Em qualquer caso, estamos a falar do fim de um dia. O dia está a escure-
cer e de noite é menos seguro caminhar (os ladrões normalmente atuam de noite
- cf. Job 24,14; Jer 49,9) – daí que faça todo o sentido Jesus convidá-los a ficarem
com ele (o próprio Jesus ressuscitado será convidado pelos discípulos de Emaús a
ficar com eles porque estava a anoitecer)54.
Depois disto, entramos no segundo diálogo ente Jesus e Simão (vv.40-42).
Não sabemos quando acontece este diálogo. Na verdade o interesse do narrador
é o de sublinhar o ‘efeito’ produzido pelo facto de aqueles discípulos terem ido
‘morar’ com Jesus. O ‘fogo’ acendeu-se neles e propagou-se rapidamente55. Atra-
vés do testemunho de André, Simão Pedro torna-se seguidor de Jesus. Mas este
‘seguir’ exige sempre o encontro pessoal com o próprio Jesus56. André é apresen-
tado como um dos dois discípulos que ‘ouviram João e seguiram Jesus’ (cf. v.40b).
Ouvir e seguir são dois verbos que dizem muito da condição do discípulo57. Deste
modo, os discípulos começam a agir como apóstolos e a conduzir outros até Je-
sus58. Trata-se de uma experiência que, uma vez feita, faz com que cada discípulo
sinta o desejo de levar essa ‘boa-nova’ a outros, para que outros possam saborear
da mesma alegria e fazer a mesma experiência de Jesus, ou melhor, possam fazer
a ‘sua’ experiência de Jesus. Neste sentido, podemos dizer que o ‘testemunho’ dos
discípulos não é tanto falar de Jesus mas conduzir outros ao ‘encontro’ com Jesus.
Deste modo, André vai ter com o seu irmão Simão e diz-lhe: «Encontrámos
[εὑρήκαμεν] o Messias!» (v.41b)59. Este ‘encontrar’ faz-nos retomar a pergunta
inicial de Jesus – ‘que procurais?’. A procura dos discípulos vai na direção certa
quando encontram Jesus60. Depois desta ‘revelação’, André leva o seu irmão até

53
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 75. «The ‘tenth hour’ here
probably around 4:00 P.M., which during most seasons would be too late in the afternoon to walk back
from Capernaum (...) and certainly from Nazareth (...) to a town like Bethsaida (...) before nightfall. In
this case ancient hospitality would have required him to have offered for them to spend the night». C.
Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 470.
54
  Cf. C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 468.
55
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 190-191.
56
  Cf. C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 475.
57
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 90.
58
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 79.
59
  É interessante que no quarto evangelho seja André a confessar Jesus como o Messias, logo no en-
contro do chamamento. Já nos sinóticos é Pedro que o faz ‘ao meio’ do evangelho (cf. Mc 8,29 e para-
lelos). Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 79-80. Sobre o sentido do
título ‘rabbi/messias’ aconselhamos: C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 468-469.
60
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 92. O autor completa esta frase dizendo: «Nel
Quarto vangelo la competenza del trovare Gesù è riservata ai discepoli, mentre è negata ai capi giudei
(Gv 7,34.35.36)».

294
Jesus (cf. v.42a). Na tradição sinótica André e Simão são chamados ao mesmo
tempo por Jesus. No entanto, segundo o quarto evangelho, Simão será chamado
através da mediação do seu irmão. Este ser chamado em ‘segundo’ lugar não in-
cide sobre a posição de ‘primeiro’ que Simão ocupa no grupo dos apóstolos, como
aliás se confirmará pelas palavras de Jesus no diálogo com ele61: «Tu és Simão, o
filho de João. Hás de chamar-te Cefas [Κηφᾶς]» (v.42b)62. O narrador não nos dá
nenhum motivo especial para Jesus dar a Simão o nome de ‘Cefas’63. Em seguida
o narrador diz explica que Cefas «significa Pedro [Πέτρος]64» (v.42c).
Segundo Raymond Brown, só Jo, entre os evangelistas, fez a transliteração
grega do nome aramaico de Pedro. Este nome ‘Cefas’ pode significar ‘Pedro’ ou
‘Pedra’. Em Mt vemos este jogo de palavras quando Jesus diz, depois da confissão
messiânica de Pedro: «Tu és Pedro [Πέτρος], e sobre esta Pedra [Πέτρᾳ] edificarei
a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela» (Mt 16,18). Aqui
ao nome associa-se o papel de Pedro como uma ‘pedra’ fundamental para a futu-
ra comunidade cristã. No entanto, a origem desta especificação do nome poderá
ter algo a ver com o caráter ou com a história de vida de Simão65. Não deixa de

61
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 191. Nesta página, este
mesmo autor, diz que este facto faz supor que existia uma outra tradição sobre o chamamento dos
primeiros discípulos. Ver ainda: S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 91-92.
62
  Cefas é o termo aramaico trasliterado do grego Κηφᾶς. Ocorre apenas aqui no quarto evangelho e
depois nas Cartas de Paulo (1Cor 1,12; 3,22; 9,5; 15,5; Gal 1,18; 2,9.11.14). Dizer ainda que, no quarto
evangelho, Simão será chamado não só de Cefas mas também - Pedro, Simão Pedro, Simão filho de
João e Simão de João. Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 93.
63
  A mudança do nome de algumas personagens bíblicas explicita a vocação a uma particular missão:
«Já não te chamarás Abrão, mas sim Abraão, porque Eu farei de ti o pai de inúmeros povos» (Gn 17,5);
«O teu nome não será mais Jacob, mas Israel; porque combateste contra Deus e contra os homens e
conseguiste resistir» (Gn 32,29). Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 69.
Ver ainda: C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 478-479; S. Grasso, Il Vangelo di
Giovanni, Roma 2008, 93.
64
  Sugerimos esta proposta em vez da tradução portuguesa que diz ‘Pedra’, talvez procurando reflec-
tir o sentido da palavra Pedro. De facto, no texto original aparece Πέτρος, que se traduz por Pedro.
Cf. C. Rusconi, «Πέτρος», in DGNT, São Paulo 2003, 372. Vários exegetas suportam a nossa oçpão.
Léon-Dufour traduz por ‘Pierre’. Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris
1988, 183. Raymond Brown traduz igualmente por ‘Peter’. Cf. R. Brown, The Gospel According to John
(I-XII), I, New York 1966, 73. Do mesmo modo Renzo Infante traduz por ‘Pietro’. Cf. R. Infante (a
cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 69.
65
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 76. A palavra hebraica kef
ou aramaica kyph’ significa gruta formada da rocha que defende e cobre (cf. Jb 30,6; Jer 4,29). Pro-
vavelmente esta palavra indica, de forma figurada, a função que este discípulo assume dentro da co-
munidade crente. Será o próprio narrador que nos indica esse sentido quando traduz este nome com
o termo grego Πέτρος, que quer dizer simplesmente ‘pedra’. Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni,
Roma 2008, 93.

295
ser interessante que Mt, ao contrário de todos os outros evangelhos, seja o único
a estabelecer uma relação entre este nome e a ‘confissão messiânica’ de Pedro (cf.
16,16-18). De facto, o quarto evangelho não só não estabelece essa relação como
enquadra a confissão de Pedro num contexto diferente dos sinóticos: «Jesus dis-
se aos Doze: ‘Também vós quereis ir embora?’ Respondeu-lhe Simão Pedro: ‘A
quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna! Por isso nós cremos e
sabemos que Tu é que és o Santo de Deus’» (Jo 6,67-69)66.
Segue-se o diálogo entre Jesus e Filipe (vv.43-44). Este diálogo começa com a
indicação de que se trata de um novo dia - «no dia seguinte» (v.43a). Trata-se do
‘dia seguinte’ ao diálogo de Jesus com Pedro (e André). Diz o texto que «No dia
seguinte, ele67 resolveu sair para a Galileia» (v.43). Quer a Galileia quer o nome
grego Filipe revelam uma opção, pelas ‘periferias geográficas’ e pelos ‘pagãos’,
que terá consequências e implicações concretas no cristianismo das primeiras
comunidades. Uma opção que o quarto evangelho irá sublinhar ao referir que
Jesus é Galileu e que a ‘elite’ judaica despreza todos os que vêm dessa região:
«Responderam-lhe eles [sumos-sacerdotes e fariseus]: ‘Também tu [Nicodemos]
és galileu? Investiga e verás que da Galileia não sairá nenhum profeta’ [referindo-
-se a Jesus]» (7,52)68.
Contudo, esta passagem apresenta uma dificuldade gramatical. Não há ne-
nhum sujeito para a frase ‘decidiu partir’. Habitualmente os tradutores associam,
pelo contexto, a uma decisão de Jesus. Mas Léon-Dufour inclina-se mais para a
possibilidade de ser André69. Deste modo, podemos pensar, como Léon-Dufour,
que não foi Jesus quem decidiu ir para a Galileia mas André. Ele, que antes já
tinha ido ao encontro de Simão, porque não ir agora ao encontro de Filipe? Nesse

66
  Cf. C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 476-477.
67
  Preferimos o pronome ‘ele’ à tradução portuguesa que propõe ‘Jesus’. De facto, no texto grego não
há nenhum sujeito para a expressão ‘decidiu partir’. Deste modo este ‘ele’ pode ser Jesus, mas tam-
bém pode ser André. Os exegetas optam por soluções diferentes. Léon-Dufour traduz: «Le lendemain
[André] avait décidé de partir pour la Galilée». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-
IV), I, Paris 1988, 183. Raymond Brown traduz simplesmente: «The next day he wanted to set out for
Galilee». R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 81. Renzo Infante traduz,
em consonância com a tradução portuguesa: «Il giorno dopo Gesù decise di partire per la Galilea». R.
Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 71.
68
  Cf. C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 480.
69
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 192. Craig Keener, pelo
contrário, defende que se trata de Jesus, dizendo: «Jesus ‘went out’ into Galilee (1:43) to find an em-
phatically Galilean disciple (cf. 1:44;12:21) who would soon after bring to him a ‘true Israelite’ (1:47)».
C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 480.

296
caso, só depois Jesus viu Filipe e lhe disse: «Segue-me!» (v.43c)70. Neste contexto,
por que não também pensar que Filipe fosse o outro discípulo de João Baptista?
Um seria André (cf. v.40b), do outro não temos informação de quem seria. Ainda
que não possamos dizer com certeza, todavia podemos intuir haver razões que
favorecem esta possibilidade: André e Filipe são nomeados juntos em certas listas
de apóstolos (cf. Mc 3,18 e At 1,13); são da mesma cidade – Betsaida (cf. v.44)71;
parecem ser uma dupla de amigos - intrevêm um depois do outro no episódio
da multiplicação dos pães (cf. Jo 6,5-9) e juntos intercedem junto de Jesus pelo
pedido que lhes foi feito pelos prosélitos gregos (cf. Jo 12,22)72.
Depois disto temos o diálogo entre Filipe e Natanael (vv.45-46). Filipe encon-
tra Natanael73 e diz: «Encontrámos [εὑρήκαμεν] aquele sobre quem escreveram
Moisés, na Lei, e os Profetas: Jesus, filho de José de Nazaré» (v.45). Filipe usa o
mesmo verbo [εὑρήκαμεν] que antes André tinha usado quando encontrou o
seu irmão Simão (cf. v.41b). Contudo, aqui Filipe não fala apenas de Jesus como
o Messias, já que junta a esse título divino a dimensão humana de ser também

70
 Raymond Brown, insistindo que não é claro o sujeito desta frase, refere que Pedro foi o último a ser
mencionado e, por isso, gramaticalmente seria o sujeito mais provável. Contudo, pelo contexto e pelo
sentido, também pensa que o sujeito deverá ser o André. Cf. R. Brown, The Gospel According to John
(I-XII), I, New York 1966, 81.
71
  Betsaida [Βηθσαϊδά] significa à letra ‘casa da pesca’. Deveria ser uma pequena aldeia de pescado-
res situada a oriente da ‘entrada’ do rio Jordão no lado de Genesaré (conhecido também por lago de
Tiberíades ou mar da Galileia), não muito distante de Cafarnaum. Era um território que tinha muito
contacto com o mundo helenístico e profundamente marcado pela cultura grega. Cf. R. Infante (a
cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 70-71. Ver ainda: S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma
2008, 94-95. Craig Keener refere a possibilidade destes dois irmãos André e Pedro, naturais de Betsai-
da, terem ido viver para Cafarnaum quando casaram. Recordemos que os sinóticos referem que a casa
de Pedro era em Cafarnaum. Este exegete sublinha ainda que era normal uma pessoa ser identificada
com a cidade onde nasceu, mesmo depois de deixar a cidade. Deste modo, seria fácil harmonizar a
tradição dos sinóticos com a do quarto evangelho. Cf. C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts
2003, 481-482.
72
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 193.
73
  Natanael [Ναθαναήλ] é um discípulo que não aprece na lista dos ‘Doze’. No entanto alguns identifi-
cam-no com Bartolomeu, cujo nome significa igualmente ‘Deus deu’. Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de
l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 194. Craig Keener junta uma curiosa reflexão a esta discussão
ao referir que Bartolomeu representa a forma grega do aramaico ‘Bar Tholmai’ que significa ‘filho de
Tholmai’. Ou seja, podemos pensar que o nome do filho de Tholmai [Βαρθολομαῖος] fosse Natanael.
Seria uma forma de harmonizar a diferença entre os dois nomes. Cf. C. Keener, The Gospel of John,
I, Massachusetts 2003, 482. Βαρθολομαῖος é a transliteração do aramaico ‫[ בַּר ־ תַּ ְל ַמי‬bar-talmay]. Cf.
C. Rusconi, «Βαρθολομαῖος», in DGNT, São Paulo 2003, 94. Sobre Natanael, aconselhamos ainda: R.
Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 82; R. Infante (a cura di), Giovanni,
Cinisello Balsamo 2015, 71.

297
‘filho de José de Nazaré’74. De facto, Filipe não fala apenas ‘daquele’ sobre quem
falou a Lei e os Profetas, isto é, toda a Escritura (assinalada pela autoridade reco-
nhecida a Moisés), mas também de Jesus de Nazaré.
Esta relação e, sobretudo, esta proveniência, suscitavam ceticismo e perplexi-
dade por um dupla razão: por um lado, Nazaré é uma pequena ‘cidade’ de pou-
quíssima importância que não era referida na Escritura nem na literatura judaica;
por outro lado, o Messias deveria nascer da descendência de David e provir de Be-
lém. Introduz-se, assim, um tema fundamental e recorrente do quarto evangelho:
a verdadeira origem de Jesus. Os homens do seu tempo julgam conhecê-la, porque
sabem da sua proveniência de Nazaré e o nome dos seus pais terrenos, mas muitas
vezes Jesus dirá que ninguém conhece realmente de onde ele vem se não quem crê
nele75. Natanael, surpreendido com afirmação de Filipe, diz: «De Nazaré pode vir
alguma coisa boa?» (v.46a). Esta pergunta não coloca o problema do papel salvífico
de Jesus, mas coloca apenas em questão que nos desígnios de Deus esta cidade gali-
laica tenha um papel positivo76. Desde logo, este ‘dito’ podia ser um provérbio local
que refletisse a rivalidade entre Caná, cidade de Natanael, e a vizinha Nazaré77. En-
tão Filipe, fazendo apelo à sua própria experiência e fazendo eco das palavras que
Jesus lhe tinha dito (cf. v.39a), respondeu a Natanael: «Vem e vê!78» (v.46b).
Em seguida, temos o diálogo entre Jesus e Natanael (vv.47-50). Jesus volta a
tomar a iniciativa. Jesus viu Natanael e diz-lhe: «Aí vem um verdadeiro israelita
[ἀληθῶς Ἰσραηλίτης], em quem não há fingimento [δόλος]» (v.47b). Uma pessoa

74
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 194. Segundo Raymond
Brown, seria de esperar a expressão mais comum - ‘o filho de Maria’ (Mc 6,3a). Cf. R. Brown, The
Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 82.
75
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 71. Um exemplo desta tensão pode ser
encontrada em Jo 7,27-29: «27‘Mas nós sabemos donde Ele é, ao passo que, quando chegar o Messias,
ninguém saberá donde vem’. 28Entretanto, Jesus, ensinando no templo, bradava: ‘Então sabeis quem
Eu sou e sabeis donde venho?! Pois Eu não venho de mim mesmo; há um outro, verdadeiro, que me
enviou, e que vós não conheceis. 29Eu é que o conheço, porque procedo dele e foi Ele que me enviou’».
BS. Ver ainda: C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 483-485.
76
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 96-97.
77
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 83.
78
  A palavra grega que ocorre é ἴδε, imperfeito aoristo ativo, na segunda pessoa do singular do verbo
ὁράω - traduz-se por ‘vê’. Cf. C. Rusconi, «ἴδε», in DGNT, São Paulo 2003, 231. Neste sentido, tradu-
zimos por ‘vem e vê’ e não ‘vem e verás’ como sugere a tradução portuguesa. Léon-Dufour suporta a
nossa opção ao traduzir: «viens et vois». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I,
Paris 1988, 183. Raymond Brown traduz com o mesmo sentido: «Come and see for yourself». R. Bro-
wn, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 81. Renzo Infante faz a mesma opção ao
traduzir: «vieni e vedi». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 71.

298
em quem não se encontra ‘mentira’ [δόλος]79. Esta afirmação não quer dizer ape-
nas que é ‘verdadeiro’ mas tem também uma forte conotação religiosa: trata-se da
atitude daquele que segue o caminho de Deus mantendo-se longe da idolatria e dos
enganos dos ídolos80. De facto, Jesus, que conhece as suas ovelhas (cf. 10,14), reco-
nhece, em Natanael, o verdadeiro Israel disponível para acolher Aquele que Filipe
tinha designado como o cumprimento da Escritura81. O facto de Natanael ser um
judeu fiel a Deus insere-o no dinamismo da ‘verdade’ [ἀλήθεια]. Um dinamismo
que Jesus reconhece e sublinha. Aquele que disse que era a ‘verdade’ («Eu sou o ca-
minho, a verdade e a vida» Jo 14,6a) reconhece aquele que é ‘verdadeiro’. Natanael
‘sente-se’ encontrado e (re)conhecido. Por isso, impressionado por esta ‘atitude’ de
Jesus, pergunta-lhe: «Donde me conheces [πόθεν με γινώσκεις]?» (v.48a)82. Jesus
responde dizendo: «Eu vi-te quando estavas debaixo da figueira!» (v.48b).
Esta resposta é inesperada e enigmática. Santi Grasso diz que na tradição
judaica era debaixo das figueiras que os mestres estudavam e ensinavam a Torah
– sendo, por isso, uma alegoria da Lei e de Israel (cf. Os. 9,10; 2,22; Na 3,12; Ab
3,17)83. Todavia, Craig Keener diz que o sentido alegórico que muitos atribuem à
‘figueira’ tem pouco suporte. Acabando por sugerir que, por um lado, seria nor-
mal estudar a Torah ‘debaixo de uma figueira’ (ou de outra árvore qualquer) so-
bretudo por causa da sombra em dia de sol, por outro lado ‘estar debaixo de uma
figueira’ poderia indicar descanso em oposição ao trabalho ou tranquilidade em
oposição a problemas84. Apesar disso, parece fazer sentido a opinião de Léon-
-Dufour quando sugere que esta resposta enigmática tem um contexto específico
na cultura judaica que só se percebe estudando a Lei, onde a ‘figueira’ se tornou
simbolicamente na árvore do conhecimento, da felicidade e da infelicidade. Nes-

79
  A palavra δόλος tem o significado de ‘dolo’, ‘fraude’, ‘mentira’ e ‘engano’. Id., «δόλος», in DGNT,
São Paulo 2003, 136.
80
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 72. Ver ainda: S. Grasso, Il Vangelo
di Giovanni, Roma 2008, 98.
81
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 195.
82
  O advérbio interrogativo πόθεν faz parte da linguagem joânica, aparendo 13 vezes. Este advérbio
coloca a questão da origem e tem a função de interrogar sobre a identidade da própria pessoa (Jo 2,9;
3,8; 4,11; 6,5; 7,27ab.28; 8,14ab; 9,29.30; 19,9) que só pode ser estabelecida a partir da sua proveniência.
O uso do verbo γινώσκω (que quer dizer ‘conhecer’ e ocorre 56 vezes, sendo a primeira em 1,10), tem
a função de colocar em relevo o excessional conhecimento de Jesus, que faz dele uma personagem
omnisciente numa cristologia típica do quarto evangelho (Jo 2,24.25; 5,6.42; 6,15; 10,14.27; 16,19;
17,25abc; 21,17). Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 98. Ver ainda: R. Infante (a cura
di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 47.
83
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 99.
84
  Cf. C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 486.

299
te sentido, a palavra de Jesus insinua que, estudando a Lei, Natanael preparou-se
para encontrar o próprio Jesus. Deste modo, compreende-se melhor a resposta
de Natanael que, para além de descobrir em Jesus um mestre (rabbi) superior, o
identificará como o Rei de Israel (cf. v.49) – que era para ele a maior dignidade
que se podia atribuir a alguém. Com estas palavras Natanael mostra ter com-
preendido uma singular proximidade de Jesus com Deus, a mesma do próprio
Messias davídico. A sua confissão é semelhante àquela que fará Pedro «nós cre-
mos e sabemos que Tu é que és o Santo de Deus» (6,69)85. Nesta afirmação de
Natanael podemos dizer que a promessa do Messias encontra a sua realização em
Jesus de Nazaré, que o AT se une definitivamente ao NT. Este reconhecimento
de Jesus como o ‘Filho de Deus’ e como o ‘rei de Israel’ revela a própria persona-
lidade de Jesus, de onde emerge uma compreensão mais profunda com estes dois
‘títulos’. Assim, Natanael (cf.v.49), depois de André (cf. v.41) e de Filipe (cf. v.45),
também reconhece Jesus como ‘presença divina’.
Depois disto Jesus dirá a Natanael: «Hás de ver coisas maiores do que estas!»
(v.50b). Estas coisas ‘maiores’ [μείζω] não dizem respeito ao confronto entre a re-
velação cristológica e o AT, mas antes à comparação entre a experiência inicial de
fé de Natanael e a revelação que o Pai realizará por meio da missão do seu Filho
Jesus86. Trata-se, por isso, de uma abertura ao futuro e de um ‘anúncio’ sobre os
‘sinais’ extraordinários que irão acontecer. De facto, Natanael, e todos os outros
discípulos, irão presenciar muitos ‘sinais’. O evangelista dirá explicitamente que
era um dos que se encontrou com o ressuscitado junto ao lago de Tiberíades (cf.
21,1-2). Nesta afirmação dirigida por Jesus a Natanael podemos ver, segundo Santi
Grasso, uma relação com a própria ação da comunidade cristã desafiada a dilatar
a ação salvífica inaugurada pelo Messias87. Esta afirmação ainda fará mais sentido
quando falarmos do ‘vós’ que surge no versículo seguinte.
Este diálogo com Natanael termina com a ‘promessa’ de Jesus: «em verdade, em
verdade vos digo: vereis o Céu aberto e os anjos de Deus subindo [ἀναβαίνοντας]
e descendo [καταβαίνοντας] sobre o Filho do Homem88» (v.51). A expressão ‘em
85
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 195-196. Sobre a inter-
pretação do sentido da ‘figueira’ aconselhamos ainda: R. Brown, The Gospel According to John (I-XII),
I, New York 1966, 83.
86
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 72.
87
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 100.
88
  Sugerimos esta tradução em vez da proposta portuguesa que diz ‘por meio do Filho do Homem’.
O texto original diz: ἐπὶ τὸν υἱὸν τοῦ ἀνθρώπου. A preposição ἐπί tem essencialmente o sentido de
‘sobre’. Cf. C. Rusconi, «ἐπί», in DGNT, São Paulo 2003, 186-187. Desde logo, Renzo Infante suporta
a nossa opção ao traduzir por: «sopra il Figlio dell’uomo». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello

300
verdade, em verdade’, traduz um duplo ‘ámen’ [ἀμήν] e tem o sentido de ‘asse-
guro-vos firmemente’89. Nesta frase o que é mais interessante reparar é que Jesus
já não fala apenas para Natanael (tu) mas o ‘auditório’ alarga-se com um ‘vós’.
Ou seja, através de Natanael todo Israel será convidado a ‘ver’ o ‘Céu aberto’.
Léon-Dufour afirma que esta última frase anuncia a ‘aliança definitiva’ através
de Jesus - nele a comunicação e a ligação entre os crentes e Deus realizar-se-á de
maneira estável e permanente90. Daí que esta expressão não refira tanto a iden-
tidade divina de Jesus mas o mistério da incarnação do Lógos. Uma comunhão
de um Deus que ‘desce’ (descendo - καταβαίνοντας) para depois ‘subir’ (subindo
- ἀναβαίνοντας). Todavia, o autor do quarto evangelho coloca o ponto de partida
na terra alterando a ‘ordem’, ao dizer primeiro ‘subir’ e depois ‘descer’, como se
o lugar de Deus não fosse mais o céu mas a terra, onde o Filho ‘desceu’. Abre-se
assim uma ‘via’ de comunicação direta entre a terra e o céu, num continuum de
revelação e de comunhão91.
Esta frase e este sentido assumem toda uma ‘linguagem apocalítica’ que po-
demos encontrar noutras passagens bíblicas: «quando me encontrava entre os
exilados, nas margens do rio Cabar, o céu abriu-se e, então, contemplei visões
divinas» (Ez 1,1bc); «Mas este [Estevão], cheio do Espírito Santo e de olhos fixos
no Céu, viu a glória de Deus e Jesus de pé, à direita de Deus» (At 7,55); «[Pedro]
Viu o Céu aberto e um objecto, como uma grande toalha atada pelas quatro
pontas, a descer para a terra» (At 10,11); «Depois, abriu-se no céu o santuário
de Deus e apareceu a Arca da aliança» (Ap 11,19a); «Depois disto, vi abrir-se no
céu o santuário que abrigava a Tenda do Encontro» (Ap 15,5). Este ‘Céu aberto’
recorda-nos ainda o sonho de Jacob em Betel: «viu uma escada apoiada na terra,
cuja extremidade tocava o céu; e, ao longo desta escada, subiam e desciam men-
sageiros de Deus» (Gn 28,12). Através deste sonho Deus fala a Jacob e confirma
a esperança, prometendo-lhe uma terra e uma grande descendência. Esta última
frase recorda-nos, sobretudo, o próprio momento do batismo de Jesus na ex-

Balsamo 2015, 75. Do mesmo modo, Raymond Brown traduz por: «upon the Son Man». Cf. R. Brown,
The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 81. Também Léon-Dufour traduz por: «sur le
Fils de l’homme». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 183.
89
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 83-84. Este mesmo autor,
nestas páginas, dirá que os sinóticos usam com o mesmo sentido ‘eu vos digo’ ou ‘em verdade vos
digo’, ou simplesmente ‘ámen’. Sobre este duplo ‘ámen’ aconselhamos: C. Keener, The Gospel of John,
I, Massachusetts 2003, 488-489.
90
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 195-197.
91
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 73-75. Ver ainda: S. Grasso, Il Van-
gelo di Giovanni, Roma 2008, 101.

301
pressão sinótica: «o Céu rasgou-se» (Lc 3,21c – cf. paralelos: Mc 1,10b; Mt 3,16b).
No baptismo o ‘céu aberto’ está intimamente ligado à descida do Espirito Santo
sobre o próprio Jesus e à voz do Pai que o identifica como ‘Filho muito amado’
(cf. Lc 3,22b)92. Por isso, será através de Jesus que o Pai manifestará a plenitude
da aliança entre Deus e a humanidade; em Jesus o céu e a terra unem-se defini-
tivamente, para sempre. Eis a esperança que Jesus oferece a cada discípulo que,
no encontro pessoal com ele, o decida seguir.

2.2. Jesus encontra-se com Nicodemos93


A nossa delimitação deste texto (3,1-21) não ignora as várias dificuldades
de limitação desta unidade literária94 e a dificuldade de situar este episódio no
que diz respeito ao seu ‘ambiente’. Nesta perícopa, Nicodemos surge, sobretudo,
colocado num contexto em que ‘muitos’ judeus acreditaram ao verem os sinais
realizados por Jesus (2,23b), durante as festas da Páscoa realizadas em Jerusalém

92
  Cf. C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 489-490.
93
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: J. Beutle, Das Johannesevan-
gelium, Freiburg im Breisgau 2013, 133-142; F. Marin, W. Wright, The Gospel of John, Grand Ra-
pids 2015, 68-76; U.C. von Wahlde, The Gospel and Letters of John, II, Michigan 2010, 113-148; Y.
Kouamé, Commencement d’un parcours. Une étude exégétique et théologique de Jn 3,1-21, Roma 2015;
K.V. Vrede, «A Contrast between Nicodemus and John the Baptist in the Gospel of John», JETS 57
(2014) 715-726; D.F. Ford, «Meeting Nicodemus: A Case Study in Daring Theological Interpretation»,
SJT 66 (2013) 1-17; N. Farelly, «An Unexpected Ally: Nicodemus’s Role within the Plot of the Fourth
Gospel», TrJ 34 (2013) 31-43; F. Back, «Die rätselhaften ‘Antworten’ Jesu. Zum Thema des Nikode-
musgesprächs (Joh 3,1-21)», EvTh 73 (2013) 178-189; K. Ricard, «Nicodème, le savant: Libre dialogue
à partir de Jn 3,1-8», Christus 57 (2010) 165-174.
94
  Nesta delimitação (3,1-21), seguimos autores como Raymond Brown, que deu o título «Discouse
with Nicodemus in Jerusalem», e Renzo Infante, que deu o título «Incontro notturno con Nicode-
mo e commento». Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 128-129;
Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 93-104. Contudo, Xavier Léon-Dufour
defende outra unidade literária, intitulada «La nouvelle naissance», que começa precisamente nos
últimos versículos do segundo capítulo e que se estende a todo o terceiro capítulo (2,23-3,36). Depois
de apresentar esta unidade, propõe uma subdivisão em duas partes: 2,23-3,21 e 3,22-36. O exegeta
justifica esta subdivisão com uma comparação entre as duas – afirmando que são episódios paralelos.
A primeira parte (2,23-3,21), estamos em Jerusalém, começa com uma pequena descrição, tipo sumá-
rio, que serve para introduzir o episódio de Nicodemos (2,23-3,2a); depois temos um diálogo entre
Nicodemos e Jesus (3,2b-12); por fim, um monólogo de tipo kerigmático - uma aparente confissão de
fé (3,13-21). A segunda parte (3,22-36), agora já na Judeia, começa com uma pequena descrição que
termina com a indicação de uma discussão entre um judeu e alguns discípulos de João Baptista (3,22-
26a); depois temos um diálogo entre estes discípulos e o seu mestre, terminando com João Baptista a
confessar a superioridade de Jesus (3,26b-30); por fim, um monólogo de tipo kerigmático, formulado
na terceira pessoa (3,31-36). Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988,
278-279 e 281-282.

302
(2,23a)95. Renzo Infante defende que, neste capítulo 3, o evangelista apresenta
dois episódios que têm como protagonistas duas figuras representativas do mun-
do de Israel, muito importantes no conjunto das personagens do quarto evange-
lho: Nicodemos (vv.1-10) e João Baptista (vv.22-30). Em seguida, estabelece uma
relação entre eles dizendo que ambos, para além de serem figuras históricas, re-
presentam o judaísmo daquele tempo: o primeiro, mestre e exponente atípico
do fariseísmo; o outro, figura profética herdeiro da espera messiânica de Israel96.
A afirmação inicial de Nicodemos no v.2 - «Rabi, nós sabemos que Tu vieste
da parte de Deus, como Mestre, porque ninguém pode realizar os sinais97 que
Tu fazes, se Deus não estiver com ele», supõe que Jesus tenha realizado vários
milagres em Jerusalém. No entanto, o facto, de que nenhum milagre feito em
Jerusalém tenha sido narrado por João, levou a que muitos exegetas consideras-
sem que este diálogo com Nicodemos tivesse ocorrido mais tarde, precisamente
depois da descrição de vários milagres em Jerusalém. Para compreendermos esta
localização do texto no evangelho, precisamos de reconhecer que João entende
que Nicodemos representa uma fé parcial em Jesus na base de sinais – alguns dos
quais entretanto descritos, como as ‘bodas de Caná’ (2,1-12) e outros referidos
apenas genericamente pelo autor - «Enquanto Ele estava em Jerusalém, durante
as festas da Páscoa, muitos creram nele ao verem os sinais miraculosos que reali-
zava» (2,23). Deste modo, podemos dizer que a localização deste episódio, ainda
que levante dificuldades, não deixa de ter alguma lógica interna. No entanto,
procurar em João, uma perfeita sucessão cronológica é inútil e em vão, porque o
próprio autor irá dar a entender isso mesmo quando diz: «Muitos outros sinais
miraculosos realizou ainda Jesus, na presença dos seus discípulos, que não estão
escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para acreditardes que Jesus é o
Messias, o Filho de Deus, e, acreditando, terdes a vida nele» (20,30-31)98.
Diante disto, coloca-se a pergunta – será esta uma narração de tipo histórico?
João teve certamente em mãos o material da tradição, como demonstra o pró-

95
  Cf. R. Vignolo, Personaggi del Quarto Vangelo, Milano 1994, 102-103.
96
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 93.
97
  Aqui optámos por retirar a expressão «os sinais portentosos», como apresenta a tradução portu-
guesa, sugerindo apenas ‘os sinais’. De facto a palavra ‘portentosos’ não ocorre no original (οὐδεὶς γὰρ
δύναται ταῦτα τὰ σημεῖα ποιεῖν ἃ σὺ ποιεῖς), nem nas traduções que aqui seguimos de perto. «Nessuno
può compiere, infatti, segni come quelli che compi tu». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello
Balsamo 2015, 95. «No one can perform the signs that you perform». R. Brown, The Gospel According
to John (I-XII), I, New York 1966, 128. «Personne en effet ne peut faire les signes que tu fais». X. Léon-
-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 278.
98
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 135.

303
prio diálogo com Nicodemos, onde podemos ver tantas correspondências com
a tradição sinótica; a expressão ‘reino de Deus’; a referência à actividade de João
Baptista e o confronto entre os dois baptismos – o de João e o de Jesus. Todavia,
não menos evidente, é que este texto, de uma excecional densidade teológica, foi
composto para oferecer uma visão de conjunto sobre o mistério do Filho do Ho-
mem e da sua condição humana diante a revelação divina99. De facto, a relação
dos diálogos do evangelho de João com a tradição primitiva sobre Jesus de Naza-
ré e os seus ditos não é uma questão fácil. Provavelmente houve uma reelabora-
ção de material nos vv.1-21, uma mudança de perspectiva, um desenvolvimento
posterior dos temas. Existem, nos evangelhos sinópticos, muitas das afirmações
atribuídas a Jesus nestes versículos e é provável que um consistente núcleo de
material da tradição tenha sido elaborado na forma atual do discurso, à maneira
homilética. Neste sentido, a tentativa de atribuir um certo número de versículos
a Jesus e um certo número ao evangelista é praticamente impossível100.
Nicodemos é uma das figuras que desperta mais interesse nos estudiosos do
quarto evangelho e a razão tem a ver com o facto de ser um figura intrigante e
bastante enigmática. As vezes e o modo como surge no evangelho são o suficiente
para evocar a curiosidade, mas não o suficiente para a satisfazer101. Efetivamente,
Nicodemos, que é um nome grego102, apenas ocorre no evangelho de João e apenas
três vezes (em diálogo com Jesus - 3,1.4.9; quando, diante dos Sumos Sacerdotes
e dos fariseus, defende Jesus - 7,50; ajudando José de Arimateia a sepultar Jesus
- 19,39)103. Ele representa um grupo de fariseus, entre os chefes dos judeus, que

99
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 280.
100
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 136.
101
  Cf. J. Bassler, «Mixed Signals: Nicodemos in the Fourth Gospel», JBL 4 (1989) 635. Neste interes-
sante artigo, o autor, Jouette Bassler, falará precisamente da figura de Nicodemos ao longo do próprio
evangelho – como figura enigmática: um encontro insatisfatório (3,1-21); uma tentativa de defesa
(7,45-52); um enterro ambíguo (19,38-42).
102
  O nome Νικόδημος é a junção de duas outras palavras gregas: νικάω e δῆμος. Cf. C. Rusconi,
«Νικόδημος», in DGNT, São Paulo 2003, 319-320. O verbo νικάω tem o significado de ‘vencer’, ‘supe-
rar’, ‘derrotar’. Id., «νικάω», in DGNT, São Paulo 2003, 319. O substantivo δῆμος tem o significado de
‘país’ ou ‘território’, ‘povo’ ou ‘comunidade’ e também ‘democracia’. Id., «δῆμος», in DGNT, São Paulo
2003, 121. Deste modo, talvez possamos dizer que o nome Nicodemos quer dizer ‘aquele que vence
o povo’ ou ‘aquele que supera a comunidade’. No fundo, aquele que sem deixar de ser judeu pode ir
além disso mesmo, aquele que supera os limites do seu ‘território’. Por isso, teve a iniciativa para ir
ter com Jesus, ainda que durante a noite; teve a coragem de defender Jesus diante dos fariseus e da
multidão; e, por fim, teve a grandeza de ajudar a sepultar Jesus. Roberto Vignolo diz que Nicodemos
era um nome grego muito comum, transliterado do hebraico, que significa ‘o que vence no povo’ ou
‘povo vencedor’. Cf. R. Vignolo, Personaggi del Quarto Vangelo, Milano 1994, 103-104. Ver ainda: S.
Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 145.
103
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 94.

304
com muita hesitação acreditou em Jesus. Isto mesmo testemunha o evangelho de
João quando diz: «Apesar disso, até entre os chefes, muitos creram nele, mas não
o confessavam por causa dos fariseus, para não serem expulsos da Sinagoga, pois
amavam mais a glória dos homens do que a glória de Deus» (Jo 12,42-43). Muito
provavelmente pertencia ao supremo organismo de governo do povo hebreu – o
sinédrio. O sinédrio era composto por sacerdotes (saduceus), escribas (fariseus) e
anciãos leigos da aristocracia. Os seus setenta membros eram presididos pelo Sumo
Sacerdote104. Os fariseus, grupo a que pertencia Nicodemos, aparecem na Escritura,
sobretudo, como rígidos controladores da Lei (cf. 1,24; 4,1), contestam a inobser-
vância da Lei por parte de Jesus (cf. 8,13; 9,13.15.16.40; 12,19), não acreditam em Je-
sus (cf. 7,48), procuram impedir quantos desejem acreditar (cf. 12,42), opõem-se de
maneira decisiva a Jesus (cf. 7,45.47) e, com os Sumos Sacerdotes, são os principais
defensores da sua detenção e da sua condenação à morte (cf. 7,32; 11,46.47.53.57)105.
O texto de João, diz que Nicodemos foi ter com Jesus de noite [νυκτός]. Esta
ideia referida no terceiro capítulo será reforçada e confirmada no antepenúltimo
capítulo do evangelho: «Nicodemos, aquele que antes tinha ido ter com Jesus de
noite» (19,39). O facto de ir ter com Jesus durante a noite podia ter a ver com o
‘medo dos judeus’ (19,38), mas também podia reflectir o costume rabínico de
estar acordado de noite par estudar a Lei. No entanto, numa perspectiva mais
metafórica, dentro da lógica joânica, a noite representa o ‘reino do mal’, da ‘men-
tira’ e da ‘ignorância’106. Assim, a atitude de Nicodemos contrasta com a ideia
da noite, já que ele sai das trevas para entrar na luz (cf. vv. 19-21)107. Com esta
imagem, o evangelista sugere um paralelo entre Nicodemos e Judas Iscariotes -
um procura Jesus durante a noite (3,2a), o outro abandona Jesus durante a noite
(13,30)108. Este pormenor torna-se importante pelo significado mais profundo
que podemos descobrir, que é reforçado pelo final deste encontro (vv.19-21).

104
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 129-130. Ver ainda: S. Gras-
so, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 146-147
105
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 93.
106
 Santi Grasso reforça este sentido dizendo que a noite representa o tempo que impede a ação mes-
siânica. Justificando esta sua afirmação com a passagem em que Jesus diz ao cego de nascença: «Temos
de realizar as obras daquele que me enviou enquanto é dia. Vem aí a noite, em que ninguém pode
actuar» (Jo 9,4). S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 146.
107
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 130. «Nicodemo quindi inizia
un itinerario di accostamento al rivelatore, un cammino di fede in una circostanza pasquale (2,13.23).
Ma il narrator specifica: ‘venne da Gesù di notte’. ‘Una note all’epoca di Pasqua’ – senza per questo
pretendere che sia la note stessa di Pasqua». R. Vignolo, Personaggi del Quarto Vangelo, Milano 1994,
104-105. Ver ainda: X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 286-287.
108
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 95.

305
Vir ter com Jesus de noite pode ainda levar-nos à ideia de alguém que procura
e encontra a ‘Luz que brilhou nas trevas’ (1,5a)109. O silêncio sobre a reação e
decisão de Nicodemos no v.21, serve, segundo alguns, para deixar em aberto o
desenvolvimento futuro da personagem110.
Nicodemos, como bom judeu, quer encontrar aquele que reconheceu como
um homem que tem uma relação privilegiada com Deus111. Falou dos sinais rea-
lizados por Jesus. Estes são, por definição, sinais visíveis e ele veio ter com Jesus
precisamente porque os constatou. Ora o ver os sinais deveria conduzir a dis-
cernir a realidade da glória que eles simbolizam e que os supera. Talvez, neste
contexto, possamos compreender melhor o uso insólito da expressão ‘ver o reino
de Deus’ (3,3b)112. Assim, neste início de diálogo (cf. v.2), o evangelista coloca na
boca de Nicodemos afirmações que reclamam as precedentes confissões de fé dos
primeiros discípulos - «Rabi [ῥαββί], nós sabemos que Tu vieste da parte de Deus,
como Mestre, porque ninguém pode realizar os sinais que Tu fazes, se Deus não
estiver com ele» (v.2b). Aqui ele reconhece Jesus como Rabbi [ῥαββί]113, tal como
os dois primeiros discípulos (cf. 1,38); um Rabbi que seguramente provém de
Deus, como André tinha dito a Pedro quando diz que tinham encontrado o Mes-
sias (cf. 1,41); um reconhecimento que decorre dos próprios sinais realizados por
Jesus (cf. 2,11; 7,31; 9,33)114. A tensão entre o estatuto que mantém, decorrente do
lugar que ocupa como judeu, e a sua ‘confissão de fé’ faz com que, ao longo do
evangelho, Nicodemos esteja entre as duas principais categorias antropológicas
definidas neste quarto evangelho: ele nem é totalmente ‘judeu’, nem totalmente
um ‘discípulo’, mas alguém que, de alguma forma, tem traços de ambas as cate-
gorias115. Outros, contudo, dizem que Nicodemos é, sobretudo, um judeu ‘admi-

109
  Cf. J. Bassler, «Mixed Signals: Nicodemos in the Fourth Gospel», JBL 4 (1989) 638.
110
  Cf. R. Vignolo, Personaggi del Quarto Vangelo, Milano 1994, 102.
111
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 287.
112
  Ibidem, 290. «Questa espressione, parallela a ‘entrare nel regno di Dio’ del v.5, significa ‘esperi-
mentare’, ‘participare’, ‘incontrare’». Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 94.
113
  A palavra ‘rabi’ vem da palavra hebraica rabb [‫]רב‬ַ que quer dizer ‘chefe’ ou ‘grande’. Rabbi [‫]רבִּי‬
ַ
seria literalmente ‘meu senhor’ mas com o tempo afirmou-se com o sentido de: ‘(meu) mestre’. Cf. C.
Rusconi, «ῥαββί», in DGNT, São Paulo 2003, 406.
114
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 94. «This positive action seems to
place Nicodemus in or near the ranks of the disciples, who have been described in chap. 1 as coming
to Jesus (1:39, 47)». J. Bassler, «Mixed Signals: Nicodemos in the Fourth Gospel», JBL 4 (1989) 637.
115
  Cf. J. Bassler, «Mixed Signals: Nicodemos in the Fourth Gospel», JBL 4 (1989) 643. Nas conclu-
sões deste artigo o autor sublinha que o poder da figura de Nicodemos reside precisamente nesta
sua ‘ambiguidade’. Contudo, Roberto Vignolo diz que não lhe parece lícito chamar a Nicomemos
uma figura ‘ambígua’ mas antes complexa e aberta a uma evolução. Uma evolução que é um pouco o

306
rador’ de Jesus, não certos de que tenha chegado a ser um verdadeiro discípulo
‘imitador’. Por isso, tenta não correr perigos, não quer sacríficos, não se abandona
à verdade, não aceita o risco de ser identificado com Jesus116.
A preocupação fundamental deste chefe dos judeus tem a ver com a vida
eterna. A perspetiva deste evangelista sobre o modo de alcançar a vida eterna
percebe-se melhor se fizermos um confronto com o texto sinóptico do homem
rico, que pergunta a Jesus - «Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida
eterna?» (Mc 10,17b). Na resposta de Jesus, o evangelista João não sublinha a
importância da prática dos mandamentos, deixando de lado a perspetiva judaica
das obras meritórias, como acontece claramente na narração sinótica. No quar-
to evangelho, Jesus diz, nos vv.3-7117, que se deve ‘nascer [γεννηθῇ]118 do alto
[ἄνωθεν]’ (cf. v.3b)119. Na verdade, a palavra grega ἄνωθεν pode ser traduzida
como ‘do alto’ ou ‘de novo’120. Para o evangelista João significa, sobretudo, ‘do
alto’. No entanto, devido aos vários significados, dá azo a um mal-entendido por
parte de Nicodemos que o interpreta com o sentido ‘de novo’, perguntando, por
isso, a Jesus como seria possível ‘nascer de novo’ (3,4). Este equívoco, gerado pela
compreensão do advérbio ἄνωθεν, é um expediente estilístico, frequente em Jo,

paradigma do crente cuja fé sai progressivamente da sombra da ambiguidade para se tornar adulta e
manifestar-se publicamente. Cf. R. Vignolo, Personaggi del Quarto Vangelo, Milano 1994, 126.
116
  Cf. R. Vignolo, Personaggi del Quarto Vangelo, Milano 1994, 107. Nesta página e na seguinte,
o autor problematiza a relação do título usado por Nicodemos para dialogar com Jesus - ‘Rabbi’ e a
relação ou não como discípulo.
117
 Thomas Popp diz que estes versículos pertencem ao género literário ‘parábola’, fazendo um inte-
ressante estudo que considera, sobretudo, a análise linguístico-narrativa, a análise histórico-social, a
análise do contexto semântico e os horizontes da interpretação. Cf. T. Popp, «Decisivo è ciò che viene
dall’alto», Brescia 2011, 1122-1129.
118
  O verbo γεννάω quer dizer ‘gerar’, ‘dar à luz’ e ‘nascer’. Cf. C. Rusconi, «γεννάω», in DGNT, São
Paulo 2003, 107. Nesta passagem o verbo encontra-se no conjuntivo aoristo passivo e deve ser enten-
dido como teológico, mediante o qual se alude ao acontecimento de ‘renascer’ que surge pela ação de
Deus. Jesus respondendo a um intelectual judaico não diz ‘se tu não renasces’ mas ‘se um não nasce’,
de modo que o desafio ultrapassa o interlocutor concreto. Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma
2008, 149.
119
  Aqui decidimos manter a tradução portuguesa ‘do alto’. Outras traduções confirmam a opção.
«Se uno non viene generato dall’alto». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 95.
«Without being begotten from above». R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York
1966, 128. «Si quelqu’un n’est pas engendré d’en haut». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon
Jean (I-IV), I, Paris 1988, 278.
120
  Cf. C. Rusconi, «ἄνωθεν», in DGNT, São Paulo 2003, 57. No entanto, os significados do advérbio
ἄνωθεν (‘de novo’ ou ‘do alto’) não se excluem antes, pelo contrário, se complementam. Cf. S. Grasso,
Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 149. Para aprofundar esta expressão aconselhamos: P.-M. Bou-
cher, «Jn 3,3.7: Γεννηθῆναι ἄνωθεν (IV)», ETL 88 (2012) 71-93.

307
para dar oportunidade a Jesus para juntar ulteriores explicações121.
De facto, o advérbio ἄνωθεν, com o duplo significado ‘do alto’ e ‘de novo’,
oferece, sobretudo aos leitores, uma indicação da dimensão metafórica. Um nas-
cimento humano é único e irrepetível. Mas o texto diz que sem um nascimento
‘do alto’ ou ‘de novo’ não é possível ver o reino de Deus (v.3). Nicodemos insiste:
«Como pode um homem nascer, sendo velho? Porventura poderá entrar no ven-
tre de sua mãe, pela segunda vez122, e nascer?» (v.4). Esta dupla pergunta retórica
de Nicodemos, que retoma o sentido temporal de ἄνωθεν, mostra que não com-
preendeu a metáfora do nascimento123. No entanto, o leitor, através deste diálogo
entre Nicodemos e Jesus, é guiado a transpor, em sentido teológico, o processo
de um nascimento humano (ἄνωθεν como ‘de novo’) e a ligar-se, ele mesmo, à
necessidade do nascimento no Espírito (ἄνωθεν como ‘do alto’)124. Deste modo,
esta referência, que, num primeiro plano, podia dizer respeito à tradição evan-
gélica de regresso à idade da infância para poder ‘entrar no reino de Deus’ (Mt
18,3), passa a ser, num segundo plano, um apelo a um nascimento do Espírito.
Para este evangelista o nascimento do alto - pela água e pelo Espírito Santo - é a
condição absoluta para alcançar a vida eterna. Por isso, coloca na boca de Jesus a
seguinte afirmação: «quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no
Reino de Deus» (3,5b)125.

121
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 95. «Jn se sert volontiers de mots à
‘double entendre’ pour faire progresser ses dialogues: un malentendu provoque une explication et par
là un approfondissement de l’annonce de Jésus. C’est le cas ici également». X. Léon-Dufour, Lecture
de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 289. Ver ainda: R. Brown, The Gospel According to John
(I-XII), I, New York 1966, 138.
122
  Apesar de ter o mesmo sentido, sugerimos esta tradução em vez da proposta portuguesa ‘outra
vez’. De facto a palavra grega δεύτερον pode ser traduzida por ‘novamente’ ou ‘pela segunda vez’. Cf.
C. Rusconi, «δεύτερος», in DGNT, São Paulo 2003, 120. Outras traduções reforçam a nossa opção.
«Una seconda volta». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 95. «Une seconde
fois». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 278. Raymond Brown
propõe uma tradução mais próxima da tradução portuguesa: «Can he re-enter his mother’s womb».
R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 128.
123
  O exegeta Santi Grasso sugere uma curiosa perspetiva para este equívoco de Nicodemos. Diz que
é um reflexo da tensão, presente da comunidade cristã, entre a ‘sinagoga’ e a ‘igreja primitiva’, isto é,
entre ‘voltar novamente no seio materno’ ou ‘re-nascer de novo’. Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni,
Roma 2008, 151.
124
  Cf. T. Popp, «Decisivo è ciò che viene dall’alto», Brescia 2011, 1123-1124. Sugerimos ainda: R. Vig-
nolo, Personaggi del Quarto Vangelo, Milano 1994, 110-112.
125
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 283. Esta imagem de
‘nascer de novo’ é usada noutras passagens bíblicas com sentido aproximado: «nasceu de novo, não de
uma semente corruptível, mas de um germe incorruptível, a saber, por meio da palavra de Deus, viva e
perene» (1Pd 1,23); «Ele salvou-nos, não em virtude de obras de justiça que tivéssemos praticado, mas

308
Os três termos, tão presentes nestes versículos, ‘nascer’ (vv.3.4.5.6.7), ‘água’
(v.5) e ‘espírito’ (v.5.6); mais o contexto temporal da festa da Páscoa anunciado
anteriormente e que durava uma semana (2,23); mais o duplo sentido da neces-
sidade de nascer ‘de novo’ e ‘do alto’; mais a passagem da segunda pessoa do
singular (v.4) à segunda pessoa do plural (v.7)126; abrem-nos à metáfora do bap-
tismo – um baptismo que é experiência pessoal mas, sobretudo, comunitária.
Thomas Popp reforça esta possível leitura sacramental do texto, dizendo que,
mesmo nesse caso, o que é decisivo vem ‘do alto’127. De facto, a relação entre
os dois substantivos (água e espírito) pode ser de coordenação, de identificação
ou de subordinação, mas não de contraposição (o batismo na água de João em
contraponto com o batismo no Espírito Santo do Messias). É evidente que se
pensa, numa referência implícita ao sacramento do baptismo, numa regeneração
mediante o Espírito, da qual a água é uma imagem. Deste modo, fica evidente o
confronto entre duas perspetivas diferentes: Nicodemos pensa num ‘renascimen-
to’ mediante um retorno ao passado; Jesus propõe uma vida nova através de um
elemento radicalmente diferente que abre ao futuro – a semente divina, o espírito
que ‘fecunda’ a água128.
Esta relação do ‘nascer de novo’ ou ‘nascer do alto’ com a água e o espírito
pode ser relida como eco das palavras de Ezequiel quando diz: «Derramarei so-
bre vós uma água pura e sereis purificados; Eu vos purificarei de todas as man-
chas e de todos os pecados. Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós
um espírito novo: arrancarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um
coração de carne. Dentro de vós porei o meu espírito, fazendo com que sigais as
minhas leis e obedeçais e pratiqueis os meus preceitos» (Ez 36,25-27). Uma ima-
gem que reclama, indirectamente, a própria criação: «o espírito de Deus movia-se
sobre a superfície das águas» (Gn 1,2b). Deste modo, sugere-se que a acção do Es-
pírito Santo significa uma nova criação. Neste contexto, Jesus é apresentado por
João Baptista, alguns versículos à frente, como aquele que vem ‘do alto’ (3,31a) e
conclui que quem acredita no Filho (aquele que vem ‘do alto’) tem a vida eterna

da sua misericórdia, mediante um novo nascimento e renovação do Espírito Santo» (Tt 3,5).
126
  «Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer do alto não pode ver o Reino de Deus». (v.3b)
e «Vós tendes de nascer do alto» (v.7b). BS.
127
  Cf. T. Popp, «Decisivo è ciò che viene dall’alto», Brescia 2011, 1128. «There can be little doubt that
the Christian readers of John would have interpreted vs.5, ‘being begotten of water and Spirit’, as a
reference to Christian Baptism; and so we have a secondary level of sacramental reference». R. Brown,
The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 141-142.
128
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 95-97.

309
(3,36a). Assim é a fé no Filho de Deus que, pela acção do Espírito Santo, permite
o ‘renascer’ de cada pessoa129.
Com efeito, a oposição entre a carne (σαρκός) e o espírito (πνεύματος), pre-
sente no v. 6 e própria do dualismo joanino, é o contraste entre o homem mortal
(segundo a expressão hebraica – ‘um filho de homem’) e um filho de Deus; entre
o homem tal como é, e o homem como Jesus o pode tornar - dando-lhe o espíri-
to130. Trata-se da tensão entre o renascimento ‘puramente humano’ e o renasci-
mento do ‘alto’. A prova de que Jesus vem do ‘alto’ são as suas acções e os sinais
que realiza, como o próprio Nicodemos reconheceu (3,2). No entanto, o Lógos
fez-se carne (1,14a), ou seja, assumiu a condição humana, tornou-se um ‘filho do
homem’. Este mesmo Lógos Incarnado afirma que este renascimento mediante
o Espírito manifesta uma dimensão de profundo mistério, como misterioso e
invisível. Talvez seja esse o contexto para a imagem que Jesus usa no v.8 – o vento
(πνεῦμά)131. De facto, o vento sopra onde quer, não o vemos mas podemos ouvir a
sua ‘voz’. O Espírito permanece invisível, mas é visível àqueles que foram gerados
por ele e são filhos de Deus132. Uma vez mais evangelista joga com o duplo sentido
da palavra grega πνεῦμά (v.8), que pode ser ‘vento’ ou também pode ser ‘espírito’.
A metáfora joanina tem a sua base no sistema empírico de referência – o soprar
do vento, como fenómeno conhecido da natureza, é colocado em relação com
uma afirmação teológica a propósito daqueles que são nascidos do Espírito133.
Depois de tudo isto, Nicodemos pergunta a Jesus: «Como [πῶς] podem estas
coisas acontecer?134» (v.9b). Trata-se de tentar saber como se pode ‘nascer do es-

129
  Não deixa de ser interessante recordar que na cultura grega e romana o status social dependia da
origem e do nascimento: se nascia aristocrata, escravo… Neste contexto, será sobretudo na filosofia
estóica, que se refletirá sobre a dignidade do ser humano independentemente da sua condição social.
Cf. T. Popp, «Decisivo è ciò che viene dall’alto», Brescia 2011, 1125.
130
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 141.
131
  A palavra grega é πνεῦμα, correspondente ao hebraico rûaḥ, e significa ‘vento’ ou ‘espírito’. Há aqui
um hábil jogo que não se pode reproduzir na tradução, onde o sentido primeiro parece ser ‘vento’.
Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 131. A palavra πνεῦμα, para
além de ‘vento’ e ‘espírito’, pode significar ‘sopro’ e ‘hálito’ (Jo 3,8); ou ‘sopro’, ‘respiração’ e ‘vida’ (Mt
27,50); ou parte espiritual do homem – ‘alma’ (2Cor 7,1); ou sede íntima dos sentimentos e da vida
psíquica – ‘alma’ e ‘espírito’ (Lc 1,47); ou ainda, os homens e seres vivos depois da morte – ‘espíritos’
e ‘almas’ (1Ped 3,19). Cf. C. Rusconi, «πνεῦμα», in DGNT, São Paulo 2003, 379. Ver ainda: S. Grasso,
Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 154.
132
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 96-97. Ver ainda: R. Brown, The
Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 141.
133
  Cf. T. Popp, «Sapere da dove soffia il vento», Brescia 2011, 1131-1132.
134
  Apesar de ter o mesmo sentido, sugerimos esta tradução em vez da proposta portuguesa: «Como
pode ser isso?». Renzo Infante reforça a nossa opção. «Come è possibile che ciò avvenga?». R. Infante

310
pírito’. De facto, no quarto evangelho encontramos diversas interrogações intro-
duzidas com o advérbio ‘como’ [πῶς], colocados nos lábios dos que se opõem à
proposta de Jesus, expressa na primeira parte da frase. Os judeus perguntam-se:
«Como se atreve a dizer agora: ‘Eu desci do Céu’?» (6,42b); «Como pode Ele dar-
-nos a sua carne a comer?!» (6,52b); «Como é que este é letrado, se não estudou?»
(7,15); «Como é que Tu dizes: ‘Sereis livres’?» (8,33b). Os fariseus interrogam-
-se: «Como pode um homem pecador realizar semelhantes sinais miraculosos?»
(9,16b). A multidão questionava-se: «Como afirmas Tu que o Filho do Homem
tem de ser erguido?» (12,34b). Tomé também faz uma ‘destas’ perguntas mas não
enquanto opisição: «como podemos nós saber o caminho?» (14,5b). Por tudo isto,
a interrogação faz de Nicodemos um rabi que não está a encontrar o ‘seu cami-
nho’ diante da palavra de Jesus, porque continua ‘agarrado’ aos seus esquemas –
limitados e reduzidos. Perante esta pergunta Jesus responde com uma pergunta
irónica: «Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas?» (v.10). Jesus por um
lado, confronta-o com a sua competência como ‘mestre em Israel’; por outro,
coloca em relevo a incapacidade de Nicodemos em entrar no dinamismo da fé.
De facto, para entrar no grupo de Jesus, mais tarde na comunidade de João, não
‘basta’ um estrato social elevado ou uma cultura teológica elevada135. 
Os vv.11-12 assinalam a transição do diálogo entre o mestre de Israel e Jesus
para um discurso que agora é colectivo. O plural ‘sabemos’ (οἴδαμεν) não é um
plural majestático, nem faz referência ao Pai que está por ‘trás’ da palavra do
Filho, mas será provavelmente um plural comunitário. É como se o testemunho
da comunidade, que faz própria a palavra da revelação de Jesus, prolongasse e
se sobreposse à sua - «nós falamos do que sabemos e damos testemunho do que
vimos» (v.11b). No entanto, se é difícil definir este ‘nós’, sujeito do ‘sabemos’ e do
‘dar testemunho’, não menos difícil será perceber o ‘vós’ a quem Jesus se dirige
no v.12: «Se vos falei das coisas da terra e não credes, como é que haveis de crer
quando vos falar das coisas do Céu?». Não deverá ser Nicodemos o destinatário
desse ‘vós’, porque pelo desenvolvimento que sabemos da sua história, ele não
pode representar o judaísmo incrédulo. Também não parece que tenha surgido,
nesta fase do evangelho, uma posição declaradamente hostil da parte dos judeus.

(a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 99. Raymond Brown também propõe uma tradução
parecida: «How can things like this happen?». R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New
York 1966, 128. No entanto, Xavier Léon-Dufour propõe uma tradução mais próxima da versão por-
tuguesa: «Comment cela peut-il se faire?». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV),
I, Paris 1988, 278.
135
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 156-157.

311
Poderá tratar-se ou de uma referência à generalizada superficialidade da fé dos
habitantes de Jerusalém, ou de uma afirmação que antecipa a recusa por par-
te dos chefes do povo. Pelo contrário, Nicodemos, e uma parte considerável do
mundo judaico deixaram-se interpelar pelos sinais que Jesus realizava136.
Neste acreditar que conduz ao renascer, a cruz não é humilhação, como nos
sinópticos e em Paulo, mas exaltação e glória. Elevar o olhar para a cruz é percor-
rer o caminho da salvação. Neste ponto, João oferece um contributo fundamental
para a cristologia do NT. Assim, nesta passagem, recorda a serpente erguida no
deserto por Moisés137 e afirma que «é necessário que o Filho do Homem seja er-
guido ao alto, a fim de que todo o que nele crê tenha a vida eterna» (3,14b-15). A
própria cruz manifesta aos homens a glória escatológica de Cristo. A fé, para Jo,
concentra-se num único ato – o Crucificado e o Glorificado. Por isso, neste texto
que analisamos, a cruz torna-se o ‘sinal’ da salvação, como um dia tinha sido a
serpente elevada por Moisés no deserto que libertava da morte quem a olhasse138.
Aqui a imagem de Moisés não é usada negativamente ou no contexto da polémi-
ca, mas como modelo interpretativo da missão de Jesus. A elevação do Filho do
Homem corresponde ao plano divino139. Por isso, ao movimento de ‘descida’ do
Filho ao mundo ‘deve’ agora corresponder, segundo o plano salvífico de Deus, a
elevação à glória que dará a quem olhar para a cruz, como na ‘figura’ da serpente
do êxodo, a cura e a vida eterna140.
Os versículos seguintes (16-18) reforçam a ideia de que é Deus quem está na
origem deste movimento de salvação. Um Deus que salva porque ama. Ama o
mundo e, por isso, envia o salvador, como diz o evangelista: «Tanto amou141 Deus

136
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 98-99. Apesar disto, Santi Grasso
insite: «Il quesito di Nicodemo, che dimostra la sua incapacità a entrare nella logica messianica, non
consente più il dialogo e le parole di Gesù adesso si trasformano in monologo». Cf. S. Grasso, Il Van-
gelo di Giovanni, Roma 2008, 157.
137
  Nm 21,8: «O Senhor disse a Moisés: ‘Faz para ti uma serpente abrasadora e coloca-a num poste.
Sucederá que todo aquele que tiver sido mordido, se olhar para ela, ficará vivo’». BS.
138
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 302-303. Ver ainda: R.
Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 145-146.
139
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 161.
140
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 100. «La salvezza quindi non pro-
viene dall’atto prodigioso del guardare un oggetto, ma dalla fede nel Dio che salva». Cf. S. Grasso, Il
Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 161. Ver ainda: Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 371.
141
  No texto grego o verbo ‘amar’ (ἀγαπάω) aparece no aoristo (ἠγάπησεν) indicando que se trata
de uma acção situada no passado mas que é válida em cada tempo. Ainda que este verbo seja usado
nos sinóticos e no epistolário paulino, será muito frequente neste evangelho (trinta e seis vezes) e
nas cartas atribuídas a Jo (trinta e uma vezes), em particular na primeira carta. No v.16 o léxico do

312
o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele
crê não se perca, mas tenha a vida eterna» (3,16). Continua o evangelista, dizen-
do que ‘Deus enviou o seu Filho ao mundo’ não «para condenar o mundo, mas
para que o mundo seja salvo por Ele» (3,17)142. Estas palavras encontram eco na
primeira carta de Jo: «O amor de Deus manifestou-se desta forma no meio de
nós: Deus enviou ao mundo o seu Filho Unigénito, para que, por Ele, tenhamos
a vida. É nisto que está o amor: não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele
mesmo que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos
pecados» (1Jo 4,9-10).
Este amor, enquanto dom do Filho, inclui toda a trajectória que vai da ‘des-
cida’ (Incarnação) até à ‘subida’ (Elevação) – mediante a acção do Espírito Santo.
Este dinamismo ‘traduz-se’ pelos verbos, presentes no v.13: καταβαίνω (movi-
mento de descer) e ἀναβαίνω (movimento de subir)143. Um amor que precede
tudo e que quer salvar todos. No entanto, a afirmação da necessidade de que
o mundo seja salvo, revela que no mundo há incerteza, limites e ameaças. Aí o
amor de Deus faz ainda mais sentido e revela-se ainda mais necessário144. Porém,
exclui-se que Deus tenha enviado o próprio filho para julgar o mundo - como
poderá Deus querer a condenação dos seus próprios filhos que ele mesmo criou?
A grande novidade desta mensagem não está tanto num Deus que não vem para
condenar (cf. Os 11,8-9)145, mas de um amor que não está circunscrito exclusiva-
mente a Israel (como por exemplo em Oseias). Na verdade, no quarto evangelho o
horizonte do amor de Deus torna-se universal e estende-se à humanidade inteira.
No entanto, diante desse amor, Deus colocou nas ‘mãos’ dos homens a possibili-
dade de escolha entre a vida e a morte, entre a Luz e as trevas, entre praticar o mal
ou praticar a verdade. Esta decisão e esta necessidade de juízo, não se pode evitar,
antes, pertence à humanidade inteira porque a salvação e a vida só se podem al-

‘amor’ surge pela primeira vez em Jo e revela aquele que será o coração e o testemunho da pregação
própria e da sua comunidade formada no Espírito. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello
Balsamo 2015, 101.
142
  O próprio Jesus dirá, capítulos à frente: «não vim para condenar o mundo, mas sim para o salvar»
(12,47b). BS.
143
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 99. Ver ainda: Cf. E. Schillebeeckx,
Il Cristo, Brescia 1980, 371-372.
144
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 305-307.
145
  Os 11,8-9: «8Como poderia abandonar-te, ó Efraim? Entregar-te, ó Israel? Como poderia Eu abando-
nar-te, como a Adma, ou tratar-te como Seboim? O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se
as minhas entranhas. 9Não desafogarei o furor da minha cólera, não voltarei a destruir Efraim; porque
sou Deus e não um homem, sou o Santo no meio de ti, e não me deixo levar pela ira». BS.

313
cançar ‘por meio dele’ – fora dele resta apenas a noite. Assim, em Jo, a vida ou juí-
zo de condenação não são uma sentença longínqua e futura mas refere uma ação
que se realiza no presente. O próprio homem é artífice do próprio destino com
as escolhas quotidianas146. Mas estas escolhas fazem-se no confronto com Jesus,
porque é Ele que traz à luz aquilo que o homem realmente é e a sua verdadeira
natureza. Jesus é uma luz penetrante que torna evidente o que é o homem147. Por
isso, conclui o autor: «Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está
condenado, por não crer no nome148 do Filho Unigénito de Deus» (v.18). 
Deste modo, chegamos aos últimos versículos (19-21) que podem ser vistos
como uma espécie de conclusão. Chega a vez do leitor se decidir. Depois da opo-
sição entre a Luz e as trevas são indicadas duas possibilidades: aproximar-se ou
afastar-se da Luz. Diz o texto: «E o julgamento [κρίσις]149 está nisto: a Luz veio
ao mundo, e os homens amaram [ἠγάπησαν] mais as trevas [σκότος] do que a
Luz [φῶς]150, porque as suas obras eram más» (v.19). Esta contraposição ‘trevas-
-luz’ indica que à realidade do mal e do pecado, presente na história humana, se
opõe a luz que é símbolo, sobretudo no quarto evangelho, da missão de Jesus151.

146
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 102-103.
147
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 148-149.
148
  Inserimos a expressão ‘no nome’ à tradução portuguesa que omite a expressão εἰς τὸ ὄνομα pre-
sente no texto grego. Outras traduções reforçam a nossa opção. «Poiché non há creduto nel nome
dell’unigenito Figlio di Dio». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 103. «For
refusing to believe in the name of God’s only Son». R. Brown, The Gospel According to John (I-XII),
I, New York 1966, 129. «Parce qu’il n’a pas cru au nom du Fils unique de Dieu». X. Léon-Dufour,
Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 279.
149
  A tradução portuguesa propõe a palavra ‘condenação’ para traduzir a palavra grega κρίσις. Esta
palavra significa, sobretudo: ‘juízo’, ‘ação judicial’ e ‘critério de juízo’. Cf. C. Rusconi, «κρίσις», in
DGNT, São Paulo 2003, 276. Renzo Infante explicita e amplia o sentido do termo grego dizendo que
pode ser traduzido por: ‘juízo’, ‘discernimento’, ‘separação’ e também ‘condenação’. R. Infante (a
cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 103. Contudo, aqui optámos pela palavra ‘julgamento’
com o sentido de ‘critério de juízo’. Nesta mesma linha, Raymond Brown traduz: «Now the judgment
is this». R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 129. Xavier Léon-Dufour
também opta pelo mesmo sentido quando traduz: «Et le jugement, le voici». X. Léon-Dufour, Lecture
de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 279.
150
  Sugerimos esta tradução em vez da proposta portuguesa: «preferiram as trevas à Luz». A expressão
grega usa o verbo amar (ἀγαπάω) e reforça a comparação (τό...ἢ τό): ἠγάπησαν οἱ ἄνθρωποι μᾶλλον τὸ
σκότος ἢ τὸ φῶς. Outras traduções corroboram a nossa opção. «Gli uomini hanno amato la tenebra
più della luce». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 103. «Les hommes ont aimé
les ténèbres de preference à la lumière». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I,
Paris 1988, 279. Raymond Brown, chama a atenção de que no hebraico não há uma palavra para expri-
mir ‘preferir’. Deste modo, ‘amar’ e ‘odiar’ são frequentemente colocados em contraste para dar essa
mesma ideia. Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 134.
151
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 167.

314
Isso mesmo se afirma no prólogo: «O Verbo era a Luz verdadeira, que, ao vir ao
mundo, a todo o homem ilumina» (Jo 1,9). No entanto, é preciso discernir, ou
seja, ter critérios para fazer um juízo [κρίσις]. Nesse sentido, o evangelista enu-
mera os dinamismos inerentes às duas possibilidades sobre as quais é preciso
discernir: uns, os que praticam o mal [φαῦλα], ‘amam mais as trevas do que a
Luz’ porque as suas obras eram más e não querem que as suas acções sejam des-
cobertas (cf.vv.19b-20); outros, os que praticam a verdade [ἀλήθεια], amam mais
a Luz do que as trevas manifestando assim que as suas acções são feitas segundo
Deus (cf. v.21).
Mas em que consistirá essas ‘obras’ de Deus? Essa mesma pergunta será pos-
teriormente feita pelos judeus, a quem Jesus respondeu: «A obra de Deus é esta:
crer naquele que Ele enviou» (6,29). Neste sentido, aos seus interlocutores, Jesus
responde sempre com uma única obra – a fé. A decisão da fé é a única obra por
excelência que se espera do homem152. A fé como relação e como manifestação
da adesão à revelação. A fé como uma ‘resposta’ à ‘iniciativa’ divina. No fundo,
trata-se de praticar a verdade, que é sinónimo de ‘caminhar na verdade’ (cf. 2Jo
4)153 e, dado que, para o quarto evangelho, a verdade é a plena revelação do Pai
em Cristo (14,5-6)154. ‘Praticar a verdade’ equivale a acreditar naquele que ‘Deus
enviou’ (cf. 6,29) e tornar-se seu discípulo (cf. 8,12; 12,26). O facto de Nicodemos,
mestre em Israel, ter ido ter com Jesus de noite é uma ulterior demonstração que
ele está já ‘a caminho’ em direcção à luz e que deixou as trevas para trás, como
demonstrará, posteriormente, o desenvolvimento da sua história pessoal155.

152
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 312-315.
153
  2Jo 4: «Muito me alegrei por ter encontrado entre os teus filhos quem caminha na verdade, confor-
me o mandamento que recebemos do Pai». BS.
154
  Jo 14,5-6: «Disse-lhe Tomé: ‘Senhor, não sabemos para onde vais, como podemos nós saber o ca-
minho?’ Jesus respondeu-lhe: ‘Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir até ao Pai
senão por mim’». BS.
155
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 104. «Chi è disponibile a mettersi al
seguito di Gesù attua il passaggio dalle tenebre alla luce (Gv 12,35.46). La luce porta a evidenziare le
opere». S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 169.

315
2.3. Jesus encontra-se com a samaritana156
O quarto capítulo do evangelho de Jo é conhecido como ‘evangelho da sa-
maritana’, apesar de, por um lado, este capítulo terminar com o episódio da
cura do filho do funcionário real; por outro lado, o protagonista desta página
não é tanto a mulher mas o próprio Jesus157. Em todo o caso, podemos começar
por dizer que em todo o texto (4,4-42)158 são claros os contactos com a narrativa
anterior do encontro de Jesus com Nicodemos (3,1-10) e com a narrativa acerca
de João Batista (3,22-30). Santi Grasso, insiste no paralelo - e sobretudo na re-
lação – entre esta perícopa da Samaritana e a perícopa de Nicodemos. De facto,
se este homem é o representante do ambiente judaico religioso todo centrado
na obediência à Lei, esta mulher, pelo contrário, será o exponente do mundo
idolátrico e sismático excluído das promessas da salvação. Em ambos os casos
as narrativas são dominadas pela figura de Jesus em volta do qual se movem as
outras personagens159. Por fim, dizer que provavelmente Jo terá usado material
tradicional a que depois dá cunho próprio, escrevendo-o com o seu sentido da
dramaticidade de Jesus e com as suas várias técnicas literárias, dando-lhe um
profundo contexto teológico160.

156
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: J. Beutle, Das Johannesevan-
gelium, Freiburg im Breisgau 2013, 151-168; F. Marin, W. Wright, The Gospel of John, Grand Ra-
pids 2015, 80-92; U.C. von Wahlde, The Gospel and Letters of John, II, Michigan 2010, 167-198; H.
Förster, «Die Begegnung am Brunnen (Joh 4.4-42) im Licht der ‘Schrift’, NTS 61 (2015) 201-218; S.
Amir, «The Samaritan Woman. I. A Woman of Dialogue and Mission», VJTR 77 (2013) 756-769; S.
Amir, «The Samaritan Woman. II. A Woman of Dialogue and Mission», VJTR 77 (2013) 816-824;
C. Gizard, «Quand le repos est spirituel», Christus 239 (2013) 299-304; J. Thompson, «Well, Well,
Well… What Is Jesus Doing at a Well? (John 4:4-42)», BiTod 50 (2012) 215-220; P. Letourneau, «‘Give
Me This Water…’ The Water of Life in John’s Gospel», Conc(NY) 5 (2012) 58-67; M. Barvarino, «El
encuentro con Dios, camino de amor: El diálogo con la samaritana», VS 91 (2011) 92-104; A.O. Lima,
«O casamento de Jesus: enredo do Antigo Testamento na construção da narrativa de João 4», Hor. 8
(2010) 130-143; A. Arterbury, «Breaking the Betrothal Bonds: Hospitality in John 4», CBQ 72 (2010)
63-83; V. Matthews, «Conversation and Identify: Jesus and the Samaritan Woman», BTB 40 (2010)
215-226; L. Malcolm, J. Ramsey, «On Forgiveness and Healing: Narrative Therapy and the Gospel
Story», WorWor 30 (2010) 23-32.
157
  Cf. F. Mosetto, «Gesù in Samaria», Torino 2003, 183.
158
  Nós sugerimos aqui esta delimitação (4,4-42) – seguindo autores como Raymond Brown (que inti-
tula esta parte de «Discouse with the Samaritan Woman at Jacob’s Well») e Renzo Infante (que chama
a esta parte apenas «Gesù e la Samaria»). Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New
York 1966, 166-168 e R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 114-131. Já Léon-Du-
four prescinde do v.4 começando esta unidade no v.5, intitulado esta perícopa de «La moisson des
samaritains». Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 343-395.
159
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 186.
160
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 175-176.

316
Trata-se de um texto que se articula essencialmente em função de três diálogos.
Desses três ‘encontros’ o primeiro diálogo, entre Jesus e a Samaritana (vv.7-26), será
a parte central. Este diálogo começa pela iniciativa de Jesus (v.7b) e terminará na
afirmação ‘sou eu [o messias], que estou a falar contigo’ (v.26b)161. Este diálogo é
articulado em quatro partes, tantos quantos os títulos que são atribuídos a Jesus: o
judeu (vv.7-10); aquele que é maior do que Jacob (vv.11-15); o profeta (vv.16-24); o
messias (vv.25-26)162. Depois segue-se um ‘segundo’ diálogo entre Jesus e os discí-
pulos (vv.27.31-38), onde Jesus apresenta dois ditos populares referentes ao mundo
da agricultura. Por fim, teremos o ‘terceiro’ diálogo entre os samaritanos e Jesus
(vv.39-42). Todo este texto está cheio de evocações do AT, de alusões simbólicas, de
referências metafóricas e de técnicas expressivas – muito ligadas à ideia esponsal.
Podemos mesmo dizer que a metáfora esponsal pode ser vista como a chave de
leitura de todo este texto. Uma metáfora que permite a Jesus ir-se revelando até ser
reconhecido, no último versículo, como o ‘salvador do mundo’ (v.42).
O texto que aqui analisamos, apenas mencionado neste quarto evangelho,
começa precisamente por dizer que «tinha de atravessar a Samaria» (v.4). Desde
logo, não deixa de ser interessante que o discurso missionário (Mt 10,5163) proíba
os discípulos de entrarem numa cidade samaritana. Ainda para mais, neste caso,
‘entrar na Samaria’ não era uma necessidade geográfica. Na verdade, há uma
estrada principal da Judeia para a Galileia, através da Samaria. Contudo, Jesus
estaria na região da Judeia, mas no vale do Jordão (3,22), e, nesse caso, seria mais
compreensível chegar à Galileia por esse vale, seguindo o curso do rio, evitando
a Samaria. Por isso, somos levados a pensar que este ‘tinha de’ (ἔδει) diga respei-
to ao querer e ao desejo de Deus164. Assim a missão de Jesus estende-se a todo o
mundo, em particular, às ovelhas perdidas da casa de Israel (cf. Jo 10,16; 11,52).
Por isso, mais do que uma necessidade de carácter histórico-geográfico, trata-se
de uma urgência teológica e missionária (como acontece em 3,14.30; 9,4; 10,16;

161
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 350.
162
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 117. Léon-Dufour fala de um diálogo
articulado em duas partes: revelação da água viva (do v.7 ao v.15) e revelação do verdadeiro culto (do
v.16 ao v.25), sendo o v.26 uma proclamação solene de Jesus como Messias. Cf. X. Léon-Dufour,
Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 350-351.
163
  Mt 10,5: «Jesus enviou estes doze, depois de lhes ter dado as seguintes instruções: ‘Não sigais pelo
caminho dos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos’». BS.
164
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 169. Este ‘desejo de Deus’
revela o seu projeto de salvação. Um projeto que quase ‘obriga’ a que algumas coisas aconteçam. Aqui
parece que o plano de Deus para aquela mulher exige que Jesus passe pela Samaria e pare junto ao
poço. Cf. S. Morra, Parole intorno al pozzo, Cinisello Balsamo 2013, 32-33.

317
12,34; 20,9)165. De facto, os habitantes da Samaria era considerados heréticos166,
no entanto, continuavam a venerar o seu antepassado Jacob e a oferecer culto ao
Deus único no monte Garizim. Assim, segundo o ‘plano de Deus’, Jesus tem de
passar pela Samaria para que esses habitantes possam reconhecer nele o ‘salvador
do mundo’167.
Nesse percurso da Judeia para a Galileia, Jesus e os seus discípulos chega-
ram a uma cidade da Samaria, chamada Sicar [Συχάρ]168, onde pararam junto ao
‘poço de Jacob’ [πηγή τοῦ Ἰακώβ] (cf. v.5)169. Apesar de todas as dificuldades em
identificar esta cidade alguns exegetas sublinham a possível relação com a cidade
de Siquém onde «Sepultaram também (…) os ossos de José, que os filhos de Is-
rael haviam trazido do Egipto, na porção de terra que Jacob comprara aos filhos
de Hamor, pai de Siquém, por cem peças de prata, e que se tornou propriedade
dos filhos de José» (Js 24,32). No entanto, o narrador valoriza aqui, sobretudo, o
‘poço’ que estaria situado na zona onde Jacob terá sido enterrado. Ao usar neste
versículo o termo πηγή, que quer dizer ‘poço’ ou ‘nascente’, em vez do termo
φρέαρ, que quer dizer ‘poço’ ou ‘cisterna’170, pode estar a evocar um milagre atri-
buído a Jacob, segundo uma lenda rabínica, em que o Patriarca fez subir, a ponto
de transbordar do verdadeiro poço, uma água superabundante. Na verdade, as
diferentes tradições sobre Jacob, conhecidas dos leitores contemporâneos de Jo,

165
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 114-115. «La necessità quindi non
riguarda il fatto che ci sia un’unica strada, né tanto meno l’obbedienza alle leggi di purità, secondo le
quali non era bene per un giudeo contaminarsi nel territorio samaritano». S. Grasso, Il Vangelo di
Giovanni, Roma 2008, 191.
166
 Stella Morra sublinha não só o facto de os samaritanos serem considerados ‘heréticos’ ou ‘cismáti-
cos’, como também o facto de Jesus, neste episódio, se encontrar com uma mulher. Este é um encontro
‘inesperado’ de Jesus com os que, perante a mentalidade judaica, são considerados ‘excluídos’. Esta
mesma teóloga ‘arrisca’ uma certa analogia com a ideia contemporânea associada aos ‘imigrantes
ilegais’. Cf. S. Morra, Parole intorno al pozzo, Cinisello Balsamo 2013, 24-25.
167
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 345.
168
  «Città samaritana mai menzionata nell’Antico Testamento e non ancora identificata dalla ricerca
archeologica». S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 192. Se considerarmos os manuscri-
tos encontramos duas possibilidades: Sychar e Shekem. Tais incertezas determina diferentes lugares:
Sychar, atual Askar, a cerca de 2km do poço de Jacob; ou Shekem a cerca de 100m do poço. Cf. R.
Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 115.
169
  A quem Deus chamou à reconciliação com o seu irmão Esaú e com o seu sogro Labão e a quem
concedeu as doze tribos de Israel (cf. Gn 28,3-15).
170
  Cf. C. Rusconi, «πηγή», in DGNT, São Paulo 2003, 373 e Id., «φρέαρ», in DGNT, São Paulo 2003,
485. Durante o episódio o evangelista utiliza os dois termos para significar o ‘poço’, usando-os quase
como sinónimos, ainda que πηγή (vv.6.14) se refira mais a ‘nascente’ e φρέαρ (vv.11.12) se refira mais
a ‘cisterna’. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 118.

318
são provavelmente o ‘pano de fundo’ desta narrativa171.
No mundo do médio oriente a água tem um papel fundamental. A falta de
água, da chuva ou da nascente, provocava a seca e a esterilidade da terra – é o
deserto. Por isso, no deserto ou nas terras áridas, os nómadas e os rebanhos esta-
beleciam-se junto aos poços e às cisternas172. De facto, na antiguidade, as cidades
e aldeias eram construídas ao longo dos rios ou próximos de nascentes. Ou então,
tinham que escavar um poço para poder chegar às águas subterrâneas. Também
se construíam cisternas fazendo buracos no chão, betumando-as com argamas-
sa, de modo que pudessem ser cheias com as águas da chuva ou com águas de
outras proveniências. Da água dependia muito a vida diária e a respectiva sobre-
vivência das sociedades, por isso, ir buscar água para beber, para cozinhar e para
lavar era um acontecimento comum e uma rotina quotidiana. Esta importância
da água era tanto maior quanto maior fosse a escassez da mesma, sobretudo,
em lugares desérticos ou zonas áridas. Por tudo isso, os lugares com eram locais
privilegiados de encontro. Neste contexto, quem dava água a alguém demons-
trava, com esta satisfação de uma necessidade humana, ser amigo (Mt 25,35173).
Com esta oferta de água podia-se estabelecer uma relação humana. Através de
algumas passagens do AT compreendemos que tais encontros, à volta da água,
se tornaram ocasião para chegar ao matrimónio: Rebeca e Isaac (Gn 24,12-20),
Raquel e Jacob (Gn 29,1-10), Séfora e Moisés (Ex 2,15-19)174.
Jesus ficou ali sentado junto ao poço de Jacob, enquanto os discípulos foram
à cidade comprar alimentos. Nesse momento, chegou uma mulher samaritana175

171
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 346-347.
172
 Cf. V. Mannucci, Giovanni il Vangelo narrante, Bologna 1993, 108.
173
  Mt 25,35: «Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e
recolhestes-me». BS.
174
  Cf. C. Koester, «Non tutta l’acqua è uguale», Brescia 2011, 1141. «Dans un pays où l’eau est rare,
les points d’eau sont tout naturellement des lieux privilégiés de reencontre, de conflit et de réconci-
liation, donc d’anciens souvenirs». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris
1988, 347. Ver ainda: R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 115-116. Jean-Louis
Ska tem um interessante artigo onde defende a importância da releitura deste texto da samaritana
à luz de várias passagens do AT, sobretudo, Gn 24; 29,1-14; Ex 2,14-22 e Os 2,4-25. Afirmando que é
possível falar deste texto sem essas referências mas faltaria muita da ‘iluminação’ que decorre do AT,
enquanto memória coletiva dos leitores deste evangelho. Cf. J.-L. Ska, «Jésus et la Samaritaine (Jn
4)», NRTh 118 (1996) 641-652. Ver ainda: S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 193.
175
  «L’essere qualificata solo per la sua appartenenza etnico-geografica, ma non per nome, fa di lei uno
dei principali personaggi anonimi del vangelo. L’anonimato di un personaggio può adempiere parec-
chie funzioni tra cui quella di favorire l’identificazione del lettore, o di consentire una sua maggiore
rappresentatività e tipizzazione». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 117.

319
para tirar água do poço e Jesus disse-lhe: «dá-me de beber» (v.7b). Este diálogo
aconteceu pelo meio-dia - literalmente ‘hora sexta’ [ὥρα ἕκτη] 176. Vários exegetas
sublinham, sobretudo, a estranheza deste horário. De facto, a escolha desta hora
para ir ao poço buscar água por parte da mulher é insólita, habitualmente este
trabalho fazia-se logo de manhã ou ao final da tarde177. Este facto permite pensar
a possibilidade de que a samaritana quisesse evitar encontros, sobretudo com
outras mulheres que se dirigiam ao poço, quase sempre em grupo e em horas
mais frescas (Gn 24,11178). Pode pensar-se ainda numa velada relação com a nar-
ração da paixão, onde pela hora sexta (19,14a), se menciona que Jesus «sabendo
que tudo se consumara, para se cumprir totalmente a Escritura, disse: ‘Tenho
sede!’» (19,28)179. Outros autores, reforçam que esta hora – meio dia, hora da luz
plena, contrasta com a visita noturna de Nicodemos, fazendo um contraste entre
a relação de Nicodemos com a relação da samaritana180. Jean-Louis Ska assinala
a correspondência entre esta ‘hora sexta’ e os ‘seis homens’ que a samaritana irá
dizer que já conheceu. Indica ainda que ‘seis’ é um número imperfeito, o número
perfeito e sagrado seria sete. Neste caso, o sétimo elemento é de uma ordem dife-
rente dos últimos seis181.

176
  Decidimos traduzir por ‘sexta hora’ em vez de ‘meio dia’, como propõe a versão portuguesa. De
facto, a expressão grega - ὥρα ἦν ὡς ἕκτη – significar ‘por volta da sexta hora’. No entanto, a ‘sexta-ho-
ra’ é exatamente o ‘meio-dia’, já que as horas do dia contam-se a partir das 06:00 da manhã (ao nascer
do sol). As traduções que seguimos fazem as duas opções. Renzo Infante traduz por ‘ora sesta’. Cf. R.
Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 115. Na mesma linha Léon-Dufour traduz
por ‘sixième heure’. Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 343.
Contudo, Raymond Brown opta por traduzir por ‘noon’. Cf. R. Brown, The Gospel According to John
(I-XII), I, New York 1966, 166.
177
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 169. Ver ainda: R. Infante
(a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 115; J.-L. Ska, «Jésus et la Samaritaine (Jn 4)», NRTh
118 (1996) 643.
178
  Gn 24,11: «Fez ajoelhar os camelos para descansarem, fora da cidade, junto de um poço, já de tarde,
quando as mulheres saíam para buscar água». BS.
179
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 115. Ver ainda: R. Brown, The Gospel
According to John (I-XII), I, New York 1966, 169.
180
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 349. Neste contraste de
personagens podemos assinalar: por um lado temos uma samaritana que não tinha nome, era mulher,
simples e desconhecida, encontrou-se com Jesus ao meio-dia, vinha buscar a água de que precisava,
foi Jesus que tomou a iniciativa de falar com ela, não volta a aparecer no evangelho; por outro lado,
temos um judeu que tinha o nome de Nicodemos, era homem, líder dos judeus, encontrou-se com
Jesus de noite, vinha buscar a verdade que precisava, foi ele que teve a iniciativa de falar com Jesus,
reaparece mais duas vezes no evangelho. Cf. B. Almeida, «Do encontro ao diálogo e do diálogo à
salavação», Itin(P) 58 (2012) 106-107.
181
  Cf. J.-L. Ska, «Jésus et la Samaritaine (Jn 4)», NRTh 118 (1996) 646. Neste sentido, podemos ver
neste encontro entre Jesus e a samaritana, à imagem dos testemunhos do AT, um encontro esponsal

320
Ao dizer ‘dá-me de beber’, Jesus manifesta que tem sede como qualquer ho-
mem que tem como preocupação assegurar a vida, sobretudo depois de um longo
percurso a pé e do cansaço da viagem. Contudo, alguns exegetas alertam para o
facto de ele não ter usado a fórmula clássica ‘dá-me um pouco de água’ - como
em Gn 24,17182, mas utiliza uma expressão mais geral que se encontra na bíblia
apenas em ocasiões de murmuração do povo judeu no deserto – como em Ex
17,2a183. Com este enquadramento literário, o narrador convida-nos a ver em
Jesus não simplesmente aquele que assume a humanidade nas suas exigências
vitais, mas a representação de Israel que, no deserto, pede de beber. Jesus, novo
Israel, experimenta a sede do povo, uma sede que não é só material, mas assume
um valor metafórico. Este horizonte é ‘anunciado’ pelos profetas e pela literatura
sapiencial: «Eis que vêm dias - oráculo do Senhor Deus - em que lançarei fome
sobre o país. Não será fome de pão, nem sede de água, mas de ouvir as palavras
do Senhor» (Am 8,11); «A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo! Quando
poderei contemplar a face de Deus?» (Sl 42,3)184.
Entretanto, somos informados pelo narrador que Jesus e aquela mulher estão
sós porque os «discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos» (v.8). Esta in-
formação revela a preocupação de justificar a razão pela qual Jesus se dirige àquela
mulher e não aos discípulos para pedir água. Todavia, a ida dos discípulos à cidade
também tem a ‘finalidade’ de deixar que este encontro entre Jesus e a samarita-
na aconteça de forma pessoal, quase privada, sem a presença de intermediários.
Valoriza-se assim o encontro pessoal e o modo como Jesus preferencialmente se
‘encontra’ com cada pessoa. É necessário ainda referir que, neste episódio, não ha-
verá nenhuma relação entre a mulher e os discípulos que acompanham Jesus, um
aspeto interessante para a estratégia da narrativa desta história185.
Entretanto, a mulher, espantada com o facto de Jesus lhe ter pedido água,
recorda-lhe que «os judeus não se dão bem com os samaritanos» (v.9b)186. De

de outra ordem, pre-anunciado por João Batista (cf. 3,29).


182
  Gn 24,17: «O servo correu ao encontro dela e disse-lhe: ‘Deixa-me, por favor, beber um pouco de
água do teu cântaro’». BS. Ver ainda: Gn 24,43b e Jz 4,19a.
183
  Ex 17,2: «O povo litigou com Moisés, e disse: ‘Dá-nos água para beber’. Disse-lhes Moisés: ‘Porque
litigais comigo? Porque pondes o Senhor à prova?’». BS. Ver ainda: Nm 20,8 e 21,16; Ne 9,20; Is 43,20.
184
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 351-352.
185
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 194.
186
  «Gesù chiede alla donna di dargli da bere, ed ella si stupisce che un giudeo di sesso maschile chieda
acqua a una donna samaritana». C. Koester, «Non tutta l’acqua è uguale», Brescia 2011, 1139. Se por
um lado temos esta atitude de surpresa por parte da mulher, por outro, percebemos que a samaritana
não recusa o diálogo e que, para além do pedido que lhe foi feito, ela ‘coloca’ este encontro no plano da

321
facto, não só era inoportuno que Jesus falasse com uma mulher, sem marido e
num lugar ‘equívoco’, como também, e sobretudo, era inconveniente que um ju-
deu falasse com uma samaritana187 - já que estes ‘povos’ não se davam bem. Com
efeito, os samaritanos são descendentes de dois grupos: o resto dos israelitas na-
tivos que não foram deportados quando se deu a queda do reino em 722 a.C; e os
colonos estrangeiros trazidos da Babilónia pelos assírios quando conquistaram
a Samaria188. A hostilidade entre judeus e samaritanos está relacionada com o
facto de a Samaria ter sido ocupada por estrangeiros e idólatras na época assíria
(cf. 2Re 17,24-31189). Surge assim uma população mista (entre os que nativos e
os estrangeiros) e, por isso, um sincretismo religioso contrário à autoridade de
Jerusalém (2Re 17,32-41190). As relações já difíceis, deterioraram-se sobretudo no

relação pessoa a pessoa. Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 353.
187
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 194. Todavia, como dirá o autor nesta mesma
página, no quarto evangelho, as personagens como a ‘samaritana’ têm a função de permitir que Jesus
exponha a sua própria revelação.
188
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 170.
189
  2Re 17,24-31: «24O rei da Assíria mandou vir gente da Babilónia, de Cuta, de Ava, de Hamat, de
Sefarvaim, e estabeleceu-os nas cidades da Samaria, em lugar dos filhos de Israel. Esses apoderaram-
-se da Samaria e instalaram-se nas suas cidades. 25Mas como não prestavam culto ao Senhor, quando
começaram a habitar nelas, o Senhor mandou leões contra eles, que os devoravam. 26Avisaram o rei
da Assíria dizendo-lhe: ‘Os povos que transferiste e estabeleceste nas cidades da Samaria, não sabem
como honrar o Deus daquela terra. Por isso, esse Deus mandou contra eles leões que os devoram, por
ignorarem o culto do Deus daquela terra’. 27O rei da Assíria ordenou o seguinte: ‘Mandai para lá um
dos sacerdotes que dali trouxestes cativos, a fim de que ali se estabeleça e ensine ao povo a maneira de
prestar culto ao Deus daquela terra’. 28Chegou, pois, um dos sacerdotes levados cativos da Samaria e
instalou-se em Betel, onde ensinava ao povo como deviam adorar o Senhor. 29Apesar disso, cada povo
fabricou o seu próprio deus e puseram-nos nos santuários dos lugares altos, anteriormente construí-
dos pelos samaritanos; cada povo colocou os seus deuses no lugar em que habitava. 30Os babilónios
fizeram uma imagem de Sucot-Benot; os de Cuta, uma de Nergal; os de Hamat, uma de Achimá; 31os
de Ava, uma de Nibeaz e de Tartac; os de Sefarvaim queimaram os seus filhos em honra de Adramélec
e de Anamélec, seus deuses». BS.
190
  2Re 17,32-41: «32Adoravam também o Senhor, mas fizeram sacerdotes, tirados dentre o povo,
os quais ofereciam sacrifícios por eles, nos santuários dos lugares altos. 33Desse modo, adoravam o
Senhor e, ao mesmo tempo, prestavam culto aos seus próprios deuses, segundo o costume das na-
ções donde tinham vindo. 34Ainda hoje seguem os seus antigos costumes; não temem o Senhor, não
observam os seus preceitos, nem os seus decretos, nem a lei e os mandamentos que o Senhor deu aos
filhos de Jacob, a quem deu o nome de Israel. 35O Senhor fizera uma aliança com eles e ordenara-lhes:
‘Não adorareis outros deuses nem vos prostrareis diante deles; não lhes prestareis culto e não lhes ofe-
recereis sacrifícios; 36mas temei ao Senhor que vos tirou do Egipto com o grande poder do seu braço
estendido. A Ele temereis, diante dele vos prostrareis e só a Ele oferecereis sacrifícios. 37Guardareis
sempre os preceitos, os decretos, a lei e os mandamentos que Ele vos deu por escrito, para os cum-
prirdes continuamente. Não adorareis outros deuses. 38Não esquecereis a aliança que fiz convosco,
não adorareis outros deuses. 39Temereis ao Senhor, vosso Deus, e Ele livrar-vos-á das mãos de todos
os vossos inimigos’. 40Eles, porém, não fizeram caso e procederam segundo os seus antigos costu-

322
ano 128 a.C., quando João Hircano incendiou o templo dos samaritanos, edifi-
cado no monte Garizim. Na época neotestamentária as relações mantinham-se
bastante tensas, como nos recorda um episódio de Lc: «Estes [Jesus e discípulos]
puseram-se a caminho e entraram numa povoação de samaritanos, a fim de lhe
prepararem hospedagem. Mas não o receberam, porque ia a caminho de Jerusa-
lém. Vendo isto, os discípulos Tiago e João disseram: ‘Senhor, queres que diga-
mos que desça fogo do céu e os consuma?’ Mas Ele, voltando-se, repreendeu-os»
(Lc 9,52-54)191. 
Não obstante todas as barreiras de tipo social, cultural, religioso e político,
Jesus continua o diálogo com aquela mulher192. Nesse sentido, Jesus diz à Sa-
maritana que se ela ‘conhecesse193 o dom que Deus teria para lhe dar’ seria ela
a pedir-lhe ‘água viva’ (cf. v.10). Jesus, o peregrino cansado da viagem, desafia a
samaritana a abrir-se a uma superação radical de oposição étnica, já que fala do
‘dom de Deus’ que transcende qualquer discriminação de pessoas194. Segundo
alguns autores o ‘dom de Deus’ [δωρεὰ τοῦ θεοῦ] seria o próprio Jesus195. Ao falar
desse dom Jesus não fala apenas de ‘água’ mas de ‘água viva’ [ὕδωρ ζῶν]. Estamos
de novo diante de um duplo sentido da palavra ζῶν, uma vez que pode signifi-
car ‘água corrente’ ou ‘água que dá vida’. Este duplo sentido está na origem do
‘mal-entendido’ entre Jesus e a mulher: ele fala de ‘água que dá vida’ e a mulher
pensa em ‘água corrente’, de uma fonte e, por isso, uma água que não seria de

mes. 41Aqueles povos adoraram o Senhor, mas honraram ao mesmo tempo os seus ídolos. Ainda hoje,
os seus filhos e os seus netos procedem como fizeram os seus pais». BS.
191
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 116-117. Ver ainda: B. Almeida, «Do
encontro ao diálogo e do diálogo à salavação», Itin(P) 58 (2012) 108.
192
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 195. Numa nota da página anterior, este exegeta
conclui, apoiado na literatura judaica, que os samaritanos eram equiparados a um pagão e considera-
dos ignorantes, pecadores e transgressores.
193
  É interessante, desde logo, referir que o verbo ‘conhecer’ [οἶδα], aqui na forma ᾔδεις, ocorre seis
vezes neste episódio da samaritana (vv.10.22a.22b.25.32.42). Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni,
Cinisello Balsamo 2015, 117. No quarto evangelho este verbo é usado quer de forma positiva, quer de
forma negativa em relação à salvação messiânica. A frase ‘se conhecesses o dom que Deus tem para
dar e quem é que te diz - dá-me de beber’ (v.10a), faz desta mulher uma personagem ‘incompetente’
uma vez que ainda não é capaz de reconhecer o dom de Deus. Esta incapacidade de reconhecimento
é típica de outras personagens de Jo (cf. 2,9; 5,13; 7,27; 8,14.19.55; 9,29; 14,5; 20,14). Cf. S. Grasso, Il
Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 195.
194
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 353-354.
195
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 170. «Il dono dell’acqua
viva è in stretta relazione con Gesù stesso, dal quale si riceve anche la vita». S. Grasso, Il Vangelo di
Giovanni, Roma 2008, 196.

323
cisterna196 - desde logo, a ‘água corrente’ (do poço ou da nascente) seria preferível
à ‘água da cisterna’197. Podemos, por isso, falar de ‘três’ águas: a água estagnada
(cisterna); a água corrente (poço) e a água viva (dom de Deus). Com efeito, não
obstante a novidade do adjetivo ‘viva’, a diferença não se refere à água estagnada,
porque a água do poço de Jacob é uma água de nascente já que um poço não é
uma cisterna. Jesus fala de uma água melhor do que aquela água que a samarita-
na veio buscar. Entre estas duas ‘águas’ há um espaço imenso, aquele que separa a
terra do céu. Tal como no diálogo com Nicodemos, também aqui Jesus procurou
‘elevar’ o seu interlocutor às ‘coisas celestes’198. Este recurso estilístico, comum no
quarto evangelho, permite que o diálogo ‘cresça’ e ‘evolua’ de um sentido para
outro, sem nunca perder a força da metáfora199.
Continuando na tensão entre os dois sentidos, a samaritana, pensando na
‘água corrente’, pergunta a Jesus como é que ele lhe pode dar água se ‘nem sequer
tem um balde e o poço é fundo’ (cf. v.11). A mulher insiste, questionando Jesus:
«Porventura és maior200 do que o nosso patriarca Jacob, que nos deu este poço
donde beberam ele, os seus filhos e os seus rebanhos?» (v.12bc). De facto, teria
sido Jocob quem tinha ‘feito’ aquele poço. Esta pergunta tem, por um lado, uma
expectativa de resposta negativa e, por outro lado, estabelece um paralelo entre
Jesus e Jacob. Do mesmo modo, alguns capítulos depois, os judeus irão perguntar
a Jesus: «Porventura és Tu maior que o nosso pai Abraão, que morreu?» (8,53a).
Noutros lugares Jesus é apresentado em contraposição com Moisés: «É que a Lei
foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram-nos por Jesus Cristo» (1,17).
É um tema recorrente em Jo, que sublinha assim a ‘superioridade’ do Revelador

196
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 117.
197
 Cf. V. Mannucci, Giovanni il Vangelo narrante, Bologna 1993, 108.
198
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 354.
199
  Como acontece sempre no quarto evangelho, o diálogo prossegue com a intervenção do interlocu-
tor, contudo, em dois planos, próprio do duplo sentido das palavras que provoca um ‘mal-entendido’
e um desnível de ‘entendimento’. Neste caso, a mulher entende as palavras apenas em termos utili-
taristas, enquanto Jesus adota um sentido metafórico. Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma
2008, 196. «Il contesto mostra che Gesù l’adopera [l’espressione ‘acqua viva’] in un senso metaforico e
che essa indica quindi un dono di Dio». C. Koester, «Non tutta l’acqua è uguale», Brescia 2011, 1139.
200
  Aqui sugerimos esta palavra em vez da proposta da tradução portuguesa que diz ‘mais’. A palavra
grega é μείζων que, sendo um adjectivo comparativo, tem o significado de ‘maior’. Cf. C. Rusconi,
«μείζων», in DGNT, São Paulo 2003, 300. As várias traduções que seguimos vão no mesmo sentido.
Raymond Brown traduz por ‘greater’. Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New
York 1966, 166. Renzo Infante traduz por ‘più grande’. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello
Balsamo 2015, 119. Léon-Dufour traduz por ‘plus grand’. Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile
selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 343.

324
em relação aos ‘pais’ do povo eleito, sem colocar em causa a importância de ne-
nhuma dessas mesmas figuras201.
Jesus não responde diretamente à pergunta da samaritana, mas usa um dis-
curso figurado para distinguir a água do poço da água verdadeira – a água viva202.
Neste sentido, Jesus faz a distinção entre as ‘águas’, porque ‘nem toda a água é
igual’203, dizendo «Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede; mas, quem
beber da água que Eu lhe der, nunca mais terá sede» (vv.13-14a). A experiência
ensina que os seres humanos bebem água para matar a sua sede, mas Jesus obser-
va que tal efeito dura pouco, porque quem bebe mata a sua sede apenas por um
momento limitado – depois de pouco tempo, volta a ter sede204. Apesar da água
ser muito importante, as pessoas são forçadas a reconhecer que a água habitual
tem um valor limitado. Neste contexto, Jesus começa a falar de uma água de
outra natureza, dada por ele. Uma água que ninguém alcança com as próprias
forças porque só se pode receber como dom. Quem beber dessa água nunca mais
voltará a ter sede205. Renzo Infante, refere que a passagem do particípio presente
(πᾶς ὁ πίνων – ‘todo aquele que bebe’ - v.13) ao conjuntivo aoristo (ὃς δ’ ἂν πίῃ -
‘mas quem beber’ - v.14) sublinha, precisamente, um beber definitivo, realizado
de uma vez por todas, que não implica a necessidade de voltar a beber206. Por isso,
essa água que Jesus ‘tem para dar’ tornar-se-á, naquele que a receber, «fonte de
água que dá a vida eterna» (v.14b). O contraste entre os dois tipos de água esclare-

201
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 355-356. «Il compara-
tivo μείζων (=maggiore) dell’aggettivo μέγας (=grande) ricorre frequentemente nella fraseologia gio-
vannea, quasi sempre per indicare aspetti salvifici della rivelazione cristologica che hanno uno statuto
di superiorità in rapporto all’esperienza religiosa precedente (Gv 1,50; 4,12; 5,20.36; 8,53; 10,29; 13,16;
14,12.28; 15,13.20; [19,11])». S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 197.
202
  Cf. C. Koester, «Non tutta l’acqua è uguale», Brescia 2011, 1139. Nesta página e na seguinte, Craig
Koester diz que os vv.13-14 são uma parábola. Diz que são uma parábola e que podem ser separados
do contexto porque são narradas na terceira pessoa e mantidos em termos gerais, enquanto o texto
anterior e posterior está na segunda pessoa. Diz ainda que esta parábola pode ser subdividida em três
momentos: Jesus exprime-se a propósito da água normal e diz que ‘quem bebe desta água voltará a ter
sede’ (v.13); Jesus contrapõe à água habitual uma água de outra natureza (v.14a); Jesus diz que quem
beber dessa água, de outra natureza, não voltará a ter sede porque a água torna-se em si, naquele que
a bebe, uma fonte de água viva (v.14b).
203
  Esta expressão é o título do interessante artigo de Craig Koester. Cf. C. Koester, «Non tutta l’ac-
qua è uguale», Brescia 2011, 1139-1147.
204
  De maneira semelhante Jesus irá contrapor o ‘pão que os judeus comeram no deserto’ (maná) e
o ‘pão que ele dá’ (pão vivo que é o próprio Jesus): «Eu sou o pão da vida. Os vossos pais comeram o
maná no deserto, mas morreram. Este é o pão que desce do Céu; se alguém comer dele, não morrerá»
(6,48-50). Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 357.
205
  Cf. C. Koester, «Non tutta l’acqua è uguale», Brescia 2011, 1140.
206
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 120.

325
ce que Jesus fala metaforicamente e que adota a água como imagem de uma rea-
lidade espiritual. Contudo, aos leitores não foi dito, até agora, que água é esta207.
A água era usada não apenas para beber, cozinhar e lavar, mas também para
purificar. A lei prescrevia a água para a purificação das doenças da pele (Lv 14,5-
6.50-52208), fluxos de sangue (Lv 15,13209) e impureza contraída pelo contacto
com cadáveres (Nm 19,17210). As pessoas impuras não podiam participar no culto
e deviam permanecer fora da comunidade até que estivessem purificadas. Quem
estivesse purificado pela água corrente podia entrar no santuário e participar de
novo na comunidade. Ora, os samaritanos eram considerados impuros (v.9) mas
Jesus supera a separação, provocada pela impureza, oferecendo água àquela mu-
lher211. Com efeito, os textos bíblicos usam a imagem da água para designar o es-
pírito prometido por Deus: «Tirareis água com alegria das fontes da salvação» (Is
12,3); «Naquele dia, de Jerusalém jorrarão águas vivas, metade das quais correrá
para o Mar Oriental e metade para o Mar Ocidental: correrão durante o Verão
e durante o Inverno. E o Senhor reinará sobre toda a terra» (Za 14,8-9a); «Vou
derramar água sobre o que tem sede, e fazer correr rios sobre a terra árida. Vou
derramar o meu espírito sobre a tua posteridade, e a minha bênção sobre os teus
descendentes» (Is 44,3). Segundo esta simbólica bíblica, a ‘água viva’ não é a re-
velação mas o próprio Espírito Santo. Isto mesmo podemos compreender melhor
quando Jesus diz: «No último dia, o mais solene da festa, Jesus, de pé, bradou: ‘Se
alguém tem sede, venha a mim; e quem crê em mim que sacie a sua sede! Como
diz a Escritura, hão-de correr do seu coração rios de água viva’. Ora Ele disse isto,
referindo-se ao Espírito que iam receber os que nele acreditassem» (7,37-39a)212.

207
  Cf. C. Koester, «Non tutta l’acqua è uguale», Brescia 2011, 1140-1141.
208
  Lv 14,5-6.50-52: [Purificação dos leprosos] «5O sacerdote mandará imolar uma das aves sobre um
vaso de barro, cheio de água pura. 6Depois, tomará a ave viva, a madeira de cedro, o pano de púrpura
e o ramo de hissope, mergulhando-os com a ave viva, no sangue da ave imolada, que se misturou com
a água pura». [Purificação das casa onde há lepra] «50Imolará uma das aves sobre um vaso de barro,
com água pura; 51tomará a madeira de cedro, o ramo de hissope, o pano vermelho e a ave viva, e mo-
lhá-los-á no sangue da ave degolada e na água pura, aspergindo a casa sete vezes. 52Purifica, assim, a
casa com o sangue da ave, com a água pura, com a ave viva, com a madeira de cedro, com ramo de
hissope e com o pano vermelho». BS.
209
  Lv 15,13: «Quando o que tem o fluxo estiver limpo do corrimento, contará sete dias, após o seu
restabelecimento; depois, lavará as vestes, banhar-se-á em água corrente e ficará puro». BS.
210
  Nm 19,16-17: «16E todo aquele que, em pleno campo, tocar num homem trespassado pela espada
ou num cadáver ou em ossos humanos ou numa sepultura, ficará impuro durante sete dias. 17Para o
purificar, tomarão da cinza queimada do sacrifício pelo pecado e derramarão sobre ele um vaso de
água da corrente». BS.
211
  Cf. C. Koester, «Non tutta l’acqua è uguale», Brescia 2011, 1142.
212
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 359. Neste contexto, no

326
A ‘resposta’ da samaritana é natural e interessante, pede a Jesus «Senhor, dá-
-me dessa água, para eu não ter sede, nem ter de vir cá tirá-la» (v.15). A primeira
parte deste pedido assemelha-se ao que a multidão irá pedir a Jesus «Senhor,
dá-nos sempre desse pão» (6,34). Nesta expressão da samaritana podemos pensar
na possibilidade de um pedido ‘superficial’ que tem a ver com a solução prática
de não voltar a ter o trabalho a ir buscar água ou de nem se quer voltar a ter
sede, mas também podemos pensar, como sublinha Léon-Dufour, que ela passa
da admiração ao desejo de algo mais ‘profundo’. Ela que tinha vindo, àquele poço
de Jacob, buscar a água necessária para a vida quotidiana (vital mas provisória)
agora pede uma ‘água viva’ (vital mas definitiva). Na realidade, o único que pode
dar essa vida é Deus, como sugere o início do v.10 – ‘se tu conhecesses o dom que
Deus tem para te dar’213.
Em seguida, de forma inesperada, Jesus diz-lhe: «Vai, chama o teu marido e
volta cá» (v.16). Mas ela, que tinha tido cinco (cf. v.18a), vivia agora com um que
não era seu marido (cf.v.18a), por isso, diz: «Eu não tenho marido» (v.17a). A mu-
lher responde de maneira lacónica referindo-se apenas à sua situação atual, sem
ter em conta o seu passado. Jesus confirma a sua situação atual, mas não deixa de
lhe recordar o seu passado214. Esta recordação não é para a condenar nem para a
envergonhar mas para que ela pudesse encarar a sua própria verdade. De facto,
Jesus não teve a preocupação de lhe dar novos mandamentos ou novos preceitos,
mas quis abrir, no coração, a possibilidade de falar da ‘ausência’. É interessante
reparar que, no facto daquela mulher reconhecer que não tinha marido, surge a
ocasião para a verdade mais profunda da sua vida – condição necessária para a
relação215. Raymond Brown diz que será inútil perguntar-se o que teria aconte-
cido se ela regressasse com o seu amante. Mas é útil recordar que aos judeus era
permitido três casamentos e a mesma regra se aplicava aos samaritanos. Ora,

v.24 encontramos a afirmação de que Deus é espírito (πνεῦμα ὁ θεός), não tanto como uma definição
de Deus mas como uma descrição do seu modo de se relacionar com a humanidade. Cf. R. Infante (a
cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 124. Este é o sentido mais profundo da metáfora da água
viva que Jo nos apresenta. Santi Grasso, depois de falar das recorrências da ‘água’ no quarto evangelho
(cf. 1,33; 1,26.31; 2,7.9; 3,5; 19,34), diz que esta água (4,14) pode indicar quer o Espírito, quer a salvação
ou a revelação – já que dá a ‘vida eterna’. Deste modo, o evangelista recorre a um símbolo universal – a
água, sem a qual a vida humana não pode subsistir, para ilustrar a função incontornável da salvação
que ele oferece, sem a qual não se pode ter uma vida significativa e realizada. Cf. S. Grasso, Il Vangelo
di Giovanni, Roma 2008, 199.
213
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 360.
214
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 199-200.
215
  Cf. A. Fortin, «Jésus et les gens de Samarie», SémBib 157 (2015) 22.

327
por isso, a vida daquela mulher era considerada bastante imoral216. Outros auto-
res, para além de sublinharem a ‘imoralidade’, referem que esta mulher é uma
‘vítima’ de relações que terminam mal. Há quem, inclusive, afirme que teria um
desequilíbrio afetivo217.
Em qualquer um dos casos, a verdade é que esta mulher tem ‘sede’ de relações
que acabem bem e a sua sede, apesar de ter tido cinco maridos e agora viver com
outro homem, não foi ainda saciada. Assim, alguns autores sugerem que seja pos-
sível pensar que, na base, esteja a necessidade e a sede de uma relação autêntica
com Deus. Deste modo, Jesus oferece uma água que representa uma metáfora da
revelação218. Deste modo, com este diálogo, que tem características maiêuticas,
Jesus quer que a mulher vá alcançando a consciência da sua própria sede, que não
é tanto de encontros ocasionais, mas da revelação e da plenitude de vida219. Todo
este ‘itinerário’ tem que valorizar o facto de Jesus, enquanto judeu, ter quebrado
várias ‘regras’: estava a falar com uma mulher (v.7); estava sozinho a falar com
ela, junto a um poço pela hora do meio dia (vv.6-7); esta mulher pertencia a um
‘povo’ considerado ‘impuro’ pelos judeus (v.9); e esta samaritana era considerada
‘bastante imoral’, pois tinha tido cinco maridos e agora vivia com um que não
era marido (vv.17-18).
O pedido de Jesus para ir buscar o seu marido (v.16) é, aparentemente, es-
tranho e fora do seu lugar. Só se pode entender melhor dentro dos elementos
convencionais do romance helenístico. A pergunta tende a apurar se ela é ou não
uma candidata ao matrimónio. Percebendo-se descoberta, segundo alguns exe-
getas, ela tenta uma ‘última carta’ negando ter marido, podendo assim enganar o

216
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 171. Nesta mesma página,
o autor indica várias possibilidades que justificam o tema dos ‘maridos’. Diz que Origenes vê uma
alusão ao facto de os samaritanos só considerem como canónicos os cinco livros de Moisés. Outros
pensam na passagem 2Re 17,24ss, onde se diz que os colonos estrangeiros, trazidos pelos assírios para
Samaria, provêm de cinco cidades e com eles trouxeram os seus cultos pagãos. Houve ainda quem
sugerisse que uma curiosa interpretação, afirmando que ao dizer que não tinha marido, a samaritana
tivesse mentido a Jesus porque tinha projetos ‘matrimoniais’ sobre ele. Ver ainda: X. Léon-Dufour,
Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 362-363 e R. Infante (a cura di), Giovanni, Cini-
sello Balsamo 2015, 119 e 121. Santi Grasso refere que da história do AT resulta que na Samaria havia
cinco cultos idolátricos e que frequentemente, na linguagem bíblica, a terminologia e a simbólica ma-
trimonial são usadas no âmbito religioso para falar da relação entre Deus e o Povo (cf. 2Rs 17,24-41).
Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 200.
217
  «Cette femme est aussi identifiée à une pécheresse et à un déséquilibre affectif». A. Fortin, «Jésus
et les gens de Samarie», SémBib 157 (2015) 18.
218
  Cf. C. Koester, «Non tutta l’acqua è uguale», Brescia 2011, 1144.
219
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 120.

328
seu interlocutor. Nesta interpretação, tal negação revela a verdadeira intenção da
mulher. Contudo, nas suas palavras evidencia-se a ironia do evangelista. Dizen-
do que não tinha marido ela diz a verdade e revela a sua atual situação irregular.
Jesus, na sua resposta (vv.17b-18), frustra as expectativas da samaritana e dá um
novo horizonte à discussão, conduzindo a sua interlocutora à perceção de que
ela não precisa de outro amante mas de encontrar o verdadeiro esposo, tal como
a Samaria deve reencontrar o verdadeiro e único Deus220. Neste contexto, Jesus
pode ser visto como o sétimo marido, não um entre outros, mas o esposo verda-
deiro, aquele que sacia plenamente a sede de relação221. Assim, a samaritana, im-
pressionada e tocada pela clarividência de Jesus, reconhece que ele é um ‘profeta’
(v.19). Talvez ainda não o profeta anunciado para o fim dos tempos (cf. Dt 18,15),
mas um homem inspirado por Deus222.
Entretanto, Jesus diz à mulher que vai chegar a hora – e já chegou – (cf. vv.21
e 23a) «em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verda-
de» (v.23b). Trata-se do modo como o evangelista fala da tensão escatológica, que
nos sinóticos se refere ao reino – que é no futuro mas que é próximo223. De facto,
Jesus revela a essência da nova adoração, característica dos tempos messiânicos,
que não será ligada a um lugar particular e específico – como Jerusalém ou Ga-
rizim, mas será em ‘espírito e verdade’. A verdade e o espírito são duas realidades
que provêm de Cristo, ou seja, o novo templo onde ‘os verdadeiros adoradores
hão de adorar o Pai’ está indubitavelmente ligado à própria pessoa de Jesus Cris-
to ressuscitado224. Deste modo, com Jesus vem a hora em que o culto deixará de
depender de um lugar determinado - mesmo o mais venerável. Um horizonte que
já tinha sido proclamado no livro de Isaías: «Eis o que diz o Senhor: ‘O céu é o
meu trono, e a terra, o estrado dos meus pés. Que templo podereis construir-me,
ou que lugar para Eu repousar?’ (Is 66,1).
Nesta adoração em ‘espírito’ e ‘verdade’, Jesus não se limita a anunciar a imi-
nência do tempo escatológico, mas ‘transforma’ o ‘adorar a Deus’ da samaritana
(v.20a) num ‘adorar o Pai’ (vv.21b.23)225. Daí que Jesus diga os samaritanos (‘vós’-

220
  Ibidem, 120-121.
221
 Cf. B. Almeida, «Do encontro ao diálogo e do diálogo à salavação», Itin(P) 58 (2012) 111.
222
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 364.
223
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 172.
224
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 123.
225
  Léon-Dufour explicará melhor esta tensão entre as referência a ‘Deus’ (samaritanos) e ‘Pai’ (ju-
deus). A paternidade de Deus para com Israel é largamente atestada pela Escritura. Mas desta Escri-
tura os samaritanos têm apenas o Pentateuco. Aqui o apelativo ‘Pai’ para designar Deus, certamente

329
v.22a) adoram o que não conhecem, enquanto os judeus (‘nós’- v.22b) adoram um
Deus que conhecem226. Que Deus que é Pai só pode ser adorado autenticamente
se for no ‘Espírito’ e na ‘verdade’227. Deste modo, a verdadeira adoração é a ‘ado-
ração ao Pai’. Mas essa adoração é feita pela ação do Espírito Santo. Isto mesmo
dirá Paulo, na carta à comunidade de Roma: «Vós não recebestes um Espírito que
vos escravize e volte a encher-vos de medo; mas recebestes um Espírito que faz
de vós filhos adoptivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai!» (Rm 8,15). Será
na relação com o messias – Jesus, o Cristo – que, por esta ação do Espírito, nos
compreendemos como ‘filhos de Deus’ – ele é o ‘caminho’ (14,6a) e ‘quem acredi-
ta nele, torna-se filho de Deus’ (1,12).
Depois disto a mulher afirma «Eu sei que o Messias, que é chamado Cristo,
está para vir. Quando vier, ele nos anunciará228 todas as coisas» (v.25). Pela arte
refinada do narrador, a samaritana não reconhece imediatamente em Jesus o
messias, a sua expressão é indireta de modo a reservar ao próprio Jesus a prio-
ridade do anúncio229. Deste modo, o diálogo de Jesus com a samaritana atinge o
seu cume com a expressão ‘sou eu [ἐγώ εἰμι]’ (v.26b). Na verdade, esta expressão
pode ser entendida, por quem ouve, como uma simples resposta à pergunta
feita, com a qual ele se qualifica como messias. Se pelo contrário, se tiver em

que está presente, mas sempre na perspetiva colectiva e histórica da proteção divina que o povo ex-
perimentou, sobretudo, durante o êxodo. Será apenas nos profetas, nos salmistas e nos sábios que a
designação ‘Pai’ implicará uma verdadeira relação e uma relação correlativa de ‘filho de Deus’. Cf. X.
Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 369-370.
226
  Ibidem, 367-368. Nestas mesmas páginas o autor dá conta de outras interpretações, sobretudo,
para este ‘nós’ e este ‘vós’: ‘nós’ corresponde a 3,11 e seria uma referência quer a Jesus, quer à comuni-
dade cristã; o ‘vós’ estaria relacionado com os interlocutores não cristãos, seja em 3,11, seja aqui em
4,21. No entanto, esta interpretação coloca-se ao nível pós-pascal e ignora a situação concreta deste
diálogo, tornando incompreensível a frase explicativa – ‘a salvação vem dos judeus’ (v.22c). Ver ainda:
S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 202.
227
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 204. Nesta página e na seguinte, o autor fala da
relação entre estas duas características da autêntica adoração, concluindo que o Espírito tem a função
de conduzir à verdade.
228
  Apesar da proximidade de sentido, sugerimos esta tradução em vez da proposta da tradução por-
tuguesa que diz: «há-de fazer-nos saber». De facto, o verbo ἀναγγέλλω, aqui presente na forma futura
ἀναγγελεῖ, tem um primeiro significado relacionado com ‘reportar’ ou ‘referir’, e um segundo sentido
relacionado com ‘dizer’, ‘anunciar’, ‘proclamar’ ou ‘revelar’. Cf. C. Rusconi, «ἀναγγέλλω», in DGNT,
São Paulo 2003, 40. Alguns exegetas aproximam-se desta nossa opção. «He will announce all things
to us». R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 167. «Il nous dévoilera tout».
X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 344. No entanto, Renzo Infante
aproxima-se da proposta da tradução portuguesa quando traduz: «ci insegnerà ogni cosa». R. Infan-
te (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 125.
229
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 375-376.

330
conta a literatura antico-testamentaria, esta fórmula recorda o momento da
‘sarça ardente’ em que Deus diz a Moisês: «Eu sou aquele que sou» (Ex 3,14a)230.
No entanto, segundo Renzo Infante, esta expressão tem um duplo sentido: a
mulher pensa num messias dos tempos futuros; e Jesus manifesta-se como o
messias presente. O messias é o judeu que está a falar com ela e que conhece os
seus segredos mais íntimos. Neste sentido, a samaritana torna-se a destinatária
da primeira clara auto-revelação de Jesus, como messias mas também como
supremo revelador do Pai231.
Depois deste diálogo com Jesus, o evangelista sublinha que «a mulher deixou
o seu cântaro [ὑδρίαν]» (v.28a)232. Este ‘deixar ali o cântaro’ não tem tanto uma
razão prática para que Jesus pudesse beber ou porque tinha pressa de regressar
à cidade para contar o sucedido, mas é, sobretudo, um modo do autor dizer que
aquele cântaro passa a ser inútil para a ‘água viva’ que Jesus suscitou naquela mu-
lher233. Por um lado, como se fosse uma pintura, onde o cântaro ali abandonado
tivesse a função de fazer visualizar a sua ‘inutilidade’, uma vez que a mulher ti-
nha ‘encontrado’ Jesus. Por outro lado, agora que os discípulos tinham chegado e
a mulher tinha saído, o cântaro torna-se quase a presença da samaritana ausente
enquanto Jesus anuncia aos discípulos que o ‘fruto’ está maduro234. Este diálogo
com os discípulos quase parece um interlúdio antes do acolhimento dos sama-
ritanos que chegam à fé em Jesus reconhecendo-o como ‘salvador do mundo’
(vv.39-42). O diálogo começa, precisamente, com a admiração dos discípulos por
Jesus estar a falar com uma mulher (v.27). Esta admiração decorre do costume
que desaconselhava um rabbi a falar em público com uma mulher, mesmo que
fosse a esposa ou a própria filha. Contudo, o respeito dos discípulos pelo mestre
impediu-os de fazer qualquer pergunta a Jesus235.

230
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 206.
231
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 124-125.
232
  A palavra ὑδρία quer dizer ‘cântaro’ ou ‘jarra de água’. Cf. C. Rusconi, «ὑδρία», in DGNT, São
Paulo 2003, 467. Esta mesma palavra é a mesma que ocorre nas Bodas de Caná (2,6.7) para indicar as
jarras que foram usadas para recolher a água que Jesus transformaria em vinho.
233
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 173.
234
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 378.
235
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 114 e 125. A este propósito Stella
Morra diz que a grande diferença entre os discípulos e a samaritana é que eles, naquele momento, não
falam com Jesus, não exprimem os seus pensamento, não se metem em jogo. Cf. S. Morra, Parole
intorno al pozzo, Cinisello Balsamo 2013, 47.

331
Enquanto Ele falava com os seus discípulos, a mulher contava aos habitan-
tes da sua cidade quem tinha encontrado236. As duas cenas desenrolam-se em
simultâneo. O texto não refere que a samaritana tenha ir ter com algum dos
seus anteriores maridos, nem sequer com o seu actual amante. O texto passa
dos seis homens que já tinha conhecido, que biblicamente é considerado o nú-
mero imperfeito, para Jesus – o verdadeiro esposo. Foi com esse que ela falou e
é desse que ela agora fala aos samaritanos. Jesus vem assim representado, para
a samaritana e também para os samaritanos, como o verdadeiro esposo e a ple-
na fertilidade237. Assim, a interlocutora anónima de Jesus, assumindo aqui um
papel de representante da Samaria e da infidelidade religiosa de todo um povo,
torna-se, pela misericórdia de Deus, imagem da esposa que o messias, o esposo
pronunciado por Batista, veio desposar com alegria: «O esposo é aquele a quem
pertence a esposa; mas o amigo do esposo, que está ao seu lado e o escuta, sente
muita alegria com a voz do esposo. Pois esta é a minha alegria! E tornou-se
completa!» (Jo 3,29).
Neste sentido, diz a mulher aos habitantes da cidade: «238Vinde ver um
homem que me disse tudo o que eu fiz! Não será Ele o Messias?» (v.29). Por
um lado, a questão que a samaritana coloca parte da experiência que fez; ou
seja, o primeiro passo para falar do Messias é fazer a experiência do encontro
pessoal com ele239. Por outro lado, esta frase parece revelar que ela não teria
má reputação nem tão pouco sentimento de culpa pela sua situação240. Pelo
menos, pode regressar abertamente à cidade sem medo de falar com os ha-
bitantes da sua cidade acerca do ‘profeta’. Efetivamente, depois de Jesus lhe
falar da sua vida pessoal, ela tinha afirmado que ele era um ‘profeta’ (cf. v.19).
Esta identificação de Jesus deriva, sobretudo, do especial conhecimento que
ele demonstrou241. No entanto é interessante referir que aqui ela não diz que

236
  «Ici, la Samaritaine s’en va vers les habitants de son village. Or ne venait-elle pas puiser de l’eau à
midi pour éviter de s’entendre dire ce que Jésus lui a révélé et qu’elle dit à present sans honte?» J.-L.
Ska, «Jésus et la Samaritaine (Jn 4)», NRTh 118 (1996) 647.
237
  Cf. J.-L. Ska, «Jésus et la Samaritaine (Jn 4)», NRTh 118 (1996) 649.
238
  Estranhamente a versão portuguesa inclui a expressão «Eia!» no início deste versículo. Talvez o
tradutor quisesse dar enfase à surpresa da descoberta que a samaritana tinha acabado de fazer. Con-
tudo, nem no texto grego, nem em nenhuma das traduções que seguimos, encontrámos a expressão,
pelo que decidimos ignorá-la.
239
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 208. Nesta mesma página o autor dirá: «Nella
teologia giovannea infatti l’accostarsi al Gesù terreno richiede il ‘vedere’ come momento ineludibile e
fondamentale per l’adesione matura a lui come Signore».
240
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 131 e 121.
241
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 172.

332
Jesus seja um judeu, nem afirma explicitamente que seja o messias. Faz antes
uma pergunta que é mais um apelo a uma tomada de posição livre do que uma
imposição afirmativa242.
O evangelista regressa ao diálogo entre Jesus e os discípulos (vv.31-38), feito
de expressões enigmáticas, onde vai revelando gradualmente o segredo da sua
própria existência e o sentido global da sua obra no mundo, em sintonia total
com a vontade do Pai – é esse o seu ‘alimento’ (cf. v.34)243. Jesus usa dois ditos
populares, uma espécie de provérbios, que fazem referência ao mundo agrícola.
Um primeiro fala do tempo, quatro meses, que decorre entre o semear e o ceifar
(cf. v.35). Todavia, Jesus convida os discípulos a levantar os olhos e a verificar
que aquele intervalo de tempo já não existe porque os campos já «estão doira-
dos244 para a ceifa» (v.35b). Muito provavelmente está a fazer referência à urgência
da missão, traduzida ‘visualmente’ pelos samaritanos que vêm ao encontro dele
através dos campos. Jesus proclama assim que, nos seus dias, se está a completar a
escritura e que com ele se inaugura o tempo escatológico. Um segundo provérbio
faz uma distinção entre o semeador e o ceifeiro (cf. v.37). Jesus diz aos discípulos
que os envia a ceifar o que não semearam e a entrar no trabalho dos que tinham
semeado. Para a interpretação e a identificação de quem é o semeador e o ceifeiro
não existe uma resposta unívoca. Podemos pensar que Jesus seja o semeador que
recolhe os frutos de uma missão que foi iniciada pelo Pai, mas também se pode
pensar que o papel do semeador tenha a ver com a própria missão de João Batista.
Pode ainda ser o próprio Cristo o semeador e os discípulos seriam aqueles que
iriam recolher os frutos desse trabalho. Por fim, a expressão ‘entrar no trabalho
deles’ (cf. v.38c) tem a ver, sobretudo, com a ideia de que o trabalho missionário é

242
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 125-126.
243
  Será interessante sublinhar que antes Jesus tinha pedido água para beber à samaritana (v.7b) e
agora são os discípulos que insistem com ele para comer (v.31b). Esta insistência revela-se uma ocasião
para Jesus falar de um segundo sentido do ‘alimento’. Na tensão entre o alimento terreste e o alimento
celeste, já presente na tradição sinótica (cf. Mt 4,4), ele revela radicalmente que só tem um alimento:
a união com o Pai. Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 381.
244
  Aqui decidimos manter a tradução portuguesa da palavra grega λευκαί, apesar de outras traduções
indicarem a palavra ‘branco’. Carlo Rusconi afirma que a palavra λευκός pode ter não só o significado
de ‘branco’ ou ‘cândido’, mas também ‘resplandecente’ ou ‘luminoso’. Cf. C. Rusconi, «λευκός», in
DGNT, São Paulo 2003, 286. Pelo contexto faz todo o sentido dizer ‘doirados’, uma vez que quando a
‘planta’ fica madura ela ganha a cor doirada. No entanto, Renzo Infante traduziu por ‘bianchi’. Cf. R.
Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 127. No mesmo sentido, Léon-Dufour traduz:
«ils sont blancs pour la moisson». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris
1988, 344. Já Raymond Brown traduz por ‘maduro’: «they are ripe for the harvest». R. Brown, The
Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 168.

333
uma estreita relação de continuidade com a missão de Jesus e do Pai, e que cada
missionário constrói o seu trabalho sobre o trabalho anterior245.
O nosso texto conclui com o diálogo entre Jesus e os samaritanos (vv.39-
42). O início deste diálogo pode ser lido como uma imediata explicitação das
palavras de Jesus no v.38, ou seja, a samaritana pode ser considerada como o
‘semeador’ que pelo testemunho de fé [μαρτυρούσης] (v.39) leva a mensagem aos
seus concidadãos246. De facto, os samaritanos daquela cidade, depois de ouvirem
o testemunho daquela mulher, foram ter com Jesus que estava junto ao poço e
pediram-lhe que ficasse com eles (vv.39-40). O evangelista diz que Jesus ficou
dois dias (v.41a). Esta presença de Jesus no meio deles fê-los acreditar e professar
que ele era o ‘salvador’, não apenas pelo testemunho que ela tinha dado (v.39)
mas também por aquilo que eles próprios tinham ‘escutado’ de Jesus (v.42). Não
podemos deixar de sublinhar que nesta justaposição de frases começa-se por di-
zer que ‘muitos’ [πολλοί] (v.39) acreditaram através do testemunho da mulher,
e conclui-se a dizer que ‘muitos mais’ [πολλῷ πλείους] (v.41) acreditaram pelo
encontro direto com Jesus.
Neste sentido, Léon-Dufour, afirma que a fé se alcança sempre a partir de
um testemunho, mesmo quando é dado, como é o caso, por uma mulher sem
‘autoridade’ e aparentemente a um grupo ‘cismático’. A fé da Igreja continua a
transmitir-se por esta via: fruto de um encontro pessoal com Jesus, o testemunho
leva ouvintes a ‘escutar’ a ‘palavra’ para aprofundar a fé que o testemunho sus-
citou247. Isto é, um testemunho que sendo fruto de um encontro com Jesus tem
como finalidade suscitar o encontro pessoal de cada um com o próprio Jesus.
Neste sentido, é muito interessante verificar que os samaritanos concluem que
Jesus é o ‘salvador do mundo’. Mas a proclamação deste título não é dirigida ao

245
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 126-129. Ver ainda: X. Léon-Du-
four, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 386-391.
246
  Ibidem, 129. «Au v.39 l’évangéliste utilize le verbe ‘témoigner’ (μαρτυρέω), le même que pour le
Précurseur [1,15.32.34; 3,26], il attribue ainsi à la femme samaritaine un rôle qu’il ne faudra pas ensui-
te rabaisser, comme le fait la traduction: ‘Ce n’est plus à cause de tes dires…’ (v.42), qui implique une
connotation dépréciative». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 392.
247
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 392. «La fede in Gesù
nasce dall’incontro con lui, ma si innesta all’interno di una rete di rapporti basati sulla parola e sulla
testimonianza dei mediatori umani». S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 215. Sugerimos
ainda a leitura do interessante artigo de Anne Fortin que fala da relação desta passagem com a evan-
gelização a partir do ‘testemunho’. A autora propõe uma leitura semiótica do texto centrada na força
da palavra. Uma palavra que, no quarto evangelho, tem por objetivo fazer-nos acreditar – a nós que
lemos. Cf. A. Fortin, «Jésus et les gens de Samarie», SémBib 157 (2015) 15-33.

334
próprio Jesus mas à mulher samaritana (v.41c), que, deste modo, permanece pre-
sente nesta narrativa do início até ao fim. Por conseguinte, aqueles que tinham
sido ‘evangelizados’ pela mulher são os mesmos que agora lhe ‘anunciam’ quem
é verdadeiramente Jesus. Uma admirável mudança248.
A fé daqueles samaritanos na salvação em Jesus, referida no v.42 [σωτήρ], já
tinha sido antecipada, em parte, no v.22 [σωτηρία]. Começou-se por afirmar que
a ‘salvação vinha dos judeus’ (v.22) e agora conclui-se que esta salvação é destina-
da a todos porque todos podem reconhecer Jesus como o ‘salvador’ (v.42)249. Com
este título cristológico ‘salvador do mundo’ atinge-se o ponto culminante de toda
esta narrativa. Jesus começou por ser identificado como judeu; depois, foi com-
parado a Jacob; em seguida, foi reconhecido como profeta; depois, conclui-se,
que será o messias; e, por fim, é proclamado o ‘salvador do mundo’250. De facto,
todo este texto é uma lenta e progressiva revelação de Jesus que se manifesta o
personagem principal e o único que está verdadeiramente presente desde o início
até ao fim. Uma revelação onde Jesus, diante da infidelidade de uma mulher e de
um povo, representa o esposo fiel que vem restaurar a aliança dos samaritanos
com Deus e, neles, de todos os habitantes da terra que o reconheçam como o
‘salvador do mundo’251.

248
  Ibidem, 393.
249
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 123. O termo ‘Salvador’ era um título
pós-pascal comum para Jesus, particularmente na obra lucana e paulina. No entanto, este é o único
caso, nos evangelhos, em que o termo é aplicado a Jesus ainda durante o seu ministério público. Cf. R.
Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 175.
250
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 394. Este título, apesar
de nunca ocorrer na versão dos LXX para indicar o Messias, era comum na cultura grega e romana,
especialmente aplicada ao imperador. No NT o título de ‘salvador do mundo’ só aparece aqui e em
1Jo 4,14: «Nós o contemplámos e damos testemunho de que o Pai enviou o seu Filho como Salvador
do mundo». Cf. B. Almeida, «Do encontro ao diálogo e do diálogo à salvação», Itin(P) 58 (2012) 115.
251
  Cf. J.-L. Ska, «Jésus et la Samaritaine (Jn 4)», NRTh 118 (1996) 641 e 651.

335
2.4. Jesus encontra-se com uma mulher adúltera252
Ao falarmos deste encontro de Jesus temos que começar pela pergunta: será
que este episódio (8,1-11)253 pertence ao quarto evangelho? Para alguns exegetas
a resposta é clara: trata-se de uma inserção posterior, já que esta passagem não se
encontra em nenhuma dos primeiros testemunhos textuais gregos importantes,
sobretudo, orientais254. A primeira referência a este episódio surge na Didaskalia,
documento eclesiástico Sírio da primeira parte do séc III, que o cita para exortar
os bispos à clemência para com os pecadores255. No século V temos também re-
gistos da integração desta passagem como leitura da festa litúrgica de Santa Pe-
lágia de Antioquia – que seria uma mulher do séc III que se converteu ao cristia-

252
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: J. Beutle, Das Johannesevange-
lium, Freiburg im Breisgau 2013, 264-268 [note-se que quase nem fala desta passagem, aliás a tradução
portuguesa nem têm]; F. Marin, W. Wright, The Gospel of John, Grand Rapids 2015, 150-153; [U.C.
von Wahlde, The Gospel and Letters of John, II, Michigan 2010 – não fala desta passagem]; P. Auf-
fret, «Etude structurelle de Jn 8,1-11», BN 166 (2015) 95-108; A.D. Baum, «Does the Pericope Adulte-
rae (John 7:53 – 8:11) Have Canonical Authority?», BBR 24 (2014) 163-178; J. Knust, T. Wasserman,
«Earth Accuses Earth: Tracing What Jesus Wrote on the Ground», HTR 103 (2010) 407-446.
253
  Vários autores incluem nesta unidade literária o último versículo do capítulo anterior «E cada um
foi para sua casa» (7,53). Deste modo, sugerem a seguinte unidade: 7,53 – 8,11. Léon-Dufour opta,
precisamente, pela unidade 7,53-8,11, a que dá o título «Jésus et la femme adultere»; Renzo Infante
também segue esta mesma delimitação 7,53-8,11, a que dá simplesmente o título «L’adultera»; Ray-
mond Brown delimita também o texto na mesma unidade, que intitula «The Story of the Adulteress»,
sugerindo uma pequena diferença ao isolar o último versículo do capítulo interior (7,53; 8,1-11). Cf.
X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 311; Cf. R. Infante (a cura
di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 206-210; Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I,
New York 1966, 332.
254
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 335. «Absent des manuscrits
les plus anciens, il est ignore des Pères de l’Église jusqu’au IVe siècle. À cette date, sa canonicité est
défendue par des Pères latins». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris
1990, 312. De facto, há vários indícios que permitem concluir que este episódio não faria parte, ori-
ginalmente, do quarto evangelho: a) está omisso nas cópias mais aintigas do NT - como as cópias do
Vaticano, Sinaítico, P66 e P75; b) está omisso nas versões Siríaca, Sahídica, Boarica, Latina e Gótica; c)
nenhum comentador grego antes de Eutímio Zigabeno (séc XII) interpreta o texto; d) nenhum padre
oriental cita a passagem antes do séc X; nem os primeiros padres ocidentais o fazem - como Ireneu,
Tertuliano e Cipriano; esta passagem (7,51-8,12) não aparece nos comentários ao quarto evangelho,
no séc V, de Origenes, João Crisóstomo, Cirilo de Alexandria, Teodoro de Mopsuéstia e Nono de
Panópolis. As melhores atestações são do séc IV. A passagem encontra-se no codex de Beza, nos ma-
nuscritos tardios da Koiné, em alguns manuscritos antigos latinos, na Vulgata, na versão etiópica, nos
escritos de Ambrósio e Agostinho. Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 363 (nota 2). Ver
ainda: A. Köstenberger, John, Michigan 20072, 247-248; M. Casquilho, «A mulher adúltera», IM
209 (2008) 349-351; R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 206.
255
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 312. Ver ainda: S.
Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 364 (nota 2).

336
nismo depois de ser conhecida como dançarina e prostituta. Com efeito, muitos
dizem que a razão se prende com o contexto em que Jesus perdoou esta mulher.
Este perdão da mulher adúltera é difícil de conciliar com a rígida disciplina pe-
nitencial presente na igreja primitiva256. De facto, este pecado, já condenado em
Israel, tinha a ver com os pecados considerados incompatíveis com a condição de
baptizado e comportava a exclusão da comunidade. Só pouco a pouco é que a ins-
tituição da prática penitencial foi permitindo reintegrar os pecadores públicos na
comunidade eclesial257. Deste modo, podemos concluir que o texto não se trata de
uma invenção tardia mas de um fragmento da tradição apostólica que encontrou
muitas resistências até ser verdadeiramente ‘aceite’258.
No entanto, este texto levanta outra dificuldade que tem a ver com a origem.
O facto de esta história ter sido inserida, posteriormente, no evangelho não exclui
a possibilidade de considerarmos uma narrativa isolada composta no contexto
da comunidade de Jo. Todavia, o estilo, o vocabulário e a gramática, não são do
quarto evangelho. Estilisticamente a história é mais lucana do que joânica259. Bas-
ta recordar que, por um lado, apenas 14 das 82 palavras usadas nesta perícopa são
únicas neste evangelho; por outro, 11 palavras só ocorrem nesta passagem, em
todo este quarto evangelho260. Daí que alguns manuscritos tenham optado por
colocar esta passagem depois de Lc 21,38 - antes de começar o relato da paixão
e ressurreição de Jesus. Apesar da complexidade dos múltiplos argumentos, há
quem defenda que esta colocação do texto em Jo serviria para justificar e abrir o
leitor à afirmação que Jesus irá dizer, versículos à frente: «Vós [os fariseus] julgais
segundo critérios humanos; Eu não julgo ninguém» (v.15). Deste modo, mesmo
que a narrativa esteja textualmente fora de lugar ela adapta-se teologicamente ao
sentido e ao contexto do tema do ‘julgamento’ presente neste capítulo 8261.
Todas estas questões, sendo importantes, não retiram a grandeza das pala-
vras e da atitude de misericórdia de Jesus. Uma atitude que é transversal a todos

256
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 335.
257
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 313-314.
258
  Cf. M. Casquilho, «A mulher adúltera», IM 209 (2008) 350.
259
  «Cet admirable récit n’est pas johannique (…) Par la manière et le contenu, le texte s’apparente aux
récits synoptiques, de Luc en particulier». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII),
II, Paris 1990, 312. Ver ainda: M. Casquilho, «A mulher adúltera», IM 209 (2008) 351-352; S. Grasso,
Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 364 (nota 2).
260
  Cf. A. Köstenberger, John, Michigan 20072, 245. Este autor faz uma análise profunda sobre a
recorrência das palavras e justifica, desta forma, a sua afirmação de que este texto não é do autor do
quarto evangelho.
261
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 335-336.

337
os evangelhos onde Jesus vai revelando um delicado equilíbrio entre a justiça e a
misericórdia, entre condenar o pecado e perdoar o pecador. Aqui, segundo Léon-
-Dufour, o narrador teve a preocupação de valorizar os elementos da história que
serviam a sua principal intenção: mostrar que Jesus conduz todos os pecadores
ao perdão escatológico e gratuito de Deus262.
O texto começa por dizer que Jesus foi para o Monte das Oliveiras (v.1) e que
no dia seguinte, de madrugada, voltou ao templo para ensinar (v.2)263. Entretanto,
«os escribas264 e os fariseus trouxeram-lhe certa mulher apanhada em adultério e
colocaram-na de pé265 no meio» (v.3). Uma mulher apanhada em flagrante adul-
tério (cf. v.4). O narrador ‘apresenta-nos’ uma mulher sem nome e sem especificar
se estaria casada ou prometida a alguém266. Esta mulher deveria estar casada, ou
pelo menos noiva, uma vez que o adultério na Lei referia-se à infidelidade da par-
te da mulher e não relações entre homens e mulheres não casadas. Interessante
que, tendo sida apanhada em flagrante adultério, não se fale do seu amante nem
do seu marido ou noivo267. Foi um grupo, e não apenas uma pessoa, que apresen-
tou esta mulher a Jesus porque para fazer uma acusação era preciso pelo menos
duas testemunhas, como nos recorda Dt 19,15: «Um testemunho isolado não será

262
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 313.
263
  Esta informação é confirmada por Lc que, acerca dos últimos dias da vida de Jesus, nos diz: «Du-
rante o dia, Jesus estava no templo a ensinar; mas saía para passar a noite no Monte das Oliveiras. E
todo o povo, de madrugada, ia ter com Ele ao templo, para o escutar» (Lc 21,37-38).
264
  Preferimos esta possibilidade à proposta da tradução portuguesa que diz ‘doutores da lei’, ainda
que saibamos que um ‘escriba’ é um judeu versado na Lei. A palavra grega é γραμματεῖς que quer dizer
precisamente ‘escriba’. Cf. C. Rusconi, «γραμματεύς», in DGNT, São Paulo 2003, 112. Outras tradu-
ções fazem a mesma opção. Raymond Brown traduz por ‘scribes’. Cf. R. Brown, The Gospel According
to John (I-XII), I, New York 1966, 332. Na mesma linha, Léon-Dufour também traduz por ‘scribes’. Cf.
X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 311. Por fim, Renzo Infante,
reforça esta opção ao traduzir também por ‘scribi’. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Bal-
samo 2015, 207. Alguns manuscritos dizem ‘os sumos sacerdotes’ em vez dos ‘escribas’ provavelmente
por influência de 7,32b: «Então, os sumos sacerdotes e os fariseus mandaram guardas para prenderem
Jesus». Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 333.
265
  Sugerimos aqui a inclusão da expressão ‘de pé’, que não está presente na tradução portuguesa,
porque στήσαντες é uma forma do verbo ἵστημι. Este verbo, de facto significa ‘colocar’ mas tem asso-
ciada a ideia de ‘colocar de pé’ ou ‘pôr-se de pé diante de alguém’. Cf. C. Rusconi, «ἵστημι», in DGNT,
São Paulo 2003, 237-238. Raymond Brown traduz com o sentido de ser colocada diante de todos: «and
made her stand there in front of everybody». R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New
York 1966, 332. Léon-Dufour traduz precisamente com o sentido de ficar de pé: «et la plaçant debout
au milieu». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 311. No entanto,
Renzo Infante não suporta esta opção porque, à imagem da tradução portuguesa, traduz simplesmen-
te: «postala nel mezzo». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 207.
266
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 206.
267
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 333.

338
suficiente contra uma pessoa, seja qual for o seu crime, a sua culpa ou o pecado
de que for acusado; só com o depoimento de duas ou três testemunhas é que o
caso será tomado em conta».
Depois de ‘apresentarem’ a mulher adúltera, ‘os escribas e fariseus’ fizeram
uma pergunta a Jesus, recorrendo à Lei: «Moisés, na Lei, mandou-nos matar à
pedrada tais [mulheres]268. E Tu que dizes?» (v.5). Na verdade a Lei dizia: «Se
um homem cometer adultério com a mulher do seu próximo, o homem adúl-
tero e a mulher adúltera serão punidos com a morte» (Lv 20,10). Isto mesmo
é reforçado em Dt: «Quando um homem for surpreendido a dormir com uma
mulher casada, ambos deverão morrer; o homem que dormiu com a mulher e
também a mulher. Assim extirparás o mal de Israel» (Dt 22,22). Estes textos
dizem que deverão ser mortos mas não diz como. Só em Dt que se fala em
apedrejar a mulher, mas o contexto é o de um homem que case e não encontre
a sua mulher virgem: «levarão a donzela até à entrada da casa de seu pai e os
habitantes da sua cidade apedrejá-la-ão até que morra» (Dt 22,21a).
Raymond Brown sugere que a mulher de que fala o quarto evangelho pu-
desse estar prometida em casamento e não uma mulher que habitasse já na casa
do marido. Em todo o caso, como refere Ez 16,38-40269, a lapidação (apedreja-
mento) era a forma natural da pena de morte para todos os tipos de adultério270.
No período neotestamentário a pena a aplicar seria a morte por estrangula-
mento271. Por isso, a pergunta dos fariseus e dos escribas até podia ser mais
referente ao modo como devia ser executada a pena: por apedrejamento ou por
estrangulamento272.

268
  A palavra ‘mulheres’ não se encontra no original grego. Contudo, seguindo outras traduções,
optámos por inserir a palavra entre parêntesis retos. A tradução portuguesa propõe simplesmente
colocar a palavra, dando assim a ideia de estar no texto grego. Apenas Léon-Dufour corrobora a
nossa opção gráfica. Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 311.
Raymond Brown e Renzo Infante aproximam-se da opção da tradução portuguesa: R. Brown, The
Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 332 e R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello
Balsamo 2015, 207.
269
  Ez 16,38-40: «38Aplicar-te-ei o castigo das mulheres adúlteras e das sanguinárias; no meu furor e
ciúme, entregar-te-ei à morte. 39Entregar-te-ei nas suas mãos, para que eles arrasem as tuas elevações
e destruam os teus ‘lugares altos’; despir-te-ão das tuas vestes, retirarão as tuas jóias e deixar-te-ão
completamente nua. 40Excitarão contra ti a multidão; hão-de lapidar-te e perfurar-te com as suas es-
padas». BS.
270
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 333. Ver ainda: S. Grasso,
Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 365-366.
271
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 207.
272
  Cf. M. Casquilho, «A mulher adúltera», IM 209 (2008) 358.

339
O narrador diz que fizeram esta pergunta para colocarem Jesus à prova
para depois terem matéria para o acusar (v.6a)273. Contudo, como nos recorda
Léon-Dufour, aqui não está em jogo uma resposta ligada a uma ‘questão aca-
démica’, mas uma decisão de ‘vida ou de morte’. A ‘armadilha’ é radical274. Se
Jesus pronunciasse a condenação estaria a contradizer todo o seu ensinamento
sobre a misericórdia e o convite a não julgar; se fizesse o contrário, estaria a
contradizer a Lei275. O facto da mulher ter sido colocada ‘de pé’ ‘no meio’ (v.3b),
coloca-nos nos contexto de um interrogatório judicial (cf. At 4,7). Esta posição,
por um lado, isola-a, por outro, coloca à volta dela o cerco dos seus acusadores.
Jesus, sentado ali apenas para ensinar, acaba por ficar inserido neste cerco. No
entanto, os acusadores não interrogaram a mulher, como seria de esperar –
apenas disseram a Jesus qual tinha sido o seu pecado. De facto, o que ela tinha
para dizer não conta para eles276. Eles queriam, depois de apanharem aquela
mulher em flagrante adultério, apanhar Jesus em flagrante contra a Lei, para o
poderem acusar também.
Continua o narrador a dizer que Jesus, depois de ouvir a pergunta, se in-
clinou e começou a escrever com o dedo na terra (v.6b) – gesto que se repetirá
dois versículos depois277. Jesus está em silêncio e continua sem proferir nenhuma
palavra. Este gesto de ‘escrever’ na terra e a sua atitude de permanecer em silên-
cio, podia simplesmente ser uma maneira de Jesus ganhar tempo para pensar
numa resposta, mas deverá ser, sobretudo, para os interlocutores refletirem sobre
a ‘monstruosidade’ da sua proposta de apedrejar aquela mulher278. Muitas outras
leituras foram feitas, ao longo do tempo, que ligaram este gesto à própria Lei en-

273
  Jesus que era agora posto à prova, também tinha posto à prova os seus discípulos, como na ‘multi-
plicação dos pães e dos peixes’ - «Dizia isto para o [Filipe] pôr à prova» (6,6).
274
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 315.
275
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 207. Outros autores recordam que
se Jesus concordasse com os escribas e com os fariseus estaria sujeito à justiça romana que, no seu
tempo, proibia a aplicação da pena capital pelos Judeus. Cf. M. Casquilho, «A mulher adúltera», IM
209 (2008) 360.
276
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 315.
277
  É interessante sublinhar a semelhança do gesto presente nos dois versículos. No entanto, há uma
pequena diferença entre o verbo usado no v.6b (κατέγραφεν) e o verbo usado v.8b (ἔγραφεν). Renzo
Infante informa-nos não só que o verbo κατέγραφω ocorre apenas aqui, em todo o NT, mas também
que o primeiro verbo não é exatamente sinónimo do segundo porque este significa não apenas ‘escre-
ver’ mas, sobretudo, ‘esculpir’, ‘gravar’ ou ‘desenhar’. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello
Balsamo 2015, 208.
278
  Ibidem, 207. «È (…) determinante notare la reticenza di Gesù nel rispondere all’interrogativo dei
responsabili religiosi, che viene espressa attraverso la suddetta gestualità». S. Grasso, Il Vangelo di
Giovanni, Roma 2008, 368.

340
tregue no monte Sinai: «Depois de ter acabado de falar a Moisés no monte Sinai,
Deus entregou-lhe as duas tábuas do testemunho, tábuas de pedra, escritas com
o seu dedo» (Ex 31,18); outros ainda fazem uma referência ao próprio direito
processual romano, no qual o presidente anotava primeiro para si por escrito a
sentença para depois a pronunciar em voz alta279.
Algumas vezes se disse que Jesus estaria a escrever os pecados dos acusadores,
mas, obviamente, será impossível e inútil saber o que Jesus realmente estava a es-
crever. No entanto, podemos procurar outros contextos na escritura que possam
iluminar o sentido desta afirmação. Podíamos pensar na relação com a ideia de
‘julgamento’ e ‘juízo’ presente no livro de Daniel, onde ‘Deus’ escreve na parede
o seu julgamento: «Eis o texto aqui escrito: ‘Mené, Tequel e Parsin’» (Dn 5,24). Ou
pensar na relação entre este gesto de Jesus e a passagem de Jeremias que diz: «Tu,
Senhor, és a esperança de Israel, todos os que te abandonam serão confundi-
dos. Os que de ti se afastam serão escritos na terra dos mortos, porque deixaram
o Senhor, fonte das águas vivas» (Jr 17,13). Ou ainda na relação entre este gesto e
a passagem do livro do Êxodo: «Não levantarás rumores falsos. Não ponhas a tua
mão com o culpado, para seres uma testemunha de injustiça» (Ex 23,1)280.
Diante da insistência para comentar a situação, Jesus responde à pergunta com
uma afirmação surpreendente: «Quem de vós estiver sem pecado seja o primeiro
a atirar uma pedra281!» (v.7b). A estrutura desta perícopa encontra nesta frase o
seu epicentro. Uma frase que faz passar inesperadamente de uma ‘procissão de
acusadores’ a uma ‘procissão de pecadores’282. Na tradução que justificadamente
propomos, insistimos que, ao contrário da tradução portuguesa, a ideia de ‘primei-
ro’ não está ligada à ‘pedra’, mas à ‘pessoa’. O centro não está na ‘primeira pedra’,
mas no ‘primeiro a atirar a pedra’, não é uma afirmação sobre o ‘objeto’ mas sobre
a ‘pessoa’. De facto, de acordo com a Lei, as testemunhas deveriam ser os primeiros

279
  Cf. M. Casquilho, «A mulher adúltera», IM 209 (2008) 361.
280
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 333-334.
281
  Aqui sugerimos uma pequena, mas significativa, alteração da proposta da tradução portuguesa
que diz: (quem de vós estiver sem pecado) «atire-lhe a primeira pedra». De facto, a grande diferença
é que associamos a palavra ‘primeiro’ à ‘pessoa’ e não à ‘pedra’. Léon-Dufour traduz com este mesmo
sentido quando diz: «lui jette le premier une pierre». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon
Jean (V-XII), II, Paris 1990, 311. Renzo Infante também traduz: «scagli per primo la pietra contro di
lei». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 209. Por fim, também Raymond Brown
reforça a nossa opção quando traduz: «let him be the first to cast a stone at her». R. Brown, The Gospel
According to John (I-XII), I, New York 1966, 332.
282
  Cf. M. Casquilho, «A mulher adúltera», IM 209 (2008) 353.

341
a lançar as pedras e depois as restantes pessoas283. Ou seja, Jesus diz aos acusadores,
aos que dizem que foram testemunhas do pecado, para tomarem a iniciativa e se-
rem os primeiros a atirar uma pedra, se eles nunca tiverem pecado284. Talvez possa-
mos questionar se atirar uma pedra não será já o início do pecado ou, pelo menos,
a manifestação pública da falta de misericórdia? Com esta frase, Jesus devolve a
cada um a necessidade de tomar uma decisão pública e de assumir uma atitude de
consciência diante da Lei. Jesus não diz que para ser juiz é preciso nunca ter peca-
do, nem diz que o pecado da mulher não tem importância, não diz para não atirar
pedras, nem diz que a Lei não sugeria essa possibilidade, também não diz que a Lei
de Moisés é para esquecer, e, por último, também não antecipa o que faria se fosse
ele a ter que decidir. Simplesmente fez uma afirmação profundamente provocatória
onde desafia cada a assumir a sua ‘responsabilidade crítica’ diante da Lei.
Na verdade, Jesus está a denunciar o fanatismo daqueles defendem a mais
severa aplicação da Lei. Ele ‘exige’ que a aplicação da mesma seja, essencialmen-
te, legítima e os motivos da aplicação da mesma sejam honestos. Ele dá-se conta
de que, muitas vezes, sob a capa do pleno zelo pela Lei, não se interessam pelo
objetivo da Lei. De facto, nenhum deles questionou a situação espiritual daquela
mulher nem ponderou o seu arrependimento. Sobretudo, ele sabe que estão a
usar aquela mulher para lhe armarem uma cilada e o acusarem (v.6a). Podemos
ainda considerar a possibilidade daquele que estaria para casar com ela, o futuro
marido, a quisesse recusar e, para isso, tivesse criado uma cilada para a mulher
ser apanhada em flagrante adultério285. Por tudo isto, Jesus tem todo o direito de

283
  Dt 17,2-7 «2Quando se encontrar no meio de vós, numa das cidades que te dará o Senhor, teu
Deus, um homem ou uma mulher que faça o que é mal aos olhos do Senhor, teu Deus, violando
a sua aliança, 3indo servir a outros deuses e prostrar-se diante deles ou diante do Sol ou da Lua, ou
do que quer que seja do exército celeste - o que Eu não mandei - 4logo que te for dado a conhecer e o
ouvires, procederás a minucioso inquérito. Se for verdade provada que essa abominação foi cometida
em Israel, 5farás conduzir às portas da cidade o homem ou a mulher culpados de um tal crime e ape-
drejá-los-ás até que morram. 6Sob o depoimento de duas ou três testemunhas será executado; mas não
poderá ser executado com o depoimento de uma só testemunha. 7As mãos das testemunhas serão as
primeiras a levantar-se contra ele para lhe dar a morte e, por último, as mãos do povo. Assim, extir-
parás o mal do meio de ti». BS.
284
  Jesus aqui usou a expressão ‘sem pecado’, que não só é uma expressão lapidar, como também é
muito rara na bíblia. No NT apenas ocorre aqui e na LXX surge poucas vezes (Dt 29,18; 2Mc 8,4;
12,42). Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 208. É interessante sublinhar que
Jesus não diz ‘quem nunca foi infiel’, isto é, não limita o ‘pecado’ ao que a mulher terá cometido. Com
esta ‘sentença’ de Jesus de ‘sem pecado’ torna-se impossível a condenação da parte dos acusadores,
porque, segundo a tradição religiosa bíblica ninguém está isento de pecado próprio da sua condição
histórica de fragilidade e de limite. Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 369.
285
  Esta referência ao facto desta mulher ter sido apanhada em flagrante adultério é bastante interes-

342
desmascarar aqueles que tentavam garantir a condenação daquela mulher286. Tal-
vez possamos recordar aqui precisamente a atitude do jovem Daniel em defesa da
‘casta’ Susana (capítulo 13 do livro de Daniel)287.
Trata-se, evidentemente, de uma provocação da parte de Jesus que, naquela
circunstância, estava diante dois tipos de pecado: a intenção dos fariseus e o da
mulher adúltera. Com esta provocação Jesus mete em crise todo o sistema puniti-
vo previsto na Lei, recolocando a questão no plano de Deus. Assim, só quem está
consciente da sua condição de pecado, estritamente ligada à fragilidade da natureza
humana, pode ser juiz e executor da condenação, mas apenas em nome do princí-
pio bíblico da misericórdia: «Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao
sacrifício. Porque Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores» (Mt 9,13); e, so-
bretudo, «E, se compreendêsseis o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício,
não teríeis condenado estes que não têm culpa» (Mt 12,7)288. Deste modo, podemos
dizer que Jesus pronuncia uma palavra que não é formalmente um juízo dele con-
tra os acusadores, mas um juízo que conduz ao tribunal das suas consciências289.
Uma perspectiva que encontra eco nas palavras de Jesus proferidas no Sermão da
Montanha: «Não julgueis, para não serdes julgados; pois, conforme o juízo com que
julgardes, assim sereis julgados; e, com a medida com que medirdes, assim sereis
medidos. Porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão, e não vês a tra-
ve que está na tua vista? Como ousas dizer ao teu irmão: ‘Deixa-me tirar o argueiro
da tua vista’, tendo tu uma trave na tua? Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista
e, então, verás melhor para tirar o argueiro da vista do teu irmão» (Mt 7,1-5).

sante se considerarmos que, para alguém ser acusado, não bastava encontrar alguém numa posição
comprometedora, isto é, deitados juntos na mesma cama ou saindo do mesmo quarto. Este argumento
procurava evitar os falsos testemunhos. Deste modo, podemos concluir que não era fácil nem co-
mum encontrar ‘adúlteros’. Assim, compreende-se melhor a hipótese desta mulher ter sido apanhada
através de uma armadilha deliberadamente preparada. Aliás, a ausência do homem adúltero só pode
suscitar perplexidade no leitor, quando sabemos que a Lei mandava punir ambos. Cf. M. Casquilho,
«A mulher adúltera», IM 209 (2008) 359.
286
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 338.
287
  A Susana era a esposa de Joaquim. Entretanto, tendo-se recusado a ter relações com dois anciãos
do povo, que tinham sido nomeados juízes, foi acusada injustamente de infidelidade. Depois de julga-
da por supostamente ter sido ‘apanhada em flagrante delito’ com outro homem, foi condenada à mor-
te. Contudo, o testemunho daqueles dois homens era falso. Daniel, que assistia àquela condenação,
pediu a palavra e desmascarou os dois juízes, com uma simples mas sábia pergunta que fez a cada um
deles: ‘debaixo de que árvore estavas quando isso aconteceu?’. Como as respostas foram diferentes,
um disse ‘lentisco’ e o outro disse ‘carvalho’, todos perceberam que os juízes tinham prestado um
testemunho falso. Então, a Susana foi libertada e os juízes condenados à morte.
288
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 208.
289
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 316.

343
Diante desta provocação de Jesus, diz o narrador que «foram saindo um a
um, a começar pelos mais velhos» (v.9a). Foram saindo ‘um a um’ evitando assim
um ato de violência e de morte. Mas é interessante sublinhar, principalmente, o
pormenor registado pela narrador – ‘a começar pelos mais velhos’. Talvez tenha a
ver com uma maior experiência da fragilidade humana. De acusadores passam a
pecadores, das palavras agressivas passam ao silêncio comprometido, das pedras
que estavam dispostos a lançar passam à atitude de retirada de cabeça baixa.
Diz o texto que se foram retirando ‘todos’ e que ficou apenas ‘Jesus e a mulher’
(v.9b), mas isso não exclui a presença de outros ouvintes, por isso ela continua no
‘meio’290. Com efeito, o narrador anota que Jesus foi ‘deixado só’. A armadinha
dos acusadores não resultou. No entanto, a mulher, liberta do cerco de morte,
não fugiu e continuou no ‘meio’ como se estivesse à espera de um pronunciamen-
to de Jesus291. Jesus e a mulher estão agora os dois ‘sós’. Então Jesus perguntou,
ironicamente, à mulher: «onde estão eles?» (v.10b). Com esta pergunta somos le-
vados a pensar que aquela que esteve no ‘meio’ dos acusadores agora permanece
no ‘meio’ da misericórdia e do acolhimento.
Depois disso, não esperando uma resposta à sua primeira pergunta, faz uma
segunda: «ninguém te condenou?» (v.10c). Esta pergunta retoma uma questão
difícil que se prende com a razão pela qual os escribas e fariseus ‘levaram’ a mu-
lher até Jesus. Podíamos pensar que ela tivesse já sido condenada pelo Sinédrio
e que a Jesus se pedisse apenas que decidisse o castigo. No entanto, a pergunta
‘ninguém te condenou?’ parece contradizer esta explicação. E, por outro lado,
parece improvável que, depois de uma decisão do ‘tribunal supremo’ do país, a
sentença fosse confiada a um pregador itinerante. Mais ainda, se a sentença já es-
tava pronunciada, parece difícil acreditar que a Jesus fosse concedido revogá-la.
Outros, defendem que, pelos anos 30, os romanos retiraram ao Sinédrio o direi-
to de pronunciar condenações capitais, como se confirma no processo de Jesus:
«Retorquiu-lhes Pilatos: ‘Tomai-o [Jesus] vós e julgai-o segundo a vossa Lei’. ‘Não
nos é permitido dar a morte a ninguém’, disseram-lhe os judeus» (18,31)292.
À segunda pergunta de Jesus a mulher, que apesar de ter estado sempre no
centro da cena nunca tinha falado, respondeu: «Ninguém, Senhor» (v.11a)293. En-
290
  Cf. M. Casquilho, «A mulher adúltera», IM 209 (2008) 364. De facto, podemos dizer que para
Jesus no centro não está a Lei mas cada pessoa com as suas situações concreta. Assim este ‘estar no
meio’ pode ser interpretado já não como o lugar da ‘acusação’ mas o lugar do ‘acolhimento’.
291
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 317-318.
292
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 337.
293
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 370.

344
tão Jesus afirma: «eu também não te condeno» (v.11b). Com esta expressão Jesus
confirma a atitude dos fariseus os quais, por terem reconhecido o seu pecado,
não tiveram ‘coragem’ de atirar uma pedra contra aquela mulher. Esta afirmação
revela ainda mais duas coisas: por um lado, Jesus recusa criticar a Lei quanto à
condenação do adultério, por outro lado, manifesta que a sua missão é salvar e
não condenar294. Neste contexto, não deixa de ser interessante sublinhar que o
diálogo central e maior é o de Jesus com os fariseus e os escribas (vv.3-9a), mas o
diálogo que dá ‘nome’ e ‘sentido’ a esta passagem é entre Jesus e a mulher adúltera
(vv.9b-11). Só Jesus dá voz a esta mulher, que está presente do início ao fim do
texto (vv.3-11). Só Jesus fala com ela e, vendo para além do seu pecado, afirma que
não será ele a condená-la. Uma atitude que é coerente com as palavras que ‘disse’
no chamamento de Levi: «Não são os que têm saúde que precisam de médico,
mas sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores» (Mc 2,17).
Ao longo desta narrativa a ‘postura física’ de Jesus é dos aspetos mais signi-
ficativos: Jesus estava sentado [καθίσας] a ensinar (v.2), depois inclina-se [κάτω
κύψας e κατακύψας] para escrever (vv.6.8) e, por fim ergue-se [ἀνακύψας] para
perdoar (v.10). Assim passamos de uma atitude de ensino (v.2) a uma atitude de
perdão (v.11), num dinamismo que exige ‘inclinar-se’ para depois poder ‘erguer-
-se’. Jesus levanta-se não para acusar a mulher mas para desarmar os seus acusa-
dores. Neste contexto podemos recordar as ‘suas’ palavras: «Quando estas coisas
começarem a acontecer, cobrai ânimo e levantai [ἀνακύψατε] a cabeça, porque a
vossa redenção está próxima» (Lc 21,28)295.
Conclui o texto com a frase de Jesus à mulher adúltera: «Vai e de agora em
diante não tornes a pecar» (v.11c). Esta afirmação revela que Jesus considera cul-
pável a conduta daquela mulher, mas, ao mesmo tempo, que acredita na possibi-
lidade de ela mudar de vida e recomeçar uma vida nova, sem pecado. Este perdão
de Jesus introduz na existência daquela mulher uma rutura originada não pelo
seu arrependimento, como foi o caso da pecadora arrependida (Lc 7,36-50), mas
exclusivamente pela misericórdia de Deus: «De facto, Deus não enviou o seu Fi-
lho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele»
(3,17). Jesus também tinha dito algo de parecido ao paralítico que encontrou,
depois de o ter curado junto à piscina de Betzatá: «Não peques mais, para que
não te suceda coisa ainda pior» (5,14c). A ambos, como sublinha Renzo Infante,

 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 318.
294

  Cf. M. Casquilho, «A mulher adúltera», IM 209 (2008) 354-355.


295

345
Jesus não pede seguimento e que se tornem seus discípulos, mas que se façam ao
caminho e vivam uma vida nova, segundo a via de Deus296.
Por fim, podemos referir que, tal como na narração da samaritana, também
aqui é possível fazermos uma ‘transposição profética, onde o adultério é a me-
táfora da infidelidade do povo eleito ao Deus único - o Deus da Aliança. Neste
sentido, a mulher desta narrativa torna-se uma figura de Israel, a quem Jesus vem
revelar o perdão escatológico de Deus. Neste contexto, a ausência do amante e
do marido podem encontrar uma justificação: o amante seriam os deuses es-
trangeiros que nem se devem pronunciar; e o marido, o esposo único, é Deus o
invisível297.

2.5. Jesus encontra-se com os discípulos na ‘última ceia’298


Esta perícopa (13,1-20)299, segundo Léon-Dufour, tem, depois do prólogo (v.1),

296
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 209-210.
297
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 321. Ver ainda: M.
Casquilho, «A mulher adúltera», IM 209 (2008) 367-368.
298
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: J. Beutle, Das Johannesevange-
lium, Freiburg im Breisgau 2013, 374-384; F. Marin, W. Wright, The Gospel of John, Grand Rapids
2015, 232-238; B. Pitre, Jesus and the Last Supper, Grand Rapids-Cambridge 2015; C.J. Humphreys,
The Mystery of the Last Supper, Cambridge 2011; U.C. von Wahlde, The Gospel and Letters of John, II,
Michigan 2010, 575-604; P. Di Luccio, «Tradizioni dell’ultima cena», RdT 54 (2013) 391-416; J.P. Joy,
«Ratzinger and Aquinas on the Dating of the Last Supper: In Defense of the Synoptic Chronology»,
NBf 94 (2013) 324-339; J. Marcus, «Passover and Last Supper Revisited», NTS 59 (2013) 303-324; B.E.
Reid, «What’s Biblical about… Washing Feet?», BiTod 49 (2011) 253-256; É. Nodet, «On Jesus’ Last
Supper», Bib. 91 (2010) 348-369.
299
  Este texto habitualmente aparece delimitado como aqui sugerimos: 13,1-20. Raymond Brown in-
titula esta unidade literária como «The Meal: the Footwashing». Cf. R. Brown, The Gospel According
to John (XII-XXI), II, New York 1970, 548. Já Renzo Infante diz simplesmente «Lavanda dei piedi».
Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 317. No entanto, Léon-Dufour sugere
outra unidade literária: 13,1-32, que intitula «Jésus fonde la communauté de ses disciples», e divide do
seguinte modo: introdução (vv.1-3), Jesus lava os pés dos discípulos (vv.4-17), Judas exclui-se da co-
munidade (vv.18-30), o grito de triunfo de Jesus (vv.31-32). Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile
selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 21-61. Jean-Noël Aletti defende uma ‘macro-unidade’ literária
alargada a todo o capítulo 13, porque excluir alguma parte, diz o exegeta, é amputar o sentido geral
do texto, apresentando um interessante paralelismo entre os vv.1-17 e os vv.21-38. Cf. J.-N. Aletti,
«Jn 13 – Les problèmes de composition et leur importance», RivBib 87 (2006) 264-275. Francis Mo-
loney também é adepto desta unidade 13,1-38. No entanto, confrontando-se com várias publicações
académicas, comentários e artigos, reconhece que a sua proposta não colhe muito apoio, por isso,
irá procurar justificar profundamente a sua perspetiva. Cf. F. Moloney, «The Literary Unity of John
13,1-38», ETL 91 (2015) 33-34. Este autor, neste artigo, da pág. 41 em diante, defenderá três subdivisões
desta ‘macro-unidade’: vv.1-17 com o lava-pés e as instruções de Jesus (termina com o duplo ‘amen’
que introduz os vv.16-17); vv.18-20, que se tornam o centro do episódio, com Jesus a explicar porque

346
dois grandes momentos: o lavar dos pés, com o qual Jesus simboliza o modo em
que se funda e é mantida a comunidade dos discípulos (vv.2-17); e o anúncio de
Jesus que um dos discípulos está para o entregar (vv.18-20)300. Em qualquer caso,
com o gesto de lavar os pés aos discípulos, na última ceia, Jesus deixa claro a sua
perspetiva sobre as atitudes cada pessoa deve ter na comunidade e na missão.
Uma espécie de ‘testamento vital’. Deste modo, o capítulo 13 poderá ser analisa-
do como uma introdução ao discurso de adeus de Jesus301.
Tudo começa com a indicação do contexto: «antes da festa da Páscoa» (v.1a).
Esta precisão temporal tem uma grande importância teológica e representa o
‘pano de fundo’ dos capítulos 13-21 – conhecido como o ‘livro da glória’. A gran-
de festa da Páscoa estava próxima, como foi sendo referido nos capítulos ante-
riores (11-12)302. Nesta proximidade do dia da Páscoa judaica, Jesus, «sabendo
tudo o que lhe ia acontecer» (18,4a), sente que também está a chegar a sua própria
‘hora’ (v.1b) – o momento de ser conduzido até ao Gólgota e morrer na cruz (cf.
19,17-30). Mas esta ‘hora’303 não é apenas a sua morte, é a sua morte que é, ao
mesmo tempo, a sua glória, como ele próprio tinha dito: «E Eu, quando for er-
guido da terra, atrairei todos a mim» (12,32). Este sentido é explicitado aqui com
a expressão: «passagem [μεταβῇ] deste mundo para o Pai» (v.1b)304. Não deixa
de ser interessante assinalar a relação que se estabelece entre a palavra ‘páscoa’
(v.1a) e a palavra ‘passagem’ (v.1b). De facto, o termo hebraico ‘páscoa’, na base
de uma etimologia derivada do léxico hebraico, tinha assumido o significado da

disse as coisas anteriores (termina com o uso do duplo ‘amen’ no v.20); vv.21-38 com Jesus a oferecer
um bocado de pão e a consequentes instruções aos seus frágeis discípulos (esta parte tem o duplo
‘amen’ no início - v.20 e no fim – v.38).
300
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 23-24.
301
 Jean-Noël Aletti apresenta precisamente os vários problemas associados à divisão e à composição
deste capítulo. Cf. J.-N. Aletti, «Jn 13 – Les problèmes de composition et leur importance», RivBib
87 (2006) 263-272.
302
  Jo 11,55 «Estava próxima a Páscoa dos judeus e muita gente do país subiu a Jerusalém antes da
Páscoa para se purificar» e Jo 12,1 «Seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a Betânia, onde vivia Lázaro,
que Ele tinha ressuscitado dos mortos». BS.
303
  Este tema da ‘hora’, que neste capítulo 13 ocorre nos vv.1.31-32, será desenvolvido e aprofundado,
na sua relação com Jo 17,1.4-5, por Francis Moloney. Cf. F. Moloney, «The Literary Unity of John
13,1-38», ETL 91 (2015) 38-39.
304
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 14-16. «Il verbo
μεταβαίνω viene adoperato per segnalare un trasferimento físico (cf. 7,3) o un passaggio metaforico
da uno stato all’altro, come dalla morte alla vita (cf. 5,24; 1Gv 3,14. Anche se poco usato, esso si ac-
corda con la presentazione del mistero dell’incarnazione del Lógos che dal cielo è disceso nel mondo
(cf. 3,13; 6,38.41.51) e al cielo risale (cf. 3.13; 6,62; 20,17)». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello
Balsamo 2015, 316.

347
‘passagem’ de uma situação de escravidão no Egito à liberdade na terra de Israel.
Neste quarto evangelho Jesus é apresentado como aquele que celebra a ‘páscoa’
em continuidade com o passado numa ideia de permanente movimento de ‘pas-
sagem deste mundo para o Pai’305.
Se recordarmos prólogo deste evangelho, podemos ‘refazer’ o percurso: Jesus
que era com o Pai (1,1), que tinha ‘descido’ a este mundo (1,14a) e que habitou
connosco (1,14b), prepara-se agora para nos manifestar a sua glória (1,14c) nesta
passagem deste ‘mundo’ para o Pai (v.1b). Uma glória que é solenemente anun-
ciada, neste capítulo, depois de Judas ter saído: «Agora é que se revela a glória do
Filho do Homem e assim se revela nele a glória de Deus» (v.31b). A relação entre
esta ‘hora’ e a manifestação desta ‘glória’ é revelada, mais tarde, na oração de
Jesus, quando exclama: «Pai, chegou a hora! Manifesta a glória do teu Filho, de
modo que o Filho manifeste a tua glória» (17,1b).
O narrador continua este primeiro versículo dizendo que Jesus «tinha ama-
do os seus [τοὺς ἰδίους] que estavam no mundo» (v.1c), numa clara indicação
306

de toda a atividade pública de Jesus. Este adjetivo ‘seus’ é usado de forma subs-
tantivada tal como tinha acontecido no prólogo: «Veio para o que era seu, e os seus
não o receberam» (1,11). Deste modo, os ‘seus’ podem ser entendidos como todos
os destinatários da revelação, todos os que escutam as suas palavras e, num sen-
tido ainda mais profundo, todas as ‘ovelhas’, mesmo as que ainda não escutam a
sua ‘voz’: «Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil. Também estas Eu
preciso de as trazer e hão-de ouvir a minha voz; e haverá um só rebanho e um só
pastor» (10,16). No entanto, sem prejudicar este sentido mais universal, aqui os
‘seus’ indica principalmente a comunidade dos crentes307.

305
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 544.
306
  Sugerimos esta tradução em vez de ‘que amara’, proposta pela versão portuguesa. De facto, trata-se
de um particípio aoristo complessivo (ἀγαπήσας ) que compreende o ministério público de Jesus e se
traduz literalmente por ‘tendo amado’. Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New
York 1970, 550. Renzo Infante corrobora a nossa opção ao traduzir: «che aveva amato». R. Infante
(a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 317. Léon-Dufour traduz na forma mais literal: «ayant
aimé». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 21. De igual
modo, Raymond Brown traduz: «having loved». R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI),
II, New York 1970, 548.
307
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 17. «Con tutta
probabilità l’espressione ‘i suoi’ indica sì i discepoli, ma non in un significato esclusivo, intendendo
anche tutti coloro che lo hanno accolto». S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 544.

348
Insiste o narrador que Jesus amou os ‘seus’ «até ao fim308» (v.1d). A expressão
εἰς τέλος tem um duplo sentido que devemos entender para depois manter. Ape-
sar de nós, na nossa proposta de tradução, termos sugerido o sentido temporal
(até ao fim da vida), esta expressão também pode ter, como referimos em nota,
um sentido qualitativo (até ao máximo ou até ao extremo). Isto é, por um lado,
Jesus amou de tal modo os seus que deu a sua própria vida por eles, como tinha
‘dito’ anteriormente: «Ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus
amigos» (15,13); por outro lado, podemos ver aqui uma referência à morte de
Jesus na cruz, já que o lava-pés não é outra coisa senão a prefiguração da entrega
total, máxima e extrema, de Jesus pelos seus que se realizará e se compreenderá
plenamente na elevação sobre a cruz309. Este segundo aspeto é reforçado pelas
palavras de Jesus na cruz quando usa o verbo τελέω para dizer: «Tudo está con-
sumado» (19,30b)310.
Depois disto, no início de v.2, o narrador dá-nos o lugar e o ambiente da
ação – tudo vai acontecer «durante a ceia [δείπνου]311» (v.2a). Ao denominar esta

308
  Sugerimos esta possibilidade de tradução em vez da proposta pela bíblia portuguesa que diz: ‘levou
o seu amor por eles até ao extremo’. Outras traduções corroboram a nossa opção. Raymond Brown
traduz «he now showed his love them to the end». R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI),
II, New York 1970, 548. Renzo Infante traduz: «dimostrò loro il suo amore sino alla fine». R. Infante
(a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 317. Contudo, Léon-Dufour segue outra possibilidade e
aproxima-se da proposta de tradução apresentada pela bíblia portuguesa ao traduzir: «il les aima jus-
qu’à l’extrême». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 21. De
facto, a expressão εἰς τέλος tanto pode ter um sentido temporal – até ao fim da vida; como um sentido
qualitativo – até ao máximo ou até ao extremo. Nesta passagem o sentido das duas aceções devem ser
mantidas. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 317. Ver ainda: R. Brown, The
Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 550.
309
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 317.
310
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 550. Ver também: Cf. X.
Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 17-18.
311
  Estranhamente o tradutor português passou o início do v.2 para o início do v.3, traduzindo καὶ
δείπνου γινομένου por ‘enquanto celebravam a ceia’. Nós aqui, para além de seguirmos o texto grego,
retirando a expressão do início do v.3 e colocando-a no início do v.2, traduzimos por ‘durante a ceia’.
A maior dificuldade da tradução prende-se com o particípio aoristo γινομένου, que, muitas vezes,
acaba por ser traduzido com um significado ingressivo: ‘depois de a ceia ter sido servida’. Cf. R. In-
fante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 318. Esta nossa opção considera também o facto
de o v.26, no anúncio da traição de Judas, sugerir que a refeição ainda não tinha terminado: «Jesus
respondeu: ‘É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado’. E molhando o bocado de pão, deu-o
a Judas, filho de Simão Iscariotes». Vemos a nossa tradução confirmada por Léon-Dufour que traduz:
«au cours d’un repas» (v2a). X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris
1993, 21. Raymond Brown traduz da mesma forma, mas coloca a expressão no fim do v.2: «And so
during supper». R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 548. Renzo
Infante, colocando a expressão no início do v.2, traduz: «Giunto il momento del convito». R. Infante
(a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 319.

349
última ceia de Jesus como um banquete cultural, δείπνου312, o evangelista não
faz coincidir esta ceia com a ceia pascal, porque para ele é fundamental que Jesus
morra na mesma hora que são imolados os cordeiros no templo. Provavelmente
seria a refeição da noite precedente, mas, mesmo assim, a atmosfera seria pas-
cal313. Todavia, aqui importa sublinhar o significado habitual de uma refeição
para a mentalidade semita. Partilhar uma refeição não quer dizer apenas comer
em conjunto a mesma comida, mas também uma oportunidade especial para
trocar pensamentos e entrar numa profunda comunhão de sentimentos. Assim,
uma refeição, para além de servir para ‘matar a fome’, tinha um sentido social e
também espiritual314. Neste contexto, podemos reparar que as alianças entre as
tribos eram concluídas com um banquete315.
Este relato da última ceia de Jesus com os seus discípulos, corresponde, no
essencial, à tradição sinótica (Mc 14,22-26; Mt 26, 26-29; Lc 22,14-20)316: o grupo
reunido, o anúncio da traição de Judas, a proximidade da Páscoa. Contudo, en-
contramos duas diferenças significativas: nos sinópticos o dia da ceia parece ser
na conclusão do 14 de Nisan e, sobretudo, nos sinópticos desenvolve-se a ceia à
volta da instituição da Eucaristia, já no quarto evangelho desenvolve-se o tema a
partir do gesto de Jesus de lavar os pés aos discípulos317. De facto, para os sinóp-

312
  A palavra δείπνου quer dizer: ‘festa’, ‘banquete’, ‘banquete de núpcias’ e também ‘ceia do Senhor’.
Cf. C. Rusconi, «δείπνον», in DGNT, São Paulo 2003, 117.
313
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 318. Não se tratava de uma ceia qual-
quer, mas da ceia de Páscoa. A proximidade da morte de Jesus exige uma ‘interpretação’ que a ceia
pascal possibilita. Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 306.
314
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 25.
315
  Deixamos alguns exemplos: na aliança de Isaac com Abimélec «Isaac ofereceu-lhes um banquete,
e eles comeram e beberam» (Gn 26,30); na aliança entre Jacob e Labão «Jacob sacrificou animais sobre
a montanha e convidou os seus irmãos para o banquete. Tomaram parte nele e passaram a noite sobre
a montanha» (Gn 31,54); na aliança com Deus, Moisés e os anciãos de Israel partilham uma refeição
«E Ele [Deus] não estendeu a mão contra estes eleitos dos filhos de Israel [Moisés e anciãos], os quais
contemplaram a Deus e depois comeram e beberam» (Ex 24,11).
316
  Refira-se que o texto mais antigo da instituição da eucaristia encontra-se em 1 Cor 11,23-26:
«23Com efeito, eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: o Senhor Jesus na noite em que era
entregue, tomou pão 24e, tendo dado graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei
isto em memória de mim’. 25Do mesmo modo, depois da ceia, tomou o cálice e disse: ‘Este cálice é a
nova Aliança no meu sangue; fazei isto sempre que o beberdes, em memória de mim’. 26Porque, todas
as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele
venha». BS.
317
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 24-25. Podemos
ver isso mesmo em Mc 14,12: «No primeiro dia dos Ázimos, quando se imolava a Páscoa, os discípulos
perguntaram-lhe [a Jesus]: ‘Onde queres que façamos os preparativos para comeres a Páscoa?’». BS.
Ver ainda: Mt 26,17-19; Lc 22,7-13.

350
ticos esta ceia foi na noite antes da sua morte. Não podemos esquecer que no
calendário lunar o início de um novo dia começa com o pôr-do-sol. Assim o dia
teria começado na tarde do 14 de Nizan, com a ceia, depois na manhã seguinte e
na tarde teria sido todo o processo que conduziu à crucifixão de Jesus. Todo esse
longo dia seria o 15 de Nizan que era o dia da festa da Páscoa, entre o pôr-do-sol
de quinta-feira e o pôr-do-sol de sexta-feira. No entanto, o quarto evangelista
dá-nos um quadro diferente e esta ceia está situada um dia antes da Páscoa318.
Ainda neste mesmo versículo (v.2) o narrador faz ‘entrar’ a figura do ‘diabo’
[διαβόλου]319 dizendo que «o diabo já tinha metido no coração de Judas» (v.2b).
A estratégia do diabo é indicada com a expressão ‘tinha metido no coração’
[βεβληκότος εἰς τὴν καρδίαν] com o objetivo de mostrar que a eficácia do diabo
está precisamente no tocar o âmago da interioridade da pessoa humana, sede
de sentimentos e de emoções, onde acontecem as escolhas e as decisões320. Na
perspectiva do autor do quarto evangelho, a traição de Judas foi ‘motivada’ pelo
diabo – que é visto como o ‘divisor’ por excelência321. Isto mesmo tinha ‘anuncia-
do’ o evangelista, quando interpretou as palavras de Jesus aos discípulos: «Disse-
-lhes Jesus: ‘Não vos escolhi Eu a vós, os Doze? Contudo, um de vós é um diabo’.
Referia-se a Judas, filho de Simão Iscariotes, pois esse é que viria a entregá-lo,
sendo embora um dos Doze» (6,70-71). Deste modo, o evangelista, como afirma
Renzo Infante, não explica a traição de Jesus como uma motivação de natureza
histórico-política, social ou pessoal, mas unicamente do ponto de vista religioso,
onde ressalta o contraste entre o amor de Jesus até ao fim (ou até ao extremo) e a
traição da parte de um amigo. Esta traição de um amigo parece não poder ter ou-
tra explicação senão de ‘inspiração’ demoníaca322. Assim, com esta afirmação, o
texto ganha o enquadramento de uma tensão entre a comunhão que Jesus propõe
e a divisão que é ‘inspirada’ pelo ‘diabo’, entre os que permanecem na mesa da
partilha e do serviço (Jesus e os discípulos) e os que se retiram da mesa (um dos
doze – Judas Iscariotes), entre os que dão a vida e os que se retiram da vida. Daí

318
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 555. Sobre esta diferen-
ça de dias surgem muitas teorias que o autor irá apresentar e comentar, nesta página e nas páginas
seguintes.
319
  Esta referência volta a ser usada neste capítulo, no v.27: «E, logo após o bocado, entrou nele Sata-
nás. Jesus disse-lhe, então: «O que tens a fazer fá-lo depressa». BS. Ainda que o sentido seja o mesmo,
anotamos que no v.2 a palavra é διαβόλου e no v.27 a palavra é σατανᾶς.
320
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 546.
321
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 26.
322
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 319. Judas era membro do ‘sicários’,
terroristas judeus que usavam punhais para assassinar os inimigos políticos. Cf. J.P. Meier, A margi-
nal Jew, III, New York 2001, 210.

351
que possamos evidenciar três grandes personagens: Jesus é o fio condutor de toda
esta passagem; e depois temos o ‘contraste’ entre duas personagens, do grupo dos
discípulos - Judas (vv.2.10-11.18) e Pedro (vv.6-10)323.
Depois do enquadramento inicial (vv.1-3), onde depois de um ‘prólogo’ (v.1)
e da apresentação de elementos importantes para a compreensão do que se segue
(vv.2-3), chegamos agora a uma segunda parte, a mais longa e a mais central, que
tem a ver propriamente com o gesto de Jesus lavar os pés aos discípulos (vv.4-17).
Nesta parte, segundo Léon-Dufour, podemos sublinhar três grandes momentos:
uma descrição da ação (vv.4-5.12), um diálogo entre Jesus e Pedro (vv.6-11) e um
discurso de explicação do gesto a todo o grupo (vv.13-17)324.
Na descrição da ação, o narrador começa por dizer que Jesus «levantou-se
da mesa, tirou o manto [ἱμάτια]325» (v.4ab). Este manto [τὰ ἱμάτια] que Jesus ti-
rou para lavar os pés aos discípulos, será depois repartido em quatro, quando é
colocado na cruz: «Os soldados, depois de terem crucificado Jesus, pegaram na
roupa [τὰ ἱμάτια - no manto] dele e fizeram quatro partes, uma para cada solda-
do, excepto a túnica. A túnica, toda tecida de uma só peça de alto a baixo, não
tinha costuras» (Jo 19,23). Em seguida, continua o narrador, Jesus «tomou uma
toalha e atou-a à cintura [διέζωσεν ἑαυτόν]326» (v.4c). Esta atitude de cingir-se
recorda-nos a atitude de um servo, como nos recorda Lc: «Felizes aqueles servos
a quem o senhor, quando vier, encontrar vigilantes! Em verdade vos digo: Vai
323
 Francis Moloney, uma vez que fez de todo o capítulo uma unidade literária, considera de forma
mais alargada esta presença e ‘confronto’: Judas (vv.2.10-11.18.21-31a) e Pedro (vv.6-10.24.36-38). Cf.
F. Moloney, «The Literary Unity of John 13,1-38», ETL 91 (2015) 45-49.
324
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 27.
325
  A palavra presente no texto grego é ἱμάτια e pode ter os seguintes significados: ‘veste’, ‘hábito’, ‘tú-
nica’, ‘manto’ e ‘capa’. Cf. C. Rusconi, «ἱμάτιον», in DGNT, São Paulo 2003, 235. Renzo Infante diz que
este termo indica um ‘manto’ ou uma ‘capa’ que, no mundo grego, se usava por cima da túnica (cf. v.12
e 19,23-24). Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 319. Neste sentido e apesar
da palavra estar no plural, decidimos manter a proposta do tradutor português, que, infelizmente, não
mantém a mesma opção em 19,23-24. Registamos as diferentes opções de outras traduções. Raymond
Brown, corrobora a tradução portuguesa, ao traduzir por ‘robe’. Cf. R. Brown, The Gospel According
to John (XII-XXI), II, New York 1970, 548. Todavia, Renzo Infante, depois de explicar o sentido, tra-
duz, atendendo ao plural, por ‘le vesti’. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015,
319. Na mesma linha do exegeta italiano, Léon-Dufour traduz por ‘vêtement’. Cf. X. Léon-Dufour,
Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 21.
326
  Aqui decidimos manter a tradução portuguesa para a expressão grega διέζωσεν ἑαυτόν, que quer
dizer literalmente ‘cingiu-se a si mesmo’. No entanto, Léon-Dufour faz a opção de seguir o sentido li-
teral: «il se ceignit». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 21.
Raymond Brown, na mesma linha, traduz «tied it around himself». R. Brown, The Gospel According
to John (XII-XXI), II, New York 1970, 548. Renzo Infante, aproximando-se da proposta portuguesa
traduz: «se lo cinse attorno alla vita». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 319.

352
cingir-se, mandará que se ponham à mesa e há-de servi-los» (Lc 12,37); «Não lhe
dirá antes: ‘Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires, enquanto eu como e
bebo; depois, comerás e beberás tu’?» (Lc 17,8)327.
No v.5 concretiza-se a ação – Jesus começa a lavar os pés aos discípulos.
Esta ação de lavar os pés era comum no antigo Oriente, para acolher um hóspe-
de que tinha percorrido as estradas cheias de pó. Fazia-se antes da refeição e era
tarefa de escravos – a sua realização implicava uma situação de inferioridade328.
Ocasionalmente, em sinal de devoção, os discípulos faziam este serviço ao seu
Mestre ou rabi329 e só excepcionalmente, como sinal de máximo respeito pelo
hóspede, esse gesto de lavar os pés podia ser feito pelo próprio chefe de casa. A
este propósito recordamos que Jesus, no evangelho de Lc, reprova Simão por
este não lhe ter lavado os pés (Lc 7,44). Todavia, o gesto de Jesus não pode ser
visto como um gesto de acolhimento, até porque os discípulos já estão à mesa
e já decorria a ceia. Em todo o caso, Jesus cumpre um ‘serviço’ que pertence
habitualmente a escravos ou a mulheres330. Não sendo escravo mas ‘mestre’ este
gesto de Jesus para com os seus discípulos torna-se uma provocação, como
confirma o v.13: «Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-me ‘o Mestre’ e ‘o
Senhor’, e dizeis bem, porque o sou».
Este ‘inesperado’ gesto, não acontecendo antes da refeição, como seria de es-
perar, mas ‘durante a refeição’, sugere um significado diferente do próprio ges-
to331. Um significado que pode ser iluminado pelas palavras de Jesus, registadas
pelo terceiro evangelho, depois da instituição da eucaristia e do anúncio da trai-
ção de Judas: «Pois, quem é maior: o que está sentado à mesa, ou o que serve?
Não é o que está sentado à mesa? Ora, Eu estou no meio de vós como aquele que
serve» (Lc 22,27). Com efeito, a atitude de Jesus não é de escravo mas de serviço,
o contexto não é de inferioridade mas de comunhão. Afinal era a sua última ceia
com os ‘seus’. Com aqueles que tinha escolhido e com quem tinha vivido inten-
samente os últimos anos da sua vida.

327
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 551.
328
  É interessante recordar o que disse Abigaíl quando soube que David a queria por esposa: «A tua
serva já se daria por feliz em lavar os pés dos servos do meu senhor» (1Sm 25,41b). BS.
329
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 564.
330
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 320. «Spesso è stato messo in rilievo
che la sua azione corrisponde a un atto di umiltà o di kenosi per illustrare il suo atteggiamento in
relazione ai prossimi eventi della passione e della morte». S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma
2008, 547.
331
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 28.

353
O facto de o narrador dizer que Jesus lavou os pés aos discípulos (cf. v.5)
permite-nos a pergunta: Quem estaria nesta ceia? Para uma refeição de Pás-
coa eram precisas pelo menos 10 pessoas. É verdade que os sinópticos falam
que seriam os «doze» (Mc 14,17b e Mt 26,20b) ou os «apóstolos» (Lc 22,14b).
Mas isso não exclui necessariamente a possibilidade da presença das mulheres
que tinham seguido Jesus desde a Galileia332. O quarto evangelho não refere os
«doze», mas é provável que o autor pensasse neles, até porque no v.18 dirá: «Não
me refiro a todos vós. Eu bem sei quem escolhi», o que deixa entrever que Jesus
estaria a falar para os que escolheu333.
É interessante referir que, se os discípulos estivessem sentados à mesa seria
muito difícil Jesus lavar os seus pés. De facto, os discípulos deveriam estar re-
clinados para o lado esquerdo. Cada um usava o braço esquerdo para apoiar a
cabeça e o braço direito era usado para chegar à comida que estaria numa mesa
colocada no centro. Esta posição não era normal nas refeições comuns de uma
casa, mas era habitual na Páscoa334. Assim compreendemos melhor o sentido da
forma verbal ἐγείρεται, que traduzimos aqui por ‘levantou-se’, no início do v.4.
De facto, o verbo pressupõe que Jesus estivesse anteriormente deitado ao redor
da mesa. A este levantar-se (v.4a) vai corresponder a atitude de Jesus, depois de
lavar os pés aos discípulos: reclinou-se [ἀνέπεσεν] novamente à volta da mesa
(v.12b)335. Neste sentido, não deixa de ser interessante que nos últimos versículos
deste quarto evangelho o mesmo verbo venha a ser usado pelo narrador para
identificar o discípulo amado, numa alusão à última ceia: «o mesmo que na ceia
se tinha apoiado [ἀνέπεσεν] sobre o seu peito» (21,20b). Também aqui o sentido
é de ‘reclinar’.
Nos vv.6-11 temos o diálogo de Jesus com Pedro, que é, a mesmo tempo, uma
personagem autónoma e o porta-voz do grupo. Este começa por achar indigno
que o Senhor [κύριε] lhe faça aquele ‘serviço’ a ele (cf. v.6). Santi Grassi afirma
que Pedro, ao usar este título cristológico, procura recordar a Jesus que a sua
identidade e a sua missão não lhe permite realizar um gesto humilhante habi-

332
  Mc, por exemplo, fala dessas mulheres, quando Jesus morre na cruz (15,40-41): «40Também ali
estavam algumas mulheres a contemplar de longe; entre elas, Maria de Magdala, Maria, mãe de Tiago
Menor e de José, e Salomé, 41que o seguiam e serviam quando Ele estava na Galileia; e muitas outras
que tinham subido com Ele a Jerusalém». BS.
333
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 551.
334
  Ibidem, 551.
335
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 319.

354
tualmente atribuído a um escravo ou a um servo336. Contudo, Jesus responde-lhe
dizendo que o gesto tem um significado que ele não pode entender agora [ἄρτι],
mas que, entretanto, irá compreender (cf. v.7). Quando o evangelista evoca uma
compreensão futura, refere-se essencialmente ao tempo pós-pascal, quando será
dado o Espírito Santo337. Neste contexto, Jesus disse a Pedro «Se Eu não te lavar,
não terás parte comigo [μέρος μετ’ ἐμοῦ]338» (v.8). Ou seja, não teria nada em
comum, não participaria da mesma comunhão339.
Assim, Jesus lava os pés aos discípulos, antes de mais, para que eles possam
ter parte com ele. Trata-se, por isso, muito mais do que um simples gesto de hu-
mildade340. Trata-se de um gesto de comunhão com Jesus. Uma comunhão que
não se esgota neste momento mas pode ter aqui uma leitura escatológica. Basta
recordar o que Jesus disse ao ‘ladrão arrependido na cruz’: «Em verdade te digo:
hoje estarás comigo [σήμερον μετ’ ἐμοῦ] no Paraíso» (Lc 23,43). Ou seja, numa
tradução mais literal, Jesus diz: ‘hoje terás parte comigo no Paraíso’. Uma vez
mais Pedro não alcança o sentido das palavras de Jesus e pensa, provavelmente,
que se tratava de um novo rito de purificação e, por isso, disse: «Ó Senhor! Não
só os pés, mas também as mãos e a cabeça!» (v.9). Este mal-entendido permite
uma posterior explicação de Jesus que ‘descarta’ esta interpretação fazendo apelo
a uma espécie de provérbio: «Quem tomou banho não precisa de lavar senão os

336
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 5497.
337
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 30.
338
  Sugerimos a tradução em vez da proposta pela versão portuguesa: ‘nada terás a haver comigo’. A
expressão grega οὐκ ἔχεις μέρος μετ’ ἐμοῦ tem o sentido mais literal, que aqui seguimos: ‘não tens par-
te comigo’. No entanto, como refere Renzo Infante, a expressão quer dizer que entre duas pessoas ‘não
há nada de comum’ e que todas as relações são ‘interrompidas’ ou ‘quebradas’ (cf. Sl 50,18; 2Cor 6,15).
Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 320. A nossa opção é totalmente cor-
roborada pelas traduções que seguimos. Léon-Dufour traduz: «tu n’auras point de part avec moi». X.
Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 21. Renzo Infante traduz:
«non avrai parte con me». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 321. Raymond
Brown traduz «you will have no heritage with me». R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI),
II, New York 1970, 548.
339
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 320. «La fraseologia biblica ‘avere
parte’, che significa ‘ereditare un bene’ (cfr Gn 31,14; Dt 10,9; 12,2; 14,27.29; 18,1) è anche usata per
esprimere la condivisione o meno della sorte di qualcuno (2Sm 20,1; 2Re 12,16) o per indicare la rela-
zione privilegiata con Dio (Sal 16/15,5; Is 57,18)». S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 550.
340
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 558. Nesta e nas páginas
seguinte, o autor irá registar as diferentes opiniões sobre a simbologia dos lava-pés. Um confronto que
aconselhamos para quem quiser aprofundar este tema.

355
pés, pois está todo limpo [καθαρός]341» (v.10a)342.
Contudo, em seguida, Jesus diz: «E vós estais limpos, mas não todos»
(v.10b)343. Voltamos ao ‘pano de fundo’ que nos tinha sido apresentado no v.2,
quando se diz que o diabo tinha metido no coração de Judas a decisão de entre-
gar Jesus, como esclarece o narrador no v.11. Deste modo, o narrador evidencia
que Judas não se deixou ‘transformar’ pelo gesto do ‘lava-pés’344. De facto, por
estes versos ficamos a saber que o processo de traição está em ato e esse processo,
nesta ceia, culmina com o seu abandono do grupo: «Tendo tomado o bocado de
pão, saiu logo» (v.30a). Pelos sinópticos, sabemos o que Judas fez antes desta ceia:
«foi ter com os sumos sacerdotes e disse-lhes: ‘Quanto me dareis, se eu vo-lo en-
tregar?’ Eles garantiram-lhe trinta moedas345 de prata. E, a partir de então, Judas
procurava uma oportunidade para entregar Jesus» (Mt 26,14b-16); mas também
sabemos como se concretizou a traição no Getsémani: «apareceu Judas, um dos
Doze, e com ele muita gente, com espadas e varapaus, enviada pelos sumos sacer-
dotes e pelos anciãos do povo. O traidor tinha-lhes dado este sinal: ‘Aquele que
eu beijar, é esse mesmo: prendei-o’» (Mt 26, 47-48).
Chegamos assim ao momento em que Jesus vai explicar o sentido do seu
gesto (vv.13-17)346, depois de ter terminado de lavar os pés aos discípulos e de

341
  Decidimos manter aqui tradução da versão portuguesa assinalando, contudo, que a palavra grega
καθαρός/καθαροί (v.10a/v.10b) pode ter não só um sentido físico mas também espiritual. Por isso,
pode ser traduzida quer por ‘limpo’, quer por ‘puro’. Cf. C. Rusconi, «καθαρός», in DGNT, São Paulo
2003, 241-242. Neste sentido, encontramos as duas possibilidades nas traduções que seguimos. Léon-
-Dufour traduz por ‘pur/purs’. Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III,
Paris 1993, 21. Renzo Infante também traduz por ‘puro/puri’. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Ci-
nisello Balsamo 2015, 323. Raymond Brown traduz por ‘clean’. Cf. R. Brown, The Gospel According to
John (XII-XXI), II, New York 1970, 548. No entanto, ‘clean’ para além do significado imediato ‘limpo’
também pode significar ‘puro’. O adjectivo καθαρός ocorre unicamente aqui e em 15,3: «Vós já estais
purificados pela palavra que vos tenho anunciado». BS.
342
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 31-32.
343
  Este ‘todos’ [πάντες] pode significar ‘todos’, mas também pode querer dizer ‘inteiro’. Ou seja, po-
dia ser um recurso estilístico a uma palavra com duplo sentido, tão comum no quarto evangelho,
significando, por um lado, que nem todos estavam puros porque Judas era com eles à mesa, por outro,
que os discípulos (cada um deles) não estavam ainda totalmente puros. Cf. R. Infante (a cura di),
Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 322. Contudo, o narrador no versículo seguinte dá uma chave de
leitura, que presidiu à nossa opção de tradução – ‘nem todos’.
344
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 568.
345
  Este seria o valor correspondente a um escravo, como podemos perceber em Ezequiel quando fala
das leis sobre os danos pessoais: «Se o boi marrar num escravo ou numa serva, dar-se-á ao senhor
deles trinta siclos em dinheiro, e o boi será apedrejado» (Ez 21,32).
346
  Os vv.12-15 podem ter tido, segundo Renzo Infante, uma história independente deste contexto do
lava-pés. São de referir os muitos termos e as muitas ideias comuns com os ditos de Mt 20,24-25 e de

356
ter voltado a reclinar-se «novamente [à volta da mesa]347» (v.12). Neste momen-
to, podemos imaginar o que estariam todos a pensar - qual teria sido a razão do
Mestre ter agido daquela maneira com eles? Então Jesus, tal como tinha feito na
parábola do semeador (cf. Mt 13,18-23), não explica propriamente o gesto mas
interpreta-o em função da situação em que se encontram. Daí que comece pre-
cisamente por lhes fazer uma pergunta: «Compreendeis o que vos fiz?» (v.13a).
Depois disse-lhes que ele, a quem os discípulos chamam Mestre e Senhor, lhes
lavou os pés para que eles lavassem também os pés uns aos outros (v.14). Deste
modo manifesta que o verdadeiro poder se exerce no serviço e não no domínio.
Interessante que Jesus não exija que os discípulos lhe lavem os pés a ele mas que
lavem uns aos outros. Um gesto que reflete o sentido do mandamento novo que
Jesus está prestes a anunciar: «Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis
uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto
é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos ou-
tros» (13,34-35)348. 
Chegamos, deste modo, ao versículo central desta narrativa: «dei-vos exemplo
para que, assim como Eu fiz, vós façais também» (v.15). Trata-se sobretudo de um
exemplo [ὑπόδειγμα] no sentido de ‘modelo’, de ‘referência’ e de ‘fundamento’.
Deste modo, o ‘lava-pés’ é o ‘ícone’ e o ‘paradigma’ das relações comunitárias349.

Lc 6,40. Em Jo 13,16 falta o confronto entre Mestre - discípulo, provavelmente porque já tinha aconte-
cido no v.13. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 322-323.
347
  Sugerimos esta possibilidade, para a expressão grega ἀνέπεσεν πάλιν, em vez da proposta da tra-
dução portuguesa que diz: «voltou a sentar-se à mesa». Desde logo a expressão ‘à mesa’ não se encon-
tra no texto grego, daí a nossa opção de colocar esse sentido entre parênteses retos. Depois o verbo
ἀναπίπτω, aqui na forma verbal ἀνέπεσεν e que literalmente quer dizer ‘cair sobre’ ou ‘cair em cima’,
segundo Carlo Rusconi, pode ter vários significados: ‘tomar lugar à mesa’, ‘sentar-se’, ‘acomodar-se
à mesa’, ‘apoiar-se’ e ‘inclinar-se’. Cf. C. Rusconi, «ἀναπίπτω», in DGNT, São Paulo 2003, 45-46. Por
fim, temos de considerar o contexto desta refeição onde, segundo Renzo Infante, os convidados não
estavam sentados mas deitados à volta da mesa. Estariam inclinados sobre o lado esquerdo e com a
cabeça apoiada sobre o braço esquerdo, de modo que seria com a direita que serviam da mesa colocada
no centro. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 319. Outras traduções corro-
boram a nossa opção. Léon-Dufour mantém este sentido, ainda que inclua a palavra ‘mesa’, quando
traduz: «se fut remis à table». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris
1993, 21. Renzo Infante, suporta a nossa proposta quando traduz: «si adagiò di novo (a tavola)». R. In-
fante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 323. Contudo, Raymond Brown, faz uma opção
bastante simplificada, perdendo a força da expressão original, quando diz apenas que Jesus regressou
ao seu lugar: «returned to his place». R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York
1970, 548.
348
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 323.
349
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 554. A palavra ὑπόδειγμα significa ‘modelo’,
‘exemplo’, ‘réplica’, ‘cópia’, ‘representação’ e ‘símbolo’. Cf. C. Rusconi, «ὑπόδειγμα», in DGNT, São

357
Já o verbo δείκνυμι, que aqui traduzimos com o sentido de ‘dar’, significa ‘mos-
trar’ e ‘fazer ver’350, com um profundo sentido teológico para este evangelista. As-
sim compreendemos melhor a afirmação - «o Pai ama o Filho e mostra-lhe tudo
o que Ele mesmo faz» (5,20a). Agora é o próprio Filho que mostra aos discípulos
aquilo que faz para que eles possam fazer o mesmo. Contudo, Jesus não mostra
este ‘exemplo’ como um ‘modelo’ exterior, uma espécie de demonstração, mas
como uma entrega que pode definir o comportamento futuro dos discípulos351.
Em seguida temos o v.16, que em parte parece retomar o sentido dos vv.13b-14:
«Em verdade, em verdade vos digo, não é o servo maior352 do que o seu Senhor,
nem o enviado [ἀπόστολος] maior do que aquele que o envia» (v.16). Fica esclare-
cida a relação entre servo e Senhor e entre apóstolo e o que o envia. Esta afirmação
ilumina o que mais tarde Jesus irá dizer: «Já não vos chamo servos, visto que um
servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos,
porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (15,15). No entanto, pro-
vavelmente, na origem, este versículo não fazia parte desta passagem353. De notar
ainda, que é a única vez que a palavra ἀπόστολος ocorre no quarto evangelho e
que, aqui, não tem o sentido técnico, como nos outros escritos do NT, assumindo
simplesmente um sentido mais funcional de ‘mensageiro’ e de ‘enviado’354.
Escutado este versículo, chegamos à grande conclusão da segunda parte deste
texto: «Uma vez que sabeis isto, sereis felizes [μακάριοι]355 se o puserdes em práti-

Paulo 2003, 473.


350
  O verbo δείκνυμι quer, que surge no texto no aoristo - ἔδωκα, quer dizer: ‘mostrar’, ‘indicar’ (al-
guém ou algo), ‘fazer ver’ (alguém ou algo). Cf. C. Rusconi, «δείκνυμι», in DGNT, São Paulo 2003, 116.
351
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 36-37. Para apro-
fundar o sentido deste ‘dar exemplo’ aconselhamos: G. Ghiberti, «‘Vi ho dato l’esempio’ (Gv 13,15)»,
ATT 18 (2012) 339-351.
352
  No v.16a e no v.16b sugerimos a palavra ‘maior’ em vez de ‘mais’, como propõe a tradução por-
tuguesa. A palavra grega μείζων significa precisamente ‘maior’. Cf. C. Rusconi, «μείζων», in DGNT,
São Paulo 2003, 300. Outras traduções sublinham várias possibilidades. Léon-Dufour reforça a nossa
opção ao traduzir as duas vezes por ‘plus grand’. Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon
Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 22. Renzo Infante traduz o v.16a, igualmente, por ‘più grande’, mas
o v.16b, apesar de ser a mesma palavra grega, traduz por ‘più importante’. Cf. R. Infante (a cura di),
Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 323. Raymond Brown traduz as duas vezes por «more important».
R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 549.
353
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 569. Aqui podemos
recordar alguns paralelos: «O discípulo não está acima do mestre, nem o servo acima do senhor» (Mt
10,24); «Não está o discípulo acima do mestre, mas o discípulo bem formado será como o mestre» (Lc
6,40).
354
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 323.
355
  Esta palavra μακάριοι apenas surge aqui (13,17) e no diálogo com Tomé (20,29): Já nos sinóticos
ocorre muitas vezes. Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 555.

358
ca [ποιῆτε]» (v.17). Trata-se da afirmação da importância de passar à prática. Não
basta saber para ser feliz. O saber, se não leva à prática, pode ser uma ilusão. Com
efeito, Judas Iscariotes parece recusar este desafio de por em prática e, por isso,
vai retirar-se. Mas Jesus deixa claro que a felicidade não está no saber mas no pôr
em prática isso que se sabe. Neste sentido, podemos iluminar esta passagem com
outra passagem de Mateus: «Feliz esse servo a quem o senhor, ao voltar, encon-
trar assim ocupado [ποιοῦντα356]» (Mt 24,46).
Entramos, agora, na terceira e última parte desta unidade literária (vv.18-
20). No início desta parte Jesus afirma que um dos discípulos vai levantar o
calcanhar contra ele. Diz que a Escritura irá cumprir-se e cita o Sl 41: «Até o
meu amigo íntimo, em quem eu confiava e que comia do meu pão, até ele se
levantou contra mim [levantou o calcanhar]» (Sl 41,10). Ora, levantar contra
alguém o calcanhar (cf. v.18c), no contexto do Médio Oriente, tem um sentido
de desprezo e, tal atitude, era especialmente grave se fosse feita por um amigo
que tivesse estado à mesma mesa. Cria-se assim um contraste forte entre Jesus
que ‘lava os pés’ e Judas que ‘levanta o calcanhar’357. Assim, percebemos melhor
a força das palavras «Aquele que come do meu pão358 levantou contra mim o
calcanhar» (v.18b). Como este capítulo 13 é atravessado pela ‘luta’ entre Jesus e
o diabo (vv.2.27), então alguns exegetas, talvez exageradamente, quiseram ver
aqui uma reminiscência de Gn 3,15: «Farei reinar a inimizade entre ti [serpente]
e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu
tentarás mordê-la no calcanhar»359. Cria-se assim o contexto para o anúncio da
traição de Judas.

356
  O verbo ποιέω pode ter o sentido, entre outros, de ‘fazer’, ‘praticar’, ‘agir’, ‘realizar’. Cf. C. Rusconi,
«ποιέω», in DGNT, São Paulo 2003, 379-380.
357
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 556.
358
  Aqui decidimos manter esta tradução portuguesa para a expressão μου τὸν ἄρτον. Contudo, Ray-
mond Brown sustenta uma tradução diferente que tem mais a ver com a ideia de quem ‘come o pão
comigo’. Neste sentido, traduz: «He who feeds on bread with me». Este exegeta afirma que os testemu-
nhos textuais são a favor desta posição e que apenas o Codex Vaticanus tem a versão ‘o meu pão’. Cf. R.
Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 554. De facto, quer o texto grego
NA28, quer as outras traduções que aqui seguimos, corroboram a nossa opção. Léon-Dufour traduz
«mange mon pain». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993,
22. Renzo Infante traduz igualmente por «mangia il mio pane». Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni,
Cinisello Balsamo 2015, 325.
359
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 554. «L’alzare il calcagno
contro qualcuno, il gesto che compie il vincitore sul vinto, doveva risultare particolarmente ripro-
vevole se compiuto da un ospite ammesso alla propria tavola». Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni,
Cinisello Balsamo 2015, 324.

359
Ao citar este versículo da Escritura, diz Léon-Dufour, Jesus mostra que está
totalmente consciente de cumprir o projecto de Deus, ainda que pareça que é,
sobretudo, para os discípulos que fala360. Jesus quer, com estas palavras, que os
discípulos acreditem e percebem quem ele é. De facto, Jesus diz: «para que acre-
diteis (…) que Eu sou [ἐγώ εἰμι]» (v.19b). Com esta frase Jesus evita uma ‘crise’
que teria dois motivos: se fosse realmente o Messias deveria conhecer melhor
aqueles que escolheu para discípulos e, depois, teria sido incapaz de prever a
traição, demonstrando assim que não tinha o espírito do profeta. No entanto,
Jesus não só previu tudo isto como ainda diz que estes acontecimentos servirão
para confirmar na fé que ele é o ‘ἐγώ εἰμι’361. No capítulo seguinte Jesus utiliza
uma expressão com o mesmo sentido: «Digo-vo-lo agora, antes que aconteça,
para crerdes quando isso acontecer» (14,29). Ele, que antes tinha escandalizado
os judeus quando disse: «Em verdade, em verdade vos digo: antes de Abraão
existir, Eu sou!» (8,58).
Chegamos assim ao último versículo que diz: «Em verdade, em verdade vos
digo: quem receber aquele que Eu enviar é a mim que recebe, e quem me recebe
a mim, recebe aquele que me enviou». Este v.20, um pouco à imagem do v.16,
também parece fora do lugar no que diz respeito não só ao contexto imediato do
anúncio da traição de Judas, mas também ao contexto mais geral do ‘lava-pés’362.
De facto, este v.20 equivale a um logion da tríplice tradição sinótica (cf. Mt 10,40;
Mc 9,37; Lc 9,48;10,16363). Por isso, muitos críticos concluem que se trata de um
acrescento redacional que estaria a completar o dito, também tradicional do
v.16. Mas esta razão, ainda que faça sentido, não explica esta colocação no texto.
Por isso, podemos pensar que este v.20 estaria em ligação com a afirmação do
‘Eu sou’, presente no fim do versículo 19, e seria uma confirmação da ligação
importante e necessária a cada discípulo: cada um ligado a Jesus, por que este
está ligado ao Pai364. Na verdade a ação de lavar os pés tem uma ressonância

360
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 41-42.
361
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 324.
362
  Ibidem, 324. É interessante sublinhar que ambos os versículos começam da mesma forma: «ἀμὴν
ἀμὴν λέγω ὑμῖν».
363
  Mt 10,40: «Quem vos recebe, a mim recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou»; Mc
9,37: «Quem receber um destes meninos em meu nome é a mim que recebe; e quem me receber, não
me recebe a mim mas àquele que me enviou»; Lc 9,48: «Quem acolher este menino em meu nome, é
a mim que acolhe, e quem me acolher a mim, acolhe aquele que me enviou; pois quem for o mais pe-
queno entre vós, esse é que é grande»; Lc 10,16: «Quem vos ouve é a mim que ouve, e quem vos rejeita
é a mim que rejeita; mas, quem me rejeita, rejeita aquele que me enviou». BS.
364
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993, 42-43. Ver ainda:

360
bem mais forte do que um simples gesto antropológico e eclesial - é imagem e,
ao mesmo tempo, sugere outro acolhimento mais essencial. Deste modo, com
esta frase estabelece-se um círculo hermenêutico interpretativo sobre este gesto
– Jesus lava os pés para acolher os discípulos e estes últimos não só demonstram
disponibilidade para o acolhimento recíproco como abertura ao acolhimento de
Jesus e de Deus. Porque receber um ‘enviado’ por Jesus é receber o próprio Jesus
e receber Jesus é receber quem o enviou – o Pai. Por tudo isto, é este o gesto fun-
dativo da comunidade cristã. Uma comunidade que vê no acolhimento o ‘estilo’
identitário de todas as relações365.

2.6. Jesus ressuscitado encontra-se com os discípulos – em especial com


Tomé366
Na unidade literária (20,19-29)367 temos dois encontros com a comunida-
de crente: um com os discípulos e outro ‘apenas’ com Tomé. O que é verda-
deiramente único, neste evangelista é o episódio de Tomé (vv.24-29) que não
encontra outros paralelos nos evangelhos. Já a primeira parte deste episódio
367
(vv.19-23) encontra vários paralelos: Lc 24,36-43; Mc 16,14-18 e Mt 28,16-20.
Por tudo isto, podemos falar de dois encontros nesta perícopa: um primeiro en-
contro, na tarde do primeiro dia da semana, com os discípulos, onde Tomé não

R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 572.
365
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 557.
366
  Para além da bibliografia que seguimos de perto, aconselhamos: J. Beutle, Das Johannesevan-
gelium, Freiburg im Breisgau 2013, 525-531; F. Marin, W. Wright, The Gospel of John, Grand Ra-
pids 2015, 339-345; U.C. von Wahlde, The Gospel and Letters of John, I, Michigan 2010, 855-872;
C. Knights, «Nathanael and Thomas: Two Objectors, Two Confessors, ExpT 125 (2014) 328-332; S.
Schneiders, «De verrezen Jezus aanraken: Maria Magdalena en Tomas de tweeling in Johannes 20»,
Coll. 40 (2010) 39-66.
367
  A nossa proposta de delimitação está suportada, desde logo, pelo exegeta Raymond Brown, que
intitula esta unidade literária (20,19-29) como «The Risen Jesus: Scene Two». Pelo título, exegeta sub-
linha que se trata de um ‘segundo episódio’ das aparições do ressuscitado. O autor defende assim
uma ligação a um primeiro episódio (20,1-18) onde se fala, depois de Pedro e João irem ao túmulo,
da aparição de Jesus a Maria Madalena. Neste segundo episódio, seria a aparição do ressuscitado ao
grupo dos discípulos. Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1018.
Também Renzo Infante assume a mesma unidade literária, designando esta passagem simplesmente
por «Incontro di Gesù con i discepoli» subdividindo posteriormente em duas partes: «Apparizione
ai discepoli» (20,19-23) e «Gesù, Tommaso e i futuri credenti» (20,24-29). Cf. R. Infante (a cura di),
Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 455-463. Léon-Dufour também assume a mesma unidade literária
(20,19-29), que intitula «Jésus et ses disciples réunis», subdividindo-a também em duas partes: «Jésus
envoie ses disciples» (vv.19-23) e «Heureux ceux qui n’ont pas vu et ont cru!» (vv.24-29). Cf. X. Léon-
-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 227-252.

361
esteve presente; e um segundo encontro, oito dias depois, com os discípulos e já
com a presença de Tomé, que assume um papel de destaque nesta passagem368.
O texto, com a expressão inicial «Ao anoitecer daquele dia, o primeiro depois
do sábado369» (v.19a), começa por nos dar duas ‘ligações’, sem precisar o lugar370:
uma primeira, aos versículos anteriores onde se fala da aparição de Jesus a Maria
Madalena – este episódio agora seria no final desse mesmo dia – ‘ao anoitecer’371;
uma segunda ligação, tem a ver com a possibilidade do autor conjugar o ‘pri-
meiro dia depois de sábado’ (domingo) com a aparição de Jesus e com o próprio
dia de Páscoa. Esta ideia, do primeiro dia depois do sábado (o primeiro dia da
semana), volta a ser reforçada no v.26a: «oito dias depois». Estas duas referências
permitem-nos pensar na influência do costume cristão de celebrar a eucaristia
no primeiro dia da semana, como podemos ver em At 20,7a: «No primeiro dia
da semana, estando nós reunidos para partir o pão» (cf. 1Cor 16,2 e Ap 1,10)372.
De facto, a aparição do ressuscitado ao grupo dos discípulos reunidos tem um
papel fundamente para a existência e o surgir da comunidade eclesial. Com efei-
to, o primeiro dia da semana corresponde ao dia em que a comunidade cristã se
reunia para celebrar a eucaristia, chamado o ‘dia do Senhor’ (cf. Ap 1,10a), sendo
não só o ‘dia’ do triunfo pascal, mas também o ‘dia’ escatológico anunciado pelos
profetas e por Jesus373.

368
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 455.
369
  Sugerimos esta tradução em vez da proposta da versão portuguesa que indica simplesmente ‘o pri-
meiro da semana’, procurando assim seguir de perto texto grego – τῇ μιᾷ σαββάτων. Contudo, estamos
conscientes que a palavra σάββατον, do hebraico ‫שׁ ַׇבּת‬, pode significar quer ‘sábado’, quer ‘semana’. Cf.
C. Rusconi, «σάββατον», in DGNT, São Paulo 2003, 411. Deste modo, ambas as possibilidades fazem
sentido já que o ‘primeiro da semana’ (domingo) é igual ao ‘primeiro depois de sábado’ (domingo).
Léon-Dufour corrobora a nossa opção ao traduzir: «le premier après le sabbat». X. Léon-Dufour, Lec-
ture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 229. No entanto, Raymond Brown opta por
uma versão próxima da tradução portuguesa: «first day of the week». R. Brown, The Gospel According
to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1018. Também Renzo Infante se aproxima da tradução portuguesa
ao traduzir: «il primo della settimana». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 455.
370
  A tradição identificou o Cenáculo como o lugar onde os discípulos estariam reunidos. Ou seja, uma
sala, num piso superior, onde tinham celebrado a Última Ceia (Lc 22,11-12) e onde se reuniram antes da
eleição de Matias e do Pentecostes (At 1,13). Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVII-
I-XXI), IV, Paris 1996, 229. Ver ainda: R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 456.
371
  Este ‘anoitecer’ pode ligar-se também ao episódio de Emaús: «Os outros, porém, insistiam com
Ele, dizendo: ‘Fica connosco, pois a noite vai caindo e o dia já está no ocaso’. Entrou para ficar com
eles» (Lc 24,29). Nessa mesma noite, estes discípulos de Emaús regressaram a Jerusalém e contaram
aos Onze o que lhes tinha acontecido. Nesse momento, Jesus ressuscitado volta a aparecer: «Enquanto
isto diziam, Jesus apresentou-se no meio deles e disse-lhes: ‘A paz esteja convosco!’» (Lc 24,36).
372
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1019.
373
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 227-229.

362
O v.19 continua dizendo que os discípulos estavam «com medo dos judeus374»
(v.19b). Este medo dos judeus contrasta com outros ‘medos’ descritos nos evange-
lhos: quando as mulheres vão ao sepulcro e não encontram o corpo de Jesus (Mc
16,8; Mt 18,5.8; Lc 24,5); quando as mulheres e os discípulos vêem Jesus ressusci-
tado (Mt 28,10; Lc 24,37). Aqui o medo é dos judeus, o mesmo medo que já existia
antes da sua morte: «No entanto, ninguém falava dele abertamente, por medo
dos judeus» (7,13). No caso do nosso texto, será o medo de serem perseguidos pe-
las autoridades hebraicas ou será o medo de serem acusados, pelas mesmas auto-
ridades, pela cumplicidade no desaparecimento do corpo de Jesus (Mt 28,13375)?376
O v.19 termina com Jesus a aparecer no meio dos discípulos e a dizer: «Paz
a vós [εἰρήνη ὑμῖν]377» (v.19c). Por um lado, o estar de improviso no meio dos
discípulos, ainda que as portas estejam fechadas, poderá aludir a particulares
características do corpo ressuscitado de Jesus. Contudo, este facto não parece ser
objeto de especial interesse do evangelista, que quer simplesmente sublinhar que
Jesus pode tornar-se presente no meio dos ‘seus’ não obstante todos os impedi-
mentos e todas as ‘portas fechadas’378. Por outro lado, este Jesus que ‘atravessa’
todas as ‘barreiras’ é o mesmo que diz aos discípulos «Paz a vós». Esta expressão
encontra, desde logo, vários paralelos no AT. No livro de Juízes encontramos
um diálogo entre Deus e Gedeão, no contexto da sua vocação, onde se diz: «O
Senhor disse-lhe: ‘A paz seja contigo! Não temas: não morrerás!’ Gedeão erigiu

374
  Procurando seguir de perto o texto grego - τὸν φόβον τῶν Ἰουδαίων, traduzimos desta forma em
vez da proposta da versão portuguesa que diz ‘com medo das autoridades judaicas’. Neste mesmo
sentido, Léon-Dufour traduz por «par peur des juifs». Ibidem, 229. Também Raymond Brown traduz
simplesmente por: «for fear of the Jews». R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New
York 1970, 1018. No mesmo sentido Renzo Infante traduz: «per paura dei giudei». R. Infante (a cura
di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 455.
375
  Mt 28,11-13: «11Enquanto elas iam a caminho, alguns dos guardas foram à cidade participar aos
sumos sacerdotes tudo o que tinha acontecido! 12Eles reuniram-se com os anciãos; e, depois de terem
deliberado, deram muito dinheiro aos soldados, 13recomendando-lhes: ‘Dizei isto: De noite, enquanto
dormíamos, os seus discípulos vieram e roubaram-no’». BS.
376
 Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1020.
377
  Sugerimos esta tradução ‘Paz a vós’ em vez da proposta da versão portuguesa «A Paz esteja convos-
co!». No texto original temos simplesmente a expressão: εἰρήνη ὑμῖν. Não deixa de ser estranho que
o tradutor português, perante a mesma expressão grega tenha feito a opção de traduzir de maneira
diferente nos vv.21b e 26b, trocando o verbo ‘estar’ por ‘ser’: ‘A Paz seja convosco’. Nós iremos manter
a coerência traduzindo sempre por ‘Paz a vós’. Suporta esta nossa opção o exegeta Léon-Dufour que
traduz sempre por «Paix à vous!». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV,
Paris 1996, 229 e 244. Mantendo o mesmo sentido, Raymond Brown traduz por: «Peace to you». R.
Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1018. De igual modo traduz Renzo
Infante: «Pace a voi». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 457.
378
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 456.

363
ali um altar ao Senhor e chamou-lhe: ‘O Senhor é paz’» (Jz 6,23-24). Encon-
tramos ainda a mesma expressão no diálogo entre o anjo do Senhor e o profeta
Daniel: «Não receies, homem de predilecção! Que a paz seja contigo! Coragem!
Coragem!» (Dn 10,19a). Estes exemplos reforçam a ideia de que não poderemos
considerar este ‘Paz a vós’ como uma saudação normal. Quando o verbo falta,
como é o caso, a frase torna-se praticamente sempre uma afirmação, por isso, é
que não se deve usar o conjuntivo ‘seja’, como acontece em tantas traduções379.
Esta ‘paz’ é o maior bem, segundo a tradição do AT, e corresponde à beleza e
à plenitude de vida380. Jesus dá a ‘paz’ que já tinha ‘anunciado’ no discurso do
adeus: «Deixo-vos a paz; dou-vos a minha paz. Não é como a dá o mundo, que Eu
vo-la dou» (14,27ab). Não é uma paz qualquer a ‘sua’, aquela que vem dele e nos
conduz à plenitude de vida.
Depois disto Jesus ‘mostrou’ [ἔδειξεν]381 aos discípulos as «mãos e o lado [τὰς
χεῖρας καὶ τὴν πλευρὰν]382» (v.20a). Lucas no relato paralelo diz que Jesus mos-
trou as ‘mãos e os pés’ (Lc 24,39a.40). Estas duas tradições fundiram-se na pieda-
de popular das ‘cinco chagas’: as duas mãos, os dois pés e o lado383. É difícil dizer
qual a expressão mais original, se as ‘mãos e o lado’ de João, se as ‘mãos e os pés’
de Lucas. Raymond Brown diz que é provável que ambos os textos apresentem
uma evolução em relação à fonte original que falaria apenas das ‘mãos’384. Em
todo o caso, o mostrar as ‘mãos’ ou as ‘mãos e o lado’ é sempre uma identificação

379
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1021. «Jésus ne formule
pas une salutation ordinaire, le châlom coutumier des juifs; ce n’est pas advantage un souhait, qui se
traduirait à tort ‘Paix soit à vous!». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV,
Paris 1996, 231.
380
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 768-769.
381
  O verbo δείκνυμι significa, entre outras coisas: ‘mostrar’, ‘pôr à mostra’, ‘exibir’, ‘fazer ver’, ‘de-
monstrar’ e ‘comprovar’. Cf. C. Rusconi, «δείκνυμι», in DGNT, São Paulo 2003, 116. «Il verbo (…)
ricorre sempre nel Quarto vangelo con un valore rivelativo (Gv 2,18; 5,10ab; 10,32; 14,8.9)». S. Grasso,
Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 769.
382
  Sugerimos esta tradução em vez da palavra ‘peito’ usada na versão portuguesa. Efetivamente a
palavra grega presente é πλευράν, que vem de ‘costa’ (πλευρόν) e quer dizer ‘costado’ ou ‘lado’. Id.,
«πλευρά», in DGNT, São Paulo 2003, 377. Esta mesma opção de tradução será repetida nos vv.25b e
27b. Léon-Dufour traduziu sempre com este sentido: «côté». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile
selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 229 e 244. De igual modo, Raymond Brown traduziu sempre
por «side». R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1018. Com mesmo
sentido também Renzo Infante traduziu por «costato». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello
Balsamo 2015, 457.
383
  «La fusione di questi due testi è all’origine della devozione delle cinque piaghe». R. Infante (a cura
di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 456.
384
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1021-1022.

364
do Ressuscitado com o Crucificado. De facto, para os discípulos reconhecer que
se trata do mesmo Jesus equivale a assumir a consciência de que a ressurreição é
qualquer coisa de verdadeiramente real e que a comunhão que tinham com ele
pode continuar para além da morte, ainda que de maneira nova385.
O evangelista continua dizendo que os discípulos se encheram «de alegria
por verem o Senhor [ἰδόντες τὸν κύριον]» (v.20b). Este ‘ver’ corresponde à pro-
messa de Jesus: «Ainda um pouco e o mundo já não me verá; vós é que me ve-
reis, pois Eu vivo e vós também haveis de viver» (14,19). Trata-se sobretudo do
reconhecimento do Senhor [κύριος]. O reconhecimento que implica uma relação.
Uma relação também anteriormente anunciada: «Nesse dia, compreendereis que
Eu estou no meu Pai, e vós em mim, e Eu em vós» (14,20)386. Por isso, a tristeza
da morte de Jesus transforma-se agora em alegria profunda. Isto mesmo já Jesus
lhes tinha dito: «Também vós vos sentis agora tristes, mas Eu hei-de ver-vos de
novo! Então, o vosso coração há-de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa
alegria» (16,22). Este é o tempo de serem vistos e de verem Jesus – o que lhes dá
uma alegria que ninguém lhes poderá tirar387. Com efeito, a alegria que Jesus
oferece não se restringe ao momento do encontro com ele, mas continua e dila-
ta-se no futuro, mesmo quando Jesus deixar de estar fisicamente com eles, como
disse na ‘oração sacerdotal’: «digo isto para que eles tenham em si a plenitude da
minha alegria» (17,13)388.
Em seguida, depois de reforçar a saudação inicial e de os enviar em ‘missão’
(cf. v.21), Jesus ‘soprou’ [ἐνεφύσησεν] sobre os discípulos389 e disse-lhes «rece-
bei o Espírito Santo [πνεῦμα ἅγιον]390» (v.22b). Este gesto de ‘soprar’ conduz-nos
imediatamente ao gesto da criação de Deus: «então o Senhor Deus formou o

385
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 457. «Nel Risorto viene riconosciuto
il Crocifisso». B. Forte, La trasmissione della fede, Brescia 2014, 13.
386
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 233.
387
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 457.
388
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 769.
389
  «Si tratta dell’unica occorrenza neotestamentária del verbo ἐμφυσάω (‘soffiare’, ‘alitare’) che nella
Settanta recorre almeno una dozzina di volte (…). Di queste occorrenze le più significative per l’inter-
pretazione di Gv 20,22 sono quele riferite al dono della vita (cf. Gen 2,7 e Sap 15,11) o al ridare la vita
dopo la morte (cf. Ez 37,9 e 1Rs 17,21)». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 458.
390
  A expressão Espírito Santo [πνεῦμα ἅγιον] sem artigo é insólita e só tinha aparecido em 1,33.
Também é de assinalar a falta de referência, neste contexto, ao Paráclito e ao Espírito de verdade, pro-
metidos durante o discurso do adeus. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015,
458. Talvez estes aspetos contribuam para que alguns exegetas digam que este v.22 se trata de um
acrescento posterior. «That vs.22 represents the evangelist’s addition to the original narrative of the
appearance». R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1035.

365
homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem
transformou-se num ser vivo» (Gn 2,7). Também podemo pensar numa passa-
gem do profeta Ezequiel: «Assim fala o Senhor Deus: ‘Espírito, vem dos quatro
ventos, sopra sobre estes mortos, para que eles recuperem a vida’» (Ez 37,9b). Tra-
ta-se sempre de uma criação nova: Jesus glorificado comunica o Espírito que faz
renascer o homem – como já tinha referido no episódio de Nicodemos (3,3-8)391.
Assim, a nova vida dada pelo Ressuscitado coincide com o dom do Espírito (uma
espécie de Pentecostes) que os santifica e os habilita para a missão – não só estes
discípulos mas todos os crentes392. Deste modo, Raymond Brown afirma que se
estabelece, nestes dois versículos, uma estreita relação entre a missão dos discí-
pulos (v.21) e o dom do Espírito Santo (v.22). Uma relação que, em certa medida,
pressupõe a promessa feita anteriormente: «mas o Paráclito, o Espírito Santo que
o Pai enviará em meu nome, esse é que vos ensinará tudo, e há-de recordar-vos
tudo o que Eu vos disse» (14,26)393, já que será o dom do Espírito que tornará
possível o exercício da missão confiada por Jesus aos seus discípulos. A missão
provém do Pai (v.21b) que quer dar a vida ao mundo e o envio dos discípulos im-
plica tudo aquilo que era previsto no ministério confiado a Jesus: glorificar o Pai
fazendo conhecer o seu nome e manifestando o seu amor (cf. 17,6.26)394.
Assim, depois deste gesto e destas palavras, Jesus concretiza a missão con-
fiada aos discípulos: «Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados;
àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos» (v.23). A missão anunciada (v.21) é

391
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 236.
392
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 458. Nesta mesma página e na se-
guinte, o autor esclarece a diferença entre este ‘pentecostes’ descrito em João (que coincide com a festa
da Páscoa) e o ‘pentecostes’ descrito em Lucas (que decorre cinquenta dias depois da Páscoa). Feita a
distinção, alerta que ambas as perspetivas sublinham aspetos teológicos importantes, mas também
diz que cada uma das ‘versões’ comporta riscos: a de Lucas corre o risco de separar a ressurreição
do Pentecostes, dando muita importância ao Espírito e permitindo interpretar o tempo e o dom do
Espírito como separados e autónomos; a de João, valorizando a forte ligação entre a ressurreição e a
descida do Espírito, poderá ‘desvalorizar’ a importância do dom do Espírito Santo em relação com a
ressurreição de Cristo.
393
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1036-1037. «Leur ‘envoi’
et la communication de l’Esprit Saint sont intrinsèquement liés». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évan-
gile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 237.
394
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 234-235. «I
discepoli dovranno prolungare nel tempo la missione di Gesù ed essere per il mondo ciò che è stato
Gesù: il segno e la rivelazione dell’amore com cui Dio há amato l’umanità (…) Non avendo in alcun
modo precisato di quali discepoli si tratta (…) non può e non deve essere limitato ai soli Dodici, ma va
esteso a tutti coloro che si faranno discepoli di Gesù, credendo alla parola da lui annunciata e scritta
in questo libro». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 457.

366
agora concretizada (v.23) - unindo-se assim estes dois versículos. Mas também
devemos ligar este v.23 ao v.22, ou seja, só podem perdoar e reter pecados na
medida em que Jesus lhes confere o Espírito Santo395. De facto, o dom do Espírito
está intimamente ligado ao poder de perdoar e de reter os pecados396. Neste sen-
tido, este v.23 faz-nos recordar a passagem de Mateus que diz: «Em verdade vos
digo: Tudo o que ligardes na Terra será ligado no Céu, e tudo o que desligardes na
Terra será desligado no Céu» (Mt 18,18). Assim, em Mateus, a ordem de baptizar
todas as nações («Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os
em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo» - Mt 28,19) exprime, de certo
modo, o poder do perdão comunicado à Igreja do Ressuscitado397. Obviamente
que o evangelista não reflecte um ‘poder do perdão’ como hoje o entendemos no
contexto sacramental, mas como dom da paz e comunicação do Espírito – uma
presença permanente do Senhor, daquele emerge uma nova criação398.
Segundo Raymond Brown, o mais importante da primeira parte desta frase
(«Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados» - v.23a) é que se usa
conjuntivo do aoristo e, em seguida, um conjuntivo presente. O aoristo indica um
ato que num instante leva ao perdão, já o presente indica um estado permanente
e duradouro. A segunda parte da frase («àqueles a quem os retiverdes, ficarão
retidos» - v.23b) soa estranha em grego e terá sido, provavelmente, introduzida
como imagem em contraponto com a primeira parte da frase399. No entanto, o
sentido, final de toda esta frase pode ser iluminado pelo início deste evangelho
com o anúncio de João Batista acerca de Jesus: «Eis o Cordeiro de Deus, que tira
o pecado do mundo!» (1,29b). Assim, toda a missão dos discípulos de perdoar ou
reter os pecados deve ser interpretada à luz da missão e da obra de Jesus, que não
veio para condenar o mundo mas para o salvar400.

395
  «Verse 23 should be related to vs.22. The disciples can forgive and hold men’s sins because Jesus has
breathed the Holy Spirit upon them». R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York
1970, 1043. Ver ainda: S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 771-772.
396
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 459. No AT podemos encontrar uma
alusão a esta relação em Ez 36, 25-27: «25Derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados; Eu
vos purificarei de todas as manchas e de todos os pecados. 26Dar-vos-ei um coração novo e introdu-
zirei em vós um espírito novo: arrancarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração
de carne. 27Dentro de vós porei o meu espírito, fazendo com que sigais as minhas leis e obedeçais e
pratiqueis os meus preceitos». BS.
397
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 239.
398
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 773.
399
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1023-1024. Ver ainda: R.
Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 459.
400
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 459.

367
No v.24 ‘entra’ a figura de «Tomé, um dos Doze, a quem chamavam Dídi-
mo401, não estava com eles quando Jesus veio» (v.24)402. Na verdade o texto con-
serva a definição mais tradicional do grupo (Doze), mesmo nesta situação em que
o grupo, depois de Judas Iscariotes se ter suicidado, contar apenas com ‘onze’
pessoas403. Tomé ‘entra’ na história pela sua ausência – uma ausência inexpli-
cada e surpreendente. Ou seja, quando os discípulos estavam reunidos e Jesus
ressuscitado lhes apareceu, no primeiro dia da semana, Tomé não estava com
os discípulos. Neste sentido, Léon-Dufour afirma que com esta observação do
evangelista (da ausência de Tomé), necessária para introduzir o episódio seguin-
te, o leitor se reconhece facilmente na situação de Tomé: também o leitor, para
aceder à fé pascal, dispõe apenas do testemunho apostólico404. Com efeito, Tomé
é um discípulo conhecido dos quatro evangelistas, sendo um dos Doze, mas só
João lhe dá relevo no seu projecto literário e teológico, acabando por surgir sete
vezes neste IV evangelho (11,16; 14,5; 20,24.26.27.28; 21,2), em três das quais é
apresentado como Dídimo [Δίδυμος] (11,16; 20,24; 21,2). A palavra ‘dídimo’ sig-
nifica ‘gémeo’ e, para uma certa exegese clássica, Tomé é gémeo não de Jesus ou
de algum apóstolo mas de cada um de nós405.

401
  Preferimos esta tradução à versão portuguesa que diz «Gémeo». De facto, a palavra grega Δίδυμος,
que se traduz para português como ‘Dídimo’, tem o significado de ‘gémeo’. Trata-se da reduplicação de
‘δύο’ e era a alcunha do apóstolo Tomé (Jo 11,16 e 20,24, 21,2). Cf. C. Rusconi, «Δίδυμος», in DGNT,
São Paulo 2003, 130. Neste mesmo sentido, Léon-Dufour traduz por «Didyme». X. Léon-Dufour,
Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 244. Contudo, Raymond Brown faz a
opção de traduzir por ‘gémeo’, colocando toda a frase entre parênteses curvos: «(this name means
‘Twin’)». R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1018. De modo se-
melhante, Renzo Infante traduz: «quello detto Gemello». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello
Balsamo 2015, 461.
402
  «La scène de la reencontre entre Thomas et le Ressuscité est une des plus belles pages du quartrième
évangile. Elle a inspire nombre de commentateurs, homélistes, artistes. Elle a même légué à la posté-
rité, du moins en français, une expression autrefois courante: ‘être comme saint Thomas’, c’est vouloir
voir pour croire». L. Devillers, «Thomas, appelé Didyme (Jn 11,16; 20,24; 21,2)», RB 113 (2006)1, 67.
403
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1024. Ver ainda: X.
Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 229-230.
404
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 244.
405
  Cf. L. Devillers, «Thomas, appelé Didyme (Jn 11,16; 20,24; 21,2)», RB 113 (2006)1, 66-71. Este
autor defende ainda que a palavra grega Δίδυμος tem não só o significado de ‘gémeo’ como de ‘duplo’
(uma ‘espécie’ de ‘duplo de cinema’). No entanto, o autor questiona-se: gémeo ou duplo de quem?, de
Jesus?, de todos os discípulos?, de todos os leitores? Neste mesmo artigo diz que a palavra ‘duplo’ pode
ser entendido com outra particularidade: Tomé assume dois ‘papéis’ entre descrente e crente, entre
ausência e presença, entre interior e exterior. Neste sentido, Tomé teria um sentido de ‘fronteira’ e de
‘ponte’. Santi Grasso, neste mesmo sentido, dirá: «Forse si chiama così perche manifesta una doppia
personalità che oscilla tra il dubbio e la fede». Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 773.
Sobre a temática aconselhamos ainda: J.P. Meier, A marginal Jew, III, New York 2001, 203-205.

368
Os discípulos falaram a Tomé da aparição de Jesus, mas ele disse: «Se eu não
vir o sinal406 dos pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo nesse sinal dos
pregos e a minha mão no seu lado, jamais acreditarei [οὐ μὴ πιστεύσω]407» (v.25).
Se não visse e se não tocasse nos ‘sinais’ da ‘morte’ (nas mãos e no lado) jamais
acreditaria. Jesus já se tinha referido a esta ‘incredulidade’ no início do evange-
lho: «Se não virdes sinais extraordinários e prodígios, não acreditais» (4,48). De
facto, também a Tomé não lhe bastavam as palavras e o testemunho dos outros
discípulos. Nem sequer lhe bastaria ver, como tinha acontecido com os outros
discípulos, para ele seria preciso tocar. Por isso, Raymond Brown fala de Tomé
como a personificação de uma aproximação a Jesus Ressuscitado, uma manei-
ra que o autor usou para retomar e dramatizar o tema da dúvida. Este mesmo
autor, chega a dizer que a história de Tomé, que não se encontra nos sinópticos,
poderá ter sido criada pelo evangelista408. A dúvida que Tomé expressa é usada
pelo evangelista como um meio apologético para sublinhar o caráter tangível do
corpo de Jesus como, doutro modo, acontece em Lc 24,41-43: «E como, na sua
alegria, não queriam acreditar de assombrados que estavam, Ele perguntou-lhes:
‘Tendes aí alguma coisa que se coma?’. Deram-lhe um bocado de peixe assado; e,
tomando-o, comeu diante deles»409.
Para todos os efeitos, Tomé permanece na história e no nosso imaginário
como ‘aquele que duvida’. Uma atitude que se pode identificar como duplamente

406
  Aqui optamos por manter a tradução portuguesa que traduziu τύπον por ‘sinal’. Mas não deixa-
mos de assinalar, como refere Renzo Infante, que a nível da transmissão textual existem notáveis con-
fusões devido à semelhança entre a palavra τύπον (sinal) e τόπον (lugar). Cf. R. Infante (a cura di),
Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 460. De facto, a palavra τύπος, nesta perícopa, tem o significado de
‘sinal’, ‘marca’ ou ‘vestígio’. Cf. C. Rusconi, «τύπος», in DGNT, São Paulo 2003, 464.
407
  Aqui sugerimos a expressão ‘jamais acreditarei’ em vez da tradução portuguesa que diz simples-
mente ‘não acredito’, procurando realçar o sentido da expressão grega que é οὐ μὴ πιστεύσω. Ray-
mond Brown refere precisamente que a forma negativa é reforçada com o forte οὐ μή e o indicativo
futuro πιστεύσω. Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1025. A
expressão οὐ μή tem um valor enfático: ‘absolutamente não’ ou ‘de modo nenhum’. Cf. C. Rusconi,
«μή», in DGNT, São Paulo 2003, 380. Transmitindo este mesmo sentido, Léon-Dufour traduz: «je ne
croirai absolument pas». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris
1996, 244. Raymond Brown faz a mesma opção ao traduzir: «I’ll never believe». R. Brown, The Gospel
According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1018. De modo semelhante, Renzo Infante traduz:
«non ci crederò mai». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 461.
408
 Renzo Infante, não indo tão longe nesta tese, afirma que é possível que o caráter impetuoso e obs-
tinado de Tomé (cf. 11,16; 14,5) tenha inspirado o evangelista a torná-lo protagonista de uma vivência
que passa da recusa de acreditar na palavra dos discípulos à mais elevada proclamação de fé cristoló-
gica dos evangelhos. Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 460.
409
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1031-1032.

369
negativa: por não ter confiado na palavra dos outros discípulos e por querer esta-
belecer a natureza incontestável das ‘aparições’410. No entanto, tendo sido aquele
que inicialmente duvida será depois, diante das ‘evidências’, aquele que professa
a fé. Um dinamismo que o evangelista sublinha para que o leitor se sinta também
convidado a fazer a mesma mudança. De facto, com a reação inicial de Tomé, o
narrador mostra o ceticismo natural do homem diante do anúncio inaudito da
vitória sobre a morte. Certamente que, como judeu, Tomé não ignora que um dia
terá lugar a ressurreição escatológica de todos os homens, mas como pensar que
Jesus, o crucificado, já entrou nessa vida? Era preciso tocar os sinais das feridas.
Esta exigência corresponde à categoria da época para a ressurreição final dos
mortos, que supõe uma certa continuidade sensível entre os dois mundos, este
primeiro e o seguinte, sem negar a necessidade de uma transformação gloriosa411.
Neste sentido, o autor conduz-nos ao grande encontro entre Jesus e Tomé.
«Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez dentro [de casa]412 e Tomé com
eles» (v.26a). Jesus volta a aparecer no meio deles e dá-lhes a ‘paz’ (v.26b). Uma
vez mais no primeiro dia da semana (domingo). Esta indicação, como refere Ray-
mond Brown, indica que o evangelista pressupõe uma presença prolongada dos
discípulos em Jerusalém. Todavia, esta perspetiva será difícil de conciliar com a
informação de Mc e Mt413 em que os ‘anjos’ dão ordens aos discípulos para irem
para a Galileia onde encontrarão Jesus ressuscitado. Neste sentido, uns procuram
harmonizar as duas tradições e dizem que esta segunda aparição, com Tomé já
no grupo, tinha decorrido precisamente na Galileia. Até porque o cenário reve-
lado no início do capítulo seguinte é a Galileia: «Algum tempo depois, Jesus apa-

410
 Cf. S. Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 774.
411
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 245-246.
412
  Aqui decidimos colocar entre parênteses retos a palavra ‘casa’ uma vez que não está presente no
texto grego. A tradução portuguesa simplesmente inclui a palavra ‘casa’ como se fizesse parte do texto
original. Renzo Infante sublinha que à letra se deveria traduzir por ‘no interior’, já que explicitamente
não se fala de casa, ainda que se subentenda. Contudo, depois de fazer esta nota, traduz: «i discepoli
erano di nuovo in casa». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 461. Raymond
Brown, também inseriu a palavra ‘casa’ na sua tradução, ainda que também tenha feito em nota a
explicação de que literalmente seria ‘inside’ (dentro): «Jesus’ disciples were once more in the house».
R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1018. Todavia, há quem decida
fazer a explicação deste pormenor e traduzir por ‘estavam de novo no interior’ ou ‘estavam outra vez
dentro’, como Léon-Dufour que traduz: «étaient de nouveau à l’intérieur». X. Léon-Dufour, Lecture
de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 244.
413
  Mc 16,7: «Ide, pois, e dizei aos seus discípulos e a Pedro: ‘Ele precede-vos a caminho da Galileia; lá
o vereis, como vos tinha dito’». BS. Mt 28,7: «e ide depressa dizer aos seus discípulos: ‘Ele ressuscitou
dos mortos e vai à vossa frente para a Galileia. Lá o vereis.’ Eis o que tinha para vos dizer». BS.

370
receu outra vez aos discípulos, junto ao lago de Tiberíades, e manifestou-se deste
modo» (Jo 21,1). No entanto, outros insistem que os discípulos permaneceram
em Jerusalém para a celebração da Páscoa e dos Ázimos, que durava uma semana
(Dt 16,3)414 e que agora se tinham reunido para partirem para a Galileia415.
Feito todo este itinerário, chegamos aos três últimos versículos (vv.27-29) que
tratam do encontro entre Jesus e Tomé - um diálogo intenso, breve e profundo.
Neste diálogo Jesus parece saber o que Tomé disse na sua ausência. Mas este facto
não é uma prerrogativa específica de Jesus Ressuscitado, já que antes da ressurrei-
ção e durante o seu ministério, o evangelista tinha referido essa capacidade416. O
diálogo começa precisamente com uma sequência ‘avassaladora’ de cinco verbos
no imperativo: ‘olha’ [ἴδε], ‘chega’ [φέρε], ‘estende’ [φέρε], ‘põe’ [βάλε] e ‘não sejas
descrente’ [μὴ γίνου ἄπιστος]417. De facto, Jesus começa por convidar Tomé a
‘olhar para as mãos’ e a colocar o seu ‘dedo nesses sinais’, depois diz-lhe também
para colocar a ‘mão no seu lado’ (v.27a). Este tocar, segundo Marie-Laure Veyron,
é um ‘tocar para saber’ [βάλλω] e não tanto um ‘tocar para entrar em contacto’
[ἅπτω] com Jesus418. Interessante é que o corpo ressuscitado que inicialmente
tem o ‘poder’ de atravessar as portas fechadas (vv.19.26) é o mesmo que Tomé
agora poderá tocar. Deste modo, o evangelista coloca-nos não só diante da tensão
entre intangibilidade e tangibilidade do corpo ressuscitado, mas também, diante
da relação entre ressurreição e crucifixão. Jürgen Moltmann, dizia precisamente
que nas aparições falamos da ‘ressurreição daquele que foi crucificado’ e que aqui
reside ‘uma continuidade na descontinuidade radical’419.

414
  Dt 16,1-3: «1Guarda o mês de Abib e celebra a Páscoa em honra do Senhor, teu Deus, porque foi
no mês de Abib que o Senhor, teu Deus, te tirou do Egipto, durante a noite. 2Imolarás ao Senhor, teu
Deus, em sacrifício pascal, gado miúdo e graúdo, no santuário que o Senhor tiver escolhido para ali
estabelecer o seu nome. 3Não comerás pão fermentado com essas vítimas. Durante sete dias, comerás
com elas ázimos, o pão da aflição, porque foi à pressa que saíste do Egipto, para assim te recordares
durante toda a tua vida do dia da tua partida». BS.
415
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1025.
416
  Ibidem, 1025.
417
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 461. Ver ainda: S. Grasso, Il Vangelo
di Giovanni, Roma 2008, 775.
418
  Cf. M.-L. Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013, 167-168. O verbo βάλλω pode signifi-
car, entre muitas coisas: ‘pôr’, ‘repor’, ‘lançar’, ‘atirar’, ‘poderar’, ‘refletir’ ou ‘imprimir’. Cf. C. Rusco-
ni, «βάλλω», in DGNT, São Paulo 2003, 93. Já o verbo ἅπτω pode significar: ‘tocar’, ‘agarrar’, ‘aderir’,
‘unir’, ‘costurar’ e ‘conectar’. Id., «ἅπτω», in DGNT, São Paulo 2003, 74.
419
  Cf. J. Moltmann, Teologia della speranza, Brescia 20088, 204-205. Nestas mesmas páginas, o autor
defende que não basta dizer que Jesus Cristo crucificado ontem, ressuscitado hoje, ou que é nos seus
dois modos de ‘aparecer’ o ‘mesmo’; ou que a cruz e a ressurreição são dois modos de ser da sua única,
eterna e imutável pessoa - podemos correr o risco do modalismo. Precisamos de defender uma iden-

371
Depois desta ‘prova’, Jesus insiste com Tomé: «Não sejas descrente, mas crente
[μὴ γίνου ἄπιστος ἀλλὰ πιστός]420» (v.27b). Com esta tradução procura-se subli-
nhar a oposição clara entre as duas palavras ἄπιστος versus πιστός. Não se trata de
um Tomé ‘incrédulo’, como aparece em muitas traduções, mas de um comporta-
mento momentâneo. Uma atitude que exige ‘tocar nos sinais’ para verificar a reali-
dade do corpo. Por isso, Jesus, depois de lhe permitir essa ‘experiência’ do ressusci-
tado, convida-o a ser um verdadeiro crente421. Também podemos ver aqui, por um
lado, o contraponto entre a atitude de Tomé («jamais acreditarei» - v.25b) e a atitude
do discípulo amado no início deste mesmo capítulo («viu e começou a crer» - v.8b);
e, por outro lado, uma preparação para a declaração final de Jesus (v.29). É curioso,
no entanto, reparar que o evangelista não diz se Tomé tocou realmente nas feridas
do corpo de Jesus, o que sabemos é que nas palavras finais de Jesus (v.29a) se fala de
‘ver’ e não de ‘tocar’: «Porque me viste, acreditaste»422.
Podemos aqui estabelecer uma certa relação entre Maria Madalena e Jesus423
– os únicos que, na expressão de Luc Devillers, ‘beneficiaram individualmente de
uma cristofania pascal’424. Por um lado, Jesus pede a Maria Madalena que não o
‘toque’: «Não me detenhas [ἅπτου que tem a ver com ‘tocar’, ‘segurar’ ou ‘deter’],
pois ainda não subi para o Pai» (v.17a)425; por outro, Tomé diz que quer ‘tocar’ -

tidade numa dialética que não reduza a cruz como caminho para a ressurreição nem a ressurreição
como resultado da cruz.
420
  Fazemos aqui a opção de traduzir por ‘descrente’ e por ‘crente’, em vez de ‘incrédulo’ e ‘fiel’ (como
sugere a tradução portuguesa), para evidenciar essa relação entre palavras presente no texto grego:
ἄπιστος ἀλλὰ πιστός. A palavra πιστός quer dizer, entre outros significados: ‘crente’, ‘fiel’, ‘crível’,
‘confiável’. Cf. C. Rusconi, «πιστός», in DGNT, São Paulo 2003, 375. A partícula ἀ antes da palavra
πιστός tem o sentido privativo. Deste modo, a palavra grega ἄπιστος quer dizer, entre outros significa-
dos, precisamente o contrário: ‘incrédulo’, ‘não crente’ e ‘não fiel’. Id., «ἄπιστος», in DGNT, São Paulo
2003, 63. Refletindo este sentido, Léon-Dufour traduz: «Cesse de te montrer incroyant, mais [mon-
tre-toi] croyant!». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 244.
Também Raymond Brown procura sublinhar a mesma ideia ao traduzir: «And do not persist in your
disbelief, but become a believer». R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York
1970, 1018-1019. No mesmo sentido, Renzo Infante traduz: «non essere più incredulo, ma credente».
R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 463.
421
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 247-248.
422
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 462.
423
 Dorothy Lee defende que as narrativas de Maria Madalena e de Tomé não podem ser separadas
uma vez que foram escritas como um todo. Cf. D. Lee, «Partnership in Easter Faith», JSNT 58 (1995) 37.
424
  Cf. L. Devillers, «Thomas, appelé Didyme (Jn 11,16; 20,24; 21,2)», RB 113 (2006) 66.
425
 Marie-Laure Veyron diz que esta passagem pode ser entendida de duas maneiras: sentido de inter-
dição do gesto - ‘não me toques’; ou sentido de interdição de continuação – ‘cessa de me tocar’. Cf. M.-
L. Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013, 171. Para aprofundar este tema, aconselhamos:
R. Bieringer, K. Demasure, B. Baert (eds), To Touch or Not to Touch?, Leuven 2013.

372
quer ‘meter o dedo no sinal dos pregos e a mão no lado’ (v.25b) e Jesus convida-o
a ‘tocar-lhe’ (v.27). Dorothy Lee sublinha que a diferença entre um momento e
outro está no dom do Espírito Santo – que acontece no v.22. Já que o ‘acesso’ à
ressurreição de Jesus seria sempre incompleto até que ele fizesse descer sobre os
discípulos o dom do Espírito Santo426.
Tomé terá tocado no corpo do ressuscitado? Não conseguimos concluir afir-
mativamente ou negativamente. Mas, independentemente de ter tocado ou não,
o que sabemos é que Tomé responde a Jesus com uma verdadeira confissão de fé:
«Meu Senhor e meu Deus [ὁ κύριός μου καὶ ὁ θεός μου]» (v.28)427. Ele ultrapassa
assim uma perspetiva meramente sensitiva porque começa a compreender que
a ressurreição é de outra ordem - da ordem do πνεῦμα428. Deste modo, segundo
Raymond Brown, esta expressão é, ao mesmo tempo, um vocativo e uma pro-
fissão de fé429. Aquele que personificou todas as dúvidas apostólicas diante da
ressurreição torna-se agora o protótipo da fé cristã. Trata-se de uma expressão
que ‘incarna’ e ‘traduz’ o ‘vértice’ da fé pascal da comunidade crente430. Uma
expressão que, como sublinha Léon-Dufour, não é um apelo introduzido por um
‘tu és’ e mostra uma relação profunda e íntima expressa pela repetição do pro-
nome possessivo ‘meu’431. Uma confissão de fé íntima e pessoal que nos recorda
a afirmação de Madalena: «[choro] porque levaram o meu Senhor e não sei onde
o puseram» (20,13)432.
O diálogo termina com Jesus a fazer uma afirmação em jeito de bem-aven-
turança, centrada no ‘acreditar’: «Porque me viste, acreditaste. Felizes [μακάριοι]
os que crêem sem terem visto!» (v.29)433. Esta bem-aventurança, porque centrada
no ‘acreditar’, liga-se menos às oito bem-aventuranças, referidas em Mt 5,3-11, e

426
  Cf. D. Lee, «Partnership in Easter Faith», JSNT 58 (1995) 42.
427
  «Littérairement, la confession de Thomas reproduit les termes de la Septante traduisant l’invo-
cation du psaume 34,23». X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris
1996, 249. Na verdade o Salmo é o Sl 35(34) e diz no v.23: «Desperta e levanta-te para me defenderes,
meu Deus e meu Senhor! Defende a minha causa». BS. Ver ainda: R. Infante (a cura di), Giovanni,
Cinisello Balsamo 2015, 462.
428
  Cf. D. Lee, «Partnership in Easter Faith», in JSNT 58 (1995) 43. «La confessione di fede di Tomma-
so (…) risulta il vertice dell’esperienza pasquale, sintesi programática della cristologia giovannea». S.
Grasso, Il Vangelo di Giovanni, Roma 2008, 775.
429
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1026.
430
  Cf. D. Lee, «Partnership in Easter Faith», JSNT 58 (1995) 46.
431
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 249.
432
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 462.
433
  «È fortemente discusso se la frase vada letta come un’interrogativo («hai creduto solo perche mi
hai visto?) o come una constatazione». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 463.

373
mais àquela que pode ser encontrada no diálogo de Isabel com Maria, quando
esta diz: «Feliz de ti [μακαρία] que acreditaste, porque se vai cumprir tudo o que
te foi dito da parte do Senhor» (Lc 1,45)434. De facto, como sublinha Léon-Dufour
trata-se de dois modos de aceder à fé, o de Tomé e o dos futuros discípulos. Se a
primeira parte se refere a Tomé, a segunda parte desta bem-aventurança refere a
possibilidade de se acreditar sem ver os sinais do ressuscitado, ou seja, refere-se
aos discípulos futuros435. Nesta bem-aventurança o evangelista pensa, por isso,
numa época em que Jesus já não poderá ser visto436, razão pela qual fala daqueles
que acreditarão sem ver - a comunidade pós-pascal. No entanto, não deixa de
ser inesperado que pareça ‘preferível’ crer ‘sem ter visto’. Segundo Craig Keener
esta afirmação só se pode compreender bem em termos da lógica judaica sobre
recompensas, onde seria mais louvável e mais abençoado o que acredita e se con-
verte sem ter visto os sinais no Sinai437. Apesar disso, como nos recorda Renzo
Infante, o ‘ver’ de Tomé não é qualquer coisa de negativo e não está em oposição
ao ‘crer’, mas é indispensável para os futuros crentes: «O que existia desde o prin-
cípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as
nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida - de facto, a Vida manifes-
tou-se; nós vimo-la, dela damos testemunho e anunciamo-vos a Vida eterna que
estava junto do Pai e que se manifestou a nós» (1Jo 1,1-2)438.

434
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 463.
435
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 250-251.
436
  «Only when he has recounted what has been seen by the disciples (…) does the writer turn to na
era when Jesus can no longer be seen but can be heard». R. Brown, The Gospel According to John (XII-
-XXI), II, New York 1970, 1048.
437
  Cf. C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 1212.
438
  «In tal senso il vedere di Tommaso non è superfluo o addirittura negativo; anzi, è indispensabile
per i futuri credenti». R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 463. O narrador quer
sublinhar que o facto da comunidade crente futura estar distante destes acontecimentos não pode
ser entendido como uma desvantagem. Cf. D. Lee, «Partnership in Easter Faith», JSNT 58 (1995) 48.

374
TERCEIRA PARTE

A esperança que Jesus dá ‘re-cria-nos’


Capítulo I

A esperança começa
no encontro individual de Jesus com cada pessoa

Podemos dizer, depois do itinerário percorrido, que a raiz mais profunda


da esperança cristã é o próprio encontro com Cristo. Com efeito, a nossa fé
encontra sempre o seu específico e o seu fundamento na história concreta de
Jesus de Nazaré. Por isso, ‘tocar’ essa história concreta exige, como insistiu Karl
Rahner, que a teologia bíblica seja a fonte da dogmática1. Deste modo, também
para aprofundarmos o conteúdo e o tempo da esperança tivemos que percorrer
os encontros de Jesus com os seus contemporâneos. No entanto, este ‘adentrar-
-se’ nesses encontros desafia-nos a uma teologia renovada da esperança que seja
não apenas descritiva mas performativa, isto é, que tenha a ver com a nossa
vida e nos transforme pessoal e comunitariamente. Como cristãos que somos é
em Cristo que nos ‘percebemos’ e nos ‘transfiguramos’. Na verdade, usando as
palavras de Ermes Ronchi, toda a cristologia é uma antropologia porque Jesus
diz-me quem sou2.
Este foi o essencial do itinerário percorrido. Chegados aqui, importa concluir
o percurso procurando ‘re-colher’ os dinamismos fundamentais que emergem
desses encontros e nos podem falar do específico da esperança cristã. Sublinha-
mos três grandes dinamismos que iremos agora procurar desenvolver: a esperan-
ça começa no encontro individual de Jesus com cada pessoa; nesse encontro Jesus

1
  Cf. K. Rahner, «Problemi della cristologia d’oggi», Roma 1967, 12-14. Esta afirmação, por um lado,
reclama que se volte permanentemente ao dado escriturístico, nomeadamente aos evangelhos; e,
por outro, sugere uma continuada ‘re-leitura’ e ‘re-interpretação’ dos mesmos. De facto, a «Teologia
apoia-se, como seu fundamento perene, na palavra de Deus escrita e na sagrada Tradição, e nela se
consolida firmemente e sem cessar se rejuvenesce, investigando, à luz da fé, toda a verdade contida no
mistério de Cristo» (DV 24).
2
 Cf. E. Ronchi; M. Marcolini, Perché avete paura?, Cinisello Balsamo 2013, 46.

377
dá um tempo novo a cada pessoa; e, por fim, a esperança de Jesus conduz cada
um à vivência comunitária. Deste modo, pessoa-tempo-comunidade pode ser a
síntese de uma tríade que decorre das narrações evangélicas como dinamismo de
suporte à esperança que Jesus dá em cada encontro3. Por tudo isto, podemos dizer,
antecipando, que esta esperança ‘re-cria-nos’.
Dito isto, começamos por reforçar a ideia de que a esperança que Jesus dá
começa no encontro pessoal. Esse encontro pessoal com Jesus é um ponto de par-
tida essencial e determinante, mas esse mesmo encontro não está fechado em si
mesmo nem é o fim de um itinerário. Cada encontro é apenas a ‘porta’ que a es-
perança, oferecida por Jesus, abre para entrar na vida de cada pessoa. Uma ‘porta’
tão real e concreta quanto real e concreta é a vida de cada uma dessas pessoas.
Por isso, aquele que diz «Eu sou a porta [θύρα]4. Se alguém entrar por mim estará
salvo» (Jo 10,9ab) é o mesmo que em cada encontro cria condições para que a
esperança possa abrir as portas, de cada um, para poder entrar.

1. A importância da categoria do encontro: do ‘ser-se-com’ ao ‘ser-se-entre’


Afinal o que pretendemos dizer quando dizemos ‘encontro’? É apenas uma
relação entre duas ou mais pessoas? Há encontros e encontros? O que distingue
um encontro de tantos outros encontros? Basta dizer ‘relação’ para compreender
o que significa a categoria ‘encontro’? De facto, «no princípio é a relação»5 - ne-

3
 Gerhard Lohfink critica fortemente quer uma visão individualista, quer uma visão coletivista do
cristianismo, insistindo que hoje há uma perspectiva individualista da Igreja e da redenção. Uma
perspetiva já defendida pelo famoso e influente teólogo protestante Adolf von Harnack - na Univer-
sidade de Berlim, por volta de 1900. Este individualismo religioso e centralidade no sujeito entende a
concretização do reino de Deus não na comunidade mas apenas no indivíduo. Esta perspetiva influen-
ciou alguma teologia e espiritualidade católica que chegaram aos nossos dias. Cf. G. Lohfink, Gesù
come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 11-16. Deste modo, pretendemos sugerir, a
partir dos evangelhos, uma tensão entre o encontro pessoal e a experiência da comunidade no próprio
dinamismo da esperança.
4
  A palavra θύρα quer dizer: ‘porta’, ‘entrada’, ‘prancha’ e ‘palácio dos reis da Pérsia’. Cf. I. Pereira,
«Θύρα», in DGPPG, Braga 19907, 272. No contexto do NT significa essencialmente ‘porta’. Cf. C. Rus-
coni, «θύρα», in DGNT, São Paulo 2003, 229.
5
 M. Buber, Eu e tu, Prior Velho 2014, 22. Posteriormente, concretamente na pág. 104, o autor dirá
que são três as esferas em que o mundo das relações se constrói: a primeira é a vida com a natureza,
onde a relação se fixa no limiar da linguagem; a segunda é a vida com os homens, onde ela assume
a forma verbal; e a terceira é a vida com as essencialidades espirituais onde a relação acontece sem
fala, mas sem deixar de gerar linguagem. Por fim, diz que em cada uma destas esferas vislumbramos
a presença do Tu eterno.

378
nhum ser, de nenhum género e grau, existe isoladamente e independentemente
de todos os outros. Todos são em relação e a relação está em tudo6. Deste modo,
podemos assumir que a conceção relacional apresenta-se como um horizonte de
toda e qualquer reflexão7. É a relação que diz a criação, o cosmos, os seres, a pes-
soa humana, a própria Trindade em si e a relação desta com a humanidade. Nada
nem ninguém se pode dizer fora da relação. Apesar de algumas pessoas verem a
relação e o outro, sobretudo o que é diferente, como uma ameaça8. No entanto,
temos que reconhecer que tudo e todos somos em relação e que o outro é um
dom9. Na verdade, cada pessoa é um ‘ser-em-relação’ e muito do que é deve-o às
relações onde ‘acontece’ porque, como refere Martin Buber: «relação é reciproci-
dade»10. Na verdade, quando uma pessoa é ‘privada’ das relações que animam o
seu existir passa a ser um mero ‘fantasma’ de si mesmo11.
Em que medida a relação que somos determina os encontros que temos e a
identidade que somos? Será que podemos dizer que esse ‘ser-em-relação’ muda a
‘fisionomia’ e, sobretudo, a identidade de cada um de nós? Comecemos por dizer,
desde logo, que sim. Concretizemos em alguns exemplos: enquanto filhos, a par-
tir do nosso nascimento, mudámos a ‘realidade’ de um homem e de uma mulher
que passaram a ser o nosso ‘pai’ e a nossa ‘mãe’. Nesse momento, o pai ou a mãe
não podem mais dizer simplesmente ‘eu’ prescindindo do seu ser ‘pai de’ ou a
‘mãe de’ e o mesmo, de maneira inversa, podemos dizer do filho12. Do mesmo
modo, de um irmão e de uma irmã, do marido e da esposa, do avô e da avó, do tio
e da tia… Ou, falando para além dos ‘laços de sangue’, do estado e dos cidadãos,
do professor e do aluno, do ‘patrão’ e do ‘empregado’. Cada relação muda não só

6
  Cf. M. Serretti, «La relazione di origine», Città del Vaticano 2012, 37-38.
7
  Sobre a dimensão ontológica da relação como constitutiva do ser humano sugerimos: G. Salonia,
«Il paradigma triadico della traità», Trapani 2012, 27-35.
8
 Luis Tagle sublinha esta dificuldade em relacionar-se com o ‘outro’, sobretudo, com o ‘outro dife-
rente de mim’, no complexo e atual contexto da globalização: «Today, the world finds it increasingly
difficult to relate with ‘the other’. Despite massive globalization, we are more ill at ease with diversity.
A tendency exists among some people to see as threats those who are ‘other’, those from different
cultures and religions or with different languages and mentalities. When problems arise, i tis easy
to blame the other, and those different from us become easy scapegoats». L.A. Tagle, Easter People,
New York 2005, 93.
9
  Sobre esta perspetiva do ‘outro como um dom’ aconselhamos: Francisco, Mensagem para a Qua-
resma 2017, 18 de outubro de 2016.
10
 M. Buber, Eu e tu, Prior Velho 2014, 12.
11
  «Como la anémona se desinfla y pierde su color cuando se retiran las aguas, así la persona pasa a ser
un vago fantasma cuando se la priva de las relaciones que animan su existir». J. Granados, Teología
del tiempo, Salamanca 2012, 21.
12
  Cf. M. Serretti, «La relazione di origine», Città del Vaticano 2012, 41.

379
‘palavras’ mas a ‘identidade’ que somos. Uma relação que fala de encontro e que
‘qualifica’ o próprio encontro.
De facto, «inescrutavelmente implicados, vivemos na torrente da universal
reciprocidade»13. Por isso, o ser humano é constitutivamente, e não acidental-
mente, ‘ser-em-relação’. O seu próprio nascimento é fruto de uma relação e o seu
‘ser-se-no-mundo’ é modelado pela relação14. A consciência da importância desta
dimensão relacional que somos revela-se decisiva em todos os tempos, podendo
ser uma verdadeira revolução cultural, cheia de promessas para a civilização e
também para a vida cristã15. Por tudo isto, falar de esperança significa, obrigato-
riamente, falar de relação porque não há esperança fora da relação - feita encon-
tro. É, precisamente, este ‘ser-se-em-relação’ que promove e, ao mesmo tempo,
de-limita a própria esperança.
No entanto, falar repetidamente do termo relação não assegura, por si mes-
mo, uma atitude pessoal caraterizada pelas lógicas e pelas dinâmicas inerentes
ao exercício da dimensão relacional. Somos sempre filhos de uma história e de
um contexto que, muitas vezes, parece ver na relacionalidade qualquer coisa de
acessório, secundário e instrumental e não tanto um valor em si mesmo e um
elemento vital fundamental16. A este propósito, Bento XVI recorda-nos que o
mundo e o contexto atual exige «um aprofundamento crítico e axiológico da ca-
tegoria da relação. Trata-se de uma tarefa que não pode ser desempenhada só
pelas ciências sociais, mas requer a contribuição de ciências como a metafísica e
a teologia para ver lucidamente a dignidade transcendente do homem» (CV 53).
Aprofundar o sentido da categoria da relação, que é a base de cada encontro,
significa essencialmente passar da perspetiva do ‘ser-se-com’ ao ‘ser-se-entre’. De
facto, cada existir é mais do que um ‘ser-se-com’ - existimos sempre entre. Um
entre, que sendo fronteira, revela a identidade de uma pessoa no preciso momen-
to em que se encontra. Assim, a proposição entre descreve melhor os dinamismos
existenciais do ‘ser-se’ em permanente relação. O homem é um ‘ser-entre’: não
apenas numa antiga prespetiva grega em que o homem estava ‘entre’ os deuses e

13
 M. Buber, Eu e tu, Prior Velho 2014, 20.
14
  Cf. G. Bruni, «In principio la relazione», Trapani 2012, 71.
15
  Cf. U. Borghello, «Metafisica e relazionalità», Città del Vaticano 2012, 53.
16
  Maspero diz que alguns autores falam de ‘perda do paradigma relacional na sociedade pós-mo-
derna’. Cf. G. Maspero, «Ontologia trinitaria e sociologia relazionale», Città del Vaticano 2012, 120.
Contudo, se somos relação então essa identidade não se pode ‘perder’, quando muito pode ser mais
ou menos consciente. Talvez ‘hoje’ seja mais necessário ajudar a ‘des-cobrir’ essa relacionalidade que
nos habita. No entanto, este ‘hoje’ exigiria maior cuidado e aprofundamento – de que hoje falamos?

380
os animais, mas num sentido que está presente ‘entre’ um espaço (se existimos,
ocupamos um espaço concreto onde confinamos com outros ‘corpos’), um tempo
(cada presente acontece entre um antes e um depois), até ao sentido fundamental
da relação entre pessoas (‘ser-se-entre-outros’)17. Martin Buber deu particular
enfase a este entre como o lugar em que o ‘eu’ e o ‘tu’ se encontram. Um encontro
que não acontece nem no território do ‘eu’ nem no território do ‘tu’, mas num
lugar ‘entre’ (uma espécie de terra de ninguém e de todos ao mesmo tempo). Fora
deste ‘entre’ não se dá verdadeiro encontro, nem há verdadeira relação, porque
ou é uma abstração desincarnada ou um estéril confronto com o ‘eu’ ou com o
‘tu’. Assim, cada encontro revela um novo ‘confim’ e um novo ‘ser-se-entre’ capaz
de superar a instrumentalização do outro porque «a pessoa emerge ao entrar em
relação com outras pessoas»18.
Deste modo, cada encontro acontece sempre numa espécie de ‘ fronteira de
contacto’. Um confim ou uma fronteira que pode ser quer uma zona de ‘passa-
gem’, quer uma zona de ‘separação’. É aqui que emerge o mistério intrínseco a
cada relação. De facto, como sublinha Balthasar, o outro, mesmo se nós o fre-
quentamos todos os dias, permanece sempre um mistério, mais ou menos re-
velado, mas sempre um mistério19. Já Rahner dirá que o ‘homem é, em última
análise, um, ou melhor, o mistério’20. Este mistério que cada um de nós é, reforça
e alimenta o mistério que cada relação encerra. Por isso, no encontro, cada pessoa
é mais do que ela mesma e mais do que a junção de duas pessoas. ‘Des-cobri-
mos’ assim, progressivamente, a própria reciprocidade inerente a cada encontro.
Um ‘envolvimento’ que pode desencadear uma relação intersubjetiva de empatia
(como sentido positivo de aproximação que leva à transformação de ambos), ou
uma relação marcada pela indiferença (sentido negativo de afastamento que leva
à anulação de ambos).
De facto, muitas vezes, o outro afigura-se como apenas o ‘outro’, uma categoria
residual, uma espécie de objeto correlativo e funcional do ‘eu’, uma identidade se-
cundária e puramente externa. Neste contexto, mesmo quando se faz a apologia da
relação (que vem exaltada frequentemente em convénios, conferências e até homi-
lias), não significa que a nossa vida se tenha realmente libertado da ‘escravidão’ do
privado. Esta inconversão alimenta-se, numa espiral perversa, com o estado de ir-

17
  Cf. G. Salonia, «Il paradigma triadico della traità», Trapani 2012, 27-28.
18
 M. Buber, Eu e tu, Prior Velho 2014, 66.
19
  Cf. H.U. von Balthasar, La verità è sinfonica, Milano 19913, 25.
20
  Cf. K. Rahner, Chi è tuo fratello?, Cinisello Balsamo 2015, 94.

381
relação onde os outros são apenas presenças físicas à nossa volta. É aqui que, como
cristãos, precisamos de regressar ao evangelho, onde Jesus se apresenta a revelação
da plena identidade relacional humana, onde cada relação - com o Pai, com os ou-
tros, com a vida e consigo mesmo - vem vivificada pelo amor verdadeiro21.
Será, sobretudo, na primeira carta de S. João, que encontramos o sentido e
as consequências da relação revelada em Jesus: «não fomos nós que amámos a
Deus, mas foi Ele mesmo quem nos amou e enviou o seu Filho como vítima de
expiação pelos nossos pecados. «Caríssimos, se Deus nos amou assim, também
nós devemos amar-nos uns aos outros» (1Jo 4,10-11). Deste modo, na relação ‘ho-
mem-Deus’ percebemos que a iniciativa e o fundamento é o próprio Deus. Ele é o
ponto de partida. Deus enviou o seu Filho Jesus Cristo como a plenitude e o ‘sinal
visível e histórico’ dessa relação. Uma vez amados somos desafiados a partilhar
esse mesmo amor uns com os outros. Deste modo, é Ele quem toma a iniciativa
e, ao mesmo tempo, nele todo o encontro é primordial, ou seja, é primeiro e é
origem de todos os outros encontros.
Encontramos o sentido essencial desta afirmação no evangelho segundo João,
no contexto da Última Ceia, quando Jesus, depois de lavar os pés aos discípulos,
lhes pede: «que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei» (Jo 13,34b).
Aqui a referência do amor aos outros não é cada um de nós mas o amor de Deus
por nós, concretizado em Jesus22. Aqui o ‘como Jesus’ revela-se central. O modo
como Jesus nos amou é o critério e a referência do nosso amor pelos irmãos. Um
critério que se revela identitário da comunidade dos discípulos - «por isto é que
todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo
13,35). De facto, o evento cristológico diz não apenas o que Deus revelou de si
à humanidade mas, sobretudo, como o revelou. Um como que é uma referência
para todo o tempo23. Esta é a razão pela qual, para a teologia, importa ir ao encon-
tro deste ‘como Jesus’. Um ‘como Jesus’ que nos ajuda a entrar também no sentido
mais profundo da esperança que decorre da relação.

21
 Cf. R. Mancini, «La conversione alla relazione», Trapani 2012, 20. O conceito basilar de ‘revelação’,
pelo menos no âmbito judaico e cristão, implica necessariamente a ideia de relação. Na conotação
exclusivamente cristã fala-se de numa relação entre o divino e o humano. Cf. R. Penna, «Il principio
di relazione nella Bibbia», Città del Vaticano 2012, 339.
22
  Este horizonte ‘ultrapassa’ o sentido expresso noutras passagens, em que o amor ao outro parece
justificar-se exclusivamente no amor que temos a nós mesmos - a formulação é já do AT: «amarás o
teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19,18b), depois repetida frequentemente no NT: «Amarás o teu
próximo como a ti mesmo» (Mc 12,31a; Mt 22,39; Lc 10,27b; Rm 13,9b; Gl 5,14b).
23
  Cf. B. Maggioni, Il terreno della speranza, Milano 2012, 3.

382
Neste sentido somos permanentemente desafiados a reexaminar as nossas
próprias raízes e, sobretudo, a retomar o contacto com a experiência originária
e primordial – o ‘encontro’ com Jesus de Nazaré – rosto da Trindade24. Jesus de
Nazaré, para o cristão, é o ‘ícone da perfeita relação’ ou, por outras palavras,
‘incarnação do estilo de Deus’. Por isso, Jesus, enquanto ‘rosto’ do mistério tri-
nitário, torna-se a relação fundativa e o modelo das relações humanas25. Deste
modo, o cristianismo, como religião da esperança, surge da ‘incarnação’ de Deus
no mundo, fruto de um Deus que é originariamente relação na trindade26 - uma
‘tri-unidade’ que é, ao mesmo tempo, uma ‘uni-trindade’. Uma revelação que se
torna o coração mais essencial do cristianismo27. Esta compreensão dinâmica e
relacional, inscrita na Incarnação, numa perspetiva de cristologia existencial28,
exige sublinhar a própria dinâmica da relação intratrinitária29.
Contudo, esta analogia entre as relações que estabelecemos uns com os ou-
tros e a relação que Jesus estabeleceu com cada um dos que se encontrou tem
alguns riscos: por um lado, o eu humano de Jesus radica-se de modo indescritível
num modo de ser e de se exprimir do eu divino; e, por outro lado, a habitual es-
pontânea interpretação dos atos e dos gestos humanos de Jesus não é ‘admissível’
já que ele não tem uma ‘natureza’ como a ‘nossa’, ou seja, na sua ‘natureza’ tudo
é ‘graça’. Em Jesus Cristo, realidade in-finita, cada coisa é totalmente humana e
totalmente divina. Mas se é verdade que entre o humano e o divino existe uma
radical diferença, não é menos verdade que tal diferença não significa distância,
até porque esta distinção não é separação30. De facto, uma coisa é a personalidade
e a relacionalidade como se encontram em Deus Trindade e outra coisa é como
estas se realizam na pessoa humana31. Aqui podemos falar de dois elementos
teológicos que fazem ponte e aproximam estes aparentes ‘distantes’: primeiro,

24
 Giovanni Ancona sublinha precisamente que o desenvolvimento da escatologia orientou-se, nos
últimos anos, numa sólida fundação cristológica e trinitária. Uma perspetiva que conta na origem
com o pensamento de grandes teólogos como Y. Congar, J. Daniélou, H.U. von Balthasar e K. Rahner.
Cf. G. Ancona, «L’escatologia cristiana: lo stato attuale della ricerca», Lat. 75 (2009) 264.
25
  Cf. G. Bruni, «In principio la relazione», Trapani 2012, 74-75.
26
 Cf. O. González-Cardedal, Raiz de la esperanza, Salamanca 19962, 57-58.
27
  Cf. O. Clément, Un luogo per rinascere, Roma 2010, 91.
28
  Rahner sublinhará a necessidade de uma cristologia existencial que complete uma perspetiva onto-
lógica. Cf. K. Rahner, «Problemi della cristologia d’oggi», Roma 1967, 37-46.
29
  Sobre a relação no contexto da Trindade aconselhamos: X. Morales, Dieu en personnes, Paris
2015; V. Holzer, «Relations intratrinitaires et relations de l’homme à Dieu», Città del Vaticano 2012,
83-106.
30
  Cf. H.U. von Balthasar, La verità è sinfonica, Milano 19913, 26.
31
  Cf. M. Mantovani, «Persona e relazione, tra teologia e filosofia», Città del Vaticano 2012, 70.

383
fomos criados à imagem e semelhança de Deus; segundo, Cristo é verdadeiro
Deus e verdadeiro homem, ou seja, Jesus assume-se como a radical ponte entre o
humano e o divino, entre o céu e a terra32.
Neste sentido, podemos compreender melhor as palavras de Karl Rahner
quando diz que o amor ao próximo não é apenas querido pelo amor na relação
com Deus e consequência desse, mas antes, num certo modo, é a condição que o
precede. Entramos, assim, numa mútua reciprocidade dialética que encontra em
Deus o ponto de partida e o fundamento, mas encontra no amor ao próximo o
critério transcendental. Por isso o teólogo alemão conclui que, enquanto é amado
em e por Deus, o homem é amado no seu ser e no seu significado último; e en-
quanto se abre verdadeiramente ao amor ao próximo é-lhe dada a possibilidade
de sair de si mesmo para amar Deus. Ou seja, não há nenhum amor a Deus que
não seja já amor ao próximo, porque no amor ao próximo já está realmente pre-
sente o amor a Deus. Eis a razão pela qual só quem ama o próximo pode saber
quem verdadeiramente é Deus33. É este o sentido das palavras da primeira carta
de João: «Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e
todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele
que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor» (1Jo 4,7-8).

2. Jesus encontra-se pessoalmente com ‘todas’ as pessoas


A esperança cristã não pode ser outra coisa diferente da esperança que Jesus
dá. No entanto, para descobrir essa esperança que Jesus dá, temos de percorrer os
evangelhos e perceber o ‘como Jesus’ dá essa mesma esperança. É este caminho já
percorrido que nos permite agora não só sublinhar que a esperança acontece na
relação com ele como também que a esperança é fruto, sobretudo, de um encontro
individual. De facto, a esperança que Jesus dá começa sempre no encontro pessoal
com cada pessoa. Este ‘encontro’ não é uma imagem acabada, nem uma ‘frase
feita’. Para Jesus cada encontro é um caminho. Um caminho de acolhimento, de
escuta, de transformação. Por isso, o mais correto será dizer que a esperança que
Jesus dá começa no ‘encontro como caminho [ὁδός]’, ou melhor, como método
[μετά+ὁδός]. Este ‘método’ de Jesus revela que a salvação, que é para todos, co-

32
  É precisamente pela humanização de Deus que podemos falar da divinização do Homem. Uma
relação hermenêutica entre o divino e o humano que encontra em Jesus o fundamento e o critério.
Eis uma chave de leitura para o Sl 8: «5que é o homem para te lembrares dele, o filho do homem para
com ele te preocupares? 6Quase fizeste dele um ser divino; de glória e de honra o coroaste» (Sl 8,5-6).
33
  Cf. K. Rahner, Chi è tuo fratello?, Cinisello Balsamo 2015, 14-17.

384
meça no encontro pessoal. Por outras palavras, podemos dizer que Jesus não olha
tanto para a multidão mas procura encontrar-se com cada pessoa na sua realidade
e circunstância – mesmo quando essa pessoa se encontre no meio da multidão.
Como nos recordou o Papa Bento XVI na sua primeira encíclica: «no início
do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro
com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e,
desta forma, o rumo decisivo» (DCE 1). Por isso, se queremos falar da esperança
cristã temos de ‘voltar’ a Jesus de Nazaré. A pessoa, identificada pela história e
pela geografia, com quem cada um de nós se pode confrontar34. É o encontro
com esta pessoa concreta que é o fundamento de uma opção existencial cristã.
No início do cristianismo está um encontro e esse encontro ‘dá à vida um novo
horizonte’ – recria-nos. Este contexto dá sentido maior às palavras de Paulo à co-
munidade de Coríntio: «Por isso, se alguém está em Cristo, é uma nova criação.
O que era antigo passou; eis que surgiram coisas novas» (2Cor 5,17). Estar em
Cristo, deixar-se encontrar com ele, é transformador e renova em nós todas as
coisas – somos nova criação. Uma vida radicada noutra vida que faz surgir ‘coi-
sas novas’, em nós e na realidade que habitamos. Em cada um destes encontros
devemos recordar a profundidade do olhar de Jesus que olha o coração35. É essa
profundidade, presente em cada encontro, que oferece uma esperança capaz de
transformar radicalmente a vida de cada um. Jesus oferece uma esperança para
todos, sem exceção, e muitos dos seus contemporâneos encontram efetiva salva-
ção e cura. Para muitos é o início de uma ‘vida nova’36.
Estes encontros partem de uma atitude concreta, de uma compaixão divina.
Uma compaixão e um ‘sofrer-com-quem sofre’, que revela um Jesus a ‘tocar’ e a
deixar-se ‘tocar’ pela humanidade. De facto, «deixando-se tocar e tocando, Jesus
vive em con-tacto com pessoas e coisas, realizando, contra todos os preceitos e
preconceitos religiosos, a presença de um Deus que, de facto, não é insensível nem
intocável»37. Um Deus que ‘toca’ e se deixa ‘tocar’ é um Deus que caminha com a
humanidade e a eleva. Em todos os encontros podemos dizer que Jesus revela que
a compaixão e ‘a misericórdia é o primeiro atributo de Deus’38. Uma misericórdia
que nos permite entrar nos dinamismos mais profundos da esperança.
34
  Cf. C. Doglio, Imparare Cristo, Cinisello Balsamo 2014, 13.
35
  Já Deus tinha advertido Samuel no processo da escolha de David para futuro rei: «o homem vê as
aparências, mas o Senhor olha o coração» (1Sm 16,8c).
36
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 277.
37
  J.F. Correia, Entre-tanto, Prior Velho 2014, 164.
38
 Cf. Francesco, Il nome di Dio è misericordia, Città del Vaticano 2016, 75.

385
Ao longo destas páginas analisámos vários encontros: encontros de chama-
mento – onde Jesus revela o seu ‘modo’ de ‘fazer’ discípulos; encontros de conver-
são – onde Jesus desafia alguns a mudarem de vida e a deixarem-se transformar
pelo próprio encontro com ele; encontros de cura – onde Jesus revela claramente
a dimensão escatológica do reino capaz de tocar todas as realidades da pessoa (fí-
sica e espiritual), nestes encontros de cura vimos que alguns estavam associados
especificamente a exorcismos; encontros de ‘reanimação’ – onde os gestos e as
palavras de Jesus permitem que, aqueles que estavam mortos, pudessem retornar
à vida; e, por fim, encontros de aparição de Jesus ressuscitado39. Se analisarmos
em concreto cada um desses encontros, tendo por referências os 46 encontros que
identificámos no início do nosso trabalho, concluímos que há uma clara predo-
minância de encontros individuais.
Podemos identificar pelo menos 32 encontros individuais: chamamento de
Levi (Mc 2,13-17; Mt 9,9-13; Lc 5,27-32); cura do possesso de Cafarnaum (Mc
1,21-28; Lc 4,31-37); cura da sogra de Pedro (Mc 1,29-31; Mt 8,14-15; Lc 4,38-39);
cura de um paralítico (Mc 2,1-12; Mt 9,1-8; Lc 5,17-26); cura de um paralítico
junto à piscina (Jo 5,1-9); cura do homem que tinha uma mão paralisada (Mc 3,1-
6; Mt 12,9-14; Lc 6,6-11); diálogo com a pecadora arrependida (Lc 7,37-50); cura
de um possesso (Mc 5,1-20; Lc 8,26-39); reanimação da filha de Jairo (Mc 5,21-
24.35-43; Mt 9,18-19.23-26; Lc 8,40-42.49-56); cura da mulher com hemorragia
(Mc 5,25-34; Mt 9,20-22; Lc 8,43-48); cura de um cego (Mc 8,22-26; Jo 9,1-41);
cura de um jovem epilético (Mc 9,14-29; Mt 17,14-21; Lc 9,37-43); cura do cego
em Jericó (Mc 10,46-52; Lc 18,35-43); cura de um leproso (Mc 1,40-44; Mt 8,1-1;
Lc 5,12-14); diálogo com o homem rico (Mc 10,17-27; Mt 19,16-26; Lc 18,18-27);
diálogo com o doutor da lei (Lc 10, 25-28); cura do servo do centurião (Mt 8,5-13;
Lc 7,1-10; Jo 4,46-54); reanimação do filho único da viúva de Naim (Lc 7,11-16);
cura ao sábado de uma mulher curvada (Lc 13,10-17); cura ao sábado de um
homem hidrópico (Lc 14,1-6); cura de um possesso mudo (Mt 9,32-34; Lc 11,14-
15); cura de um surdo-mudo (Mc 7,31-37); encontro com a mulher que lhe unge
os pés (Mc 14,3-9; Mt 26,6-13; Jo 12,1-11); cura de uma filha possessa da mulher
cananeia ou siro-fenícia (Mc 7,24-30; Mt 15,21-28); encontro com Nicodemos (Jo

39
 René Latourelle, no contexto exclusivamente dos milagres, depois de ter referido a distinção clás-
sica (sobre pessoas – curas, exorcismos, ressurreições; sobre a natureza – mar, vento, pão, vinho e
peixes), propõe cinco tipos de encontros: exorcismos; curas; milagres de legitimação; milagres-dom e
milagres de salvação; narrações de ressurreição. Cf. R. Latourelle, Miracles de Jésus et théologie du
miracle, Paris 1986, 277-284.

386
3,1-21); encontro com a Samaritana (Jo 4,1-42); encontro com Zaqueu (Lc 19,1-
10); encontro com a mulher apanhada em adultério (Jo 8,1-11); diálogo com o
bom ladrão (Lc 23,33-43); aparição a Tomé (Jo 20,24-29); entrega da missão a
Pedro (Jo 21,15-23); aparição a Maria madalena (Mt 28,9-10; Jo 20,11-18).
Parece-nos claro que Jesus se encontrou pessoalmente com cada uma destas
pessoas referidas. No entanto, será que não poderemos dizer o mesmo quando,
para além destes encontros individuais, estava com outros ou se encontrava com
mais do que uma pessoa? Efetivamente, depois de relermos os evangelhos pode-
mos concluir, em certa medida, que Jesus se encontrou pessoalmente com ‘todas’
as pessoas. Podemos dizer que esse encontro pessoal continua mesmo quando
Jesus se encontra com duas pessoas (em pelo menos 9 ocasiões): quando chama
Pedro e André (Mc 1,16-18; Mt 4,18-20; Jo 1,40-42); quando chama Tiago e João
(Mc 1,19-20; Mt 4,21-22; Lc 5,10-11); quando chama Filipe e Natanael (Jo 1,43-51);
quando cura dois possessos (Mt 8,28-34); quando cura de dois cegos (Mt 9,27-31);
quando cura de dois cegos em Jericó (Mt 20,29-34); quando vai a casa de Marta
e de Maria (Lc 10,38-42); quando na cruz entrega João a Maria e vice-versa (Jo
19,26-27); quando aparece aos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35).
De igual modo, ainda que possa ser menos evidente, Jesus encontrou-se pes-
soalmente com cada uma das pessoas quando se encontrou com Marta, Maria e
Lázaro (Jo 12,1-3); quando curou os 10 leprosos (Lc 17,11-19); quando enviou 72
discípulos (Lc 10,1-11); quando falou aos seus concidadãos de Nazaré (Mc 6,1-6;
Mt 13,54-58; Lc 4,16-30); quando se encontra com as crianças (Mc 10,13-16; Mt
19,13-15; Lc 18,15-17); quando fez o milagre da multiplicação do pão e do peixe
perante 5 mil pessoas (Mc 6,34-44; Mt 14,13-21; Lc 9,10-17; Jo 6,1-15) ou perante
4 mil pessoas (Mc 8,1-10; Mt 15,32-39).
Por fim, importa sublinhar que em quase todos os encontros de Jesus é referi-
da a presença do grupo dos ‘Doze’ que o acompanhava e com quem tinha, depois,
‘encontros pessoais’ como quando acalmou a tempestade (Mc 4,35-41; Mt 8,23-
27; Lc 8,22-25), quando celebrou a última ceia (Jo 13,1-32), quando apareceu aos
discípulos (Mc 16,14-18; Mt 28,16-20; Lc 24,36-43; Jo 20,19-23) e quando, noutra
ocasião, voltou a aparecer aos discípulos (Jo 21,1-14).

387
3. A iniciativa primordial de Jesus revelada no chamamento dos discípulos
Todo o dinamismo respeitante ao modo ‘como Jesus’ se encontrou com cada
pessoa pode ser iluminado, desde logo, no modo ‘como Jesus’ chamou os seus
próprios discípulos. Estes primeiros encontros dizem muito das características
presentes noutros encontros. É óbvio que cada encontro terá a sua especificidade,
mas nestes encontros iniciais podemos identificar o estilo de Jesus. Um estilo de
chamar que revela, desde logo, a iniciativa primordial.
Neste sentido, o ministério de Jesus começa, no evangelho de Mc e de Mt,
precisamente, com o chamamento dos primeiros discípulos: primeiro os irmãos
Simão Pedro e André; depois os irmãos Tiago e João, filhos de Zebedeu (cf. Mc
1,16-20; Mt 4,18-22)40. Jo também coloca o chamamento dos discípulos no início
do ministério de Jesus, ainda que a narração seja diferente de Mc e Mt: outra geo-
grafia, outra sequência e outro conteúdo41. No entanto, Lc parece um pouco ‘em-
baraçado’ com o facto de os discípulos seguirem Jesus logo no primeiro contacto.
Por essa, ou por outra razão, será o único que começa a vida pública de Jesus de
outra forma: pela pregação de Jesus na sinagoga de Nazaré. Aqui Jesus começa a
sua ação na Galileia, onde ensinou nas sinagogas com autoridade (Lc 4,32), curou
a sogra de Simão Pedro (Lc 4,38-39); libertou pessoas de ‘espíritos malignos’ (Lc
4,36.41) e curou outros doentes com outras enfermidades (Lc 4,40). Depois disto,
vai para junto do lago de Genesaré e viu dois barcos (onde estavam Simão Pedro,
Tiago e João), sugere que eles, depois de uma noite sem terem apanhado nenhum
peixe, lancem novamente a rede. Dá-se a ‘pesca milagrosa’ e só depois disso eles
‘deixaram tudo e seguiram Jesus’ (Lc 5,1-11)42. Com efeito, mesmo considerando

40
  A existência de um grupo de discípulos à volta de Jesus dificilmente pode ser negada. A ‘presença’
da palavra ‘discípulo’ [μαθητής (singular) ou ματηταί (plural)] é muito grande em todos os evange-
lhos: 42 vezes em Mc, 72 em Mt, 37 em Lc e 78 em Jo. Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, III, New York
2001, 41.
41
  O que faz supor que existisse outra tradição sobre o chamamento dos primeiros discípulos. Cf. X.
Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988, 191. Aqui, no quarto evangelho,
Jesus chama primeiro os irmãos André e Simão Pedro e, no dia seguinte, Filipe e Natanael. Raymond
Brown diz que se pode tentar harmonizar esta narrativa de Jo com as narrativas dos sinóticos, dizen-
do que Jesus primeiro chamou os discípulos, como conta Jo, mas que sucessivamente esses voltaram à
sua vida normal e aos seus trabalhos quotidianos na Galileia, onde Jesus, posteriormente os teria ido
chamar para o seu serviço, como contam os sinóticos. Contudo, apesar desta harmonização poder ter
alguma probabilidade, nas narrações dos sinóticos não há nenhuma indicação de que os discípulos já
conhecessem Jesus. Cf. R. Brown, The Gospel According to John (I-XII), I, New York 1966, 77.
42
  A seguir a estes primeiros chamamentos, os evangelhos falam especificamente do chamamento de
Levi: «Ao passar, viu Levi, filho de Alfeu, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: ‘Segue-me’. E,
levantando-se, ele seguiu Jesus» (Mc 2,14). Ver ainda paralelos em Mt 9,9 e Lc 5,27-28.

388
este relato de Lc, no início de cada evangelho está um chamamento decisivo. Sem
esse chamamento não teríamos nenhum evangelho, nem nenhuma Igreja. Não
é uma relação abstrata, não é um conceito intelectual, não é uma decisão pura-
mente interior – é um acontecimento real e concreto que muda a vida daqueles
homens. Trata-se de ‘seguir’ Jesus, ‘caminhar com ele’ e deixar tudo para trás
para o seguir, para aderir totalmente a ele43.
Qual é a novidade e a especificidade do chamamento de Jesus? Na verda-
de, durante o período greco-romano, muitas figuras da filosofia e da religião,
reuniram também à sua volta pessoas que podiam ser classificadas de ‘seguido-
res’, ‘adeptos’, ‘estudantes’ ou ‘discípulos’. Foi assim que se iniciou a formação de
diferentes correntes intelectuais e tradições religiosas que passavam de geração
em geração, como os pitagóricos, os platónicos, os aristotélicos, os epicuros, os
estóicos, a ‘escola de Qumran’, a ‘casa de Hillel’ e a ‘escola’ de Filão44. Por vezes,
quer na cultura grega, quer na cultura judaica, os discípulos ficavam e viviam
com os seus mestres. Apesar de alguns mestres, algumas vezes, viajarem com os
seus discípulos ou ensinarem em espaços públicos, o mais comum era os mestres
ensinarem nas escolas ou, mais frequentemente, nas suas casas45.
No entanto, os encontros de chamamento revelam o quanto o chamamento
de Jesus é profundamente ‘original’, ao distinguir-se do modelo de então que
configurava a relação entre o ‘discípulo e o mestre’46. Assinalemos as principais
diferenças: (1) no contexto da época era o ‘discípulo’ que escolhia o seu pró-
prio mestre e não o contrário, como acontece com Jesus – ele próprio afirma no
evangelho «Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi a vós» (Jo
15,16ab); (2) no contexto rabínico, os discípulos escolhiam o mestre para apren-
derem a Tôrah, numa perspetiva mais religiosa, já Jesus convida os discípulos
para serem como ele – ‘pescador de homens’, para irem ao encontro dos que ne-
cessitam de ser ‘resgatados’ – foi ele que disse, depois do chamamento de Levi,
«Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os enfermos. Eu
não vim chamar os justos, mas os pecadores» (Mc 9,17); (3) aos discípulos era

43
  Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 90-91. A este propósito, John Meier chama a atenção
para a necessidade de aprofundar o ‘conceito’ de discípulo - não podemos ficar satisfeitos se dissermos
que significa ‘seguidor’ à imagem de estudante. Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, III, New York 2001, 40.
44
  Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, III, New York 2001, 47.
45
  Cf. C. Keener, The Gospel of John, I, Massachusetts 2003, 470.
46
  Sobre o modo novo como ‘ensina’ e como é ‘mestre’ aconselhamos: Cf. C. Doglio, Imparare Cristo,
Cinisello Balsamo 2014, 75-85. Nestas páginas o autor defende que a novidade não está apenas no
conteúdo da mensagem mas sobretudo pelo modo como esse conteúdo é anunciado.

389
continuamente incutido que deviam ‘servir’ o seu mestre, como um servo ou
mesmo um escravo, Jesus apresenta-se aos seus discípulos como aquele que serve
- «o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida
em resgate por todos» (Mc 10,45); (4) para os rabinos era de importância decisiva
a ininterrupta transmissão da tradição doutrinal e da interpretação da Tôrah, o
que pressupunha um sistema didático bem organizado, um determinado edifí-
cio e outros meios, no caso de Jesus não existia esse ‘sistema didático’ ao estilo
rabínico, existe apenas um ‘caminho’ onde surgem sempre novas situações - um
discipulado exercitado nos acontecimentos quotidianos.
Os discípulos, no contexto rabínico, têm de aprender a Tôrah de memória e
precisam de estudar as interpretações que deram os grandes doutores, para de-
pois procurarem observar a Lei até ao ínfimo pormenor na vida quotidiana. Ora
os discípulos de Jesus aprendem ‘seguindo-o’. Também aprendem a Tôrah, como
mostra o ‘sermão da montanha’, que propõe algumas ‘regras interpretativas’ para
a justa compreensão da Lei e dá exemplos concretos para a vivência da mesma.
Contudo, a Tôrah tem em Jesus um valor diferente: é transformada na mensagem
da vinda do reino de Deus47.
As condições enunciadas por Jesus para ser discípulo são muito exigentes: «Se
alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e
siga-me. Pois, quem quiser salvar a sua vida há de perdê-la; mas, quem perder a sua
vida por minha causa há de salvá-la» (Lc 9,23-24). Trata-se de renunciar a conduzir
a sua vida como se quer, trata-se de não ser o dono de si mesmo mas permanecer
totalmente dependente daquele em quem se confia48. Dentro do anúncio escatoló-
gico de Jesus, o sentido desta frase ultrapassa o horizonte estritamente ‘terreno’ e
fala de uma entrega que exige o esforço quotidiano de tomar a ‘sua’ cruz em todas
as circunstâncias, uma vida que se entrega em ordem ao reino de Deus. Edward
Schillebeeckx diz que este ‘tome a sua cruz’ tem um sentido metafórico profundo,
já que se trata de um convite a estar disposto a dar a própria vida por causa de Deus
- prontos para o martírio49. Assim, nesse assumir da própria cruz, cada discípulos
percebe que a vida ‘ganha-se’ quando é entrega, isto é, quando se ‘perde’.
Neste contexto, John Meier concretiza estas exigências dizendo que seguir

47
  Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 92-95. Ver também do mesmo autor: G. Lohfink,
Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 51-56.
48
  Cf. J.-N. Aletti, Le Jésus de Luc, Paris 2010, 130. Sobre o sentido desta passagem bíblica aconselha-
mos especialmente: J.P. Meier, A marginal Jew, III, New York 2001, 56-67.
49
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 232-233.

390
Jesus como discípulo significava deixar para trás casa, família e a segurança de-
corrente da profissão. Não se podia seguir Jesus simplesmente permanecendo
em casa dedicado aos estudos nem indo à ‘escola’ para o escutar. Trata-se de um
‘ministério’ itinerante e permanente de ‘seguir’ Jesus50. As exigências enunciadas
por Jesus para ser discípulo não se esgotam aqui. Em Lc, quando envia os ‘doze’
para anunciar o reino, diz-lhes: «Nada leveis para o caminho: nem cajado, nem
alforge, nem pão, nem dinheiro; nem tenhais duas túnicas» (Lc 9,3). Em Mc ele
já tinha dito aos seus discípulos «Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vos-
so servo e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos» (Mc
10,43-44). Tudo isto que Jesus ‘exige’ aos que chama ele mesmo o faz. Por isso, ser
discípulo é seguir Jesus, é aprender dele, é assumir as suas atitudes. Um tornar-se
discípulo para depois poder levar a outros o mesmo desafio. Nesse sentido, no
fim do evangelho de Mt, Jesus diz aos que o acompanharam: «Ide, pois, fazei dis-
cípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo» (Mt 28,19).

4. As curas e os exorcismos como resultado ‘visível’ do encontro primordial


Nos vários encontros que Jesus teve alguns tornam ‘visível’ a sua ação. São
encontros que libertam de tudo o que ‘prende’ e ‘des-humaniza’, de tudo o que
impede a comunhão, de tudo o que impede que cada um seja ele mesmo na rela-
ção. Esses encontros podem ser designados genericamente de ‘curas’. Apesar de
a maior parte das curas serem presenciais, temos também algumas curas que se
realizam à distância: a filha da mulher siro-fenícia (Mc 7,24-30); a cura do servo
do centurião (Mt 8,5-13 e Lc 7,1-10); e a cura do filho do funcionário real (Jo 4,46-
54)51. Sendo presencialmente ou à distância, o fenómeno das curas é um elemento

50
  Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, III, New York 2001, 54-55. Dietrich Rusam sublinha que só Lc refere
a necessidade de deixar também a ‘mulher’ (cf. 14,26; 18,29-30). Cf. D. Rusam, «Il Vangelo di Luca»,
Brescia 2012, 244. Lc 14,26: «Se alguém vem ter comigo e não me tem mais amor que ao seu pai, à sua
mãe, à sua esposa, aos seus filhos, aos seus irmãos, às suas irmãs e até à própria vida, não pode ser
meu discípulo». BS.
51
  Nestes três casos podemos sublinhar que: (1) o que pede a cura intercede por um membro da famí-
lia que não está presente; (2) o coração da narrativa é constituído por um diálogo que revela alguma
dificuldade por parte de Jesus; (3) o que pede a cura pronuncia uma palavra ou frase que exprime a
confiança na promessa feita por Jesus; (4) e o narrador confirma sempre que a cura aconteceu, como
Jesus tinha anunciado. Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 43. Estas
curas à distância estão todas relacionadas com ‘pagãos’ e é uma consequência do facto de os judeus
não entrarem na casa dos pagãos, como dá a entender o centurião filo-judeu: «Senhor, eu não sou
digno de que entres debaixo do meu teto» (Mt 8,8a). Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 187.

391
central nos evangelhos. Um elemento que mantém essa centralidade ao longo
do NT e no cristianismo primitivo52. Estas ações extraordinárias, como curar
doentes e exorcizar endemoniados, foram consideradas, por Jesus ou por outras
pessoas, como milagres53.
Todos estes milagres de cura (consideramos os exorcismos como um tipo es-
pecífico de cura) devem ser analisados dentro da cosmovisão ‘médica’ da época.
Nessa cosmovisão há uma tensão entre a cosmovisão grega, presente na tradi-
ção grego-romana, e a cosmovisão judaica, presente na tradição cristã54. Neste
percurso temos que começar por referir duas grandes figuras de médicos que
deixaram uma marca inapagável na história da medicina no mundo ocidental:
Hipócrates (460-350 a.C.) e Galeno (130-200 d.C.). O intervalo das suas vidas
estabelece todo o período greco-romano. Hipócrates foi uma figura importante
do período clássico da filosofia grega, como atesta Aristóteles nas suas múltiplas
referências, onde o designou como o ‘grande médico’. Já Galeno apresenta-se a si
mesmo como o restaurador da tradição hipocrática e surge, no seu tempo, como
a figura dominante no âmbito da medicina, tendo tido, por isso mesmo, uma
grande influência na história da medicina55.
Neste itinerário temos também de referir o culto ao deus Asclépio (ou Escu-
lápio). Asclépio é o deus que vem em auxílio dos doentes que recorrem aos seus
santuários para se curarem das suas doenças. Sendo visto também como proge-
nitor de um clã hereditário de médicos, conhecidos como asclépios. Deste modo,
Asclépio torna-se, ao mesmo tempo, o deus dos médicos e deus dos doentes56.
Este culto revelava uma relação entre a intervenção direta dos deuses e a ação
médica. Ou seja, Asclépio atuava através da ciência médica da época. Neste con-
texto, voltamos a referir a figura de Galeno, funcionário do templo de Asclépio,
que resume bem esta dupla interação – o deus Asclépio não só o guia na sua vida

52
 Cf. H.C. Kee, Medicine, Miracle and Magic in New Testament Times, Cambridge 1986, 124.
53
  Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, II, New York 1994, 646.
54
 Cf. J.C. Alby, «Milagros de curación en la tradición médica tardo-antigua», TV 56 (2015) 221. Entre
os filósofos do mundo grego, muitos aparecem na tradição com características de taumaturgos, como
Pitágoras, Empédocles e Apolónio de Tiana. A estes filósofos são atribuídas ‘reanimações’, curas e
exorcismos. Contudo, a ausência do conceito de história da salvação no pensamento grego não permi-
te que estes ‘milagres’ sejam considerados como sinais de salvação escatológica. Cf. R. Latourelle,
Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 50-51.
55
 Cf. H.C. Kee, Medicine, Miracle and Magic in New Testament Times, Cambridge 1986, 3. Este tema
da medicina no contexto grego e no contexto romano encontra-se mais desenvolvido da pág. 27 à pág.
66.
56
  Ibidem, 27.

392
pessoal, como na sua vida profissional. Este culto começa em Trica da Tessália,
estendendo-se posteriormente por toda a Grécia central e Peloponeso. O centro
deste culto era Epidauro, não muito longe de Corinto, mas há muitas referências
a outros locais, como Pérgamo57.
Tratando-se do deus da medicina, a literatura ligada ao santuário de Epidau-
ro relata sobretudo curas: cegos, mudos, surdos, paralíticos, hidrópicos… É de
assinalar, no entanto, que não se conhece nenhum registo de casos de lepra e há
apenas um caso de epilepsia. O esquema narrativo revela algumas semelhanças
com os relatos evangélicos e começa sempre por apresentar a personagem e a
sua doença. Cada cura é introduzida pela fórmula: «dormiu no santuário, teve
um sonho…». Durante o sonho o doente acredita ter experimentado alguma in-
tervenção divina. Deste modo, estas curas conservam uma grande ambiguidade
entre a ação médica e a dimensão milagrosa. As técnicas curativas passam, so-
bretudo, pela imposição das mãos, saliva, pomadas para as feridas, gotas para os
olhos, ligaduras, dietas e ‘intervenções cirúrgicas’58. Por tudo isto, naquela época,
a medicina, o milagre e a magia tocam-se e, muitas vezes, andavam ‘misturadas’,
ainda que se possam fazer algumas distinções de princípio59.
Entre o séc. II a.C. e o I da nossa era começa uma mudança tanto na conce-
ção de doença como na valorização do médico. No AT a doença era entendida
como fruto do pecado (cf. Gn 20,18)60 e a imagem do médico (com exceção de Gn
57
 Cf. J.C. Alby, «Milagros de curación en la tradición médica tardo-antigua», TV 56 (2015) 223-224.
Ver ainda: G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 164; I. Sibaldi, I miracoli di Gesù, Milano 1989,
65-67. Este culto a Asclépio chega a Roma, pelo menos, no início do III séc. a.C. A cidade tinha sido
atingida por uma epidemia e foram consultados os ‘oráculos’ que sugeriram trasladar a imagem de
Asclépio do santuário de Epidauro para a ilha Tiberina, em Roma. Curiosamente, ainda hoje ainda
existe um famoso hospital naquele lugar, mantendo-se assim uma certa ‘continuidade’, meramente
‘geográfica’, entre a medicina e os aspetos ‘religioso-técnicos’ da atividade de cura do deus grego. Cf.
H.C. Kee, Medicine, Miracle and Magic in New Testament Times, Cambridge 1986, 34.
58
  Cf. J. González-Faus, Clamor del Reino, Salamanca 1982, 84-88.
59
  Howard Clark Kee sugere a seguinte distinção: a medicina é o método de diagnóstico e terapia das
doenças humanas baseada na combinação entre a teoria e a observação do corpo; o milagre implica o
apelo dos deuses para obter a cura, seja diretamente, seja através de um intermediário; a magia é uma
técnica, baseada sobre palavras e ações, através das quais se atinge um determinado objetivo que pode
procurar a solução ou o mal do inimigo que supostamente causou o problema. Cf. H.C. Kee, Medi-
cine, Miracle and Magic in New Testament Times, Cambridge 1986, 3-4. Para aprofundar a distinção
entre milagre e magia aconselhamos: R. Horsley, Jesus and Magic: Freeing the Gospel Stories from
Modern Misconceptions, Eugene 2014.
60
  Aqui estabelece-se uma relação de causa-efeito entre o pecado e uma doença (esterilidade). As mu-
lheres da casa de Abimélec tinham ficado estéreis porque este tinha tomado Sara, mulher de Abraão,
como concubina, apesar de não saber que ela era casada. Diz o texto em Gn 20,17-18: «17Abraão in-
tercedeu junto de Deus e Deus curou Abimélec, sua mulher e as suas servas, e tiveram novamente

393
50,1-3)61, era apresentada sobretudo com conotações pejorativas. Acudir ao mé-
dico, em vez de Yhwh, era suficiente para que se agravasse o estado de doença62.
A ‘mudança’ nesta perspetiva é evidente em Eclo 38,1-963. Aqui o médico não
vem representado como adversário de Deus e as suas capacidades são exaltadas.
Como podemos explicar esta mudança? A explicação mais plausível recorda que
o judaísmo, no período helenístico, já tinha influências da tradição médica gre-
ga64. No entanto, mesmo quando considera a importância do médico, a tradição
judaica atribuem a Deus a ‘soberania’ sobre a natureza – é Deus que ‘cura’65. É
neste contexto que podemos compreender os ‘anjos’ como enviados de Deus para
curar, como no caso da cegueira do pai de Tobias, curada pela intervenção do
anjo ‘Rafael’, que quer dizer ‘Deus cura’66. No tempo de Jesus essa visão positiva
do médico aparece de forma mais evidente quando ele usa a imagem: «Não são os
que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes» (Mt 9,12b)67.
No nosso mundo contemporâneo concebemos a doença como uma disfun-
ção do organismo que pode ser curada com uma terapia biomédica adequada, a
partir de um diagnóstico correto e com os meios técnicos necessários. Na cultura
mediterrânea do primeiro século, por razões óbvias, quase tudo estava centrado
na pessoa e no seu ambiente social. Deste modo, as doenças não eram tanto uma

filhos, 18porque o Senhor tinha ferido de esterilidade todas as mulheres da casa de Abimélec, por
causa de Sara, mulher de Abraão». BS.
61
  Gn 50,1-3: «1José precipitou-se sobre o rosto de seu pai e cobriu-o de lágrimas e de beijos. 2Ordenou
aos médicos, seus servidores, que embalsamassem seu pai; e os médicos embalsamaram Israel, 3em-
pregando nisso, quarenta dias, que são os dias precisos para o embalsamamento. Mas os egípcios
puseram luto durante setenta dias». BS.
62
  No livro das Crónicas podemos deduzir essa perspetiva - 2 Cr 16,12-13: «12No trigésimo nono ano do
seu reinado, Asa adoeceu gravemente dos pés. Durante a sua doença, não procurou o Senhor, mas os
médicos. 13Asa adormeceu com os seus pais e morreu no quadragésimo primeiro ano de reinado». BS.
63
  É interessante reler a descrição do livro de Ben-Sirá ou Eclesiástico – Eclo 38,1-9: «1Honra o médi-
co, pois podes precisar dele, e porque foi o Altíssimo quem o criou. 2Pois é do Altíssimo que provém
a cura, como do rei se recebe um presente. 3A ciência do médico eleva-o em honra, e é admirado na
presença dos poderosos. 4O Senhor produziu da terra os medicamentos; o homem sensato não os
desprezará. 5Acaso, não foi por meio de um lenho que se tornou doce a água salobra, manifestando
assim a sua virtude? 6O Altíssimo deu a ciência aos homens, para ser honrado nas suas maravilhas.
7
Por elas, o médico cura e aplaca a dor e com elas o farmacêutico faz misturas. 8E assim, as obras do
Senhor não têm fim, e, por Ele, o bem-estar espalha-se sobre a terra. 9Meu filho, se estiveres doente,
não te descuides de ti mesmo, mas reza ao Senhor, e Ele te curará». BS.
64
 Cf. H.C. Kee, Medicine, Miracle and Magic in New Testament Times, Cambridge 1986, 19-20.
65
  Ver outros exemplos no AT como: Ex 15,26; Dt 32,39; Jr 3,22; 17,14; Is 19,22.
66
 Cf. J.C. Alby, «Milagros de curación en la tradición médica tardo-antigua», TV 56 (2015) 227-228.
67
  Na Carta aos Colossenses também se fala de Lucas como «o caríssimo médico» (Cl 4,14), ainda que
não seja tanto uma referência específica à sua capacidade técnica e terapêutica.

394
questão biomédica mas essencialmente uma questão social, atribuída a causas
sociais e não tanto físicas. Neste contexto, porque o pecado supõe sempre uma
rutura nas relações interpessoais, pecado e doença habitualmente ‘andavam jun-
tos’68. Por exemplo, a cegueira era vista como o resultado do castigo divino a uma
falta cometida por um indivíduo ou pelos seus antepassados – essa falta poderia
consistir na contemplação de algo indevido69. É por isso que numa cultura que
atribui ao demónio a origem de muitas doenças, não é possível uma distinção
clara entre exorcismo e cura70. Nessa época, nomeadamente entre o II séc. a.C. e
o I d.C., a doença e a cura são vistas, em bastante circunstâncias, como atividade
do demónio e capacidade para o dominar, respetivamente71.
Se um doente estava perturbado na sua identidade ou não tinha mais contro-
lo de si mesmo, pensava-se, com demasiada ligeireza, que estaria possuído por
um demónio72. Estabelecia-se assim uma relação entre ‘demónios’ e doença. A
estas pessoas ‘possessas’ acreditava-se que podiam ser libertadas com ajuda de
um exorcismo73. Esta perspetiva não deixa de causar alguma estranheza à men-
talidade contemporânea74. No entanto, à época, esta ideia de ‘estar possesso’ ou a

68
 Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 18-19. Neste sentido, muitas
doenças só podiam ser curadas juntamente com a cura do próprio ambiente do doente. A doença de
uma pessoa era frequentemente entendida como a manifestação de uma ferida da sociedade doente.
Esta relação entre doença e ambiente aparece sobretudo nos fenómenos de possessão. Cf. G. Lohfink,
Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 117.
69
 Cf. J.C. Alby, «Milagros de curación en la tradición médica tardo-antigua», TV 56 (2015) 231.
70
  Cf. G. Pagano, I miracoli di Gesù, Milano 2008, 48. Gerhard Lohfink reforça esta mesma ideia
quando diz: «Le guarigioni e gli esorcismi non possono affatto essere nettamente separati fra di loro.
Nel giudaismo e in generale nell’antichità si facevano risalire a influssi demoniaci anche malattie ‘nor-
mali’». Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 166. Para além da bibliografia que seguimos
de perto, aconselhamos: C.S. Pero, Liberation from Empire. Demonic Possession and Exorcism in the
Gospel of Mark, New York 2013; H. Kelly, «Varieties of Exorcism in the Bible and the Church», StBS
7 (2015) 75-87.
71
 Cf. H.C. Kee, Medicine, Miracle and Magic in New Testament Times, Cambridge 1986, 21.
72
  Importa dizer que no quarto evangelho, ao contrário do que acontece nos sinóticos, não há nenhuma
cura realizada por Jesus com endemoniados. Em Jo o diabo é imagem de incredulidade e de mentira:
«Vós tendes por pai o diabo, e quereis realizar os desejos do vosso pai. Ele foi assassino desde o princípio,
e não esteve pela verdade, porque nele não há verdade. Quando fala mentira, fala do que lhe é próprio,
porque é mentiroso e pai da mentira» (Jo 8,44). Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 393.
73
 Igor Sibaldi diz que seria melhor não usar o termo ‘exorcismo’ por dois motivos: por um lado, é um
termo que não aprece nos evangelhos; e, por outro, o exorcismo é um ‘ritual’ – e Jesus não recorre a
nenhum ritual particular para expulsar os demónios. Segundo este mesmo autor trata-se, no léxico
mágico-médico da época, de uma ἀποπομπή, ou seja, de uma simples ‘expulsão’ de espíritos impuros
de um possesso. Cf. I. Sibaldi, I miracoli di Gesù, Milano 1989, 16. O substantivo ἀποπομπή quer di-
zer ‘ação de repelir’ (um mal ou uma peste). Cf. I. Pereira, «Ἀποπομπή», in DGPPG, Braga 19907, 74.
74
  Neste sentido, John Meier alerta para o facto de, na mentalidade ocidental atual, a palavra ‘exor-

395
própria ideia do ‘demónio’, do ponto de vista psicológico-humano, traduz, numa
imagem simbólica forte, a existência do ‘poder do mal’ no mundo e em cada
uma das pessoas. Daí que seja necessário libertar-se. Mas libertar-se de quê? Do
pecado, da culpa, das angústias, dos medos (especialmente do medo da morte).
Neste sentido, o exorcismo seria uma ‘re-criação’, um ‘restabelecimento’ de todas
as coisas para que a vida seja vida na glória, na alegria e na felicidade75.
Rudolf Bultmann, de forma sempre muito crítica, insiste que as doenças e as
curas têm causas naturais e não dependem da ação dos demónios ou dos exor-
cismos que se fazem76. É óbvio que hoje, com todos os conhecimentos entretanto
adquiridos, temos de nos interrogar – sem ignorar o ponto de vista clínico, psi-
cológico e socio-afetivo, qual a base dos fenómenos de obsessão. Alguns autores
consideram os exorcismos como uma espécie de ‘psicoterapia’ pré-científica, fre-
quentemente coroada com sucesso. Em todo o caso, Jesus possui uma capacidade
extraordinária de levar luz a estas situações e de assumir seriamente cada situa-
ção na linguagem própria da época e, sobretudo, de curar essas pessoas doentes77.
Nestes encontros Jesus apresenta-se como uma presença capaz de levar a espe-
rança a cada pessoa e de dar um tempo novo a cada situação. Uma dimensão que
revela uma personalidade e uma ação que não se esgota na cura ou no exorcismo
mas manifesta um horizonte escatológico presente em cada encontro. O ‘próprio’

cismo’ estar muito associada a determinados filmes de terror, o que condiciona bastante a perceção
do seu sentido próprio. Para além disso, o abismo cultural existente entre o séc. I e os nossos dias é
particularmente profundo no que se refere a este tema. A ideia de que os maus espíritos são capazes
não só de atormentar pessoas desde fora delas (obsessão demoníaca), mas também entrar e instalar-se
nos seus corpos (possessão demoníaca) era muito comum nas culturas antigas – como nas regiões
da Suméria, Acádia, Babilónia, Assíria e Egito. Pelo contrário, tais crenças e ritos estão praticamente
ausentes do AT, com exceção de um mau espírito que atormenta o rei Saúl (1Sam 16,14-23; 18,10-11;
19,9-10). No entanto, é muito difícil saber o que os israelitas, muito dados a práticas sincretistas, já
antes do exílio, pensavam ou faziam em relação aos exorcismos. Na literatura pós-exílica, a atividade
demoníaca começa a ocupar um lugar de mais destaque graças a um documento deuterocanónico, o
livro de Tobias (Tb 6,7-8.16-18; 8,3). Outra literatura da época revela que a crença na possessão demo-
níaca e a eficácia do exorcismo não era exclusiva do judaísmo. Estas mesmas ideias estavam presentes
nas religiões pagãs e no cristianismo e, sob a influência do Império Romano, facilmente se divulgam
juntamente com o sincretismo e a magia. O próprio evangelho testemunha que era natural e normal
realizar exorcismos, não só Jesus, mas também os seus discípulos (Mc 6,7; Mt 10,1-7; Lc 9,1; Mc 9,38-
40). De facto, os exorcismos constituem um dos tipos de cura mais frequentes registadas nos sinóticos
(não encontramos nenhum relato de exorcismo no quarto evangelho). Assim, por muito desconcer-
tante que possa parecer para a mentalidade moderna, Jesus foi, entre outras coisas, um exorcista judeu
do primeiro século. Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, II, New York 1994, 404-406.
75
  Cf. E. Schillebeeckx, Il Cristo, Brescia 1980, 590 e 597-598.
76
 Cf. R. Bultmann, Nuovo Testamento e mitologia, Brescia 19734, 109.
77
  Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 179-180.

396
Jesus disse: «se Eu expulso os demónios pela mão de Deus, então o Reino de Deus
já chegou até vós» (Lc 11,20).
Neste sentido, importa referir que Jesus não ensinou nada de novo em ma-
téria de demonologia – ele falou a linguagem do seu tempo. A partir dos relatos
evangélicos, ficamos a saber que em cada um desses exorcismos se prolonga o
confronto entre ele e o maligno, como no episódio das três tentações de Jesus
(no início do evangelho) e na agonia (no fim do evangelho). A sua vitória mos-
tra que o reino de Deus já está presente no meio dos homens. Daí que entre os
exorcismos e o reino haja uma relação absoluta e intrínseca. Como diz Jo na sua
primeira carta: «Para isto se manifestou o Filho de Deus: para destruir as obras
do diabo» (1Jo 3,8b)78.
Por tudo isto, hoje é unânime, entre os teólogos, reconhecer que o sentido
originário das curas e dos exorcismos de Jesus se compreende na relação com
o anúncio do Reino como realidade salvífica que se vai manifestando. Esta di-
mensão escatológica torna-se também cristológica e soteriológica na medida em
que estes sinais ‘visíveis’ revelam não só a vinda do Reino mas também a iden-
tidade de Jesus e a salvação que ele dá a cada homem e a cada mulher. O simbo-
lismo – espiritual, eclesiológico, sacramental – bem claro já nos sinóticos e no
quarto evangelho, posteriormente desenvolvido pela interpretação cristã, não
faz mais do que explicitar uma dimensão presente desde o início79. As curas e
os exorcismos realizados por Jesus são sinais de Deus, sobretudo, sinais da pre-
sença germinal do reino de Deus entre os homens. Uma dimensão escatológica
que inaugura um novo tempo80.

78
 Cf. R. Latourelle, Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 279-280.
79
  Cf. V. Fusco, «La guarigione del cieco Bartimeo», Torino 20082, 377. «The role of Jesus as healer was
by no means na accommodation of na itinerant preacher – prophet to Hellenistic culture, but was in
direct continuity with the Old Testement prophetic understanding of what God was going to do in the
New Age, for the salvation of his people and for the healing of the nations». Cf. H.C. Kee, Medicine,
Miracle and Magic in New Testament Times, Cambridge 1986, 125.Ver ainda: Cf. R. Latourelle,
Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 280-281.
80
  Neste sentido, Jürgen Moltmann afirma que os ‘milagres’ só existem num mundo ainda não to-
talmente transformado porque, quando o reino de Deus se tornar potente no presente, as curas e as
expulsões dos demónios não serão mais milagres mas coisas óbvias. O reino de Deus vivente é saúde
e plenitude de vida. Cf. J. Moltmann, Etica della speranza, Brescia 2011, 74.

397
Nestes encontros de cura e de exorcismo, muitas vezes Jesus desafia os ri-
tuais judaicos e as suas leis81. De facto, esperava-se que Jesus respeitasse o siste-
ma da pureza e da impureza, vigente na cultura e na religião judaica, e que, por
isso, evitasse o contacto com as coisas ou com as pessoas impuras82. Contudo,
nos evangelhos e especialmente em Mc, Jesus opõe-se abertamente ao sistema
de pureza e impureza 83. Na verdade, Jesus não ‘respeitou’ várias ‘leis’84, como a
de não curar ninguém ao sábado (cf. Mc 3,1-6)85; nem os lugares, como quan-

81
 Cf. J.C. Alby, «Milagros de curación en la tradición médica tardo-antigua», TV 56 (2015) 229. To-
das as curas e exorcismos surgem no contexto de controvérsia e, por isso, são consideradas, por alguns
teólogos, como ‘milagres de legitimação’, ou seja, constituem uma justificação do comportamento de
Jesus e, ao mesmo tempo, são uma crítica a uma certa mentalidade farisaica, incapaz de ultrapassar
uma ‘interpretação à letra’ das prescrições jurídicas. Cf. R. Latourelle, Miracles de Jésus et théologie
du miracle, Paris 1986, 281-282.
82
  Sobre a relação de Jesus com as Leis da Pureza judaicas, aconselhamos: J.P. Meier, A marginal
Jew, IV, New York 2009, 342-415. O autor, nestas páginas, falará dos diferentes tipos de impureza:
(1) impureza ritual - que, em si, não é má nem pecaminosa, não é impureza física, mas é considerada
uma situação temporal resultante do ciclo normal da vida humana (como dar à luz, estar doente,
ter relações sexuais e entrar em contacto com um cadáver); (2) impureza moral – é bem diferente da
impureza ritual porque não se refere ao ciclo natural da vida mas é o resultado de ações pecaminosas
realizadas como assassinato, idolatria e pecados sexuais graves (incesto, homossexualidade e bestia-
lidade); (3) impureza genealógica – que só aparece depois do desterro na Babilónia (VI a.C.) e vai até à
época de Esdras e Neemias (V e IV a.C.), tem a ver com a proibição de casamentos entre os Israelitas
e gentios. A tudo isto podemos juntar a lista de alimentos proibidos, ou melhor, a lista dos animais
cuja carne estavam proibidos de comer como porco, coelho, lebre (cf. Lv 11,1-47). Esta ‘impureza’,
ainda que distinta, liga-se à impureza ritual. Por fim, diz o autor, a impureza moral, ao contrário da
ritual, não é ‘contagiosa’, ou seja, não se transmite pelo toque - só é impuro quem comete o pecado.
Ver ainda: C. Doglio, Imparare Cristo, Cinisello Balsamo 2014, 141-146; E. Schillebeeckx, Gesù,
Brescia 19803, 242-248.
83
 Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 25.
84
  No entanto, como afirma Edward Schillebeeckx, é difícil afirmar que o galileu Jesus foi educado
numa conceção greco-judaica da Lei. A Galileia, sobretudo nas suas cidades junto ao lago e próximas
do mar, é uma espécie de lugar da diáspora judaica, uma zona com uma população muito mista onde
as leis da pureza (e outras) eram observadas com menos rigor do que em Jerusalém. Cf. E. Schille-
beeckx, Gesù, Brescia 19803, 237.
85
  Sobre a relação de Jesus com o sábado, aconselhamos: J.P. Meier, A marginal Jew, IV, New York
2009, 235-297. Nestas páginas o autor, entre muitos aspetos, diz que inicialmente o descanso sabático
estava relacionado com os trabalhos agrícolas e que, progressivamente, se foi estendendo a todas as
transições comerciais, a viagens, a acender o fogo e a preparar os alimentos. Estranhamente no evan-
gelho, nos confrontos dos judeus com Jesus, não são estas proibições que surgem. A grande crítica
que fazem é de Jesus curar ao sábado. Mas essa proibição, segundo Meier, nunca aparece descrita nas
Escrituras Judaicas. Depois falará de milagres de Jesus, feitos ao sábado, que não criaram disputas, so-
bretudo em Mc., como um exorcismo em Cafarnaúm (1,23-28) e a sogra de Pedro (1,29-31). Por fim, o
autor indicará alguns milagres que foram ocasião de disputas, como a cura de um homem com a mão
paralisada (Mc 3,1-6), a mulher curvada há dezoito anos (Lc 13,10-17), a cura do hidrópico (Lc 14,1-6)
e a cura do paralítico da piscina de Betzatá (Jo 5,1-18). Outro autor, Jürgen Moltmann, afirma que o sá-
bado, segundo a sabedoria hebraica, é a celebração do dia no qual o homem e a mulher, os seus filhos,

398
do expulsou os vendilhões do templo (cf. Mt 21,12); quando tocou nas pessoas,
como os leprosos (cf. Mt 8,3), a mulher com fluxo de sangue (cf. Mc 5,25-34), e
os cadáveres (cf. Lc 8,54)86.
Jesus não tem medo do toque; pelo contrário, procura usar o toque, princi-
palmente para curar: toca um cego (Mc 8,22); toca um leproso (Mt 8,3; Mc 1,41;
Lc 5,13); toca na mão da sogra de Pedro (Mt 8,15; Mc 1,41); toca nos olhos dos
cegos (Mt 9,29; 20,34); toca na língua do surdo-mudo (Mc 7,33); toca na orelha do
servo do sumo-sacerdote (Lc 22,51). Jesus usa o gesto técnico tradicional para a
cura, toca a pessoa ou o órgão doente em vista à sua recuperação87. Em Jesus cada
um destes gestos significa um verdadeiro encontro, em cada ‘toque’ está inscrita
a superação da indiferença e a surpresa do poder do contacto sem ‘intermediá-
rios’ nem ‘distâncias’. Deste modo, poderíamos fazer, como sugere Marie-Laure
Veyron, a releitura do evangelho ‘à luz do tocar’88.

5. Quando o encontro pessoal com Jesus dá novamente a vida


O encontro pessoal com Jesus não só cura como reanima. Neste sentido po-
demos referir especialmente três encontros em que Jesus explicitamente devolveu
a vida a quem já a tinha perdido: reanimação da filha de Jairo (Mc 5,21-24.35-43;
Mt 9,18-19.23-26; Lc 8,40-42.49-56); reanimação do filho único da viúva de Naim
(Lc 7,11-16); e reanimação do seu amigo Lázaro (Jo 11,1-44). Além destas três
reanimações realizadas por Jesus89, podemos encontrar mais quatro na bíblia: a
vida restituída por Elias ao filho da viúva de Sarepta (1Rs 17, 22)90; por Eliseu ao

os seus servos, os seus animais e os estrangeiros presentes no território devem repousar e celebrar o
milagre da sua existência. Estes não devem apenas repousar mas devem também deixar repousar a
natureza. Cf. J. Moltmann, Etica della speranza, Brescia 2011, 144-145. Ver ainda: C. Doglio, Im-
parare Cristo, Cinisello Balsamo 2014, 138-141; M. Burer, Divine Sabbath Work, Winona Lake 2012.
86
 Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 25.
87
  Cf. M.-L. Veyron, Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013, 57. Esta autora, neste seu livro, fala
de modo aprofundado do tema do ‘tocar’ nos evangelhos, sublinhando, entre outros aspetos, que o
‘toque’ revela ‘proximidade’ e ‘reciprocidade’.
88
  Ibidem, 157. A autora, nesta mesma página, irá apresentar alguns desses diferentes ‘toques’ como
o toque com que Jesus cura (os ‘cegos’, os ‘surdos’, os ‘leprosos’); o toque na túnica de Jesus da mulher
com um fluxo de sangue; ou o desejo de Tomé tocar as mãos e o lado do ressuscitado.
89
  Não deixa de ser interessante que em todas as referências bíblicas, a edição portuguesa, dê o título
de ‘ressurreição’ a cada uma destas passagens não fazendo distinção com a ressurreição de Jesus.
90
  1Rs 17, 22: «O Senhor ouviu o clamor de Elias, e a alma do menino voltou a ele e ele recuperou a
vida». BS.

399
filho da Sunamita (2Rs 4, 35)91; por Pedro à mulher chamada Tabitá (At 9, 40)92;
por Paulo a Eutico (At 20, 10)93.
Com efeito, para exprimir esta realidade da restituição à vida terreste pode
falar-se de ‘reanimação’, no entanto Léon-Dufour prefere falar de ‘retorno à
vida’ uma vez que o termo reanimação tem uma utilização médica bem espe-
cífica94. Não obstante esta precisão, aqui falaremos deste ‘retorno à vida’ como
reanimação, sem confundir com ‘ressurreição’. Todos aqueles que foram reani-
mados, simplesmente retomaram a vida que tinham antes. Por isso, não hou-
ve descontinuidade nem houve vida nova, apenas um retomar a vida anterior.
Deste modo precisamos distinguir claramente entre reanimação e ressurreição.
Segundo a teologia, suportada pela revelação bíblica, a ressurreição é um termo
específico para dizer a passagem da morte à vida que não acaba mais. Karl Rah-
ner sublinhando bastante este aspeto, refere que se pensamos na ressurreição
apenas como uma reanimação de um corpo material e físico (como é o caso de
Lázaro) não colhemos o essencial da ressurreição como um evento único, de-
finitivo e salvífico95. É precisamente pelo facto de ser um acontecimento único
que diz respeito a todos e por ser definitivo que se torna salvífico. Efetivamen-
te, muitas vezes, não vemos o cuidado desta distinção, mesmo entre teólogos,
correndo o risco de deixar perceber a ressurreição como um retornar a ‘esta’
vida dificultando, assim, a perceção do significado profundo e do carácter ‘ex-

91
  2Rs 4, 34-36: «34Depois, subiu para a cama, deitou-se sobre o menino, colocando a sua boca sobre a
boca dele, os seus olhos sobre os olhos dele, as suas mãos sobre as mãos dele. E encostado, assim, sobre
o menino, o corpo do menino foi aquecendo. 35Eliseu levantou-se, deu algumas voltas pelo quarto,
tornou a subir e a estender-se sobre o menino, que espirrou sete vezes e abriu os olhos.36Eliseu cha-
mou Guiezi e disse-lhe: ‘Chama a chunamita’. Ele chamou-a. A chunamita entrou e Eliseu disse-lhe:
‘Toma o teu filho’». BS. 
92
  At 9,40: «Pedro mandou sair toda a gente, pôs-se de joelhos e orou. Voltando-se depois para o cor-
po, disse: ‘Tabitá, levanta-te!’ Ela abriu os olhos e, ao ver Pedro, sentou-se». BS.
93
  At 20, 10-12: «10Paulo desceu e, lançando-se sobre ele, apertou-o nos braços e disse: ‘Não façais
barulho, pois a alma ainda está nele’. 11Depois, voltou para cima, partiu o pão, comeu e falou demora-
damente até de madrugada. Só então se retirou. 12Quanto ao jovem, levaram-no vivo, o que foi motivo
de grande consolação». BS.
94
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990, 406-407. René La-
tourelle também insiste na ideia que o termo reanimação é tão ambíguo quanto ao termo clássico de
ressurreição. Já que este termo – reanimação – tem hoje uma ressonância clínica difícil de ‘apagar’. O
autor faz mesmo a pergunta: será que o termo reanimação é fiel à intenção do evangelista e do próprio
Jesus? Respondendo, em seguida, que para Jesus estas ressurreições são sinais da vinda do Reino: «Os
cegos vêem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa-
-Nova é anunciada aos pobres» (Mt 11,5 e Lc 7,22). Cf. R. Latourelle, Miracles de Jésus et théologie
du miracle, Paris 1986, 283-284.
95
  Cf. K. Rahner, Corso fondamental sulla fede, Milano 20056, 345-346.

400
cecional’ da ressurreição de Jesus onde todas as nossas vidas poderão um dia
ressuscitar para a vida eterna.
Apesar desta radical diferença, podemos ver cada uma das reanimações como
um elemento prefigurativo da própria ressurreição de Jesus96. Todas as narrações
evangélicas dos milagres têm como fundamento a fé na ressurreição de Cristo97.
Por isso mesmo, Rahner considera a ressurreição como o ‘milagre por excelência’
e estabelece uma relação intrínseca entre este milagre e os milagres que acon-
tecem na vida de Jesus. Apesar dessa relação, insiste que a ressurreição de Jesus
ocupa indubitavelmente um lugar único e não pode ser catalogada entre os ou-
tros milagres de Jesus histórico98. Só Jesus ressuscitou, ou melhor foi ressuscitado
pelo Pai, por meio do Espírito Santo, e será na sua ressurreição que nós seremos
transformados e ressuscitaremos99. Nessa plenitude de encontro e de comunhão
«seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é» (1Jo 3, 2b)100.

96
  Cf. J. Fitzmyer, The Gospel According to Luke (I-IX), I, New York 1981, 744.
97
  Cf. M. De Santis, La visita di Dio alla vedova di Nain (Lc 7,11-17), RevBib 62 (2014) 54.
98
  Cf. K. Rahner, Corso fondamental sulla fede, Milano 20056, 333 e 342.
99
 Em Paulo encontramos sobretudo duas palavras para referir a ressurreição de Jesus: ἀνάστασις
(cf. Rom 4b) e «ἐγείρω» (cf. 1Cor 4a). O substantivo ἀνάστασις quer dizer essencialmente ‘ação de
elevar-se’, ‘erguer-se’, ‘ereção’ e ‘ressurreição’. Cf. I. Pereira, «Ἀνάστασις», in DGPPG, Braga 19907,
44. Ver ainda: C. Rusconi, «ἀνάστασις», in DGNT, São Paulo 2003, 46. O verbo «ἐγείρω» quer dizer
sobretudo ‘fazer levantar’, ‘despertar’ e ‘estar de vigia’. Cf. I. Pereira, «Ἐγείρω», in DGPPG, Braga
19907, 163. Carlo Rusconi, no contexto do NT, junta o sentido de ‘acordar’, ‘fazer erguer’, ‘pôr e pé’ e
‘ressurreição’. Cf. C. Rusconi, «ἐγείρω», in DGNT, São Paulo 2003, 143.
100
  Ou na expressão de Job: «Eu mesmo o verei, os meus olhos e não outros o hão de contemplar!» (Jb
19, 27a). BS.

401
402
Capítulo II

A cada pessoa Jesus dá um ‘tempo novo’


que é o tempo da esperança

Cada encontro pessoal com Jesus permite que cada um seja ‘tocado’ pela
esperança que tudo transforma e que tudo ‘re-cria’. Mas, em cada encontro, essa
esperança decorre não apenas do próprio ‘encontrar-se’ (‘ser-se-entre’), mas
também do tempo novo que Jesus dá. Esse tempo é determinante para que a es-
perança não seja uma ilusão inconsequente ou uma utopia irreal. Por isso, pres-
cindir desta reflexão sobre o tempo seria correr o risco de pensar uma esperança
abstrata e, sobretudo, a-temporal1. Não um a-temporal que fosse uma esperança
para todos os tempos, mas um a-temporal que seria uma esperança que não
toca o que somos (de real) e o que nos habita (de verdade). De facto, usando as
palavras de José Granados, o ser humano não pode ser pensado fora do tempo2.
Tudo o que o ser humano é e experimenta tem de ser confrontado com a tempo-
ralidade e, principalmente, com as diferentes conceções de tempo.

1
  A este propósito recordamos que Johann Baptist Metz insiste no facto de o cristianismo não proce-
der de um núcleo atemporal, criticando a teologia que evita a questão do tempo eliminando, assim,
a tensão da conexão salvífico-dramática entre Deus e o tempo. Cf. J.B. Metz, Memoria Passionis,
Brescia 2009, 119.
2
 Cf. J. Granados, Teología del tiempo, Salamanca 2012, 20. Este mesmo autor, na pág 46, diz que a
filosofia atual recuperou a importância do tempo para a definição da vida humana, sobretudo com
Heidegger para quem ser e tempo vão de mão dada. O tempo não é mera aparência ou sucedâneo do
ser, mas precisamente a forma em que o ser se manifesta. No entanto, para Heidegger essa tempora-
lidade fecha o homem em si mesmo, quando o define como ‘ser para a morte’; já para José Granados,
na linha de Levinas, a temporalidade assegura que o homem se pode abrir à transcendência e ao en-
contro com o Mistério, a partir da relação interpessoal. Para aprofundar esta tensão entre Heidegger
e Levinas aconselhamos: N. Santos, «Problemática atual do morrer no mundo ocidental(izado)», in
Brot. 180 (2015) 251-266.

403
Assim, para nos ‘adentrarmos’ no tempo novo que Jesus dá a cada pessoa pre-
cisamos primeiro de ‘entrar’ no conceito de tempo. ‘O que é o tempo?’ Agostinho
revela o tempo como enigma, como é referida na famosa frase: «O que é então o
tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quiser explicar, não sei»3. No entan-
to, teremos de dizer, desde já, que Agostinho não tem razão. Não há um tempo
misterioso que não possamos refletir e pensar profundamente. Dizer tempo é, no
fundo, dizer existência e, deste modo, o tempo perde o seu caráter de mistério
absoluto e torna-se, por isso, compreensível4. É nessa compreensão que vamos
procurar ‘entrar’, ainda que conscientes de que não conseguiremos esgotar toda
a problemática que o ‘tempo’ encerra.

1. Do futuro projetado por nós ao futuro que Deus nos dá


Para a conceção comum e vulgar de tempo existe passado, presente e futuro.
Contudo, nessa perspetiva o passado e o futuro não são: o passado foi, por isso,
não é; já o futuro será, por isso, ainda não é. Neste sentido, apenas o presente
é. Porém este presente que é parece ter uma existência muito ténue porque, se
queremos assinalar esse tempo concreto, não basta dizer o ano, nem o mês, nem
a semana, nem o dia, nem o minuto, nem o segundo… Tão pouco parece que
o presente seja consistente - pode chegar a ser apenas compreendido como um
instante5. Para este modo comum e vulgar de pensar parece que o tempo existe
como uma coisa, como algo que podemos analisar de fora, como uma sequência
sucessiva de acontecimentos que se realizam no passado, presente e futuro. Claro
que esta perspetiva do tempo é ‘útil’ quotidianamente porque o mundo é regu-
lado assim, mas temos de reconhecer que esta visão dos acontecimentos não nos
permite afrontar profundamente a questão do ser e do sentido, nem nos permite
compreender o mundo, nem tão pouco a nós mesmos6. Por isso, não basta dizer
passado, presente ou futuro. Precisamos sempre de aprofundar cada tempo e em
cada tempo importa compreender outros dinamismos.

3
  «Quid est ergo tempus? Si nemo ex me quaerat, scio; si quaerenti explicare velim, nescio». Agosti-
nho, Confissões, XI, 14,17. CCSL 27, 202. [PL 32,816].
4
  Cf. A. Nitrola, «Il tempo in Heidegger e Bultmann», Roma 2009, 239.
5
 Cf. J. Granados, Teología del tiempo, Salamanca 2012, 34. Nas páginas seguintes, da 39 à 41, este
autor fará uma distinção que pode ajudar a compreender a complexidade inerente à própria perceção
de tempo: tempo da matéria, tempo da mente e tempo da carne.
6
  Cf. A. Nitrola, «Il tempo in Heidegger e Bultmann», Roma 2009, 248-249. Para aprofundar acon-
selhamos: Id., Tratato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 267-309.

404
Quando, numa primeira aceção, também ela comum e vulgar, falamos do
tempo da esperança não falamos nem do passado que foi e que pode ficar como
memória, nem do presente que é e que posso fazer experiência. A esperança pa-
rece ‘pedir’ naturalmente outro tempo – o tempo ainda não acontecido, o tem-
po que podemos viver como antecipação. Assim, começamos por afirmar o que
parece óbvio: refletir sobre a esperança é acolher um desafio, antes de mais, na
relação com o tempo, particularmente com o futuro7. De facto, o futuro é uma
resposta imediata e vulgar quando se fala do tempo da esperança, mas será su-
ficiente dizer futuro? De que futuro falamos quando falamos de futuro? Será a
esperança meramente uma projeção no futuro? Será um futuro antecipado e, por
isso, vivido no presente?
Todo o ser humano é ‘constituído’ pela necessidade vital de desejar, projetar
e conquistar o futuro8. O homem vive do futuro. Viver do futuro significa não
viver exclusivamente de si mesmo, do que se tem e do que se é9. Neste sentido,
a esperança tem sempre a ver com uma espera, com uma projetualidade, com o
futuro. A esperança tem a ver com um acontecimento positivo que se acredita ser
possível. Porém, também aqui, teremos que sublinhar a importância da recom-
posição das representações da memória, no contexto subjetivo, porque ‘o projeto
do futuro não é determinado somente pela previsão elaborada no instante da sua
construção’. Cada possibilidade de futuro assenta nas representações recompos-
tas da memória e abre o presente a novas possibilidades e novos eventos, muitas
vezes, para além do anteriormente imaginado. Com efeito, ‘não são os projetos
que fazem a esperança, mas é a esperança que torna possível a elaboração dos
nossos projetos’10.
No entanto, este futuro pode ser apenas projeção do presente. Aqui o nosso
futuro seria sempre entendido como ‘desenvolvimento’ das potencialidades do
passado11. Neste sentido, apesar do futuro me fazer sair do meu ‘presente’, do que
sou e do que tenho, pode ficar apenas – sempre e só – na projeção de mim. Nesse
caso, o ‘tamanho’ do meu futuro terá a medida do meu presente projetado. Esse
meu futuro teria como horizonte apenas a realização dos meus desejos. Neste
contexto, a minha esperança, em sintonia com a raiz indo-europeia well (vele,

7
 Cf. L. Manicardi, «L’altro occhio della speranza», RCI 87 (2006) 557.
8
 Cf. P. Laín-Entralgo, La espera y la esperanza, Madrid 19582, 571.
9
  Cf. A. Nitrola, «Il tempo in Heidegger e Bultmann», Roma 2009, 271.
10
  Cf. P. Gilbert, «Problematiche contemporanee sulla speranza», ATT 15 (2009) 238 e 241.
11
  Cf. A. Nitrola, Pensare l’attualità, Roma 2005, 216.

405
volere, voluptas), assentaria no meu querer e no meu desejo. Uma perspetiva que
nos pode lançar numa angústia permanente onde a vida é considerada sempre
pelo que me falta alcançar, pelo que ainda não sou, pelo que ainda não tenho.
Neste caso, a esperança seria apenas um dinamismo ilusório que importaria ali-
mentar para viver bem cada presente – mais ao estilo do mito de Prometeu, ou
um princípio intramundano que vive dum futuro projetado a partir do desenvol-
vimento e do progresso – mais ao estilo de Ernst Bloch.
Deste modo, Ignazia Angelini dirá que não é esperança profunda aquela que
se alimenta das nossas evidências com uma operação de projeção no futuro12.
A esperança profunda não é projeção, nem tão pouco tem por base a aposta das
possibilidades mais possíveis. Não é um algoritmo matemático que sublinha a
probabilidade, nem a aposta numa aritmética da prevalência de uma constante
que se calcula que deva acontecer de novo no futuro. No fundo, a esperança não
é um exercício de futurologia. É aqui, segundo Luigi Lorenzetti, que a teologia se
diferencia claramente da ‘ciência’ da futurologia. Esta procura prever o futuro a
partir das tendências do presente, usando o método da extrapolação; já o método
da teologia – a que se refere especificamente a escatologia – é inverso, o presente
é interpretável a partir do que virá, ou seja, do futuro13.
É aqui que a esperança cristã se distingue do otimismo porque não se resume
a um conjunto de ideias positivas, nem é uma espécie de motivação que ante-
cede os objetivos pessoais, profissionais ou mesmo espirituais. Deste modo, a
esperança cristã não pode ser reduzida a slogans do ‘sentir-se bem’14. De facto, «a
esperança não se confunde com otimismo da vontade, nem com o esforço contí-
nuo de manter acesos sonhos e projetos»15. A ideia da esperança como otimismo
estaria, na linha da esperança como sentimento, fundada num auto-referencia-

12
 Cf. M.I. Angelini, «Dio sicuramente spera», RCI 87 (2006) 454.
13
  Cf. L. Lorenzetti, «La speranza ultima e le speranze penultime», RTM 158 (2008) 193.
14
  «Christian hope is not ‘positive thinking’. The gift of hope grounded in Christ is not some kind
of motivational tool that can be thrust into the service of one’s antecedent personal, professional or
spiritual goals. Christian hope cannot be reduced to feel-good slogans». D.V. Henry, «Hope’s Promise
for Christians in the Not Yet and In Between», LCath 14 (2011) 107.
15
  E. Ronchi, Al mercato della speranza, Milano 20132, 111. Johann Hofmeier diz que a esperança
não é a mesma coisa que o otimismo, porque o otimismo não é realista e minimiza as dificuldades.
A esperança implica a perceção da realidade pré-existente e o esforço para utilizar as novas possibi-
lidades, utilizando as possibilidades do presente para dispor do futuro. Cf. J. Hofmeier, «Espérance;
instinct, passion, compréhension», Conc(F) 59 (1970) 35. Contudo, o teólogo Vittorio Croce diz que a
proposta de Jesus é uma proposta de otimismo, porém, explicita que se trata do otimismo da confiança
que decorre do amor gratuito de Deus e não das próprias capacidades. Cf. V. Croce, Gesù il Figlio e il
Mistero della croce, Torino 2010, 69.

406
lismo que procura ultrapassar e ‘olhar’ para além dos pessimismos. Na verdade,
o pessimismo revela-se como o contrário do otimismo, no entanto a esperança
não só não é sinónimo de otimismo como não vê no pessimismo o seu contrário.
Se a esperança tiver um contrário terá de ser a ‘desesperança’ (des-esperança -
δύσελπίς), ou seja, ‘uma falta de esperança’ ou ‘um viver sem esperança’. Neste
horizonte podemos perceber a ligação da ‘desesperança’ com a palavra ‘desespe-
ro’ (des-espero) enquanto – um ‘deixar de esperar’.
A existência de quem espera é, por isso, uma abertura àquilo que será. Assim,
esta espera postula uma atitude de êxodo, isto é, de contínua saída da terra da
escravidão do passado para o caminho para a terra da promessa divina16. Na ver-
dade, a esperança de Abraão, a esperança bíblica, não é um desejo de se realizar
no tempo futuro como projeto, mas, pelo contrário, um desejo de que se realize o
projeto de Deus. Assim o que há de comum entre todas as esperanças é o ‘desejo’
e o ‘futuro’, mas o que as distingue é que uma é ‘projeção pessoal no futuro’ outra
é ‘acolhimento do futuro que Deus nos dá’17.
Com efeito, a esperança cristã é um desejar, e, em certo modo, um esperar,
uma realização, mas remetendo esta abertura àquele que nos amou e nos deu o
seu filho por nós (1Jo 4,9)18. Efetivamente, o encontro com Jesus abre-nos não ao
futuro de nós mesmos mas ao futuro de Deus – ao futuro que ele tem para nos
dar. Um futuro que nos traz perdão, cura, vida, um futuro que nos liberta da
escravidão do pecado, da escravidão do passado, de todas as escravidões que nos
desumanizam, como vimos em cada um dos encontros. Este futuro que Jesus nos
dá é a ‘porta’ de entrada que devemos atravessar para compreender o tempo da
esperança cristã.
Assim, o nosso desejo próprio procura encontrar o desejo do outro – no es-
sencial, um deixar-se encontrar. Trata-se de uma abertura não ao próprio projeto
mas ao projeto de outro. Deste modo, o futuro não é mais um futuro que provem

16
  Cf. G. Barbaglio, «La speranza cristiana secondo S. Paolo», VP 55 (1972) 39-40.
17
  Neste sentido Antonio Nitrola dirá: «Sperare per Abramo, per Maria, per Pietro e tanti altri è perciò
sempre desiderare (…). Il proprio desiderio cerca d’incontrare il desiderio dell’altro, l’apertura non è
più al proprio progetto, ma al progetto di un altro, così che il futuro non è più un futuro che proviene
da noi e dalla nostra capacità tecnica, un futuro sempre provvisorio perché continuamente superato
da quei tanti e sucessivi progetti che ci rendono continuamente insoddisfatti. Un futuro che non pro-
viene dal fuoco di Prometeo, ma da un altro fuoco, quello dello Spirito (At 2,3), perciò è un futuro che
ci viene incontro, un futuro non più superabile che dà un compimento a tutti i nostri piccoli futuri e
placa l’insoddisfazione della/e nostra/e speranza/e». A. Nitrola, Pensare l’attualità, Roma 2005, 224.
18
  1Jo 4,9: «E o amor de Deus manifestou-se desta forma no meio de nós: Deus enviou ao mundo o seu
Filho Unigénito, para que, por Ele, tenhamos a vida». BS. 

407
de nós mesmos, da nossa capacidade técnica, nem é mais um futuro provisório
porque continuamente superado por aqueles tantos e sucessivos projetos que nos
tornam continuamente insatisfeitos. O futuro já não provém do fogo de Prome-
teu, mas de um outro fogo, o do Espírito Santo e, por isso, um futuro que vem ao
nosso encontro, um futuro não mais superável. Com efeito, o elemento caracteri-
zante da esperança cristã não é tanto a certeza, que a torna quase exclusivamente
uma espera; mas sobretudo o abandono que, obviamente fundado no aconteci-
mento Cristo, recoloca os meus desejos naquele que me ama e me chama a (cor)
responder, isto é, a responder com o coração. Uma atitude profunda de abandono
confiado que nos faz relativizar e criar distância dos desejos que se centram em
nós mesmos, nas nossas conquistas, nos nossos projetos19.
Por tudo isto, falar do tempo da esperança é, desde logo, começar por falar de
um futuro que vem ao encontro do homem, mais do que falar de uma realidade
presente que encontra o seu pleno desenvolvimento no futuro. É este tempo que
Jesus dá a cada um em cada encontro que nos permite entrar na especificidade do
‘novo’ que esse tempo encerra20. Podemos reforçar esta ideia do acolhimento do
futuro e da sua vinda até nós especialmente em dois textos: Rom 8,19 e Fil 1,20.
Nestes dois textos, Paulo exprime a vinda da esperança cristã com o vocábulo
ἀποκαραδοκία, que não volta a aparecer no NT, com o significado de ‘espera ar-
dente’21. Literalmente quer dizer ‘levantar a cabeça e atirar o olhar para a frente
para ver o que está longe’. A esperança revela-se, aqui, como olhar fixo na vinda
do futuro, do novo e do outro22.

2. Entrar no futuro que Jesus nos dá pela tensão entre χρόνος e καιρός
Que futuro é esse que Jesus nos dá? Passar do futuro que nós podemos pro-
jetar para o futuro que Deus tem para nos oferecer foi um primeiro passo. Con-
tudo, agora precisamos de continuar o caminho para tentarmos perceber que

19
  Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza», Aquila 2002, 272-274.
20
  Cf. G. Barbaglio, «La speranza cristiana secondo S. Paolo», VP 55 (1972) 42.
21
 A palavra ἀποκαραδοκία quer dizer ‘espera impaciente’. Cf. I. Pereira, «Ἀποκαραδοκία», in
DGPPG, Braga 19907, 71. No contexto do NT significa essencialmente ‘espera impaciente’ e ‘ardente
expectativa’. Cf. C. Rusconi, «ἀποκαραδοκία», in DGNT, São Paulo 2003, 67.
22
  Cf. G. Barbaglio, «La speranza cristiana secondo S. Paolo», VP 55 (1972) 39-40. De facto, a palavra
ἀποκαραδοκία é constituída por três palavras: ἀπο + καρα + δοκέω. A palavra κάρα significa ‘cabeça’,
‘rosto’ e ‘cara’. Cf. I. Pereira, «Κάρα», in DGPPG, Braga 19907, 296. O verbo δοκέω significa ‘esperar’,
‘pensar’, ‘propor’ e ‘parecer’. Id., «Δοκέω», in DGPPG, Braga 19907, 149. A ‘expressão’ καρα-δοκέω
quer significar ‘estender o pescoço para escutar’. Id., «Καρα-δοκέω», in DGPPG, Braga 19907, 296.

408
futuro é esse que somos desafiados a acolher e que é o tempo da esperança. Para
aprofundarmos esse futuro temos de ‘entrar’ na tensão que existe entre χρόνος e
καιρός. Um caminho que nos ajuda a perceber a complexidade e a profundidade
do tempo que somos – não porque sejamos autores mas porque habitados por
estes ‘tempos’.
A palavra χρόνος começa por nos enviar para o mito de Κρόνος. De acordo
com a mitologia, Urano (o céu) uniu-se à sua mãe Gaia (a terra) e tiveram vários
filhos, sendo um deles precisamente Cronos23. Hesíodo ao descrever este nas-
cimento (vv.125-138) diz-nos que Cronos era ‘o filho mais terrível [δεινότατος
παίδων]’ (v.138)24. De temperamento violento e negativo, Cronos passou a matar
e devorar todos os filhos gerados com Reia. Fazia isso por dois motivos: não
só para que fosse sempre imortal [ἀθανάτοισιν], mas também para que tivesse
sempre o poder real [βασιληίδα τιμήν] (vv.459-462). Porém, a mãe conseguiu
salvar um deles, chamado Zeus, escondendo-o numa caverna da ilha de Creta
(vv. 470-480)25. Para enganar Cronos, Reia deu-lhe uma pedra embrulhada num
pano que ele comeu sem perceber, pensando que era o seu filho (vv.485-487)26.
Ao crescer, Zeus libertou os titãs e com a ajuda deles fez Cronos vomitar, pri-
meiro, a pedra e, depois, os seus irmãos - Hades, Hera, Héstia, Posídon e De-
méter (vv.497-506)27. Então Zeus, com a ajuda dos irmãos e dos titãs, expulsou
Cronos do Olimpo e governou como o rei dos deuses gregos. Como tinha der-
rotado o pai Cronos, que simbolizava o tempo, Zeus tornou-se imortal, poder
que se estendeu também aos irmãos28.
Ainda que aqui não aprofundemos todo o enredo deste mito, podemos su-
blinhar, desde logo, a relação entre Cronos e a ideia do ‘tempo que passa’. Aqui
o tempo é compreendido como fugaz, um tempo que nos aproxima da morte29.

23
  Cf. «Crono», in L. Biondetti, Dizionario di mitologia classica, Milano 1997, 168. Nesta página a
autora conta todo o processo ligado ao nascimento do próprio Cronos. Ver ainda: «Cròno», in Dizio-
nario di mitologia (a cura di M. Gislon e R. Palazzi), Bologna 2003, 120.
24
 Cf. Esiodo, Teogonia, Milano 201317, 72-73.
25
  Ibidem, 92-93. Ver ainda: «Zèus», in Dizionario di mitologia (a cura di M. Gislon e R. Palazzi),
Bologna 2003, 443.
26
  Ibidem, Milano 201317, 94-95. Ver ainda: «Crono», in L. Biondetti, Dizionario di mitologia classi-
ca, Milano 1997, 169.
27
  Ibidem, 94-95.
28
 Cf. «Cròno», in Dizionario di mitologia (a cura di M. Gislon e R. Palazzi), Bologna 2003, 120.
Ver ainda: «Zèus», in Dizionario di mitologia (a cura di M. Gislon e R. Palazzi), Bologna 2003, 443.
29
 Cf. J. Moltmann, Etica della speranza, Brescia 2011, 78. Nesta página o autor afirma precisamente
que, segundo a conceção grega χρόνος é um irmão da morte (θάνατος).

409
Segundo Hesíodo, Cronos devorava os filhos por duas razões: queria ser imortal
e não queria que nenhum filho lhe roubasse o poder. Dois motivos que acabam
por estar relacionados e dependentes entre si. Ver os filhos nascer e crescer signi-
ficava perceber a ‘lei da natureza’ do tempo que passa. Por outras palavras, olhar
para os filhos era reconhecer o ‘ritmo ininterrupto do tempo’ porque cada filho
fala da ‘mortalidade’ que somos e da morte que inevitavelmente se aproxima.
No entanto, Cronos queria permanecer no poder e sabia que para isso não podia
deixar que os filhos crescessem - estes seriam herdeiros. Daí que a solução que
encontrou foi ‘devorar os filhos’. O único modo de ‘ser imortal’. Mas a história
não termina aqui. O seu filho Zeus, que sobrevive a este ‘esquema’, acaba por
obrigar Cronos a vomitar cada irmão. Deste modo, Cronos sai vencido. O seu
desejo de imortalidade e, consequentemente, de poder acaba vencido. Ou seja, a
realidade supera todos os desejos. Por isso, podemos concluir que o ‘ritmo inin-
terrupto’ dos nascimentos, dos dias, dos meses e dos anos revela-se mais forte do
que qualquer desejo.
De facto, muitas vezes este mito de Κρόνος (deus grego) foi ligado imediata-
mente à palavra χρόνος (tempo) – que quer dizer, desde logo, ‘tempo’, ‘duração’,
‘um espaço determinado de tempo’, ‘idade’ ou ‘perda de tempo’30. Esta confusão,
comum nos antigos intérpretes da mitologia, decorre, provavelmente, da proxi-
midade das palavras. No entanto, esta ‘confusão’ exprime parte da verdade, ou
pelo menos, é possível fazer algumas aproximações. Κρόνος, mesmo que não
possa ser totalmente identificado com χρόνος, tem o mesmo papel que o tempo:
por um lado, devora ao mesmo tempo que gera e, por outro, destrói as suas pró-
pria criações. A partir do mito, Κρόνος simboliza a fome devoradora da vida, o
desejo insaciável, o tempo que se esgota, o medo de um herdeiro, de um sucessor
ou de um substituto (complexo de Cronos). No fundo, simboliza a incapacidade
de se adaptar à evolução da vida e da sociedade. Sem dúvida que, enquanto deus,
quer o bem dos seus súbditos e a paz no seu reino; mas é só ele quem governa
daí, que rejeite qualquer ideia de sucessão e não conceba outra sociedade que não
seja a sua. É a própria imagem do conservadorismo cego e obstinado. Paradoxal-
mente é a própria contradição do tempo, uma paragem da ‘evolução’ inelutável31.
Tendo como ‘pano de fundo’ toda esta problemática do mito de Cronos,
chegamos, ainda que não diretamente, às três ideias imediatas de χρόνος, que

 Cf. I. Pereira, «Χρόνος», in DGPPG, Braga 19907, 633.


30

  Cf. J. Chevalier, A. Gheerbrant, «Cronos», in Dicionário dos Símbolos, Lisboa 1994, 244-245.
31

410
Gerhard Delling designou como: a ideia geral do tempo que passa; a ideia especí-
fica de um período de tempo; e a ideia de momento32. Deste modo, falar de χρόνος
é sempre falar de um tempo sequencial que pode ser medido – pode ser um mo-
mento ou pode ser um período de tempo, mas é sempre um tempo que passa. Um
tempo que podemos contabilizar, que podemos de-limitar, mas não podemos
parar. Neste sentido, Jürgen Moltmann diz que, graças ao relógio, o nosso tempo
torna-se um tempo racionalmente medido. O tempo do relógio é um tempo me-
dido mecanicamente, depois de sessenta minutos termina uma hora. O relógio
‘dita’ o tempo33. Trata-se de um tempo que não depende de nós nem dos nossos
desejos. É um tempo que se impõe e que não cede ao nosso ritmo ou às nossas
necessidades. É, por isso, um tempo que revela a minha temporalidade e a minha
impotência diante do curso natural da vida. Neste sentido, é um tempo que em
cada presente me recorda o passado e me faz desejar o futuro.
No entanto, Antonio Nitrola chama a atenção para a necessidade de apro-
fundar este sentido e não concluir superficialmente que χρόνος se traduz cor-
retamente como quantidade. De facto, importa percorrer as páginas da obra de
Platão – Timeu. Aqui o autor diz que há dois planos da realidade: o que existe
desde sempre – a ideia eterna; e o que nasce – o mundo34. Segundo Platão, o de-
miurgo quis que o mundo fosse ainda mais semelhante ao arquétipo tentando,
na medida do possível, tornar o mundo também ele eterno. Contudo, a natureza
do arquétipo era eterna, e não era possível ajustá-la por completo ao ser gerado
– o mundo. Então, pensou em construir uma imagem móvel [εἰκὼ κινητόν] da
eternidade [αἰῶνος]. Assim, construiu, a partir da eternidade que permanece
uma unidade, uma imagem eterna que procede de acordo com o número [κατ’
ἀριθμὸν]; que é aquilo a que chamamos tempo [χρόνον] (cf. 37d)35. Deste modo,
o χρόνος procede da αἰῶνος (eternidade) segundo o κατ’ ἀριθμὸν (o número).
Por outras palavras, quando a αἰῶνος (eternidade) é numerada, medida, quan-

32
  Cf. G. Delling, «χρόνος», in GLNT, XV, Brescia 1988, 1093-1095. Neste artigo o autor falará, de-
pois de afirmar que a etimologia não nos dá grandes pistas sobre o conteúdo da palavra, destes três
sentidos nos diversos contextos: filosofia grega; no judaísmo, no NT e nos Padres Apostólicos.
33
 Cf. J. Moltmann, Etica della speranza, Brescia 2011, 193. Neste contexto, insiste o autor nesta
mesma página, o relógio regula o dia e mede o tempo de trabalho – time is money! A importância é tal
que a pontualidade foi elevada a uma das mais importantes virtudes e a perda de tempo foi declarada
como um pecado.
34
  Cf. A. Nitrola, Tratato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 275-276.
35
  «(…) εἰκὼ δ› ἐπενόει κινητόν τινα αἰῶνος ποιῆσαι, καὶ διακοσμῶν ἅμα οὐρανὸν ποιεῖ μένοντος
αἰῶνος ἐν ἑνὶ κατ› ἀριθμὸν ἰοῦσαν αἰώνιον εἰκόνα, τοῦτον ὃν δὴ χρόνον ὠνομάκαμεν». Platão, Ti-
meu 37d.

411
tificada, tornada imagem móvel [εἰκὼ κινητόν] – surge o χρόνος. Porém, este
χρόνος é sempre imagem da αἰῶνος (eternidade) – do que Timeu define como
‘o que é sempre e que não tem nascimento’ [τὸ ὂν ἀεί, γένεσιν δὲ οὐκ ἔχον]36.
Esta imagem não é simples representação mas uma certa incarnação do modelo.
Deste modo, χρόνος não é totalmente o ‘modelo’ (a eternidade) mas também
não é uma coisa totalmente diferente porque é ícone [εἰκών]37 – ou seja, é ‘ima-
gem’ e ‘semelhança’.
Se, por um lado, a eternidade está fora do tempo porque não se pode dizer
que ‘era’ ou que ‘será’; por outro, quando o tempo surge como imagem pro-
funda dessa eternidade ele ‘torna presente’ permanentemente essa eternidade.
Os dias, os meses e os anos referem-se sempre, em última análise, ao que é.
De facto, Platão diz que o arquétipo, isto é, o paradigma [παράδειγμα], existe
eternamente [πάντα αἰῶνά ἐστιν ὄν], enquanto a imagem é constantemente [διὰ
τέλους τὸν ἅπαντα χρόνον] passado, presente e futuro [γεγονώς τε καὶ ὢν καὶ
ἐσόμενος] (cf. Timeu 38c)38. Deste modo, deveremos questionar se este tempo a
que temos acesso [χρόνος] nos consegue falar desse eterno que é desde sempre
[πάντα αἰῶνά ἐστιν ὄν]. Se sim, como e em que medida podemos estabelecer
essa relação? Haverá algum ‘tempo’ neste χρόνος que nos ajude a perceber me-
lhor essa íntima relação? Haverá uma separação assim tão grande entre um
‘tempo vulgar’ e um ‘tempo autêntico’? É aqui que nos devemos aproximar do
tempo como καιρός. Um percurso que se revela muito importante não só para
a teologia (em geral) mas também para a compreensão do futuro que Jesus dá a
cada pessoa em cada encontro.
Gerhard Delling, depois de dizer que a etimologia não é uma grande ajuda
porque é incerta e conduz a resultados muito diferentes entre si, fala do signi-
ficado fundamental do καιρός como o que é decisivo ou o que é essencial. Este
significado é visto em três perspetivas: sentido local, sentido objetivo e sentido
temporal39. No entanto, Antonio Nitrola, uma vez mais, apela à necessidade de

36
  Timeu diz a Sócrates que é preciso distinguir o que é desde sempre do que é devir: «τί τὸ ὂν ἀεί,
γένεσιν δὲ οὐκ ἔχον, καὶ τί τὸ γιγνόμενον μὲν ἀεί». Ibidem, 27d.
37
  Cf. A. Nitrola, Tratato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 275-277. O substantivo εἰκών
quer dizer ‘imagem’, ‘retrato’, ‘ícone’ e ‘semelhança’. Cf. I. Pereira, «Εἰκών», in DGPPG, Braga 19907,
168. No contexto do NT significa essencialmente ‘imagem’ e ‘semelhança’. Cf. C. Rusconi, «εἰκών»,
in DGNT, São Paulo 2003, 148.
38
  «Παράδειγμα πάντα αἰῶνά ἐστιν ὄν, ὁ δ› αὖ διὰ τέλους τὸν ἅπαντα χρόνον γεγονώς τε καὶ ὢν καὶ
ἐσόμενος». Platão, Timeu 38c. Ver ainda: G. Delling, «χρόνος», in GLNT, XV, Brescia 1988, 1098.
39
  Cf. G. Delling, «kαιρός», in GLNT, IV, Brescia 1968, 1363. Depois desta afirmação muito lacónica,
o autor falará destes três sentidos nos contextos: filosofia grega; na tradução dos LXX e no NT. Mais

412
aprofundarmos o sentido sem querer tirar conclusões demasiado precipitadas e,
sobretudo, pouco profundas. Daí que sugira dois caminhos aparentemente com
pouca ligação entre si: o primeiro tem a ver com a procura do significado de
καιρός a partir dos textos e o segundo, ainda que possa ser precário, é precisa-
mente o da etimologia40, que Gerhard Delling desvaloriza.
Apresentemos agora estes dois caminhos. Comecemos por analisar os dife-
rentes textos da cultura grega onde a palavra καιρός significa um ‘alvo’. Com este
sentido podemos encontrar algumas passagens: Píndaro diz ‘ter feito luz sobre
muitos argumentos, atingindo [βαλών]41 o καιρός com palavras não falsas’42; Eu-
rípedes, através do uso do movimento de lugar, na expressão ἐς καιρὸν τυπείς43,
fala-nos de atingir [τυπείς]44 o καιρός, ou seja, atingir de morte. Esta afirma-
ção permite-nos identificar este ‘alvo’ com uma parte do corpo humano. Esta
possibilidade de compreensão deve ser considerada e permite-nos compreender
Homero que usa, não o substantivo καιρός mas o adjetivo καίριος, para indicar a
parte do corpo humano que se pode atingir com um golpe mortal45.
A este caminho percorrido temos que juntar agora o segundo contributo que
advém da etimologia, por muito precário que possa ser. Aqui somos conduzidos
à raiz indo-europeia *krr, da qual deriva também o verbo κεράννυμι que tem a
ver com ‘misturar’, ‘remexer’ e ‘cozer’46. Esta ideia fala-nos de um misturar não
tanto como um fim em si mesmo, mas como caminho para alcançar a harmonia.

do que um itinerário, os diferentes textos citados pelo autor parecem sobretudo uma justificação da
premissa inicial.
40
  Cf. A. Nitrola, Tratato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 278-283. Neste itinerário segui-
mos de perto este autor. A sua proposta é a base da releitura que sugerimos porque julgamos profunda
e não encontrámos noutro autor o tema tão bem sistematizado.
41
  O verbo βάλλω (para além de ‘lançar’, ‘atirar’, ‘impelir’, ‘infundir’, ‘derramar’) pode significar mais
concretamente ‘ferir’ e ‘golpear’. Cf. C. Rusconi, «βάλλω», in DGNT, São Paulo 2003, 93. O dicionário
de Grego-Português e Português-Grego refere os sentidos de ‘atirar’, ‘lançar’, ‘deixar’, ‘colocar’, ‘deitar
por terra’ e ‘fazer cair’. Cf. I. Pereira, «Βάλλω», in DGPPG, Braga 19907, 101. Sublinhamos aqui os
sentidos de ‘deitar por terra’ e ‘fazer cair’.
42
  «Πολλῶν ἐπέβαν καιρὸν οὐ ψεύδει βαλών». Pindaro, Nemee I, 25.
43
 «Οὐ γὰρ ἐς καιρὸν τυπεὶς / ἐτύγχαν». Euripide, Andromaca, 1120/1121.
44
  O verbo τύπτω fala-nos de ‘bater’, ‘golpear’ e ‘espancar’. Este verbo tem na raiz a palavra τύπος com
o sentido de ‘golpe’, ‘sinal’ ou ‘marca’. Cf. C. Rusconi, «τύπτω», in DGNT, São Paulo 2003, 646. O
dicionário de Grego-Português e Português-Grego diz que este verbo pode significar ‘ferir’, ‘ferir com
uma arma’ e ‘picar’. Cf. I. Pereira, «Τύπτω», in DGPPG, Braga 19907, 585.
45
 Cf. Homero, Ilíada, IV, 185; VIII, 84; 324-328;439.
46
  Cf. C. Rusconi, «κεράννυμι», in DGNT, São Paulo 2003, 264. O dicionário de Grego-Português e
Português-Grego diz que este verbo significa ‘misturar’, tendo o sentido de ‘moderar’, ‘temperar’ e
‘unir’. Cf. I. Pereira, «Kεράννυμι», in DGPPG, Braga 19907, 317.

413
Trata-se da medida certa para alcançar o ponto final ou o ponto ideal. Uma ideia
tão bem traduzida na expressão portuguesa ‘estar no ponto’, sobretudo, quando
estamos a cozinhar.
Depois de percorrermos estes dois caminhos aparentemente tão distintos,
procuremos, como refere António Nitrola, sublinhar o quanto estes dois percur-
sos se podem iluminar reciprocamente. Com efeito, podemos dizer que o καιρός
é aquele ponto que se olha, o ‘alvo’ que se quer atingir. Não apenas um ‘alvo’ no
sentido de quem se prepara para fazer um tiro ou o ponto débil do corpo que
queremos alcançar para vencer; mas, essencialmente, a abertura que temos de
atravessar para vencer, para andar em frente. Alcança-se assim um sentido posi-
tivo deste καιρός que temos de alcançar.
Esta mesma dimensão está reforçada na obra ‘Os trabalhos e os dias’, de Hesío-
do, que na conclusão da terceira parte diz que se ‘olharmos [φυλάσσεσθαι]47 para
a medida [μέτρα]: o καιρός é o melhor [ἄριστος]48 de todas as coisas’ (v.694)49. Por
outras palavras, o καιρός é a coisa melhor em cada ocasião. É o momento me-
lhor de cada ‘medida’, de cada sequência de cada χρόνος. Aquele momento certo
que colhe o reflexo do divino no humano. Mas, porque é momento, é precário,
instável, fugaz. Por isso, para colher esse καιρός é preciso ser hábil e estar atento.
Eis-nos diante do momento decisivo, do instante determinante. Deste modo, o
καιρός, referido ao tempo, é a pequena abertura e o instante possível para, através
do χρόνος, tocar o αἰών (eterno). Esta καιρός não é, por isso, cronológico, nem
é mensurável, como o χρόνος, é antes um instante, que, não sendo eterno, nos
permite tocar o eterno. Trata-se não de uma ‘parte’ ou de um ‘tempo breve’ mas
de um instante que recolhe toda a densidade do tempo. De facto, o καιρός é a ‘en-
trada’ e o ‘ponto certo’ para captar todo o sentido que o tempo pode ter50.

47
  O verbo φυλάσσω tem o significado de, entre outras coisas: ‘olhar’, ‘observar’, ‘estar atento’ e ‘es-
tar de guarda’. Cf. C. Rusconi, «φυλάσσω», in DGNT, São Paulo 2003, 487. Ver ainda: I. Pereira,
«Φυλάσσω», in DGPPG, Braga 19907, 620.
48
 Isidro Pereira diz que ἄριστος é ‘excelente’ ou ‘o melhor’. Cf. I. Pereira, «Ἄριστος», in DGPPG,
Braga 19907, 82. Já Carlo Rusconi diz que ἀρείων é ‘melhor’ e que ἄριστος é ‘excelente’. Palavras rela-
cionadas com ἀρετή que quer dizer ‘virtude’, ‘mérito’, ‘capacidade’, ‘prosperidade’ e ‘felicidade’. Cf. C.
Rusconi, «ἀρετή», in DGNT, São Paulo 2003, 76.
49
  «Μέτρα φυλάσσεσθαι καιρός δ᾽ ἐπὶ πᾶσιν ἄριστος». Esiodo, Le opere e i giorni, Milano 201315,
148-149.
50
  Cf. A. Nitrola, Tratato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 278-281. Jürgen Moltmann, de-
pois de dizer que o χρόνος é um irmão da morte – θάνατος, afirma que o καιρός é um irmão da vida –
ζωή. O tempo vazio e fugitivo transforma-se no tempo pleno. Cf. J. Moltmann, Etica della speranza,
Brescia 2011, 78-79. Apesar desta afirmação não fica claro qual a ligação e, sobretudo, como se passa
de um ao outro tempo, como verificámos com a ajuda da refexão de Antonio Nitrola.

414
3. O καιρός como plenitude do tempo fala do ‘tempo novo’ que Jesus dá
A história de Jesus é uma história apocalíptica oferecendo uma esperança con-
creta no tempo e na história sem a adiar nem a idealizar51. Por isso, não nos basta
uma reflexão sobre o tempo grego, nem podemos ficar num pensamento que corra
o risco de ser abstrato e distante da vida de cada pessoa. O tempo cristão é um tem-
po marcado pela vida e pela história concreta de uma pessoa - Jesus. Neste sentido,
S. Paulo dirá que com Jesus chegou a plenitude do tempo: «quando chegou [ἦλθεν]
a plenitude do tempo [τὸ πλήρωμα τοῦ χρόνου], Deus enviou o seu Filho, nascido
de uma mulher, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam
sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adoção de filhos» (Gal 4,4-5).
S. Paulo une na mesma frase duas ‘metáforas’ bíblicas para falar do tempo
- indicadas nas palavras: ‘chegar’ e ‘plenitude’. Primeiro, diz que o tempo pleno
chega [ἦλθεν]52, ou seja, vem ao nosso encontro, aproxima-se surpreendentemen-
te. Segundo, diz que há um tempo que é pleno [τὸ πλήρωμα τοῦ χρόνου], ou seja,
o tempo aparece como uma espécie de vaso que se pode encher53. De facto, o
substantivo πλήρωμα54 deriva do verbo πληρόω que quer dizer essencialmente
‘encher’, ‘completar’ e ‘levar a cumprimento’55. Já a palavra χρόνος, que aparece
nesta mesma expressão, tem a ver com o tempo que passa, aquele dos minutos,
dos dias e dos anos. Deste modo, para Paulo, o tempo que passa é como se esti-
vesse ‘vazio’, falta-lhe qualquer coisa que apenas a vinda de Jesus pode ‘encher’.
Para Paulo parece haver um tempo carente, não pleno, não verdadeiro que só
Jesus plenifica, preenche e dá sentido pleno56.

51
 Cf. J.B. Metz, Mística de olhos abertos, São Paulo 2013, 26-29. Nestas páginas o autor questiona-
-se seriamente se o cristianismo, na sua evolução teológica, não terá abandonado depressa demais o
pensamento apocalítico da temporalidade, eliminando totalmente a temporalização das atitudes de
esperança e, sobretudo, idealizando-as (portanto generalizando-as, na ausência de temporalização).
Concluindo que não apenas os platónicos cristãos, mas os aristotélicos teológicos – como Tomás de
Aquino – tinham dificuldade em lidar com essa temporalização sem cairem no dualismo gnóstico do
tempo sem salvação ou da salvação sem o tempo.
52
  A palavra ἦλθεν é a terceira pessoa do singular do aoristo indicativo do verbo ἔρχομαι, que quer
dizer sobretudo: ‘vir’, ‘chegar’ e ‘alcançar’. Cf. C. Rusconi, «ἔρχομαι», in DGNT, São Paulo 2003, 199-
200. Ver ainda: I. Pereira, «Ἔρχομαι», in DGPPG, Braga 19907, 231.
53
 Cf. J. Granados, Teología del tiempo, Salamanca 2012, 67.
54
 A palavra πλήρωμα quer dizer ‘plenitude’, ‘aquilo que enche’, ‘preenchimento’, ‘totalidade’ e
‘cumprimento’. Cf. C. Rusconi, «πλήρωμα», in DGNT, São Paulo 2003, 378. Isidro Pereira diz que
πλήρωμα significa ‘tudo o que enche ou completa’, ‘conteúdo de um vaso’ e ‘plenitude’. Cf. I. Pereira,
«Πλήρωμα», in DGPPG, Braga 19907, 463.
55
  Id., «πληρόω», in DGNT, São Paulo 2003, 378.
56
  Cf. A. Nitrola, «Il tempo in Heidegger e Bultmann», Roma 2009, 241-242.

415
Neste itinerário, o passo seguinte chega-nos pelo ‘reforço’ desta mesma ideia,
quando o apóstolo dos gentios diz que Jesus conduziu o tempo à sua plenitude já
não como um preencher do χρόνος mas como uma revelação do καιρός – porque
nele o céu toca a terra e a terra toca o céu: «[Jesus Cristo] Manifestou-nos o mis-
tério da sua vontade, e o plano generoso que tinha estabelecido, para conduzir os
tempos à sua plenitude [τοῦ πληρώματος τῶν καιρῶν]: submeter tudo a Cristo,
reunindo nele o que há no céu e na terra» (Ef 1,9-10).
Deste modo, Jesus, pelo mistério da incarnação e pelo mistério pascal, não
só é essa plenitude de tempo [τὸ πλήρωμα τοῦ χρόνου] que chega [ἦλθεν], como
é essa plenitude de tempo que ele pode dar [τοῦ πληρώματος τῶν καιρῶν]. Ou
seja, o tempo novo que Jesus dá é esse tempo denso, esse tempo cheio de senti-
do, essa abertura que nos traz e nos introduz no αἰών (eterno). De facto, Jesus
revela-nos não só a ‘plenitude do tempo’ como, principalmente, o quanto de
καιρός há no χρόνος. Desse tempo novo fala-nos S. Paulo na carta aos Coríntios
– quando diz que o tempo se faz καιρός [ὁ καιρὸς συνεσταλμένος ἐστίν] (1Cor.
7, 29b)57. De facto, o tempo novo que Jesus dá a cada um daqueles com quem se
encontra nos evangelhos é este καιρός, não como um tempo ‘breve’ mas como
um tempo ‘pleno’. O tempo que ‘abre’ cada pessoa ao mistério. É este tempo, que
decorre do encontro pessoal com Jesus, que faz a existência permanentemen-
te escatológica (ἔσχατον + λόγος). Uma vida tocada pelo eterno (αἰών) que o
καιρός permite fazer experiência. Uma vida aberta ao que é ‘último’ (ἔσχατον),
ou seja, uma vida que tem a lógica e se pensa (λόγος) a partir do que é último
(ἔσχατον), do futuro e do eterno.
Contudo, como nos adverte Antonio Nitrola, não basta dizer ‘último’
para ‘traduzir’ a profundidade do conteúdo do conceito de ἔσχατον. De facto,
ἔσχατον (ἐξ + κατος) é um adjetivo de origem incerta que tem um sentido con-

57
  Muitas vezes este versículo é traduzido como ‘o tempo é breve’, como acontece na tradução por-
tuguesa. Joseph Fitzmyer traduziu com o sentido de um tempo que se está a esgotar: «is that time is
running out». Depois na explicação falou de um sentido mais literal que seria de um tempo que foi
limitado ou que foi encurtado: «The critical time has been limited/shortened». Cf. J. Fitzmyer, First
Corinthians, New Haven 2008, 312 e 316. Contudo, ‘breve’ diz pouco do sentido da palavra καιρός.
José Granados ao comentar este versículo, apesar de ter traduzido também por ‘breve’, diz que neste
tempo novo, que decorre da Páscoa, passado e futuro não permanecem separados um do outro, mas
dá-se entre eles uma pericorese singular, uma mútua inabitação. O futuro olha para o passado para
encontrar os seus fundamentos e o passado olha para o futuro para plenificar-se em fruto novo. Uma
nova forma de articular o tempo que afeta o ontem, o hoje e o amanhã. Cf. J. Granados, Teología
del tiempo, Salamanca 2012, 89-90. Por isso, talvez a melhor tradução não seja o tempo ‘breve’ mas
o tempo ‘pleno’ ou o tempo ‘condensado’ – não tanto uma questão de quantidade mas de densidade.

416
trário ao substantivo ἔγχατον (ἐν + κατος) que significa ‘intestino’ ou ‘entra-
nhas’. Se ἔγχατον significa o que está dentro, ἔσχατον, por oposição, significa o
que se afasta de dentro, o que é ‘último’. Mas ‘último’ em várias aceções: espaço
- último é o lugar mais distante; tempo - o momento final; qualitativo – o último
numa escala (que pode ser o mais alto ou mais baixo, ou seja, as extremidade);
numérico - o último de uma série. A escatologia é, por isso, o discurso sobre
o que está em ‘último’. Mas este ‘momento último’, em contexto escatológico,
remete-nos para o sentido de confim e de fronteira, ou seja, sendo último está
permanentemente presente58.
De facto, a mensagem bíblica é, no seu núcleo, uma mensagem temporal,
uma mensagem do ‘fim do tempo’, uma mensagem do tempo iminente59. Con-
tudo, não um ‘fim de tempo’ qualquer. Mas um fim muito específico, como
deixa claro o autor da carta aos Hebreus quando diz: «Nestes dias, que são os
últimos [ἐπ᾽ ἐσχάτου], Deus falou-nos por meio do Filho» (Heb 1,2a). O ‘fim do
tempo’ é o tempo que se revela como ἔσχατον, um tempo que é essencialmente
fronteira. É nesse ‘último’ de cada dia que Deus nos fala pelo seu filho Jesus. Ele,
que é a plenitude do tempo, revela-nos permanentemente o confim que somos e
que habitamos.
De facto, no centro está a fronteira e o confim. Eis o dinamismo para o qual
somos permanentemente remetidos quando assumimos a perspetiva existencial
a partir do ἔσχατον. Este horizonte revela-se dinamismo quotidiano que nos quer
convocar permanentemente para uma vida além da fronteira que se desvela em
cada confim do presente. Deste modo, deixamos a ‘exclusividade’ da ideia ‘do que
acontecerá apenas no futuro’ e passamos a perceber que o que é último tem a ver
com ‘o que já acontece no presente’. Trata-se de acolher o futuro, não um futuro
qualquer, não tanto um futuro que nos chega através do χρόνος mas, essencial-
mente, o futuro que nos chega através do καιρός. Assim, talvez possamos con-
cluir, como Luigi Lorenzetti, que os diferentes encontros nos evangelhos revelam
que, em Cristo, o futuro é presente e o presente é aberto ao seu cumprimento
final, universal e cósmico60. Um presente que, sendo cronológico, se abre à sua
profunda dimensão kairológica.
Neste sentido, entre o passado que recordamos e o futuro que acolhemos,
este presente kairológico não surge apenas como mais um tempo, nem tão pouco
58
  Cf. A. Nitrola, Tratato di escatologia, I, Cinisello Balsamo 2001, 19-20.
59
  Cf. J.B. Metz, Memoria Passionis, Brescia 2009, 124.
60
  Cf. L. Lorenzetti, «La speranza ultima e le speranze penultime», RTM 158 (2008) 195.

417
como uma mera ponte mas, sobretudo, como o tempo condensado e o ‘ponto de
encontro’ existencial. Só neste sentido é que a afirmação de Michele Giulio Mas-
ciarelli alcança profundidade - o presente é o lugar da esperança porque aquilo
que a esperança promete não o promete apenas, mas começa a dá-lo e a fazê-lo
fruir no presente. Deste modo, a esperança não é só a espera daquilo que ainda
não existe; mas é sobretudo a tomada de consciência de um bem que já existe,
mas deve crescer até à sua plenitude. Por isso, a esperança não qualifica o tempo
apenas como vigília, mas especialmente como um advento, ou seja, como lugar e
espaço da concretização da graça e da realização salvífica61.

4. O ‘tempo novo’ começa no encontro de cada pessoa com o ressuscitado


Importa agora tentar ‘perceber’ quando começa esse ‘tempo novo’. Ou seja,
qual o fundamento e o ponto de partida para este tempo pleno de graça que se
revela salvação? Qual é o encontro determinante que está na base de todos os
outros encontros? Procurar o ‘encontro’ fundamental que é base deste ‘tempo
novo’ que Jesus dá a cada um não quer dizer que seja um ‘encontro primeiro’ na
ordem cronológica. Jesus foi tendo muitos encontros ao longo dos evangelhos,
mas todos eles se ‘encaminham’ e, sobretudo, ganham sentido pleno à luz dos
encontros com o ressuscitado. Assim, o que aparece em ‘último’ revela-se pro-
gressivamente ‘primeiro’, o que aparece no ‘fim’ revela-se a chave de leitura de
cada um dos encontros. Deste modo, só quem ressuscita pode viver a plenitu-
de do tempo e, principalmente, dar essa plenitude de tempo a cada pessoa com
quem se encontra. Ghislain Lafont fala precisamente da ressurreição de Jesus
como uma consumação do tempo, que transcende o próprio tempo, e que oferece
uma chave de leitura da totalidade do tempo e um paradigma para ação humana
no tempo62. Por tudo isto, podemos dizer que no início da história cristã está a
experiência fundante de um encontro com o ressuscitado: «A eles [aos apóstolos]
também apareceu vivo depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas
com as suas aparições, durante quarenta dias, e falando-lhes também a respeito
do Reino de Deus» (At 1,3).
De facto, temos de estudar a experiência do tempo (novo) que ‘nasceu’ no
encontro com o ressuscitado para perceber a chegada da ‘plenitude do tempo’

61
 Cf. M. Masciarelli, La grande speranza, Città del Vaticano 2008, 22.
62
 Cf. G. Lafont, Che cosa possiamo sperare?, Bologna 2011, 217.

418
que Jesus é e dá63. Este encontro com Jesus ressuscitado foi totalmente decisivo ao
ponto de transformar totalmente a vida dos apóstolos: o medo é substituído pela
coragem; os fugitivos tornam-se testemunhas; do abandono passam a enviados
– dando a vida por aquele que antes tinham ‘traído’64. Com efeito, ligada à morte
de muitos destes discípulos está uma única razão – a fé no ressuscitado – ‘Aquele
que estava morto agora vive’ (cf. Lc 25,5b).
Na verdade, alguma coisa aconteceu para que estes discípulos tenham muda-
do completamente a sua atitude e iniciado o anúncio da ressurreição. Este ‘qual-
quer coisa’ é o núcleo histórico da fé pascal. Mas o que é este ‘qualquer coisa’
capaz de suscitar a fé pascal? O que podemos afirmar com segurança é que se
tornou um ‘novo impulso’ tão forte, tão evidente e tão unificante que dinamizou
um novo e surpreendente início, depois da morte de Jesus na Cruz. O desespero
total dos discípulos, diante da morte do Mestre, dá lugar agora a uma fé convicta
e um entusiasmo contagiante, como revelaram logo na pregação da festa do Pen-
tecostes65. Neste mesmo sentido, Hans Kessler diz que a ressurreição de Jesus não
pode ser uma realidade empiricamente e historicamente demonstrável, mas pode
ser uma realidade experimentável e cognoscível apenas na fé66. Uma mudança
registada por muitos escritos do NT que a história não pode negar. Trata-se de
uma experiência de encontro com o Vivente que tem como consequência uma

63
 Cf. J. Granados, Teología del tiempo, Salamanca 2012, 69. Na realidade, tudo parte de um dado
prévio muito concreto: Jesus ‘apareceu’ na nossa história e não podemos pensar sem este aconteci-
mento. Retomar as aparições permanece um desafio do qual não podemos prescindir. Cf. E. Schille-
beeckx, Gesù, Brescia 19803, 677-678.
64
 Cf. B. Forte, La trasmissione della fede, Brescia 2014, 11. «Dovremo pur spiegare in qualche modo
l’illuminazione che è avvenuta in loro e il coraggio con cui, dopo essere fuggiti di fronte all’arresto di
Gesù, osano ora opporsi a quegli stessi che prima avevano temuto». V. Croce, Gesù il Figlio e il Mis-
tero della croce, Torino 2010, 107.
65
  Cf. H. Kessler, La risurrezione di Gesù Cristo, Brescia 20102, 127-128. No dia de Pentecostes, de-
pois de os discípulos receberem o Espírito Santo, «6a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada
um os ouvia falar na sua própria língua. 7Atónitos e maravilhados, diziam: ‘Mas esses que estão a falar
não são todos galileus?’» (At 2,6-7).
66
  Ibidem, 96. Neste contexto do reconhecimento da auto-manifestação do ressuscitado, Salvador
Pié-Ninot, na linha de Newman, afirma que um cristão é como um bom detetive ou um bom mé-
dico. De facto, o crente é como um detetive – no sentido de juntar vários indícios, percebido não
a partir da lógica dos raciocínios e silogismos, mas através de uma convergência na qual todos os
elementos se apoiam entre si e o conjunto dos indícios conduz a ‘provas’ legítimas e suficientes
para a certeza. De facto, a partir de todos os elementos o crente descobre algo de especial – a fé é
um sentido coletivo – junta vários elementos. Juntaram-se muitos elementos e depois conclui-se
a possibilidade do essencial da fé - Cristo ressuscitou. Cf. S. Pié-Ninot, La teologia fundamental,
Salamanca 20097, 205. Neste sentido, Paulo dirá que «ninguém pode dizer: ‘Jesus é Senhor’, senão
pelo Espírito Santo» (1Cor 12,3b).

419
experiência transformante que leva à missão e ao testemunho que se dilatará até
aos confins da terra: «sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia
e Samaria e até aos confins do mundo» (At 1,8b).
Sendo tão importante este encontro, precisamos de aprofundar o dinamis-
mo presente em cada um desses encontros com o ressuscitado para podermos
compreender o quanto a ressurreição revela o ‘tempo novo’ que Jesus é e, sobre-
tudo, dá67. Um tempo que toca a cronologia mas que não se esgota aí porque nos
introduz no dinamismo kairológico capaz de nos revelar o fundamento último
de toda a esperança cristã. Um fundamento último que se torna, paradoxalmen-
te, primeiro. Se não entrarmos no mais profundo do dinamismo do encontro
com o ressuscitado teremos dificuldade, não só, em compreender cada um dos
encontros como, especialmente, em compreender este tempo novo que Jesus dá
em cada relação. Porque o tempo que ele dá não é abstrato ou teórico mas fruto
de uma relação concreta que é, por um lado, encontro e, por outro, missão. Com
efeito, falamos de um tempo que está entre o encontro fundante com o ressusci-
tado e o testemunho transformante que se dilatará até aos confins da terra. Sendo
relação, o tempo da esperança cristã, como disse Jenny Everts, inscreve-se assim
entre a ressurreição de Cristo e a realização definitiva do Reino de Deus68.
No entanto, ‘quando’ acontece esse encontro? Paulo diz: «apareceu a Cefas e
depois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma só
vez, a maior parte dos quais ainda vive, enquanto alguns já morreram. Depois
apareceu a Tiago e, a seguir, a todos os Apóstolos. Em último lugar, apareceu-me
também a mim, como a um aborto» (1Cor 15,5-8). Deste modo, podemos dizer
que a experiência da Páscoa não ocorre na mesma hora para todos. Quando Ce-
fas ou as mulheres se sentiram tocados pela ‘luz’ do ressuscitado, ainda reinavam
as ‘trevas’ para outros – os doze e muitos anónimos. De facto, quando já era ‘pás-
coa’ para Maria Madalena, dois discípulos caminhavam desiludidos em direção

67
  Jesus não vive apenas a plenitude de um instante, mas vive de forma plena o próprio tempo. Cf.
J. Granados, Teología del tiempo, Salamanca 2012, 72. De referir que o testemunho mais antigo
da morte e ressurreição de Jesus está na 1Tes 4,14a: «De facto, (…) acreditamos que Jesus morreu e
ressuscitou»; e 1Tes 1,10: «Ele [Deus] ressuscitou de entre os mortos, Jesus». Para aprofundar este di-
namismo da ressurreição aconselhamos: M. Köhnlein, Passion und Auferstehung Jesu: Dimensionen
des Leidens und der Hoffnung, Stuttgart 2015; R.A. Kereszty, Fundamentals of Christology, New York
2002, 32-71; G. Emery, «Les manifestations pascales du Christ Ressuscité dans les récits évangéli-
ques», NV 88 (2013) 255-275; N. Santos, «A teologia paulina sobre a Ressurreição», Brot. 178 (2014)
217-239; N. Santos, «(Re)Pensar a morte para ‘en-tender’ a Ressurreição», EsTeol 18 (2014) 125-162; J.
Granados, «Risen time: Easter as the Source of History», Com(US) 37 (2010) 6-33.
68
  Cf. J. Everts, «Hope», in Dictionary of Paul and his Letters, Illinois 1993, 415.

420
a Emaús, Tomé ainda estava fechado nas dúvidas; e Damasco ainda estava longe
para Saulo69. Mas é cada um desses encontros com o ressuscitado que revela o
‘tempo novo’, o templo pleno porque abre o tempo à eternidade. Por tudo isto,
precisamos de ‘entrar’ nas narrativas das aparições de Jesus ressuscitado que são
‘paradigma’ para todos os outros encontros70.
Começamos, desde logo, por referir que estas mesmas narrativas não se dei-
xam harmonizar entre si nem nos dados cronológicos nem nos dados geográfi-
cos71. Apesar disso, todos os encontros com o ressuscitado são constituídos por
uma mesma estrutura que deixa transparecer as características fundamentais
desta experiência: iniciativa do Ressuscitado, o processo de reconhecimento por
parte dos discípulos e a missão que faz deles testemunhas do que ‘ouviram, vi-
ram, contemplaram e as suas mãos tocaram’ (cf. 1Jo 1-2)72. Assumido este aspeto,
indicamos agora os cinco grupos de narrações da aparição do ressuscitado: a
tradição paulina (1Cor 15,5-8); a tradição de Mc (16,9-20); a tradição de Mt (28,9-
10.16-20); a tradição de Lc (24,13-53); e a tradição de Jo (20,14-29 e 21)73.
Neste confronto exegético de tradições ligadas à ressurreição, há uma tensão
entre uma perspetiva que valoriza mais o ‘sepulcro’ e outra que valoriza mais
as ‘aparições’: Mt e Lc mostram um claro interesse em ligar estas duas perspeti-
vas; Jo dá a entender que um ‘túmulo vazio’ não pode constituir uma prova da
ressurreição (cf. Jo 20,8-9) mas apenas um sinal; Mc não refere as aparições de
Jesus, nem sequer às mulheres (como Mt, Lc e Jo – e a própria conclusão tardia
de Mc 16,9-20)74. Quanto ao local das aparições também existe uma tensão entre
a Galileia e Jerusalém: Mc, considerando a conclusão tardia, envia claramente os
discípulos de Jerusalém para a Galileia como único lugar das aparições (Mc 16,7);
Mt segue a tradição de Mc (Mt 28,7.10), mas inseriu uma pequena aparição no

69
 Cf. J.B. Metz, Mística de olhos abertos, São Paulo 2013, 151-152.
70
  «Cristo, con su vida y muerte, ha encontrado la llave que abre la eternidad (…). Por eso Dios puede
actuar ahora sobre el tiempo de Cristo y, a través de este tiempo, llegar a todos los hombres. (…) Por
eso la plenitud del tiempo no es la conclusión del tiempo, ya que la pascua no anula el tiempo del
hombre, sino que hace posible su plenitud. Solo a partir de la resurrección toma el tiempo verdadera
sustancia». J. Granados, Teología del tiempo, Salamanca 2012, 87.
71
 Cf. V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 104-105.
72
  1Jo 2,1-2: «1O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que
contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida,2de facto, a Vida manifes-
tou-se; nós vimo-la, dela damos testemunho e anunciamo-vos a Vida eterna que estava junto do Pai e
que se manifestou a nós». (BS).
73
 Cf. B. Forte, La trasmissione della fede, Brescia 2014, 11. Sobre estas diferentes tradições de apari-
ção aconselhamos: E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 371-379.
74
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 347-348.

421
caminho de regresso das mulheres que foram ao túmulo (Mt 28,9-10); Lc situa as
aparições em Jerusalém, ainda que tenha o episódio dos dois discípulos que dei-
xaram Jerusalém e, no caminho para Emaús, vão reconhecendo aquele que res-
suscitou e feita a experiência desse encontro, regressam a Jerusalém; por último,
temos a tradição de Jo que mantém o binómio Jerusalém e Galileia, aceitando a
aparição a Maria Madalena junto ao túmulo, correspondendo neste ponto a Mt75.
Mas que tipo de encontros são estes? Os encontros dos discípulos com o res-
suscitado são essencialmente uma ‘aparição’ ou uma ‘visão’? Para respondermos
a esta pergunta temos que começar por dizer que a forma verbal que indica as
aprições e as epifanias divinas é ὤφθη - terceira pessoa do singular do indicativo
aoristo passivo do verbo ὁράω (Lc 1,11; 24,34; At 2,3; 7,2.26.30.35; 9,17; 13,31; 16,9;
26,16 e 1Cor 15,5)76. Esta forma verbal traduz-se por ‘apareceu’ com o sentido de
‘fez-se ver’77. Neste sentido, Hans Kessler diz que o termo ‘aparição’ indica um
acontecimento experimentado pelos discípulos, acontecimento passado e con-
cluído (uma vez que o verbo está no aoristo) que suscitou a fé na ressurreição de
Jesus - Ele apareceu, tornou-se visível, fez-se ver, manifestou-se. Os discípulos são
recetores das aparições, o que não exclui, antes pelo contrário, a sua capacidade
ativa de participação mediante a sua capacidade percetiva – eles viram aquele que
se fez ver. Trata-se de ‘qualquer coisa’ realmente experimentado que representa a
origem da fé pascal. No entanto, enquanto aparição de Deus, não se carateriza
apenas como experiência de uma qualquer revelação, mas como o evento que
manifesta a presença salvífica escatológica e definitiva de Deus78.

75
  Cf. H.U. von Balthasar, Teologia dei tre giorni, Brescia 20118, 212. Sobre esta diversidade e ‘con-
tradição’ de aparições aconselhamos o aprofundamento feito em: G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Bres-
cia 2014, 356-358.
76
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 48-49. O autor indica-nos, nestas pági-
nas, que na tradução dos LXX também podemos encontrar esta forma verbal em passagens como: Gn
12,7; 17,1; 18,1; 26,24 – sempre com este sentido de epifanias divinas. Sobre o uso desta forma verbal,
ver ainda: E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 365-366. O verbo ὁράω significa ‘ver’, ‘ter olhos’,
‘olhar’, ‘observar’, ‘entender’ e ‘advertir’. Cf. I. Pereira, «Ὁράω», in DGPPG, Braga 19907, 411.
77
 Carlo Rusconi esclarece que a forma verbal ὤφθη (aoristo passivo do verbo ὁράω) que dizer ‘foi
visto’ ou ‘apareceu’. Cf. C. Rusconi, «ὁράω», in DGNT, São Paulo 2003, 336.
78
  Cf. H. Kessler, La risurrezione di Gesù Cristo, Brescia 20102, 133-135. No entanto, da pág. 139 à
141 deste livro, o autor insiste que precisamos de distinguir as aparições do ressuscitado de todas
as outras visões. Paulo distingue radicalmente as suas sucessivas ‘visões do Senhor’ (cf. 2Cor 12,1-7;
1 Ts 4,15; 1Cor 15,51; Gal 2,2; Rm 11,25) da sua experiência de Damasco, que é a sua experiência
pascal: «Depois apareceu a Tiago e, a seguir, a todos os Apóstolos. Em último lugar, apareceu-me
[ὤφθη] também a mim, como a um aborto» (1Cor 15,7-8). Contudo, para Lc as aparições pascais
ficaram concluídas com a ascensão de Jesus ao céu (cf. At 1,9). Por isso, nesta tradição lucana não
foi concedida a Paulo uma última aparição do ressuscitado mas apenas uma visão de Cristo no céu,

422
Deste modo, nas ‘aparições’ a iniciativa é do ressuscitado – é ele que se mos-
tra. Esta experiência dos primeiros discípulos não foi só fruto do seu coração,
mas tem também um caráter de ‘objetividade’, foi qualquer coisa que lhes acon-
teceu, qualquer coisa que ‘veio’ a eles e não qualquer coisa que simplesmente
‘despertou’ neles. Claro que este encontro pressupõe um itinerário progressivo de
reconhecimento do ressuscitado por parte dos discípulos. É um processo que leva
ao espanto e à dúvida: «os seus olhos abriram-se e reconheceram-no» (Lc 24,31a).
Este processo fala da dimensão objetiva e espiritual da experiência fundante da
fé cristã e garante o espaço da liberdade e da gratuidade da adesão no encontro
com o Senhor Jesus. Esta experiência pascal revela-se inseparavelmente objetiva
e subjetiva79. Por isso, a fé cristã sublinhou, desde a primeira hora, o caráter ‘so-
brenatural’ das aparições pascais, negando que tenham sido apenas fenómenos
extraordinários mas, no fundo, puramente naturais, no âmbito da psicologia ou
produzidos pela imaginação. De facto, as aparições são consideradas como reais
ações de Deus, da verdadeira manifestação do ressuscitado aos seus discípulos80.
Mas esta ‘experiência pascal’ não ignora que depois da morte de Jesus se inicia a
interpretação cristológica, inserida no processo de conversão dos discípulos e da
sua própria experiência da graça81.
No entanto, a pergunta impõe-se: as aparições são mais do âmbito objetivo
ou do âmbito subjetivo? Desde logo, são uma tensão entre a dimensão objetiva
e subjetiva. Por isso, Hans Kessler reforça a ideia de que não podem ser separa-
das, denunciando quer um objetivismo tradicionalista e fundamentalista, quer
um subjetivismo tipicamente moderno que reduz a ressurreição a uma simples

como ‘escreve’ nos Atos: «Estava a caminho e já próximo de Damasco, quando se viu subitamente
envolvido por uma intensa luz vinda do Céu» (At 9,3). Ainda que considere esta visão celeste como
um ato especial de auto-manifestação do ressuscitado, não diz que é ‘aparição’. Sobre as ‘visões’ de
Paulo do ressuscitado, distinguido das ‘aparições’, aconselhamos ainda a leitura de: E. Schille-
beeckx, Gesù, Brescia 19803, 379-398.
79
 Cf. B. Forte, La trasmissione della fede, Brescia 2014, 11-13. Trata-se de um ‘ver Jesus’ que é ao
mesmo tempo um reconhecimento e um novo ver Jesus de Nazaré, não um outro, nem um mito. Cf. E.
Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 407.
80
 G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 359. Trata-se de uma experiência globalmente pessoal
em que, segundo Vittorio Croce, não é importante distinguir entre visão física, encontro afetivo e
compreensão mental. Cf. V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 103.
81
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 414-415. O autor, na pág. 684, deste mesmo livro,
apresenta o modelo de ‘aparições’ como aquele que expressa a conexão intrínseca entre a ressur-
reição de Jesus e a experiência cristã pascal. Experiência essa que descreve como um ‘processo de
conversão’ - reforçando assim que o aspeto objetivo e subjetivo da fé apostólica na ressurreição não
podem ser separados.

423
experiência interior dos discípulos. O encontro com o ressuscitado não é sim-
plesmente subjetivo, mas qualquer coisa de ‘intersubjetivo’. Criticando a tentação
objetivista da ressurreição, este teólogo afirma claramente que a ressurreição de
Jesus não é, em si mesma, diretamente acessível.
De facto, o evento da ressurreição de Jesus supera o campo do empiricamente
constatável. O histórico, enquanto tal, não dispõe de algum meio cognoscitivo
que o coloque numa posição capaz de verificar a ressurreição de Jesus afirma-
da pelos testemunhos neotestamentários (a não ser a própria mudança das suas
vidas). Deste modo, precisamos de encontrar uma categoria que possa ser mais
adequada à realidade testemunhada no NT: a categoria do encontro intersubjeti-
vo. Com efeito, por um lado, o crucificado-ressuscitado vem a mim e, no encon-
tro comigo, contribui a colocar, pelo menos da sua parte, as condições para um
possível reconhecimento; por outro lado, eu, neste processo de conhecimento,
mudo parte de mim mesmo no contacto com ele.
Para compreender melhor este processo da mudança da estrutura fundamen-
tal do sujeito precisamos de considerar a teoria da experiência transcendental e
a filosofia transcendental da conversão – capaz de modificar as próprias condi-
ções de possibilidade da experiência. Assim, a experiência nova e transcendental
supera o contexto e o horizonte da experiência precedente, onde cada sucessiva
experiência é feita a uma luz nova82. De facto, a experiência de Jesus ressuscita-
do é sentida como presença real ainda que não possa ser corretamente tradu-
zida como presença física, no sentido mais comum. Esta experiência pode ser
apresentada como presença corpórea. Mas com que significado? Corporeidade
no mundo bíblico não é reduzível a dimensão física nem ao conceito atual de
corpo material. Corporeidade, aqui, prende-se com a totalidade do ser homem
em relação, como aquele que, sendo parte do mundo, estabelece relação com o
mundo, ocupando um espaço de presença e de ação na história que é seu e de
mais ninguém83. Na verdade, o corpo do ressuscitado não é o corpo que ele tem
mas o corpo que ele forma.

82
  Cf. H. Kessler, La risurrezione di Gesù Cristo, Brescia 20102, 252-254 e 122-124.
83
 Cf. V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 111. Nesta mesma página, este autor
sugere que a corporeidade pode ser traduzida com o conceito moderno de ‘estrutura’, já que o corpo
não é tanto a matéria que o compõe mas, sobretudo, a estrutura, única e irrepetível, que organiza toda
a matéria de que somos constituídos ao serviço do meu insubstituível existir, pensar, querer e fazer.
Neste sentido, o cadáver, que restitui à terra o material de que somos constituídos, não é mais propria-
mente o meu corpo senão como último sinal impresso no mundo da minha característica presença
física, da minha história de homem entre os homens no mundo.

424
Trata-se, por isso, de pensar na experiência das aparições do ressuscitado
como uma reciprocidade hermenêutica de encontro onde o reconhecimento re-
vela progressivamente a identidade. De todos os encontros com o ressuscitado, o
encontro com os discípulos de Emaús é o que nos permite compreender melhor
este dinamismo do reconhecimento progressivo do ressuscitado. Edward Schille-
beeckx diz, neste sentido, que na experiência ‘pascal’ é fundamentalmente o re-
conhecimento de Jesus na totalidade da sua vida84. Por isso, segundo Hans Urs
von Balthasar, é fundamental identificar a ressurreição com as aparições, desde
logo, porque a ressurreição não é ‘qualquer coisa’ que está ‘fora’ da história ou à
margem da história dado Jesus ter ressuscitado ‘dentro’ da história. A ressurrei-
ção consiste numa expressão de ser e, enquanto tal, é o encontro entre a história
(objetividade) e a fé (subjetividade)85.
Na verdade, os ‘episódios’ de ‘aparição’ sublinham a categoria do encontro
onde o ‘aparecer’ (de Jesus) precisa de ser reconhecido por aqueles que anterior-
mente tinham caminhado com Jesus terreno (os discípulos). O aparecer de Jesus
ressuscitado é um aparecer significativo: isto é, um ato intensionalmente simbó-
lico, mediado por gestos e palavras que instituem a verdade (caso contrário, irre-
conhecível como verdade de Jesus) e a tornam acessível (ou seja, pensável como
condição divina de Jesus)86. Deste modo, a aparição do ressuscitado não é uma
visão interior meramente subjetiva, nem uma simples manifestação exterior,
como se fosse um ‘voltar a esta vida’ (uma reanimação como a de Lázaro), mas
uma auto-revelação do ressuscitado que no centro tem um encontro surpreenden-
te, pessoal e real daqueles que antes tinham caminhado com ele.
Neste sentido, Hans Urs von Balthasar afirma que as aparições não podem
ser reduzidas a simples visões, quer ‘objetivas’, quer ‘subjetivas’. De facto, nem a
categoria de ‘visão objetiva’, nem sequer a categoria de ‘ver imaginário’ é suficien-

84
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 407.
85
  Cf. H.U. von Balthasar, Teologia dei tre giorni, Brescia 20118, 192. «The resurrection of Christ’
must have something ‘to do with the existence and history of human beigs on our planet’». Cf. G.
O’Collins, Easter Faith. Believing in the Risen Jesus, London 2003, 27. Edward Schillebeeckx reforça
esta mesma ideia quando afirma que, a partir da análise dos episódios das aparições, emerge a in-
dicação clara de ser um ‘acontecimento histórico-salvífico’, um acontecimento da ‘graça’ da divina
iniciativa da salvação, uma graça que se manifesta na realidade histórica e na experiência do homem.
Esta ideia de graça de Deus, ainda que noutro contexto, é ‘antecipada’ por Jesus, depois da confissão de
fé de Pedro: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas
o meu Pai que está no Céu» (Mt 16,17). Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 410.
86
 Cf. P. Sequeri, «Gesù risorto. Evento, fede, sacramento», HumTeo 35 (2014) 12.

425
te para descrever as aparições do ressuscitado87. Precisamos de falar absoluta-
mente de um ‘encontro’. Um encontro com Cristo vivente. É evidente que, como
em qualquer encontro humano, participam também os sentidos: ‘os discípulos
vêem, ouvem, tocam, comem com o ressuscitado’. Contudo, o acento não é colo-
cado nesta experiência dos sentidos mas sobre o encontro com Cristo que vive e
se mostra a si mesmo88.
Em síntese, podemos dizer que as aparições revelam três dinamismos: a) o
momento da iniciativa que parte do próprio Jesus ressuscitado, ele ‘faz-se ver’
[ὤφθη], o invisível torna-se visível; b) o momento do reconhecimento, cujo con-
teúdo constitui o ‘Kerygma apostólico’, Jesus foi morto e ressuscitou ao terceiro
dia (cf. Lc 24,46; At 2,23-32; 3,15-16; 4,10-11; 5,30-31; 10,39-40; 13,38-41) - Jesus é
reconhecido como o Cristo; c) o momento do testemunho ou da missão, o encon-
tro com os Doze reforça o sentido da experiência comunitária, onde o princípio
de ‘autoridade apostólica’ resulta como consequência das aparições de Jesus a

87
 Alfredo Dinis (teólogo) e João Paiva (cientista), dizem que não há visões objetivas, mas apenas visão
por indução direta da realidade (como ler), visão por exercício de imaginação (como pensamentos
ou sonhos) e visão por exercício místico. Cf. A. Dinis; J. Paiva, Educação, ciência e religião, Lisboa
2010, 146-153. Contudo, preferimos a opinião e a fundamentação teológica de Joseph Ratzinger que, a
propósito das ‘aparições de Fátima’, começa por falar da relação entre ‘revelação pública’ e ‘revelação
privada’, dizendo que esta última se aplica a todas a visões e revelações verificadas depois da conclusão
do NT (como é o caso de Lourdes e Fátima). Afirma também que estas revelações privadas se manifes-
tam credíveis precisamente por fazerem apelo à única revelação púbica – revelação definitiva de Deus
em Cristo manifestada plenamente na morte e ressurreição de Jesus. No entanto, recorda-nos que,
apesar de a Revelação ter acabado, não quer dizer que esteja completamente explicitada (CIC 66). Por
isso, podemos falar em visões. Em seguida, irá distinguir a visão pelos sentidos (visio sensibilis); a per-
ceção interior (visio imaginativa); e a visão espiritual (visio intellectualis). Este ‘ver interiormente’ não
significa que se trata de fantasia, ou que seja apenas uma expressão da imaginação subjetiva. Significa,
antes, que a alma recebe o toque suave de algo real, mas que está para além do sensível, tornando-a
capaz de ver o não-sensível, o não-visível aos sentidos: uma visão através dos ‘sentidos internos’. Se,
na visão exterior, já interfere o elemento subjetivo, isto é, não vemos o objeto puro, chegando-nos este
através do filtro dos nossos sentidos que têm de operar um processo de tradução; na visão interior,
isso é ainda mais claro, sobretudo, quando se trata de realidades que, por si mesmas ultrapassam o
nosso horizonte. Assim, tais visões não são em caso algum a ‘fotografia’ pura e simples do Além, mas
trazem consigo também as possibilidades e limitações do sujeito que as apreende. Cf. J. Ratzinger,
«Comentário Teológico», Apelação 2000, 43-63. O teólogo Hans Kessler também distingue estes três
tipos de visão mas de forma menos fundamentada. Cf. H. Kessler, La risurrezione di Gesù Cristo,
Brescia 20102, 203-204. Gerald O’Collins fala de três possibilidades de analogias com as aparições
pascais: a experiência de luto, as visões místicas e as visões crísticas. Concluindo que as experiências
de lutos são muito diferentes; as visões místicas oferecem alguns elementos de aproximação mas não
são adequadas; as visões místicas de tipo imaginativo, podendo também oferecer elementos de leitura,
não conseguem ainda expressar os encontros com o ressuscitado, expressos no NT. Cf. G. O’Collins,
Easter Faith. Believing in the Risen Jesus, London 2003, 5-24.
88
  Cf. H.U. von Balthasar, Teologia dei tre giorni, Brescia 20118, 193-195.

426
Pedro e aos Onze (cf. Mt 28,10; Jo 20,17; Lc 24,8; 24,10). De facto, as aparições,
originalmente, não são contadas no sentido apologético ou como uma espécie
de prova da ressurreição, mas como uma legitimação da missão apostólica. Des-
te modo, a ressurreição de Jesus, a missão do Espírito, a fundação da Igreja e
a ‘experiência pascal’, expressa nas ‘aparições’, são aspetos reais de um único e
grandioso acontecimento salvífico: Jesus, mediante a sua ressurreição, está de um
modo novo connosco. É isto que as aparições querem exprimir89.
Por tudo isto é que podemos concluir que a Páscoa é a grande estação da
esperança90. Contudo, a Páscoa não é mais um tempo entre outros tempos nem
um tempo para além do tempo, mas traz consigo uma nova forma de entender o
tempo, ou seja, à luz da Páscoa podemos ler todos os outros tempos91 - desde as
origens até ao ‘fim dos tempos’92. De facto, segundo Levinas, a ressurreição cons-
titui o acontecimento principal do tempo93. Trata-se de uma plenitude de tempo
que Jesus é e nos dá, capaz de nos fazer entrar no sentido mais pleno do próprio
tempo da esperança. Um tempo que nos é oferecido gratuitamente mas que exige
acolhimento para que seja efetivamente esperança em nós e no mundo.

5. O ‘tempo novo’ reclama a conversão de vida para que seja o tempo da


esperança
Víamos que, no encontro com o ressuscitado, surge um tempo novo que é
plenitude e graça, um tempo que é da ordem do καιρός. No entanto esse tempo,
para ser verdadeiramente ‘tempo em nós’, precisa de ser acolhido e tocado. Caso
contrário, seria apenas uma abstração teórica incapaz de transformar a vida con-
creta de cada pessoa. Por isso, falámos da experiência pascal como o reconheci-

89
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 372 e 407. Um encontro que revela uma dimensão e
tensão escatológica dos primeiros dias e das primeiras semanas depois da morte de Jesus, que nem
sempre as narrativas pascais evangélicas sublinham suficientemente, já que foram escritas vários anos
depois. Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 364-365.
90
  «Easter is a great season of hope». L.A. Tagle, Easter People, New York 2005, 15.
91
 Cf. J. Granados, Teología del tiempo, Salamanca 2012, 260. O mesmo autor dirá, da pág. 268 à 269,
que tal como falamos de ressurreição da carne também podemos falar da ressurreição do tempo, pois
a carne está feita de tempo e vive de tempo.
92
  Basta recordar o prólogo de João que diz: «1No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e
o Verbo era Deus. 2No princípio Ele estava em Deus. 3Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele
nada veio à existência» (Jo 1,1-3); e as palavras de Jesus: «E sabei que Eu estarei sempre convosco até
ao fim dos tempos» (Mt 28,20b). BS.
93
  «La résurrection constitue l’événement principal du temps». E. Levinas, Totalité et infini, Paris
1990, 317.

427
mento do ressuscitado por parte dos discípulos. Um reconhecimento que assume
as mediações humano-históricas sem as quais o processo não é pensável. Porém,
a experiência do ressuscitado não se centra nestes pressupostos de continuidade,
há um horizonte categorial de transformação que revela, ao mesmo tempo, des-
continuidade. Os pressupostos conduzem à transformação mas não provocam
essa transformação, ou seja, são uma condição necessária mas não uma condição
suficiente. De facto, a transformação dos discípulos é resultado do encontro ines-
perado e surpreendente com o Senhor94. Por outras palavras, o tempo novo que o
ressuscitado oferece reclama a conversão. Com efeito, Jesus dá um tempo a cada
pessoa com quem se encontra, mas cabe a cada pessoa aceitar ou recusar esse
tempo. Por isso, o tempo que Jesus dá traz em si um dinamismo de liberdade,
que o próprio amor exige. Sendo da natureza do amor trinitário, Jesus não pode
impor-se nem impor o tempo que oferece. Com efeito, o καιρός, que nos abre ao
ἔσχατον, exige atenção porque é um instante, reclama liberdade porque é oferta e
desafia à conversão porque é reconhecimento.
A conversão a Deus tem, no contexto judaico, um sentido de rutura social:
com os próprios bens, com a casa, com a família. Este torna-se um topos tra-
dicional entre os judeus da diáspora. Converter-se coincidia com a renúncia a
qualquer posse. Deste modo, as condições e os fenómenos concomitantes de uma
conversão são deixar casa e família a fim de seguir Yhwh. Catequeticamente, isto
era colocado em relação com o mandamento de Deus a Abraão de deixar tudo e
meter-se a caminho para a terra da promessa, terra desconhecida (cf. Gn 12,1-9).
Este mandamento divino, no judaísmo tardio, era frequentemente interpretado
como uma ‘visão de conversão’. Este mesmo ‘esquema’ judaico tradicional da
conversão é usado no NT para indicar a passagem de judeu (pagão) a seguidor de
Jesus95. Esta passagem torna-se lugar habitável e referência de sentido. Eis o dina-
mismo: «coloca-se, assim, a vida crente nos lugares de passagem e de atravessa-
mento, com as suas aberturas prometedoras mas, também, com os seus riscos e
ameaças. (…) E, por isso, a passagem pode tornar-se dolorosa. A passagem faz-se
passio. Esta é a dinâmica da conversão»96.
Esta conversão liga-se, muitas vezes, ao arrependimento. Estes dois aspetos
introduzem-nos na relação entre a liberdade de Deus (santo) e a liberdade do
homem (pecador). Assumida esta tensão, não deixa de ser interessante que ‘pe-

94
  Cf. H. Kessler, La risurrezione di Gesù Cristo, Brescia 20102, 194-197.
95
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 227-228.
96
  J.F. Correia, Entre-tanto, Prior Velho 2014, 111.

428
car’ (ḥāṭṭāʹ) signifique etimologicamente ‘errar a estrada’ e ‘converter-se’ (šûb)
signifique ‘empreender o caminho de retorno’ para encontrar a estrada certa.
Mas o verbo šûb também pode significar ‘responder’ (cf. Jb 13,22). Neste sentido,
a conversão faz parte da resposta do homem a Deus - uma liberdade e uma res-
ponsabilidade do homem ou de um povo97. Trata-se de um (cor)responder. Por
outras palavras, podemos dizer que a conversão é o novo nascimento de uma
liberdade que supera o mundo e recria a vida, na medida em que antecipa a vida
do reino de Deus98.
No NT a conversão é expressa pela palavra metanóia (μετάνοια), do verbo
μετανοέω (μετά + νοέω), que quer dizer literalmente ‘mudar de opinião’, ‘mudar
de pensamento’ ou ‘mudar de mentalidade’99. Este verbo traduz-se, muitas vezes,
pela palavra ‘converter-se’, como em Mt 3,2: «Dizia [João Batista]: ‘Convertei-vos
[μετανοεῖτε], porque está próximo o Reino do Céu’». Na pregação de Jesus a con-
versão adquire um conteúdo essencial da fé – a adesão ao ‘evangelho’: «Comple-
tou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos [μετανοεῖτε] e
acreditai no Evangelho» (Mc 1,15).
Neste contexto da pregação do reino de Deus, vemos que, quando Jesus reali-
za um milagre, faz um apelo direto ou indireto à conversão e à fé na sua missão.
Esta é precisamente a principal característica do milagre cristão – estar ligada à
conversão interior e abrir a uma relação transformante com Cristo100. Isto mesmo
pode ser ilustrado com o exemplo da cura do paralítico (cf. Mc 2,1-12) e com a
cura do cego junto à piscina de Betzatá (cf. Jo 5,14)101.
Mas este apelo à conversão não se esgota nos milagres, antes pelo contrário,
estende-se a todos os encontros de Jesus nos evangelhos. Estes, habitualmente,
conduzem à conversão e à mudança de vida. Um encontro que dá novo horizon-
te e que oferece uma esperança capaz de converter o coração. De facto, as suas
palavras e os seus gestos conduzem várias pessoas a uma mudança radical de
vida como Zaqueu (Lc 19,1-10) e o ‘bom ladrão’ (Lc 23,39-43)102. Contudo, alguns

97
  Cf. E. Bianchi, «Conversione», Cinisello Balsano 2010, 215-216.
98
 Cf. J. Moltmann, Etica della speranza, Brescia 2011, 75.
99
  Cf. C. Rusconi, «μετανοέω», in DGNT, São Paulo 2003, 305. Isidro Pereira diz apenas que o subs-
tantivo feminino μετάνοια quer dizer ‘mudança de sentimentos’ e ‘arrependimento’. Cf. I. Pereira,
«μετάνοια», in DGPPG, Braga 19907, 368.
100
  Todos os milagres de Jesus descritos em Mc, Mt, Lc e Jo, têm como fio condutor conduzir à fé, ao
arrependimento e ao discipulado. Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, II, New York 1994, 544.
101
 Cf. R. Latourelle, Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986, 377-378.
102
  Cf. E. Bianchi, «Conversione», Cinisello Balsano 2010, 219-220.

429
contemporâneos de Jesus e pessoas com quem se encontrou recusam a conversão
e a mudança de vida. Um episódio que parece ilustrar esta recusa é o encontro
de Jesus com o ‘jovem rico’ (Mt 19,16-26 e paralelos: Mc 10,17-27 e Lc 18,18-27).
Mas o que é específico da conversão no NT? O que é radicalmente novo não é
a relação entre ‘conversão’ e ‘deixar tudo’ (estes eram modelos pré-constituídos).
Na verdade, a originalidade da conversão no NT tem em conta, sobretudo, dois
aspetos: não é uma conversão motivada pelo medo do castigo; e é uma conver-
são ao próprio Jesus. De facto, João Batista apelava à conversão, junto do Jordão,
dizendo: «O machado já está posto à raiz das árvores, e toda a árvore que não
dá bom fruto é cortada e lançada no fogo» (Mt 3,10). Desta afirmação emerge
uma perspetiva comum a muitos profetas – uma conversão motivada pelo medo
do castigo. O método parece simples – o homem está bem como é, então para o
motivar a mudar de vida é preciso ameaçar e meter medo. No entanto, Jesus usa
outro método, nos seus encontros e nas suas palavras, o motivo para se converter
decorre da alegria de um anúncio inesperado e não do medo de um castigo imi-
nente103. A novidade da conversão no NT prende-se com o facto de o seguimento
de Jesus ser qualificado como uma metanóia escatológica. Esta ‘metanóia esca-
tológica’ é uma ‘conversão ao próprio Jesus’. Uma condição que é determinante,
para a comunidade cristã pós-pascal, para pertencer à comunidade escatológica.
Tudo o resto, como ‘deixar tudo’, não é especificamente cristão mas expressão do
próprio ato de conversão (a Jesus). Deste modo, a particularidade do seguimento
de Jesus não está no abandono de tudo para realizar uma relação ‘mestre-discí-
pulo’, nem sequer no confessar Jesus, mas no facto de este confessar de Jesus ser
qualificado como uma conversão religiosa – uma conversão a Jesus104.
Assim, conversão apela a um relação de ‘cuidado’ e de ‘cura’ capaz de dar uma
esperança que transforma a vida de cada pessoa. Um dinamismo que nos revela
Jesus a querer cuidar de nós e a querer dar a todos um tempo novo, independen-
temente do nosso pecado e das nossas fragilidades. Um dinamismo muito fácil
de perceber nos vários encontros que fomos analisando. Talvez aqui possamos
recorrer às palavras do Papa Francisco que nos ajuda, com uma imagem simples,
a compreender melhor este dinamismo da conversão do pecador: alguns pensam

103
  Cf. V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 49. Gerhard Lohfink assinala algu-
mas semelhanças entre João Batista e Jesus, mas também sublinha que a grande diferença está no facto
de Jesus não anunciar um juízo iminente de fogo, mas a salvação que está próxima. Cf. G. Lohfink,
Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 19-22.
104
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 229-230.

430
que o pecado é uma ‘mancha’, e nesse caso bastaria ir a uma lavandaria para tudo
voltar a ser como antes; mas o pecado é uma ‘ferida’ que precisa de ser curada
e medicada105. Neste sentido, a conversão assume-se essencialmente como uma
resposta do homem a Deus que o ama, que o cura, que o perdoa, que o acolhe. Por
outras palavras, a conversão é um dinamismo duplo: a oferta de Deus e a resposta
do homem. Também aqui a ordem não é arbitrária ou irrelevante – a iniciativa
primordial não está em nós mas em Deus106.
Voltando aos encontros de Jesus nos evangelhos, percebemos que esse é o
sentido e o objetivo da sua ação. De facto, Jesus diz aos judeus, na casa de Levi,
que: «Não foram os justos que Eu vim chamar ao arrependimento, mas os peca-
dores» (Lc 5,32). E quem são estes pecadores que Jesus veio chamar ao arrependi-
mento e à conversão? Quem são estes pecadores de quem Jesus tanto se interessa?
No NT o pecador é todo aquele que goza de má reputação aos olhos do povo
como publicanos, ladrões, prostitutas, pagãos, burlões, adúlteros, assassinos, tra-
ficantes de dinheiro.
Deste modo, o título de pecador aplica-se a uma conduta imoral ou a uma
profissão difamante, elencadas nos textos rabinos (aqui encontramos profissões
de reputação suspeita como os joalheiros, os cabeleireiros, os que limpavam os
moinhos, os vendedores de porta a porta, tecelões, lavadores, curtidores de pe-
les). No entanto, os pecadores do evangelho não se identificam tanto com as pro-
fissões suspeitas, mas antes com uma dimensão religiosa, que está para além da
condição social. Deste modo, ao pecador contrapõe-se o justo107. Jesus tem todos
estes pecadores no coração e quer que cada um deles se converta108.
Todo este dinamismo de conversão liga-nos ao próprio contexto das apari-
ções do ressuscitado e ao tempo novo que se inicia com a ressurreição. Um tempo
novo que está associado à conversão profunda dos discípulos depois da morte de
Jesus. Deste modo, precisamos de sublinhar a profundidade e a radicalidade do

105
 Cf. Francesco, Il nome di Dio è misericordia, Città del Vaticano 2016, 41.
106
  Este dinamismo de conversão, de oferta de Deus e de resposta do homem, continua hoje na celebra-
ção litúrgica da Igreja, especialmente nos sacramentos, onde o ‘tempo novo’ que Jesus é e dá se torna,
quando acolhido, tempo dos homens. Cf. J. Granados, Teología del tiempo, Salamanca 2012, 92.
107
 Cf. N. Calduch-Benages, Il profumo del Vangelo, Milano 20092, 62-63. Nestas páginas a autora
sublinha que nos relatos evangélicos o pecador se transforma numa figura com a qual o leitor espon-
taneamente se identifica.
108
  Também aqui recordamos as palavras do Papa Francisco: O Senhor nunca se cansa de perdoar,
nós é que nos cansamos de lhe pedir perdão. Cf. Francesco, Il nome di Dio è misericordia, Città del
Vaticano 2016, 9.

431
‘processo de conversão dos discípulos’ que implica necessariamente uma relação
de reconhecimento de ‘Cristo’ em ‘Jesus de Nazaré’109. Um processo que os di-
ferentes encontros de Jesus vão desvelando até atingirem o cume nas aparições
do ressuscitado. São essas aparições que manifestam o culminar do próprio pro-
cesso de conversão dos discípulos. Um processo que não atinge apenas cada um
mas o próprio grupo110. É precisamente esta dimensão comunitária que iremos
aprofundar em seguida.

  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 400-401.


109

  Neste sentido José Frazão diz que o dinamismo da conversão não é apenas das consciências, mas
110

também do próprio corpo eclesial. J.F. Correia, Entre-tanto, Prior Velho 2014, 111.

432
Capítulo III

Cada encontro com Jesus conduz a pessoa à comunidade

O tempo que Jesus dá em cada encontro não fala apenas do ‘meu’ tempo,
mas do tempo de todos os outros. Por isso, a matriz da esperança cristã não é
um tempo de vida isolado, um tempo exclusivo de cada um, mas sempre, ine-
vitavelmente, o tempo dos outros1. Neste contexto, podemos concluir que Jesus
quis ‘dar-nos’ um tempo partilhado com outros, um tempo que nos tornasse
comum-unidade (comunidade). Um tempo novo que começa na Páscoa. É desse
tempo novo e desse encontro com o ressuscitado que nasce a primeira comu-
nidade cristã2. Deste modo, cada encontro de Jesus com alguém desafia a essa
comum-unidade, que foi, desde logo, chamada ‘comunidade’ dos ‘discípulos’ e
da qual o grupo dos ‘Doze’ é o primeiro paradigma. Gerhard Lohfink diz preci-
samente que Jesus se encontra individualmente com cada pessoa mas não pensa
num grupo que seja apenas a soma de cada uma dessas pessoas. Jesus tem um
interesse extremo pela comunidade3.
Neste contexto, podemos dizer que a esperança que Jesus dá é relacional em
dois sentidos: por um lado, nasce da relação; e por outro lado, leva à relação. Uma
relação que, sendo profunda e centrada no mistério pascal da morte e ressur-

1
 Cf. J.B. Metz, Mística de olhos abertos, São Paulo 2013, 29.
2
  «In fact the first Christian community was born from the faith in the Risen Christ». L.A. Tagle,
Easter People, New York 2005, 16. Sobre o concontro com o ressuscitados como fundamento da comu-
nidade aconselhamos: G. Lafont, Che cosa possiamo sperare?, Bologna 2011, 206-208.
3
 Cf. G. Lohfink, Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 101. Antes, na pág. 21,
o mesmo autor diz que João Batista, ao ‘contrário’ de Jesus, não se dirige à humanidade em geral, nem
a cada pessoa, mas aos membros do povo de Deus – aos diferentes grupos e movimentos existentes
em Israel, como fariseus, essênios e zelotas. De facto, podemos dizer, a partir destas afirmações de
Gerhard Lohfink, que Jesus fala e se dirige não apenas ao povo de Israel mas a todos sem exceção,
como aos samaritanos; que Jesus não se dirigia apenas ao povo de Deus, mas a cada pessoa concreta
com quem se cruzava.

433
reição de Jesus Cristo, faz de um grupo de pessoas individuais uma verdadeira
comunidade cristã. Essa experiência comunitária da esperança, bastante referida
em Paulo, leva-nos a concluir, como Luis Tagle, que a comunidade brota da espe-
rança e uma verdadeira comunidade produz esperança. Ou seja, a comunidade
é não só um fruto da esperança como também portadora de esperança4. De fac-
to, como diz o Papa Francisco, «a esperança cristã não tem apenas um alcance
pessoal, individual, mas comunitário, eclesial. Todos nós esperamos; todos nós
temos esperança, inclusive de modo comunitário»5.

1. Todos os encontros conduzem à (re)integração na comunidade


Cada encontro com Jesus leva ao seguimento e conduz à comunidade. Os
que são chamados, perdoados, curados ou reanimados, são desafiados a assu-
mir uma dimensão comunitária. De modo muito concreto, podemos dizer que
a cura, na bíblia, não é apenas a ‘restauração’ da saúde física mas também a res-
tauração da comunhão. Ou seja, se a doença isolava a pessoa da comunidade, a
cura reintegrava-a novamente na comunidade. Quando Jesus curava, realizava
esta (re)integração: restituía a pessoa curada à comunidade. A própria atenção
ao doente, por parte de Jesus, constituía o início da cura. Ele fazia sentir aos
doentes, separados da comunidade ou declarados impuros, que eram pessoas
importantes6.
Ao longo deste estudo esta dimensão de (re)integração na comunidade, e na
própria sociedade, foi surgindo com uma inesperada evidência, desde logo nos
sinóticos. Dos muitos encontros, começamos por destacar dois momentos muito
emblemáticos deste ‘regressar à sociedade’ e, consequentemente, do ‘retomar a
relação’ na comunidade: quando Jesus cura da lepra (Lc 17,11-19) e quando Jesus
liberta das possessões (Lc 8,26-39)7. O isolamento social era muito grande para
quem fosse um doente com lepra e também para quem fosse considerado posses-
so. Um isolamento que era já ‘condenação’ a uma não-pertença e a uma não-exis-
tência plena – em ambos os casos as pessoas eram consideradas ‘impuras’. No

4
  «Community springs forth from hope and a true community brings forth hope. Thus, community
is both a fruit and a bearer of hope». L.A. Tagle, Easter People, New York 2005, 92.
5
  Francisco, Audiência Geral, 08 de fevereiro de 2017.
6
  Cf. L.A. Tagle, Easter People, New York 2005, 42.
7
  Sobre esta dimensão, no contexto das possessões, Gerhard Lohfink diz que uma vez expulsos os
demónios, que isolam e destroem, o que antes estava possesso pode agora integrar a comunidade. Cf.
G. Lohfink, Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 117.

434
entanto Jesus, diante destes casos, tem uma atitude de compaixão, aproxima-se,
toca, cura e desafia a uma (re)integração.
No caso do possesso (Lc 8,26-39) Jesus libertou-o de tudo o que o desumani-
zava e destruía a sua personalidade. Esta libertação e este regresso à pessoa que
se é, são o primeiro resultado do exorcismo. Todavia, o texto de Lc termina a
‘dizer’ que este homem ‘tornou-se’ discípulo e será o primeiro ‘apóstolo’ dos pa-
gãos. Por isso, a ação de Jesus, como afirma Matteo Crimella, não realiza apenas
a cura física, mas estabelece também a pessoa na sua plenitude, segundo o de-
sígnio salvífico de Deus8. O mesmo podemos referir dos dez leprosos que Jesus
curou. Sendo que, aquele que regressou para agradecer a Jesus, representava não
apenas os ‘pecadores’ (porque leproso) como também os ‘pagãos’ (porque sama-
ritano). Deste modo, os pecadores e os pagãos podem experimentar a salvação
de Deus e entrar na nova comunidade daqueles que acreditam em Jesus9. Uma
vez curados, estes homens, leprosos e possessos, ficam humanamente restabele-
cidos na sua capacidade de relação consigo, com os outros, com o mundo que o
rodeia e, sobretudo, com Deus.
Neste sentido, podemos recordar tantos outros encontros como o do cego
de Jericó (Lc 18,35-43). Neste texto evangélico o autor termina a dizer que o
cego «recobrou a vista e seguia-o [a Jesus]» (v.43a). Este seguir Jesus fala-nos
do dinamismo do discipulado. O texto continua e diz «todo o povo, ao ver isto,
deu louvores a Deus» (v.43b). Uma opção pessoal de seguir Jesus que nos fala do
‘integrar’ o ‘povo’ que já o seguia. Como já referimos a palavra ‘povo’ [λαός],
em Lc, indica todo o povo de Israel, destinatário da promessa de Deus10. Aquele
que estava cego, que tinha de pedir para viver, que estava à beira do caminho,
que estava fora da cidade, que não podia caminhar, uma vez curado, passa a ver,
começa a caminhar, entra dentro da cidade, pode voltar a trabalhar, regressa à
sua família e à sua comunidade. Aquele que já não ‘contava’ para a comunidade
pode ser agora um membro ativo e, principalmente, um discípulo capaz de falar
da ação salvífica de Deus na sua vida.

8
  Cf. G. Rossé, Il Vangelo di Luca, Roma 20125, 303.
9
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 275.
10
  Ibidem, 48. Na tradução grega do AT este termo λαός tem um acento de solenidade e refere-se ao
povo de Israel eleito e guiado por Deus. Cf. G. Lohfink, Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello
Balsamo 2015, 59. Carlo Rusconi reforça este sentido quando diz que λαός quer dizer ‘povo’ – por
antonomásia ‘Israel’ (cf. Jo 11,50) e, por extensão, do procedente ‘cristãos’ (cf. At 15,14) ou os cidadãos
da ‘nova Jerusalém’ (cf. Ap 21,3). Cf. C. Rusconi, «λαός», in DGNT, São Paulo 2003, 283.

435
Podemos recordar, ainda nos sinóticos, quando Jesus se encontra com a peca-
dora arrependida e lhe diz: «A tua fé te salvou. Vai em paz» (Lc 7,50)11. Esta frase,
como já referimos ao analisarmos este encontro, revela um duplo dinamismo: do
pecado à salvação – «a tua fé te salvou [ἡ πίστις σου σέσωκέν σε]»; e da salvação
à vida cristã - «vai em paz [πορεύου εἰς εἰρήνην]». De facto, a salvação não é uma
adesão passiva mas um regressar à vida concreta da comunidade. O ‘ir em paz’
significa, por isso mesmo, que estão chamados a entrar numa comunidade e que
Cristo não abandona os seus12. O significado do ‘ir em paz’ prende-se com a paz
que permite o ‘regresso’ à comunidade para celebrar a Paz que Jesus revela nos
relatos do ressuscitado, especialmente no quarto evangelho: «Paz a vós [εἰρήνη
ὑμῖν]» (Jo 20,19c;21b e 26b). Esta paz que Jesus ‘dá’ já tinha sido ‘anunciada’ no
discurso do adeus: «Deixo-vos a paz; dou-vos a minha paz. Não é como a dá o
mundo, que Eu vo-la dou» (Jo 14,27ab). Não é uma paz qualquer a ‘sua’, aquela
que vem dele, que nos conduz à plenitude de vida e, sobretudo, nos faz celebrar a
total integração na comunidade pascal.
Nos encontros do quarto evangelho esta integração na comunidade também
acontece. Um dos exemplos mais evidentes é o diálogo com a samaritana. Os
samaritanos e as mulheres não gozavam de muita ‘simpatia’ por parte dos ju-
deus. Esta mulher, para além do mais, tinha tido já seis maridos e agora vivia
com outro homem – era a ‘metáfora’ da exclusão da comunidade. Daí que tenha
ido sozinha ao poço buscar água, a uma hora estranha. No diálogo com Jesus,
sente-se acolhida e ‘descobre’ que aquele homem é o Messias, por isso, regressa à
cidade a contar a ‘boa-notícia’. Aquela que era ‘imoral’ e ‘impura’, aquela que es-
tava ‘excluída’, agora anuncia Jesus aos cidadãos da sua cidade e regressa com eles
ao poço onde todos podem encontrar Jesus. O Messias acaba por ficar no meio
daquela comunidade alguns dias e aquela mulher torna-se ‘discípulo’ e membro
pleno da comunidade.
Ainda neste quarto evangelho, podemos falar da revelação menos evidente
desta dimensão comunitária quando o autor passa do singular para o plural.
Uma técnica de escrita que procura revelar o quanto cada encontro pessoal com
Jesus desafia à dimensão comunitária. Podemos ver este aspeto, desde logo, no
diálogo de Jesus com Nicodemos (Jo 3,1-21) onde a certa altura encontramos:
«Jesus respondeu-lhe: ‘Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas? Em ver-

11
  Esta mesma expressão surge com o mesmo sentido em vários outros encontros como Lc 8,48; 17,19;
18,42; 8,48; 17,19; 18,42.
12
 Cf. F. Bovon, L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991, 386.

436
dade, em verdade te digo: nós falamos do que sabemos e damos testemunho do
que vimos, mas vós não aceitais o nosso testemunho’» (vv.10-11). Este v.11 (e
o v.12 continua a mesma lógica) assinala precisamente a transição do diálogo
entre o mestre de Israel e Jesus para um discurso que agora é coletivo. O plural
‘sabemos’ [οἴδαμεν], como referimos quando analisámos este encontro, não é
um plural majestático mas um plural comunitário13. Um plural que desafia o
próprio Nicodemos a ser discípulo e membro da comunidade dos que acredi-
tam em Jesus14.
De todos os encontros que revelam a dimensão da comunidade há dois en-
contros de Jesus que nos falam de outras ‘duas’ comunidades, intimamente li-
gadas à comunidade dos discípulos e dos doze apóstolos: o encontro com Tomé
que nos fala da comunidade futura e o encontro com o bom Ladrão onde Jesus
promete a ‘entrada’ na comunidade celeste. O diálogo com Tomé termina com a
afirmação de Jesus: «Porque me viste, acreditaste. Felizes [μακάριοι] os que crêem
sem terem visto!» (Jo 20,29). Se a primeira parte se refere concretamente a Tomé
e às suas dúvidas, a segunda parte desta bem-aventurança refere a possibilidade
de se acreditar sem ‘tocar’ os sinais do ressuscitado, ou seja, refere-se aos discípu-
los futuros15, a uma época em que Jesus já não poderá ser visto nem tocado16. O
evangelista valoriza assim a importância da comunidade futura, a comunidade
pós-pascal que continuará a acreditar mesmo ‘sem terem visto’. Já o ‘bom ladrão’
faz um pedido a Jesus: «lembra-te de mim [μνήσθητί μου], quando entrares no
teu Reino [βασιλείαν]» (Lc 23,42). Jesus, diante deste pedido, mesmo agonizando
na cruz, oferece-lhe a salvação. O pedido foi largamente superado pela promessa:
«hoje estarás comigo no Paraíso» (Lc 23,43b). Este paraíso é o lugar definitivo
que Deus prepara para os seus santos. Um lugar de paz e de salvação onde os
justos se encontram depois da morte. O ‘lugar’ da comunidade celeste. A morada
onde todos «seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é» (1Jo
3,2c), não um ver qualquer mas «veremos face a face» (1Cor 13,12b). Este (bom)
ladrão foi o primeiro a entrar nesta comunidade celeste.

13
  Cf. R. Infante (a cura di), Giovanni, Cinisello Balsamo 2015, 98-99.
14
  De facto, o último versículo da passagem de Nicodemos Jo 3,21 propõe o discernimento no sentido
de optar por ‘praticar a verdade’ que equivale a acreditar naquele que ‘Deus enviou’ (cf. 6,29) e tornar-
-se seu discípulo (cf. 8,12; 12,26). Ibidem, 104.
15
 Cf. X. Léon-Dufour, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996, 250-251.
16
  Cf. R. Brown, The Gospel According to John (XII-XXI), II, New York 1970, 1048.

437
2. O primeiro paradigma da comunidade é o próprio grupo dos ‘doze’
O primeiro grande paradigma do encontro com Jesus que conduz a uma co-
munidade é o próprio grupo dos ‘doze’. Jesus chama (vocare) cada um deles - diz
o evangelho que Jesus «chamou os que Ele queria» (Mc 3,13b). Contudo, este
chamar não foi apenas para o seguir individualmente mas também para fazerem
uma experiência de comunidade. Deste modo, podemos dizer que o chamamen-
to de Jesus é sempre um con-vocare (um chamar conjuntamente). Um convocar
que, nas palavras de Vittorio Croce, não tem como objetivo serem muitos para
fazerem número, mas estarem juntos para fazerem comunhão, uma comunhão
da qual ninguém se pode sentir excluído, a não ser pela sua própria recusa17.
A partir dos encontros pessoais vai sendo constituída uma comunidade: «Es-
tabeleceu estes doze: Simão, ao qual pôs o nome de Pedro; Tiago, filho de Zebe-
deu, e João, irmão de Tiago, aos quais deu o nome de Boanerges, isto é, filhos do
trovão; André, Filipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, Tiago, filho de Alfeu, Tadeu,
Simão, o Cananeu, e Judas Iscariotes, que o entregou» (Mc 3,16-19)18. Trata-se de
um grupo especial que formava um círculo interno em volta de Jesus19. Lc chama
a este grupo dos ‘doze’ – apóstolos: «Quando nasceu o dia, convocou os discí-
pulos [μαθητάς] e escolheu doze dentre eles, aos quais deu o nome de Apóstolos
[ἀποστόλους]» (Lc 6,13). Gerhard Lohfink sublinha que a eleição destes ‘doze’ foi
estabelecida como um sinal eloquente da congregação do povo escatológico das
doze tribos. Jesus constitui ‘doze’ que representam esse Israel escatológico que
começa precisamente com o grupo dos ‘doze’20. Não é por acaso que no início
da lista dos ‘doze’ aparece sempre o nome de Simão Pedro (Mc 3,16; Mt 10,2; Lc
6,14). O evangelista Mt usa mesmo a palavra ‘primeiro’ [πρῶτος] - «Primeiro,

17
 Cf. V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 67.
18
  Ver outras referências, ainda que com pequenas diferenças, aos nomes dos ‘Doze’ em Mt 10,2-4 e
Lc 6,14-16; e dos ‘Onze’ em At 1,13. Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, III, New York 2001, 130. Giulio
Michelini afirma que o elenco dos discípulos de um rabbi é comum quer na tradição judaica, quer na
greco-romana. Elencavam-se os nomes dos estudantes e depois do nome do mestre. Cf. G. Michelini
(a cura di), Matteo, Cinisello Balsamo 2013, 175.
19
  Cf. J.P. Meier, A marginal Jew, III, New York 2001, 125.
20
  Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 110. Sobre o sentido do número ‘doze’, aconselha-
mos a leitura de: G. Perego (a cura di), Vangelo secondo Marco, Cinisello Balsamo 2011, 92; M. Cri-
mella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 130. Sobre o sentido teológico dos ‘doze’ John Meier
sublinha três dimensões: os doze como modelo de discipulado; os doze como símbolos proféticos
da reunião das doze tribos de Israel; os doze como missionários proféticos enviados a Israel. Cf. J.P.
Meier, A marginal Jew, III, New York 2001, 148-163. Aconselhamos ainda: G. Lohfink, Gesù come
voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 22-25.

438
Simão, chamado Pedro» (Mt 10,2). Um pormenor que antevê a importância que,
sobretudo Mt, atribui ao apóstolo Pedro, o qual irá reconhecer que Jesus é o Mes-
sias (Mt 16,16) e a quem foram confiadas a chaves do reino do Céu (Mt 16,19)21.
Juntam-se a este grupo dos ‘doze’ muitos outros discípulos, por isso, os ‘doze’
vivem e agem acompanhados por este grande número de outros discípulos. Por
outras palavras, podemos dizer que todos os que fazem parte dos ‘doze’ são discí-
pulos, mas nem todos os discípulos fazem parte dos ‘doze’. Esta afirmação perce-
be-se melhor quando Lc fala do envio dos ‘setenta e dois’: «Depois disto, o Senhor
designou outros setenta e dois discípulos e enviou-os dois a dois, à sua frente, a to-
das as cidades e lugares aonde Ele havia de ir» (Lc 10,1). É provável que este número
não fosse muito distante da grandeza efetiva do grupo dos discípulos. No entanto,
se é verdade que o número dos ‘doze’ era fixo, já o número dos discípulos variava22.
Do grupo dos discípulos, que não fazia parte dos ‘doze’, sabemos o nome
de, pelo menos, quatro homens - Natanael (Jo 1,45;21,2), Cléofas (Lc 24,18), José
Barsabas (At 1,23) e Matias, que depois foi eleito para o lugar de Judas Iscariotes
(At 1,23.26); e sabemos também o nome de, pelo menos, cinco mulheres - Maria
de Magdala (Mc 15,40; Lc 8,2), Maria, mãe de Tiago menor e de José (Mc 15,40),
Salomé (Mc 15,40), Joana, mulher de Cuza (Lc 8,3) e Susana (Lc 8,3). O facto de
haver mulheres no grupo dos discípulos é digno de nota num tempo e numa so-
ciedade para quem isso está muito longe de ser óbvio23.
Todos estes chamamentos não são apenas para ‘estar com Jesus’, mas sobre-
tudo para aprender a ‘fazer como Jesus’24. Neste contexto, Edward Schillebeeckx
recorda-nos que antes da Páscoa não há ainda uma cristologia explícita e, por
isso, o dinamismo não é de ‘seguimento’ (com sentido de ‘conversão a Jesus’) mas
de ‘chamada’ (com sentido de ‘acompanhar o mestre’): «Estabeleceu doze para

21
  Cf. G. Michelini (a cura di), Matteo, Cinisello Balsamo 2013, 175-176. Os quatro evangelistas
apresentam Pedro como o porta-voz e/ou o chefe dos discípulos em geral ou dos ‘doze’ em particular
(como em Mc 1,36; 8,29; 9,5; 10,28; 14,29.37; Mt 15,15;16,18; 17,24; 18,21; Lc 12,41; Jo 6,68). Cf. J.P.
Meier, A marginal Jew, III, New York 2001, 222.
22
  O quarto evangelho narra que um dia um grande número de discípulos se escandalizou com Jesus
e o abandonou: «A partir daí, muitos dos seus discípulos voltaram para trás e já não andavam com
Ele. Então, Jesus disse aos Doze: ‘Também vós quereis ir embora?’ Respondeu-lhe Simão Pedro: ‘A
quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna!’» (Jo 6,66-68).
23
  Cf. G. Lohfink, Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 110-112. Sobre a relação entre o discipulado e as
mulheres que seguiram Jesus, aconselhamos: J.P. Meier, A marginal Jew, III, New York 2001, 73-80.
24
  «La chiamata non è soltanto per stare com lui, ma per imparare a fare come lui, a condividere la sua
assoluta povertà (…), a portare la croce e dare la vita, per i Dodici a diventare pescatori di uomini» V.
Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 66.

439
estarem com Ele e para os enviar a pregar, com o poder de expulsar demónios»
(Mc 3,14-15). Jesus chama-os para o acompanharem e ajudarem na sua missão
de anunciar o reino de Deus, que se torna visível principalmente na cura dos
doentes e na expulsão dos demónios25. Por outras palavras, ao chamamento a
seguir atrás de Jesus corresponde um mandato a ir à frente de Jesus para difundir
o seu anúncio sobre Deus e propor o seu projeto sobre o homem26. Um projeto
que assume claramente uma dimensão escatológica onde os ‘sinais e prodígios’
devem ser vistos em relação com o anúncio do reino de Deus – não apenas da
aproximação do reino que virá mas, sobretudo, do reino que já está presente27.
Jesus não chamou discípulos porque precisava de uma espécie de ‘corte’ à sua
volta. Não consta que fosse alguém que quisesse ter ‘admiradores’ ou que tivesse
sede de ‘protagonismo’. Também seria absurda a ideia de que teria reunido um
grupo de discípulos quando a resistência contra si se tivesse tornado mais dura.
Jesus chamou alguns para proclamarem com ele o reino de Deus28. Chamou al-
guns para concretizar uma missão e um anúncio que começa logo no ‘com ele’.
Essa marca de relação, juntamente com o facto de serem um grupo, revelam, desde
logo, especificidades próprias do chamamento de Jesus. Essa especificidade antes
mesmo de estar no conteúdo de uma mensagem, está, por um lado, num ‘estilo’ de
relação – centrado na atitude de Jesus, e, por outro, no próprio modo de ‘aprender’
essa mensagem de que um dia serão testemunhas. Nas palavras de Gerhard Loh-
fink, quando Jesus pediu aos seus discípulos para deixarem tudo, não os chamou à
solidão nem ao isolamento, mas a uma nova família de irmãos e irmãs que o reino
de Deus promove e exige29. É Jesus quem diz que «Aquele que fizer a vontade de
Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe» (Mc 3,35).
Ao constituir, à volta de si, o grupo dos Doze, Jesus pretende fazer a fundação
do novo Israel. Não se tratava de uma comunidade em alternativa ao Israel histó-
rico, nem era uma estrutura organizativa em contraposição com a ‘sinagoga’, mas
um atualizar e um renovar da aliança entre Deus e o seu Povo. Uma realização do
Reino onde a salvação é algo de essencialmente comunitário na visão do hebreu
Jesus. Um projeto messiânico-salvífico que, permanecendo tipicamente comuni-
tário, se faz universal. Todos os homens e todos os povos são chamados a acolher

25
  Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803, 231.
26
 Cf. V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 67.
27
 Cf. G. Lohfink, Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 26-27.
28
  Id., Gesù di Nazaret, Brescia 2014, 105.
29
  Id., Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 65.

440
a mensagem de Jesus, entrando na dinâmica do Reino de Deus. Neste sentido, os
Doze deveriam ser o núcleo fundante e agregador desse dinamismo30.
No entanto, depois da prisão de Jesus, no monte das oliveiras, os relatos evan-
gélicos dão a entender que os discípulos se dispersaram. Provavelmente o medo e
as dúvidas levaram-nos a esconder-se. Parecia que tinham chegado ao fim todas
as esperanças, como testemunham os discípulos de Emaús: «Nós esperávamos
[ἠλπίζομεν] que fosse Ele o que viria redimir Israel, mas, com tudo isto, já lá vai
o terceiro dia desde que se deram estas coisas» (Lc 24,21). Qual a causa de os dis-
cípulos se voltarem a reunir em comunidade? O que provocou neles o reacender
da esperança? Foi o encontro com Jesus ressuscitado. Esta re-união foi selada e
confirmada pelo dom do Espírito Santo que, por um lado, manteve a comunhão
entre eles e deles com Cristo e, por outro, lhes alimentou a esperança. A própria
comunhão em Cristo é um sinal de esperança31.
Por tudo isto, o grupo dos Doze não pode ser ignorado nem esquecido por-
que constituem os primeiros destinatários da ação salvífica de Deus e, ao mesmo
tempo, são a primeira expressão da esperança que Jesus dá32. Uma expressão co-
munitária da própria esperança ou, por outras palavras, é a primeira comunida-
de que é rosto da esperança cristã oferecida por Jesus. Um grupo especial que,
por isso mesmo, se torna o primeiro paradigma de comunidade cristã. Trata-se
de uma comunidade con-vocada por Jesus onde se ‘incarna’ a esperança.

3. A comunidade con-vocada é o lugar onde brota a esperança


Poderemos encontrar uma palavra que traduza o sentido mais profundo da
comunidade querida por Jesus? A comunidade con-vocada, da qual o grupo dos
Doze é primeiro paradigma, pode ser dita pela palavra εκκλησία. Mas o que sig-
nifica εκκλησία? Que relação podemos estabelecer entre εκκλησία e comunidade
convocada por Jesus? O que será que a εκκλησία revela do específico da comu-

30
 Cf. V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 67-68. Gerhard Lohfink sublinha
este mesmo sentido, afirmando que o grupo dos discípulos de Jesus é algo mais do que uma comuni-
dade ideal porque é a inauguração de um ‘novo’ Israel escatológico onde, desde logo, não há estruturas
de domínio. Cf. G. Lohfink, Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 102-103.
31
  Cf. L.A. Tagle, Easter People, New York 2005, 16-17.
32
  Cf. R. Fabris, Attualità della speranza, Brescia 1984, 22-25. «Gesù non intende salvare i singoli
uomini senza alcun legame fra loro ma facendone un popolo, quasi un corpo solo in se stesso. Per
cui è radicalmente contrario alla logica cristiana l’individualismo salvifico di chi cerca garanzia della
propria salvezza eterna senza gli altri o addirittura contro gli altri». V. Croce, Gesù il Figlio e il Mis-
tero della croce, Torino 2010, 201.

441
nidade ‘querida’ por Jesus? Comecemos por procurar o sentido e identificar os
diferentes contextos da palavra εκκλησία para, em seguida, percebermos em que
medida essa εκκλησία pode ser o lugar onde brota a esperança.
O termo já era conhecido no âmbito profano, como testemunham os textos de
Eurípedes e Heródoto, no séc. V a.C. Na sua origem, derivando do verbo καλέω33
através do seu composto εκαλέω, indicaria, em primeiro lugar, a chamada às ar-
mas de todos os cidadãos; e, em segundo lugar, designava a convocação de uma
reunião de cidadãos com capacidade jurídica dentro da polis grega, ou seja, da
cidade34. O termo εκκλησία segue, sobretudo, este sentido da assembleia popular
composta por homens livres, titulares de direito de voto, convocados para delibe-
rar sobre os assuntos da cidade35. Assim, a εκκλησία tinha a finalidade, e a con-
sequente autoridade, de deliberar sobre as diferentes questões relacionadas com a
vida pública, desde a formulação de leis até à constituição do supremo tribunal de
justiça. Trata-se de um termo ‘profano’ que foi ‘assumido’ no contexto ‘bíblico’.
Um contexto que deu ao próprio termo uma conotação sagrada.
No entanto, o significado cristão do termo recorre a outro contexto, vincula-
do ao significado da palavra hebraica qahal, que a versão grega dos LXX traduz,
algumas vezes, por εκκλησία36. A palavra qahal, que significa assembleia reuni-
da, provém provavelmente da palavra qol (voz). Na tradição deuteronomista o
termo designava, sobretudo, a comunidade de Israel enquanto constituída pela
aliança. O nome de Yhwh, a que a palavra qahal se une e se refere, estabelece o
específico e qualifica a assembleia que se reúne como comunidade religiosa, já
que se trata de uma ‘convocação de Deus’. Israel é a assembleia do Senhor37. Ou
seja, o termo εκκλησία pode significar quer ‘assembleia popular’, quer ‘Igreja’.
No NT distinguem-se duas aceções: Igreja no sentido de comunidade universal

33
  O verbo καλέω quer dizer essencialmente: ‘chamar’, ‘invocar’, ‘convocar’, ‘chamar a tribunal’, ‘re-
clamar’, ‘nomear’ e ‘exigir’. Cf. I. Pereira, «Καλέω», in DGPPG, Braga 19907, 291. Estes mesmos
sentidos são reforçados por Carlo Rusconi quando diz que καλέω significa ‘chamar pelo nome’, ‘ser
chamado’, ‘convocar alguém’, ‘chamar alguém’, ‘ser convocado’. Cf. C. Rusconi, «καλέω», in DGNT,
São Paulo 2003, 247. Encontramos este verbo em quase todos os escritos do NT, especialmente em Lc
e nos At. O termo é sempre traduzido por ‘chamar’, muitas vezes, com o sentido de ‘vocação’. Cf. K.
Schmidt, «καλέω», in GLNT, IV, Brescia 1968, 1453-1455.
34
  Cf. K. Schmidt, «καλέω», in GLNT, IV, Brescia 1968, 1453-1464.
35
  Cf. M.P. Río, «Ekklesía», in DE, Roma 2010, 602.
36
  Cf. K. Schmidt, «εκκλησία», in GLNT, IV, Brescia 1968, 1533-1534. Neste mesmo artigo, diz-se,
nas páginas 1558-1559, que o termo εκκλησία aparece cerca de 100 vezes na tradução dos LXX, com o
sentido ‘profano’ de ‘assembleia’. Ver ainda: M.P. Río, «Ekklesía», in DE, Roma 2010, 602.
37
  Cf. M. Semeraro, Misterio, comunión y misión, Salamanca 2004, 20-21. Ver ainda: G. Lohfink,
Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 109.

442
e Igreja entendida como comunidade singular, muitas vezes, a comunidade que
se reúne numa casa38.
Deste modo, podemos concluir semelhanças entre a qahal/εκκλησία bíblica e
a εκκλησία greco-profana. Ambas as εκκλησία se referem a uma convocação, ou
seja, a um ser chamado a participar numa ação em conjunto com outros – uma
assembleia. Porém, há uma radical diferença: a εκκλησία bíblica é reunida especi-
ficamente em nome de Deus, e não em nome das ‘armas’ ou do governo da polis39.
Daí que nesta assembleia convocada pelo Senhor, ao contrário do que acontecia
na assembleia da cidade grega, não pertencem apenas os cidadãos livres, de sexo
masculino, mas todos, incluindo as mulheres e as crianças. De igual modo, não
é composta exclusivamente pelos habitantes de uma determinada cidade, mas de
todos os ‘filhos’ de Israel40.
Esta mesma palavra parece ganhar maior sentido quando enquadrada no
contexto do NT. Jesus faz vários convites, dos quais o chamamento dos ‘Doze’ é
paradigma, e tem vários encontros que conduzem à εκκλησία41. Trata-se de um
‘convite’ pessoal que conduz ao grupo de pessoas que é chamada por Cristo. Um
grupo que se ‘alarga’ a prostitutas, leprosos, zelotes, samaritanos, cobradores de
impostos... Com Jesus parece não haver fronteiras nem limites, basta dizer sim ao
seu convite. De facto, no AT ‘várias’ pessoas eram excluídas da assembleia convo-
cada pelo Senhor: «Nem o castrado nem o que for mutilado sexualmente serão ad-
mitidos na assembleia do Senhor. O filho ilegítimo não será admitido na assem-
bleia do Senhor; nem mesmo a sua décima geração poderá ser ali admitida. Um

38
  Cf. K. Schmidt, «εκκλησία», in GLNT, IV, Brescia 1968, 1491-1492.
39
  María Pilar Río fala de cinco aspetos que distinguem a εκκλησία grega da veterotestamentária: 1.
Deve a sua existência à chamada gratuita de Yhwh; 2. Consequentemente, é uma ekklesía Kyríou, ou
seja, uma assembleia cuja identidade e cuja ação é determinada pela pertença a Yhwh; 3. Está reunida
em volta de Yhwh que a congrega; 4. Nessa e por essa Yhwh revela-se anunciando a sua vontade,
através da proclamação da Lei; 5. É reunida com uma finalidade religiosa, geralmente cultual, e, atra-
vés dessa, Israel é continuamente renovado e santificado por Yhwh. Cf. M.P. Río, «Ekklesía», in DE,
Roma 2010, 602.
40
  Cf. M. Semeraro, Misterio, comunión y misión, Salamanca 2004, 21. Ver ainda: L.A. Tagle, Eas-
ter People, New York 2005, 43-44.
41
  O CIC sintetiza este mesmo sentido quando diz: «A palavra ‘Igreja’ (‘ekklesía’, do verbo grego ‘ek-
-kalein’ = ‘chamar fora’) significa ‘convocação’. Designa as assembleias do povo em geral de carácter
religioso. É o termo frequentemente utilizado no Antigo Testamento grego para a assembleia do povo
eleito diante de Deus, sobretudo para a assembleia do Sinai, onde Israel recebeu a Lei e foi constituído
por Deus como seu povo santo. Ao chamar-se ‘Igreja’, a primeira comunidade dos que acreditaram em
Cristo reconhece-se herdeira dessa assembleia. Nela, Deus ‘convoca’ o seu povo de todos os confins
da terra». CIC 751.

443
amonita ou um moabita não serão admitidos na assembleia do Senhor; nem mes-
mo a sua décima geração poderá jamais ser ali admitida (…). Não abominarás o
edomita, porque ele é teu irmão; não abominarás o egípcio, porque foste estran-
geiro residente no seu país. Os filhos que lhes nascerem poderão ser admitidos na
assembleia do Senhor, a partir da terceira geração» (Dt 23,2-4.8-9). Deste modo,
a εκκλησία, no contexto do NT, é sempre uma comunidade (comum-unidade)
con-vocada (chamada conjuntamente) por Jesus, ou em seu nome42. Uma convo-
cação que não faz aceção de pessoas e que não exclui ninguém.
Paulo usa frequentemente este termo εκκλησία com este mesmo sentido,
como quando escreve: «à igreja de Deus [τῇ ἐκκλησίᾳ τοῦ Θεοῦ] que está em
Corinto» (1Cor 1,2a); «nem sou digno de ser chamado Apóstolo, porque perse-
gui a Igreja de Deus [τὴν ἐκκλησίαν τοῦ θεοῦ]» (1Cor 15,9bc); «com que excesso
perseguia a Igreja de Deus [τὴν ἐκκλησίαν τοῦ θεοῦ] e procurava devastá-la»
(Gal 1,13b). Sem distinção entre judeus e pagãos, sobretudo a partir de Paulo,
a εκκλησία, no contexto do NT, é a comum-unidade de todos os que acreditam
em Cristo e se deixam ‘convocar’ por Ele: «Não há judeu nem grego; não há es-
cravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo
Jesus» (Gl 3,28). Este sentido de pertença, este ter tudo em comum, aparece de
forma clara nos Atos dos Apóstolos: «Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à
união fraterna, à fração do pão e às orações. (…) Todos os crentes viviam unidos
e possuíam tudo em comum [ἅπαντα κοινά]. Vendiam terras e outros bens e dis-
tribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um» (At
2,42.44-45); «A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e
uma só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era
comum [ἅπαντα κοινά]. (…) Entre eles não havia ninguém necessitado, pois to-
dos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e
depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um conforme
a necessidade que tivesse» (At 4,32.34-35)43.

42
  O termo εκκλησία surge no NT aproximadamente 109 vezes, principalmente no corpus paulino (62
vezes). Isto pode ser explicado pelo facto de o termo designar sobretudo a constituição da comunidade
em torno do mistério pascal. Um momento da vida de Jesus que as narrações evangélicas não podiam
antecipar, ainda que o pressuponham. Cf. nota em: M. Semeraro, Misterio, comunión y misión, Sa-
lamanca 2004, 22. Ver ainda: M.P. Río, «Ekklesía», in DE, Roma 2010, 604-606.
43
 Jürgen Moltmann diz, a propósito desta passagem dos Atos dos Apóstolos, que esta comunidade é o
modelo para todas as comunidades cristãs e a ideia fundamental da doutrina social cristã, concluindo
que o contrário da pobreza não é a riqueza mas a comunhão. Cf. J. Moltmann, Etica della speranza,
Brescia 2011, 196-199. No entanto, não podemos deixar de referir que no capítulo seguinte o autor
dos Atos dos Apóstolos conta história de um casal que enganou a comunidade: «1Um certo homem,

444
Deste modo, a εκκλησία não é um simples grupo ou um conjunto de pessoas
que fazem a mesma coisa ou que estão no mesmo lugar ao mesmo tempo44, mas
um ter tudo em comum [ἅπαντα κοινά] – uma verdadeira κοινωνία, isto é, uma
‘comunhão’45. Uma ‘comum-união’ que decorre da relação com Cristo. De facto,
a palavra grega κοινωνία vem do verbo κοινωνέω, que quer dizer: ‘tomar parte
em’, ‘ter em comum’, ‘condividir’ e ‘fazer parte de alguém’46. Ou seja, este verbo
ajuda-nos a perceber que a comunhão é sempre com alguém, é sempre um ‘fa-
zer parte de’, é um ‘participar de’, é, por tudo isto, uma relação. Esta εκκλησία
é sempre relação com Cristo e é nessa relação fundante que se configuram to-
das as outras relações entre os seus membros. Esta comunhão é o coração da
comunidade cristã47. É dessa comunhão que fala, por exemplo, Paulo, quando
se refere aos filipenses: «nenhuma outra igreja [ἐκκλησία] esteve em comunhão
[ἐκοινώνησεν] comigo na permuta de dar e receber, a não ser apenas vós» (Fl
4,15b). Trata-se de um ‘estar em relação’ (um ‘ser-se-entre’) das primeiras co-
munidades que decorre do próprio estilo do grupo dos ‘Doze’. Gerhard Lohfink
insiste nesta continuidade de sentido entre o grupo de discípulos convocados
por Jesus e as primeiras comunidades reunidas em nome de Jesus, muitas vezes,
em torno a um dos apóstolos ou dos discípulos. Segundo este mesmo autor, esta
seria a melhor e a mais antiga interpretação de que dispomos para compreender
a comunidade que Jesus queria48.
Esta comunidade convocada torna-se assim o «lugar-ritmo originário e in-
tersubjetivo de composição e de realização da fé e da identidade cristã»49. Tantas
vezes pode ser o lugar da explicitação de uma fé implícita e a celebração explí-

chamado Ananias, com sua mulher, Safira, vendeu uma propriedade; 2mas desviou parte do preço, de
acordo com a mulher e, trazendo o restante, depositou-o aos pés dos Apóstolos» (At 5,1-2).
44
 Luis Tagle faz uma interessante distinção entre grupo e comunidade, dizendo que um mero grupo
não pode ser manifestação da presença de Cristo ressuscitado. Cf. L.A. Tagle, Easter People, New
York 2005, 23-24.
45
 Carlo Rusconi diz que κοινωνία significa ‘comunhão’, ‘relação’ e ‘colaboração’. Cf. C. Rusconi,
«κοινωνία», in DGNT, São Paulo 2003, 269. Na raiz desta palavra está o adjetivo κοινός que quer dizer
não só ‘público’, ‘sociável’, ‘afável’, ‘imparcial’; mas sobretudo quer dizer ‘comum’: ‘da mesma raça’, ‘da
mesma natureza’, ‘de origem comum’. Cf. I. Pereira, «Κοινός», in DGPPG, Braga 19907, 325.
46
  Id., «κοινωνέω», in DGNT, São Paulo 2003, 269.
47
  «One mark of the relationship among the believers is a deep sense of having something in common.
The basic thing that makes them one community is their common faith in the Risen Lord. (…) There
will be no exterior community without the internal spirit of koinonia. Communion is the heart of the
Christian community». L.A. Tagle, Easter People, New York 2005, 34.
48
 Cf. G. Lohfink, Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 103.
49
  J.F. Correia, Entre-tanto, Prior Velho 2014, 132-133.

445
cita de uma esperança implícita. De facto, nesta perspetiva cristã, a esperança
que Jesus dá acaba inserida numa dimensão comunitária alargada, como Povo
de Deus (cf. LG, cap. II). Neste sentido, o Papa Francisco diz-nos, «Ninguém
aprende a esperar sozinho. Não é possível! Para se alimentar, a esperança precisa
necessariamente de um ‘corpo’, no qual os vários membros se ajudem e se reavi-
vem uns aos outros. (…) No caso da esperança cristã este corpo é a Igreja»50. Ou
seja, hoje cada um de nós, pelo batismo, é membro desta comunidade convocada
e é nesta εκκλησία que experimentamos e celebramos a esperança.
No entanto, esta comunidade convocada é um trabalho em curso e um pro-
cesso inacabado. Uma comunidade é sempre um ideal que procuramos alcan-
çar sem o conseguir plenamente51. Por isso, podemos dizer que a comunidade
está em contínua realização – numa realização permanentemente escatológica52.
Trata-se de uma comunidade que revela que a εκκλησία é sempre peregrina por-
que vive no meio das criaturas que gemem e sofrem as dores de parto, esperando
a manifestação dos filhos de Deus (cf. LG 48). Esta dimensão escatológica de
uma Igreja que é peregrina é sublinhada, para além da Lumen Gentium, por
outros autores como Gerhard Lohfink. Uma dimensão que não é um mero mo-
vimento de unificação de um povo, mas de uma comunidade convocada por
Jesus que o tempo conduzirá à plenitude – até ao fim dos tempos. Nesta situação
escatológica a comunidade é desafiada a acolher a salvação que lhe é oferecida e
a converter-se pelo reino de Deus – que é concreto, real e universal53.
Esta εκκλησία peregrina é sacramento, enquanto sinal e instrumento, por
um lado, da íntima união com Deus e, por outro, da unidade de toda humani-
dade (cf. LG 1)54. Um ser sacramento que faz da comunidade cristã o ‘lugar do
cuidar’ e a ‘casa e escola de comunhão’ porque não é lícito passar ao lado com

50
  Francisco, Audiência Geral, 08 de fevereiro de 2017.
51
  «A community is always a work in progress». L.A. Tagle, Easter People, New York 2005, 24.
52
  Cf. M.P. Río, «Ekklesía», in DE, Roma 2010, 606.
53
 Cf. G. Lohfink, Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 101-102. Ser peregrino
não ignora as dificuldades do caminho ou até certos ‘desvios’. A vida, muitas vezes, «tal como o êxodo
dos israelitas, é uma caminhada que atravessa vastidões desertas e tenebrosas. Além disso, é verdade
que, de vez em quando, o rumo também se perde; é uma peregrinação que implica uma constante busca
e um perder-se, por vezes. Sim, ocasionalmente, temos de descer ao abismo mais profundo e ao vale de
sombras para reencontrar o caminho. Contudo, se o caminho não conduzisse aí, não seria caminho
para Deus; Deus não mora à superfície». T. Halík, Paciência com Deus, Prior Velho 20143, 18.
54
  Um significado de sacramento que nos faz recordar a carta aos Colossenses: «o mistério [μυστήριον]
escondido ao longo das gerações e que agora Deus manifestou aos seus santos. Deus quis dar-lhes a
conhecer a imensa riqueza da glória deste mistério [τῆς δόξης τοῦ μυστηρίου] entre os gentios: Cristo
entre vós, a esperança da glória [ἡ ἐλπὶς τῆς δόξης]!» (Cl 1,26-27).

446
indiferença, mas devemos parar, sobretudo, junto do que sofre55. Trata-se de
uma comunidade que acolhe a fragilidade e que celebra a dor com esperança.
Trata-se essencialmente de uma comunidade que escolhe o acolhimento e a co-
munhão como critério e caminho para Deus porque «aquele que não ama o seu
irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê» (1Jo 4, 20b)56.
Por isso, como comunidade peregrina somos desafiados por Cristo a criar
‘eutopias’ (εὖ = bom + τόπος = lugar) e não ‘utopias’ (οὐ = não + τόπος = lugar).
De facto, como afirma Tonino Bello, não devemos criar comunidades de uto-
pias, mas recriar permanente comunidades de eutopias, ou seja, lugares onde
verdadeiramente se experimente a felicidade57. A esperança que Jesus dá não
vive de utopias mas constrói eutopias. Isto porque a esperança que Jesus dá não
é futuro distante mas futuro presente – um καιρός acolhido e tocado. Neste sen-
tido, Jürgen Moltmann recorda-nos que se o nosso agir fosse orientado apenas
para o futuro, tornar-nos-íamos vítimas de utopias58.
Para que as comunidades eutópicas se concretizem não nos podemos acomo-
dar a este mundo (cf. Rom 12, 2), como disse São Paulo, é preciso transformá-lo a
partir da ‘lei fundamental’ do amor que radica na afirmação central da revelação
de que ‘Deus é amor’ (1Jo 4, 8.16). Damos voz à palavra do Concílio Vaticano
II: «a lei fundamental da perfeição humana e, portanto, da transformação do
mundo, é o novo mandamento do amor. Dá, assim, aos que acreditam no amor
de Deus, a certeza de que o caminho do amor está aberto para todos e que o
esforço por estabelecer a universal fraternidade não é vão. Adverte, ao mesmo
tempo, que este amor não se deve exercitar apenas nas coisas grandes, mas, antes
de mais, nas circunstâncias ordinárias da vida» (GS 38). Trata-se de pensar a
εκκλησία à luz de uma escatologia transformativa capaz de fundamentar um agir
(uma ética) transformador em cada presente. Esta ética cristã é influenciada por
uma cristologia também ela escatológica que faz do futuro presente e do presente
o futuro já presente – sempre à luz da ressurreição de Jesus59.

55
  Cf. L. Sandrin, «La comunità cristiana», OrPast 10 (2013) 44-53.
56
  Reforçando esta ideia de relação intrínseca entre relação com Deus e relação com o irmão, recor-
da-nos Jesus no sermão da Montanha, Mt 5, 23-24: «23Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre
o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24deixa lá a tua oferta diante
do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois, volta para apresentar a tua oferta». BS.
57
  Cf. T. Bello, Giò, Don Tonino ai giovani, Terlizzi 2008, 9.
58
 Cf. J. Moltmann, Etica della speranza, Brescia 2011, 14. Nesta mesma página, o autor reforça esta
ideia dizendo que na esperança precisamos de conjugar os fins que estão ‘distantes’ e os que são ‘últi-
mos’, com os que são próximos e os que se tornam quotidianos.
59
  Ibidem, 16 e 55-59. Apesar da interessante intuição e de explicar os contexto da escatologia trans-

447
Deste modo, precisamos de desconstruir os ‘não-lugares’ (u-topias), onde não
há relação nem a cumplicidade da comunhão, onde não há lugar para os ‘sem
lugar’ (os mais frágeis, os mais pobres, os mais doentes…); para transformar as
nossas comunidades em ‘bons-lugares’ (eu-topia), lugares de autêntica relação e
de verdadeira possibilidade de sentido. Estas relações estabelecidas na comuni-
dade convocada podem e devem configurar uma ‘topia da esperança’. Um lugar
da esperança que, nas palavras de Johann Baptist Metz, seria uma experiência
conjunta da esperança e, principalmente, de uma esperança que não visa apenas
a vida após a morte mas também a vida antes da morte60.

4. A comunidade onde brota a esperança define-se como filadélfia


Como serão as comunidades onde a esperança brota? Quais as características
essenciais dessas mesmas comunidades? Há que pensar para além dos princípios
clássicos, estritamente territoriais, e procurar sublinhar os elementos essenciais que
configuram uma comunidade. Elementos que, sendo configurados à luz do evange-
lho, concretamente dos encontros de Jesus, serão um desafio permanente a todas as
comunidades cristãs. Trata-se sobretudo de pensar como Jesus quis que a comuni-
dade fosse e que elementos ‘indicou’ para que a comunidade [εκκλησία] fosse ver-
dadeiramente comum-unidade [κοινωνία]. Uma κοινωνία que decorre da própria
esperança que Jesus dá e a que cada um se ‘converte’. Jesus tem uma ideia clara sobre
esta κοινωνία que vai procurar concretizar, desde logo, no grupo dos ‘doze’.
Jesus diz aos seus discípulos: «Já não vos chamo servos [δούλους], visto que
um servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos
amigos [φίλους], porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (Jo
15,15). Ou seja, Jesus refere que a relação entre os membros da sua comunidade
não é de servos mas de amigos [φίλος]61. Uma amizade que nos recentra também
em Jesus e que, a partir dele, ganha outra dimensão projetual. Jesus faz-nos en-
trar, assim, no discurso-chave para a teologia da amizade quando diz: ‘É este o

formativa, parece-nos que o conteúdo do próprio conceito não é suficientemente aprofundado nem
justificado. Ver ainda: A.C.M. Magalhães, «Renascer para uma esperança viva em Cristo – Aspectos
da relação entre esperança cristã e hermenêutica cristológica», EsRel 11 (1995) 9-26.
60
 Cf. J.B. Metz, Mística de olhos abertos, São Paulo 2013, 245. Sobre uma perspetiva da esperança
enquanto restituição teológico-política na sua reciprocidade e autenticidade aconselhamos: G. La-
font, Che cosa possiamo sperare?, Bologna 2011, 217.
61
  A palavra φίλος quer dizer essencialmente ‘querido’, ‘amado’ ou ‘que ama’. Cf. I. Pereira, «Φίλος»,
in DGPPG, Braga 19907, 614. Já Carlo Rusconi indica que φίλος quer dizer sobretudo ‘amigo’. Cf. C.
Rusconi, «φίλος», in DGNT, São Paulo 2003, 483

448
meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei. Ninguém
tem maior amor do que quem dá a vida pelos seus amigos, vós sois meus amigos
se fizerdes o que Eu vos mando…’ (cf. Jo 15,12-15), De facto, a ‘teologia da ami-
zade’ é a aceitação de que Deus nos visita através daquele que nos é próximo. Na
verdade, com os amigos construímos uma história que é sagrada, mesmo que a
nossos olhos pareça apenas feita de coisas simples e muito humanas62.
Porém esta relação reclama sempre uma relação fundante com Jesus e, em
última análise, a relação de Jesus com o Pai. Por isso, diz que a amizade com os
discípulos vem do facto de ter dado a conhecer tudo o que ouviu do Pai. Uma re-
lação profunda que conhecemos por muitas passagens bíblicas a começar pela fa-
mosa ‘oração sacerdotal’ de todo o cap. 17 de João que começa precisamente por
afirmar: «Assim falou Jesus. Depois, levantando os olhos ao céu, exclamou: ‘Pai,
chegou a hora! Manifesta a glória do teu Filho, de modo que o Filho manifeste a
tua glória, segundo o poder que lhe deste sobre toda a Humanidade, a fim de que
dê a vida eterna a todos os que lhe entregaste. Esta é a vida eterna: que te conhe-
çam a ti, único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem Tu enviaste’» (Jo 17,1-3).
É a partir desta relação entre Jesus e o Pai que brota o sentido da única oração
que ensinou aos seus discípulos: «Pai nosso [Πάτερ ἡμῶν]» (Mt 6,9b)63. De facto, a
palavra Πάτερ está relacionada com o aramaico ʼabbā (cf. Mc 14,36; Rm 8,15; Gal
4,6) que era o termo típico para chamar o ‘pai’ quer pela criança pequena, quer
pelo filho adulto na relação com o pai ancião. Trata-se, por isso, de uma relação
de proximidade e de familiaridade64. Este modo de Jesus se dirigir a Deus revela
afetividade e intimidade, revela, sobretudo, uma relação fundante que dá sentido
a todas as outras. Uma relação que nos estimula a assumir como nossa. Daí a im-
portância da frase de Jesus que introduz esta oração: «Rezai, pois, assim» (Mt 6,9a).
Com efeito, esta mesma oração ajuda-nos a ‘descobrir’ a segunda caracterís-
tica da comunidade eutópica. Efetivamente, Jesus podia ter dito ‘Pai meu’ [Πάτερ
ἐμοῦ]65 sublinhando assim uma dimensão individual da relação com o ‘Pai’ –

62
  Cf. J.T. Mendonça, Nenhum caminho será longo, Prior Velho 20125, 69-74.
63
  Sobre a oração do Pai-Nosso, aconselhamos sobretudo: G. Michelini (a cura di), Matteo, Cinisello
Balsamo 2013, 120-123.
64
  Cf. M. Crimella (a cura di), Luca, Cinisello Balsamo 2015, 206-207.
65
  Efetivamente ἡμῶν é o pronome pessoal, na primeira pessoa do plural no genitivo, pelo que a tradu-
ção literal seria ‘de nós’. Do mesmo modo ἐμοῦ é o pronome pessoal, na primeira pessoa do singular
no genitivo, sendo a tradução literal ‘de mim’. Cf. A. Freire, Gramática grega, Braga 19878, 62. É
importante referir ainda que no paralelo de Lc 11,2b aparece apenas ‘Pai’ [Πάτερ] e não ‘Pai-nosso’
[Πάτερ ἡμῶν].

449
mas disse ‘Pai-nosso’ [Πάτερ ἡμῶν]. Este nosso não só nos ‘obriga’ a excluir toda
e qualquer perspetiva individualista da noção de filiação como nos abre à relação
de fraternidade com todos aqueles que dizem ‘Pai’. É nesta comum-unidade, feita
numa filiação que nos desafia à fraternidade, que podemos perceber o horizonte
‘final’ da esperança que Jesus dá em cada encontro.
A palavra fraternidade vem do latim frater que significa irmão. No cristianis-
mo é claro que ‘a raiz da fraternidade está contida na paternidade de Deus’ – ‘há
um só Pai, que é Deus e vós sois todos irmãos’ (cf. Mt 23,8-9). Somos filhos no Fi-
lho abertos à fraternidade porque o Uni-génito se faz Primo-génito de muitos ir-
mãos. Ou seja, Jesus que era o Filho único de Deus torna-se o primeiro de muitos
filhos porque é verdadeiramente nosso irmão ao ter incarnado66. No entanto, este
ser irmão não é apenas uma definição eclesiológica de uma igreja como fraterni-
dade mas, sobretudo, uma prática concreta no ‘ser comum-unidade’ que começa
no chamar ao outro ‘irmão’ e ‘irmã’. Do ponto de vista linguístico este chamar-
-se ‘irmão’ ou ‘irmã’ não é novo. Já a reforma deuteronómica tinha introduzido
em Israel este costume; também nas antigas associações culturais, Qumran e
em geral no judaísmo, se tem o costume de dizer ‘irmão’ em relação ao compa-
nheiro de fé. A linguagem não é, por isso, nova. O que é novo é o contexto que a
funda: a experiência da fraternidade na comunidade cristã primitiva tem o seu
fundamento na efusão do Espírito e significa, antes de mais, uma experiência de
filiação divina67.
Com efeito, é interessante recordar que a segunda pergunta que Deus faz
à humanidade (a Caim) é precisamente: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4,9a)68.
A expressão e o contexto permite-nos ver que esta segunda pergunta reclama a
responsabilidade de cada um pelo irmão [ἀδελφός]69. Neste sentido, Jesus tinha
pedido a Pedro: «E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos [ἀδελφούς]»
(Lc 22,32b); e S. Paulo perguntava aos Romanos: «E tu, porque desprezas o teu

66
  «Il Figlio unigenito diventa il primogenito di molti fratelli essendosi fatto in tutto e veramente
nostro fratello, cioè vero uomo». V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 140. «O
Uni-génito faz-se Primo-génito de muitos irmãos». J.F. Correia, Entre-tanto, Prior Velho 2014, 170.
67
 Cf. G. Lohfink, Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 149-150. O autor
apresenta, em seguida, a carta de Paulo a Filémon, a quem pede para receber como ‘irmão’ o escravo
Onésimo que tinha fugido a Filémon. Este relato aparece como uma concretização das consequências
deste ‘ser irmão’ (cf. Flm 9-20).
68
  Antes tinha perguntado a Adão: «Onde estás?» (Gn 3,9b).
69
  O substantivo ἀδελφός quer dizer: em sentido estrito - ‘irmão’ ou ‘filho do mesmo ou dos mes-
mos genitores’; em sentido lato – ‘parente’, ‘compatriota’, ‘irmão na fé’ e ‘cristão’. Cf. C. Rusconi,
«ἀδελφός», in DGNT, São Paulo 2003, 21.

450
irmão [ἀδελφόν]?» (Rom 14,10b). De facto, temos que aprender a ‘respeitar todos’
e a ‘amá-los como irmãos’ (cf. 1Pe 2,17a)70. Assim, percebemos melhor as palavras
de Jesus quando diz: «Quanto a vós, não vos deixeis tratar por ‘mestres’, pois um
só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos [ἀδελφοί]» (Mt 23,8).
Porém, sabemos que este aprender a ser (bom) irmão exige uma profunda
conversão de vida porque ser irmão é muito mais do que ser conhecido. Irmão
exige uma ligação profunda que está para além da simpatia, do gosto ou de uma
opção pessoal, e que não se resume a uma questão de ‘sangue’. Neste reconheci-
mento do outro como um irmão sentimos o enorme desafio que representa esta
vivência da fraternidade, como muito bem nos recordou Bento XVI, na Encíclica
‘Caritas in veritate’: «A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos,
mas não nos faz irmãos. A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os ho-
mens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar
a fraternidade» (CV 19).
Percorrido este itinerário, podemos dizer que esta comunidade escatológi-
ca eutópica há de ser uma construção filadélfica (φίλος = amigo + ἀδελφός =
irmão), ou seja, uma comunidade de irmãos e amigos71. No entanto, a palavra
φιλαδελφία, apesar de ser constituída pelas duas palavras φίλος + ἀδελφός, é
muitas vezes traduzida simplesmente por ‘amor fraterno’72. É desse modo, por
exemplo, que alguns textos de S. Paulo são traduzidos: «A respeito do amor fra-
terno [φιλαδελφίας] não precisais que se vos escreva, pois vós próprios fostes
ensinados por Deus a amar-vos [τὸ ἀγαπᾶν] uns aos outros» (1Ts 4,9); «Sede afe-
tuosos uns para com os outros no amor fraterno [φιλαδελφίᾳ]» (Rm 12,10a)73.
Este amor fraterno [φιλαδελφίας], que estabelece laços de amigos e de ir-
mãos, rompe as barreiras da separação, luta contra o isolamento, vence a soli-
dão, faz-se partilha e torna-se comunhão. Percebemos assim que falar de co-
munidade é falar de comunhão de irmãos e de amigos, sem suprimir o que é
próprio de cada pessoa. Antes pelo contrário, uma verdadeira comum-unidade

70
  1Ped 2,17a: «Respeitai a todos, amai os irmãos [ἀδελφότητα ἀγαπᾶτε]». BS.
71
  Filadélfia é uma das igrejas referidas no livro do Apocalipse: Φιλαδελφείᾳ ἐκκλησίας (Ap 3,7a).
NA28. João escreveu a sete igrejas: à de Éfeso, de Esmirna, de Pérgamo, de Tiatira, de Sardes, de Fila-
délfia e de Laodiceia (cf. Ap 1,11). 
72
 Cf. I. Pereira, «Φιλαδελφία», in DGPPG, Braga 19907, 610. Carlo Rusconi reforça precisamente
este sentido ao dizer que φιλαδελφία quer dizer ‘amor fraterno’ ou ‘fraternidade’ Cf. C. Rusconi,
«φιλαδελφία», in DGNT, São Paulo 2003, 482.
73
  Sendo o texto original - τῇ φιλαδελφίᾳ εἰς ἀλλήλους φιλόστοργοι – podemos pensar noutra tradu-
ção: «O amor fraterno seja afetuoso».

451
alegra-se com as ‘conquistas’ de cada um, procura que cada pessoa seja mais
pessoa - mas não de modo individualista. Assim a verdadeira comunidade cris-
tã afasta-se claramente de qualquer semelhança com um ‘comunismo coleti-
vista’ e também com um ‘liberalismo individualista’. Poderíamos dizer que,
idealmente, quanto mais cada pessoa é pessoa (na dignidade, na liberdade e no
reconhecimento) mais a comunidade se concretiza e se realiza, numa epifania
da comum-unidade74.
Esta comunidade eutópica (εκκλησία), querida por Jesus, tem que ter lu-
gar para os ricos (como Zaqueu - Lc 19,1-10) e para os pobres («Felizes vós,
os pobres, porque vosso é o Reino de Deus» - Lc 6,20b); para os sábios (como
os doutores da Lei e os fariseus - Lc 14,1-6) e para os simples («Bendigo-te, ó
Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos
entendidos e as revelaste aos pequeninos» - Mt 11,25b); para os cidadãos de Je-
rusalém («Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são
enviados! Quantas vezes quis reunir os teus filhos como a galinha reúne os seus
pintainhos sob as asas, e tu não quiseste!» - Mt 23,37) e para os camponeses da
Galileia («Depois de João ter sido preso, Jesus foi para a Galileia, e proclamava
o Evangelho de Deus» - Mc 1,14). Nesta comunidade querida por Jesus há lugar
para os pecadores («Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas
sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores» - Mc 2,17bc);
para os doentes («Depois, começou a percorrer toda a Galileia, ensinando nas
sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando entre o povo todas as
doenças e enfermidades» - Mt 4,23); para possessos (como o possesso de Gerasa
- Lc 8,26-39); para os leprosos (como os dez leprosos que curou - Lc 17,11-19);
para as prostitutas (como a pecadora arrependida - Lc 7,37-50); para os sama-
ritanos (como a mulher samaritana - Jo 4,1-42); para as mulheres (como Maria
Madalena, Joana, Susana – Lc 8,2-3 e Lc 24,10); para as crianças («Deixai vir a
mim os pequeninos e não os afasteis, porque o Reino de Deus pertence aos que
são como eles» - Mc 10,14b).

74
  Neste mundo globalizado, sobretudo pelos meios de comunicação, podemos correr o risco de con-
fundir conexão com comunhão e ‘rede’ com ‘partilha’. Cf. A. Spadaro, Cyberteologia, Milano 2012,
89. A este propósito o Papa Francisco lança um desafio: «Neste tempo em que as redes e demais instru-
mentos da comunicação humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir e
transmitir a ‘mística’ de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar
nesta maré um pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade,
numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as maiores possibilidades de comunica-
ção traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade entre todos» (EG 87).

452
Esta comunidade eutópica é hoje desafiada a responder com gestos concretos
às palavras de Jesus: «sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pe-
queninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40b) e «sempre que deixastes de fazer
isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer» (Mt 25, 45b). Por
isso, este amor fraterno [φιλαδελφίας], ou esta fraternidade e amizade, de uns
com os outros e de todos com Deus - Trindade Amorosa, abre-nos ao permanen-
te dinamismo escatológico da própria comunidade em construção (dinamismo
do inacabado). Também aqui o dinamismo amoroso intra-trinitário é desafio,
referência e, sobretudo, fundamento. Uma gramática da salvação que nos revela
um dinamismo intrínseco escatológico que se realiza no mundo sem ser ‘intra-
-mundano’, porque, nas palavras de Söeren Kierkegaard, «a consciência de estar
perante Deus faz do nosso eu concreto, individual, um eu infinito»75.

5. A comunidade que celebra a esperança torna-se diakonia e martyria


Jesus deixou aos seus discípulos indicações precisas sobre o modo como de-
veriam agir e como deveriam ser as relações na própria comunidade [κοινωνία].
Estas relações são feitas de atitudes e de gestos concretos que decorrem e são
estimuladas pela própria esperança que Jesus dá a cada pessoa e que a comuni-
dade celebra em conjunto76. Neste sentido, a oração forma e alimenta esperança
na comunidade. É este encontro com Jesus e este estar com Ele que faz emergir
um modo concreto de viver e de agir, um modo concreto de ser e estar. Daí que
possamos dizer, como Jürgen Moltmann, que a ‘cristo-logia’ e a ‘cristo-práxis’
constituam uma unidade77. Na vida de Jesus, especialmente em cada encontro,
percebemos que doutrina e vida estão unidas e que teoria e prática caminham
juntas. A cristo-logia [λόγος]78 e a cristo-práxis [πρᾶξις]79 são dois dinamismos
profundamente unidos.

75
 S. Kierkegaard, O desespero humano, Porto 1936, 144.
76
 Jürgen Moltmann, no primeiro capítulo do seu libro Ética da esperança, procura refletir teologica-
mente sobre a relação entre esperança e ação. Defendendo, desde logo, que as ações são estimuladas
pela esperança, não como dever moral kantiano, mas como agir livre e capacidade de fazer. Cf. J.
Moltmann, Etica della speranza, Brescia 2011, 13-59.
77
  Ibidem, 42. Poderíamos aplicar precisamente aqui a frase de Henry Newman: «Temos aqui a solução
do erro comum de supor que existe uma oposição e um antagonismo entre um credo dogmático e uma
religião vital». J.H. Newman, Ensaio a favor de uma gramática do assentimento, Lisboa 2005, 143.
78
  O substantivo masculino λόγος significa essencialmente: ‘palavra’, ‘argumentação’, ‘razão’, ‘inteli-
gência’, ‘conversação’, ‘opinião’ e ‘explicação’. Cf. I. Pereira, «Λόγος», in DGPPG, Braga 19907, 350.
79
  O substantivo feminino πρᾶξις significa, por um lado, ‘ação’, ‘ato’, ‘realização’, ‘atividade’, ‘execução’
e, por outro lado, ‘maneira de ser’, ‘conduta’, ‘consequência’. Id., «Πρᾶξις», in DGPPG, Braga 19907, 477.

453
Com efeito, diz Jesus, de modo bastante eloquente, no fim de lavar os pés
aos discípulos: «Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós
deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim
como Eu fiz, vós façais também» (Jo 13,14-15)80. Este gesto confirma as pala-
vras que Jesus tinha dito: «Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso ser-
vo [διάκονος]81 e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo [δοῦλος]
de todos. Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para
servir [διακονῆσαι] e dar a sua vida em resgate por todos» (Mc 10,43b-45).
Esta proposta de ser comunidade implica tomar consciência de que, habi-
tualmente, as relações são feitas de ‘poder’ e de ‘interesse’. O próprio Jesus tinha
advertido: «Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações
fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e como os grandes exercem o seu po-
der. Não deve ser assim entre vós» (Mc 10,42b-43a). Deste modo, Jesus pede que,
na comunidade dos seus discípulos, não haja relações de domínio – «o que for
maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve
[διακονῶν]» (Lc 22,26b). Ou seja, exige aos seus discípulos um estilo de relações
diferente daquele que, muitas vezes, é frequente na sociedade. Jesus entende o
povo de Deus que está a formar como uma sociedade alternativa. Não no sentido
de um novo ‘estado’ ou de uma nova ‘nação’, mas antes como uma comunidade
que ‘desenha’ um espaço vital em que se vive de modo diferente82 - uma diferença
que tem a marca da diakonia.
Esta marca da diakonia é o contexto da autoridade [ἐξουσία] evangélica. Esta
autoridade é reconhecida em Jesus pelos seus contemporâneos: «Quando Jesus
acabou de falar, a multidão ficou vivamente impressionada com os seus ensina-
mentos, porque Ele ensinava-os como quem possui autoridade [ἐξουσίαν] e não
como os doutores da Lei» (Mt 7,28-29); «E estavam maravilhados com o seu ensi-
no, porque falava com autoridade [ἐξουσίᾳ]» (Lc 4,32). No entanto, se o contexto
é a diakonia, a origem é o próprio Deus. Isto mesmo é afirmado pelo evangelista
Mateus quando, depois de Jesus ter curado um paralítico, diz: «Ao ver isto, a
multidão ficou dominada pelo temor e glorificou a Deus, por ter dado tal poder

80
  «Il fatto che Gesù – e non solo nell’ultima cena – non si facesse servire ma fosse lui stesso a servire
deve aver lasciato un segno così profondo nella comunità dei discepoli, che più tardi essi chiameranno
le loro funzioni diakoniai, servizi». G. Lohfink, Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Bal-
samo 2015, 71.
81
  A palavra διάκονος vem do verbo grego διακονέω que significa ‘servir’, ‘ser servidor’ e ‘realizar um
serviço’. Cf. C. Rusconi, «διακονέω», in DGNT, São Paulo 2003, 123.
82
 Cf. G. Lohfink, Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 74 e 82.

454
[ἐξουσία] aos homens» (Mt 9,8). O poder [ἐξουσία] de Jesus vem de Deus. Esta
mesma ideia da autoridade que vem de Deus está presente na afirmação de Jesus
quando diz a Pilatos: «Não terias nenhum poder sobre mim [ἐξουσίαν], se não te
fosse dado do Alto [ἄνωθεν]» (Jo 19,11a).
O sentido desta autoridade pode ser melhor compreendido se percorrermos
a etimologia da palavra ἐξουσία. A palavra ἐξουσία significa imediatamente ‘au-
toridade’ ou ‘poder’83. Se aprofundarmos um pouco mais vemos que é composta
por ἐξ + οὐσία. A partícula ἐκ, que antes de vogal toma a forma ἐξ, pode significar
‘fora de’, ‘separação’, ‘proveniência’ e ‘em continuidade com o início’84. Já οὐσία
significa ‘essência’, ‘substância’ e ‘ser’85. Deste modo, podemos dizer, a partir de
um percurso etimológico, que a ἐξουσία não é o ‘ser’ ou a ‘substância’, mas o que
vem da ‘essência’ ou do ‘ser’. Há uma distinção mas há, sobretudo, uma prove-
niência. Por outras palavras, a verdadeira autoridade não se centra em si mesma
mas relaciona-se com a essência, com o ser e, no contexto evangélico, com Deus.
Toda a autoridade e poder que não tem origem n’Ele não o é verdadeiramente.
Talvez possa ser um ‘autoritarismo’ mas não autoridade. Esta autoridade não tem
nada a ver com domínio mas antes com serviço, com ‘colocar-se à disposição
de’86. A autoridade de Jesus parte precisamente da sua relação com o Pai e é essa
autoridade que se faz serviço – diakonia. Uma autoridade que, vivida e celebrada
em comum-unidade, se torna lava-pés e faz de cada pessoa um irmão e um amigo
que devo acolher e cuidar.
É desta comunidade, que se torna diakonia e onde a autoridade é serviço, que
os discípulos são chamados a dar testemunho [μαρτύριον]87. Não a dar testemu-
nho de si mesmos ou das suas ideias, mas um tornar presente o que Jesus fez e
disse. Um dar testemunho que pode exigir o próprio ‘martírio’ [μαρτύριον]88, ou

83
  Cf. C. Rusconi, «ἐξουσία», in DGNT, São Paulo 2003, 180.
84
  Id., «ἐκ», in DGNT, São Paulo 2003, 153.
85
  A palavra οὐσία tem, para além deste primeiro sentido de ‘essência’, ‘substância’ e ‘ser’, um segundo
sentido: ‘fortuna’, ‘riqueza’ e ‘bens’. Cf. I. Pereira, «οὐσία», in DGPPG, Braga 19907, 418.
86
  Esta relação entre autoridade e serviço, sobretudo no contexto de Paulo, vem sublinhada em Cf.
G. Lohfink, Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 163-167. Nestas páginas o
autor fala de uma autoridade que renuncia ao poder para se tornar serviço. Uma autoridade que em
Jesus é autenticada na sua entrega até à morte – a autoridade do crucificado.
87
 Cf. I. Pereira, «Testemunho», in DGPPG, Braga 19907, 1030. A palavra μαρτυρία vem do verbo
grego μαρτυρέω que quer dizer ‘dar testemunho’, ‘ser testemunha’ ou ‘testemunhar’. Cf. C. Rusconi,
«μαρτυρέω», in DGNT, São Paulo 2003, 296.
88
  Id., «Martírio», in DGPPG, Braga 19907, 932.

455
seja, um dar testemunho desta comunidade diakonia até à morte89. Não deixa
de ser particularmente interessante que a palavra μαρτύριον esteja na origem da
palavra testemunho e da palavra martírio. É deste testemunho até à morte que
nos fala o livro dos Atos dos Apóstolos quando faz uma longa referência ao mar-
tírio de Estevão (At 7,1-60) e uma muito breve referência ao martírio de Tiago (At
12,1-2)90. No entanto, cada um destes martírios evidencia que Jesus é o Messias
na forma do profeta mártir, isto é, testemunha coerente até à morte, da fidelidade
à vontade do Pai. Por isso, em certa medida, Jesus é o modelo do martírio-tes-
temunho e, ao mesmo tempo, aquele que dá a força interior ou a graça que nos
torna capazes de realizar esse ‘modelo’91.
Neste contexto, queremos recordar o primeiro discurso do Papa Bento XVI,
na sua visita a Portugal quando disse: «Viver na pluralidade de sistemas de va-
lores e de quadros éticos exige uma viagem ao centro de si mesmo e ao cerne do
cristianismo para reforçar a qualidade do testemunho até à santidade, inventar
caminhos de missão até à radicalidade do martírio»92. Neste mesmo sentido dirá,
dois anos mais tarde, a propósito do martírio de João Batista: «A vida cristã exi-
ge, por assim dizer, o ‘martírio’ da fidelidade quotidiana ao Evangelho, ou seja,
a coragem de deixar que Cristo cresça em nós e que seja Cristo quem orienta o
nosso pensamento e as nossas ações. Mas isto só se verifica na nossa vida se a
nossa relação com Deus for sólida»93.
Diante do martírio a vida vê-se confrontada com as opções mais fundamen-
tais, com a coerência de um testemunho, com o ‘risco’ da verdade, com as con-

89
  Mártir (martyr) é uma palavra que tem a sua origem na língua grega arcaica e que depois se torna
comum na linguagem eclesial. Parece derivar da raiz smer que significa ‘pensar’, ‘recordar-se’, ‘estar
preocupado’ (uma ideia que existe no étimo latino memor e memoria). O mártir será, por isso, etimo-
logicamente, ‘aquele que se recorda’ e, por isso, ‘pode dar a notícia’. A palavra sofreu uma evolução
rápida: passa do conceito genérico de ‘ser testemunha de um facto ou de um evento’, para ser a ‘própria
prova de qualquer coisa’, até ser, por fim, um termo usado exclusivamente para indicar o modo de dar
testemunho com o derramamento de sangue. Este significado fixa-se na segunda metade do séc. II.
No martírio de São Policarpo fala-se dele como o mártir por excelência. O mártir testemunha assim a
coerência total entre a verdade daquilo que processa e a vida que vive, até ao ponto de dar a vida pelo
que acredita. Cf. M. Tenace, Dire l’uomo, Roma 2014, 155.
90
  Especialmente para a compreensão teológica do martírio de Estevão aconselhamos: P. Tremola-
da, «Ricerca di senso ed esperienza della salvezza nella comunità apostolica», Milano 2008, 38-39.
91
 Cf. V. Croce, Gesù il Figlio e il Mistero della croce, Torino 2010, 207-208. A este propósito, re-
cordamos a famosa expressão de Tertuliano, no Apologético, sobre os primeiros mártires da Igreja
«sanguinis martyrum, semen christianorum».
92
  Bento XVI, Discurso no Aeroporto da Portela em Lisboa, 11 de maio de 2010.
93
  Id., Audiência Geral, 29 de agosto de 2012.

456
sequências de uma ‘entrega’, e, sobretudo, com a vivência presente das realidades
últimas – uma existência que vive do confim e anuncia a eternidade. Por isso,
podemos dizer que «o martírio no cristianismo abre à escatologia, às realidades
últimas de uma fé que professa esperar a vida eterna»94.
Podemos, assim, falar de uma comunidade escatológica eutópica que, sendo
uma construção filadélfica, há de ser diakonia e martyria, ou seja, há de ser ‘ser-
viço’ e ‘testemunho’95. Esta comunidade tem de viver a tensão do reino de Deus:
por um lado, ser ‘invisível’, profundamente imersa na sociedade, como fermento
na massa - «O Reino do Céu é semelhante ao fermento que uma mulher toma e
mistura em três medidas de farinha, até que tudo fique fermentado» (Mt 13,33); e,
por outro lado, tem de procurar ‘mostrar’ o sentido da mensagem de Jesus – «Vós
sois o sal da terra. (…) Vós sois a luz do mundo» (Mt 5,13a-14a).
Neste sentido, as palavras de Paulo VI surgem como uma forte provocação
e um acertado desafio: «Evangelizadora como é, a Igreja começa por se evan-
gelizar a si mesma. Comunidade de crentes, comunidade de esperança vivida e
comunicada, comunidade de amor fraterno, ela tem necessidade de ouvir sem
cessar aquilo que ela deve acreditar, as razões da sua esperança e o mandamen-
to novo do amor» (EN 15). Trata-se de pensar o testemunho e a evangelização
a partir de uma comunidade que vive a esperança e que depois, como conse-
quência e exigência, a comunica. Uma esperança concreta, celebrada e vivida,
uma esperança que tem a força transformadora de nos fazer ‘sal da terra’ e ‘luz
do mundo’.
É necessário, no entanto, recordar o grave erro e a grande tentação de iden-
tificar a comunidade dos discípulos – e posteriormente a Igreja – com o reino de
Deus96. De facto, o reino de Deus já está presente no meio da Igreja e no mundo
mas não está ainda plenamente realizado. Jesus ao enviar os Doze disse: «Pelo
caminho [πορευόμενοι]97, proclamai que o Reino do Céu está perto. Curai os
enfermos, ressuscitai [ἐγείρετε]98 os mortos, purificai os leprosos, expulsai os

94
 M. Tenace, Dire l’uomo, Roma 2014, 145.
95
  Não se trata de apresentar aqui modelos de comunidade mas apenas de referir algumas caracte-
rísticas, que são, ao mesmo tempo, consequências de uma comunidade onde se celebra a esperança.
96
 Cf. G. Lohfink, Gesù come voleva la sua comunità?, Cinisello Balsamo 2015, 92-93 e 100.
97
  O verbo πορεύομαι tem o sentido de ‘ir’, ‘percorrer’ e ‘dirigir-se de um lugar a outro’. Cf. C. Rusco-
ni, «πορεύομαι», in DGNT, São Paulo 2003, 383.
98
  A palavra ἐγείρετε, aqui traduzida por ‘ressuscitar’, é uma forma verbal de ἐγείρω que também
significa ‘acordar’, ‘despertar’, ‘fazer erguer’, ‘endireitar’ e ‘colocar de pé’. Id., «ἐγείρω», in DGNT, São
Paulo 2003, 143.

457
demónios» (Mt 10,7-8a). Hoje diz-nos a cada um de nós, que somos batizados:
‘sai’ do teu lugar e coloca-te a ‘caminho’; ao longo desse caminho proclama a
proximidade do ‘reino do Céu’; e que essas palavras possam ser acompanhadas
de gestos concretos99.

99
  Johann Baptist Metz fala de três horizontes de ‘luta’ de uma comunidade que viva a esperança
cristã: contra um mundo de ausência sentida ou proclamada do mistério; contra um mundo de puro
medo do futuro; contra um mundo de injustiças veladas. Cf. J.B. Metz, Mística de olhos abertos, São
Paulo 2013, 240-243.

458
A modo de conclusão

O dinamismo hermenêutico existencial performativo da esperança


Chegados a este momento, depois de percorrido todo este itinerário, preci-
samos de retomar as perguntas essenciais e determinantes: Qual é a esperança
que Jesus dá? Que esperança é esta, a dos cristãos? O que há de comum e de
diferente entre a ἐλπίς de Prometeu, a ἐλπίς de Abraão, a ἐλπίς de Paulo e a spes
dos cristãos? Na resposta a estas questões temos de começar por dizer que um
cristão não é feito de compartimentos estanques. Não tem uma esperança quan-
do compra um bilhete da lotaria ou quando joga no ‘euromilhões’ e outra, total-
mente diferente, quando vai à eucaristia. Todavia, a esperança não é, nem pode
ser, exatamente a mesma. A ἐλπίς dos gregos - de que Prometeu é paradigma
- ‘quer’ e ‘deseja’, em última instância, a si mesmo, o que vem de si; a esperança
da bíblia - de que Abraão é paradigma - ‘quer’ e ‘deseja’ um outro, o que vem de
outro, em última instância, deseja Deus. É neste sentido que a esperança cristã é
a mesma esperança e, ao mesmo tempo, uma esperança diferente. Diferente não
quer dizer superior nem inferior, apenas diferente. Por isso, não podemos dizer
que os cristãos esperam mais, ou melhor, que os não cristãos ou os não crentes.
A esperança cristã está aí como um paradoxo, um escândalo, acessível apenas
através de uma escolha1.
De facto, como nos recorda o Papa Francisco, «Quando se fala de esperança,
podemos ser levados a entendê-la segundo o significado comum deste termo, ou
seja, em referência a algo de bom que desejamos, mas que pode realizar-se ou
não. Esperamos que aconteça, é como um desejo. Por exemplo, dizemos: ‘Espero
que amanhã o tempo seja bom!’; mas sabemos que, ao contrário, no dia seguinte
o tempo pode ser mau... A esperança cristã não é assim. A esperança cristã é a es-

  Cf. A. Nitrola, «La postmodernità e la speranza», Aquila 2002, 269-272.


1

459
pera de algo que já se cumpriu; ali está a porta, e espero chegar à porta. Que devo
fazer? Caminhar rumo à porta! Tenho a certeza de que chegarei à porta. Assim
é a esperança cristã: ter a certeza de que estou a caminho de algo que existe, não
de algo que eu desejo que exista. Esta é a esperança cristã. A esperança cristã é
a expectativa de algo que já se cumpriu e que certamente se há de realizar para
cada um de nós»2.
Esta esperança cristã resulta da esperança que Jesus dá. Uma esperança que
tem um conteúdo e um tempo: o encontro pessoal com cada homem e com
cada mulher; o desafio do re-envio deste à sua comunidade; uma abertura a um
tempo novo que ‘nasce’ na ressurreição. Deste modo, poderíamos concluir que
a esperança cristã se ‘conjuga’ com três palavras: pessoa, tempo e comunidade.
De facto, só assumindo os dinamismos associados a estas três palavras podemos
compreender o quanto a esperança que Jesus dá nos pode ‘re-criar’. Recria a pes-
soa que somos, o tempo que vivemos e a comunidade onde existimos. Mas não
basta ‘dizer’ estas três palavras, não basta considerar cada uma destas dimen-
sões, é preciso interrogarmo-nos sobre as próprias inter-relações e as inter-ações
que se estabelecem entre estes três dinamismos que não são estanques nem tão
pouco sucessivos.
De facto, as inter-relações e inter-ações entre pessoa, tempo e comunidade
reclamam, desde logo, uma mútua reciprocidade que não é dialética mas, sobre-
tudo, dinamismo hermenêutico. Só um dinamismo hermenêutico se torna capaz
de nos ajudar a colher a densidade e o específico da esperança cristã. Quando
dizemos que este dinamismo não é dialético, queremos sublinhar que, para nós,
o ‘diálogo’ entre as diversas dimensões não é uma reciprocidade de superação ou
de progresso, em que a ‘última fase’ fosse uma ‘síntese’, depois de percorrida uma
espécie de ‘tese’ e ‘antítese’ – numa espécie de visão hegeliana. Para nós estes três
dinamismos não se estabelecem nem de modo dialético nem de modo cronoló-
gico, não são momentos desligados, nem nenhuma destas dimensões se torna
simplesmente uma fase. Na verdade, todas estão inter-ligadas e são inter-depen-
dentes numa delimitação nem sempre absolutamente clara.
Por isso, parece-nos que a palavra hermenêutica colhe bem o sentido da
reciprocidade mútua que deve existir entre estas dimensões da esperança que
Jesus dá. Pensamos a hermenêutica [ἑρμενεύειν], numa linha mais heideggeria-
na, não tanto como uma técnica (ou um conjunto de técnicas) de interpretação

  Francisco, Audiência Geral, 01 de fevereiro de 2017.


2

460
ou como uma filosofia de base fenomenológica (um modo subjetivista de ver
a realidade que se manifesta) mas como o transportar mensagem e anúncio,
ligando-se à ideia de Hermēs [Ἑρμῆς]3 enquanto mensageiro dos deuses4. Este
sentido de um ‘deus’ que põe em comunicação revela o dinamismo hermenêu-
tico como um ‘fazer passar uma mensagem de um lado para o outro’, um ‘ilu-
minar’ que ‘explica’ e ‘traduz’ clarificando, um colocar-se a caminho. Um dina-
mismo hermenêutico que queremos que não seja uma mera abstração mas que
seja verdadeiramente existencial, na medida em que é capaz de desafiar a gestos
concretos e a processos de verdadeira conversão. Uma verdadeira hermenêutica
da esperança que Jesus dá.
Deste modo, a esperança que Jesus oferece exige enfrentar a tensão entre a ‘es-
sência’ e a ‘existência’, uma vez que na vida de Jesus a existência revela a essência
de um conteúdo e a essência diz-se na própria coerência de uma existência5. Esta
perspetiva fenomenológica da existência de Jesus, que não prescinde da identida-
de trinitária, revela uma esperança que transforma a vida de muitos. Não tanto
uma esperança explicitada pela palavra ἐλπίς mas muito mais um dinamismo
relacional manifestado em cada encontro com Jesus. Ninguém sai ‘intacto’ do
encontro com o Senhor. Este horizonte relacional ‘des-cobre’ a esperança não na
palavra explícita do texto evangélico, mas no significado que esse encontro traz à
vida de cada pessoa. De facto, como sublinha Giovanni Ancona, trata-se de assu-
mir a escatologia que, para além de se manter como um tratado específico, consi-
dera o dado teológico fundamental que compreende Jesus Cristo como eschaton
pessoal, o qual constitui a chave hermenêutica para todas as afirmações acerca da
esperança do homem, da sua história e do seu mundo6.

3
  O Hermes (grego), tal como o homólogo latino Mercúrio, para além do comércio, tinha três ou-
tras ‘responsabilidades’: presidia aos ‘cruzamentos’, transmitia mensagens dos deuses e conduzia
as almas dos mortos ao inferno. Cf. «Mercurio», in L. Biondetti, Dizionario di mitologia classica,
Milano 1997, 451.
4
  Para compreender o sentido profundo e a problemática relacionada com este conceito de «herme-
nêutica» aconselhamos A. Nitrola, Trattato di escatologia, II, Milano 2010, 12-26. Nestas páginas o
autor distinguirá três níveis de hermenêutica: como técnica ou um conjunto de indicações, de regras,
ou sugestões para chegar à compreensão de um texto; como uma filosofia que interpreta permanente-
mente o mundo e o modo como o homem se relaciona com este; como um caminho que procura es-
cutar quanto o dito não disse numa primeira aproximação genérica e superficial. Este teólogo italiano
propõe, neste sentido, uma teologia hermenêutica como aquela teologia que sabe viver uma relação
fecunda com a filosofia - capaz de dar à teologia profundidade na relação com o mistério.
5
 Paul Gilbert fala da tensão, na filosofia contemporânea, entre o essencialismo e o existencialismo.
Cf. P. Gilbert, «Problematiche contemporanee sulla speranza», ATT 15 (2009) 231-232.
6
  Cf. G. Ancona, «L’escatologia cristiana: lo stato attuale della ricerca», Lat. 75 (2009) 273.

461
Este itinerário metodológico assume a hermenêutica de uma existência ca-
paz de interpretar e reler a vida de Jesus ‘registada’ nos evangelhos. Num exer-
cício, não meramente académico, que evidencia os ‘encontros’ do passado mas
igualmente potenciador de um novo encontro com essa esperança que Jesus dá
a quem (re)lê hoje esses ‘encontros’, gerando novos ‘factos’ e, sobretudo, trans-
formando a nossa vida, onde o presente não é apenas o ponto estático de ligação
entre o passado e o futuro, mas o lugar dinâmico capaz de fazer acontecer um
‘tempo novo’ – um καιρός. Este ‘lugar’ dos encontros não se esgota na comuni-
cação de conteúdos porque o evangelho descreve uma vida mas também é capaz
de continuar a transformar a vida daqueles que hoje se deixam encontrar. Neste
sentido, a esperança ‘nasce’ de um encontro, de um diálogo, de uma relação,
não como mera afirmação teórica mas como experiência existencial com con-
sequências para a vida.
Deste modo, ‘adentramo-nos’ no conceito da comunicação performativa
(que vem do inglês to perform – realizar)7, isto é, uma palavra que é capaz de
realizar factos novos, capaz de transformar a própria realidade que somos e
vivemos. Uma comunicação que reclama a força transformadora da esperança
que Jesus continua a dar em cada encontro. Isto mesmo afirmou de forma elo-
quente o Papa Bento XVI quando escreveu que «a mensagem cristã não era só
‘informativa’, mas ‘performativa’. Significa isto que o Evangelho não é apenas
uma comunicação de realidades que se podem saber, mas uma comunicação
que gera factos e muda a vida. A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta
de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida
nova» (SS 2).
Chegados ao fim, voltemos ao início; é necessário não deixar que nos roubem
a esperança, é necessário ser mais forte do que a tentação de ceder à desespe-
rança, é necessário levar a esperança à vida e fazer da vida uma ‘semente’ de
esperança – que dê fruto, se faça comunidade e se torne testemunho. Por isso,
terminamos este itinerário, sempre inacabado e incompleto, com as palavras do

7
  Já Edward Schillebeeckx tinha falado da importância de uma definição da essência da Igreja que
fosse um discurso performativo e não apenas descritivo. Cf. E. Schillebeeckx, Gesù, Brescia 19803,
712. A palavra ‘performativo’ vem da palavra inglesa perform que quer dizer essencialmente reali-
zar, levar a cabo, fazer, executar, representar e cumprir. Deste modo, o adjetivo ‘performativo’ liga-se
ao substantivo feminino ‘performance’ que tem a ver com ‘desempenho’ (numa ação ou num ‘pa-
pel’), com ‘resultados obtidos’ (numa exibição pública, num teste ou numa prestação desportiva, por
exemplo); já no contexto das artes, tem a ver com manifestação artística que pode combinar várias
formas de expressão.

462
Papa Francisco: «Quantas vezes nós, cristãos, somos tentados pela desilusão, pelo
pessimismo... Às vezes abandonamo-nos à lamentação inútil, ou então perma-
necemos sem palavras e nem sequer sabemos o que pedir, o que esperar... Mas
vem de novo em nossa ajuda o Espírito Santo, suspiro da nossa esperança, que
mantém vivos o gemido e a expectativa do nosso coração. O Espírito vê por nós
além das aparências negativas do presente, revelando-nos desde já os novos céus,
a nova terra que o Senhor continua a preparar para a humanidade»8.

  Francisco, Audiência Geral, 22 de fevereiro de 2017.


8

463
464
Abreviaturas e Siglas

As abreviatura não existentes na obra que serve de referência para as abre-


viaturas e siglas1, são propostas por nós e são identificadas por []; quando a
nossa proposta é diferente da do autor, a sua, sendo colocada depois, é identi-
ficada com ().

Livros da Bíblia

Não existe uma aplicação a Portugal, mas sigo a espanhola ‘Conceptos fundamentales de la
teologia, Madrid 1967’ citada na edição de referência [introdução pág XXX]: AT – Gn, Ex,
Lv, Nm, Dt, [Js], [Jz] Rut, 1-2Sm, 1-2 Re, 1-2 Cr, Esd, [Ne], Tob, Jdt, Est, 1-2Mac, Job, Sal, Prv,
Ecl, Cant, Sab, Eclo, Is, Jr, Lam, Bar, Ez, Dn, Os, Joel, Am, [Ab], [Jon], Miq, [Na], Hab, Sof,
Ag, Zac, Mal. NT – Mt, Mc, Lc, [Jo], [At], Rom, 1-2Cor, Gál, Ef, Flp, Col, 1-2Tes, 1-2Tim, Tit,
Flm, Heb, [Tg], 1-2Pe, [1-2-3Jo], Jds, Ap.

Bíblias

BHS – Ellinger, K., Rudolf W.,(ed.), Biblia Hebraica Stuttgartensia, Stuttgart 19975.
[BS] – Tradução portuguesa da Bíblia Sagrada, editada pela Difusora Bíblica em 1999.
[CEI] – Biblia – La Sacra Bibbia - Tradução italiana da Biblia Sagrada em 2008.
LXX – Versão dos Setenta – tradução grega da bíblia hebraica.
[NA28] (Nestle-Aland28) – Nestle, E. Aland, K., (ed.), Novum Testamentum Graece, 2012.

1
Cf. S.M. Schwertner, Internationales Abkürzungsverzeichnis für Theologie und Grenzgebiete
(IATG3), Berlim - Boston 20143.

465
Coleções, dicionários e revistas

AAS – Acta Apostolicae Sedis


ABD – Anchor Bible Dictionary
AJT – Asia Journal of Theology
AncBS - Anchor Bible Series
AnVal – Anales Valentinos
Asp. – Asprenas
AT(R) – Annales theologici (Roma)
ATT – Archivio Teologico Torinese
BAC – Biblioteca de autores cristianos
BBR – Bulletin for biblical research (Winona Lake)
Bib. – Biblica (Roma)
BiBh – Bible Bhashyam (Kerala - India)
[BibAn] – Biblical Annals (Lublin)
BibInt – Biblical Interpretation – A Journal of Contemporary Approaches
BibOr – Bibbia e Oriente
BiTod – Bible Today
BK – Bibel und Kirche
BN – Biblische Notizen
Brot. – Brotéria. Cristianismo e cultura – série mensal
BTB – Biblical Theology Bulletin
BTCon – Biblioteca di teologia contemporanea
CBQ – Catholic Biblical Quarterly
CCSG – Corpus Christianorum. Series Graeca
CCSL – Corpus Christianorum. Series Latina
Christus – Christus . Cahiers spirituels
ChrCent – The Christian Century
CivCatt – Civiltà Cattolica
Coll. – Collationes
Com(F) – Communio (Paris)
Com(I) – Communio (Milano)
Com(US) – Communio (Washington)
Conc(F) – Concilium (Paris)
Conc(I) – Concilium (Brescia)
Conc(P) – Concilium (Lisboa)
Conc(NY) – Concilium (New York)

466
ConJ – Concordia Journal
CorpAp – Corpus apologetarum Christianorum saeculi secundi
CPG – Clauis Patrum Graecorum
CPL – Clauis Patrum Latinorum
CrossCur – Cross currents
CSCO – Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium
CSEL – Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum
CurTM – Currents in Theology and Mission
[DBHP] – Dicionário bíblico hebraico-português (Schökel)
[DCBNT] – Dizionario dei concetti biblici del Nuovo Testamento
[DE] – Dizionario di Ecclesiologia
DECA – Dictionnaire Encyclopédique du Christianisme Ancien
DENT(I) – Dizionario esegetico del Nuovo Testamento
[DGNT] – Dicionário do grego do Novo Testamento
[DGPPG] – Dicionário Grego-Português e Português-Grego
DH – H. Denzinger; P. Hünermann, Enchiridion Symbolorum [Bologna 199537].
DiBi – Dizionario biblico (Torino)
Did(L) – Didaskalia (Lisboa)
DizTB – Dizionario di teologia biblica (Brescia)
DNT – Dictionnaire du Nouveau Testament
DPAC – Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane
DTAT – Dizionario teologico dell’Antico Testamento
DTI – Dizionario teológico interdisciplinar
DTM – Dizionario di teologia morale (Roma)
DTP – Dizionario di teologia pastoral (Roma)
EBib – Études bibliques
[EC] – Early Christianity
ED – Euntes docete
EE – Estudios eclesiásticos
Elenchus – Elenchus bibliographicus biblicus of Biblica
EnchVat – Enchiridion Vaticanum
EsTeol – Estudos teológicos (Coimbra)
EstBíb – Estudios Bíblicos (Madrid)
EsRel – Estudos de religião
EsTrin – Estudios trinitários
ETL – Ephemerides theologicae Lovanienses
EvTh – Evangelische Theologie

467
[Exc.] – Exchange
[ExpT] – Expository Times (London)
FeA – Fede e arte
FeR – Filosofia e religione
[FiRat] – Fides et ratio
FilTeo – Filosofia e teologia
FV – Foi et vie
FV.S – Foi et vie - Supplement
gdt – Giornale di teologia
GLAT – Grande lessico dell’Antico Testamento
GLNT – Grande lessico del Nuovo Testamento
Hey – Heythrop journal
Hok. – Hokma
Hor. – Horizonte
HTR – Harvard theological review
HumTeo – Humanística e Teologia (Porto)
[IM] – Revista Igreja e Missão
Irén. – Irénikon
ITER – ITER . Revista de Teología - Caracas
Itin(P) – Itinerarium . Provincia Portuguesa da Ordem Franciscana
JBL – Journal of Biblical Literature
[Jeev.] – Jeevadhara (Kerala - India)
[JETS] – Journal of the Evangelical Theological Society
[JGRCJ] – Journal of Greco-Roman Christianity and Judaism
JSNT – Journal for the Study of the New Testament
Lat. – Lateranum (Roma)
Lum. – Lumen (Vitoria)
[LCath] – Logos Catholic Journal
MF – Miscellanea francescana
NBf – New Blackfriars
NDPAC – Nuovo Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane
NovT – Novum Testamentum (Leiden)
NV – Nova et Vetera
NRTh – Nouvelle revue théologique (Louvain)
NTS – New Testament studies (Cambridge, UK)
[OrPast] – Orientamenti Pastorali
Pac. – Pacifica

468
PG – Patrologiae cursos completus. Accurante Jacques-Paul Migne. Series Graeca
PL – Patrologiae cursos completus. Accurante Jacques-Paul Migne. Series Latina
PRSt – Perspectives in Religious Studies
PrT – Practical theology - London
RAC – Reallexikon für Antike und Christentum
RB – Revue Biblique
RcatT – Revista Catalana de Teología
RCI – Rivista del Clero Italiano
RestQ – Restoration Quarterly
RevSR – Revue des Sciences Religieuses
RdT – Rassegna di Teologia (Napoli)
[RFLFilos.] – Revista da Faculdade de Letras - Filosofia
RivBib – Rivista bilica (Roma)
RLAT – Revista Latinoamaricana de Teología (San Salvador)
RPF – Revista portuguesa de filosofia
RPF.B – Revista portuguesa de filosofia – suplemento bibliográfico
RSEc – Rivista di studi ecumenici
RSR – Recherches de science religieuse
RTL – Revue théologique de Louvain
RTM – Rivista di teologia morale
RVS – Rivista di vita spirituale
SacDo – Sacra doctrina
[SalT] – Sal Tarrae
[SCh] (SC) – Sources chrétiennes
ScEs – Science et esprit
ScrTh – Scripta theologica
ScrVict – Scriptorium Victoriense
SémBib – Sémiotique et Bible
SJT – Scottish journal of theology
SM – Enciclopédia Teológica Sacramentum Mundi, Freiburg
SM(I) – Enciclopédia Teológica Sacramentum Mundi, Brescia
SNT – Studien zum Neuen Testament
SNTU – Studien zum Neuen Testament und seiner Umwelt
[Sol.] – Soleriana
StBS – Studia Biblica Slovaca
StMor – Studia moralia
[Syn.] – Synaxis

469
Teol(Br) – Teologia (Brescia)
Teol(M) – Teologia (Milano)
Teol(R) – Teologia (Roma)
Theol. – Revista de Teologia (Braga)
ThTo – Theology today
ThX – Theologica Xaveriana
TJT – Toronto journal of theology
TrJ – Trinity Journal
TS – Theological Studies
TV – Teología y Vida
VJTR – Vidyajyoti Journal of theological reflection (Delhi)
[VLG] - Vocabolario della Lingua Greca
VP – Vita e pensiero
[VS] – Vida sobrenatural
WorWor – Word &World
ZNT – Zeitschrift für Neues Testament – Tübingen

Documentos do magistério

CIC – «Catecismo da Igreja Católica», João Paulo II, 15.08.1997.


CV – Carta Encíclica «Caritas in veritate», Papa Bento XVI, 29.06.2009.
DCE – Carta Encíclica «Deus caritas est», Papa Bento XVI, 25.12.2005.
DV – Constituição Dogmática «Dei Verbum», Paulo VI, 18.11.1965.
EG – Exortação Apostólica «Evangelii Gaudium», Francisco, 24.11.2013
GS – Constituição Pastoral «Gaudium et Spes», Paulo VI, 7.12.1965.
LF – Carta Encíclica «Lumen Fidei», Francisco, 29.06.2013.
LG – Constituição Dogmática «Lumen Gentium», Paulo VI, 21.11.1964.
SS – Carta Encíclica «Spe Salvi», Papa Bento XVI, 30.11.2007.
SC – Constituição Conciliar «Sacrosanctum Concilium», Paulo VI, 4.12.1963.
Outras abreviaturas
AT – Antigo Testamento
[CDF] – Congregação para a Doutrina da Fé
[CEI] – Conferência Episcopal Italiana
[cf.] – confrontar
[CTI] – Comissão Teológica Internacional
ed. – edição

470
etc. – et cetera
[gr.] – grego
hebr. – hebraico
lat. – latim
NT – Novo Testamento
[por ex.] – por exemplo
p. – página
[PCB] – Pontifícia Comissão Bíblica
S. – Santo ou São
[Trad.] – tradução
vol. – volume
Vat II - Concilio Ecuménico Vaticano II
[v.] – versículo
[vv.] – versículos

471
Bibliografia

Aa.Vv., Speranza cristiana e speranze del nostro tempo, Roma 1971.


Aa.Vv., Salvati nella speranza. Commento e guida alla lettura dell’Enciclica ‘Spe Salvi’ di
Benedetto XVI, Milano 2008.
Acquaviva, M., «La speranza cristiana e le sfide culturali oggi», FiRat 1 (2008) 115-126.
Agostinho, Enarrationes in Psalmos 3.25.32.30.36.39.41.60.64.76.91.103.118.
123.136.145. CCSL 38.39.40. [PL 36.37].
—, Sermones 105.157.158. PL 38.
—, Sermones 22. PL 46.
—, Discorsi. Su i Santi (273-340/A), V (intrd. A. Quacquarelli), Roma 1986.
—, Confissões CCSL 27,1-273. [PL 32,659-868].
—, De civ. Dei. CCSL, 48.
Aguirre Monasterio, R., «Introduccion a los Evangelios sinópticos», in Evangelios
sinópticos y Hechos de los Apóstoles, Estella 1992, 13-98.
Alby, J.C., «Milagros de curación en la tradición médica tardo-antigua», TV 56 (2015) 219-
238.
Alegre, X., «Marcos 13: un llamado a la resistencia y la esperanza cristianas en tiempos
difíciles», RLAT 95 (2015) 201-227.
Aletheia, X., «Localización de la comunidad de Lucas», EstBíb 69 (2011) 289-300.
Aletti, J.-N., «Jn 13 – Les problèmes de composition et leur importance», RivBib 87 (2006)
263-272.
—, Le Jésus de Luc, Paris 2010.
Alfaro, J., «Les espoirs intramondains et l’espérance chrétienne», Conc(F) 59 (1970) 53-62.
—, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona 1972.

473
Alkier, S., Weissenrider, A. (eds), Miracles Revisited: New Testament Miracle Stories and
Their Concepts of Reality, Berlin-Boston 2013.
Almeida, B., «Do encontro ao diálogo e do diálogo à salvação. Jesus e a mulher samaritana
(Jo 4,1-42)», Itin(P) 58 (2012) 105-115.
Ambrósio, Expositio psalmi 118. CSEL 62.
Amir, S., «The Samaritan Woman. I. A Woman of Dialogue and Mission», VJTR 77 (2013)
756-769.
—, «The Samaritan Woman. II. A Woman of Dialogue and Mission», VJTR 77 (2013)
816-824.
Ancona, G., «L’escatologia cristiana: lo stato attuale della ricerca», Lat. 75 (2009) 261-274.
Anderson, H., The Gospel of Mark, Oliphants 1976.
Anderson, W., The Gospel of Luke. Salvation for All Humanity, Liguori 2012.
Angelini, G., «‘Spe salvi’: Realismo della speranza e forma pratica della fede», Teol (M) 33
(2008) 315-326.
—, «La speranza ‘miliante’. Che ne è trent’anni dopo?», in Crisi della speranza, Milano
2000, 9-50.
Angelini, M.I., «Dio sicuramente spera», RCI 87 (2006) 1, 440-458.
Aristóteles, Etica nicomachea (a cura di Claudio Mazzarelli), Milano 1979.
—, Retorica (a cura di Marco Dorati), Milano 1996.
Arrighetti, G., «Commento e note al testo», in Esiodo, Teogonia, Milano 201317, 129-162.
Arterbury, A., «Breaking the Betrothal Bonds: Hospitality in John 4», CBQ 72 (2010) 63-83.
Artola, A., Caro, J.M., Introduccion al estudio de la biblia. Biblia y Palabra de Dios, II,
Estella 1989, 367-402.
Auffret P., «Etude structurelle de Jn 8,1-11», BN 166 (2015) 95-108.
Back, F., «Die rätselhaften ‘Antworten’ Jesu. Zum Thema des Nikodemusgesprächs (Joh 3,1-
21)», EvTh 73 (2013) 178-189.
Baert, B. (ed.), The Woman with the Blood Flow (Mark 5:24-34). Narrative, Iconic, and
Antropological Spaces, Leuven 2014.
Balsas, A., «Ciência Contemporânea e Causalidade. Sobre a Pertinência do Conceito de
Acção Divina», RPF 63 (2007) 631-661.
Barbaglio, G., «La speranza cristiana secondo S. Paolo», VP 55 (1972) 33-49.
Barnabé, Épître de Barnabé. SCh 172.

474
Barvarino, M., «Esperanza y consolación», VS 92 (2012) 277-282.
Basilio, Homilia De gratiarum actione. PG 31.
Bassler, J., «Mixed Signals: Nicodemos in the Fourth Gospel», JBL 4 (1989) 635-646.
Bassin, F., L’évangile selon Luc, I. Commentaire Évangélique de la Bible, Vaux-sur-Seine 2006.
—, L’évangile selon Luc, II. Commentaire Évangélique de la Bible, Vaux-sur-Seine 2012.
—, L’évangile selon Luc, III. Commentaire Évangélique de la Bible, Vaux-sur-Seine 2015.
Bauckham, R., The Theology of Jürgen Moltmann, Edinburgh 1995.
—, ed., God Will be All in All. The Eschatology of Jürgen Moltmann, Edinburgh 1998.
Baum, A.D., «Does the Pericope Adulterae (John 7:53 – 8:11) Have Canonical Authority? An
Interconfessional Approach», BBR 24 (2014) 163-178.
Beale, G.K., The Book of Revelation. A Commentary on the Greek Text, Grands Rapids 1999.
Bello, T., Giò, Don Tonino ai giovani, Terlizzi 2008.
Bento XVI, Encíclica Deus caritas est, 25.12.2005: AAS 98 (2006) 217-252.
—, Encíclica Spe Salvi, 30.11.2007: AAS 99 (2007) 985-1027.
—, Encíclica Caritas in veritate, 29.06.2009: AAS 101 (2009) 641-709. 
—, Discurso no Aeroporto da Portela em Lisboa, 11.05.2010: Insegnamenti di Benedetto
XVI, 6/1 (2010) 667-669.
—, Audiência Geral, 29.08.2012. Insegnamenti di Benedetto XVI 8/2 (2012) 112-118.
Berger, K., Kommentar zum Neuen Testament, Gütersloh 2011; trad. italiana, Commentario
al Nuovo Testamento. Vangeli e Atti degli apostoli, I, Brescia 2014.
Bernardo de Claraval, Sermons divers. SCh 518.
—, Sermons variés. SCh 526.
Bertuletti, A., «Il riscatto della speranza», in Crisi della speranza, Milano 2000, 89-106.
Bettini, O., «La speranza cristiana stravolta in Ernst Bloch», in Aa.Vv., La Speranza. Studi
Filosofico-Pedagogici. Atti del Congresso promosso dal Pontificio Ateneo ‘Antonianum’ 30
maggio – 2 giugno 1982, I, Brescia 1984, 151-192.
Beutle, J., Das Johannesevangelium. Kommentar, Freiburg im Breisgau 2013.
Bianchi, E., «Conversione», in R. Penna, G. Perego, G. Ravasi (a cura di), Temi teologici
della Bibblia, Cinisello Balsano 2010, 215-223.
Bieberstein, S., Jesus und die Evangelien. Studiengang Theologie: Neues Testament, II,
Zurich 2015.

475
Bieringer, R., Demasure, K., Baert, B. (eds), To Touch or Not to Touch? Interdisciplinary
Perspectives on the Noli me tangere, Leuven 2013.
Biguzzi, G., Apocalisse. Nuova versione, introduzione e commento, Milano 2005.
—, «Sviluppi delle critica testuale per l’Apocalisse di Giovanni», EstBíb 74 (2016) 77-87.
Bilby, M., As the Brandit Will I Confess You: Luke 23,39-43 in Early Christian Interpretation,
Strasbourg 2013.
Bloch, E., Das Prinzip Hoffnung, Frankfurt am Main 1959; trad. italiana, Il principio
speranza: scritto negli USA fra il 1938 e il 1947 (riveduto nel 1953 e nel 1959), Milano 20092.
Bock, D., Luke (1:1-9:50). Baker Exegetical Commentary on the New Testament, I, Michigan
1994.
—, Luke (9:51-24:53). Baker Exegetical Commentary on the New Testament, II,
Michigan 1996.
Bomford, R., «Jairus, His Daughter, the Woman and the Saviour. The communication of
Symmetric Thinking in the Gospel of St Mark, PrT 3 (2010) 41-50.
Bonanni, S.P., «La speranza fra grazia e virtù: Nella traccia della storia fino alle soglie della
modernità», ATT 15 (2009) 248-274.
Borghello, U., «Metafisica e relazionalità», in «Relazione»? Una categoria che interpella (a
cura di M. Sodi e L. Clavell), Città del Vaticano 2012, 53-68.
Bortone, G., «La speranza, incrocio tra virtù naturale e teologale: un percorso letterario»,
in G. Bortone (a cura di), La speranza. Indagine biblico-teologioco-letteraria, L’Aquila
2002, 129-204.
Bosetti, E., Colacra A. (a cura di), Apokalypsis. Percorsi nell’Apocalisse in onore di Ugo
Vanni, Assisi 2005.
Boucher, P.-M., «Jn 3,3.7: Γεννηθῆναι ἄνωθεν (IV). L’adverbe ἄνωθεν dans l’aire dialectale
du quartrième évangile», ETL 88 (2012) 71-93.
Bovon, F., L’Évangile selon saint Luc (1,1-9,50), I, Genève 1991.
—, L’Évangile selon saint Luc (9,51-14,35), II, Genève 1996.
—, L’Évangile selon saint Luc (15,1-19,27), III, Genève 2001.
—, L’Évangile selon saint Luc (19,28- 24,53), IV, Genève 2009.
Brancato, F., «La lettera enciclica Spe Salvi di papa Benedetto XVI», Syn. 26 (2008) 7-44.
Briglia, S., Comentario Bíblico Latinoamericano. Nuevo Testamento, Estela 2003; trad. italiana,
«Vangelo secondo san Marco», in Nuovo Commentario Biblico. I Vangeli, Roma 2005.
Brito, J.H.S., «O desafio da esperança: Para uma visão antropológica», Brot. 168 (2009)
155-164.

476
Brookins, T.A., «Luke’s Use of Mark as παράφρασις: Its Effects on Characterization in the
‘Healing of Blind Bartimaeus’ Pericope (Mark 10.46-52/Luke 18.35-43)», JSNT 34 (2011)
70-89.
Brown, R., The Gospel According to John (I-XII). Introduction, Translation, and Notes, I, New
York 1966.
—, The Gospel According to John (XIII-XXI). Introduction, Translation, and Notes, II,
New York 1970.
Bruni, G., «In principio la relazione. Indicazioni bibliche», in Io-Tu: In principio la relazione
(a cura di A. Romano), Trapani 2012, 71-77.
Bruno, M., Il terreno della speranza. Note di cristianesimo per un tempo di crisi, Milano 2012.
Buber, M., Ich und Du, 1923; trad. portuguesa, Eu e tu, Prior Velho 2014.
Bucur, B., «Blinded by Invisible Light. Revisiting the Emmaus Story (Luke 24,13-35)», ETL
90 (2014) 685-707.
Bultmann, R., Rengstorf, K., Theologisches Wörterbuch zum Neuen testament, Stuttgart
1935; trad. italiana, «ἐλπὶς», in GLNT, III, Brescia 1967, 508-552.
—, Jesus, Tübingen 1977; trad. italiana, Gesù, gdt 155, Brescia 20086.
—, «Neues Testament und Mythologie. Das Problem der Entmythologisierung der
neutestamentlichen Verkündigung», in Kerygma und Mythos, I, Hamburg-Bergsted
19675; trad. italiana, Nuovo Testamento e mitologia. Il manifesto della demitizzazione,
gdt 41, Brescia 19734, 103-174.
Burer, M., Divine Sabbath Work, Winona Lake 2012.
Bustamante, G.B., «La esperanza en la vida critiana. Dimensión bíblica», ThX 154 (2005)
209-226.
Butticaz, S., Pâques, et après? Paul et l’espérance chrétienne, Bière 2014.
Calduch-Benages, N., Il profumo del Vangelo. Gesù encontra le donne, Milano 20092.
Calhoun, R., «The Power of the Call. Wilhelm Bousset on Miracle, and Mark 1:16-20», EC
6 (2015) 67-88.
Carli, E., La teologia della speranza di Jürgen Moltmann, Roma 1980.
Carroll, J., Luke. A Commentary, New Testament Library, Louisville 2012.
Carvalho, J.C., «Notas biográficas e teológicas sobre Jürgen Moltmann», HumTeo 28 (2007)
51-65.
Carvalho, M., A consumação do homem e do mundo, Lisboa 20042.
Casquilho, M., «A mulher adúltera», IM 209 (2008) 347-372.

477
Chance, J.B., «The Journey to Emmaus: Insights on Scripture from Mystical Understandings
of Attachment and Detachment», PRSt 38 (2011) 363-381.
Chapleau, A.-M., «Quand le salut advient pour une maison. Lecture de Luc 19,1-10»,
SémBib 143 (2011) 33-48; (e segunda parte) 144 (2011) 23-47.
Chakkalakal, P., «Jesus’ Radical Option for Woman: A Feminist Critical Reading of the
Bent Woman on Luke 13:10-17, Jeev. 44 (2014) 58-76.
Chevalier, J., Gheerbrant, A., Dictionnaire des Symboles. Mythes, rêves, coutumes, gestes,
formes, figures, couleurs, nombres, Paris 1982; trad. portuguesa, Dicionário dos Símbolos.
Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números, Lisboa 1994.
Chiriankandath, L., «Narrative Analysis of Luke 17:11-19: Settings and Character Types
of the Story», BiBh 41 (2015) 200-213.
Chrupcala, L.D., Everyone Will See the Salvation of God: Studies in Lukan Theology, Milan
2015.
Cipriano, De zelo et livore. CCSL, III A.
—, De bono patientiae 13. SCh 291
Clemente de Alexandria, Stromate IV. SCh 463.
Clément, O., Un luogo per rinascere, Roma 2010.
Collins, J. (ed), The Oxford Handbook of Apocalyptic Literature, Oxford 2014.
Conyers, A.J., God, Hope and History. Jürgen Moltmann and the Christian Concept of
History, Macon 1988.
Correia, J.A., «O caminho do reconhecimento e do anúncio. Lc 24,13-35 em perspectiva
cristológica», Theol. 36 (2001) 359-402.
Correia, J.F., Entre-tanto. A difícil bênção da vida e da fé, Prior Velho 2014.
Cosgrove, C., «A Woman’s Unbound Hair in the World. With Special Reference to the
Story of teh ‘Sinful Woman’ in Luke 7:36-50», JBL 4 (2005) 675-692.
Cotter, W., The Christ of the Miracle Stories. Portrait through Encounter, Grand Rapids
2010.
Cozzoli, M., «Da una morale senza speranza a una morale di speranza», RTM 136 (2002)
501-506.
Crabbe, K., «A Sinner and a Pharisee: Challenge at Simon’s Table in Luke 7:36-50», Pac. 24
(2011) 247-266.
Crimella, M. (a cura di), Luca. Introduzione, traduzione e commento, Cinisello Balsamo 2015.
—, «The Transformation of Characters in Lk 24. A Narrative Investigation», RevBib
119 (2012) 173-185.

478
Crisóstomo, Homilia ad Romanos. PG 60.
Croce, V., Gesù il Figlio e il Mistero della croce. Cristologia e Soteriologia, Torino 2010, 140.
«Crono», in L. Biondetti, Dizionario di mitologia classica. Dèi, eroi, feste, Milano 1997,
168-169.
«Cròno», in Dizionario di mitologia e dell’antichità classica (a cura di M. Gislon e R.
Palazzi), Bologna 2003, 120.
Daley, B., The Hope of the Early Church. A Handbook of Patristic Church, New York 2003.
Daniélou, J., Essai sur le mystère de l’Histoire, Paris 1953; trad. italiana, «La speranza», in
Saggio sul mistero della storia, Brescia 2012, 370-381.
Dante Alighieri, La Divina Commedia; trad. portuguesa, A Divina Comédia, Lisboa 2011.
Delling, G., Theologisches Wörterbuch zum Neuen testament Stuttgart 1938; trad. italiana,
«kαιρός», in GLNT, IV, Brescia 1968, 1363-1390.
—, Theologisches Wörterbuch zum Neuen testament Stuttgart 1973; trad. italiana,
«χρόνος», in GLNT, XV, Brescia 1988, 1091-1126.
Denzinger, H.; Hünermann, P., Enchiridion Symbolorum, Bologna 199537.
De Santis, M., La visita di Dio alla vedova di Nain (Lc 7,11-17) e la risurrezione di Gesù (Lc
24), RivBib 62(2014) 49-74.
Deuser, H., «Geistesgegenwart. Pneumatologie und Kategoriale Semiotik», ZNT 13 (2010)
78-85.
Devillers, L., «Thomas, appelé Didyme (Jn 11,16; 20,24; 21,2). Pour une nouvelle aproche
du prétendu jumeau», RB 113 (2006)1, 65-77.
Dinis A., Paiva, J., Educação, ciência e religião, Lisboa 2010, 146-153
Di Luccio, P., «Tradizioni dell’ultima cena», RdT 54 (2013) 391-416.
Di Palma, G., «Qui spem non habent. La proposta paolina di fronte alla crisi di speranza»,
Asp. 55 (2008) 59-61.
Doglio, C., Imparare Cristo. La figura di Gesù Maestro nei vangeli, Cinisello Balsamo 2014.
Doglio, C. (a cura di), Apocalisse, Padova 2012.
Donahue, J., Harrington, D., The Gospel of Mark, Minnesota 2002.
Doré, J., «La signification des miracles de Jésus», RevSR 74 (2000) 275-291.
—, «La portée révélatrice des miracles de Jésus», RSR 98 (2010) 559-579.
Doyle, D., «Spe Salvi on Eschatological and Secular Hope», TS 71 (2010) 350-379.
«ἐλπίς», in Vocabolario greco-italiano (a cura di L. Rocci), Città di Castello 196316.

479
«ἐλπίς», in A patristic Greek Lexicon (ed. G.W.H. Lampe), Oxford 1961.
Ebner, E., Einleitung in das Neue Testament, Stuttgart 2008; trad. Italiana, «La questione
sinottica», in M. Ebner, S. Schreiber (edd.), Introduzione al Nuovo Testamento, Brescia
2012, 81-103.
Emery, G., «Les manifestations pascales du Christ Ressuscité dans les récits évangéliques»,
NV 88 (2013) 255-275.
English, J.A., «Which Woman? Reimagining the Woman Who Anoints Jesus in Luke 7:36-
50», CurTM 39 (2012) 435-441.
Epicoco, L.M. (ed), Futuro presente. Contributi sull’Enciclica Spe Salvi di Benedetto XVI,
Todi 2009.
Eschilo, Prometeo incatenato. L’uomo dal mito alla vita artificiale, Milano 2010.
Esiodo, Teogonia, Milano 201317.
—, Le opere e i giorni. Lo scudo di eracle, Milano 201315.
Esposito, T., «The Way from Emmaus to Us», Com(US) 37 (2010) 129-148.
Everts, J., «Hope», in Dictionary of Paul and his Letters, Illinois 1993.
Fabris, R., Attualità della speranza, Brescia 1984.
Farelly, N., «An Unexpected Ally: Nicodemus’s Role within the Plot of the Fourth Gospel»,
TrJ 34 (2013) 31-43
Filão de Alexandria, De praemiis et poenis de exsecrationibus (dir. A. Beckaert), Paris
1961.
—, De Abrahamo (dir. J. Gorez), Paris 1966.
—, De posteritate Caini (dir. R. Arnaldez), Paris 1972.
Fitzmyer, J., The Gospel According to Luke (I-IX). Introduction, Translation, and Notes, I,
New York 1981.
—, The Gospel According to Luke (X-XXIV). Introduction, Translation, and Notes, II,
New York 1985.
—, First Corinthians. A New Translation with Introduction and Commentary, New
Haven 2008.
Ford, D.F., «Meeting Nicodemus: A Case Study in Daring Theological Interpretation», SJT
66 (2013) 1-17.
Formosinho, S., Branco, J.O., A pergunta de Job. O homem e o mistério do mal, Lisboa 2003.
—, A esperança, utopia impossível? Da insastisfação como via do (que podemos)
conhecer, e esperar, e devir, Coimbra 2017.

480
Förster, H., «Der Begriff σημεῖον im Johannesevangelium», NovT 58 (2016) 47-70.
Förster, H., «Die Begegnung am Brunnen (Joh 4.4-42) im Licht der ‘Schrift’. Überlegungen
zu den Samaritanern im Johannesevangelium, NTS 61 (2015) 201-218.
Forte, B., «Cristo, ‘nuestra esperanza’, revela el sentido de la vida y de la historia», ScrTh 33
(2001) 827-842.
—, La trasmissione della fede, BTCon 169, Brescia 2014.
Fortin, A., «Jésus et les gens de Samarie», SémBib 157 (2015) 15-33.
Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 24.11.2013: AAS 105 (2013) 1019-1137.
—, Il nome di Dio è misericordia, Città del Vaticano 2016.
—, Mensagem para a Quaresma 2017, 18.10.2016.
—, Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2017, 08.12.2016.
—, Audiência Geral, 08.02.2017.
—, Audiência Geral, 22.02.2017.
Freire, A., Gramática grega, Braga 19878.
Freni, C., «Morte e corpo nella prospettiva fenomenológica. Per una nuova pedagogia della
morte», in AAVV, Umbra mortis vitae aurora. Prospettive per la riflessione e la prassi alla
luce della seconda edizione italiana del Rito delle Esequie, Roma 2013, 47-63.
Frey, J., Kelhoffer, J.A., Tóth, F. (eds), Die Johannesapokalypse: Kontexte-Konzepte-
Rezeption, Tübingen 2012.
Friedrich, G., Theologisches Wörterbuch zum Neuen testament, Stuttgart 1935; trad.
italiana, «εὐαγγελίζομαι», in GLNT, III, Brescia 1967, 1023-1106.
Frosini, G., «La risposta alla grande domanda di speranza», RTM 158 (2008) 163-168.
Fusco, V., «Introduzioni general ai sinottici», in M. Làconi (a cura di), Vangeli Sinottici e
Atti degli Apostoli, Torino 20082, 37-136.
—, «La guarigione del cieco Bartimeo (Mc 10,46-52; Mt 20,29-34; Lc 18,35-43)», in M.
Làconi (a cura di), Vangeli Sinottici e Atti degli Apostoli, Torino 20082, 365-377.
Gaiser, F., «In Touch with Jesus: Healing in Mark 5:21-43», WorWor 30 (2010) 5-15.
García, B.F., Cristo de esperanza. La cristología escatológica de J. Moltmann, Salamanca
1985.
George, A., El evangelio según san Lucas, Estella 19878.
Ghiberti, G., «Introduzione al Vangelo secondo Giovanni», in Opera Giovannea, Logos 7,
Torino 2003, 33-94.

481
Ghiberti, G., «‘Vi ho dato l’esempio’ (Gv 13,15). Riflessioni di teologia giovannea», ATT 18
(2012) 339-351.
Gibellini, R., Tendenzen der Theologie im 20 Jahrhundert, Stuttgart-Olten [s/d]; trad.
italiana, «Jürgen Moltmann», in MS/Supplemento. Lessico dei teologi del secolo XX, XII,
Brescia 1978, 735-746.
Giesen H., «Gottes Zuwendung zu seinem Volk. Die Auferweckung eines jungen Mannes
Aus Naïn», SNTU 35 (2010) 11-33.
Gilbert, P., «Problematiche contemporanee sulla speranza», ATT 15 (2009) 231-247.
Giuntoli, F., (a cura di), Genesis 1,1-11,26. Introduzione, traduzione e commento, Cinisello
Balsamo 2013.
Gizard, C., «Quand le repos est spirituel», Christus 239 (2013) 299-304.
Gonçalves, N.S., «Moltmann: esperança escatológica e empenho no mundo», Brot. 126
(1988) 21-27.
González-Cardedal, O., Raiz de la esperanza, Salamanca 19962.
González-Faus, J.G., Clamor del Reino. Estudio sobre los milagros de Jesús, Salamanca 1982.
Granados, J., Teología del tiempo. Ensayo sobre la memoria, la promesa y la fecundidad,
Salamanca 2012.
—, «Risen time: Easter as the Source of History», Com(US) 37 (2010) 6-33.
Grasso, S., Il Vangelo di Giovanni. Commento esegetico e teologico, Roma 2008.
—, Apocalisse, Roma 2011.
Greshake, G., Leben – stärker als der Tod. Von der christlichen Hoffnung, Freiburg im Breisgau
2008; trad. italiana, Vita – più forte della morte. Sulla speranza cristiana, Brescia 2009.
Grilli, M., «Le metafore della speranza nel disincanto della storia», OrPast 54 (2006) 24-32.
Grundmann, W., Theologisches Wörterbuch zum Neuen testament, Stuttgart 1935; trad.
italiana, «δύναμις», in GLNT, II, Brescia 1966, 1473-1556.
Guillén, D.G., «El rosto de la esperanza: Lectura cristlógica de Spe Salvi», ScrVict 58 (2011)
151-221.
Gunkel, H., Der Heilige Geist bei Lukas: Theologisches Profil, Grund und Intention der
lukanischen Pneumatologie, Tübingen 2015.
Halík, T., Vzdáleným Nablízku, Praga 2007; trad. portuguesa, Paciência com Deus, Prior
Velho 20143.
Hartlieb, E., Richter C. (eds), Emmaus – Begegnung mit dem Leben. Die grosse biblische
Geschichte Lukas 24,13-35 zwischen Schriftauslegung und religiöser Erschliessung,
Stuttgart 2014.

482
Healy, T., «A esperança humana: um desafio interdisciplinar», Brot. 137 (1993) 123-136.
Hennezel, M., La mort intime, Paris 1996.
Henry, D.V., «Hope’s Promise for Christians in the Not Yet and In Between», LCath 14
(2011) 104-132.
Hilário de Poitiers, Commentaire sul le psaume 118. SCh 347.
Higuet, E.A., «‘Teologia da Esperança’ - Primeiro balanço crítico», EstRel 11 (1995) 27-52.
Hodges, H., Poirier, J., «Jesus as the Holy One of God: The Healing of the Zavah in Mark
5.24b-34», JGRCJ 8 (2011-2012) 151-184.
Hoffmann, E., Theologisches Begriffslexikon zum NT, Wuppertal 1970; trad. italiana,
«ἐλπίς», in Dizionario dei concetti biblici del nuovo testamento, Bologna 1976.
Hofmeier, J., «Espérance; instinct, passion, compréhension», Conc(F) 59 (1970) 29-37.
Holzer, V., «Relations intratrinitaires et relations de l’homme à Dieu», in «Relazione»? Una
categoria che interpella (a cura di M. Sodi e L. Clavell), Città del Vaticano 2012, 83-106.
Horsley, R., Jesus and Magic: Freeing the Gospel Stories from Modern Misconceptions,
Eugene 2014.
Humphreys, C.J., The Mystery of the Last Supper. Reconstructing the Final Days of Jesus,
Cambridge 2011.
Inácio de Antioquia, Aux Éphésiens. SCh 10bis.
—, Aux Magnésiens. SCh 10bis.
—, Aux Tralliens. SCh 10bis.
—, Aux Philadelphiens. SCh 10bis.
Infante, R. (a cura di), Giovanni. Introduzione, traduzione e commento, Cinisello Balsamo
2015.
Irineu de Leão, Contre les hérésies [ou Adversus haereses] I. SCh 264.
Jaroš, K., Victor, U., Die synoptische Tradition. Die literarischen Beziehungen der drei
ersten Evangelien und ihre Quellen, Köln 2010.
Jeffrey, D., Luke. Brazos Theological Commentary on the Bible, Grand Rapids 2012.
Johnson, L., The Gospel of Luke, III, Minnesota 1991.
Joy, J.P., «Ratzinger and Aquinas on the Dating of the Last Supper: In Defense of the Synoptic
Chronology», NBf 94 (2013) 324-339.
Justino, Apologie (dir. C. Munier), SCh 507, Paris 2006.
—, Diálogo com Trifone. CorpAp II.

483
Kant, I., Critica della ragion pura (a cura di Costantino Esposito, texto alemão e trad.
italiana), Milano 2004.
Kasper, W., Der Gott Jesu Christi, Mainz 1982; trad. italiana, Il Dio di Gesù Cristo, BTCon
45, Brescia 20119.
—, Jesus der Christus, Mainz 1974; trad. italiana, Gesù il Cristo, BTCon 23, Brescia
201312.
Kee, H.C., Medicine, Miracle and Magic in New Testament Times, Cambridge 1986.
Keener, C., The Gospel of John, I, Massachusetts 2003.
Kelly, A., Eschatology and Hope (Theology in Global Prespective), Maryknoll NY 2006.
Kelly, H., «Varieties of Exorcism in the Bible and the Church», StBS 7 (2015) 75-87.
Kereszty, R.A., Fundamentals of Christology, New York 2002.
Kerstiens, F., «Hoffen», in SM, Freiburg im Breisgau 1967-1969; trad. italiana, «Speranza»,
in SM, VII, Brescia 1977, 744-756.
Kessler, H., Sucht den Lebenden nicht bei den Toten. Die Auferstehung Jesu Christi
in biblischer, fundamentaltheologischer und systematischer Sicht. Neuausgabe mit
ausführlicher Erörterung der aktuellen Fragen, Würzburg 1995; trad. italiana, La
risurrezione di Gesù Cristo. Uno studio biblico, teologico-fondamentale e sistematico,
BTCon 105, Brescia 20102.
Kibeti, G., «Narration et christologie en Lc 13,10-17: la guérison de la femme courbée»,
EstBíb 73 (2015) 45-56.
Kierkegaard, S., Sygdommen til Døden, 1849; trad. portuguesa, O desespero humano,
Porto 1936.
Knust, J., Wasserman, T., «Earth Accuses Earth: Tracing What Jesus Wrote on the
Ground», HTR 103 (2010) 407-446.
Koch, R., «La speranza nel Vecchio Testamento», VP 55 (1972) 20-32.
Koester, C., Kompendium der Gleichnisse Jesu, Gütersloh 2007; trad. italiana, «Non tutta
l’acqua è uguale», in R. Zimmermann (ed.), Compendio delle parabole di Gesù, Brescia
2011, 1139-1149.
Köhnlein, M., Passion und Auferstehung Jesu: Dimensionen des Leidens und der Hoffnung,
Stuttgart 2015.
Köstenberger, A., John, Baker Exegetical Commentary on the New Testament, Michigan
20072.
Köster, H., Theologisches Wörterbuch zum Neuen testament, Stuttgart 1964; trad. italiana,
«σπλάγχνον», in GLNT, XII, Brescia 1979, 903-934.

484
Kouamé, Y., Commencement d’un parcours. Une étude exégétique et théologique de Jn 3,1-21,
Tesi Gregoriana – Serie Teologia, 216, Roma 2015.
Kowalski, M., «‘Chi è quest’uomo che osa anche rimettere i peccati?’ (Lc 7,49). La trama ed
il clou del racconto lucano sulla donna peccatrice (Lc 7,36-50)», BibAn 4 (2014) 97-120.
Knights, C., «Nathanael and Thomas: Two Objectors, Two Confessors – Reading John
20:24-29 and John 1:44-51 in Parallel, ExpT 125 (2014) 328-332
Kügler, J., «Il Vangelo di Giovani», in M. Ebner, S. Schreiber (edd.), Einleitung in das Neue
Testament, Stuttgart 2008; trad. italiana, Introduzione al Nuovo Testamento, Brescia
2012, 255-280.
Labahn, M., «Den frühchristlichen Wundergeschichten Sinn für die Gegenwart entlocken:
Rudolf Bultmanns Modell der Entmythologisierung und neuere Sinndeutungen der
Wundergeschichten Jesu», ETL 91 (2015) 393-414.
Lacoste, J.-Y., Dictionnaire critique de théologie, 19982; trad. italiana, «Speranza», in J.-Y.
Lacoste, Dizionario critico di teologia, Roma 2005, 1276-1281.
Lafont, G., Que nous est-il permis d’espérer?, Paris 2009; trad. italiana, Che cosa possiamo
sperare?, Nuovi Saggi Teologici 89, Bologna 2011.
Laín-Entralgo, P., La Espera y la Esperanza. Historia y teoria del esperar humano, Madrid
19582.
Lane, W., The Gospel According to Mark. The English Text with Introduction, Exposition and
Notes, Michigan 1974.
Larrú, J.D., «El realismo de la esperanza: La simbiosis entre las esperanzas y la gran
esperanza», AnVal 35 (2009) 141-159.
Latourelle, R., Miracles de Jésus et théologie du miracle, Paris 1986.
Lee, D., «Partnership in Easter Faith.The Role of Mary Magdalene and Thomas in John 20»,
JSNT 58 (1995) 37-49.
Letourneau, P., «‘Give Me This Water…’ The Water of Life in John’s Gospel», Conc(NY) 5
(2012) 58-67.
Levinas, E., Totalité et infini. Essai sur l’extérioritè, Paris 1990.
Léon-Dufour, X., «espérance, espérer», in DNT, Paris 1975, 240-241.
—, Lecture de l’Évangile selon Jean (I-IV), I, Paris 1988.
—, Lecture de l’Évangile selon Jean (V-XII), II, Paris 1990.
—, Lecture de l’Évangile selon Jean (XIII-XVII), III, Paris 1993.
—, Lecture de l’Évangile selon Jean (XVIII-XXI), IV, Paris 1996.
—, «Approches diverses du miracle», in Aa.Vv., Les miracles de Jésus, Paris 1977, 7-39.

485
Lima, A.O., «O casamento de Jesus: enredo do Antigo Testamento na construção da narrativa
de João 4», Hor. 8 (2010) 130-143.
Lindemann, A., «Jesus Christus und die Mythologie: Bultmanns Mythos-Verständnis und
seine Evangelienauslegung», ETL 91 (2015) 365-391.
Lohse, E., Die Wundertaten Jesu: Die Bedeutung der neutestamentlichen Wunderüberlieferung
für Theologie und Kirche, Stuttgart 2015.
Lorenzetti, L., «La speranza ultima e le speranze penultime», RTM 158 (2008) 191-197.
Lohfink, G., Jesus von Nazaret – Was er wollte, wer er war, Freiburg im Breisgau 20123; trad.
italiana, Gesù di Nazaret. Cosa volle-Chi fu, BTCon 170, Brescia 2014.
—, Wie hat Jesus Gemeinde gewollt?, Freiburg im Breisgau [s/d]; trad. italiana, Gesù
come voleva la sua comunità? La Chiesa quale dovrebbe essere, Cinisello Balsamo 2015.
Macala, A., A escatologia no livro do Apocalipse. Da sua realização no presente litúrgico à
conclusão da história, Tesi Gregoriana – Serie Teologia, 163, Roma 2008.
MacMillen, S., «A Sociologist Appeals to Theological Hope in Postmodern Apocalypses»,
CrossCur 61 (2011) 232-244.
Magalhães, A.C.M., «Renascer para uma esperança viva em Cristo – Aspectos da relação
entre esperança cristã e hermenêutica cristológica», EsRel 11 (1995) 9-26.
Maggioni, B., Il terreno della speranza. Note di cristianesimo per un tempo di crisi, Milano 2012.
Malcolm, L., Ramsey, J., «On Forgiveness and Healing: Narrative Therapy and the Gospel
Story», WorWor 30 (2010) 23-32.
Mancini, R., «Le sorti della speranza nell’era post-moderna», RTM 158 (2008) 173-179.
—, «La conversione alla relazione», in Io-Tu: In principio la relazione (a cura di A.
Romano), Trapani 2012, 13-25.
Manicardi, L., «L’altro occhio della speranza», RCI 87 (2006) 557-578.
Manise, G., «Speranza», in Dizionario di teologia morale (dir. Francesco Roberti), Roma
1954, 1293-1294.
Mann, C.S., Mark. A New Translation with Introduction and Commentary, AncBS, 27, New
York 1986.
Mannucci, V., Giovanni il Vangelo narrante. Introduzione all’arte narrativa del quarto
Vangelo, Bologna 1993.
Mantovani, M., «Persona e relazione, tra teologia e filosofia», in «Relazione»? Una categoria
che interpella (a cura di M. Sodi e L. Clavell), Città del Vaticano 2012, 69-82.
Maraschi, S.P., «La struttura concettuale della teologia della speranza: Pannenberg e
Moltmann», VP 55 (1972) 86-90.

486
Marassi, M., «Speranza», in Enciclopedia filosofica, XI, Milano 2006, 10947-10957.
Marcus, J., Mark 1-8, A New Translation with Introduction and Commentary, AncBS, 27,
New York 2000.
—, «Passover and Last Supper Revisited», NTS 59 (2013) 303-324.
Margaria, L., «Lo scacco della speranza», ATT 15 (2009) 299-316.
Marsch, W.D., Dibattito sulla teologia della speranza di Jürgen Moltmann, Brescia 1973.
Marin F., Wright W., The Gospel of John. Catholic Commentary on Sacred Scripture, Grand
Rapids 2015.
Martins, M.M., «O conceito de ‘elpis’ no Fédon de Platão», RFLFilos. 23-24 (2006-07) 163-185.
Masciarelli, M.G., La grande speranza. Commento organico all’Enciclica ‘Spe Salvi’ di
Benedetto XVI, Città del Vaticano 2008.
Maspero, G., «Ontologia trinitaria e sociologia relazionale: due mondi a confronto», in
«Relazione»? Una categoria che interpella (a cura di M. Sodi e L. Clavell), Città del
Vaticano 2012, 107-136.
Matic, M., Jürgen Moltmanns Theologie in Auseinandersetzung mit Ernst Bloch, Frankfurt-
Bern-New York 1983.
Matthews, V., «Conversation and Identify: Jesus and the Samaritan Woman», BTB 40
(2010) 215-226.
Mayer, B., Exegestisches Wörterbuch zum Neuen Testament, Stuttgart 19922; trad. italiana,
«ἐλπἰς», in DENT(I), Brescia 2004, 1165-1174.
McNicol, A., «The Synoptic Problem: Have We Reached a Failure of Nerve?», RestQ 54
(2012) 137-148.
Medrano, M.A., «La sanación del leproso samaritano a la luz de los conflictos étnicos (Lc
17,11-19)», EstBíb 68 (2010) 151-172.
Meier, J.P., A marginal Jew. Rethinking the Historical Jesus. The Roots of the Problem and the
Person, I, New York 1991.
—, A marginal Jew. Rethinking the Historical Jesus. Mentor, Message, and Miracles, II,
New York 1994.
—, A marginal Jew. Rethinking the Historical Jesus. Companions and Competitors, III,
New York 2001.
—, A marginal Jew. Rethinking the Historical Jesus. Law and Love, IV, New York 2009.
Meier, J.P., Apokalyptik und Eschatologie. Sinn und Ziel der Geschichte, Freiburg in Breisgau
1987; trad. italiana, «L’apocalittica nell’ebraismo», in Aa.Vv., Apocalittica ed escatologia,
Brescia 1992, 50-80.

487
Mendonça, J.T., «‘Sperare contro ogni speranza’. Una sfida per il nostro tempo», RCI 46
(2015) 174-187.
—, Nenhum caminho será longo, Prior Velho 20125.
«Mercurio», in L. Biondetti, Dizionario di mitologia classica. Dèi, eroi, feste, Milano 1997,
450-451.
Metz, J.B., Mystik der offenen Augen. Wenn Spiritualität aufbricht, 20112; trad. portuguesa,
Mística de olhos abertos, São Paulo 2013.
—, Memoria Passionis. Ein provazierendes Gedächtnis in pluralistischer Gesellschaft,
Freiburg im Breisgau 2006; trad. italiana, Memoria Passionis. Un ricordo provocato nella
società pluralista, BTCon 144, Brescia 2009.
Meynet, R., L’évangile de Marc. Rhétorique sémitique, XVI, Pendé 2014.
—, L’évangile de Luc. Rhétoriques sémitique, VIII, Pendé 2011.
Michelini G. (a cura di), Matteo. Introduzione, traduzione e commento, Cinisello Balsamo
2013.
Mies, F., «Speranza», in Temi teologici della Bibbia, Cinisello Balsamo 2010, 1327-1333.
Moloney, F., «The Literary Unity of John 13,1-38», ETL 91 (2015) 33-53.
Moltmann, J., Theologie der Hoffnung. Untersuchungen zur Begründung und zu den
Konsequenzen, Gütersloh 1964; trad. italiana, Teologia della speranza. Ricerche sui
fondamenti e sulle implicazioni di una escatologia Cristiana, BTCon 6, Brescia 20088.
—, Ethik der Hoffnung, Gütersloh 2010; trad. italiana, Etica della speranza, BTCon
156, Brescia 2011.
—, «Horizons of Hope: A Critique of ‘Spe Salvi’», ChrCent 125 (2008) 31-33.
Mondin, B., I teologi della speranza, Roma 1970.
Montanari, F., «ἐλπίς», in Vocabolario della Lingua Greca, Torino 20133.
—, «ἐλπίζω», in Vocabolario della Lingua Greca, Torino 20133.
—, «σύνοψις», in Vocabolario della Lingua Greca, Torino 20133.
—, «συνοράω», in Vocabolario della Lingua Greca, Torino 20133.
Morales, X., Dieu en personnes, Paris 2015.
Moran, J., «Introduccion general», in Obras de San Agostin, XIX. Enarraciones sobre los
Salmos I (BAC), Madrid 1964, 10-83.
Moriconi, B., «‘E vidi un cielo nuovo e una terra nuova’ (Ap 21,1 – 22,5). Visione delle
ultime realtà o dichiarazione ultima sulla storia?», in Speranza. Un sguardo biblico, Todi
2008, 165-183.

488
Morra, S., Parole intorno al pozzo. Conversazioni sulla fede, Cinisello Balsamo 2013.
Mosetto, F., «Gesù in Samaria», in Opera Giovannea, Logos 7, Torino 2003, 183-202.
Moss, C., «The Man with Flow of Power: Porous Bodies in Mark 5:25-34», JBL 3 (2010) 507-519.
Mullins M., The Gospel of Luke, Dublin 2010.
Natoli, S., «Speranza», in Dizionario dei vizi e delle virtù, Milano 20097, 116-121.
Newman, J.H., An Essay in Aid of a Grammar of Assent; Trad. portuguesa, Ensaio a favor de
uma gramática do assentimento, Lisboa 2005.
Nitrola, A., Trattato di escatologia, I. Spunti per un pensare escatológico, Cinisello Balsamo 2001.
—, Trattato di escatologia, II. Pensare la venuta del Signore, Cinisello Balsamo 2010.
—, «La postmodernità e la speranza», in G. Bortone (a cura di), La speranza.
Indagine biblico-teologioco-letteraria, L’Aquila 2002, 259-278.
—, Pensare l’attualità. Etica come ricerca della casa comune, Roma 2005.
—, «Il tempo in Heidegger e Bultmann», in L. Dan (a cura di), Il tempo nella Bibbia,
Roma 2009, 239-273.
Nocke, F.-J., Eschatologie, Düsseldorf 1982; trad. italiana, Escatologia, gdt 150, Brescia 1984.
Nodet, É., «On Jesus’ Last Supper», Bib. 91 (2010) 348-369.
Occhialini, U., La speranza della chiesa pellegrina. Teologia della speranza nelle
‘Enarrationes in Psalmos’ di S. Agostino, Assisi 1965.
O’Collins, G., The theology of hope, Way 1968.
—, Easter Faith. Believing in the Risen Jesus, London 2003.
Origenes, Contre Celse. SCh 136.
Pagano, G., I miracoli di Gesù. Drama e rivelazione, Milano 2008.
«Pandora», in L. Biondetti, Dizionario di mitologia classica. Dèi, eroi feste, Milano 1997,
534-535.
«Pandòra», in Dizionario di mitologia e dell’antichità classica (a cura di M. Gislon e R.
Palazzi), Bologna 2003, 314-315.
Parackal, P.P., «Jesus’ Saving Visit to Nain (Intertextual Study of Lk 7:11-17), BiBh 40
(2014) 3-24.
Paulo VI, Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, 08.12.1975: AAS 68 (1976) 5-76.
Paz, C.; Levoratti, A., Comentario Bíblico Latinoamericano. Nuevo Testamento, Estela
2003; trad. italiana, «Vangelo secondo san Luca», in Nuovo Commentario Biblico. I
Vangeli, Roma 2005.

489
Péguy, C., Le porche du mystère de la deuxième vertu, in Oeuvres poétiques completes, Paris
1950; trad. portuguesa, Os portais do mistério da segunda virtude, Prior Velho 2014.
Penna, R., «Il principio di relazione nella Bibbia», in «Relazione»? Una categoria che
interpella (a cura di M. Sodi e L. Clavell), Città del Vaticano 2012, 336-348.
Perego, G. (a cura di), Vangelo secondo Marco. Introduzione, traduzione e commento,
Cinisello Balsamo 2011.
Pereira, I., Dicionário Grego-Português e Português-Grego, Braga 19907.
Pero, C.S., Liberation from Empire. Demonic Possession and Exorcism in the Gospel of Mark,
New York 2013.
Perotti, P., «Gesù e i due ‘ladroni’», BibOr 51 (2009) 133-146.
Pesch, R., Das Markusevangelium, I, Freiburg im Breisgau 19772; trad. italiana, Il vangelo di
Marco, I, Brescia 1980.
Pié-Ninot, S., La teologia fundamental, Salamanca 20097.
Pikaza, X., Para vivir el evangelio. Lectura de Marcos, Estella 1995.
Pindaro, Tutte le opere (a cura di Enzo Mandruzzato, Milano 2010.
Pitre, B., Jesus and the Last Supper, Grand Rapids-Cambridge 2015.
Platão, Protagora (cura di Francesco Adorno), Roma-Bari 2003.
—, Filebo (a cura di Attilio Zadro), Roma-Bari 1985.
—, Tutti gli scritti (a cura di Giovanni Reale), Milano 20013.
—, Timaeus, in Platonis opera, IV, London 1957.
Poirier, J.C., «The Roll, the Codex, the Wax Tablet and the Synoptic Problem», SNT 35
(2012) 3-30.
Popp, T., Kompendium der Gleichnisse Jesu, Gütersloh 2007; trad. italiana, «Decisivo è ciò
che viene dall’alto», in R. Zimmermann (ed.), Compendio delle parabole di Gesù, Brescia
2011, 1122-1129.
—, Kompendium der Gleichnisse Jesu, Gütersloh 2007; trad. italiana, «Sapere da dove
soffia il vento», in R. Zimmermann (ed.), Compendio delle parabole di Gesù, Brescia
2011, 1131-1138.
Poupard, P., «Speranza e disperazione nella cultura contemporanea», in Aa.Vv., La
Speranza. Studi Filosofico-Pedagogici. Atti del Congresso promosso dal Pontificio Ateneo
‘Antonianum’ 30 maggio – 2 giugno 1982, I, Brescia 1984, 81-105.
Prendergast, T., «Hope», in D.N. Freedman, ABD, III, New York 1992, 282-285.

490
Prieto, C., Jésus thérapeute: Quels rapports entre ses miracles et la médecine antique?,
Geneva 2015.
«Prometeo», in L. Biondetti, Dizionario di mitologia classica. Dèi, eroi feste, Milano 1997,
610-612.
«Promèteo», in Dizionario di mitologia e dell’antichità classica (a cura di M. Gislon e R.
Palazzi), Bologna 2003, 350.
Puthenkulam, J., «The Widow of Nain (Lk 7:11-17): The Significance of ‘Widows’ in Luke-
Acts. An Exegetical Study, VJTR 78 (2014) 503-512.
Puthur, B., From the Principle of Hope to the Theology of Hope, Kerala 1987.
Queiruga, A.T., «Elpidología: La esperanza como existenciario humano», ThX 154 (2005)
165-184.
—, «La estrutura fundamental de la esperanza bíblica», ThX 154 (2005) 227-252.
—, «La realización concreta de la esperanza: El mal desde la cruz y la resurrección»,
ThX 154 (2005) 253-266.
Rad, G. von, Theologie des Alten Testaments. Die Theologie der geschichtlichen Überlieferungen
Israels, I, München 19624; trad. italiana, Teologia dell’Antico Testamento. Teologia delle
tradizioni storiche d’Israel, I, Brescia 1972.
Radice, R., «ἐλπίζω», in Lexicon. Plato, I, Milano 2003.
—, «ἐλπίς», in Lexicon. Plato, I, Milano 2003.
—, «ἐλπίζω», in Lexicon. Aristoteles, III, Milano 2005.
—, «ἐλπίς», in Lexicon. Aristoteles, III, Milano 2005.
Rahner, K., «Über den Versuch eines Aufrisses einer Dogmatik» (1939.1954.1960), in
Schriften zur Theologie, I, Einsiedeln/Zürich/Köln 19604, 9-47; trad. italiana, «Saggio di
uno schema di dogmatica», in Saggi Teologici, I, Roma 1965, 51-111.
—, Grundkurs des Glaubens. Einführung in den Begriff des Christentums, Freiburg
im Breisgau, 1976; trad. italiana, Corso fondamental sulla fede. Introduzione al concetto
di cristianesimo, Milano 20056.
—, «Probleme der Christologie von heute», in Schriften zur Theologie, I, Einsiedeln/
Zürich/Köln 19604, 169-222; trad. Italiana, «Problemi della cristologia d’oggi», in Saggi
di cristologia e di mariologia, Roma 1967, 4-91.
—, Wer ist dein Bruder?, 1981; trad. italiana, Chi è tuo fratello?, Cinisello Balsamo 2015.
Ratzinger, J., Einführung in das Christentum. Vorlesungen über das Apostolische
Glaubensbekenntnis, München 1968; trad. portuguesa, Introdução ao Cristianismo.
Prelecções sobre o ‘Símbolo Apostólico’, Cascais 2005.

491
Ratzinger, J., «Sulla speranza», in Aa.Vv., La Speranza. Studi biblico-teologici e apporti del
pensiero francescano. Atti del Congresso promosso dal Pontificio Ateneo ‘Antonianum’ 30
maggio – 2 giugno 1982, II, Brescia 1984, 9-28.
—, «Comentário Teológico», in CDF, A Mensagem de Fátima (o segredo), Apelação
2000, 43-63.
Reid, B.E., «What’s Biblical about… Washing Feet?», BiTod 49 (2011) 253-256.
Rengstorf, K., Theologisches Wörterbuch zum Neuen testament, Stuttgart 1964; trad.
italiana, «σημεῖον», in GLNT, ΧII, Brescia 1979, 17-192.
—, Das Evangelium nach Lukas, Göttingen 1969; trad. italiana, Il vangelo secondo
Luca, Brescia 1980.
Reymond, P., Dictionnaire d’Hébreu et d’Araméen Bibliques, Paris 2010.
Ricard, K., «Nicodème, le savant: Libre dialogue à partir de Jn 3,1-8», Christus 57 (2010)
165-174.
Ricoeur, P., Vivant jusqu’à la mort, suivi de fragments, Paris 2007.
—, Philosophie de la volonté. Le volontaire et l’involontaire, Paris 1949.
Río, M.P., «Ekklesía», in DE, Roma 2010, 601-607.
Ronchi, E., Al mercato della speranza, Milano 20132.
Ronchi, E.; Marcolini, M., Perché avete paura? La speranza dalle Scritture, Cinisello Balsamo
2013.
Rose, H.J., «Prometeo», in Dizionario d’antichità classiche di Oxford, Roma 1963, 225-226;
The Oxford Classical Dictionary, Oxford 1953.
Rossé, G., Il Vangelo di Luca. Commento esegetico e teologico, Roma 20125.
Rusam, D., «Il Vangelo di Luca», in M. Ebner, S. Schreiber (edd.), Einleitung in das Neue
Testament, Stuttgart 2008; trad. italiana, Introduzione al Nuovo Testamento, Brescia
2012, 225-254.
Rusconi, C., Vocabolario del Greco del Nuovo Testamento, Bolonha 1997; trad. portuguesa,
Dicionário do Grego do Novo Testamento, São Paulo 2003.
Russo, F., Augustine through the Ages – an Encyclopedia, Michigan 1999; trad. italiana,
«Speranza», in Agostino. Dizionario enciclopedico, Roma 2007, 1319-1321.
Salonia, G., «Il paradigma triadico della traità. I contributi della Gestalt Therepy e di Bin
Kimura», in Io-Tu: In principio la relazione (a cura di A. Romano), Trapani 2012, 27-35.
Salvi M., «L’indebolimento della speranza. Tra l’utopia e la rassegnazione», in Crisi della
speranza, Milano 2000, 51-88.
Sandrin, L., «La comunità cristiana», OrPast 10 (2013) 44-53.

492
Santos, N., «A teologia paulina sobre a Ressurreição. Do anúncio kerigmático de Atenas em
Act 17, 22-34 à reflexão dogmática da 1Cor 15», Brot. 178 (2014) 217-239.
—, «(Re)Pensar a morte para ‘en-tender’ a Ressurreição. Elementos para um itinerário
antropológico, filosófico e teológico», EsTeol 18 (2014) 125-162.
—, «Problemática atual do morrer no mundo ocidental(izado). Elementos para um
itinerário – I», Brot. 180 (2015) 251-277.
—, «Do Mistério da Incarnação à relação com o Incarnado. No início do Cristianismo
está um encontro com uma pessoa», Brot. 180 (2015) 497-510.
—, «Um Deus que chora – Jesus enche-se de compaixão e chora diante da morte», in
EsTeol 19 (2015) 2-24.
—, «A esperança de Camões nas redondilhas ‘Sôbolos rios que vão’», Brot. 182 (2016)
55-74.
Scalabrini, P.R., «La speranza non delude: elementi di una teologia paolina della speranza»,
in Crisi della speranza, Milano 2000, 107-138.
Schillebeeckx, E., Jezus, het verhaal van een levende, Bloemendaal 1974; trad. italiana,
Gesù. La storia di un vivente, BTCon 26, Brescia 19803.
—, Gerechtigheid en liefde. Genade en bevrijding, Bloemendaal 1977; trad. italiana, Il
Cristo, La storia di una nuova prassi, BTCon 37, Brescia 1980.
Schmid, J., Das Evangelium nach Markus, Ratisbona 19584; trad. italiana, El evangelio según
san Marcos, Barcelona 1967.
—, Das Evangelium nach Lukas, Ratisbona 19675; trad. italiana, El Evangelio según
san Lucas, Barcelona 1968.
Schmidt, K., Theologisches Wörterbuch zum Neuen testament Stuttgart 1938; trad. italiana,
«καλέω», in GLNT, IV, Brescia 1968, 1453-1464.
—, Theologisches Wörterbuch zum Neuen testament Stuttgart 1938; trad. italiana,
«εκκλησία», in GLNT, IV, Brescia 1968, 1490-1580.
Schnackenburg, R., Das Evangelium nach Markus, 2/1, Düsseldorf [s/d]; trad. espanhola,
El evangelo según san Marcos, I, Barcelona 19803.
—, «Introduzione», in Commentario Teologico del Nuovo Testamento, Il vangelo di
Giovanni, IV/I, Brescia 1973, 11-289.
Schneiders, S., «De verrezen Jezus aanraken: Maria Magdalena en Tomas de tweeling in
Johannes 20», Coll. 40 (2010) 39-66.
Schökel, L.A., Diccionario bíblico hebreo-español, Madrid 1994; trad. portuguesa, «‫» ָ ּבטַח‬, in
Dicionário bíblico hebraico-português, São Paulo 1997.

493
Schreiner, T., Romans. Baker Exegetical Commentary on the New Testament, Michigan
1998.
Schweizer, E., Das Evangelium nach Marcus, Göttingen 1967; trad. italiana, Il vangelo
secondo Marco (Paideia I), Brescia 1971.
Schwertner, S.M., Internationales Abkürzungsverzeichnis für Theologie und Grenzgebiete,
Berlim - Boston 20143.
Scognamiglio, E., «Oltre le nostre utopie: Aspetti fenomenologici della speranza», ED 61
(2008) 95-113.
Semeraro, M., Mistero, comunione e missione. Manuale di eclesiologia, 1997; trad. espanhola:
Misterio, comunión y misión. Manual de eclesiología, Salamanca 2004.
Sequeri, P., «Gesù risorto. Evento, fede, sacramento», HumTeo 35 (2014) 09-18.
Serrano, R., «Los Milagros de Jésus: Semillas o anticipo del Reino», ITER 21 (2010) 59-72.
Serretti, M., «La relazione di origine», in «Relazione»? Una categoria che interpella (a cura
di M. Sodi e L. Clavell), Città del Vaticano 2012, 37-52.
Sguazzardo, P. Incarnazione, Assisi 2013.
Sibaldi, I, I miracoli di Gesù e la técnica dei miracoli nei Vangeli canonici, Milano 1989.
«Sisifo», in L. Biondetti, Dizionario di mitologia classica. Dèi, eroi, feste, Milano 1997, 653-654.
Slater, T.B., «Apocalypticism and Eschatology: A Study of Mark 13:3-37», PRSt 40 (2013)
7-18.
Ska, J.-L., «Abramo nella tradizione ebraica», CivCatt 151 (2000) 341-349.
—, «Jésus et la Samaritaine (Jn 4)», NRTh 118 (1996) 641-652.
Skvorcevic, A., Ecclesiologia escatologico-messianica di Jürgen Moltmann, Roma 1982.
Söding, T., «Berührung als Heilung. Die handfeste Gnade in den Wundern Jesus», BK 67
(2012) 36-40.
Souletie, J.-L., «L’espérance chrétienne dans les sociétés postmodernes», NRTh 131 (2009)
588-599.
—, La croix de Dieu. Eschatologie et histoire dans la perspective christologique de
Jürgen Moltmann, Paris 1997.
Spadaro, A., «L’inquietudine e la speranza», CivCatt 162 (2011) 16-28.
—, Cyberteologia. Pensare il cristianesimo al tempo della rete, Milano 2012.
«spes» e «spero», in Il latino. Vocabolario della lingua latina (a cura di G.B. Conte, E.
Pianezzola, G. Ranucci), Milano 20103.
Stein, R., Mark. Baker Exegetical Commentary on the New Testament, Michigan 2008.

494
Studer, B., «Speranza», in NDPAC, Genova-Milano 2008
—, «Speranza», in DPAC, Casale Monferrato 1984.
Tagle, L.A., Easter People. Living Community, New York 2005.
Tang, S.-K., God’s History in the Theology of Jürgen Moltmann, Bern 1996.
Tanzella-Nitti, G., «Il miracolo e le scienze della natura. La teologia dell’azione divina nel
dibattito interdisciplinare degli ultimi decenni», AT(R) 29 (2015) 429-470.
Tenace, M., Dire l’uomo. Dall’immagine di Dio alla somiglianza. La salvezza come
divinizzazione, II, Roma 2014.
Tertuliano, De carne Christi. CCSL 2.
—, De resurrectione mortuorum. CCSL 2.
Thompson, A., «Parallel Composition and Rhetorical Effect in Luke 7and 8», JSNT 38 (2015)
169-190.
Thompson, J., «Well, Well, Well… What Is Jesus Doing at a Well? (John 4:4-42)», BiTod 50
(2012) 215-220.
Tomás de Aquino, Suma Teologica, VII (BAC), Madrid 1959.
Tremolada, P., «Ricerca di senso ed esperienza della salvezza nella comunità apostolica», in
AaVv, La comunità cristiana: custode e testimone del senso, Milano 2008, 35-60.
van Belle, G., «‘Blessed are those who have not seen and yet have come to believe’: Rudolf
Bultmann’s Interpretation of the ‘Signs’ in the Fourth Gospel», ETL 91 (2015) 521-546.
van Menxel, F., Ἐλπίς.Espoir.Espérance. Etudes sémantiques et théologiques du vocabulaire
de l’espérance dans l’Hellénisme et le Judaïsme avant le Nouveau Testament, Frankfurt
am Main 1983.
Vanni, U., L’Apocalisse. Ermeneutica, esegesi, teologia, Bologna 2001.
Varillon, F., O sofrimento de Deus, Braga 1996.
Veyron, M.-L., Le toucher dans les Évangiles, Paris 2013.
Vernant, J.-P., Mythe et pensée chez les Grecs. Études de psychologie historique, Paris 1988.
Vicente, P.A., «Esperanza y fe en Jesucristo», SalT 101 (2013) 207-219.
Vieira, A., «Sermão do Santíssimo Sacramento», in Obra Completa Padre António
Vieira (dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate), t. II, v. VI: Sermões Eucarísticos,
Lisboa 2014. 
Vignolo, R., «Speranza della Scritura, speranza cristologica: Risorsa per tempi post-
moderni», RCI 83 (2002) 106-120, 212-221.
Vignolo, R., Personaggi del Quarto Vangelo. Figure della fede in San Giovanni, Milano 1994.

495
Vijayaraj, J., «Wealth and Social Justice in Luke 18:18-25», BiBh 37 (2011) 20-41.
Virgilio, G., «La speranza e la durata del tempo», RTM 136 (2002) 517-524.
Visonà, G., La speranza nei Padri, Milano 1993.
—, «Dalla ‘elpís’ dei greci alla ‘speranza’ dei cristiani», RCI 72 (1991) 257-272.
von Balthasar, H.U., Theologie der drei Tage, Einsiedeln-Köln 1969; trad. Italiana, Teologia
dei tre giorni. Mysterium Paschale, BTCon 61, Brescia 20118.
—, Die Wahrheit ist symphonisch, Einsiedeln 1972; trad. Italiana, La verità è sinfonica.
Aspetti del pluralismo cristiano, Milano 19913.
von Wahlde, U.C., The Gospel and Letters of John. Introduction, Analysis, and Reference, I,
Michigan 2010.
—, The Gospel and Letters of John. Commentary on the Gospel of John, II, Michigan 2010.
Vrede, K.V., «A Contrast between Nicodemus and John the Baptist in the Gospel of John»,
JETS 57 (2014) 715-726.
Ware, J., «Paul’s Hope Ours. Recovering Paul’s Hope of the Renewed Creation», ConJ 35
(2009) 129-139.
Waschke, E.J., Theologisches Wörterbuch zum Alten Testament, Stuttgart 1993; trad.
italiana, «‫»ק ׇוח‬,
‫ ׇ‬in GLAT, VII, Brescia 2007.
Wassell, B., Llewelyn, S., «‘Fishers of Humans’, the Contemporary Theory of Metaphor, and
Conceptual Blending Theory», JBL 133 (2014) 627-646.
Watson, D.F. (ed), Miracle Discourse in the New Testament, Atlanta 2012.
Yang, Y., «The Rich Ruler (Luke 18:18-30) and Chreia Rhetorical Practice in Roman Empire
– Luke’s Strategy to Exhort the Rich Ordo in Roman Society», AJT 26 (2012) 3-28.
Zagmann, M., «Changing the Perspective. Jesus and a ‘Sinful’/‘Loving’ Woman (Lk 7,36-
50), SNTU 38 (2013) 189-209.
Zeilinger, F., Die sieben Zeichenhandlungen Jesu im Johannesevangelium, Stuttgart 2011.
Zenão de Verona, Tratactus de fide, spes et caritate. CCSL 22.
«Zèus», in Dizionario di mitologia e dell’antichità classica (a cura di M. Gislon e R. Palazzi),
Bologna 2003, 443.
Zimmermann, R., «Auslegungskunst. Sehepunkte zur Wundererzählung vom Besessenen
aus Gerasa (Mk 5,1-20)», BN 152 (2012) 87-115.

496
Índice remissivo de autores

A Barbaglio 80, 81, 89, 91, 407, 408


Acquaviva 8 Barnabé 96
Agostinho 26, 95, 96, 98, 99, 100, 101, 102, Barvarino 316
104, 105, 106, 107, 336, 404 Basilio 102, 107
Alby 136, 224, 392, 393, 394, 395, 398 Bassin 149, 158, 168, 182, 199, 213, 222, 230,
Alegre 64, 66 238, 246, 255, 262
Aletheia 141 Bassler 304, 306
Aletti 144, 145, 147, 346, 347, 390 Bauckham 27
Alfaro 25, 26, 28, 29, 30, 47, 75, 82, 83, 84, 85, Baum 336
87, 88, 89, 91, 110 Beale 66
Alkier 124 Belle 131
Almeida 320, 323, 329, 335 Bello 447
Ambrósio 99, 336 Bento XVI 31, 47, 78, 89, 380, 385, 451, 456,
Amir 316 462
Ancona 383, 461 Berger 150
Angelini 25, 27, 31, 32, 406 Berkhof 27
Aristóteles 10, 42, 43, 392 Bernardo de Claraval 108
Arrighetti 35 Bertuletti 25, 30
Arterbury 316 Bettini 28, 29
Artola 20 Beutle 281, 289, 302, 316, 336, 346, 361
Auffret 336 Bianchi 429
Bieberstein 141, 281
B Bieringer 372
Back 302 Biguzzi 66
Baert 199, 372 Bilby 255
Balsas 122, 131, 137, 138 Biondetti 34, 35, 36, 37, 39, 409, 461
Balthasar 19, 30, 33, 41, 47, 48, 52, 73, 90, 93, Bloch 8, 9, 19, 26, 27, 28, 29, 32, 33, 34, 35, 37,
381, 383, 422, 425, 426 38, 406

497
Bock 158, 161, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 329, 330, 331, 332, 333, 335, 336, 337,
169, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 338, 339, 341, 343, 344, 346, 348, 349,
178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 351, 352, 353, 354, 355, 356, 357, 358,
186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 359, 361, 362, 363, 364, 365, 366, 367,
194, 195, 196, 197, 198, 199, 222, 223, 368, 369, 370, 371, 372, 373, 374, 388,
225, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 437
234, 237, 238, 239, 240, 241, 242, 243, Bruni 380, 383
246, 247, 248, 249, 250, 251, 252, 253, Bruno 8
254, 255, 257, 259, 260, 262, 266, 267,
Buber 378, 379, 380, 381
272, 273, 276
Bucur 262
Bomford 199
Bultmann 26, 29, 30, 49, 130, 131, 132, 133,
Bonanni 42, 43, 48, 49
134, 396, 404, 405, 415
Borghello 380
Burer 399
Bortone 32, 85
Bustamante 32, 33, 61, 76, 81, 86
Bosetti 63
Butticaz 80
Bossuet 26
Boucher 307 C
Bovon 142, 143, 145, 146, 147, 158, 159, 160, Calduch-Benages 170, 172, 173, 174, 175, 178,
161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 180, 182, 200, 201, 205, 213, 225, 391,
169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 395, 398, 399, 431
177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, Calhoun 149
185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192,
Calvino 26
193, 194, 195, 196, 197, 198, 199, 213,
Camus 38
214, 215, 216, 218, 220, 221, 222, 224,
225, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, Carli 27
234, 235, 236, 237, 238, 239, 240, 241, Caro 20
242, 243, 245, 246, 247, 248, 249, 250, Carroll 141
251, 252, 254, 255, 256, 257, 258, 259, Carvalho 27, 76
260, 262, 263, 265, 266, 267, 268, 269, Casquilho 336, 337, 339, 340, 341, 343, 344,
270, 271, 272, 273, 274, 275, 276, 277, 345, 346
278, 436
Chakkalakal 213
Brancato 31
Chance 262
Branco 8, 27, 33
Chapleau 246
Briglia 152, 153, 155, 200, 203, 207, 212
Chevalier 410
Brito 26
Chiriankandath 222
Brookins 238
Chrupcala 141
Brown 282, 284, 289, 291, 292, 293, 294, 295,
Cipriano 96, 336
296, 297, 298, 300, 301, 302, 303, 304,
305, 307, 308, 309, 310, 311, 312, 314, Cirilo de Alexandria 336
316, 317, 320, 322, 323, 324, 327, 328, Clément 383

498
Clemente de Alexandria 97 Di Luccio 346
Colacra 63 Dinis 426
Collins 30, 63, 425, 426 Doglio 66, 73, 136, 385, 389, 398, 399
Comte 26 Donahue 149, 152, 154, 156, 157, 201, 202,
Congar 383 203, 204, 205, 206, 207, 209, 211, 212,
Conyers 27 213
Correia 212, 263, 264, 266, 267, 268, 272, 274, Doré 124
275, 276, 277, 278, 279, 385, 428, 432, Doyle 31
445, 450
Cosgrove 175 E
Cotter 124 Ebner 145, 148
Cox 27 Emery 420
Cozzoli 90 English 168
Crabbe 168 Epicoco 31
Crimella 121, 143, 144, 146, 155, 158, 160, Eschilo 37
162, 163, 164, 165, 167, 168, 169, 172, Esiodo 34, 35, 36, 409, 414
174, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, Esposito 262
183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, Euripide 413
191, 192, 193, 194, 195, 196, 197, 214, Everts 47, 54, 56, 74, 80, 84, 85, 92, 420
215, 216, 217, 220, 221, 222, 226, 229,
230, 231, 232, 233, 234, 235, 236, 237, F
238, 239, 241, 242, 244, 245, 246, 247,
Fabris 12, 71, 74, 77, 80, 84, 121, 141, 441
248, 249, 250, 251, 253, 255, 257, 258,
Farelly 302
259, 260, 261, 262, 264, 265, 266, 267,
268, 269, 270, 271, 272, 273, 275, 276, Filão de Alexandria 97, 98
277, 278, 279, 422, 435, 438, 449 Fitzmyer 142, 144, 146, 147, 149, 152, 158,
Crisóstomo 98, 99, 336 159, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 166,
167, 168, 169, 171, 172, 173, 174, 176,
Croce 64, 125, 132, 133, 135, 137, 146, 281,
177, 178, 179, 180, 182, 183, 184, 185,
406, 419, 421, 423, 424, 430, 438, 439,
186, 187, 188, 189, 191, 192, 193, 194,
440, 441, 450, 456
195, 196, 197, 208, 210, 213, 214, 215,
216, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 225,
D
226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233,
Daley 93
234, 236, 237, 238, 239, 240, 241, 242,
Daniélou 25, 48, 73, 89, 383 243, 244, 245, 246, 248, 249, 252, 255,
Dante 14 257, 258, 259, 260, 262, 263, 264, 265,
Delling 411, 412, 413 266, 267, 268, 269, 270, 271, 272, 273,
Demasure 372 274, 275, 276, 277, 278, 401, 416
Deuser 262 Ford 302
Devillers 368, 372 Formosinho 8, 27, 33

499
Förster 127 368, 370, 371, 373
Forte 8, 365, 419, 421, 423 Greshake 209
Fortin 327, 328, 334 Grilli 8
Francesco 385, 431 Grundmann 126, 127
Francisco 7, 8, 9, 379, 430, 431, 434, 446, 452, Guillén 31
459, 460, 463 Gunkel 141
Freire 449 Gutiérrez 30
Freni 10
Frey 66 H
Friedrich 114, 115 Halík 446
Frosini 31, 86 H. Anderson 204, 206, 207, 208, 209, 212,
Fusco 114, 115, 116, 239, 397 213
Harnack 378
G Harrington 149, 152, 154, 156, 157, 201, 202,
Gaiser 199 203, 204, 205, 206, 207, 209, 211, 212,
García 27 213
George 249, 251, 254 Hartlieb 262
Gheerbrant 410 Healy 27, 28, 110
Ghiberti 282, 283, 285, 286, 287, 288, 290, Hegel 26
358 Heidegger 26, 27, 403, 404, 405, 415
Gibellini 29, 30 Hennezel 165, 211
Giesen 158 Henry 31, 406, 453
Gilbert 405, 461 Hilário de Poitiers 102
Gislon 34, 35, 36, 409 Hodges 199
Giuntoli 10 Hoffmann 40, 41, 51, 52, 76, 77, 78
Gizard 316 Hofmeier 406
Gonçalves 27 Holzer 383
González Cardedal 30, 72 Homero 41, 413
González-Faus 123, 127, 131, 137, 140, 393 Horsley 393
Granados 48, 379, 403, 404, 415, 416, 419,
420, 421, 427, 431 I
Grasso 66, 127, 283, 284, 288, 290, 291, 292, Inácio de Antioquia 96
293, 294, 295, 297, 298, 299, 300, 301, Infante 275, 282, 283, 284, 285, 286, 287, 289,
304, 305, 307, 308, 310, 311, 312, 314, 290, 292, 293, 295, 296, 297, 298, 299,
315, 316, 318, 319, 321, 322, 323, 324, 300, 301, 302, 303, 304, 305, 306, 307,
325, 327, 328, 330, 331, 332, 334, 336, 308, 309, 310, 312, 313, 314, 315, 316,
337, 339, 340, 342, 344, 348, 351, 353, 317, 318, 319, 320, 323, 324, 325, 327,
355, 357, 358, 359, 361, 364, 365, 367, 328, 329, 330, 331, 332, 333, 334, 335,

500
336, 338, 339, 340, 341, 342, 343, 345, Kügler 282, 284
346, 347, 348, 349, 350, 351, 352, 353,
354, 355, 356, 357, 358, 359, 360, 361, L
362, 363, 364, 365, 366, 367, 368, 369, Labahn 131
370, 371, 372, 373, 374, 437 Lacoste 58
Irineu de Leão 95 Laín-Entralgo 26, 32, 38, 39, 41, 405
Lane 153, 155
J
Larrú 90
Jaroš 141
Latourelle 127, 128, 129, 130, 131, 133, 135,
Jeffrey 141
138, 140, 223, 238, 386, 392, 397, 398,
J.F. Correia 212, 385, 428, 432, 445, 450 400, 429
João da Cruz 26 Lee 372, 373, 374
Johnson 159, 167, 239, 240, 241 Léon-Dufour 40, 58, 77, 84, 125, 136, 289,
Joy 346 290, 291, 292, 293, 294, 295, 296, 297,
Justino 96, 103, 104 298, 299, 300, 301, 302, 303, 304, 305,
306, 307, 308, 311, 312, 313, 314, 315,
K 316, 317, 318, 319, 320, 321, 323, 324,
Kant 25, 26, 130 325, 326, 327, 328, 329, 330, 331, 333,
Kasper 76, 134, 136, 138, 139 334, 335, 336, 337, 338, 339, 340, 341,
343, 344, 345, 346, 347, 348, 349, 350,
Kee 126, 392, 393, 394, 395, 397
351, 352, 353, 355, 356, 357, 358, 359,
Keener 281, 289, 291, 294, 295, 296, 297, 298,
360, 361, 362, 363, 364, 365, 366, 367,
299, 301, 302, 374, 389
368, 369, 370, 372, 373, 374, 388, 400,
Kelhoffer 66 437
Kelly 395 Letourneau 316
Kereszty 124, 420 Levinas 403, 427
Kerstiens 27, 50, 109 Levoratti 247
Kessler 17, 419, 422, 423, 424, 426, 428 Lima 316
Kibeti 214, 217, 218, 219, 222 Lindemann 131
Kierkegaard 453 Llewelyn 155
Knights 289, 361 Lohfink 18, 121, 122, 125, 132, 137, 146, 215,
Knust 336 256, 350, 378, 389, 390, 393, 395, 396,
Koch 48, 49, 50, 52, 55, 66 422, 423, 427, 430, 433, 434, 435, 438,
Koester 319, 324, 325, 326, 328 439, 440, 441, 442, 445, 446, 450, 454,
Köhnlein 420 455, 457
Köstenberger 282, 284, 286, 336, 337 Lohse 124
Köster 165 Lorenzetti 16, 90, 406, 417
Kouamé 302 Lutero 26
Kowalski 168

501
M Menxel 39
Macala 66 Metz 7, 18, 27, 30, 62, 65, 403, 415, 417, 421,
Machado 26 433, 448, 458
MacMillen 66 Meynet 150, 155, 158, 159, 162, 163, 167, 169,
172, 176, 182, 188, 190, 193, 197, 198,
Magalhães 448
200, 201, 202, 203, 208, 209, 210, 211,
Maggioni 11, 382
212, 213, 214, 215, 218, 219, 221, 230,
Malcolm 316 237, 238, 239, 242, 243, 244, 248, 249,
Mancini 51, 382 255, 256, 258, 260, 262, 266, 267, 269,
Manicardi 49, 405 275, 278, 279
Manise 109 M.I. Angelini 406
Mann 149, 152, 153, 202 Michelini 124, 142, 143, 154, 182, 438, 439,
Mannucci 283, 284, 285, 287, 288, 319, 324 449
Mantovani 383 Mies 49, 50, 55, 77, 80
Maraschi 27, 29, 47 Moloney 346, 347, 352
Marassi 42, 43, 49, 72 Moltmann 8, 14, 19, 25, 27, 29, 30, 31, 52, 53,
Marcel 26 54, 57, 58, 59, 62, 64, 72, 73, 74, 78, 86,
88, 371, 397, 398, 399, 409, 411, 414,
Marcolini 72, 78, 377
429, 444, 447, 453
Marcus 149, 150, 153, 154, 155, 200, 201, 202,
Monasterio 20, 115, 116, 117, 148
203, 204, 205, 206, 207, 209, 210, 211,
213, 346 Mondin 27
Margaria 8, 32 Montanari 40, 148
Marin 281, 289, 302, 316, 336, 346, 361 Morales 383
Marsch 27 Moran 102
Martins 39, 41, 42 Moriconi 67
Marx 26, 27, 38 Morra 317, 318, 331
Masciarelli 9, 14, 16, 17, 31, 74, 85, 89, 418 Mosetto 316
Maspero 380 Moss 202, 205
Matic 27 Mullins 141, 149, 158, 168, 182, 199, 213, 222,
230, 238, 246, 255, 262
Matthews 316
Mayer 80 N
M. Carvalho 76 Natoli 9, 25
McNicol 141 Newman 26, 419, 453
Medrano 222 Nitrola 5, 11, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 48,
Meier 63, 118, 125, 131, 134, 135, 136, 138, 52, 53, 55, 56, 57, 59, 60, 61, 62, 63, 64,
139, 212, 222, 351, 368, 388, 389, 390, 74, 404, 405, 407, 408, 411, 412, 413,
391, 392, 395, 396, 398, 429, 438, 439 414, 415, 416, 417, 459, 461
Mendonça 8, 31, 55, 56, 78, 82, 83, 89, 90, 449 Nocke 47, 53, 59, 60, 61, 63, 64, 67

502
Nodet 346 208, 438
Nono de Panópolis 336 Pereira 113, 378, 395, 401, 408, 410, 412, 413,
414, 415, 422, 429, 442, 445, 448, 451,
O 453, 455
Occhialini 26, 99, 101, 102, 107 Pero 395
O’Collins 30, 425, 426 Perotti 255
Origenes 97, 328, 336 Pesch 201, 202, 204, 205, 206, 207, 208, 209,
Ortega 26 210, 212
Pié-Ninot 419
P Pikaza 149, 150, 151, 155, 156, 157, 200, 205,
Pagano 127, 131, 132, 134, 135, 136, 395 210, 212
Paiva 426 Pindaro 43, 413
Palazzi 34, 35, 36, 409 Píndaro 41, 413
Palma 80, 83 Pitre 346
Pannenberg 27, 29, 47 Platão 10, 37, 39, 41, 42, 49, 97, 98, 103, 104,
Parackal 158 411, 412
Paulo 7, 11, 12, 18, 26, 33, 37, 50, 51, 56, 57, Poirier 141, 199
65, 67, 73, 77, 78, 80, 81, 82, 83, 84, 85, Popp 307, 308, 309, 310
86, 87, 89, 91, 94, 95, 106, 108, 115, 125, Poupard 26, 28, 30, 31, 39
127, 145, 161, 163, 164, 176, 177, 178, Prendergast 77
180, 183, 186, 187, 190, 191, 194, 195,
Prieto 124
204, 209, 215, 216, 220, 221, 224, 227,
228, 229, 231, 234, 235, 236, 242, 244, Puthenkulam 158
245, 246, 249, 256, 257, 258, 265, 266, Puthur 28
268, 269, 270, 273, 275, 276, 278, 285,
291, 292, 293, 295, 297, 298, 299, 300, Q
304, 306, 307, 308, 310, 312, 314, 318, Queiruga 27
324, 330, 331, 333, 338, 350, 352, 356,
357, 358, 359, 362, 364, 368, 369, 371, R
372, 378, 385, 400, 401, 408, 412, 413, Rad 29, 58, 59
414, 415, 416, 419, 420, 421, 422, 423, Radice 41, 42
429, 433, 434, 435, 442, 444, 445, 447, Rahner 9, 11, 12, 30, 133, 136, 137, 377, 381,
448, 450, 451, 454, 455, 457, 458, 459 383, 384, 400, 401
Paulo VI 457 Ramsey 316
Paz 7, 247, 436 Ratzinger 26, 28, 261, 426
Péguy 86 Reid 346
Penna 382 Rengstorf 128, 248, 250, 253
Perego 115, 129, 142, 149, 150, 151, 153, 156, Reymond 50
183, 187, 194, 200, 201, 203, 206, 207,
Ricard 302

503
Richter 262 122, 123, 125, 127, 128, 129, 130, 139,
Ricoeur 25, 165 146, 173, 178, 184, 227, 263, 271, 276,
Río 442, 443, 444, 446 283, 284, 285, 286, 288, 312, 313, 385,
390, 391, 395, 396, 398, 419, 421, 422,
Ronchi 72, 78, 87, 377, 406
423, 425, 427, 428, 430, 432, 439, 440,
Rose 34, 35
462
Rossé 143, 145, 147, 158, 159, 162, 163, 164,
Schmid 151, 152, 158, 163, 164, 166, 168, 215,
165, 167, 169, 172, 174, 176, 177, 179,
248, 250, 251
180, 181, 182, 183, 184, 186, 187, 188,
Schmidt 442, 443
189, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 196,
197, 198, 199, 213, 214, 215, 216, 217, Schnackenburg 153, 157, 201, 209, 282, 283,
221, 222, 224, 226, 228, 230, 234, 237, 284
238, 239, 240, 242, 243, 244, 245, 247, Schneiders 361
248, 249, 250, 252, 253, 258, 259, 262, Schökel 50, 51
266, 270, 272, 275, 277, 435 Schreiner 56, 80, 91
Rusam 143, 144, 145, 147, 391 Schweizer 151, 152
Rusconi 11, 12, 33, 37, 67, 73, 77, 106, 115, 125, Scognamiglio 90
127, 145, 163, 164, 176, 177, 178, 180, Semeraro 442, 443, 444
183, 186, 187, 190, 191, 194, 195, 204,
Sequeri 425
215, 216, 220, 221, 224, 227, 228, 229,
Serrano 124
230, 231, 234, 236, 242, 245, 246, 249,
256, 257, 258, 265, 266, 268, 269, 270, Serretti 379
273, 275, 276, 278, 291, 292, 293, 295, Sguazzardo 73
297, 298, 300, 304, 306, 307, 308, 310, Sibaldi 125, 126, 182, 191, 192, 393, 395
314, 318, 324, 330, 331, 333, 338, 350, Ska 55, 319, 320, 332, 335
352, 356, 357, 358, 359, 362, 364, 368, Skvorcevic 27
369, 371, 372, 378, 401, 408, 412, 413,
Slater 66
414, 415, 422, 429, 435, 442, 445, 448,
450, 451, 454, 455, 457 Sócrates 37, 42, 412
Russo 93, 102 Söding 124
Sólon 41
S Souletie 8, 27
Salonia 379, 381 Spadaro 452
Salvi 8, 31, 89 Stein 150, 152, 153, 156, 200, 201, 202, 203,
Sandrin 447 204, 206, 207, 208, 209, 211, 212
Santis 160, 162, 166, 200, 401 Studer 41, 42, 78, 94, 95, 97, 98
Santos 61, 67, 73, 166, 403, 420
T
Sartre 26
Tagle 18, 32, 55, 379, 427, 433, 434, 441, 443,
Scalabrini 49, 50, 78, 80, 82, 83, 85, 86, 90, 91
445, 446
Schillebeeckx 19, 20, 27, 30, 63, 66, 74, 115,
Tang 27

504
Tanzella-Nitti 13, 122, 130, 131, 133, 134, 139 Wasserman 336
Tenace 456, 457 Watson 124
Teodoro de Mopsuéstia 336 Weissenrider 124
Teogonis 41 Wright 281, 289, 302, 316, 336, 346, 361
Tertuliano 96, 336, 456
Thompson 158, 316 Y
Tomás de Aquino 26, 107, 108, 109, 415 Yang 230
Tóth 66
Z
Tremolada 114, 456
Zagmann 168
Tucídides 41
Zeilinger 281
U Zenão de Verona 96, 102
Unamuno 26 Zimmermann 182

V
Vanni 66
Varillon 261
Vernant 34, 35, 36, 37
Veyron 163, 164, 165, 166, 175, 178, 205, 209,
211, 371, 372, 399
Vicente 262
Victor 141
Vieira 107
Vignolo 47, 79, 303, 304, 305, 306, 307, 308
Vijayaraj 230
Virgilio 91
Visonà 33, 36, 38, 39, 40, 41, 43, 48, 49, 50, 51,
61, 72, 75, 76, 84, 86, 93, 94, 96, 97, 99,
100, 103, 104, 105, 106, 107, 108
von Rad 29, 58, 59
Vrede 302

W
Wahlde 281, 289, 302, 316, 336, 346, 361
W. Anderson 141
Ware 82, 84
Waschke 50
Wassell 155

505
Índice

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
1. As razões da escolha da ‘esperança’ como tema. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
2. No princípio está a necessidade de um método. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
3. A especificidade e a originalidade desta reflexão dogmática. . . . . . . . . . . . . . . 13
4. Delimitando o tema: elementos principais deste itinerário teológico. . . . . . . . 14
5. Etapas principais deste itinerário reflexivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

PRIMEIRA PARTE
Um itinerário teológico que nos revela Jesus como fonte
da esperança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Capítulo I
Elementos que nos fazem ‘adentrar’ no itinerário da esperança. . . . 25
1. O ‘regresso’ da esperança na segunda metade do século XX. . . . . . . . . . . . . . . 26
1.1.. A importância do «Princípio Esperança» do filósofo Ernst Bloch . . . . . . . . . . 27
1.2.. O contributo do teólogo Jürgen Moltmann para uma
«Teologia da Esperança». . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
2. O ‘regresso’ à esperança não pode ignorar o sentido mais
‘longínquo’ de ἐλπίς. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
2.1.. Mito de Prometeu – a ἐλπίς como um dom ambíguo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
2.2.. A ἐλπίς na antiguidade grega – uma correta prospetiva ou ingénua ilusão. . . 39

506
Capítulo II
Uma promessa – a relação com Deus é o horizonte da esperança
do AT. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
1. Uma esperança ‘revolucionária’ e ‘paradoxal’ centrada na relação com Deus. . 48
2. Categoria de ‘promessa’ como o conteúdo da esperança . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
3. A esperança como acolhimento da promessa: Abraão, Moisés e David. . . . . . 54
4. Julgar o presente à luz da promessa: a esperança dos profetas. . . . . . . . . . . . . . 61
5. A esperança no contexto da apocalítica como ‘última’ interpretação
da promessa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62

Capítulo III
Uma vida – Jesus como fonte da esperança no NT. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
1. Jesus Cristo é o ‘rosto’ e a plenitude da promessa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
2. A esperança surge no NT mas não está ‘explícita’ nos evangelhos. . . . . . . . . . 77
3. A esperança explícita na teologia paulina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
3.1.. Esperança como critério fundamental nas Cartas de Paulo. . . . . . . . . . . . . . . . 80
3.2.. A esperança ligada à ressurreição de Cristo e ao envio do Espírito Santo. . . . 82
3.3.. A esperança em Paulo não é ‘autónoma’. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
3.4.. A esperança paulina não é uma experiência individual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
3.5.. Em Paulo a esperança é uma vivência prática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

Capítulo IV
O ‘acolhimento’ da esperança nos Padres da Igreja . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
1. A esperança nos primeiros três séculos da Patrística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
2. A esperança em Deus e na vida eterna que emerge nos séculos IV e V. . . . . . 98
3. Cristo é a nossa esperança – a afirmação central dos primeiros cinco
séculos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
4. Depois do século V a esperança tende a ser ‘reduzida’ a uma virtude
pessoal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

SEGUNDA PARTE
A esperança que emerge dos múltiplos encontros com Jesus. . . . . 111

Capítulo I
Uma ‘topografia’ dos encontros de Jesus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113

507
1. Do(s) evangelho(s) aos encontros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
1.1.. Os evangelhos como o ‘lugar’ dos encontros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .113
1.2.. A identificação e classificação de cada um dos encontros . . . . . . . . . . . . . . . . .118
1.3.. Os encontros como epifania messiânica e revelação do profeta escatológico. 120
2. Os encontros com Jesus reclamam um ‘adentrar-se’ na noção de ‘milagre’ . 124
2.1.. O sentido das palavras que ‘dizem’ milagre: δύναμις e σημεῖον. . . . . . . . . . . 125
2.2.. A dificuldade em ‘acreditar’ nos milagres. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
2.3.. Uma definição alargada do conceito ‘milagre’. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

Capítulo II
Os encontros de Jesus narrados nos evangelhos sinóticos. . . . . . . . . 141
1. Fundamento do itinerário e critérios de escolha dos encontros
em Mc, Mt e Lc. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
1.1.. As razões de um itinerário que tem o terceiro evangelho por referência. . . . .141
1.2.. Critérios que presidiram à escolha de 12 encontros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
2. O ‘conteúdo’ da esperança a partir de alguns encontros de Jesus
nos sinóticos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
2.1.. Jesus encontra-se com os que vai chamar para discípulos. . . . . . . . . . . . . . . . 149
2.2.. Jesus encontra-se com o filho único da viúva de Naim. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158
2.3.. Jesus encontra-se com uma pecadora arrependida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168
2.4.. Jesus encontra-se com um homem possuído por vários demónios. . . . . . . . . 182
2.5.. Jesus encontra-se com a mulher com um fluxo de sangue e com a
filha de Jairo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
2.6.. Jesus encontra-se com uma mulher ao sábado na sinagoga. . . . . . . . . . . . . . . 213
2.7.. Jesus encontra-se com os dez leprosos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222
2.8.. Jesus encontra-se com o ‘jovem’ rico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 230
2.9.. Jesus encontra-se com o cego de Jericó. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238
2.10..Jesus encontra-se com Zaqueu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 246
2.11..Jesus encontra-se com o ‘bom ladrão’ na cruz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255
2.12..Jesus ressuscitado encontra-se com os discípulos de Emaús. . . . . . . . . . . . . . 262

Capítulo III
Os encontros de Jesus narrados no quarto evangelho. . . . . . . . . . . . . 281
1. As características de um evangelho e os critérios de escolha dos
encontros em João. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281
1.1.. Especificidade teológica do quarto evangelho no confronto com os
sinóticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281

508
1.2.. Os critérios que presidiram à escolha de 6 encontros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 288
2. O ‘conteúdo’ da esperança a partir de alguns encontros de Jesus no quarto
evangelho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289
2.1.. Jesus encontra-se com os que vai chamar para discípulos. . . . . . . . . . . . . . . . 289
2.2.. Jesus encontra-se com Nicodemos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 302
2.3.. Jesus encontra-se com a samaritana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .316
2.4.. Jesus encontra-se com uma mulher adúltera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 336
2.5.. Jesus encontra-se com os discípulos na ‘última ceia’. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 346
2.6.. Jesus ressuscitado encontra-se com os discípulos – em especial com Tomé. 361

TERCEIRA PARTE
A esperança que Jesus dá ‘re-cria-nos’. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 375

Capítulo I
A esperança começa no encontro individual de Jesus com
cada pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 377
1. A importância da categoria do encontro: do ‘ser-se-com’ ao ‘ser-se-entre’. . 378
2. Jesus encontra-se pessoalmente com ‘todas’ as pessoas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 384
3. A iniciativa primordial de Jesus revelada no chamamento dos discípulos . . 388
4. As curas e os exorcismos como resultado ‘visível’ do encontro primordial. . 391
5. Quando o encontro pessoal com Jesus dá novamente a vida. . . . . . . . . . . . . . 399

Capítulo II
A cada pessoa Jesus dá um ‘tempo novo’ que é o tempo da
esperança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 403
1. Do futuro projetado por nós ao futuro que Deus nos dá. . . . . . . . . . . . . . . . . 404
2. Entrar no futuro que Jesus nos dá pela tensão entre χρόνος e καιρός. . . . . . 408
3. O καιρός como plenitude do tempo fala do ‘tempo novo’ que Jesus dá . . . . 415
4. O ‘tempo novo’ começa no encontro de cada pessoa com o ressuscitado . . . 418
5. O ‘tempo novo’ reclama a conversão de vida para que seja o tempo da
esperança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 427

Capítulo III
Cada encontro com Jesus conduz a pessoa à comunidade. . . . . . . . . . . 433
1. Todos os encontros conduzem à (re)integração na comunidade. . . . . . . . . . . 434

509
2. O primeiro paradigma da comunidade é o próprio grupo dos ‘doze’ . . . . . . 438
3. A comunidade con-vocada é o lugar onde brota a esperança . . . . . . . . . . . . . 441
4. A comunidade onde brota a esperança define-se como filadélfia. . . . . . . . . . 448
5. A comunidade que celebra a esperança torna-se diakonia e martyria. . . . . . 453

A modo de conclusão
O dinamismo hermenêutico existencial performativo da
esperança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 459

Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 473

Índice remissivo de autores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 497

510

Você também pode gostar