Você está na página 1de 72

Ebook 1

Quando a Ética e a razão se encontraram

Uma das primeiras perguntas que se faz ao estudar o conjunto “filosofia e ética”
seria sobre o porquê da junção dos dois nomes. Que relação haveria entre esses saberes?
Pelo que se conhece a partir do senso comum, Ética é o nome que se dá ao conjunto de
regras, normas e valores morais que norteiam a conduta humana na sociedade.
A Filosofia por sua vez refere-se àquelas questões gerais sobre a existência,
conhecimento, valores, raciocínio e linguagem humana sempre colocadas em forma de
problemas a serem racionalmente resolvidos pela lógica. Algo, em princípio, diferente da
proposta anterior.
A distinção, no entanto, é apenas aparente. De um modo geral o Ethos – palavra tão
em moda para falar da Ética na atualidade – tem tudo a ver com o Logos, termo que em si
mesmo resume o propósito e a história da filosofia ocidental. Ambos os termos vêm do
mundo grego e pode-se dizer que o primeiro é filho do segundo, ou seja, a ética é um ramo
da filosofia.
Afinal de contas, parece claro que todos nós nascemos instintivamente com as
percepções de certo e errado. Desejamos a aprovação, estimamos o bom senso, elaboramos
desde a mais tenra idade exercícios de tentativa e erro, êxito e fracasso. Julgamos,
ponderamos, decidimos. Todo esse legado biológico permite que sejamos classificados
como Homo moralis – termo que psicólogos sociais acham tão apropriado quanto o já
consagrado Homo sapiens proposto por biólogos evolucionistas. (FORGAS et al, 2016, p.
1)
Afinal de contas não somos meros “animais racionais entregues aos nossos
extintos”. Temos uma consciência que nos atormenta com a ideia de não errar moralmente.
Não somos, conforme a ilustração de Ruben Alves, vespas devoradoras. Diz o autor:.
“Lembro-me daquela vespa caçadora QUE sai em busca de uma aranha, luta com ela, pica-
a, paralisa-a, arrastando-a então para o seu ninho. Ali deposita os seus ovos e morre.
Tempos depois as larvas nascerão e se alimentarão da carne fresca da aranha imóvel.
Crescerão. E sem haver tomado lições ou frequentado escolas, um dia ouvirão a voz
silenciosa da sabedoria que habita os seus corpos, há milhares de anos: ; “Chegou a hora. É
necessário buscar uma aranha” (ALVES, 1984, p. 20).
Mesmo que haja uma tendência negativa em nós que nos leve a praticar aquilo que
não mais detestamos e nos empurre em seguida para a chamada crise de consciência, ainda
assim, somos, como acenou Camus, “os únicos seres que se recusam a ser aquilo que são”.
Entre erros e acertos somos mais do que homo sapiens, somos homo moralis.
Ambas as descrições, sapiens e moralis, são igualmente compatíveis com uma
antropologia teológica que vê o ser humano não como “animal racional”, mas como ser
distinto de todas as criaturas que povoam o planeta. Esta proposta acentua que existe um
hiato, um salto qualitativo muito grande entre o homem e os animais que não pode ser
explicado por transformações sucessivas, mas pela diferença entre ambos.
De modo singular em meio à natureza, o ser humano é visto por essa corrente de
corrente de pensamento como um sujeito singularmente moral, racional e espiritual. Daí a
compatibilidade das expressões anteriormente citadas.
Não se pode negar, contudo, que a natureza humana é inerente ao desvio de rota que
conduz ao erro. Ainda que o termo “pecado” seja banido de muitos círculos acadêmicos,
1
não se pode negar que existe em nós uma contingência natural para se cometer erros,
especialmente de caráter moral. Não há escritos impessoais neste quesito, todos somos
igualmente inclinados a fazer coisas que não gostaríamos de ter feito.
Até mesmo Nietzsche (2000, § 36), a despeito da ácida crítica à religião e à
moralidade, não negou que a natureza humana é instintivamente má. Para ele, a
humanidade é a raiz de todos os males e, neste aspecto, seus escritos não estão distantes da
concepção paulina segundo a qual “todos pecaram e estão destituídos da glória de
Deus” (Romanos 3:23). Ou ainda, no dizer de Davi: “Sei que sou pecador, desde que nasci,
sim, desde que me concebeu minha mãe. (Salmo 51:5).
Embora repudiasse as noções de pecado, salvação e graça a reflexão de Nietzsche
nasce da mesma problemática observada por Santo Agostinho que questionava qual o
sentido de sua teimosa atitude, quando criança, de querer roubar peras no quintal do vizinho
pelo puro prazer de experimentar o que lhe era proibido (Confissões, II, 4, 9).

Perguntas que fazem sentido


Os impulsos humanos acima retratados certamente serviram de estimulo para a
formulação de leis e princípios que norteiam o que é certo e o que é errado na conduta dos
indivíduos. O senso de moralidade, tal qual o senso de pecaminosidade, parecem instintivos
em nossa formação biológica. Contudo, sua tradução é moldada por relações sociais de
aprovação cultural, de modo que somos levados a indagar: seria a moral humana uma
convenção social ou existem de fato princípios éticos que podem ser chamados de
universais? Há diferença entre moral e ética? O que, em essência, faz de uma decisão um
ato condenável ou elogiável? Que critérios além da própria cultura poderiam ser usados
para dizer que o estupro é crime hediondo ainda que determinada sociedade o tolere em seu
padrão de conduta?
Perguntas como estas serão objeto de estudo desta disciplina denominada Filosofia e
Ética Cristã. Não é um assunto fácil, mas é empolgante e desafiador! A começar do
qualitativo “cristã” que compõe o seu título. Ele não significa, de jeito algum, a exclusão ou
o isolamento acadêmico da disciplina em relação a outras propostas de linha menos
confessional. Trata-se apenas de um recorte histórico/filosófico, escolhido com base na
proposta pedagógica de seu curso, com vistas a abrir diálogo entre diferentes saberes a
partir de uma perspectiva cristã.
Seria como a relação entre o astrônomo e a astronomia. Embora diferentes
localidades possam gerar diferentes perspectivas na contemplação interplanetária, é
necessário que o observador contemple o céu de um ponto geográfico especifico a partir do
qual pode interagir e dialogar com observadores fixados noutras partes do planeta.
E por que partir do cristianismo e não do ateísmo ou de um segmento religioso
oriental? Pela simples razão de que 86% do nosso país ainda se declarem de confissão
cristã. Ou seja, ignorar essa perspectiva seria negligenciar uma reflexão crítica sobre a
fundamentação moral da maioria dos brasileiros. Portanto, é de fundamental importância
conhecer o que é a ética cristã, averiguar a procedência de seus ensinos e pontuar seus
pontos de acordo e discordância em relação a outras abordagens propostas ao longo da
história humana.
Tal perspectiva, no entanto, não pode ser elevada ao extremo de se excluir a
realidade moral de grupos que não tiveram acesso à chamada revelação bíblica. Fazê-lo
seria negar o princípio paulino de que Deus se revela a todos (Rom 1:19) e regredir aos

2
níveis preconceituosos do eurocentrismo que negava a existência de valores morais no meio
dos selvagens.
Foi preciso passar muito tempo para que Montagne (2009), Strauss (2008) e
Todorov (1982) anunciassem o fracasso de Colombo que descobriu a América mas não os
“americanos”, isto é, os nativos que aqui havia. Apesar das inúmeras descrições que fizeram
dos índios, os descobridores não conseguiram enxergá-los em sua própria cultura. Sua visão
era por demais etnocêntrica e eurocêntrica, não permitindo espaço para vislumbrar o outro
como ele realmente é.
A “retórica da alteridade”, expressão utilizada por Hartog (1999, p. 230) para simbolizar
o ideal de aproximação desejada entre nós e o outro, transfigurou-se numa descrição
distorcida do nativo julgado a partir do código de valores do navegante genovês.
Mal sabiam, Colombo e sua tripulação, que ao mesmo tempo que se escandalizaram
com o costume pagão de beber num caldo das cinzas de um ente morto, os índios também
repudiavam a ideia de comer pedaços de Deus numa missa, conforme lhes explicaram a
doutrina da transubstanciação1 ocorrida na óstia consagrada.
Como, então, podemos a partir de uma perspectiva cristã falar de ética em diálogo
com outras culturas, sem negligenciar os valores que existem nelas nem cair num relativismo
moral onde nada é em si certo ou errado? São estas as indagações que nos aguardam.

No princípio era o Ethos

A linguagem é, sem dúvida, um dos elementos mais dinâmicos da humanidade.


Antes mesmo da invenção da escrita, ela já parecia multiplicada e diversificada em seu
vocabulário. As agruras da torre de Babel não se limitam à narrativa bíblica. Se não fosse a
presença de bons tradutores um cidadão de Ur – que falava sumério - teria dificuldade de
negociar com um comerciante de Babilônia que falava acadiano. E olha que ambos
viveriam a pouco mais de 200 km um do outro!
Se era assim no passado, imagine hoje onde uma simples edição do The New York
Times possui mais informação do que uma pessoa comum poderia receber durante toda sua
vida na Inglaterra do século 16. São bilhões de gigabytes em informação produzidos no
mundo inteiro a cada ano! E toda essa enxurrada de dados cabe na palma da mão. Basta ter
um bom sinal de Wifi.
Sendo assim, não é estranho que neologismos surjam praticamente todos os dias e
velhos vocábulos voltem à tona revestidos de novo significado. O termo ethos, ou etos
como preferem alguns, é um deles (DEUSDARÁ e ARANTES, 2019, p. 1).
De traços de caráter a nome de prêmio em jornalismo, ethos é um vocábulo que se
tornou queridinho da academia principalmente para falar de música, estereótipos, moda,
cinema, política e sociedade. Um termo, digamos, de mil e uma utilidades. A palavra ética,
com tudo que ela contém, deriva-se etimologicamente deste termo de modo que sua
trajetória semântica confunde-se com a própria história dos valores morais humanos.
Emprestado do mundo grego, o ethos originalmente era uma referência ao lugar da
natureza onde se abrigavam os homens e os animais. Poderia ser uma gruta, um buraco ou
uma cabana improvisada para fugir do frio. Com a diminuição dos nomandismo e a criação
das primeiras cidades gregas (polis), o ethos passou a ser um indicativo de “morada
permanente e habitual”.

1
Transubstanciação é a doutrina católica que ensina que o pão e o vinho da Eucaristia se
transformam na carne e no sangue de Cristo.
3
Ai o próximo passo foi mudar a letra inicial, que era um êta (η), transformando-a
em épsilon (ε) fazendo com que ethos significasse o comportamento que resulta da
repetição dos mesmos atos, isto é, os usos e costumes de um determinado povo. O que
antes era uma adequação passiva aos fenômenos da natureza (calor, frio, sol e chuva) agora
passa a ser uma interferência organizada, modificando o ambiente e promovendo uma
normatização própria de cada grupo habitando diferentes regiões.
Cultura e regularidade seriam dois termos adequados para definir esse novo
ambiente do ethos. A repetição rotineira de certas práticas foi aos poucos se transformando
em regras que logo viraram leis e códigos de conduta. Neste momento o ethos passa a
constituir aquela expressão normativa criada pelos seres humanos e que pode ser
observada, sistematizada e até mesmo questionada pois é contingente a valores não
necessariamente universais.
É neste momento que entra em jogo o discurso ético que pode ser aqui entendido
como uma avaliação racional do ethos e os filósofos foram os primeiros a fazer esse
exercício.
Percebeu-se que, mesmo abrindo espaço para uma concreta revelação divina na
história, muitas destas ações regulamentadoras eram uma tentativa humana de se estruturar
coletivamente em sociedade a fim de garantir o convívio harmônico com seus pares. Elas
não nasceram com o mundo grego, pelo contrário, são bem anteriores a ele. Já nos
primórdios da civilização sumeriana encontram-se diversos códigos de leis criados por reis
e sacerdotes a fim de garantir o bom andamento das sociedades que viviam.
Na concepção de Kramer (1963, p. 116):
“Os teólogos sumérios levaram consigo o que para eles seria uma satisfatória
inferência metafísica válida para explicar o que faria as entidades cósmicas e os fenômenos
culturais, uma vez criados, continuarem seu funcionamento harmoniosamente sem conflito
ou confusão. Esse conceito era designado pela palavra sumeriana ME, cujo sentido exato
ainda é desconhecido. EM geral, ela significaria o conjunto de regras e regulamentos
designados a cada entidade cósmica e fenômeno cultural com o propósito de manter tudo
em eterna operação conforme os planos estabelecidos pelas divindades responsáveis por
cria-los”.
A sociedade faraônica também não ficava de fora. Na região do Nilo, a presença de
Maat como representante da justiça no panteão dos deuses reforça a consciência egípcia
sobre o ethos, visto na figura de uma mulher que serve de parâmetro para julgar toda a
humanidade. Nem o faraó escapava de suas leis que eram repetidas perante o povo a fim de
que ninguém passasse por ignorante perante o tribunal divino.
Com base nestes exemplos, percebe-se que não constitui erro falar de um ethos
anterior ao pensamento grego. Afinal, embora o vocábulo ainda não estivesse presente, seu
significado já era evidente no comportamento das primeiras sociedades humanas. A
novidade grega talvez foi a de transferir para o caráter um conceito que antes era mais
substantivo que qualitativo. O ethos, agora, dizia respeito à essência de um homem como
Aquiles que por fazer o que era reto tornou-se um herói perante seu povo. Um sujeito
superior, sublime, candidato natural à divindade.
Toda a trajetória e tragédia desses heróis gregos podem ser definidas como um
poema de louvor aos valores éticos, conforme a visão de Homero. Não é por menos que ao
final da Odisseia, os troianos são vencidos por causa da falta de ética de Páris ao roubar a
mulher de Menelau. A vitória dos gregos era um triunfo da retidão, prometida a todos que
seguirem pelo caminho correto.
4
Religião na Grécia

Num passado mais distante predominava na Grécia uma religiosidade animista de


adoração às ninfas e espíritos da natureza, essa acabou fundindo-se nas duas que se
seguiram. Quando a filosofia começou na Grécia, existiram duas formas de religião
(Religião homérica e religião órfica ou orfídica) - uma era tipicamente ocidental, dita
também homérica, em função sua principal fonte de informação; outra era tipicamente
oriental, ou órfica, em função ao legendário poeta Orfeu, que a teria primeiramente
assimilado no mundo zoroástrico persa e a difundido cedo no mundo grego.
Homero era aparentemente mais antiga que a órfica. A segunda foi distinta
principalmente por romper com a teognonia homérica (preservada por Hesíodo) e abraçar
mais a teognia oriental Persa. Era mais espírita, ensinava a com mais força imortalidade da
alma e a transmigração de almas com mais força. Enquanto a religião homérica dava mais
importância ao corpo material (daí o ideal grego de perfeição e de materialização dos
deuses do Olimpo que eram materiais), a órfica dava mais importância à alma,
espiritualizava mais os deuses e considerava o corpo um mero receptor ou aprisionador da
alma.
A religião órfica e a homérica apresentavam diferenças bastante significativas entre
si, divergindo tanto na composição do panteão quanto nas práticas. Enquanto a versão
homérica era mais exotérica, voltada para a celebração e adoração pública das divindades, o
orfismo tinha um caráter marcadamente esotérico e místico, como explica Junito Brandão2:
“Organizavam-se, ao que tudo indica, em comunidades para ouvir a "doutrina",
efetuar as iniciações e celebrar seu grande deus, o primeiro Dionísio, denominado Zagreus.
Abstendo-se de comer carne e ovos (princípios da vida), praticando a ascese (devoção,
meditação, mortificação) e uma catarse rigorosa (purificação do corpo e sobretudo da
vontade, por meio de cantos, hinos, litanias), defendendo a metempsicose (a transmigração
das almas) e negando os postulados básicos da religião estatal, o Orfismo provocou sérias
dúvidas e até transformações no espírito da religião oficial e popular da Grécia.”
A preocupação principal dos órficos era libertar a alma de seu aprisionamento na
matéria, um tema que antecipa a questão-chave do gnosticismo, e não é por acaso que, tanto
no orfismo quanto entre os gnósticos, essa preocupação ande a par com uma postura
política e religiosa subversiva. É a mesma confluência, aliás, que vamos encontrar bem
mais tarde no surrealismo
Importa atender a estas duas formas de religião, porque elas influenciaram por
diferentes lados a filosofia, quando surgiu e como se desenvolveu através de muitos
séculos.
Por exemplo, Pitágoras e Platão se situaram na cosmovisão do orfismo.
Coerentemente, pois, professaram um dualismo radical em relação à natureza humana e
sobre a realidade em geral. Diferentemente, Aristóteles se situou em plano mais homérico,
e coerentemente interpretou o homem de maneira mais monista e o mesmo sobre a
realidade em geral.

Do caos surgem as ideias

2
DICIONÁRIO MÍTICO-ETIMOLÓGICO DA MITOLOGIA GREGA - Vol. II, Petrópolis: Vozes, 3ª. Edicão.

5
Do antigo clássico, O Sítio do Pica-pau amarelo, extraímos uma fala interessante de
Dona Benta, matriarca da família que acompanha os demais personagens por uma viagem
“mágica” ao mundo da antiga Grécia. Esta era uma maneira do autor, Monteiro Lobato,
criar nas crianças o gosto pela literatura clássica, símbolo de avanço e racionalidade de seu
tempo.
Passando pela antiga cidade de Atenas, os netos de Dona Benta, acompanhados por
tia Anastásia, a boneca Emília e o Visconde de Sabugosa, observam com assombro os
grandes monumentos gregos e os comparam com prédios de sua própria época. Dona Benta
explica que a semelhança não é mera coincidência, devemos tudo aos gregos. Ela diz:
“Por isso falam os sábios do “milagre grego”. Acham que aquilo foi um verdadeiro
milagre de inteligência humana. Um foco de luz que nasceu na Antiguidade e até hoje nos
ilumina. A arte grega, por exemplo: não há nas nossas cidades fachadas de prédios que não
tenham formas, ou enfeites, inventados pelos gregos. Os mais lindos monumentos das
capitais modernas são gregos, ou têm muito da Grécia. O monumento do Ipiranga, em São
Paulo, é grego dos pés à cabeça”. (LOBATO, 1968, p. 7.)
A expressão “milagre grego” usado pela bondosa Dona Benta foi um slogan
acadêmico dos dias de Lobato, mas hoje é hoje questionada por grande parte dos filósofos,
por ainda um ar de eurocentrismo. Suas origens são disputadas. Uns dizem que foi Ernst
Renan que a cunhou em 1865 para completar o que antes chamara de “Milagre Judeu” – o
domínio cristão sobre o império romano. Para ele, Jerusalém e Atenas eram as mentoras
intelectuais do mundo moderno (LAKS, 2018, p. 55). Outros, no entanto, atribuem a W.
Deonna, senão a ideia, pelo menos a popularização do dito, para expressar como de um
caos grego nasceu o movimento filosófico que forjou o ocidente (DEONNA, 1912, p. 81).
Esta versão defendia que a Filosofia começou como um verdadeiro “milagre” sem
qualquer precedente que justificasse seu surgimento. A genialidade dos gregos era a única
explicação para o fenômeno. Os que se apegavam a esse conceito ignoravam a ideia do
“Milagre Judeu” exposta por Renan, absolutizando o fenômeno grego como um movimento
de racionalização espontânea e única. Os orientalistas, é claro, não agradaram da ideia,
procurando encontrar nas fontes sumérias, egípcias e babilônicas as raízes do que
consideraram uma filosofia antes dos gregos.
Hoje a tendência não é se posicionar nem de um lado nem do outro. Acredita-se que
a Filosofia seja fruto tanto do diálogo entre gregos e orientais quanto das condições
favoráveis ao seu surgimento entre os séculos 7 e 6 a.C.
De modo bastante simplificado, veja algumas diferenças entre a sabedoria oriental e
a filosofia que surgiu na Grécia.
As diferenças entre ambas seriam as seguintes:

Sabedoria Oriental Filosofia Grega


Vincula pensamento e religião Separa o pensamento racional da
religião
Evita a especulação daquilo que não Estimula a especulação como forma
se pode saber de descobrir a verdade
O conhecimento vem como fruto de O conhecimento vem como fruto da
uma revelação divina, transmitida de investigação racional.
geração em geração
A sabedoria é fruto da religião A sabedoria é autônoma

6
Há verdades que estão além da razão Toda verdade é racional
É integral (wholistic) É dicotômica
Inicia a busca pelo conhecimento da Inicia a busca pelo conhecimento
revelação de Deus racional de si mesmo: “Conheça-te a ti
mesmo”.

Amantes da sabedoria

Mesmo considerando que o exercício filosófico não se restringe à antiga Grécia, há


de se notar a força influenciadora de sua cultura no pensamento ocidental. Já dizia Butts
(1955, p. 45), “nós pensamos como pensamos, porque os gregos pensaram como
pensaram”. Exageros à parte, grande parte de nossos conceitos e valores advêm do mundo
grego por vias do império romano.
A própria palavra Filosofia vem da junção de dois vocábulos gregos (PHYLOS +
SÔPHIA) que juntos querem dizer “amigo ou amante da sabedoria”. Outra tradução
poderia ser “aquele que se compromete afetuosamente com a sabedoria”. Ao que tudo
indica foi Pitágoras de Samos, no século a.C., que usou pela primeira vez o termo e deu-
lhe a mais antiga definição.
Desde este tempo a palavra foi usada embora até hoje ainda existam certas
indefinições quanto ao que vem a ser um filósofo. Só para constar, nas idas e vindas da
semântica, o termo filosofia chegou a ser usado na Idade Média como vocábulo da
alquimia. Foi a chamada “pedra filosofal” (lápis philosophorum) uma substância
supostamente usada por alquimistas na tentativa de transformar metais em prata e ouro.
Também foi misticamente associada a um certo elixir que prolongava a vida e curva toda
sorte de doenças. Os franceses a chamavam de Pierre philosophale e os germânicos de der
Stein der Weisen3.
De modo geral, pode-se dizer que o filósofo é aquele que faz perguntas com o fim
de obter a verdade última acerca das coisas. Nem todos, é claro, se sentem inclinados a
refletir sobre assuntos classificados como “filosóficos”. Preferem consumir seu tempo na
luta diária, vivendo um dia de cada vez sem se preocupar questões que parecem
superóbvias ou desnecessárias. Aparentemente, são os que não têm mais o que fazer que se
preocupam com assuntos como:
Qual é a natureza da realidade? O que significa ser humano? Podemos ter certeza
acerca de alguma coisa? De onde viemos, para onde vamos, o que estamos fazendo aqui? O
que creio é realmente a verdade? Minha percepção do mundo ao meu redor é real ou
ilusória?
Essas e outras perguntas podem ser incômodas e irritantes. Ocorre, no entanto, que
mais cedo ou mais tarde, todos nos deparamos com essas questões em nossa vida. Pode ser
no momento em que nasce uma criança ou que morre um ente querido. Pode ser num
momento de medo ou depressão. Não é por menos que Salomão escreveu este intrigante
conceito:
“Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, porque ali se vê
o fim de todos os homens; e os vivos o aplicam ao seu coração. Melhor é a tristeza do que o
3
Cf. http://www.etymonline.com/index.php?search=hand-foot-and-mouth+disease&searchmode=&p=8

7
riso, porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração.O coração dos sábios está na
casa do luto, mas o coração dos tolos, na casa da alegria” (Eclesiastes 7:2-4).
Mesmo nós que somos religiosos podemos deparar com situações em nossa vida
que colocarão á prova os fundamentos daquilo que dizemos acreditar. Logo, se não
estivermos prontos para esses momentos, poderemos partir da crença para a descrença, da
certeza para a dúvida absoluta (agnosticismo), da esperança para o desespero.
Fora o fato de que o exercício de fazer perguntas acerca da vida, de se assombrar
com a maravilha do existir é algo que faz parte de nosso ser, nos foi dado pelo Criador. Diz
o salmista: “Eu te louvarei, porque de um modo tão admirável e maravilhoso fui formado;
maravilhosas são as tuas obras, e a minha alma o sabe muito bem” (Salmo 139: 14).
Nas palavras de Platão: “ A admiração é a verdadeira característica de um filósofo.
Logo, a filosofia não poderia ter outra origem senão esta [a da contemplação]” Teeteto 4. Ao
que Aristóteles completa: “Em todos os tempos, os homens sempre começam a filosofar a
partir da admiração” Metafísica, I, 25.
Portanto, todos nós podemos, ainda que informalmente ou de modo inconsciente,
ser considerados filósofos. Veja essa anotação de Gramsci filósofo italiano (1891-1937):
É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito
difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de
cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto,
demonstrar preliminarmente que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e as
características desta “filosofia espontânea”, peculiar a “todo o mundo”, isto é, da filosofia
que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos
determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no
senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo sistema
de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que
geralmente se conhece por “folclore”.
Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que ao seu modo,
insconscientemente – já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade
intelectual qualquer, na “linguagem”, está contida uma determinada concepção do mundo
–, passa-se ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência, ou seja, ao
seguinte problema: é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira
desagregada e ocasional, isto é, “participar” de uma concepção de mundo “imposta”
mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais
todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que
pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na “atividade
intelectual” do vigário ou do velho patriarca, cuja “sabedoria” dita leis, na mulher que
herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez
e pela impotência para a ação), ou é preferível elaborar a própria concepção de mundo de
uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio
cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da
história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e
servilmente, a marca da própria personalidade?”6
4
Cf. a pág. 5 da versão eletrônica http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/teeteto.pdf
5
Cf. versão em inglês http://classics.mit.edu/Aristotle/metaphysics.1.i.html.
6
O texto acima faz parte do dos Cadernos do cárcere – coletânea em vários volumes de textos escritos por
Antonio Gramsci durante os 8 anos que passou na prisão como preso político – Caderno 11 (1932-
33): Introdução ao estudo da filosofia. (ed.Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 1999, Vol.I, p.93.

8
Gramsci era comunista e logicamente devemos ler criticamente suas palavras para
ver aonde elas se encaixam ou não com o contexto teológico que propomos seguir. De
princípio, em que pesem as descontinuidades, suas observações quanto à universalidade do
“filosofar” e a necessidade da consciência crítica perante o mundo exterior são muito bem
vindas e adequadas ao ambiente religioso proposto pela Bíblia (mais à frente voltaremos a
tocar neste assunto).
É importante, porém, que se esclareça que modernamente existe um certo “senso
comum” imposto pela pós modernidade e pela mídia contemporânea, segundo o qual é
bom ter um pensamento “critico” visto como sinônimo de negação absoluta de antigos
pilares, especialmente da religião. De um lado existe o comodismo de achar que tudo o que
nos ensinaram ou que assumimos como verdade por mera tradição é algo claro e
inquestionável. Trata-se daquela fina ironia feita por Descartes no prólogo de seu Discurso
do Método, no qual ele diz: “o bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo”.
Noutras palavras, todo mundo acha que tem, que está seguro e satisfeito com o conjunto de
seus pensamentos. Mas na hora do embate não sabe justificar racionalmente porque
acredita nisto ou naquilo.
Por outro lado, existem também aqueles que estão sempre insatisfeitos, buscando a
todo custo uma novidade pois nunca se contentam com a luz devidamente recebida e
justificada. Sem contar os que mal sabem no que acreditam ou porque acreditam, mas
mesmo assim saem criticando todas as ideias que aparecem pela frente, especialmente as
mais antigas ou com traços conservadores.

A Grécia antes dos Filósofos

Se devêssemos escolher uma palavra para caracterizar a Grécia anterior ao


surgimento dos primeiros filósofos essa palavra seria Mito. No jargão popular, mito virou
sinônimo de herói de ídolo popular, alguém cuja filiação gera orgulho. Criou-se até o
neologismo “mitar” para referir-se à transformação midiática de alguém que deu uma
resposta inteligente a um interlocutor ou realizou alguma coisa fora do comum.
Nos tempos antigos, porém, o mito seria um nome próprio para aquele coletivo de
narrativas e explicações de mundo oferecidas pelos poetas representados especialmente por
Hesíodo e Homero. É por esta razão que sua obra literária recebe o nome de “Mitologia
Grega”.
Comumente se diz que mitos teriam surgido por volta do século 8 a.C.. Eles seriam
a compilação tardia de várias narrativas orais, especialmente dóricas e micênicas,
abrangendo um período de aproximadamente 400 anos de história que vai de 1200 a 800
a.C., aproximadamente. Alguns relatos são puramente lendários enquanto outros podem ser
acontecimentos reais descritos de uma forma fantástica para dar força à identidade étnica
do povo.
Os gregos, diga-se de passagem, não eram uma etnia única como os amorreus,
sumérios ou babilônios. Tanto a sua composição quando a geografia onde habitavam
faziam deles um conglomerado de clãs unidos pela língua, cultura, religião e pelos mitos
criadores de sua identidade.
A miúde pode-se dizer que os primeiros gregos são originários da península
Balcânica (a Grécia europeia ou continental). Vindos do Norte, das planícies eurasianas, os
pelasgos ou pelágios (povos indo-europeus) encontraram a Grécia com um clima sempre
ameno, o céu e o mar azuis, e nela permaneceram. No século XX a.C. os aqueus (outros
9
povos indo-europeus vindos das planícies euro-asiáticas) enfrentaram os Pelágios que
habitavam a região, e os dominaram.
<mapa Grécia>
Como a superfície contínua da Grécia era bastante limitada, os gregos, passaram a
habitar também as ilhas próximas especialmente depois do domínio dório em 1200 a.C.. As
ilhas eram bastantes numerosas (Grécia insular) e o literal da Ásia Menor (Grécia asiática).
Essas ilhas constituíam a Grécia colonial, constituídas por terras mais distantes: Ásia
Menor (Eólia, Jônica,Dória); Sul da Itália (Magna Crécia); Costa egípcia (Náucratis).
Foram várias ondas de povoamento e domínio durante esse período. Depois dos aqueus
vieram os eólicos, depois o Jônicos e finalmente os dórios – o último povo indo-europeu a
migrar para lá.
Porém o surgimento das diferentes polis, ou cidades gregas, exigiu uma estrutura
organizacional maior do que aquela oferecida pelos mitos continuamente recitados. Eles
precisavam de leis, códigos de ética que normatizassem sua coexistência garantindo a
unidade dos diferentes assentamentos. A primeira tentativa veio do ambiente mítico-
religioso. As leis, diziam os nobres, procedem dos deuses. Depois vieram os primeiros
questionamentos pré-socráticos consonantes à sua função racionalizadora que vinculava as
leis à ordem do cosmos, do Estado e da natureza. Finalmente, num terceiro movimento,
surgem as leis oriundas do momento político inaugurado pelos sofistas que vinculavam as
normas à mera convenção do Estado.
Costurando todo esse cenário estava uma crescente tensão entre o chamado mítico e
o racionalismo proposto por alguns pensadores. A sociedade, por sua vez, mantinha-se
aristocrática, agrícola, pecuária e guerreira. A cooperação entre os pares era pequena, cada
assentamento via o vizinho ao como inimigo e competidor. A união das ilhas estava
ameaçada.
Em termos estratigráficos, ao topo da pirâmide estava a nobreza ou aristocracia
vivendo despreocupada em tempos de paz e dirigindo o povo em tempos de guerra.
Depositários de virtudes os nomes detinham o direito “natural” de comandar o povo, pois o
belo, o heroico e até mesmo o divino estariam vinculados à sua linhagem e não ao povo
comum.
Seu destaque não estaria em praticar o bem, no sentido moral da palavra, mas em
terem adquirido êxito nalgum empreendimento bem sucedido, (pragmatismo). O castigo,
por sua vez, não viria da moralidade mas do fracasso em vencer. Afinal de contas, a fama e
não o bem, era a maior das virtudes.
Os eupátridas, por exemplo eram grandes latifundiários que emprestavam dinheiro e
bens a juros para pequenos produtores (hectemoros). Foram os primeiros banqueiros que
confiscavam as terras dos menores que não conseguiam saldar a dívida. Na maioria das
vezes o próprio camponês era vendido como escravo juntamente com sua família.
Na base da pirâmide estaria o povo – sem cultura formal, majoritariamente
provincianos, dominados massivamente pelos mitos da Ilíada de Homero e outros poemas
recitados de cidade em cidade. Por sucessivas gerações eram estes mitos que
fundamentavam a moral, os valores, costumes, religião e os conhecimentos gerais de
geografia, arte militar, história, cosmologia, cosmogonia etc.
Há de se mencionar ainda os poetas, responsáveis pela divulgação e transmissão dos
mitos ao povo. Eram cantores ambulantes, atores ou declamadores (aedos e rapsodos) que
encenavam os contos de cidade em cidade, patrocinados pelo governante, para o
entretenimento e diversão popular.
10
Pouco a pouco começaram a haver entre a população, homens (a princípio isolados,
depois reunidos em grupo) que resolveram romper com o sistema tradicional. Esses foram
os primeiros “filósofos gregos” que comumente chamamos de Pré-Socráticos (Século 6 a.
C).

Nasce a Filosofia

A Filosofia Grega caracterizou-se, até o advento de Sócrates, pelas ideias a respeito


da natureza e pelo desenvolvimento das técnicas de argumentação filosófica. Os primeiros
filósofos, devido à preocupação de explicar racionalmente o mundo natural, são também
chamados de Filósofos da Natureza ou de físicos (do grego phýsis, "natureza").
São causas da revolução intelectual grega:
- Insatisfação com o sistema vigente
- comércio assume importância definida
- surgimento da moeda no período arcaico
- As viagens e contatos com outras civilizações trouxeram avanço tecnológico e
mudanças na tradição
-A nova ideia de moralidade (modificada segundo as novas concepções naturais)
necessitava ser naturalizada e modificada em alguns pontos.
Assim a filosofia vai surgir na Grécia como uma crítica à sabedoria popular
(alimentada pela nobreza), à religiosidade convencional e ao mito institucionalizado. Neste
sentido, é interessante notar que, num primeiro momento, a filosofia grega nasceu não
necessariamente ateia mas foi antipoliteísta, foi uma reação aos deuses do Olimpo e a
sistematização da sociedade que provinha deles.
Exemplo dessa crítica é a Filosofia de Xenófanes (560-478 a.C.). Ele não apenas
rejeitava as explicações míticas para a realidade como dizia ser ingênuo adorar a deuses que
se comportam de modo imoral e irracional. Ele foi um severo crítico do politeísmo
encontrado entre os primeiros gregos e também entre seus contemporâneos. Num de seus
fragmentos, citado por Sextus Empiricus (Against the Mathematicians, I.289, e 9,192ss),
ele declara: “Hesíodo e Homero têm atribuído aos deuses toda sorte de coisas que são
dignas de reprovação e censura entre os homens: roubos, adultérios e engano mútuo.”
Noutro texto citado por Clemente de Alexandria, Xenófanes teria dito:
“ Se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos ou pudessem desenhar com estas
mãos e criar coisas como o homem as cria, os cavalos e os bois descreveriam a feição de
seus deuses e desenhariam os corpos deles como as próprias formas que eles mesmos
possuíam, i.e. como bois e como cavalos.... os etíopes dizem que seus deuses são de nariz
achatado e negros, enquanto os trácios dizem que são pálidos e de cabelo ruivo”7.
Para Xenófanes Deus teria de ser alguém além e acima da moralidade humana, que
não possui forma humana, que não pode morrer nem nascer (é divino e eterno), sem
hierarquia acima de si e que não interfere nos negócios da humanidade, embora
paradoxalmente aceita que haja um controle divino no universo.

<BOX>
Crítica de Sócrates às mitologias

7
Clemente de Alexandria, Miscelâneas V. 110 e VII, 22. Veja também para as duas últimas frases Diels-
Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, Xenophanes frr. 15-16.

11
Veja um exemplo da crítica posterior de Sócrates num diálogo com Glauco e
Adimanto (irmãos mais novos de Platão:

- Ainda falta acusar a poesia de seu pior malefício: Que ela é, com certeza,
capaz de corromper até mesmo pessoas sinceras, poucos conseguem escapar disto! Esta é
realmente uma de suas piores façanhas.
- Com certeza, se assim o é.
- Mas é claro. Ouve e considera o que acontece mesmo com os melhores
dentre nós. Quando ouvimos Homero ou qualquer outro poeta trágico imitar um herói na
dor, o qual, em meio de seus muitos lamentos, se estende num prolongado “ai”, ou canta,
ou se golpeia no peio, sentimos, como sabes, prazer. Esquecemos nossa própria dor e o
acompanhamos em simpatia. Além disso, com entusiasmo, aplaudimos como bom ator ou
poeta aquele que conseguiu despertar em nós tais sentimentos no seu mais alto grau.
- É assim mesmo que acontece…
- Mas é estranho que quando uma desgraça real acontece perto de nós, já
notaste que parece ser até uma questão de honra não nos envolvermos com aquela dor?
Preferimos permanecer frios e não chorar porque assim convém a um homem de verdade e
a atitude emotiva que há pouco aplaudimos convém apenas ás mulheres.
- Assim pois, oh Glauco, quando te deparares com panegiristas de Homero,
afirmando que esta poeta efetuou a educação na Grécia e que, para administrar os negócios
humanos ou ensinar o seu manejo é bom tê-lo em mãos, estuda-lo e mediante seus ensinos
regulamentar a nossa vida, deves por certo saúda-los a acolhê-los amigavelmente … [mas]
não se deve admitir na cidade outros senão os hinos aos deuses e os elogios às pessoas de
bem. Se, ao invés disto, preferires a mulher voluptuosa, então o prazer e a dor serão os reis
de tua cidade.” (A República livro X)

<FIM>

Os Pré-socráticos

Com o aumento dos questionamentos às propostas mitológicas, diferentes grupos de


pensadores começaram a se organizar em diferentes pontos dando a origem a diferentes
escolas de pensamento:
a) Escola Jônica
b) Escola Itálica
c) Escola Eleática
d) Escola Atomística
e) Os sofistas

Para entender a força motriz desses grupos, é importante conhecer a problemática


dos gregos sobre a PHYSIS (Natureza) que era a origem de todas as coisas. Há três
sentidos para esta palavra entre os gregos:
a) Referência aos homens, animais, rochas enfim tudo que povoa o universo.
Ex. A natureza está se desintegrando pela industrialização (Totalidade do universo)
b) Referência a classes ou conjunto de seres, animais, homens, rochas
(mundo animal, mineral, espiritual etc.)
12
c) Referência às características de cada grupo: “Sua natureza é má”.

Os gregos notaram o seguinte (nos aspectos coletivo e individual da palavra


natureza):
A) a natureza é organizada e possui leis, quebrar essas leis é colocar-se em perigo
B) a natureza é dinâmica, ela muda
C) O que é natural, nasce, o que é artificial se fabrica (os minerais, por exemplo
eram considerados artificiais – pré-noção de alquimia)
D) A mais importante pergunta : de onde vem o mal e como se livrar dele? Aqui os
filósofos notaram que a utilização dos mitos e dos deuses do Olimpo não respondiam
cabalmente a esta última pergunta.

Sua principal busca era pelo archê ou princípio de todas as coisas. Trata-se daquele
o princípio que a norteia e que justifica ou explica sua origem (regra e gênesis). Dominando
o conceito do arché domina-se a Physis. E a Physis é o domínio de todos os domínios. O
arché seria a sistematização ou compreensão dos princípios da Physis.

Vamos ver como cada grupo respondeu a essa questão:

JÔNICOS – Os primeiros filósofos Jônicos se concentraram na ideia de que existe


uma natureza (Physis) e um princípio (arché) subjacente do cosmo que permeia todas as
coisas e decide como elas emergem e como elas decaem. Alegavam, portanto, que o cosmo
operava de acordo com seus próprios princípios e que esses eram independentes dos
costumes e tradições humanas (nomos). Assim conceberam novas formas de conceber o
mundo diferentes da visão mítica. Eles não elevavam suas especulações além dos
problemas de ordem cosmológica – a água, o ar, a terra, o fogo, pois isso era a constituição
vital fundamental de todos os seres.

A grande pergunta que impulsionou os filósofos gregos: Do que é feita a realidade?


O que a compõe? Assim iniciou-se a questão dos milésios. Aliás, milésios quer dizer
originários de Mileto ou habitantes de mileto. Aristóteles então usou este termo para se
referir ao que ele denominou na Metafísica como os “primeiros filósofos”. Sua distinção
estava em não recorrer aos mitos para explicar os fenômenos da realidade. Em lugar disso
preferiam usar a razão para enfrentar tais questões acerca da existência de todas as coisas.
Assim a filosofia, segundo Aristóteles teria começado pela troca das explicações míticas
pelas explicações racionais.
Os milésios não aceitavam que aquilo que vemos seja necessariamente aquilo que é
verdadeiro.

Principais JÔNICOS ( escola da Mileto – hoje cidade da Turquia na Ásia menor)


1 – Tales de Mileto (640 – 550 aC) astrônomo (predisse a eclipse do sol em 28 de
maio de 585), engenheiro, matemático (formulou o teorema que leva o seu nome). È
CONSIDERADO O PRIMEIRO FILÓSOFO GREGO. Introduziu a investigação pelo
arché de todas as coisas.
HÁ UMA ANEDOTA QUE CONTAM QUE Tales numa ocasião que pensava
sobre as coisas não percebeu um buraco e caiu nele. Uma escrava o recriminou dizendo

13
“olhar menos para cima e prestar mais a atenção do que está embaixo não faz mal (ela
gostava dele e ele não percebia).
Foi um Da Vinci na Grécia antiga, resolveu problemas de engenharia desviando o
curso de um rio. Elaborou um sistema para medir a altura das pirâmides baseado no
movimento de suas sombras, desenvolveu técnicas de navegação seguindo as estrelas e
inventou um instrumento para medir distâncias marítimas. Seus escritos se perderam, mas
sabemos algo do que pensava pela citação de historiadores antigos. Para ele, os três grandes
mistérios da razão são: a vida, o movimento e a existência.
Para Tales – Tudo vem da água. Tudo o que é é composto de água e a água serve
de unidade existencial, o arché de todas as coisas. E a água não é necessariamente um deus
do Olimpo.
2 – Anaximandro (610 – 547) compatrício e discípulo de Tales, também foi
astrônomo e geógrafo (desenhou o mapa do mundo, ensinou que a terra era um disco
rochoso suspenso no ar). Foi o primeiro a sistematizar o pensamento do seu mestre sobre o
arché. Mas diverge do mestre dizendo que o princípio não é algo tão simples, mas á algo
mais complexo que fundamenta a existência até do que não conhecemos. O arché seria algo
ilimitado e indefinido (apeiron) esta substância infinita está em constante movimento e
esse movimento faz com que as coisas contrárias se separem causando a origem e a morte
de tudo o que existe.
3 – Anaxímenes – Sabe-se muito pouco a seu respeito. Mais jovem do que
Anaximandro, escreveu uma obra sobre a natureza, onde concretiza de certo modo o
“princípio indefinido” de seu antecessor. Para ele, esse princípio era o ar. O ar tem muitas
das vantagens da água e outras mais: ele também muda de estado (rarefação e
condensação), é essencial à vida, e parece ter o poder de mover por si mesmo, quando o
vento sopra. Quando o ar se condensa forma tudo o que existe.
4 – Heráclito de Éfeso (544 – 484) em um de seus fragmentos ainda preservados ele
afirma que a natureza ama ocultar-se. Ele afirmou que na natureza tudo flui, muda, nada
permanece. Para ele o mundo e o universo coexistem desde sempre num constante devir
(movimento. Pois Heráclito diz: "Tudo flui (panta rei), nada persiste, nem permanece o
mesmo". E Platão ainda diz de Heráclito: "Ele compara as coisas com a corrente de um rio
- que não se pode entrar duas vezes na mesma corrente"; o rio corre e toca-se outra água.
Seus sucessores dizem até que nele nem se pode mesmo entrar, pois que imediatamente se
transforma; o que é, ao mesmo tempo já novamente não é. Além disso, Aristóteles diz que
Heráclito afirma que é apenas um o que permanece; disto todo o resto é formado,
modificado, transformado; que todo o resto fora deste um flui, que nada é firme, que nada
se demora; isto é, o verdadeiro é o devir, não o ser - a determinação mais exata para este
conteúdo universal é o devir.. O arché ou fogo inicial é o elemento ígneo de onde tudo flui
ou se transforma até chegar aonde está. O conceito heracliano de Logos é muito bem
definido em sua explicação desse princípio ígneo. Para ele Logos, Fogo e Deus são a
mesma coisa, mas impessoal. Ele dizia que tudo está em movimento e não se pode passar
duas vezes no mesmo rio. Mas, esse constante “devir” não é irracional, há um logos que o
comanda. O logos é a lei racional que está inerente em tudo (plantas não comem carne, leão
não come palha) que organiza o devir (Apoc. “e, era, está por vir”). Ele é como a alma
racional do mundo, embora não fosse uma pessoa. Para Heráclito, o Logos é Deus, mas
lembre-se, não como um ser pessoal e sim como uma força impessoal, embora tivesse razão
(não a razão humana) e autonomia. Para ele Deus não é o criador. Para entender esta
aparente incongruência de sua filosofia, basta entender o mecanismo de um relógio a corda,
14
ele funciona e dá as horas, mas não é uma pessoa. É que Heráclito e a sociedade que o
cercava viam o cosmo como algo inteiramente físico. Sendo assim introduziu esse conceito
(Logos) para facilitar a compreensão de como funcionava a ordem móvel do universo.
Assim, o Logos seria, “o pensamento mediante o qual todas as coisas são guiadas através
de todas as coisas” (Fragmento 19). Compare suas frases com a teologia de João:
O Universo é fogo, esse cosmos, o mesmo de todos, não o fez nenhum deus, nem
nenhum homem, mas sempre foi, é e será fogo eterno que se acende segundo a medida e se
apaga segundo a medida. Os olhos são melhores testemunhas que os ouvidos (compare
com I Jo. 1:1) Para Deus, tudo é belo, bom e justo, desgraçadamente os homens
conceberam o justo e o injusto” “A guerra (sentido figurado para a dialética dos contrários)
é o pai de todas as coisas e se de todas as coisas a uns fez deuses a outros fez homens.
Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz (João corrige isso dizendo “Deus é luz”).
Observação: Existem dois erros em relação ao Logos grego e o de João. Um é
identifica-los demais. Devemos lembrar que João deu o termo um conteúdo das categorias
hebraicas do Dabar de Deus. Mas, cuidado com o outro extremo da total desvinculação
entre ambos. Lembremos que João estava pregando aos Efésios e traduziu conceitos
hebraicos em linguagem grega para servir de ponte para o seu evangelismo.
Vejamos alguns fragmentos de Heráclito (podemos até continuar comparando com
João para ver as semelhanças e diferenças:
Fragmentos de Heráclito sobre o Universo8:
<1> Sábio não é o que ouve a mim, mas a razão, entendam que tudo é um.
<3>Os que escutam e são incapazes de compreender se assemelham aos surdos: é
destes que testemunha o provérbio, estando presentes estão ausentes.
<4>Maus testemunhos são os olhos e os ouvidos para o homem que tem alma de
bárbaro.
<8> Os exploradores cavam muita terra e acham pouco ouro.
<10> A natureza ama ocultar-se.
<11> O Senhor, cujo oráculo está em Delfos nem diz nem revela nada, apenas dá
sinais.
<13> Em honro a vista o ouvido e o conhecimento acima de tudo.
<14> ... aportando testemunhos duvidosos indignos de confiança sobre pontos
discutidos.
<15> Os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos.
<16> O muito conhecimento não instrui a mente, pois se o fizesse haveria instruído
a Hesíodo e a Pitágoras, bem como a Xenófanes e Hecateo.
<19> Uma coisa é ser sábio: conhecer a verdade que controla tudo através de tudo.
<20> Este mundo, é o mesmo para todos, não o fez nenhum deus nem os homens,
antes ele tem existido desde sempre e será um fogo eternamente vivo que se acende
segundo a medida certa e se apaga segundo a medida certa.
<43> Homero faz votos de que a rivalidade dos deuses e dos homens possa acabar.
Mas se isso acontecer a existência de todos também acabará.
<44> A guerra é a mãe de todas as coisas, ela reina sobre todos, a uns revelou
deuses a outros homens e uns fez escravos e a outros livres.
<46> Os contrários são convinientes
8
Os fragmentos inclusive com o texto grego linear podem ser encontrados na tradução de John Burnet
disponível em http://philoctetes.free.fr/heraclitus.htm. Os números correspondem à ordem que editou
Bywater.

15
<96> A natureza humana não possui e verdade é a divina quem a possui9.

ESCOLA Itálica ou pitagórica – fundador Pitágoras (571-496 a.C.). Dizem que foi
ele quem inventou a tabuada, taboa de multiplicar e o teorema que leva o seu nome. Sua
escola foi um grupo singular de caráter científico, político e religioso. No campo científico:
cultivavam a matemática, a música e a astronomia. No campo político – apoiavam o partido
dório e exerceram o poder até que em meio ao século V, houve uma rebelião onde
morreram muitos membros dessa escola No campo religioso afirmavam a imortalidade da
alma e sua transmigração. Conta-se que Pitágoras certa vez passava por um cachorro que
era maltratado e gritou: parem com isso pois a alma dele é a de um amigo meu eu a
reconheci quando o ouvi gritar. Para ele, a alma reencarnava sempre até um ponto aí
repetia-se todo o processo de novo.
Pitágoras fez a mesma pergunta fundamental dos milésios, mas encontrou uma
resposta diferente. Para ele a chave da compreensão do Universo estava na matemática.
Mas apesar de sua racionalidade, Pitágoras viveu na ilha de Samos antes de migrar com
seus discípulos para a região de Crotone, sul da península itálica. Essa ilha era muito
mística, por isso ele se encantou pela doutrina da reencarnação (ou pelo menos da
transmigração de almas) e por outros estranhos ensinos como por exemplo que comer
feijões era pecaminoso.
Nessa época, na ilha de Samos haviam, no aspecto religioso, duas correntes opostas:
de um lado, os ritos dionisíacos, degenerados pela perda do seu sentido sagrado e, do outro
lado, os ritos órficos, caracterizados por uma ascese rigorosa. Pitágoras seguiu estes
últimos, que influenciaram a sua conduta por toda vida.
Também adotou o vegetarianismo como forma de evitar o consumo da alma de
alguém e deu significados místicos para os números. Para ele, a verdade era melhor
revelada por proporções matemáticas, especialmente em forma de quadrados, triângulos e
retângulos. Assim a justiça era representada pelo numeral 4 porque esse é um número
quadrado. Deus seria o número 1 e a matemática o número 2. O universo era expresso pelo
número 12 resultante da multiplicação de 3 por 4; quer dizer, Pitágoras concebia o universo
composto por três mundos particulares que, encaixando-se uns nos outros através dos
quatro princípios ou elementos da Natureza, desenvolviam-se em 12 esferas concêntricas.
Existem muitas lendas acerca da personalidade desse grande matemático, e é tarefa
árdua separá-las da realidade. Uma delas diz, por exemplo, que aproximadamente em 505
a.C., uma sacerdotisa do deus Apolo teria dito a um casal da ilha de Samos que eles teriam
um filho de grande e extraordinária beleza; que seria um dos homens mais sábios de todos
os tempos. No mesmo ano teria nascido Pitágoras, cuja inteligência espantava os
professores das melhores escolas de Samos, que não conseguiam responder às perguntas do
jovem rapaz de dezesseis anos. Outra versão semelhante diz que este teria passado uma
infância feliz em meio a passarinhos, citando igualmente sua inteligência indescritível,
dessa vez, unida à beleza.
Lendas à parte, a verdade é que não há como saber se sua existência realmente
ocorreu. Isso se verifica porque os dados e informações a seu respeito são, em sua maioria,
divergentes e incompletos, além de terem sua veracidade questionável devido a prováveis
exageros e romantismos criados em torno de sua personalidade, que devem ser creditados
ou não pelo leitor.

9
Veja apêndice no final da apostila sobre o Logos de João.

16
Em meio a tantas informações desencontradas, supõe-se com mais certeza que
Pitágoras teria nascido em Samos e ido para Tebas, onde teria permanecido por
aproximadamente vinte anos e estudado com sacerdotes egípcios.
Também se diz que ele ou seus discípulos teriam afogado um aluno chamado
Hiparso de Tarento por este ter revelado às pessoas de fora da escola pitagórica a existência
de números irracionais e imperfeitos como Pi e √2.
Pitágoras teria viajado também pela Pérsia, Fenícia, Gália, Babilônia e pela Índia.
Depois disso, já de volta à Grécia, teria deixado Samos (por não suportar a tirania de
Policrates, que na época dominava o território e não aprovava a construção de templos ou
escolas) e ido para Crotona (colônia grega no território italiano meridional), onde fundou
uma escola na qual ensinava-se geometria, aritmética, música, astronomia e religião. Nem
todos eram aceitos nessa escola, e tudo que se ensinava era mantido em segredo. Daí teria
surgido a Escola Pitagórica.

SUA DIFERENÇA COM OS DE MILETO eles buscavam o arché norteador e


justificador da existência de todas as coisas, Pitágoras buscava a essência que era a seu ver
os números. Em que sentido? Para ele os fenômenos naturais podem ser cifrados pois são
matematicamente exprimíveis. Os pitagóricos notaram que os sons da harpa variavam de
acordo com as diversas longitudes e apertos da corda, dessa observação chegaram a uma
conjectura sobre o heliocentrismo e criticaram o geocentrismo. A mesma proporção que
existe entre os sons se dá entre os corpos celestes e esta harmonia compõe a música celeste,
pois o universo é harmônico.

ESCOLA ELEÁTICA – Os eleátas consideravam o absoluto como ser único,


imutável, eterno – negando assim o movimento, É uma acentuada tendência para o
panteísmo idealista. Os principais representantes dessa escola: Xenófones (576-480) que foi
o fundador, Parnêmides (530 – 444) e Zênon de Eléia (490-430).
Xenófones foi professor de Parmênides. Seu característico principal é sua crítica
aberta ao antropomorfismo da mitologia grega: “Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses
todas as coisas que entre os homens são vergonhosas e reprováveis: roubar, enganar-se
mutuamente, cometer adultério.” Xenófones parece contrapor tudo isto a “um unido deus, o
maior entre os homens e os deuses, que, nem em sua figura nem em seu pensamento é
semelhante aos mortais … Sem fadiga move todas as coisas com o pensamento de sua
mente … sempre permanece no mesmo lugar, sem mover-se nada, não lhe é próprio ir de
um lugar para o outro … tudo vê, tudo pensa, tudo ouve”10 [Aristóteles falará algo
semelhante quando comentar sobre o Primeiro Motor Imóvel].
Parmênides foi um marco decisivo na evolução da filosofia grega. Insatisfeito com
as causas materiais apresentadas até então (fogo, água, ar) e com a causa formal (números)
ele se preocupou com a questão: “Na natureza as coisas são, mas o que significa ser?”
Primeira noção de metafísica!
Para Parmênides “tudo o que é, é” ou seja, não tem como algo ser e não ser ao
mesmo tempo.
Isto levanta a pergunta: por que existe algo ao invés do nada? Por que existimos? Se
existe alguma coisa, então existe o ser. Afinal, ex nihilo, nihil fit (do nada, nada se faz).
Realmente, se houve um tempo em que não havia nada, então não poderia haver nada agora

10
Texto de Xenófones citado conforme Perez, Rafael, História básica da filosofia, p. 14.

17
(esse argumento será relembrado quando falarmos em argumentos racionais para a
existência de Deus).
Temos hoje o fragmento de um poema de Parmênides que ele diz ter ido ao encotro
da deusa dikê e essa lhe revela que é necessário aprender tudo: de um lado, o coração
intrépido da verdade e do outro as opiniões dos mortais nas quais não há segurança. Por
isso ele distingue entre “verdade” (aletheia) e “opinião” (doxa)– o que é (existe) e não pode
ser - é o mundo abstrato não abarcado cabalmente por nossas limitações.

ESCOLA ATOMÍSTICA

- O atomismo é um sistema que procura explicar a formação do universo por uma


combinação de partículas infinitesimais. É uma concepção que chega a um verdadeiro
naturalismo materialista. Os principais representantes dessa escola são Leucipo (séc. V) e
Demócrito (460-370 aC). Eles mesclaram a ideia de partículas de seu professor Parmênides
com a ideia de Heráclito sobre o elemento ígneo original e de Anaximandro sobre o
movimento constante. Propuseram a ideia de inúmeras partículas sólidas de pequenas
dimensões (os átomos) que não poderiam ser subdivididas. A contínua mudança na
natureza era explicada como uma redistribuição contínua dos átomos imutáveis sob
diferentes formas. Esta teoria só veio a ter desenvolvimentos mais significativos após o
trabalho do químico Dalton em 1800.
DEMÓCRITO PENSAVA QUE SE PODIA CORTAR UMA MAÇA COM UMA
FACA PORQUE EXISTIAM ESPAÇOS ENTRE OS ÁTOMOS.

OS SOFISTAS (de sophos – sábios)

Esse foi o movimento de maior destaque dentre os cinco. Características gerais do


movimento sofista:

- Eram mais “professores” que os demais grupos. Foram os primeiros profissionais


do ensino que montavam cursos e cobravam caro por eles (havia por ex. o curso de como
ganhar e administrar dinheiro, como falar em público etc)

- Seus ensinamentos incluem uma gama de disciplinas humanistas (retórica, direito,


moral, política etc.)

- Romperam com o sistema educativo tradicional.

Com relação aos filósofos das quatro outras escolas, eles assumiram duas posições:
1) relativismo 2) ceticismo

Contexto Histórico dos sofistas:

A filosofia das outras escolas estava em crise por causa da pluralidade de opiniões:
Lembrando: uns eram monistas (diziam que o princípio era único para todos). Outros eram
pluralistas, achavam que as coisas que existem se devem a princípios múltiplos. Parmênides
negava o movimento, mas Heráclito e Anaximandro o defendiam. Para Anaxágoras o

18
universo é fruto de uma inteligência superior, e para Demócrito uma necessidade cega,
ocasional e natural do átomo fez com que o universo viesse à existência.

Os sofistas diziam que tudo isso não passava de tolices. E eles inauguraram uma
atitude, como já dissemos, cética e relativista diante dessas filosofias.

Os dois principais representantes:


Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas” – homo mensura (relativismo)
Ainda Protágoras: “Eu, de minha parte, sustento que a verdade é tal como escrevi;
que cada um de nós é a medida do que é e do que não é, e que, portanto, um abismo separa
um indivíduo do outro, precisamente pelo fato de que para um é e parece isso, mas para
outro, aquilo”.

Górgias: “Não há ser(essência); se houvesse, não poderia ser conhecido, se fosse


conhecido não poderia ser comunicado o seu conhecimento através da linguagem”
(ceticismo)

Ainda Górgias: “A palavra é apenas um tirano poderoso, capaz de realizar as obras


mais divinas. Apesar de meramente humana, podendo mudar o conceito da realidade
quando bem entender (relativismo)” (Elogio a helena 8). A linguagem é um ópio que nos
faz ver coisas não reais achando que estamos descrevendo a realidade. É um instrumento
imperfeito.

Tudo isso ocorreu em Atenas e como já havia ideias sobre a democracia, o povo
elevou os sofistas ao poder de liderança máximo. Afinal, eles eram carismáticos e
influentes. Além disso ensinavam retórica e administração, de modo que, ainda que um
político eleito não se dissesse sofista, incorporava suas ideias pois havia aprendido com
eles.

Os sofistas sistematizaram melhor a diferença entre lei (nomos) e physis (natureza)


da lei. O physis exprime o natural, o nomos o convencional. Foi assim que iniciou o debate
sobre as leis. Os sofistas quando administravam diziam ter sua nomos em harmonia com a
physis. (é curioso que o apóstolo Paulo não aceitava que a lei natural era, necessariamente
boa e não dizia que a nomos era só convencional)

SOCRATES (468 – 399 Ac)

Foi o que mais combateu os sofistas: Ele se distinguia dos sofistas em três aspectos:
a) não se fez pagar pelo seu ensino
b) adotou um método (met+odos) totalmente oposto (os sofistas preferiam
pronunciar longos discursos e comentar textos de autores antigos) Sócrates prefere o
diálogo (Explicar a ironia - exprime-se geralmente com atitude modesta “só sei que nada
sei”) e Maiêutica ensinar através de perguntas, pois a disposição para o conhecimento está
dentro do aluno – em Platão isto será mais sofisticado e será ensinado a recordação do
mundo das ideias, cuja semente está em Sócrates)

19
c) Trouxe aos temas político-morais soluções radicalmente novas como atitude
anti-relativista e a teoria intelectualista (somente sabendo o que é bom se pode agir bem,
quem sabe faz e tem virtude)
Sua doutrina foi conservada por Platão e Xenofonte.

Sócrates não dava importância à posição social dos seus discípulos. Dialogava com
ricos ou pobres, cidadãos ou escravos. O que importava-lhe eram as boas condições
interiores, psicológicas de cada pessoa, pois essas demonstravam o grau de auto-
conhecimento. “Conheça-te a ti mesmo” – era o lema do oráculo de Apolo na cidade de
Delfos. Uma sacerdotisa de lá disse que Sócrates era o homem mais sábio de toda a Grécia,
ao que ele reinterpretou, “será sábio aquele que como Sócrates sabe que nada sabe”. Ela
também disse que ele deveria fazer “música” ao que ele reinterpretou: “a filosofia é a
melhor das músicas”.
Quanto aos diálogos com as pessoas, o que Sócrates fazia era, resgatando a ideia de
Logos de Heráclito, pedir às pessoas o logos “razão” da justiça, da coragem etc. Eles as
levava a se perguntar pelo real sentido das coisas.
Para a democracia ateniense, da qual não participava a maioria da população (que
era escrava, pobre ou mulher) Sócrates representava uma ameaça social à medida que se
dirigia às pessoas sem fazer distinção de classe social. Assim foi condenado a beber cicuta.
O mandante da execução foi o rico Anito e o promotor foi o poeta Melito. Sentenciado à
morte, ele ainda passou 30 dias na cadeia conversando com os discípulos que iam visitá-lo
além da mulher Xantipa (com quem não se dava bem e teve três filhos) – sobre essa
mulher, numa discussão ele foi molhado e disse – depois da trovoada tem de vir a chuva. A
morte de Sócrates é relatada por Platão no Diálogo Fédon.
Foi condenado em 399 a.C, Janeiro, com 71 anos, por uma acusação de
"impiedade": foi acusado de ateísmo e de corromper os jovens com a sua filosofia, mas na
realidade, estas acusações encobriam ressentimentos profundos contra Sócrates por parte
dos poderosos da época. O tribunal era constituído por 501 cidadãos. Entre as acusações
houve uma que se referia à introdução de novas entidades divinas negando os Deuses da
pátria. Os acusadores foram: Ânito, Meleto e Lícon.
Ânito que era um líder democrático tinha um filho discípulo de Sócrates que ria dos
deuses do pai e voltava-se contra eles. Representava a classe dos políticos. Era um rico
tanoeiro que representava os interesses dos comerciantes e industriais, era poderoso e
influente não sendo um homem de escrúpulos e finezas da moral interior. Foi o mais
importante dos acusadores e foi aquele que deu a impressão de conhecer Sócrates, que a ele
alude como de Meleto fosse seu subordinado, como se deste tivesse originado a ideia de
pena de morte para persuadir Sócrates a abandonar a cidade antes que o processo tivesse
seguimento.
Meleto era um poeta trágico novo e desconhecido de cabelo raro, barba escassa e nariz
adunco, era o acusador oficial, porém nada exigia que ele como acusador oficial fosse o
mais respeitável, hábil ou temível, mas somente aquele que assinava a
acusação. Representava a classe dos poetas e adivinhos.
Pouco se sabe de Lícon. Era um retórico obscuro e o seu nome teve pouca importância
e autoridade no decorrer da condenação de Sócrates. Representava a classe dos oradores e
professores de retórica. Talvez Lícon pretendesse a condenação de Sócrates, devido ao seu
filho ter-se deixado corromper moralmente, filosoficamente e sexualmente por Callias, e
Callias era um associado de Sócrates.
20
Meleto assim disse:
"...Sócrates é culpado do crime de não reconhecer os deuses reconhecidos
pelo Estado e de introduzir divindades estranhas. ele é ainda culpado de corromper a
juventude. Castigo pedido: a morte" .
"... O sol já estava prestes a se pôr; pois Sócrates passara muito tempo neste lugar.
Assentara-se, ao voltar do banho e, a partir daquele momento, a palestra foi muito breve.
Chegou, então, o servidor dos Onze e, de pé diante dele, disse-lhe: "Sócrates, não tenho
nenhum motivo para te censurar justamente naquilo que incrimino aos outros!
Encolorizam-se contra mim e crivam-me de imprecações, quando convido-os a beber o
veneno, pois tal é a ordem dos Magistrados. Quanto a ti, porém, já noutras ocasiões tive
tempo suficiente para compreender que és o homem mais generoso, mais doce e melhor de
quantos jamais aqui entraram. E, muito especialmente hoje, tenho plena certeza que não é
contra mim que se dirige a tua cólera, pois conheces, com efeito, os responsáveis, mas
contra estes. Agora, portanto, como não ignoras o que vim te anunciar, adeus! Procura
suportar da melhor maneira aquilo que é fatal"! Começou, ao mesmo tempo, a chorar e,
voltando as costas, afastou-se. Sócrates, levantando os olhos para ele, disse-lhe: "A ti
também, adeus! No tocante a nós, seguiremos tua recomendação"! A esta altura, Sócrates
voltou-se para nosso lado e disse: "Quanta gentileza neste homem! Durante toda a minha
estada aqui, ele vinha procurar-me e se entretinha, por vezes, a conversar comigo: em suma,
um homem excelente. E hoje, que generosidade na maneira como chora a minha sorte!
Vamos, pois! Obedeçamos-lhe, Críton. Tragam-me o veneno se já estiver socado; caso
ainda não esteja, que disse se ocupe quem estiver encarregado"!
Então Críton disse: "Mas Sócrates, se não me engano, o sol ainda está sobre as
montanhas e não acabou de se pôr. Também ouvi dizer que outros beberam o veneno muito
tempo depois de terem recebido o convite, e isto só depois de haverem comido e bebido á
saciedade, alguns mesmo depois de ter tido comércio com as pessoas com quem pudessem
ter vontade. Vamos! Nada de precipitações: há tempo ainda"! Ao que replicou Sócrates: "É
natural, sem dúvida, Críton, que assim procedessem as pessoas a que te referes, pensando,
com efeito ganhar algo com isso. Quanto a mim, porém, também é natural que não faça
nada, pois penso que, deixando para beber um pouco mais tarde o veneno, outra coisa não
lucro senão ter-me tornado objecto de escárneo para mim mesmo, colocando-me, assim, à
vida e procurando economizar quando não sobra mais nada! Basta, porém, de falar; vai,
obedece e não me contraries".
Assim interperlado, Críton fez sinal a um dos servidores que se mantinha perto. Este
saiu e voltou ao cabo de verto tempo, trazendo consigo quem deveria ministrar o veneno já
moído numa taça. Ao ver o homem Sócrates disse o seguinte:"Meu caro! Tu que estás ao
corrente do assunto, dize-me o que devo fazer. _ Nada mais, respondeu, que dar uma volta
depois de ter bebido, até que sintas tuas pernas pesadas, deita-te em seguida e permanece
estirado: com isto ele produzirá efeito". Dizendo isto, estendeu a taça a Sócrates. Este
tomou-a, conservando, toda a serenidade, sem um tremor sequer, sem a mínima alteração
nem da côr nem dos traços. Mas, olhando na direcção do homem, um puco por baixo
conforme seu hábito, com seus olhos de touro, interrogou:"Dize-me é permitido ou não
oferecer a alguma divindade uma libação desta bebida? _ Sócrates, respondeu o homem,
nós moemos apenas a dose necessária para beber. _ Entendido, disse ele. Mas, pelo menos,
é permitido o que é aliás um dever, dirigir aos deuses uma prece pelo feliz êxito desta
mudança de residência, daqui para lá em baixo. Eis minha prece: assim seja"! Logo que
acabou de falar, sem parar, sem demonstrar a mínima resistência ou enjôo, bebeu até ao
21
fundo.
Então nós, que quase todos havíamos feito o máximo até aquele momento para não
chorar, ao vermos que bebia, que já tinha bebido, não pudemos mais conter-nos; minhas
forças foram ultrapassadas e minhas lágrimas, a mim também, correram abudantes, de tal
forma que, com a face, velada, chorava até me fartar sobre minha sorte (pois,
evidentemente não era sobre a dele) sim, sobre meu infortúnio de ser privado de semelhante
companheiro! Críton, aliás, incapaz, já antes de mim, de reter as lágrimas, levantara-se para
sair. Apolodoro, por sua vez, que já antes, não cessara um instante sequer de chorar,
comecou, então, como era natural, a lançar tais rugidos de dor e de cólera, que esmagava o
coração de todos os presentes, salvo do próprio Sócrates. "Que fazeis lá? exclamou este;
sois mesmo extraordinários! Se mandei embora as mulheres, foi sobretudo pelo seguinte:
para evitar da parte delas semelhante falta de medida; pois como me ensinaram, é com
palavaras felizes que devemos terminar. Guardem, pois calma e firmeza"! Ao ouvir tal
linguagem, sentimo-nos envergonhados e deixámos de chorar.
Ele, porém, continuava a andar quando declarou que sentia as pernas tornarem-se
pesadas. Então, deitou-se de costas, como efectivamente lhe recomendara o homem. Ao
mesmo tempo, este aplicava a mão aos pés e às pernas examinando-o por intervalos. Em
seguida, apertou-lhe fortemente o pé, perguntando-lhe se sentia; Sócrates respondeu que
não. Depois, recomeçou na parte inferior das pernas e foi subindo para mostrar-nos que já
começava a esfriar e a tornar-se hirto. E, tocando-o ainda, declarou-nos, que quando chegar
ao coração, nesse momento Sócrates partirá. Já tinha pois, gelada quase toda a região do
baixo-ventre, quando descobriu a face, que antes cobrira, e disse estas palavras, as últimas
que pronunciou: "Críton, devemos um galo a Asclépios; pois bem, pagai minha dívida,
pensai nela. _ Bom! Isto será feito, disse Críton. Mas vê se não tens mais nada a dizer". A
pergunta de Críton ficou sem resposta. Ao cabo de curto momento, ele teve, entretanto, um
sobressalto. Então, o homem descobriu-o: o seu olhar estava fixo. Vendo isto, Críton
fechou-lhe a boca e os olhos.
Assim, foi o fim que vimos dar a nosso companheiro, o homem do qual podemos
dizer, com justiça, que, dentre todos os de seu tempo que nos foi dado conhecer, foi o
melhor, e, além disto, o mais sábio e o mais justo”. ( Platão, Fédon, 116b)

Platão (“ombros largos”)

De ascendência aristocrática, Platão deixou Atenas depois da morte de Sócrates (ele


testemunhou o julgamento do amigo e ficou horrorizado com aquela democracia ateniense)
e só voltou para fundar a ACADEMIA. A escola recebeu este nome porque ele havia obtido
um pedaço de terra nos arredores de Atenas de um benfeitor chamado Academos. De sua
obra destacam-se os Diálogos e A República.
Seguindo os ensinos de Sócrates ele fundou a academia que era uma espécie de
protótipo da universidade. Ali as pessoas que eram escolhidas como alunas não pela
ascensão social ou condição financeira, mas pelo conhecimento que tinham de si mesmas
(intelectualismo) e a vontade de aprender. Por isso ele colocou na porta uma placa que dizia
“somente para os geômetras”.
Na academia se estudava aritmética, geometria, astronomia e harmonias do som. O
seu objetivo era treinar a mente dos homens a fim de pensarem por si próprios à luz da

22
razão. Dispunha de equipamento científico e de uma biblioteca e o método de estudo era a
investigação sob supervisão (o principal aluno da Academia foi Aristóteles).
Platão pensou que a única solução para o caos da democracia ateniense era usar a
filosofia a fim de construir uma sociedade perfeitamente ordenada, na qual todos saberiam
o seu lugar e o aceitariam sem questionamentos.
Três pontos em Platão:
1 - Sistematização do Dualismo11: a alma vivia antes no mundo das ideias, o
processo de ensiná-la (dialética ou maiêutica em sócrates) era a anamnese em Platão.
ATENÇÃO O DUALISMO DE PLATÃO NÃO TRABALHAVA AS IDEIAS DE EONS
NEM DE DEMIURGO).
Platão dizia que a ideia que temos das coisas provém de for a desta realidade
(idealismo). Os animais, por exemplo, que chamamos “cavalos” só existem em nossa
concepção porque fora deste tempo e deste espaço existe um cavalo ideal. Para ele só a
ideia seria real, o particular é uma aparência. Para ilustrar a diferença entre aparência e
realidade, veja o mito da caverna.
Mito da Caverna: Na República Platão conta a história imaginária de pessoas que
viveram como prisioneiras em uma caverna desde a infância. Estão acorrentadas e
imobilizadas. Seu campo de visão restringe-se a um muro que está imediatamente à sua
frente. Por detrás delas há uma área mais alta por onde passam outras pessoas, carregando
objetos de madeira, pedra e outros materiais. A luz de uma fogueira lança assombras das
pessoas sobre o muro e os prisioneiros conseguem ver. Eles ouvem a voz daquelas pessoas
e concluem que as vozes vêm das sombras. De fato, a única percepção que eles têm da
realidade vem dessas sombras.
Platão, então, pergunta o que aconteceria se um dos prisioneiros recebesse a
autorização para andar em direção à fogueira. O brilho do fogo ofuscaria seus olhos e teria
a tendência de voltar para a posição à qual estava acostumado. Porém se fosse arrastado
para fora da caverna, para o sol do meio dia, ele ficaria mais ofuscado ainda com tamanho
brilho, mas sua vista se acostumaria e, caso voltasse para a caverna, teria uma nova
perspectiva da vida, mas encontraria dificuldades de explicar o que viu. Se insistisse, seus
companheiros o matariam.
2 - Definição de alma em Platão um conjunto dividido em três partes: 1) racional, 2)
Irascível (coragem) 3) Apetites ou paixões – Os que tinham a parte 1 mais desenvolvida
deveriam ser líderes, a 2 soldados e a 3 povo. (para ele o estado ideal deveria ser como a
alma uma hierarquia).
3 – Política comunista - Seu sistema político comunista: sem lugar para os poetas
(uma república utópica pois jamais se realizou). Amor platônico (amor distante, ideal que
jamais se realiza).
Aristóteles – o último dos filósofos gregos

11
Existem três tipos básicos de dualismo: a) o dualismo metafísico: Há dois princípios irredutíveis entre si e
não subordináveis, vivem para explicar tudo o que coexiste de bom e de mal. Exs. Platão – o Demiurgo só
plasmou, modelou a matéria sempre existente. Maniqueísmo (o gnosticismo do III século) Deus bom versus
Deus mau. B) Dualismo cosmológico ou monismo metafísico: A criação é composta por dois princípios
irreconciliáveis Ex. os gnósticos do II século (Valentino). C) Dualismo antropológico – o ser humano
composto de princípios irreconciliáveis. Ex. Agostinho, Plotino. Mas a Bíblia traz como novidade(?) dois
dualismos mais: a) o histórico e escatológico e b) o ético (filhos das trevas, filhos da luz, pecado, conversão
etc.). Como antropologia a bíblia é unitária o homem é uno, mas eticamente ele tem duas forças lutando
dentro de si (de novo dualismo ético).

23
É o mais ilustre discípulo de Platão. Foi professor de Alexandre o grande. Filho de
um rico médico da corte de Estágira, na Trácia (macedônia), ele foi enviado pelo pai a
Atenas para estudar na Academia de Platão (para alguns ainda na infância para outros com
18 anos). Foi um aluno mediano em matemática, mas foi brilhante em história natural e
pouco a pouco sistematizou suas próprias ideias.
Ficou ali 20 anos e quando Platão morreu em 335 aC ele saiu de lá para fundar sua
própria academia, o Liceu.Rompendo com a escola de Platão fundou ele mesmo a sua
própria escola o Lyceum que como centro de investigação, superou de longe a Academia.
Dizem que enquanto ensinava Aristóteles costumava caminhar e falar ao mesmo
tempo e foi devido a esse hábito que os estudantes do Lyceum foram apelidados de
PERIPATÉTICOS.
Foi professor de Alexandre Magno durante três anos e quando Alexandre morreu,
Atenas se levantou contra a Macedônia e Aristóteles se viu obrigado a fugir por ter sido
professor de Alexandre. Morreu dois anos depois.
Aristóteles deixou muitos escritos e vamos sistematizar alguns de seus ensinos:
- Desafiou o idealismo de Platão, em particular devido à sua própria atitude
empírica em relação à natureza.
-A alma é um princípio vital: ela é a forma do corpo (matéria) ela também é o ato
(potência)
Potência – é tudo aquilo no qual a matéria pode se transformar. Tudo aquilo que
pode acontecer à matéria (a árvore pode virar mesa).
Ato é quando a potência passa a existir.
Para Aristóteles a alma não é uma entidade que se encontra no corpo. Esse corpo e a
alma são indivisíveis. O homem é uno (indivíduo). A cor só existe na matéria. Não existe
cor, existe colorido.
- Foi o primeiro a dividir e subdividir as áreas de estudo e o primeiro a tentar
classificar os conhecimentos.
- Aristóteles ainda estabelece que a felicidade é o objetivo de todos os seres. Só que
ele não definiu em detalhes o que é felicidade, qual seria o padrão da felicidade? Com base
em que posso atribuir algo como sendo verdadeiramente feliz?
Para Aristóteles, o ser atinge a felicidade quando realiza o que lhe é próprio, isto é,
natural.
- Ele também ensinava que entre a felicidade e o indivíduo existe uma
barreira: O Estado.

Aristóteles foi praticamente “canonizado” pelos eruditos medievais como uma


espécie de “profeta”. Muitas de suas ideias foram estranhamente amalgamadas com a fé
cristã e com o islamismo.

24
Ebook 2

Breve história da filosofia hebraica

Antes do surgimento da filosofia grega e, posteriormente paralela ao seu


desenvolvimento, havia uma filosofia hebraica que seguia seu fluxo próprio. Com o tempo
ela passou a ser fortemente influenciada e quase absorvida pela filosofia grega, o que
trouxe uma perda de identidade muito séria para aqueles pressupostos fundamentados na
orientação de Deus.
As origens do povo hebreu podem ser registradas por volta do 3o. milênio a.C.
Como outros povos da Mesopotâmia e Palestina, os hebreus eram de origem semita,
denominação moderna dos descendentes de Sem. Mencionado no AT como o filho
primogênito de Noé, Sem é considerado o remoto antepassado de todo o mundo semítico,
que inclui povos como os arameus, hititas, babilônios e cananeus. Foi de um povo semita,
os caldeus, que saiu Abraão, um comerciante e líder tribal nômade que se tornaria o
patriarca e progenitor de toda a civilização hebréia.
A principal fonte histórica hebraica é a Bíblia, pois sua primeira parte, o Antigo
Testamento, é dedicada à apresentação conjunta de seus valores religiosos, morais,
jurídicos e filosóficos.
Essa simbiose hebraica entre o desenvolvimento histórico de um povo e sua filiação
religiosa explica por que sua filosofia é tão envolvida pelo sagrado e o sobrenatural que
emergem e intervêm na história humana. Para os hebreus, não havia separação entre Deus
e história, sagrado e secular12, fé e razão, filosofia e religião. Seu pensamento era
essencialmente integral (wholistic), salvo no aspecto em que Deus é visto como um ser à
parte do que Ele cria.
A primeira escola de uma criança hebréia era o seu lar, que jamais perdia sua função
educativa, mesmo quando o filho saía para obter a educação comum. O papel dos pais era
tão importante que fazia parte formal da carreira acadêmica de todo cidadão.
Na orientação ritualística dos serviços do santuário (no deserto) e posteriormente do
templo (no período monárquico), estava sistematizada com muita clareza na filosofia do
povo hebreu.
A PRINCIPAL CARACTERIZAÇÃO DA FILOSOFIA HEBRAICA ERA A
DIMENSÃO MESSIÃNICA DE SEU SISTEMA E DE UMA HISTÓRIA
SETENTRIONAL, ISTO É QUE APONTA PARA UM NORTE QUE RUMA PARA UM
OBJETIVO ESCATOLÓGICO DE DEUS.
As festas anuais, os ritos diários, o descanso sabático, a memorização da Torah etc.
eram os recursos didáticos usados para ensinar ao povo a filosofia hebraica que, segundo se
cria, fora revelada por Deus desde Abraão, que por sua vez, ecoou a tradição adâmica.

Características básicas da filosofia hebraica (em contraste com a filosofia


grega)

1 - O Pensamento grego tende a criar o abstrato e separá-lo do concreto. O


pensamento hebraico é totalmente concreto. Por exemplo: palavras como fé (‘emunah),

12
Havia, para eles, o certo e o errado, em termos de religiosidade, a idolatria e a verdadeira adoração. Mas
não havia aquela distinção moderna entre sagrado (religioso) e o não sagrado (cotidiano).

25
amor (‘ahav) e paz (shalom) são essencialmente abstratas para os gregos, mas concretas
para os hebreus. A noção de fidelidade é descrita de modo ativo como “andar com Deus”.
Crer é sinônimo de obedecer.
2 – No Pensamento grego, o homem tende a ser medido pelo pensamento abstrato
ou conceitual, no hebraico, a inteligência é medida pelas atitudes, pela ação. Note que as
frases em hebraico tendem a começar pelo verbo e não pelo substantivo. A Bíblia não é um
compêndio de ideias, mas a história dos atos de Deus neste mundo.
3 – A antropologia grega era dualística e imortalista, a hebraica não. Sua visão de
homem não era dicotômica, nem tricotômica, mas una.
4 – A epistemologia grega começa pela máxima do oráculo de Delfos “conheça-te a
ti mesmo”, a hebraica começa pelo “conhecimento de Deus”. O auto-conhecimento
humano só se dá à luz do conhecimento divino (que deve sempre ser a priori). Quando nos
conhecemos independente ou adiante do conhecimento de Deus, temos uma ideia distorcida
de nós mesmos ora nos sentimos deuses (pois não temos o parâmetro de referência maior
[Deus] que nos coloca em nosso devido lugar) ou nos sentimos desgraçadamente perdidos
(pois não temos igualmente o parâmetro soteriológico de um Deus que nos criou e nos
redimiu).
5 – A epistemologia grega ensinava ainda que a verdade última é adquirida pelo
exclusivo exercício da razão que a descobre. Já a epistemologia hebraica entendia que a
verdade última é um mistério que só se conhecesse caso Deus a revele. O papel da razão
resume em assentir o que Deus revelou de si mesmo e até tal exercício é possibilitado (não
determinado!) pela graça divina. Verdades simples podem ser apreendidas pela razão
verdades teológicas pela revelação.
6 – Para os hebreus, ciência (tecnologia) e religião eram vistas como uma só coisa.
Tanto que a palavra ‘âtsab significa tanto “adorar” quando “produzir”, “fabricar”. Trabalho
e religião eram um binômio aceitável nesta filosofia, onde o ser humano é incentivado a
fazer tudo, desde o cálculo mais complexo até á atividade manual mais simples como se o
fizesse para Deus.

Período intertestamentário

O período intertestamentário coincide com o forte movimento de helenização do


mundo conhecido. Foram as conquistas de Alexandre o Grande (aluno de Aristóteles) que
difundiram pelo mundo a forma grega de raciocinar. A partir daí a cultura dos atenienses
passou a ser chamada de helenista e se tornou adjetivo não penas da cultura mundial, mas
de um período de quatrocentos anos que vai desde a universalização do império
macedônico até à hegemonia cultural greco-romana que invadiu o ocidente.
Três movimentos se destacam aqui:
- Epicurismo - Para Epicuro (342-270 aC) a atividade humana deve caminhar para o
sentido máximo: o prazer. Esse prazer não era necessariamente um prazer dos sentidos, mas
um prazer que vem da cultura e da razão. Era um prazer meramente intelectual. Há
informações no sentido de que Epicuro sofria dificuldades estomacais, pelo que mostrava-
se cauteloso quando se tratava de satisfazer seus apetites físicos. Dizem que isto influenciou
seus conceitos. Por isso, ele aconselhava a temperança, a prudência, a moderação, isso –
dizia ele - você consegue através da capacidade de realizar cálculos (raciocinar).
- Estoicismo – surgiu como uma reação contra Epicuro. Seu maior ponto de
divergência era que para os Estóicos a busca maior não era o prazer mas a virtude, o fazer o
26
bem. Seu principal líder era Zenôn (342-270 aC) 13.Ambos os grupos são citados em Atos
17:18 e o verso 28 é possivelmente uma citação de Arato, poeta estóico14 – além destes dois
fatos, (que aceitavam a existência de um criador, mas rejeitavam a ressurreição do corpo
físico), a Bíblia não nos dá maiores informações sobre suas crenças. Por outras fontes
sabemos que os estóicos diziam que a ética consistia em estar de acordo como as leis
imutáveis da natureza. Agir de acordo com a seqüência natural (determinismo ético).
Assim, rejeitavam o ideal epicureu do prazer mental, preferiam frisar a virtude. Não
procuravam evitar a dor a qualquer custo, diziam que vale a pena arriscar-se a sofrer para
fazer alguém feliz. Zênon ensinava que o mais alto objetivo do ser humano é viver de
acordo com a sua razão e praticar a virtude. Esta consiste em dominar as paixões, em não
sentir-se atraído pelo prazer e em não se deixar vencer pelo sofrimento (At 17.18-20). Veja
que interessante esse texto estóico da época de Plêiade: “As mulheres, logo que chegam aos
14 anos, são chamadas de ‘senhoras’ pelos homens. Assim pois, vendo que nada mais lhes
resta a não ser partilhar o leito dos homens, começam a se enfeitar e por nisso toda a sua
esperança. É justo, pois, que nos empenhemos em mostrar-lhes que a melhor maneira de
serem apreciadas e esta é mostrando-se decentes e reservadas.”
Ceticismo – vem do grego skepsis que quer dizer “dúvida”. Assim, esta corrente
fundamenta-se na dúvida e se opõe a qualquer concepção anterior (o agnosticismo é um
desses). Os principais defensores – Pirro (360-270 aC) e Carnéades (214-129 aC). O
ceticismo vem como um fruto dos sofistas, especialmente Górgias. Eles entendiam que o
conhecimento verdadeiro, se existe, está simplesmente acima das capacidades humanas.
Situação dos judeus
Com a destruição do Primeiro Templo e o exílio babilônico, os judeus ficaram um
tanto “sem rumo” em termos filosóficos. Eles haviam se afastando tremendamente da
cultura e língua hebraicas. Ao receberem a autorização para retornar à região da judéia no
período dos persas, sentiam-se estrangeiros em sua própria terra. Seu trabalho era
praticamente de reconstrução da sua identidade e de recuperação de raízes há muito
perdidas – lembremos foram 70 anos de cativeiro em terras babilônicas!
Nisto surgiram em Israel vários segmentos que não nos permitem falar de um
judaísmo único, mas de uma colcha de pensamentos, muitas vezes, oponentes entre si.
Porém, em uma visão sintética, é possível resumir esses ramos em dois grupos principais
dentro do judaísmo. Os liberais e os ortodoxos (ou conservadores).
Os conservadores já se destacaram logo após o início do cativeiro, quando levaram
avante o plano de construção de várias sinagogas que pretendiam suprir a lacuna deixada
pela destruição do templo de Jerusalém. Elas funcionavam como casas de oração e estudo e
representavam o passo vital para a formação das escolas rabínicas que depois floresceram.
Sua atitude rígida os levava a entender que, se o cativeiro era o fruto da infidelidade, seu
dever como líderes era forçar o povo a seguir minuciosamente todos os preceitos da lei

13
Não confunda com Zenon de Eléia (490-430 aC).
14
Aratus's Phaenomena (Epimenides gets credit for the first half of Acts 17.28):
Let us begin with Zeus, whom we mortals never leave unspoken.
For every street, every market-place is full of Zeus.
Even the sea and the harbour are full of this deity.
Everywhere everyone is indebted to Zeus.
For we are indeed his offspring... (Phaenomena 1-5).

27
para, com isto, evitar um novo cativeiro ou forma pior de castigo divino. Esta ação, é claro,
desembocará no farisaísmo dos tempos de Cristo.
Os liberais foram um grupo que seguiu por uma vertente diferente. Abandonando
parcial ou totalmente a ideia intervencionista de Deus, eles acreditavam que não foi um
castigo divino, mas sim uma falha de comunicação que trouxe o ódio gentílico sobre os
judeus. Sua noção de superioridade somada à ideia de serem raça eleita, fez com que não
tivessem uma política de boa vizinhança com os outros povos e toda a ideia estrangeira era
encarada com xenofobia. Se fossem mais tolerantes e se aceitassem mais os valores vindos
de outros grupos, possivelmente não haveria mais rancor nem cativeiro, pois seriam aceitos
no grupo.
Esse último movimento aproximou-se, sobremaneira, dos conceitos filosóficos
gregos e lançou as bases para a filosofia judeu-helenista que produziu uma série de livros e
conceitos ainda vigentes nos dias de Cristo. “O estudo das Escrituras em grego (LXX) e
não mais em hebraico, modificava a própria natureza do judaísmo na diáspora.
Lamentavelmente, mas de maneira segura, os judeus começaram a assimilar as ideias
religiosas ao seu redor e a reler as Escrituras sob a influência dessas ideias”15.
Com o início da construção do Segundo Templo, voltou-se à ideia de ter neste
edifício o centro da identidade judaica e ambos os movimentos giravam em torno dele,
revezando, vez pós vez, o controle sobre sua política.
No ano 200 aC, a palestina passa para o domínio dos selêucidas e aumenta-se a
helenização reforçada graças à perseguição aberta de Antíoco Epifânio, em 167 aC. Os
judeus respondem com a resistência armada (revolta dos macabeus) e conseguem uma
temporária independência, mas já têm dificuldades muito amplas de retomar sua identidade
nacional.
No ano 63 aC, acontece a conquista da Palestina por Pompeu que põe fim ao reino
bastante agitado dos descendentes dos macabeus (os asmoneus). Em 37 Herodes, o Idumeu,
reina em todo o país, por favor dos romanos, e inaugura a dinastia herodiana odiada pelo
povo, mas agradada pelo império.

Instituições ou correntes filosóficas judaicas no período intertestamentário

Escribas (Sopherim)– Os escribas surgiram bem cedo, imediatamente após o exílio


babilônico. Eles começaram inicialmente como voluntários com o fim de ajudar no
ministério espiritual junto ao povo. Nesta época de reconstrução, os sacerdotes deveriam se
ocupar das coisas concernentes à política administrativa e restauracionista, pelo que
precisavam de um grupo para doutrinar e ajudar espiritualmente o povo. Assim, os escribas
começaram como os sofistas, apenas com a diferença que, no começo, não cobravam para
ministrar os seus ensinos.
Eram, portanto, professores profissionais do ensino e guardiões da tradição da lei e
dos profetas. Eles eram versados em hebraico – língua esquecida pela maioria – e, assim,
estavam aptos a interpretarem a Bíblia para o povo. Evidentemente que, com o passar do
tempo, os escribas começaram a valorizar mais a tradição e sua s interpretações à própria
Escritura em si mesma.
A Sinagoga (Beth há Kynesseth)– Quando Babilônia destruiu o Templo, os judeus
criaram a sinagoga que era o lugar onde a Lei e os profetas eram estudados e orações eram

15
Iusim, H., Uma visão panorâmica da história do judaísmo clássico, Rio de Janeiro: Biblos, 1965, p. 39.

28
ascendidas a Deus. Se em qualquer lugar da diáspora, houvesse uma comunidade judaica
superior a dez pessoas, incentivava-se a construção de uma sinagoga para suas reuniões
religiosas e estudo da doutrina. Os mestres da sinagoga eram os escribas e o estudo da
Bíblia era feito com base em seus comentários.
Quando o templo foi reconstruído, os judeus continuaram a se reunirem nas
sinagogas por dois motivos: 1 – muitos continuavam na diáspora e este era o melhor meio
de praticarem sua religião, uma vez que estavam distantes do templo (embora não se
ofereciam sacrifícios na sinagoga). 2 – boa parte do sacerdócio estava corrompido, pelo que
o povo não acreditava mais em sua direção.
Fariseus – Os fariseus foram o lado ortodoxo ou conservador da religião judaica
que floresceu durante o período de ocupação siríaca. Eles se recusaram a obedecer aos
ditames de Antíoco Epifânio, pois entendiam que isto significaria trazer a ira de Deus sobre
o povo. Seu método de leitura da Bíblia era ultraconservador e literalista. Criam na
ressurreição e, segundo alguns, na imortalidade e reencarnação da alma, mas não temos
muita certeza disto.16
Saduceus – estes constituíam a ala liberal-helenistica dos judeus. Eles também
florescerem no período da ocupação siríaca. Eram contra a resistência armada ou de
qualquer outro tipo. Criam que a diplomacia era o melhor caminho e que os judeus
deveriam aceitar deuses e costumes estrangeiros em seu meio. Foram um minoria partidária
e impopular em Israel, embora tivessem muita influência política sobre o templo e o
sinédrio. Não aceitavam a ressurreição, nem a existência de anjos ou demônios. Para eles o
que acontecia era fruto da livre escolha humana e nada mais.
Sinédrio ou Sanhedrin – A primeira menção a esta assembléia político-religiosa
ocorre durante o reinado de Antíoco, o Grande (223-187 aC). O sumo sacerdote era o
presidente do Sinédrio e constituía a maior autoridade judaica com o fim da monarquia
após o exílio. Havia ali muitos membros da aristocracia (pouquíssimos fariseus e muitos
saduceus).

Destaque para dois autores deste período:

1 – Fílo de Alexandria (30aC-50AD) – Foi um filósofo judeu renomado que


procurou demonstrar que não há contradição entre a cultura judaica e a grega e que é
possível harmonizar a lei de Moisés com a filosofia de Platão. Por esta mesma razão, ele
adotou uma interpretação alegórica da Tora, a fim de adaptá-la á filosofia grega
especialmente a platônica. Falando do Logos de Heráclito, ele dizia que a razão universal
encontrava muitos modos de se revelar aos homens e que a Torá era uma destas formas,
mas não a única. Deste modo, os filósofos devem ser incluídos em qualquer sistema
filosófico-teológico legítimo. Seu trabalho não está sistematizado, mas encontra-se em um
comentário que ele escreveu sobre as Escrituras. Repelia o ascetismo e não aceitava a
anulação do corpo como meio de encontrar a sabedoria. Ele falava de uma embriaguez
sóbria que seria um entusiasmo extático que tinha o poder de transpor os limites entre o
homem e Deus. Isto, porém, não significa que possamos compreender a Deus, pois, para
Fílon, Deus está acima de qualquer descrição humana. Poderíamos compreendê-lo se nos
limitarmos às declarações racionalistas (intermediadas pelo Logos) sabendo que estamos

16
Quem diz isto é Champlin, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, vol. 2, p. 689. Champlin se baseia
num texto obscuro de Josefo (Guerras II. 8. 14).

29
falando, em essência, daquilo que Deus não é. Esta sua atitude apofática foi o primeiro tipo
de teologia negativa que acentua tanto a transcendentalidade divina a ponto de negar
qualquer afirmação essencial acerca de sua pessoa.
2 – Josefo - Historiador judeu do primeiro século (c. 37 – 110 AD), de origem
sacerdotal que conhecia muito bem o Antigo Testamento e as tradições judaicas. Na
juventude foi asceta por 3 anos, depois se uniu ao partido dos fariseus. Em 64 AD viajou
para Roma, em missão religiosa, para conseguir a liberdade de alguns sacerdotes presos.
Ali recebeu a proposta de organizar as constantes rebeliões primeiro na Galiléia e depois
na Judéia. Recebeu para isso um pequeno exército e teve um êxito inicial. Mas não se saiu
bem e acabou sendo acusado de traição pelo império. Fugiu e, pouco tempo depois,
encontrou-se com Vespasiano. Para não ser morto, usou seus dotes sacerdotais para prever
que este seria o novo Imperador de Roma. Por coincidência o oráculo se confirmou e
Vespasiano ficou muito impressionado. Protegido pelo novo imperador, Josefo fica com as
milícias de Tito e testemunha, como um repórter de guerra, a destruição de Jerusalém. Ele
fazia um duplo papel. Foi nesta situação que adquiriu um nome latino, Flávius, e uma
cidadania romana. Produziu as seguintes obras: Guerras Judaicas, Antiguidades Judaicas,
Contra Àpio (uma apologia contra o paganismo) e uma autobiografia. Há quem creia que
seus originais estavam em árabe e que foram posteriormente traduzidos para o grego.

Contradições entre o ensino de Jesus e alguns ensinos da Filosofia Grega17:


“Nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura
para os gentios” - S. Paulo

Compare, pois alguns ditos filosóficos e o comportamento de Jesus Cristo:

1) “[o homem magnânimo] deve ser sempre o primeiro e esforçar-se mais que os
outros”. - Homero.

2) “Uma vida de honra ou uma morte coroada pela fama é a ambição de todos os
homens nobres” - Sófocles
Ler Mat. 9:35

3) “O homem de mentalidade elevada segue orgulhosa e calmamente o seu


caminho... sendo ele digno de grandes coisas, considera-se digno de grandes coisas.”-
Aristóteles.
Ler Luc. 22:27 e Jo. 13:4 s.

4)”O homem de mentalidade elevada desfruta com moderação das honras a ele
atribuídas por homens grandes e excepcionais, como sendo merecidas, ou como sendo
menores do que as que ele realmente merece.” - Aristóteles
Ler Jo. 5:41.

17
Todas as menções dos filósofos e outros escritores nesta lista serão feitas segundo a citação de Borchert,
contudo, num trabalho anterior para a classe de Filosofia Geral eu tomei o devido cuidado de conferir a
maioria delas antes de apresentá-las em sala de aula. Aqui, por questões de espaço, oferecerei apenas a
menção da obra de Borchert.

30
5) “O homem de mentalidade elevada desdenha a honra que lhe é atribuída pela
populança, em ocasiões sem importância, pois ele está acima dela. “- Aristóteles.
Ler Luc. 7:39s. e Mat. 21:15s.

6) “Odi profanum vulgus et arceo” - Odeio a gente simplória e a conservo longe de


mim - Música de Horácio .
Ler Luc. 15:1 a 3

7) “O homem de mentalidade elevada é franco pois ama o desdém. E por isso


mesmo fala a verdade, a não ser que esteja se dirigindo à populança, aí ele fala
ironicamente.” - Aristóteles.
Ler Mat. 11: 5, 25; Jo. 7:49.

8) “Se um médico tivesse recebido dos deuses o poder de curar as doenças dos
sentidos, e curar o vício da humanidade, a sua recompensa certamente deveria ser rica;
porém, nunca mediante a cultura, poderás reformar o vilão, fazendo dele um homem reto.”
- Teognis.
Ler Mat. 10:11 e comp. com Luc. 19:7.

9) “[O homem de mente nobre] se inclina a conferir benefícios, mas ficaria


envergonhado de recebê-los. Pois o primeiro caso é natural ao homem superior, mas o
último ao homem inferior... E ele dá mais livremente do que recebe, fazendo desta forma
seu devedor o doador do presente.”- Aristóteles.
Ler Gen. 14:23; 2Reis 5: 16; I Cor. 9:15 e comp. com João 12:16 e Luc. 8:3. Elias
agiu de acordo com a máxima de Aristóteles veja I Reis 17:14s.

10) “Só quem tem uma natureza de escravo suporta insultos ou os negligencia em
seus companheiros.” Aristóteles
Ler João 18:23

11) “É virtude viril vencer os amigos por fazer o bem e os inimigos, ferindo-os” -
Sócrates.

12) “Não é doce o desdém que zomba do inimigo?” - pergunta de Atena a Sófocles.

13) “Se não tomas nada do que te é oferecido [em um banquete], mas o encaras com
indiferença, serás não apenas um conviva, mas um governante na companhia dos deuses.
Foi assim que Diógenes, Heráclito e outros semelhantes ganharam o adjetivo divino que
lhes é atribuído.” - Epíteto
Ler Jo. 2; Luc. 15:23s; Jo. 19:23.

14) “Quando encontrares alguém lamentando-se, não deixes de consolar sua


tristeza com palavras de razão, mesmo que precises chorar com ele. Porém, impeça que o
íntimo de teu coração seja atingido... O caminho da liberdade encontra-se em ignorar o que
não conseguimos controlar” - Epíteto
Ler João 11:33 e Luc. 19:41.

31
15) “Mesmo que os deuses me persigam pelos mares mais tenebrosos, eu o
suportarei; meu coração se acostumou ao sofrimento” - Odisseus.
“o nobre não se lança em perigo por coisas pequenas, mas por amor às coisas
grandes, ele enfrenta os perigos galhardamente, considerando sua vida como nada, como se
não valesse a pena viver.” - Aristóteles
“Viver e morrer gloriosamente, esses são os deveres do homem nobre.”- Sófocles
Ler Mat. 26:37s; Luc. 12:50.

16) “O sigilo é conhecido apenas dos medrosos” – Aristóteles


Ler João 8:59; 12:36.

A importância da Bíblia Sagrada

A Bíblia é, sem dúvida, o livro mais impresso e divulgado no mundo inteiro. Seria
também o mais estudado? Difícil dizer. Mas o fato é que uma pesquisa das Sociedades
Bíblicas Unidas (UBS) concluiu que cerca de 2,5 bilhões de cópias tinham sido impressas e
distribuídas entre 1815 e 1975. Porém, mais recentemente, o Guiness publicou que este
número superaria mais de 5 bilhões exemplares distribuídos em 349 idiomas (algumas
fontes dizem 6 bilhões)18. Se considerarmos ainda aqueles que têm pelo menos partes da
Bíblia em seu vernáculo natal, esse número saltaria para mais de 2.400 idiomas ao redor do
mundo que possuem a Bíblia traduzida no todo ou em parte19.
Somente os Gideões Internacionais distribuem por dia mais de 170 mil exemplares
da Bíblia em todo mundo. Isso significa que a cada minuto ou o tempo em que você levar
para ler toda essa página, 120 novas bíblias foram entregues a alguém em diferentes cantos
do planeta (BEAL 2011).
O segundo livro no ranking de mais publicado e distribuído do mundo seria o
famoso Livro Vermelho do Comunista Mao Tsé-Tung que trazia citações do ditador chinês
compilados por Lin Piao, seu ministro da defesa. Diferente da Bíblia, esta era uma
distribuição e leitura obrigatórias, impostas pelo governo. Mesmo assim, o que se tem aqui
é um distante segundo lugar, pois de acordo com as fontes oficiais o livro vermelho estaria
disponível em menos de 40 idiomas com uma tiragem de pouco mais de 1 bilhão de cópias
distribuídas pela China e restante do mundo (LEESE 2011).
Que contraste não é mesmo? E as diferenças não param por ai. O conteúdo de
ambos os livros é assombrosamente diferente. De acordo com o Livro Vermelho de Mao,
“devemos apoiar tudo o que o inimigo combate e combater tudo o que o inimigo apoia” e
mais: “a revolução é uma insurreição, um ato de violência pelo qual uma classe derruba a
outra.”
Já na contramão desta cultura temos os ensinos de Cristo que diz: “tudo o que
quereis que os homens vos façam, fazei a eles vós também” (Mateus 7:12). Além disso
temos o conselho de Paulo: “Não deixeis vencer do mal, mas vence o mal com o bem”
(Romanos 12:21).

18
http://www.statisticbrain.com/bibles-printed/ acesso em 09/06/2015
19
http://www.guinnessworldrecords.com/world-records/best-selling-book-of-non-fiction. Acesso em
02/06/2015.

32
O livro vermelho tornou-se uma espécie de Bíblia para a juventude chinesa dos anos
60 e 70 e foi peça chave do maio fervor ou fanatismo revolucionário do século 20, a
chamada Revolução Cultural que ceifou a vida de muitas pessoas e tornou a China um dos
países mais isolados do mundo inteiro.
Alguns podem argumentar que a Bíblia também provocou muitas mortes nos
tempos da inquisição, mas isso não é verdade. Foi a autoridade eclesiástica de então que
mandou matar em nome da fé. A leitura da Bíblia, além de proibida para a população em
geral, era um dos motivos da pena capital, pois muitos foram mortos apenas por possuir em
casa um exemplar do livro sagrado ou tentar lê-lo por conta própria sem autorização da
Igreja. Autoridade eclesiástica e ensinamentos bíblicos não são, necessariamente sinônimos
perfeitos. A história, portanto, das Escrituras Sagradas está bem distante daquela
relacionada ao Livro Vermelho da China Comunista.
Peculiaridades de um Livro
Além da grande tiragem mencionada acima, há muitos outros detalhes que fazem da
Bíblia um livro incomum, ou, mais propriamente, um livro sem igual.
1) A Bíblia foi o primeiro livro impresso no ocidente por Johnnes
Gutenberg entre 1450 e 1455. Ela também foi o primeiro livro impresso em
português, no ano de 1487 na região do Algarve, Portugal.
1) Foi também o livro mais proibido, perseguido e que sofreu tentativas
de destruição em toda a história. Só à guisa de ilustração, em 303 d.C., Diocleciano
decretou que cada cópia da Bíblia Cristã fosse queimada. Presume-se que centenas,
senão milhares de cópias tenham se perdido. Por pouco não teríamos o Novo
Testamento. Muitos foram mortos apenas por possuir uma cópia parcial da Bíblia
em seus lares.
2) Até mesmo a igreja foi contrária à divulgação bíblica. Em 1199 o
papa Inocêncio III proibiu a tradução da Bíblia para o vernáculo francês e decretou
que seria um perigo se a Bíblia fosse lida por pessoas simples do povo. Quem fosse
apanhado lendo ou ensinando a Bíblia na França seria morto. Várias Bíblias foram
queimadas a mando da Igreja.
3) Apesar de tantas destruições textuais, a Bíblia é o livro da
antiguidade com a maior quantidade de cópias manuscritas que se tem notícia.
Enquanto a Ilíada de Homero (o clássico com maior número de cópias preservadas)
conta com apenas 643 manuscritos, a Bíblia tem mais de 40 mil cópias se
incluirmos os textos em grego e hebraico, as traduções antigas e porções
preservadas antes da invenção da imprensa.
4) A Bíblia é, sem dúvida, o livro mais controverso da história. Nomes
de peso como Emanuel Kant (1724-1804), Abraão Lincoln (1809-1865), Isaac
Newton (1643-1727) o amam e recomendam sem qualquer hesitação. Por outro
lado, nomes igualmente de peso o rejeitam e desprezam sua leitura. Voltaire (1694-
1778), Nietzsche (1844-1900) e Sartre (1905-1980) são alguns deles. Seja como for,
percebe-se que não é um livro necessariamente dos menos intelectuais pois embora
haja mentes brilhantes que o rejeitem, há outras que o amam profundamente.
5) Curiosamente o texto bíblico não se setoriza em apenas um grupo de
pessoas. Ele desperta o interesse e atende às necessidades de jovens, adultos,
crianças, cultos, iletrados, ricos, pobres. É a obra mais ecleticamente social de toda
a história – tanto do ocidente quanto do oriente.

33
6) Embora existam muitos livros de autoajuda ou reflexivos que tenham
mudado a mente de várias pessoas, nenhuma produção literária da história
modificou tantas vidas como a Bíblia Sagrada. Bêbados, traficantes, prisioneiros,
depressivos, suicidas potenciais, assassinos são apenas alguns dos milhões e
milhões ao longo da história que tiveram vida transformada pelo contato com esse
livro em particular.

“Certa vez ouvi que a Bíblia poderia ser comparada a uma piscina cheia de água.
Uma piscina com uma parte tão rasa que as crianças poderiam ficar em pé e outra tão
profunda que um elefante poderia nadar nela sem qualquer dificuldade. Pois bem, a Bíblia é
um maravilhoso compêndio que contêm passagens nalguns casos bem densas e profundas.
Mas, no geral, se apresenta como um conteúdo simples o bastante para que qualquer um
possa por conta própria lê-la e entender os desígnios de Deus para cada pessoa”. Bruce
Metzger, eminente teólogo especialista em crítica textual do Novo Testamento 20.
A Bíblia traz sobre si uma reinvindicação muito séria que, se for verdadeira, faz
dela o livro mais importante de todos os tempos e se for mentirosa o mais terrível que a
humanidade já produziu. Ela diz que é de origem divina: “Toda a Escritura é inspirada por
Deus e proveitosa para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na
justiça” (II Tim. 3:16). Por isso o escritor George Bernard Shaw estava de certo modo
correto quando chamou a Bíblia de “o livro mais perigoso do mundo”.
Afinal de contas, um livro que se declara vindo de Deus só pode ser creditado a dois
fatores: histerismo ou inspiração. Seja qual for a alternativa adotada, é impossível ficar
neutro em relação a ele, principalmente nós que vivemos no ocidente. Ou ela é inteiramente
absoluta ou incrivelmente obsoleta.
Imagine agora que a Bíblia nunca houvesse sido escrita? Ou preservada até nossos
dias? O que teria acontecido? Uma resposta precisa é difícil de ser dada, mas James
Kennedy e Jerry Newcombe lançaram-se ao desafio de encontrar uma resposta. Eles
escreveram juntos o livro What If the Bible Had never Been Written? (E Se a Bíblia nunca
houvesse sido escrita?) e concluíram que praticamente todos os grandes exploradores,
cientistas, escritores, artistas, políticos e educadores do ocidente foram tão influenciados
por este livro que sem ele esses homens jamais teriam feito as contribuições que fizeram.
Exagero? Difícil dizer. Mas pelo menos uma coisa pode ser dita e que calaria muitos
que consideram a Bíblia um livro sem significado positivo. Dizem que certa vez um
antropólogo descrente da Bíblia estava entrevistando o missionário Kata Ragoso, da nova
Guiné. Em uma de suas perguntas ele insinuou o que o nativo achava de ter sua cultura
terrivelmente modificada pelos hábitos trazidos por esse livro de brancos. Era realmente um
motivo de agradecimento?
Se é motivo para eu agradecer, não sei – respondeu Ragoso – mas para você deveria
ser, caso contrário eu o estaria agora cozinhando para o meu almoço conforme o costume
de meus ancestrais que praticavam canibalismo!
Imagine agora as milhares, milhões de pessoas que tiveram sua vida mudada para
melhor por causa da leitura deste livro chamado Biblia Sagrada! É claro que houve muitos
outros clássicos que trouxeram benefícios para a humanidade, mas nenhum deles
transformou diretamente tantas multidões de diferentes níveis sociais e culturais. Tome por
exemplo um livro como O Capital de Karl Marx. Ele realmente influenciou muito os rumos

20
Citado em https://www.visionvideo.com/files/DTB_ColorBookLR.pdf.

34
da economia moderna, mas quantos presidiários poderiam ser citados que deixaram o
mundo do crime por terem lido os escritos de Marx? Quantos assassinos se arrependeram
de seus crimes e mudaram de vida por terem lido os pensamentos do marxismo? Quantas
pessoas tiveram uma morte mais tranquila porque em seu leito um amigo leu trechos sobre
a dialética e a luta de classes?
O que torna a Bíblia especial, acima de tudo, é o fato de ser a Palavra de Deus. Se
isso for verdadeiro ou falso ela será inteiramente absoluta ou obsoleta, não dá para
encontrar um ponto médio entre as opções. Se uma pessoa afirma com todas as letras que
viu de verdade um ET ou isso é verdade, e portanto deveria ter destaque em todas as mídias
do mundo inteiro ou é mentira e, portanto, não deveria ocupar a atenção de ninguém exceto,
talvez de um psiquiatra.
A diferença, porém, entre a Bíblia e o sujeito que vê Ets, é que as declarações dele,
se forem mentirosas, não afetarão a vida de muitas pessoas exceto da família dele. Já a
Bíblia não, o que ela diz já foi muito disseminado e influenciou muita gente. Pelo menos
um terço da população mundial professa um seguimento de orientação bíblica, o que faz
deste livro o mais lido e divulgado no mundo inteiro. Logo, suas declarações têm de ser
levadas em consideração seja para adotar ou para desmentir. As opiniões de um bêbado
falando com colegas de bar sobre economia não afetam o mercado, mas as declarações de
um ministro podem fazer cair a bolsa de valores!
Por isso, a declaração bíblica a coloca numa situação delicada de adoção absoluta ou
rejeição absoluta. Ela reivindica ser a Palavra de Deus. Os profetas do Antigo Testamento
empregam 130 vezes a expressão “veio a mim a palavra do Senhor” e centenas de vezes a
expressão “assim diz o Senhor”. O Novo Testamento refere-se 51 vezes ao Antigo
Testamento como “Escrituras”, isto é, livros escritos por homens mas de origem divina.
O apóstolo Paulo escreveu que “toda a Escritura Sagrada é inspirada por Deus” (II
Timóteo 3:16). A palavra grega theopneustos, traduzida como “inspirada”, literalmente
significa “sopro de Deus”, isto é, Deus “soprou” a palavra na mente dos Seus porta-vozes,
os profetas.
Isso não significa que Deus tenha escrito diretamente a Bíblia, ou usado os profetas
como “taquígrafos” de sua mensagem. O processo foi outro. Deus revelou as ideias ou os
acontecimentos, e os profetas, sob a inspiração/supervisão do Espírito Santo, tiveram a
liberdade para relatá-los de acordo com suas experiências e estilos, noutras palavras, a
Bíblia seria Deus falando com sotaque humano (II Pedro 1:21).
Eu sei que colocando a coisa assim desse jeito, o assunto colocado desse jeito
parece um argumento em círculos. Alguém poderia, por exemplo, objetar assim: “religiosos
acreditam na Bíblia por causa de Jesus, mas acreditam em Jesus por causa da Bíblia. Isso
não leva a lugar algum”.
Com certeza, um livro dizer que é a Palavra de Deus não o torna tal coisa. Por outro
lado, se um livro for mesmo a Palavra de Deus, ele obrigatoriamente afirmará ser a Palavra
de Deus. A Bíblia tem de ser autoritativa para ser coerente! O fato de alguém se dizer
autoridade policial não o torna policial de fato, mas se for um policial de verdade ele
obrigatoriamente dirá com autoridade para ver seus documentos.
Aqui, no entanto, existe um problema de ordem axiológica, pois o policial precisa
de um agente externo, superior a ele mesmo, – no caso o Estado – que lhe confira a
autoridade para ser um legítimo representante da lei. Neste caso, para que a Palavra de
Deus tenha autoridade precisaríamos de um agente externo que a convalide. Mas quem
convalidaria Deus?
35
Isso é bem complicado em termos de Bíblia Sagrada porque demandaria um agente
neutro, independente, superior e externo a Deus que validasse sua Palavra. Contudo, como
Deus é, em tese, a autoridade máxima e absoluta, ele quem ou o que poderia validar sua
autoridade?
A resposta obvia? Nada nem Ninguém! E se houvesse esse padrão autoritativo para
confirmar a Palavra de Deus, apenas criaríamos outro círculo, pois esse padrão também
demandaria outro padrão maior que o confirmasse e assim por diante ad infinitum.
Talvez Aristóteles nos ajude a resolver esse dilema. Como você sabe, Aristóteles
argumentou sobre a lógica perfeita que, mesmo não sendo ciência, vale uma argumentação
se for apresentada em forma de silogismo, isto é, a proposição de duas ou mais premissas
que se conectam conduzindo a uma conclusão verdadeira21.
Portanto, partindo do pressuposto de que é possível que haja Deus, como já
argumentei anteriormente:
• I. Se Deus Existe, então milagres são possíveis de ocorrer
• II. Se o NT for historicamente confiável, então os milagres citados nele ocorreram
• III. Se Jesus declarou ser Deus no NT e o texto for historicamente confiável, então
ele realmente é Deus.
• IV. Se ele for Deus, o que ensinou será a palavra de Deus
• V. Logo, a Bíblia é, de fato, a Palavra de Deus

O que precisamos agora é evidenciar essas premissas de modo que a conjunção “se”
possa ser retirada da frase tornando-a uma afirmação. Portanto, vamos analisar cada uma
das premissas e ver se elas procedem.
Sobre a possibilidade de existir um Deus, já falamos num diálogo anterior de modo
que repetir isso aqui seria multiplicar argumentações. Neste sentido, para que milagres
possam eventualmente ocorrer basta que exista um Deus Todo Poderoso e os milagres
serão sim, possíveis.
Sobre a confiabilidade do Novo Testamento, podemos dizer que uma gama de
historiadores de peso, incluindo muitos não cristãos validam a historicidade senão de tudo,
pelo menos da maior parte do que é descrito ali. Acadêmicos judeus como Geza Vermes,
por exemplo, admite – mesmo sem crer na ressurreição de Jesus – que a história da
crucifixão, do túmulo vazio e da ida das mulheres ao local na manhã de domingo é
verdadeira.
Outro exemplo é o de Sir William Ramsay, um acadêmico cético, especialista em
história greco-romana, que refez uma pesquisa de campo para provar que Lucas estava
errado em suas narrativas históricas. Depois do recolhimento de fontes, evidências, visitas
aos locais mencionados, ele mudou de ideia e colocou o Evangelho e o livro de Atos no
topo dos livros mais bem documentados da história antiga22. Deixou de ser cético.
A estes nomes muitos outros poderiam ser acrescentados e não se trata de
argumento por autoridade, mesmo porque não nego o fato de que também há muitos
acadêmicos que não creem na Bíblia Sagrada. O propósito dessa apresentação é dizer que,
mesmo os que não creem na historicidade bíblica deveriam pelo menos dar-lhe o
21
Aristóteles afirma que um silogismo deve ter ao menos duas premissas, mas não descarta que possa ter mais
de duas premissas. Uma discussão a respeito disso pode ser encontrada no cap. 2 de LEAR, Jonathan.
Aristotle and logical theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1980
Ramsay, William M. St. Paul: the Traveller and the Roman Citizen. Grand Rapids, MI: Baker
22

Book House, 1962


36
beneplácito da dúvida ou, senão, um lugar no mundo acadêmico considerando que muita
gente de peso acredita neste livro. A academia está cheia de especialistas que discordam
entre si, mas não seria ético um erudito esconder de seus alunos que há colegas que pensam
diferente dele.
Sobre a terceira premissa, não se trata apenas de provar que realmente Jesus fez
coisas miraculosas, porque isso outros também podem fazer, por ilusão, truque ou força
diabólica. Aliás, nem mesmo milagres verdadeiros, isto é, provindos de Deus, podem
provar que o realizador daquelas obras seja um ser divino, pois muitos profetas, de acordo
com a Bíblia, também fizeram milagres e eles não eram deuses.
Para que Jesus fosse mesmo o Filho de Deus, algumas coisas tinham de ser únicas
em seu ministério. O diferencial está no que ele declarou acerca de si mesmo. Ele foi o
único que curou doentes perdoando-lhes os pecados, coisa que só Deus pode fazer.
Também foi o único que cumpriu profecias messiânicas do Antigo Testamento e foi o único
que ressuscitou dentre os mortos como prova final de que tinha poder sobre a morte (João
10:18).
Mas o texto que narra tudo isso foi transmitido de maneira correta? O exame
detalhado do que chamamos crítica textual tomaria muito mais espaço do que temos aqui.
Contudo, vou deixar à guisa de informação uma das maiores autoridades do mundo em
crítica textual, Bruce Metzger. Sua opinião, é claro, resulta de muita investigação e muitas
evidências que, por questão do tempo, não mencionamos aqui. Ele disse: “Podemos confiar
imensamente na fidelidade do material que chegou até nós [do Novo Testamento],
principalmente se o compararmos a qualquer outra obra literária antiga.”23
Sendo as premissas I-III legitimamente plausíveis, a IV se sustenta naturalmente a
partir das anteriores. Jesus só pode ser Deus e, como tal o que ele disse era a Palavra de
Deus. Note, contudo, que quando ele viveu nesse mundo, o chamado Novo Testamento
ainda não existia, de modo que o Antigo Testamento, por ele plenamente validado,
constituía as Escrituras de seu tempo. Logo, (conclusão final) a Bíblia – Antigo e Novo
Testamento, é a legítima palavra de Deus.
Há outras evidências além destas.
 A Bíblia é relevante. Sua mensagem é indispensável. Ela mostra de onde viemos
e para onde vamos; descreve com impressionante acuidade a natureza humana e apresenta a
resposta para os nossos mais profundos anseios. Seu conteúdo é útil para pessoas de todos
os tempos e lugares. É claro que há coisas que devem ser contextualizadas. Não vamos
apedrejar alguém porque faziam isso naquele tempo, mas os princípios que jazem por
detrás de suas leis valem para todo o sempre. É como a diferença entre moral e ética. Moral
é apenas a atualização histórica e contextual de um princípio ético maior do que ela mesma.
Negar a ética porque a aplicação moral parece desatualizada não é uma decisão inteligente.
O mesmo se dá com os princípios bíblicos.
 A Bíblia é coerente. Embora escrita por cerca de 40 autores, que viveram em
contextos diferentes, com graus de cultura diferentes, ao longo de 1.600 anos, a Bíblia
apresenta uma visão de mundo harmoniosa. Seus 1.189 capítulos e 31.173 versos não se
contradizem. Ela não é uma antologia de textos, mas um cânon uniforme. Como explicar
essa unidade (ou perfeição), a não ser admitindo a existência de um único Autor, no caso
Deus, que agia por trás dos muitos autores humanos?

23
Apud STROBEL, Lee. Em defesa de Cristo: um jornalista ex-ateu investiga as provas da
existência de Cristo. São Paulo: Editora Vida, 2001.

37
 A Bíblia é estável. Num mundo em contínua mudança, cheio de vozes
discordantes, a Bíblia é uma âncora segura e um fundamento inabalável. Ela é estável não
só no conteúdo e nos princípios, mas também na sua própria existência. Apesar de tão
combatida, a Bíblia nunca sumiu do mapa. E olha que nenhum outro livro foi tão
perseguido, proibido e destruído ao longo da história. Foi um verdadeiro milagre sua
preservação. Tudo indica que o próprio Deus a preservou ao longo dos séculos e a
conservou livre de contaminação. Em 1947, vários manuscritos do Antigo Testamento
datando de 150 a 200 a.C. foram encontrados na região do Mar Morto confirmando a
fidelidade do texto que hoje possuios. Os manuscritos do Novo Testamento ou de partes
dele espalhados pelos museus da Europa e América ultrapassam 5.800 copias tornam, de
longe, o texto bíblico o mais documentado de todas as obras escritas na antiguidade desde a
invenção da escrita até a invenção da imprensa.
Isso mostra que as verdades de Deus não mudam ao sabor de modismos. Aliás já
escrevera Isaias há cerca de 2.700 anos que “Seca-se a erva, e murcha a flor; mas a palavra
de nosso Deus subsiste eternamente” (Isaias 40:8).
 A Bíblia é verdadeira. Seu relato é confirmado por muitos achados
arqueológicos que, se elencados um a um tomariam muito mais do que uma conversa de 20
minutos. Livros, artigos acadêmicos, pesquisa de campo e teses doutorais já foram
produzidos aos montes evidenciando a confiança arqueológica na historicidade do livro
sagrado.
 A Bíblia revela o futuro. Ainda teremos uma lição só para discutir isso, mas por
ora, basta dizer que a história é uma descrição dos fatos que já aconteceram, mas a profecia
bíblica é o registro de fatos muito tempo antes de ocorrerem. Só Deus realmente conhece e
revela o futuro. Se você estudar profecias como as de Daniel 2 e 8, descobrirá ali um
esboço antecipado da história mundial, com a indicação de vários impérios que ainda nem
haviam chegado ao poder. Um a um sem erro.
 A Bíblia tem a solução para a humanidade. Seu tema central é um só: o
infinito amor de Deus, manifestado na vida e morte de Cristo, como resposta à miséria
humana. Jesus é o grande personagem anunciado no Antigo Testamento e revelado no
Novo Testamento. E, se Cristo, como já dissemos, era mesmo quem dizia ser, toda a Bíblia
está validada, pois Ele a aceitava como Palavra de Deus. Por outro lado, se a Bíblia não
fosse o que diz ser, então nada do que ela apresenta, inclusive Jesus, seria digno de crédito.
 A Bíblia tem o poder de mudar vidas. Outros livros informam, mas a Bíblia
transforma. Quando as pessoas a lêem, encontram uma ajuda sobrenatural para mudar seus
maus hábitos e iniciar uma nova vida de pureza, bondade e amor ao próximo. Veja nos
presídios quantos deixaram a criminalidade por lerem a Bíblia e quantos o fizeram por ler a
obra de um ateu como Richard Dawkins. Depois tire suas próprias conclusões sobre qual
das obras oferece um melhor impacto social.
Lembro-me até hoje quando estudei filosofia e me deparei com os escritos de
Antony Flew, um dos maiores filósofos ateus do final do século 20. Nome respeitado em pé
de igualdade com Sartre e Lévi-Strauss. Dizer que um dia ele aceitaria a existência de Deus
e abriria margem para crer na Bíblia era algo tão insensato quanto dizer que o papa um dia
se tornaria muçulmano. Qual não foi minha surpresa quando anos mais tarde, veio o
anúncio de que Flew havia reconsiderado seu ceticismo.
Especificamente sobre a Bíblia veja o que ele disse numa entrevista que deu a

38
a Habermas: “a Bíblia é um eminente livro que merece ser lido … a ressurreição de Jesus
tem muito mais evidências que qualquer outro milagre mencionado na História” 24.
Sinceramente só pode dizer uma coisa meu amigo: se a razão humana era assim tão
poderosa como pensavam os iluministas, por que não conseguiram mandar Deus e seu
velho livro embora? É claro que estou sendo irônico, mas ironia é uma forma sutil de
argumentar que só pessoas inteligentes conseguem perceber. Portanto, se você percebeu a
ironia, sinta-se elogiado, você uma pessoa esperta e espero sinceramente que medite
bastante em tudo que dissemos aqui.

Bíblia e Moralidade

Os valores sociais mais incentivados incluem riqueza, poder, prazer, vingança,


fama, vaidade e status. Essas são as coisas mais importantes para as pessoas que não
percebem nenhum propósito além de si mesmas e seu conforto próprio. Por isso, a
massificação desses valores “mundanos” resulta em ciúmes, ressentimentos e conflitos
entre as pessoas. A Bíblia se posiciona fortemente contra tudo isso. Cf João 8:44, Atos 5: 3,
Romanos 16: 17-20, 2 Coríntios 4: 4, Efésios 2: 1-3, 4: 25-32, 2 Timóteo 2: 22-26, 1 João
3: 8-10.
Os valores ensinados na Bíblia são a bondade e respeito por todas as pessoas, e não
a sede descontrolada pelo poder. Busca-se a humildade em vez de status; honestidade e
generosidade em vez de riqueza ilícita; autocontrole em vez de auto-indulgência; perdão em
vez de vingança. Os valores cristãos promovem paz e boa vontade entre as pessoas, de
acordo com os propósitos de Deus. Nunca alcançaremos a perfeição nesta vida, mas as
pessoas que se esforçam para obedecer a Deus geralmente encontram um sentimento de
alegria e paz que nenhuma recompensa do mundo pode igualar!
De acordo com a Bíblia, a lei moral significa uma lei que prescreve o que as pessoas
deveriam fazer, sendo isso feito ou não. Não há como duvidar que todo o ser racional que
nasce no mundo tem uma noção do que é certo e errado. Desde criança nós diferenciamos
entre o bem e o mal. Mesmo os que acreditam que é necessário superar a dicotomia entre
bem e mal acreditam estar fazendo um bem para a humanidade e não um mal. Isso nos leva
que crer que leis morais estão presentes em toda a experiência humana. E leis morais
implicam um Legislador Moral.
Essa foi a conclusão bíblica registrada em Eclesiastes 12: “ Lembre-se do seu
Criador nos dias da sua juventude, antes que venham os dias difíceis e
antes que se aproximem os anos em que você dirá: "Não tenho satisfação
neles";
antes que se escureçam o sol e a luz, a lua e as estrelas, e as nuvens
voltem depois da chuva;
quando os guardas da casa tremerem e os homens fortes caminharem
encurvados, e pararem os moedores por serem poucos, e aqueles que
olham pelas janelas enxergarem embaçado;
quando as portas da rua forem fechadas e diminuir o som da moagem;
quando o barulho das aves o fizer despertar, mas o som de todas as

24
Winter 2004 issue of “Philosophia Christi” the journal of the Evangelical Philosophical
Society in www.biola.edu/philchristi acesso em 13/10/2015

39
canções lhe parecer fraco;
quando você tiver medo de altura, e dos perigos das ruas; quando florir a
amendoeira, o gafanhoto for um peso e o desejo já não se despertar. Então
o homem se vai para o seu lar eterno, e os pranteadores já vagueiam pelas
ruas.
Sim, lembre-se dele, antes que se rompa o cordão de prata, ou se quebre a
taça de ouro; antes que o cântaro se despedace junto à fonte, a roda se
quebre junto ao poço,
o pó volte à terra, de onde veio, e o espírito volte a Deus, que o deu.
"Tudo sem sentido! Sem sentido! ", diz o mestre. "Nada faz sentido! Nada
faz sentido! "
Além de ser sábio, o mestre também ensinou conhecimento ao povo. Ele
escutou, examinou e colecionou muitos provérbios.
Procurou também encontrar as palavras certas, e o que ele escreveu era
reto e verdadeiro.
As palavras dos sábios são como aguilhões, a coleção dos seus ditos como
pregos bem fixados, provenientes do único Pastor.
Cuidado, meu filho; nada acrescente a eles. Não há limite para a produção
de livros, e estudar demais deixa exausto o corpo.
Agora que já se ouviu tudo, aqui está a conclusão: Tema a Deus e guarde
os seus mandamentos, pois isso é o essencial para o homem.
Pois Deus trará a julgamento tudo o que foi feito, inclusive tudo o que está
escondido, seja bom, seja mal .”

40
Ebook 3 –

I – Nascimento da Igreja e tempos apostólicos

Uma questão aparentemente simples, mas que foi e ainda é motivo de disputa entre
muitos teólogos e historiadores é aquela alusiva às origens da Igreja cristã. Várias perguntas
se tornam centrais nesse debate: Quando foi a Igreja fundada? Jesus fundou a Igreja ou
foram os apóstolos, especialmente Paulo, que a fundaram?25A igreja surgiu no ministério de
Cristo ou no ministério apostólico? A Igreja é um evento pré-pascal ou pós-pascal?
Para muitos escritores, o Jesus pré-pascal não fundou a Igreja. Sendo assim ela só
teria seu início na ressurreição de Jesus, como disse Günther Bornkamm: “A fundação da
Igreja Cristã, pois, não é se deve à figura do Jesus terreno, mas daquele ‘ressurreto’”. 26
Essas perguntas, é claro, contemplam dois tipos diferentes de debate: A disputa da
eclesiologia católica versus protestante quanto ao chamado “primado” de Pedro (que para
os católicos é a fundação histórica da Igreja que se efetivou no Pentecostes). E o desafio da
ala mais liberal em dizer que a Igreja como temos é um movimento puramente humano e
político que nada tem de divino. Um movimento histórico, como vários outros, baseado em
lendas e mitos que lhe interessava fabricar para justificar sua origem superior perante seus
os seguidores. Novamente citando Bornkamm:
“... o cânon do Novo Testamento é um produto de uma história terrena e humana.
Não caiu do céu como uma revelação. O impulso por detrás de sua formação, de mais a
mais, não proveio da linha principal de forças da Igreja, mas de Marcião, que no meio do
25
Veja, por exemplo, o livro do autor judeu Hyam Maccoby, The Mythmaker:Paul and the Invention of
Christianity, (Londres: Weidenfeld and Nicholson, 1986), 15, 113, 204, etc. Aqui ele explicitamente procura
argumentar que Paulo é quem fundou o cristianismo, e chega a chamar o apóstolo de aventureiro e “o maior
fantasista de todos os tempos”. Outros que embarcaram nesta mesma onda, porém antes de Maccoby, foram
os autores M. Baigent e R. Leigh (autores do livro “O mistério de Jesus, o papel de Qumran e a verdade sobre
os primórdios do cristianismo” Verschlusssache Jesus. Die Qumranrollen und die Wahrheit über das frühe
Christentum [Munique: Droemersche Verlagsanstalt Th. Knaur Nachfolger 1993] houve uma reedição em
2006) e o autor Robert Eisenman que em Co-autoria com Michael Wise escreveu dois livros em Alemão,
depois publicados em outros idiomas (Maccabees, Zadokites, Christians and Qumran: a new hypothesis of
Qumran origins e The Dead Sea Scrolls Uncovered [Rockport, MA: Element Inc., 1992). Esses últimos
defendem que o Cristianismo foi forjado por Paulo em conjunto (embora fossem oponentes políticos) com
Tiago que seria o “mestre de Justiça” mencionado nos documentos de Qumran. Paulo era um agente duplo de
Roma a serviço dos sacerdotes pró-romanos. Algumas dessas teses foram muito bem rebatidas por David
Wenham, Paul – Follower of Jesus or Founder of Christianity? (Grand Rapids, MI: W. B. Eerdmans
Publishing Company, 1995) e Klaus Berger, “Qumran e Jesus – uma verdade escondida?” Qumran und Jesus
– Warheit unter Verschluss? (Stuttgard: Quell Verlag, 1993) – este ultimo possui uma versão esgotada em
português traduzida pela editora Vozes.
26
Aqui, lembre-se que para esse autor o Jesus ressurreto não é necessariamente o “histórico”, mas o
produzido pelo Querigma. Günther Bornkamm Jesus de Nazaré, (São Paulo: Editor Theologica, 2003), 171.
Há uma série de outros autores alemães que seguem na mesma direção de apontar a igreja como um evento
exclusivamente pós-pascal: E. Peterson, Jürgen Roloff, H. Von Campenhausen e outros.

41
século II fundou uma contra-igreja ... Que é o Novo Testamento? Ele é o documento
original da fé cristã, mas não no sentido em que o historiador ou o advogado entendem o
termo. É certo que o Novo Testamento é um documento ‘histórico’, mas não em sentido
arquivístico, mas somente no sentido de ser a proclamação primeira, o apelo original e
fundamental à fé. Possui também um caráter ‘obrigatório’ ... no sentido que expressa
muitas e variadas maneiras e efeitos da fé cristã das origens.27
O Teólogo luterano H. S. Reimarus foi o primeiro a contestar a fundação da Igreja
por Jesus. O mesmo disseram A. Harnack, J. Weiss, e, por último, A. Loisy, segundo o
qual “Cristo não fundou formalmente uma Igreja, nem estabeleceu nenhuma forma de
governo para ela. Porém, o Seu anúncio do Reino de Deus e a transmissão dessa
mensagem aos discípulos conduziu à formação da Igreja, que é resultado da obra e
vontade de Jesus”.
Aliás, esse teólogo católico francês do século 19, Alfred Loisy, foi um clássico
autor citado nesse debate. Ele ficou famoso com a declaração: “Jesus proclamou o reino de
Deus, e o que surgiu foi a Igreja”28 e chegou a ser excomungado por causa dela pelo papa
Pio X em 1908. Alguns tentam hoje tirá-lo da lista dos liberais dizendo que o mesmo foi
mal interpretado, que sua tentativa era de dizer que a Igreja cumpriu o papel iniciado por
Cristo de proclamar o reino, mas que ela ainda não é a consumação escatológica do que
Cristo queria dizer. Para a mentalidade católica, mesmo essa justificativa já renderia uma
censura ao autor.
Quanto aos liberais que vinham na linha de Reimarus e Harnack, o novo tom irônico
da citação caiu como uma luva, primeiro na reinterpretação do pensamento de Loisy,
levando a supor que a Igreja longe de ser uma continuidade do ministério de Cristo, fora a
frustração do mesmo e, segundo, de que o chamado “Jesus Histórico”, sendo puramente
humano, falhou em seus planos pois não pretendia de modo algum a fundação de qualquer
movimento denominado Igreja Cristã. A igreja portanto, era fruto do “Jesus da Fé”, ou seja,
foi a comunidade (especialmente seus líderes) que a fundaram com base na interpretação
que deram do evento pascal, a saber a morte daquele que esperavam ser o Messias. Ela não
era o sonho, mas a frustração dos planos de Cristo que idealizou um reino, não uma Igreja.

Posicionamento adventista quanto à questão

Seguindo o quadro que nos apresentam as Sagradas Escrituras, a eclesiologia


adventista compreende que “a Bíblia retrata a igreja como uma instituição divina,
chamando-a de ‘Igreja de Deus’ (Atos 20:28; I Cor. 1:2). Jesus investiu a Igreja com
autoridade (S. Mateus 18:17 e 18). Conseguimos compreender a natureza da igreja cristã
quando observamos suas raízes no Antigo Testamento e as várias metáforas que o Novo
Testamento utiliza ao falar a seu respeito.”29
Segundo essa visão, a Igreja não nasce com o ministério de Jesus, nem dos
apóstolos, mas se prolonga desde sua verdadeira fundação nos tempos do Antigo
Testamento, mais propriamente com a linhagem fiel que remete a Adão e Eva. 30 O que
27
Günther Bornkamm, A Bíblia: Novo Testamento – introdução aos seus escritos no quadro da história do
cristianismo primitivo (São Paulo: Editor Theologica, 2003), 13 e 16.
28
“Jésus annonçait le royaume de Dieu et c'est l'Église qui est venue” Alfred Loisy, L'Evangile et l'Eglise
(Bellevue: chez Fauteur, 1904), 155,
29
Nisto Cremos, (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2003), 191.
30
Idem.

42
ocorre no Novo Testamento é uma transferência de autoridade missiológica de Israel para
os cristãos. Seja como for, o sentido bíblico de igreja será sempre o de um grupo de crentes
fiéis (nunca um pluralidade de “crentes avulsos”) que são legítimos guardiões da verdade
divina. Eles se organizam de modo diferente de acordo com o momento histórico em que
vivem. No período patriarcal estavam organizados como uma família ou clã onde o pai
funcionava como sacerdote; depois Deus os converteu em uma nação (Israel) e finalmente
como um movimento chamado “cristianismo”.
É curioso notar que mesmo em suas modalidades vétero-testamentárias esse “povo
de Deus” do passado é legitimamente chamado, pelo menos uma vez, no Novo Testamento
de “Igreja”. Atos 7:38 fala dos hebreus como “Igreja [ekklesia] do deserto”. Paulo parece
incluir até seres celestiais como parte desta “Igreja” Ef. 1:20-22 e Fil. 2:9-11). Caso os
apóstolos, especialmente Paulo, tivessem o interesse em “fundar” uma igreja, conforme a
tese dos liberais, teriam deixado isso mais claro em seus escritos e não dariam uma ênfase
tão grande à continuidade vétero-testamentária do movimento, pois sua intenção seria,
supõem-se, de ruptura com o judaísmo e não continuidade.
Portanto, podemos dizer que a Igreja não foi fundada por Cristo no sentido que
começou com seu ministério, mas foi “re-inaugurada” por ele ou ratificada em seu caráter
de aliança e chamamento (Qahal e ekklesia). Como movimento organizado, se excluirmos
o movimento pré-pascal de Jesus (que logicamente teria alguma organização mais
simplificada), é possível dizer que Igreja Cristã teve seu início organizacional/comunitário
por volta do ano 31d.C., durante a festa de Pentecostes em Jerusalém. Ali, com a pregação
de Pedro, cerca de 3.000 pessoas foram batizadas. Tal como Jesus, esses primeiros
membros da Igreja eram judeus, falavam aramaico e também grego (talvez conhecessem
pelo menos o hebraico litúrgico de uso sabático). A princípio, continuavam levando uma
vida piedosa judaica. Não entendiam a entrada no cristianismo como dissensão do
judaísmo.

O Mundo que recebeu o cristianismo

Se as raízes cristãs estão no judaísmo, seu desenvolvimento está no contexto pagão-


helenístico que circundava esse ambiente. Logo, é importante conhecer o mundo que
recebeu a religião cristã para, inclusive, conhecermos melhor o comportamento posterior
dos seguidores de Cristo em face ao ambiente em que estavam inseridos.
Religiões de mistério
O mundo pagão era profundamente religioso, mas não era um bloco monolítico. Sua
religiosidade se apresentava sob formas as mais diversas. Uma das principais correntes
religiosas orientais será o judaísmo, que teremos oportunidade de estudar mais adiante. Mas
havia outras com ênfase nos cultos de mistério – o que fascinava as pessoas – e nas liturgias
sacramentais que tinham a idéia de oferecer redenção ao participante. A razão desses
grupos ficarem conhecidos como “religiões de mistério”31 encontra resposta em suas
cerimônias secretas, somente conhecidas por aqueles que se iniciavam em tais religiões.
31
As fontes utilizadas por muitos escritores que se lançam no desafio para reconstruir as religiões de mistério
são tardias, datadas depois do ano 300 d.C., por isso suas informações são frutos de pelo menos duzentos anos
após a produção do último livro escrito e que integrou o cânon do Novo Testamento — o evangelho de João.
Logo, a pergunta crucial não deve tratar acerca de uma possível influência das religiões de mistério nos
segmentos cristãos depois do ano 300 d.C., mas que efeito elas tiveram no século 1o, momento em que o
cristianismo ainda estava sendo formado.

43
A importância e influência dessas religiões orientais para a Roma ocidental são
notórias. As mais populares eram:
- O culto da Grande Mãe Cibele e Atis (originários da Anatólia e da Frígia, na Ásia
Menor, aportou em Roma no ano 204 a.C.). Os romanos consideravam Cibele a esposa de
Saturno (Rhea), o filho rebelde que influenciado pela mãe (Gea) castrara Urano, seu pai. De
acordo com as versões, ela também era identificada com a mãe Terra (Gea?) adorada na
Anatólia desde os tempos patriarcais, com Asherah, com a Afrodite de Chipre, com
Deméter, Artemis, A grande Senhora do período Minoano. Era, enfim, a a mãe dos deuses,
como diziam os romanos, a “Magna Mater”. Era um culto de sincretismo religioso. É bem
provável que a figura de Maria como “mãe de Deus” venha suprir o vazio deixado pelo
culto da grande mãe Cibele.
Semelhante às deusas gregas Perséfone e Deméter, Cibele também possuía seus
próprios Mistérios sagrados. Suas cerimônias eram celebradas à noite, pois ela era a Rainha
da Noite. Era também conhecida por possuir uma profunda sabedoria a qual compartilhava
apenas com seus seguidores legítimos. Homens esmasculados dedicados ao seu culto eram
considerados encarnações de seu filho Atis, um deus lunar (daí a idéia de lunático para
louco, pois ele era louco) que usava a lua crescente como uma coroa de uma maneira muito
própria, sendo tanto filho como amante de sua mãe Cibele.
O mito de Átis relata que ele estava para se casar com a filha do rei, quando sua mãe
ou avó – a própria Cibele - estando apaixonada por ele, tornou-o louco. Átis, na loucura,
ou no êxtase, castrou-se diante da Grande Deusa-Mãe. Daí, anualmente, em um culto que
data de 900 a.C., é celebrada a tristeza de Cibele por seu filho. O pranto por Átis, lembra a
tristeza de Istar por Tamuz e a de Afrodite por Adônis.
Mas no culto de Cibele foi dada grande proeminência a um elemento especial. O
terceiro dia da festa era chamado "dies sanguinis". Nele a expressão emocional por Átis
alcançava o máximo. Cânticos repetitivos, danças e lamúrias misturavam-se levando ao
êxtase32, e o abandono emocional levava a um auge orgiástico. Então, num frenesi religioso,
os jovens começavam a se ferir com facas; alguns até executavam o sacrifício último,
castrando-se frente à imagem da Deusa e jogando as partes ensangüentadas sobre sua
estátua. Outros corriam sangrando pelas ruas e atiravam os órgãos em alguma casa por
onde passassem. Esta casa era então obrigada a suprir o jovem com roupas de mulher, pois
agora havia se tornado um sacerdote eunuco. Depois da castração usavam cabelos longos e
vestiam-se com roupas femininas.
Famílias mais tradicionais de Roma não aceitavam bem essa prática e nalguns
momentos o Senado chegou a considerá-la ilegal. Mas por questões políticas (acreditava-se,
por exemplo, que Cibele os ajudara na guerra contra os cartagineses) e populares (eram
muitos os que simpatizavam com as doutrinas do grupo33), o culto foi tolerado e até
apoiado.
32
O êxtase, conforme a etimologia grega da palavra, significa “permanecer fora” (ex tasis), isto é, ficar fora
do próprio corpo para que um outro espírito possa habitá-lo. Oferecer o corpo como morada para um espírito.
33
Entre essas doutrinas estava a consulta a oráculos e a crença da imortalidade da alma que envolvia a
recompensa que seria dada na eternidade aos que se unissem à Grande Mãe.

44
- O Culto a Isis e Osiris, do Egito. O culto à deusa Ísis se originou no Egito e passou
por duas fases principais. Em sua versão egípcia mais antiga, quando não era uma religião
de mistério, Ísis foi considerada a deusa do céu, da terra, do mar e do mundo subterrâneo
invisível. Nessa fase remota, Ísis teve um marido chamado Osíris. O culto de Ísis só se
tornou uma religião de mistério depois que Ptolomeu I introduziu mudanças importantes,
em meados de 300 a.C. Na fase posterior, um novo deus, chamado Serápis, tornou-se seu
novo cônjuge. Ptolomeu I introduziu mudanças a fim de sintetizar as crenças egípcias e
gregas em seu reino, acelerando a helenização do Egito.
Segundo seu mito, “Osíris é morto, encerrado num cofre por inimigos invejosos e
por seu irmão Set, lançado depois nas águas do Nilo. O cofre se abre e as partes de Osíris
são espalhadas. Ísis vai a sua procura e consegue reunir todas as partes, com exceção de
uma, o pênis, que um peixe engolira. Ela realiza um ritual de magia juntamente com Néftis,
onde pronuncia o nome secreto de Rá e constrói um falo da madeira recolhida na árvore
sagrada dedicada à Ishtar. Nesse momento, Osíris retorna á vida, porém restrita ao mundo
dos mortos, enquanto isso, Ísis engravida e pari o filho da transcendência, Hórus, que irá
vingar a morte do pai e matar Set”.34
Do Egito, o culto à deusa Ísis conquistou seu espaço, gradativamente, em Roma. No
princípio, a capital romana repeliu o culto, mas a religião acabou entrando na cidade
durante o reinado de Calígula (37-41 d.C.). Sua influência se expandiu pouco a pouco
durante os dois séculos posteriores e, em alguns locais, a religião se tornaria a principal
rival do cristianismo. O sucesso do culto de Ísis no Império Romano é geralmente
justificado por seus impressionantes rituais e pela esperança de imortalidade oferecida a
seus seguidores.
- Culto a Mitras, da Pérsia – Pelo que se sabe, este culto só se tornou
exponencialmente importante em Roma após o ano 100 d.C. Mas se tornou um forte
concorrente e objeto de sincretismo com o cristianismo pós-apóstólico. Originariamente
essa divindade era um antigo deus da Pérsia e da Índia, conhecido como “Mitra”, Mitras era
um deus menor dentro do zoroastrismo politeísta. Isso foi até por volta do século VI a. C.
Mas com o surgimento da dinastia aquemênida na Pérsia, este deus se tornou
crescentemente importante e, no século V a.C., reapareceu como o principal deus dos
Persas, um deus de luz e de sabedoria, e muito associado com o sol.
Expandindo-se através do Médio Oriente e do sul da Europa, o culto do Mitraísmo
foi em breve estabelecido como uma religião maior e tornou-se uma das maiores crenças do
Império Romano. É possível que os responsáveis pela introdução do culto de Mitra no
Império Romano tenham sido os legionários que serviam o império nas suas fronteiras
orientais. As primeiras provas materiais do culto de Mitra datam de 71 ou 72 d.C.: trata-se
de inscrições feitas por soldados romanos que procediam da guarnição de Carnuntum, na
província da Panónia Superior e que possivelmente tinha estado no oriente, na luta contra
os partos e no combate ao levantamento em Jerusalém.

34
, Jean Chevalier e & Alain Gheerbran. Dicionário de Símbolos - Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
figuras, cores, números. (Rio de Janeiro: José Olympio Editora - 9ª edição 1989), 665-666.

45
Em finais do século II o mitraísmo já estava amplamente popularizado no exército
romano, bem como entre comerciantes, funcionários e escravos. A maior parte dos achados
referem-se às fronteiras germânicas do império. Pequenos objetos de culto associados a
Mitra têm sido encontrados em locais que vão da Romênia aos arquedutos de Adriano na
Inglaterra.
Mitras, tal como o deus era conhecido em latim, era o deus por excelência dos
legionários romanos, sendo considerado um grande companheiro e guerreiro na luta
dualística entre as forças da luz e das trevas, do bem e do mal. Nos últimos anos – em seu
progresso no império romano – Mitras já era identificado como o Solis Invictvs dos
imperadores imediatamente anteriores a Constantino.
Todas essas religiões pregavam uma espécie de deus-redentor que morre e torna a
viver, uma religião ligada à natureza e à participação sacramental do devoto que se tornava
um com o deus redivivo! Havia também em todas a figura mística de um touro celestial e a
prática do taurobolium –uma espécie de batismo com sangue. Nos mistérios de Cibele, o
iniciado descia num fosso coberto de tábuas sobre as quais sacrificava-se um touro. O
sangue do animal caia pelas frestas sobre o rosto e o corpo do iniciado que assim renascia
para uma nova vida. No mitraísmo e no culto a Serápis também havia a prática do
taurobolium, mas com características um pouco diferentes.
“Apesar da tendência eclética assumida após o ano 300 d.C., cada uma das religiões
de mistério estava separada e era distinta das demais durante o século que viu o nascimento
da Igreja Cristã. Todas elas assumiram formas diferentes em contextos culturais distintos e
sofreram mudanças significativas, especialmente depois do século 1o da Era cristã. Não
obstante, é possível apontar quatro características comuns entre elas:
1 - O cerne de cada religião era o emprego de um ciclo anual de vegetação, no qual
a vida era renovada a cada primavera e terminava a cada outono. Os seguidores dos cultos
de mistério imprimiram significações simbólicas complexas nos processos naturais de
crescimento, morte, decadência e renascimento
2 - Faziam uso de cerimônias secretas, freqüentemente relacionadas a um rito de
iniciação. Todas elas compartilhavam um “segredo” ao iniciado, que consistia basicamente
em informações sobre a vida do deus ou deusa cultuado e como os humanos poderiam
alcançar a unidade com aquela deidade. Esse “conhecimento” era sempre um conhecimento
secreto, inacessível a qualquer pessoa fora do círculo do grupo.
3 - Centravam o culto ao redor de um mito, no qual a deidade tinha, como
característica principal, o retorno da morte à vida ou o triunfo sobre os inimigos do grupo.
Era implícito nos mitos o tema da redenção, mas sob o aspecto terrestre e temporal. O
significado secreto do culto e de seu mito era expresso por meio de uma “tragédia
sacramental”, o que aguçava os sentimentos e as emoções dos iniciados. O êxtase religioso
os levava a pensar que estavam experimentando o começo de uma nova vida.
4 - Atribuíam pequena ou nenhuma atenção às doutrinas e à reivindicação de
possuírem uma crença correta e verdadeira. Estavam, principalmente, preocupadas com a
vida emocional de seus seguidores. Os cultos aconteciam de muitas maneiras, sempre com
o intuito de afetar as emoções e as imaginações dos iniciados: procissões, jejuns,
dramaturgias, atos de purificação, luzes resplandecentes e liturgias esotéricas. A ausência
de qualquer ênfase doutrinária marca uma diferença importante entre tais religiões e o
cristianismo. A fé cristã era (e continua sendo) exclusivista, no sentido em que reconhece

46
apenas um caminho legítimo para Deus e a salvação: Jesus Cristo. Por outro lado, as
religiões de mistério eram ecumênicas e nada impedia o devoto de um culto de seguir
outros mistérios”.35
Religiões gregas
Uma das principais marcas da religiosidade helenística destes tempos anteriores e
também contemporâneos ao cristianismo primitivo era a sua transformação em religião de
salvação individual. Veja, por exemplo, o culto a Esculápio (ancestral de Hipócrates e
divindade pessoal especializada na cura e na proteção do devoto). O homem individualista
que surge na Grécia depois do V século a.C., apesar de cosmopolita, busca mais o prazer
individual que o bem comum. Por isso um deus protetor particular seria tão bem vindo. Os
oráculos, também representam papéis importantes nesse cenário pois são as mensagens dos
deuses não para a comunidade, mas para o indivíduo. A deusa Tikê, por exemplo, é a deusa
da fortuna, aquela que constrói ou destrói segundo o seu capricho e sua satisfação com a
contribuição do ofertante.
Mas a Grécia também se impressionou com os cultos e mistério e produziu os seus.
É o caso dos mistérios de Deméter e Dionísio (que era filho de Zeus com Selene) ou ainda
os mistérios orfídicos e os eleusianos. Aliás, a principal criação dessa religiosidade grega
foi aquela que, associada posteriormente ao mistraísmo, transformará o imperador num
deus ou, em princípio, num herói. A religião helênica sustentava esta devoção cultuando a
memória dos grandes heróis do passado e, num tempo posterior, cultuando ao próprio
morto. Falavam-se também nos genii e nos daimôn que, para eles, era a possessão de uma
divindade boa ou ruim sobre o corpo humano – eram, enfim, o elemento divino presente no
homem.
Pietismo popular
Havia uma crença muito exacerbada em deuses salvadores e curadores. Havia o
templo de Epidauro dedicado a Esculápio. Segundo a crença da época, a pessoa doente
deveria dormir dentro do templo que, à noite, a divindade lhe revelaria em sonho as
indicações necessárias para a sua cura. Isso era chamado incubatio. Havia também uma
corrente d’água sagrada dentro do templo, à qual o devoto deveria beber. Quem tinha o
poder de curas (taumaturgos) era chamado theos anêr.
Porém, tão importante quando os taumaturgos ou outros theoi andrés, é a figura do
mago que também fazia as vezes de exorcista. Como acreditavam que o universo era
controlado por forças espirituais (curiosamente chamadas “demoníacas”) os devotos
contratavam o mago para, com seus supostos encantos, pudesse anular as forças negativas e
potencializar as positivas. Para isso o mago usava, palavras mágicas, animais mortos,
beberagens, amuletos, etc.
Os adivinhos também exerciam uma atividade básica neste contexto. Mas é bom
esclarecer que o exercício da divinatio (para os romanos) ou da mantikê (para os gregos)
não se refere à predição necessariamente, mas a toda uma série de práticas divinatórias nas
quais se acham mesclados os elementos provenientes da observação natural ou da suposta
revelação advinda de um estado de êxtase. Por extensão, alguns adivinhos não se limitavam
a interpretar os “sinais”, mas a cumprir com a função adicional de mago, interferindo em
seu curso futuro.
Muitos escritores testemunharam por escrito, sua desaprovação a muitas coisas
erradas que ocorriam naquela sociedade. Falando daqueles tempos romanos, diz o escritor

35
Ronald Nash, Uma exposição narrativa das religiões de mistério, in <http://www.apologia.com.br/?p=13>

47
E. Gibbon, “A sociedade era um caos pútrido de sensualidade”. As paixões das pessoas,
especialmente nas grandes cidades, ultrapassavam diariamente os limites da racionalidade.
Sêneca escreveu: “Tudo está repleto de crime, e o vício se espalha em todo lugar; o mal
praticado excede às possibilidades de cura, a luta e a confusão tornam-se desesperadas. Ao
passo que a luxúria se degenera em ilegalidade, a vergonha está desaparecendo com
rapidez; a veneração pelo que é puro e bom é desconhecida; cada um cede aos seus próprios
desejos. O vício já não permanece secreto, é público e a depravação tem avançado de tal
maneira, que a inocência tornou-se não somente rara como desconhecida de muitos” (De
Ira, 2:8). Paulo em Romanos 1:18 parece concordar com o que Sêneca escreveu.
Mas a despeito dessa descrição sombria, a sociedade daquele tempo parecia
expectante acerca de algo ou alguém que viria trazer paz. Havia uma expectativa
messiânica que ultrapassava os limites do judaísmo. Os próprios políticos de Augusto
tentaram fazer dele, o cumpridor desse prognóstico. Mais tarde escritores romanos também
tentaram emplacar Tito e Vespasiano como os “dominadores esperados do mundo”. O
curioso é que alguns prognósticos não judeus já apontavam a Judéia como o local do
surgimento deste tão esperado personagem.
Os hindus esperavam outro avatar, ou encarnação de seu deus principal, (esse
Avatar viria modificar os destinos da raça humana), os persas – seguindo os ensinos de
Zoroastro – esperavam o Astvatereta, o maior de todos os profetas (saoshyant). Os
chineses, segundo Confúcio, deveriam atentar para achegada do “santo do Oriente”. Sibila
(nome adotado por várias outras sacerdotisas que a seguiram na função de serem as
intermediárias entre Febo Apolo e os humanos) já havia falado da vinda do Senhor da
Terra. O mundo parecia advertido, ainda que inconscientemente, de que o Salvador estaria
a caminho da Terra.

Contexto judaico

A diferença básica do monoteísmo judaico para o politeísmo que o cercava estava,


entre outras coisas, na idéia clara de que Javé era tremendo e “oculto”. Não era
materialmente visível e tocável como os outros deuses. Aqui compensa lembrar uma
máxima de Pascal que disse: “Uma vez que Deus, se existe, está oculto, toda a religião que
não afirma que Deus está oculto, não pode ser verdadeira.”
Na época apostólica, havia comunidades judaicas em quase todas as cidades do
império romano, mais no Oriente que no Ocidente, como atestam muitas fontes da época.
Veja o que disse Estrabão36: “esse povo [judeu] espalhou-se por todas as cidades. Não é
fácil encontrar um lugar habitável neste mundo que não tenha recebido gente dessa nação e
que não tenha ela feito sentir seu poder”.37
As comunidades judaicas, portanto, não eram uma minoria insignificante. Tanto o é,
que suas sinagogas estavam construídas em lugares importantes e eram conhecidas pelos
gentios. É que o movimento migratório dos judeus (diáspora), iniciado durante a deportação
para Babilônia no século VI a.C., continuou durante todos os séculos vindouros da
continuada dominação estrangeira sobre a Judéia.
36
Estrabão, em grego, Στράϐων (63 a.C. ou 64 a.C. - cerca 24 d.C). Historiador, geógrafo e filósofo grego, foi
o autor da monumental Geographia (Γεωγραφικά), um tratado de 17 livros contendo a história e descrições de
povos e locais de todo o mundo que lhe era conhecido à época. Também escreveu Historia (Ἱστορικὰ
Ὑπομνήματα).
37
Citado por Josefo, Ant. XIV, 115.

48
Calcula-se que pelo menos dois terços dos judeus do I século viviam na diáspora,
fora da Judéia (percentagem que cresceu consideravelmente a partir da destruição de
Jerusalém no ano 70). De um modo triunfalista, Fílon de Alexandria escreveu: “Há não
menos de um milhão de judeus residindo em Alexandria e no país [Egito], desde o planalto
líbio e as fronteiras com a Etiópia ... Os judeus são tão numerosos que não podem ser
contidos num só país e, por isso, se instalam em muitos países prósperos da Europa e da
Ásia”38. Os números oscilam de acordo com as fontes, não há dados precisos, mas apenas à
guisa de aproximação, J. Gagé39 afirma que nos tempos de Trajano (53 – 117) haveria
quatro milhões de judeus na diáspora e mais de dois milhões na Palestina. Blanchetiere 40 já
menciona, somente na Ásia Menor, sete milhões de judeus recenseados nos tempos de
Cláudio (10 a.C. 0 54 d.C.).
Uma coisa importante: pouco se sabe sobre o judaísmo da Ásia Menor no I século,
Qumran deu uma boa contribuição, mas não é tudo. Geralmente o que os historiadores
fazem (e que pode constituir um erro) é tentar compreender o judaísmo da Ásia Menor à luz
do judaísmo de Alexandria, pois de lá sim, temos muitas informações graças aos escritos de
Fílon. Mas ainda é bastante hipotético e até mesmo duvidoso pensar que o a descrição que
vale para o Egito valha também para Antioquia.
Seja como for, sabemos que as relações dos judeus com Roma eram marcadas por
uma incrível tolerância por parte dos romanos apesar da antipatia que se tinha contra os
judeus. Eles tinham um certo privilégio imperial (mesmo os que viviam na diáspora). Pelas
leis romanas os judeus podiam:
1 – Cultuar apenas o seu Deus, Javé. Eles estavam desobrigados do culto ao
imperador exigido pelo mitraísmo, apenas tinham que respeitar a figura imperial,
mas não adorá-la (Ant. XVI, 27), tanto o é que suas moedas locais não traziam a
efígie do imperador nem de nenhum deus romano, mas apenas de objetos da
natureza como romãs, ramos de cevada, estrelas ou objetos comuns como um
capacete, a Menorah, um cálice etc. Sua obrigação com o imperador se limitava a
celebrar civilmente (não religiosamente) seu aniversário e suas festas de conquistas.
Havia, por exemplo, o sacrifício obrigatório ao imperador que, no caso dos judeus,
era substituído por orações em sinagogas. Em Jerusalém ofereciam-se sacrifícios a
Javé, em favor da saúde e prosperidade do imperador41.
2 – Num julgamento, o judeu estava desobrigado de jurar pelos deuses ou
diante de suas imagens.
3 – Os judeus tinham o direito de guardar o sábado e não serem
importunados por isso. Também poderiam celebrar naturalmente suas festas
cerimoniais durante seu calendário religioso anual (Ant. XIV, 226-245).
4 – Tinham o direito de construir suas próprias sinagogas (para não serem
obrigados a irem diante de templos pagãos) e se reunirem freqüentemente nelas
(Ant. XIV 235).
5 – Estavam dispensados de se alistar no exército (Ant. XIV, 232, 234).
6 – Tinham o direito legal de separar uma parte dos impostos públicos e
enviarem ao seu templo em Jerusalém, era a chamada coleta do “Shekel do Templo”
(Ant. XII, 121-124; XVI,163-168).
38
Flac. 43 e 45.
39
J. Gagé, Les classes sociales dans l’Empire romain. (Paris: Payot, 1964), 153.
40
F. Blanchetiere, "Juifs et non-Juifs. Essai sur la diaspora en Asie-Mineure", RHPR 54 (1974) 367-382, n. 7.
41
J. Juster,. Les Juifs dans l’empire romain (Paris: Geuthner, 1914) I, 344-348.

49
Segundo Flávio Josefo, foi Júlio César quem primeiro concedeu esses privilégios
aos judeus, mas coube a Augusto garantir que eles fossem respeitados em todo o império
(Ant. XII e XIV). Mais tarde, porém, Caligula vai acabar com alguns privilégios dos judeus
que moravam em Roma e nalgumas províncias do império e, depois dele, Cláudio expulsa
os judeus da capital. Vespasiano e Tito destroem Jerusalém. Contudo, mesmo esses
desafetos ainda mantiveram a ratificação de que os cidadãos do império deveriam respeitar
as peculiaridades do povo judeu. E dos privilégios, merece ser dito que, fora da capital,
todos eles foram mantidos, salvo o imposto do Templo que foi extinto por Vespasiano após
a destruição do mesmo.
Por que tamanha simpatia aos judeus? Por dois motivos: o primeiro vem de Cesar
que devia favores aos judeus por se aliarem com ele, sob o comando de Antipater, na luta
contra o Egito (durante as conquistas de Pompeu)42, Augusto confirmou e oficializou esses
privilégios dados por Júlio César. Segundo por questões políticas, os romanos sabiam desde
a revolta dos macabeus o poder de insurreição da população judaica, logo, era bom para
Roma evitar confrontações desnecessárias.

42
Quando os romanos com Pompeu invadiram a Síria e a Palestina. Hircano e Aristóbulo lutam para ganhar o
favor de Pompeu. Aristóbulo teme o pior e prepara-se para lutar contra os romanos. Tudo em vão. Pompeu
tomou Jerusalém em 63 a.C. Instalou Hircano como sumo sacerdote com poder limitado à Judéia(Josefo XIV-
1 a 4). Com isto o poder Macabeu e a independência da Palestina terminaram.Júlio César rompeu com
Pompeu. Antípater ajudou-o no Egito. Antígono, filho de Aristóbulo II, apareceu perante César em Roma com
acusações contra Antípater. César confirmou Hircano como sumo-sacerdote, e fez Antípater procurador geral
da Judéia. Antípater nomeou o seu filho Fasael governador da Judéia e Herodes, também seu filho,
governador da Galiléia.Herodes, com 15 anos de idade, assumiu o governo da Galiléia. Liderou o seu exército
e expulsou um grande número de bandidos, atraindo a atenção e a amizade do presidente da Síria e parente de
César. Os judeus temem Herodes, e ele é intimado a comparecer perante o Sinédrio. Sextus César, presidente
da Síria adverte Hircano para livrá-lo de qualquer acusação. Herodes chega com uma guarda imponente, o
sinédrio fica amedrontado, e é absolvido(Josefo XIV-9).Enquanto Marco Antônio passava os seus dias alegres
com Cleopatra, os partos saquearam Jerusalém, dando o reino a Antígono II, filho de Aristóbulo II, filho de
Janeu. Os partos prenderam Hircano II e Fasael; este suicidou-se na prisão, e os partos deceparam as orelhas
de Hircano. Herodes foge para Roma, e em poucos dias foi nomeado rei da Judéia por Antônio e Otávio(40
a.C.). O Senado romano declarou Antígono II como inimigo de Roma. Auxiliado pelos romanos Herodes em
três anos derrotou Antígono e os partos. Houve longo sítio de Jerusalém, porque os judeus queriam auxiliar
Antígono. Herodes aproveitou o período do sítio para casar-se com Mariana(1ª), neta de Hircano II, com
quem ficou desposado por cinco anos.A pedido de Herodes, Antígono foi decapitado por ordem de Antônio.
Pela primeira vez os romanos decapitam um rei. Foi o último sacerdote-rei macabeu. Herodes agora é o rei.
37 a.C. – 4 a.C.

50
Mas esse favoritismo começou a cair com Calígula e Cláudio43, especialmente
depois do ano 70. Vespasiano decretou, como já dissemos, o fim do shekel do Templo. Em
seu lugar instituiu o fiscus Iudaicus como maneira de indenizar Roma pelos gastos com o
cerco de Jerusalém e ajudar na restauração do templo de Júpiter na capital do império. Uma
verdadeira humilhação para os judeus. Um procurador especial denominado ad capitalaria
Iudaeorum, foi comissionado para cobrar a taxa. Esse imposto consistia na obrigação de
todo judeu, acima de três anos de idade, de pagar dois denários anuais aos cofres de Roma
(isso equivalia a meio Shekel, a metade do que se pagava para o templo judeu). Em
contraste com o levirato pago para o Templo em Jerusalém, o fiscus Iudaicus era imposto
não apenas a adultos do sexo masculino, mas a mulheres e, como dissemos, crianças de 3
anos para cima. Mas os judeus acima de 62 anos estavam desobrigados do pagamento44.
Algumas moedas cunhadas por Nerva chegavam a trazer a inscrição fisci Iudaici
calumnia sublata (“taxa judaica por causa da insurreição [ou lit. chantagem levantada]”).45
Suetônio menciona ter visto em sua juventude um velho de 90 anos sendo examinado para
ver se ele era circuncidado, pois esta era a maneira de se checar quem era ou não judeu no
momento de cobrar as tributações (não se tem informações de como as mulheres eram
checadas). Segundo Louis Feldman46, o crescimento proselitista dos judeus pode ter
contribuído para esse endurecimento por parte dos romanos, o que é bem provável. Nos
tempos do Novo Testamento, o judaísmo herdara da revolução dos macabeus um forte
espírito de auto-confiança e posicionamento altamente ofensivo (veja Mt 23:15). Além
disso, fontes rabínicas confirmam esse forte zelo pela conversão do gentio47.
Enquanto a região da Judéia via suas relações com Roma se deteriorarem aos
poucos (até culminar na destruição de Jerusalém e de seu Templo), a situação social e

43
Após a morte de Calígula, houve um conflito civil entre os judeus e gregos de Alexandria, incitado pelos
primeiros em razão, segundo Josefo (Ant. XIX), dos abusos que os últimos haviam cometido em relação a
eles durante o governo daquele imperador.
Sendo assim, o novo imperador Cláudio (41-55), reprimiu a guerra civil, e, atendendo a um pedido de
Agripa, seu amigo íntimo, devolveu todos os privilégios que os judeus
detinham desde Augusto, mas que tinham sido abolidos por Caligula. Josefo retrata Cláudio nas Antigüidades
como um herói, atribuindo a ele uma atitude extremamente positiva em relação aos
judeus. De fato, a decisão do imperador é a de enviar cartas a Alexandria e a todas as
outras cidades do Império, onde existissem comunidades judaicas, reafirmando os
direitos de culto separado dos judeus. O edito de Cláudio para Alexandria foi
convenientemente preservado por Josefo nas Antigüidades judaicas (XIX), assim Cláudio se dirige aos
judeus, advertindo-os no sentido de que, depois de terem garantidos os seus direitos, eles não abusem dessas
vantagens de modo a não ameaçar a ordem pública: Por outro lado, ordeno explicitamente que os judeus não
provoquem tumulto para obter mais privilégios do que possuíam antes e, no futuro, não enviem uma
delegação independente, como se vivessem em uma cidade à parte, [...] e não
abram caminho aos empurrões em jogos ginásticos ou superficiais, enquanto
gozam privilégios e partilham muitas vantagens em uma cidade que não é deles
[...].[H. Taylor, “Popular opposition to Caligula in Jewish Palestine” in: Journal for the Study of Judaism 32,
54-70.].
44
Stern, Menachem (1997). "Fiscus Judaicus". Encyclopedia Judaica (CD-ROM Edition Version 1.0). Ed.
Cecil Roth. Keter Publishing House
45
Radin, Max The Jews among the Greeks and Romans. (Philadelphia: Jewish Publication Society of
America, 1915), 333.
46
Feldman, Louis H. Jew and Gentile in the Ancient World: Attitudes and Interactions from Alexander to
Justinian. (Princeton: Princeton University Press, 1993), 100.
47
Cf. Bernard J. Bamberger, Proselitysm in the Talmudic Period, (Cincinnati, Ohio: Hebrew Union College
Press, 1939), 20-24.

51
política dos judeus na diáspora também se mantinha tensa devido às pressões da população
gentílica.
A história dos judeus em Roma é muito interessante. Havia uma colônia judaica em
Roma desde o segundo século a.C. Quando Pompeu capturou a Palestina para Roma em 62
a.C., ele retornou com muitos outros judeus que foram imediatamente colocados em
liberdade e aumentaram ainda mais a colônia judaica da capital. Sucessivamente os
imperadores Romanos até Cláudio salvaguardaram os direitos dos judeus e o número de
suas sinagogas floresceu acentuadamente.
Tácito, (56-120 dC) ficou alarmado como a cultura judaica estava penetrando na
sociedade romana, o que ele interpreta como tangível sinal de decadência do império (Hist.
V, II-XIII). Juvenal advertiu os romanos que, sem perceber, estavam se tornando judeus.
Eles começavam guardando o sábado e acabavam observando todas as doutrinas judaicas
(Sátiras XIV, 96-106).
As comunidades judaicas da diáspora eram muito organizadas e unidas. Eram como
uma cidade dentro da cidade (politeuma). Tinham costumes e leis próprias e até mesmo um
governante local. Filón menciona que havia cinco bairros em Alexandria e dois deles eram
judeus (Flac. 55).O mesmo autor diz ainda que em Roma havia uma grande comunidade
judaica que vivia à margem direita do Tibre, fora da cidade (Legat. 155). Não era incomum
um bairro judaico ter seu próprio comércio, açougue (para comida Kosher) e, de acordo
com a densidade da população, pelo menos uma sinagoga. A assembléia dos anciãos
fiscalizava o bom andamento de tudo.

Rupturas

Segundo uma proposta, o livro de Atos mostra uma seqüencia progressiva de


rupturas entre o cristianismo e o judaísmo que o antecedeu e originou.
Atos 2 a 4 – Origens: nasce a igreja com três mil batismos - os primeiros membros
eram exclusivamente judeus de nascimento, prosélitos e tementes. Esses primeiros
membros continuam a levar uma vida de judeus piedosos. Freqüentam a sinagoga, oram no
Templo (quando estão em Jerusalém e em direção a ele quando estão na diáspora),
possivelmente continuam cumprindo as leis cerimoniais e a circuncisão, exceto os judeus
“tementes”.
Atos 6 a 9 – Líderes judeus perseguem os judeus helenísticos seguidores de
Jesus: A comunidade original parece maiormente ou talvez exclusivamente composta de
judeus de cultura aramaica. Mas em pouco tempo após o pentecostes, judeus de cultura
grega se unem ao grupo. Uma primeira desavença surge no que seriam, talvez, os dois
primeiros segmentos do movimento. A instituição de diáconos vem atender à essa
divergência. Estevão, que era do grupo helenista (chefe dos sete diáconos), lança um
discurso duro contra o Templo e seu culto. Acusa a liderança de Jerusalém de ter
assassinado a Jesus de Nazaré. Para ele o evangelho é um judaísmo depurado (o que ainda
insere o movimento dentro das delimitações do judaísmo). Ele então é condenado ao
apedrejamento e os seguidores de Jesus que tinham linha helenista são, depois disso,
perseguidos e fogem de Jerusalém para Samaria, para a costa mediterrânea e para Antioquia
(Atos 9 e 11:19). Eles se tornam missionários junto aos judeus que habitam nessas
províncias. É provável que seguidores de Jesus de linha mais aramaica também tenham
abandonado Jerusalém por causa da perseguição iniciada em virtude dos helenistas, afinal
para os judeus contrários à pregação de Cristo, tal distinção não era nítida, qualquer
52
seguidor do nazareno era uma ameaça. Contudo, lembremos que os discípulos de linha
aramaica eram mais discretos em seu discurso que os helenistas e iam regularmente ao
templo para orar, o que diminuía mas não excluía de tudo a tensão com os judeus, a própria
permanência dos Doze em Jerusalém durante esse tempo indica a possibilidade de
tolerância com os não helenistas. Atos 8:1, confirma esse aspecto, embora não devamos
olvidar o teor hiperbólico do texto.
Atos 10 a 15 – Herodes e Cláudio perseguem e espalham ainda mais o
movimento. Com a primeira dispersão ocorrida devido ao martírio de Estevão, começa
lentamente a pregação do evangelho em direção aos gentios (Atos 11:1; 13:46-49; 18:6;
28:28). Felipe havia ido para Samaria e isso ocasionou que muitos ouviram sua pregação e
aceitaram a Palavra de Deus (Atos 8). Pedro e João, portanto, foram enviados de Jerusalém
para lá a fim de que tais crentes recebessem o Espírito Santo "pela imposição das mãos dos
apóstolos” (8:18). Um anjo manda então Filipe para o sul, para a estrada Jerusalém-Gaza,
onde encontra um eunuco da corte real da Etiópia, que, no seu carro, está lendo o livro de
Isaías. Filipe lhe esclarece o significado da profecia e o batiza. O evangelho alcança os
gentios. Mas é preciso entender quem seriam esses gentios. Não eram ainda os totalmente
“gregos”, mas judeus, considerados de “segunda categoria”. É Bom enfatizar que havia três
grupos dentro do judaísmo:
• 1) judeu de nascimento
• 2) o prosélito (gêr- estrangeiro no VT, mas “convertido”, na Mishná distinto do goy;
gêr tsedeq/prosélutos dikaios [diferente do “prosélito do portão”], ou prosélito sem
adjetivo –semântica Deut. 5:14) Veja Atos 2:11
• 3) o “temente” (gêr toshav - sebomenos/phoboumenos) -adora ao Deus único sem
necessariamente tornar-se em todos os sentidos um judeu (meio-convertido) (Atos
18:7, Atos 13:43 aparece os três. Na sinagoga, Paulo distingue entre judeus e
tementes Atos 13:16, 26. Lucas 23:40 “não temes a Deus?” [i.e. não te arrependes?]
Apoc. 14:7 “temei a Deus” [i.e arrependei-vos]. Josefo menciona os tementes a
Deus, distinguindo-os dos demais judeus [Ant. XIV, 110]. Juvenal fala dos
“tementes do sábado” [Sat. XIV, 96]. A presença dos tementes e prosélitos justos é
vista nas inscrições de doações a sinagogas [Lucas 7:5]).
• Tício Justo – temente a Deus e que morava do lado da sinagoga (Atos 18:7)
• Cornélio e toda a sua família: “piedosos e tementes a Deus” (Atos10:2,3 e 30) – ele
observava o horário de oração dos judeus
• Sérgio Paulo dialogava com um profeta judeu e estava ansioso para aprender mais
(At 13:6-12)
• Lídia – mulher temente a Deus (Atos 16:14)
A estes acrescente-se o título “am-ha-arez”, ou o “povo da terra”. Trata-se de uma
alcunha dada a todo judeu (prosélito, temente ou de nascimento) que pertencia mais ao
“povão” e não seguia tão minuciosamente as prescrições farisaicas. É até possível que
houvesse neste meio, pessoas judias de nascimento (ou filhos de mães judias, o que
conferia status de “filho de Abraão por nascimento) e que não eram circuncidados. O caso
de Timóteo é um exemplo clássico48. Veja Atos 16:1-3.
Todo o judeu, ainda que não fosse versado nas leis, sabia que a Galiléia era
conhecida como "o círculo dos incrédulos". Era a província onde sempre predominou a

48
Um ótimo capítulo sobre os am-ha-arez, pode ser encontrado em Calvin J. Roetzel, The World that Shaped
the New Testament, (Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press, 2007), 59 e 60.

53
maior mistura de raças (por isso Mateus a chama “Galiléia dos gentios”. Quem eram, na
sua maioria, os habitantes da Galileia? Eram os chamados "am-ha-arez". Mas quem eram
os "am-ha-arez"? A palavra significa "o povo da terra". Ao longo dos anos a variedade de
grupos humanos que habitaram esta parte da Palestina foi grande. Para os definirmos
historicamente teríamos de voltar aos tempos de Abraão e fazê-los passar pela ausência dos
judeus na Babilônia, altura em que as terras da Palestina foram ocupadas por povos
diversificados: samaritanos, arameus, filisteus e mesopotâmios. Os judeus conhecedores da
história, rabinos e doutores da Lei, sacerdotes e demais do tempo de Jesus ainda mantinham
na memória e no sentimento a usurpação das terras por parte de todos estes grupos. Esses
que permaneciam na Galileia no tempo de Jesus eram os "am-ha-arez" da História. O
conceito atribuído aos "am-ha-arez" era fortemente negativo por parte dos fariseus e demais
grupos religiosos, políticos e sociais. Ora Jesus foi inclusivamente considerado pelos
principais dos sacerdotes e fariseus um "am-ha-arez" conforme as palavras de João 7.49-52.
De acordo com eles, jamais Deus usaria notoriamente um "am-ha-arez" - "Examina e verás
que da Galileia não se levanta profeta".
A primeira perseguição, como vimos, atingiu os cristãos-judeus helenísticos. Mas a
segunda atingiu um dos principais discípulos de Jesus: Tiago, irmão de João, filho de
Zebedeu. Quem a instigou foi Herodes Agripa I. Ele era o neto de Herodes, o grande.
Quando Herodes, o grande morreu, seu reino ficou dividido entre seus três filhos: Herodes
Filipe, Herodes Antipas e Arquelau. Herdando o “dom de adulação política” de seu avô,
Agripa I, viveu toda a juventude na corte romana da capital. Ali pôde fazer interessantes
amizades com membros da família imperial, como Caligula. Como resultado, assim que
assumiu o poder, Calígula o favoreceu. Depois dele, seu Tio Cláudio, também favoreceu
Herodes Agripa, dando-lhe de volta o governo da Judéia.
Assim que assumiu o poder em 41, ele procurou o favor da liderança judaica,
fingindo um conservadorismo que não possuía. Para demonstrar devoção ao Templo,
oficializou a perseguição aos cristãos (entendendo todos como helenistas) mas acabou
morrendo em 44. Com essa perseguição também pretendia ter os bons olhos de Roma que o
viam “colocando ordem na casa”, tirando do caminho os “judeus problemáticos”. Pedro
teve de fugir de Jerusalém para não ser morto por ele. Depois dele, em 49 AD Cláudio
expulsou os judeus de Roma, segundo o relato de Suetônio, “por causa da instigação de
Chréstos” que muitos pensam ser uma referência aos judeus cristãos que ali havia.
Atos 16 a 28 – Ministério de Paulo - Com a segunda e terceira viagens
missionárias feitas por Paulo, o evangelho vai cada vez estreitando mais os laços de
conversão entre os gentios sem nenhum contato com o judaísmo, mas esse ainda é um
processo lento, bastante lento.

Dois acontecimentos decisivos.

a) A perseguição de Nero em 64 d.C. – que segundo a tradição deu fim à vida de


Paulo e Pedro, iniciando um obscuro período da história do cristianismo. Nero,
depois do grande incêndio provocado por ele mesmo, iniciou uma perseguição
oficial aos cristãos para desviar os rumores que o apontavam como culpado.
Inúmeros morreram mártires.
Cornélio Tácito foi um historiador romano que viveu em c.55-117 d.C.. Ele
escreveu de "Cristo" em seus ANAIS Livro XV, Capítulo 44:
54
"Nero procurava por um bode expiatório e infligiu as torturas mais diabólicas a
um grupo de pessoas odiado por todos por seus crimes. Esta era a seita
conhecida como cristãos. Seu fundador, um certo Cristo, foi executado pelo
procurador Pôncio Pilatos no reino de Tibério. Isto suprimiu a superstição
abominável por um tempo, mas voltou e expandiu, não só pela Judéia, onde se
originou, mas inclusive até Roma, o grande depósito e terra coletiva de todo tipo
de depravação e sociedade. Aqueles que confessaram ser cristãos foram presos
em seguida, mas por seu testemunho grande número de pessoas foi convertida,
não tanto pela acusação de incêndio, mas pelo ódio da raça humana inteira."
b) A destruição de Jerusalém em 70 d.C. – que assinala mais uma ruptura na vida
da igreja primitiva. Os Judeus, impossibilitados de morar em Jerusalém, se
reorganizam em Jamnia (sul da atual Tel Aviv) e sistematizam como nunca
dantes sua oposição ao cristianismo. A igreja começa lentamente a perder suas
raízes judaicas.
Durante um período curto inicial, um grupo tentou implementar, sem sucesso um
centro missionário em Nazaré. Mas o centro da Igreja permaneceu sendo Jerusalém, até que
com a primeira perseguição, muitos migraram para Antioquia que se tornou o novo centro,
no obscuro período de 70-100 parece que Roma, Pela, Éfeso e Alexandria (nesta ordem)
tornaram-se então os centros principais de expansão cristã.

Período de 70 a 100 d.C., a era do silêncio

A última parte da era apostólica permanece até hoje como uma dos mais obscuros
períodos da história do cristianismo. Segundo uma cronologia mais conservadora (concorde
com o pensamento adventista), todos os livros do Novo Testamento, salvo o corpus
joaninum (95-98 d.C.), já haviam sido concluídos antes da destruição de Jerusalém no ano
70 d.C.. Em conseqüência disto há pouquíssima informação provida pelas Escrituras quanto
ao que teria ocorrido ao movimento cristão durante este período. Mesmo as informações
extra-bíblicas são esparsas e a maioria tardias. Contudo, esse é um período importante para
a história da Igreja pois é um tempo de transição. Foi durante esse período que surgiu a
segunda geração de cristãos com características bem distintas daquela que conheceu
pessoalmente o Mestre ou algum de seus discípulos. Aqui começaram também a surgir as
primeiras cisões - após o debate da circuncisão - dentro um cristianismo mais organizado,
amadurecido teologicamente e em forte necessidade de construir sua identidade no meio do
mundo Greco-romano. Aqueles anos, portanto, são a transição para o período pós-
apostólico inaugurado com a morte de João, período no qual a igreja enfrentaria problemas
novos bem distintos daqueles enfrentados por Pedro e Paulo.
Um testemunho interessante de como seria o cristianismo no final do primeiro
século e inicio do segundo vem do escritor romano Plínio, o moço que não era seguidor de
Jesus de Nazaré e, pelo que sabemos, nunca se tornou.
Ele havia se tornado governador da Bitínia na Ásia Menor, em aproximadamente
112 d.C., quando escreve uma carta ao imperador Trajano, nas Epístolas X.96, sobre a
dedicação dos cristãos que ele estava perseguindo. Ele exigia, para poupar o membro da

55
igreja e sua família de serem mortos que eles negassem a Cristo, mas dificilmente
conseguia sucesso nesta exigência. Nas suas palavras...
" ...amaldiçoado a Cristo, coisa que um cristão genuíno não pode fazer." Na mesma
carta ele descreve os julgamentos dos cristãos que haviam sido presos:
"Eles afirmaram, no entanto, que toda sua culpa, todo seu erro, era que tinham o
hábito de se reunirem num dia fixo antes da manhã, para cantar versos alternados em hino a
Cristo como um deus e fazem um juramento solene, não de fazer o mal, mas nunca cometer
qualquer fraude, roubo, adultério, nunca mentir, não negarem a verdade quando forem
chamados a entregá-la. Após fazerem isto, despedem-se para então se reunirem novamente
para comer."
Não temos claro qual era esse “dia fixo”, é provável que seja o sábado e que a
reunião noturna ou de madrugada seja para não serem confundidos com os judeus. Mas é
importante ver que o culto era “a Cristo” o que ressalta o amadurecimento doutrinário
quanto à divindade do Filho de Deus.
Uma admissão interessante nos vem do escritor anglicano C. F. D. Moule, que
aludindo aos cristãos que viviam no I século diz: “Os primeiros cristãos, pelo menos na sua
maioria, devem ter feito observância do sábado, meso que o dia seguinte da semana
(domingo) tenha vindo, finalmente, a ocupar uma posição dominante como o dia da
ressurreição”49.

49
C. F. D. Moule, The Birth of the New Testament (Londres: Adam & Charles Black, Ltd., 1966), 30.

56
Ebook 4 -

Filosofia e ética cristã na atualidade

Em seu livro a República, Platão esboça alguns interessantes conceitos sobre o que
é educação e aprendizado. É lógico que muitas de suas diretrizes não condizem com o que
poderíamos chamar de “filosofia cristã”. Contudo, há alguns elementos do pensamento
platônico que são harmônicos com a cosmovisão do cristianismo. Um deles é o conceito de
que o auto-conhecimento é um dos mais importantes passos na aquisição de uma cultura
acadêmica verdadeiramente eficaz50.
Assim, adaptando Platão à nossa realidade, podemos dizer que nenhum aluno
universitário deveria sair da faculdade sem saber qual o seu próprio perfil psicológico e da
sociedade para a qual ele vai trabalhar. Um descaso para com este detalhe pode levar ao
fracasso o mais bem planejado programa profissional, pois os tempos e as pessoas mudam,
de modo que algo que fez sucesso anos atrás pode não trazer nenhum benefício para nossos
dias. Talvez não seria errado aplicar aqui a mesma advertência dada por Cristo aos fariseus
“...Hipócritas, sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu e, entretanto, não sabeis
discernir esta época?” Lc 12.54-56
Neste exercício de avaliação da pós modernidade, lembre-se que você mesmo será
auto-analisado. Afinal, você mesmo pertence a ela.
Mas o que é pós-modernidade? Em síntese, é o chamado questionamento da idade
moderna, ou seja, o tempo em que vivemos. Um período louco, cercado de crises
existenciais e que ilustra a própria fragilidade dos homens que, mesmo sem o admitir, estão
sedentos da graça de Deus.
Um esclarecimento se faz necessário: definir quando exatamente começou a pós-
modernidade não é tarefa fácil, alguns historiadores dizem que ela começou com a queda
do muro de Berlim, outros com o período pós guerra que se seguiu na segunda metade dos
anos 40, no terreno da arquitetura a pós modernidade começa com as novas construções
futuristas (americanas) a partir de 1910. Há também os que advogam os anos 70 com o fim
do movimento cultural dos anos 60 e o apogeu do capitalismo que aí se seguiu. Neste curso
não estabeleceremos um episódio único para o início da pós modernidade, mas
apresentaremos vários acontecimentos do século XX que a construíram progressivamente51.
50
Levando-se em consideração, é claro, que na perspectiva cristã esse auto-conhecimento é sempre
subseqüente e independente ou nunca antecedente ao conhecimento de Deus.
51
Para uma bibliografia em língua portuguesa sobre a pós modernidade veja:
BUARQUE, Cristóvam et alli. Fé, Política e Cultura- Desafios Atuais. S. Paulo: Edições Paulinas, 1992
CAPRA. Fritjof. O Ponto de Mutação. S. Paulo: Cultrix Editora, 1988
ECO, Umberto, A Ilha do Dia Anterior. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Record
FAUS, José Ignacio. Desafio da Pós-Modernidade. S. Paulo: Paulus, 1995
FORD, Kevin Graham. Jesus Para Uma Nova Geração. S. Paulo: Candeia, 1998
GALBRAITH, John Kenneth. Anatomia do Poder. S. Paulo: Pioneira Editora, 1988
GASTALDI, Ítalo. Educar e Evangelizar na Pós-Modernidade. S. Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1994
GONDIM, Ricardo. Fim de Milênio: Os Perigos e Desafios da Pós-Modernidade na Igreja. S. Paulo: Abba
Press, 1996
GRENZ, Stanley. Pós-Modernismo. S. Paulo: Edições Vida Nova, 1997
KILPATRICK, Educação Para Uma Civilização em Mudança. 15ª ed. Rio de Janeiro: Edições
Melhoramentos, 1978

57
Uma Nova Divisão para a História
Qualquer um que já estudou História no período no período escolar está
familiarizado com a clássica divisão do tempo em Idade Antiga, Média, Moderna e
Contemporânea. Há até quem sugira uma última denominada Idade Espacial ou Idade
Atômica entendendo que desde a pisada do homem na lua nossa geração já efetivou há anos
sua saída do Período Contemporâneo. Mas, deixando aos historiadores a discussão deste
pormenor, nossa intenção aqui é apresentar outra maneira mais filosófica de divisão da
história. Voltada para o comportamento mais ou menos geral da raça humana, esta proposta
vê três momentos distintos da história, especialmente voltados à história do mundo
ocidental:

1 – Pré-Modernidade (das origens do cristianismo até à Idade Moderna)

As características básicas deste longo período são as seguintes:


 Teocentrismo ou Visão centrada na divindade. Em todas as antigas culturas
descobertas nos sítios arqueológicos, via de regra, o culto a algum deus (ou deuses) era o
centro motivador de toda a existência. O governante geralmente acumulava os ofícios de rei
e sacerdote, ou, quanto não, tinha seu direito real garantido por alguma crença de que os
deuses o queriam no trono. Em todas as teogonias encontradas, ou seja, em todos os relatos
sobre a origem do mundo, o elemento religioso sempre é solicitado para explicar aos
homens como tudo veio à existência. Guerras envolvendo deuses e titãs, espíritos
controladores da vida, crença num mundo porvir eram a marca registrada de qualquer
civilização dotada de maior ou menor avanço territorial. Na Idade Média esse mesmo
sistema predominava sob a égide da Mitra e da Espada (a Igreja e o Estado).
 homem como fantoche de Deus. Na busca pelo agente da história, a
divindade comandava todos os acontecimentos quer bons, quer ruins. Os homens se
limitavam ao papel de intermédios ou servos agindo sob o comando de determinado divino,
não havia, na prática uma sistematização concreta de livre-arbítrio.
 Excesso de lendas e mitos populares. Já desde a mitologia grega até às
crendices da Idade Média, o povo vivia sob a tutela do medo guiado pela poderosa mão das
ficções sem sentido. A obediência não vinha pelo amor, mas pelo medo do castigo divino
que viria na forma de uma praga ou na própria quentura do fogo infernal. Isto, é evidente,
trazia um certo desprezo pela vida material de forma que temáticas puramente sociológicas
e terrenas eram poucas e quase inexpressivas em face à cumulativa ênfase ao mundo
espiritual.
 Este estado de coisas durou até às derradeiras Cruzadas no século XV
quando, saturado da opressão religiosa católica, o mundo ocidental rompeu com a Igreja
inaugurando um novo tempo de características diferentes do que até aqui se viu.

2 – A Modernidade (do século XIV até ao século XX)52


É evidente que os acontecimentos foram lentos e cumulativos como é próprio de
toda mudança histórica. Não houve uma data fixa em que a humanidade adormeceu pré
LYON, David. Pós-Modernidade. S. Paulo: Paulus, 1994
SANTOS, Jair Ferreira. O Que é Pós-Moderno. S. Paulo: Editora Brasiliense, 17ª ed. 1997
52
Alguns autores entendem que a modernidade começou e terminou no século XX. Entre os anos 60 e 80. É
que eles desassociam a modernidade da Idade Moderna. Nossa abordagem, portanto, será um pouco diferente.

58
moderna e acordou numa fase inteiramente nova de sua existência. Aliás, nem podemos
dizer que a entrada da modernidade foi o completo e total desvínculo o do que até então se
viu. A religião, por exemplo, apesar de todo o questionamento enfrentado, continuará
existindo na era Iluminista com muita força e ação nas atitudes sociais. Neste sentido,
podemos dizer que a modernidade foi uma espécie de rebeldia questionadora do mundo
ocidental em relação à vida que até ali todos viveram.
Usando uma analogia do Iluminismo inglês, poderíamos neste tempo dizer que a
história do mundo seria como a de uma criança cuja mãe dizia sempre: “Não abra o armário
de doces da cozinha. Há um enorme tigre lá dentro e ele vai devorar você caso desobedeça
minha regra.” Essa mãe representa a Igreja com seus muitos mitos religiosos. A criança é
símbolo da humanidade. Durante muito tempo todos nos convencemos do que mamãe
dizia. Mas, enquanto criança, a humanidade cresceu. Tornou-se adulta e criou coragem para
abrir o armário de doces. Não havia tigre nenhum. E para agravar a situação, descobriu que
os doces eram deliciosos – “Mamãe Igreja mentiu para nós, não podemos mais acreditar
nela”.
No comentário de Rubem Alves: “Houve tempo em que os descrentes eram raros.
Tão raros que eles mesmos se espantavam com sua descrença e a escondiam, como se ela
fosse uma peste contagiosa ... Mas alguma coisa ocorreu. O céu, morada de Deus e seus
santos, ficou de repente vazio. Virgens não mais apareceram em grutas. A ciência e a
tecnologia avançaram triunfalmente, construindo um mundo em que Deus não era
necessário.”53

Como características desse período podemos alistar as seguintes noções:


 Antropocentrismo ou visão centrada na humanidade. Se Deus era o centro
do pensamento, agora o homem ocupou ideologicamente esse lugar. Nasce a sociologia
propondo utopias e sociedades ideais sem a necessária presença do divino. Some do
horizonte a confiança no mundo porvir e as perspectivas humanas são vinculadas a esta
vida. Novas cosmogonias são propostas banindo da história das origens a ação afetiva de
um criador. Teorias como a explosão cósmica de Oparim e o Evolucionismo de Darwin
parecem dar mais conta da realidade que relatos religiosos como o descrito no livro de
Gênesis. O homem não precisa mais da fé, descobriu a razão escondida há séculos no
armário de doces e ela é o suficiente para torná-lo plenamente feliz.
 Extraordinário avanço científico e tecnológico. Até meados do século XV, o
mundo praticamente desconheceu qualquer evolução técnica que pudesse ser acentuada. O
progresso se resumia em pequenos aperfeiçoamentos bélicos de modo que, desde os tempos
antes de Cristo, podemos fazer de armas da idade do bronze, do ferro etc. Fora isto, o
modelo de catapulta usado pelos romanos para destruir Jerusalém no ano 70 AD ainda era
a tecnologia de ponta dos soldados templários na luta com os mouros no século XIII.
Agora, porém, como que compensando o atraso milenar, a ciência e os maquinários
tomaram conta da ordem do dia trazendo sucessivas surpresas que o mundo mal podia
assimilar. Primeiro veio a pólvora, depois a imprensa. Surgem a bússola, as caravelas e a
descoberta de novas terras. Mais tarde a medicina começa seus experimentos com base no
modelo de Francis Bacon e finalmente explodem a Revolução Industrial e a Revolução
Francesa. O homem era o dono da situação. Não precisava mais da ideia de Deus.
53
Alves, R., O Que é Religião, Rio de Janeiro: Editora Brasiliense, 1981, p. 7.

59
Surgimento da Revolução Industrial, do Capitalismo e do Neoliberalismo – Antes da
Revolução Industrial tudo era artesanalmente manufaturado. Ela começou na Grã-Bretanha
em meados do século XVIII e espandiu-se pelo mundo a partir do século XIX. Foi um
grande impacto no processo produtivo principalmente com a chegada dos motores
automotivos (em princípio a vapor). Esse processo superou a era agrícola, o trabalho braçal.
Criou uma nova relação entre capital e trabalho (daí o capitalismo), proporcionou o
acumulo de capital na mão de pessoas civis (que originaram as pessoas jurídicas) e impôs
novas relações entre os países surgindo, entre outras coisas, a cultura de massas, o
capitalismo e o neoliberalismo. Mas atenção: “Neoliberalismo é um termo que foi usado
em duas épocas diferentes com dois significados semelhantes, porém distintos: na primeira
metade do século XX significou a doutrina proposta por economistas franceses, alemães e
norte-americanos voltada para a adaptação dos princípios do liberalismo clássico54 às
exigências de um Estado regulador e assistencialista; a partir da década de 1970, passou a
significar a doutrina econômica que defende a absoluta liberdade de mercado e uma
restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta ocorrer em setores
imprescindíveis e ainda assim num grau mínimo (minarquia). É nesse segundo sentido que
o termo é mais usado hoje em dia.”55
Todo este quadro, é evidente, suscitará a médio prazo um clima de euforia e
otimismo. Pretendeu-se a descoberta de que o demônio não existe e Deus não sabe. Não há
juízo final, nem castigo para os questionamentos da religião. O que antes era reputado por
bruxaria verificou-se chamar “ciência” e esta podia salvar mais almas que os nulos
sacramentos da Igreja. Kepler, Da Vinci, Copérnico e outros silenciados da história, foram
de certo modo vingados com a queda da teologia oficial. Mas, como era de se esperar, esse
entusiasmo também durará pouco tempo e aí chegaremos às formas de nossa própria
geração.
3 – A Pós-Modernidade (século XX até por volta dos anos 90)
Alguns acham que houve a pós modernidade, outros negam e outros ainda preferem
dar-lhe outros nomes como “modernidade moderna” (Vaz56) ou “modernidade líquida”
(Bauman57).
Por volta de sua morte em 1900, F. Nietzsche deixou ao mundo um legado de obras
filosóficas que muito influenciaram o materialismo ocidental. Dentre suas afirmações está a
máxima ateísta que proclama enfaticamente: “Deus morreu!” ("Gott ist tot" ) Ele não
conheceu propriamente o termo modernidade.ç Contudo não podemos negar o fato de que
foi Nietzsche, em termos abrangentes, quem iniciou o movimento de fustigação dos ideais
modernos. Com ele começa a era da paixão moderna. Os seus defensores ou os seus
detratores, via de regra, se posicionavam frente a aceitação ou a recusa da modernidade.
Nietzsche já não estava presente quando efetivamente começam as mais profundas
transformações de época, da cultura aos artefatos tecnológicos, da política a guerra e ao
terrorismo, da arte clássica a anti-arte ou a arte pela arte, do local ao global, da objetividade

54
O Liberalismo clássico fundamenta-se no humanismo e começa por um questionamento à Igreja. Defendia a
maximização dos direitos individuais mediante o exercício dos direitos da lei.
55
Trecho baseado em http://pt.wikipedia.org/wiki/Neoliberalismo#_note-DEF.
56
H. de LIMA VAZ, Religião e modernidade filosófica, In M.C.BINGEMER (org) O impacto da
modernidade sobre a religião, Col. Seminários Especiais - Centro João XXIII, São Paulo, Loyola, 1992, pg
105.
57
Bauman, Zygmunt. Modernidade Líquida,. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

60
ao ficcional e ao virtual, mas seus dizeres foram de certo modo prognósticos dos novos
tempos.
Seu anúncio filosófico pode ser entendido a partir da produção de três das suas
principais obras: “A Gaia Ciência” — ou Alegre Sabedoria, ou Ciência Gaiata — (Die
fröhliche Wissenschaft, 1882)”Assim disse Zaratustra, um livro para todos e para ninguém”
(Also Sprach Zarathustra, Ein Buch für Alle und Keinen, 1883-85) e “O Anticristo” (Der
Antichrist.1888). No Anticristo ele critica o cristianismo dizendo que o único cristão
verdadeiro morreu na cruz, critica Paulo, Lutero todos. Para ele foram os teólogos e a Igreja
que acabaram com o cristianismo transformando Jesus num Juiz ou divisor ético. No
Zarastutra ele cria um romance com episódios soltos imitando o criador do zoroastrismo,
Também critica o cristianismo e menciona o surgimento do Übermensch (o ultra homem
ou o super homem). Esse super homem surge da morte de Deus (mencionada pela primeira
vez no Gaia e depois no Zarastutra).
O Super-homem foi contrastado com a ideía de o "último homem", que é antitese
do Ubermensch. O Zarathustra declarou que havia muitos exemplos de últimos homens e
atribuiu à civilização de seu tempo a tarefa de preparar o venue do Übermensch.
Como o homem se torna super-homem?
1 - Através da sede de poder, manifestado destrutivamente pela rejeição, rebeldia e
rebelião contra velhos ideais e códigos morais;
2 - Através da sede de poder, manifestado criativamente em superar o nihilismo e em
reavaliar ideais velhos ou em criar novos.
3 de um processo continuo de superação.
A motivação de Nietzsche ao dizer que Deus está morto e o desejo pela destruição
da consciência cristã, ou seja da maneira centrada em Deus de pensar. Seus símbolos para
isto são a chama e o trovão. Somente rompendo com as normas idealistas um homem pode
tornar-se um Super-Homem (Übermensch). O ponto de partida para a destruição é o próprio
homem e, em especial a igreja (seu túmulo) que é, de acordo com Nietzsche, o oposto exato
do que Jesus pregou. A razão para isto seria um processo iniciado pelo apóstolo Paulo, que
causou um transfiguração dos ensinamentos de Jesus, tornando-os uma doutrina de
recompensa e castigo. Apesar disto não desaprovar a existência de Deus, essa linha de
pensamento nihilista mostra que a crença em Deus é contrária aos valores de realidade e de
vida, pois para Nietzsche, a existência não tem qualquer significado metafísico. Mas que
fique claro: se você é um super-homem, não precisa de Deus!
Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como
haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até
agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas.
Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de
desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste acto não
será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para
parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu acto mais grandioso, e, quem quer que
nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste acto, de uma história superior a
toda a história até hoje! — NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência, §125.
O século XX em seus 45 primeiros anos foi influenciado pela ideologia do
Übermensch de Nietzsche.
Na verdade, aquele que deseja resgatar algo da filosofia nietzscheriana sem perder
suas próprias convicções religiosas, pode entender que a ideia da morte de Deus possa ser
um modo próprio de se falar dos questionamentos modernos usando o recurso da analogia.
61
Quando o ocidente racionalista rompeu com suas raízes religiosas é como se Deus morresse
para a humanidade (pelo menos para o pensamento desses novos idealistas). Este, aliás, foi
um dos entendimentos propostos pelo fracassado “movimento da morte de Deus”
apresentado por teólogos imaturos dos anos 60.
Ocorre, porém, que com a morte da ideia de Deus, morreram juntos a ideia de
família, moral, esperança e outros elementos vitais para o bom funcionamento da sociedade
humana. Contudo, a euforia inicial da Idade das Luzes não permitiu que o homem, notasse
isso. Ele julgava ter o mundo e a história sob as rédeas de suas próprias mãos. Não havia o
que temer. Foi somente mais tarde que ele apercebeu-se dos estragos advindos junto à
modernidade ateísta. Ele não detinha o controle da situação.
De modo mais concreto, o otimismo moderno foi abalado com a erupção da I e II
Guerras Mundiais e por isso alguns autores colocam aqui o início da pós-modernidade. A
destruição de Nagazaki e Yroshima, seguida da constante ameaça nuclear fez a humanidade
mergulhar num clima de perplexidade e angústia. Voltar para os irracionais porões da pré-
modernidade era algo inimaginável. A ditadura medieval deixara seqüelas indeléveis na
racionalidade humana e não queremos mais submeter-nos a ela. Por outro lado, no entanto,
já não possuíamos em tamanha quantia aquele mesmo entusiasmo moderno adquirido pela
liberdade de expressão e o conforto da tecnologia. Na verdade, não sabemos o que fazer.
Desta feita, alguns entendem que o tempo em que agora vivemos deveria ser
chamado de pós-modernidade. Não, porém, significando o fim da era das luzes, mas
admitindo que, como ocorreu com o pré-modernismo, esta também está passando por um
sério questionamento que pode levar-nos rapidamente a um rompimento com o
racionalismo radical. Eis as características deste tempo:
 Individualismo misturado com nihilismo ou o “nada” como centro de todas
as coisas. Hoje há uma exacerbação do indivíduo quase em detrimento à maioria. Na
filosofia trabalhista de muitos sindicatos, o único meio eficaz de pressionar o governo é por
meio da greve. Não se cogita em sua pauta o prejuízo que sua paralisação poderá causar a
certa fatia populacional. Desde que consigam tirar do governo sua reivindicação, pouco
importa que outros cidadãos sejam prejudicados, seus interesses devem estar em primeiro
lugar. As justificativas para determinadas ações 62reenc-se em leis próprias onde cada um
deve ser o juiz de si mesmo até em questões que firam a liberdade alheia. Todos os atos
viram um fim em si mesmos e aumenta o desespero de se aproveitar bem este presente
momento, pois no fim não se espera nada a não ser o silencioso vazio da inexistência.
 Rebeldia contra todo e qualquer sistema organizado. No início da
modernidade, propôs-se uma troca de fidelidade organizacional. Enquanto servos de um
sistema eclesiástico, os homens se sentiam escravos irracionais. Agora, fiéis a um sistema
organizacional eles seriam finalmente livres. Inflamado neste ideal moderno, aumentou-se
o número de rebeldes e revolucionários que davam livremente suas vidas em prol de um
novo sistema. Rebeldes como Che Guevara, Robespierre ou os líderes bolchevistas são
apenas parcos exemplos de uma considerável lista que podíamos apresentar. Mas, na pós-
modernidade as coisas mudaram. Hoje parece prevalecer a máxima 62reenche “si hay
gobierno yo soy contra”. Enquanto oposição, qualquer um consegue facilmente aliados.
Mas basta-lhe subir ao poder e será tão questionado como aquele ao qual anteriormente se
opôs.
 Um momento de incertezas. Se o fideísmo foi a predominância do pensamento pré-
moderno e o ateísmo seu sucessor na modernidade; o agnosticismo pode ser considerado a

62
mais atual forma de raciocínio pós-moderno. As pessoas em geral não afirmam com muita
certeza se podem ou não acreditar em certo conjunto de ensinamentos, suas dúvidas o
colocam em choque com todos os movimentos quer sejam seculares ou religiosos. Mesmo
as mais fortes demonstrações de fé nalgum movimento místico ou político revelam-se em
pouco tempo a natureza de um modismo que logo passa sem deixar profundas raízes.
Gnomos, duendes e outros elementos da Nova Era são mais propriamente produtos de
marketing televisivo que a profunda crença de alguém que se tornou adepto de certo
movimento. Tão logo passe a febre consumista daquele produto, estarão prontamente
dispostos a troca-lo por outro qualquer que seja mais atualizado que o anterior.
Então a história não possuí mais sentido? Muitos historiadores pós-modernos pensam o
contrário: a história, agora, possuí muitos sentidos. Muitos historiadores julgam que não
necessitamos de novos paradigmas, não precisamos achar um logo, para podermos sair da
crise. Carlos Barros considera essa posição conservadora, pois perpetua somente o presente.
Hayden White nos diz que a vida "será mais bem vivida se não tiver um sentido único, mas
muitos sentidos diferentes. (...) precisamos de uma história que nos eduque para a
descontinuidade de um modo como nunca se fez antes; pois a descontinuidade, a ruptura e
o caos são o nosso destino."58
Interessante essa reflexão:
Se o homem moderno colocava a razão e a ciência à cima de tudo e todos (inclusive de
Deus) e se o ser humano moderno estava engajado na política, admirava e criava arte
inédita e diferenciada de todas as outras já criadas, o homem pós-modernos nega tudo
isso, se entrega inteiramente ao prazer e ao hoje, ao momento, não tem a preocupação de
buscar algo que não seja o consumo, o bem de consumo, diria até de maneira metafórica
que o homem pós-moderno é agnóstico e anarquista no que se refere às artes, história,
religião, ciência, política, social, etc. Só dando importância ao econômico, pois sem o
econômico fica impossível adquirir o ultimo lançamento tecnológico. Na arte nada mais
faz que repetir e dar outra cara as obras já existentes. O homem pós-moderno caminha
para ser só um fantoche da tecnologia, um boneco da tecnociência, quando falo que o
homem moderno caminha, quero dizer que literalmente ele caminha em escadas
rolantes, sem esforço algum para compreender o que se passa em sua volta. Corre em
bicicletas ergométricas e caminham em esteiras que não os vela a lugar algum.
Caminham para onde a imagem fala mais forte que o próprio objeto, onde a ficção tem
mais valor que a realidade, fabricando assim uma hiper-realidade virtual para si, dentro
de seus apartamentos luxuosos, de seus carros blindados, cheio de travas elétricas, freios
ABS, air bags, câmbio automático, ar condicionado, trava elétrica e mais uma infinidade
de recursos ao seu alcance. O homem pós-modernidade acha muito mais interessante o
fetiche da realidade virtual em 3D, pois a realidade é muito dura e sem cor. Caminha
para um patamar onde o irreal se torna mais real que a própria realidade. Criou-se uma
ponte tecnológica entre nós e o mundo que habitamos, sempre estamos atravessando essa
ponte, às vezes percebemos que estamos à atravessa-la, as vezes nem nos damos conta
disso. Uma grande característica da pós-modernidade é a mídia de informação, com as
informações nos bombardeando a cada segundo, ficamos com fadiga em procurar o fato,
em pesquisar mais a fundo a história e nos acostumamos em absorver os dados
transmitidos. Se a sociedade moderna produzia questionamentos à pós-moderna
reproduz informação, enquanto a sociedade industrial produzia bens (duráveis), a

58
WHITE, Hayden. The burden of History, History and Theory. 1966, p.56.

63
sociedade pós-industrial consome serviços, tais como: ticket de metrô, cartões de credito,
delivers, etc.
Em certas ocasiões nem somos tão modernos assim, seja a questão familiar, estética,
religiosa, comportamental e filosófica, algumas vezes por dia nos apropriamos ainda de
valores pré-históricos, medievais ou modernos, então que pós modernidade é essa que
estamos vivenciando? 59
Outras Características Gerais da Pós-Modernidade
Verifica-se atualmente uma excessiva pluralidade de produtos da mais variada
ordem. Desde a marca de cerveja até mercado de trabalho, podemos observar um quase
infinito número de opções tanto de um mesmo produto, quanto de produtos diferentes.
Marcas e modelos são prodigamente distribuídos no mercado ao bel prazer da intuição
criadora de seus promotores. Como resultado disso, sentimo-nos sufocados pela própria
liberdade de escolha, pois raras vezes nos sentimos seguros quanto à escolha do produto
certo. “É esta a religião verdadeira?” “Estou pagando a melhor escola” “Votei no partido
certo?” – são dúvidas que perfazem o raciocínio geral de nosso cotidiano.
Acompanhando a pluralidade de opções está a febre do consumismo, onde o mundo,
qual vitrine global, se torna um tentador mercado de promoções intimando-nos
continuamente a adquirir seus produtos.
Junto às embalagens e etiquetas promocionais surge o fenômeno da
“descartabilidade”. Não há mais a extensa procura pela duralibidade, mas sim pela
atualidade. Ninguém quer um produto semi-novo, mas que esteja fora do modelo atual.
Carros, programas de Computador, designs diversos são produtos marcados por uma vida
curta e efêmera que chega ao absurdo de se tornar obsoleto antes mesmo de sair da
prateleira de vendas.
A transitoriedade dos produtos também espelha a transitoriedade das relações
humanas, dos vínculos empregatícios das filiações religiosas. Esta realidade estimula ainda
mais a competição por espaço, levando a sociedade à servidão de um imperialismo
mercadológico.
Nas relações humanas, propriamente dito, a competição atrai certo isolamento social
onde o homem mergulha-se no seu próprio eu e, essencialmente carente de relação, ele
substitui o companheiro por uma máquina. Desta feita, será comum vê-lo se comunicando
mais com um computador do que com outro ser humano que lhe seja idôneo.
Na família, desfaz-se o quadro tradicional do pai, mãe e irmãos. Em seu lugar, cria-
se a chamada “família mosaico”, onde o marido de nossa mãe, já não é “obviamente” o
nosso pai e nosso pai, não é necessariamente pai de nosso irmão. Há o famoso “namorado
da mamãe” ou “mulher do meu pai” assumindo seu papel no círculo familiar que antes
supunha um casal e seus filhos queridos. O elevado número de divórcios e separações
somado às uniões sem casamento têm levado muitos sociólogos a proporem uma
redefinição para o conceito de lar e família que a cada dia está mais distante do clássico
padrão domiciliar.
Por fim, há a dificuldade de se traçar um detalhamento claro da pós-modernidade
devido ao fato de haver, como nunca dantes, uma vasta gama de dilemas e paradoxos
claramente discerníveis: descobre-se a força nuclear, mas polui-se o ar com petróleo;
avançam-se as técnicas na produção agrícola, mas amplia-se em maior grau o estado de

59
Marcílio Ramos, “Pós modernos?” http://marcilohistoricizando.blogspot.com/2007/08/ps-modernos.html.

64
fome do planeta; progride-se tremendamente na medicina e perde-se de vista o controle
sobre doenças novas e antigas que se tornam cada vez mais comuns e persistentes.

Em síntese, veja num quadro comparativo como mudaria o perfil do pensamento


mais ou menos geral de um aluno nos três momentos acima apresentados:
HOMEM PRE- HOMEM HOMEM PÓS-
MODERNO MODERNO MODERNO
“Deus existe” “Deus não existe” “Se Deus existe ou
não, eu não sei. Ambas as
coisas são possíveis.”
“Creio, logo existo” “Penso, logo, existo” “Sinto, logo existo”
“Que o amor seja “Que o amor seja “Que o amor não seja
eterno” inteligente e racional” imortal, posto que é chama,
mas que seja infinito quanto
dure”.
“Creio em Deus, por “Não creio em Deus, “Creio no meu Deus,
isso sou religioso e vou à por isso não sou religioso e mas não me considero
igreja” nem vou à igreja” religioso e nem cogito ir à
igreja.
“Creio em...” “concluo “Acho que...”
(fideísmo) racionalmente que...” (achismo)
(racionalismo)
“Jesus Cristo é o “Jesus Cristo é um “Jesus Cristo é apenas
único salvador do mundo mito sem sentido” mais um dos muitos enviados
inteiro”. de Deus. Os outros são
Budha, Ghandhi, Maomé...”
“A salvação está em “A salvação está em “A Salvação está em
conhecer o Deus verdadeiro” se descobrir qual a proposta saber quem afinal está certo
social mais aceitável” neste pluralismo de debates
inesgotáveis.”
“Arte para mim é “Arte para mim é “Arte para mim é o
retratar o ambiente do céu, mostrar a realidade, pintar abstrato, é expor o
esculpir os deuses, imaginar lindas mulheres (madonas), indefinível. Noutras palavras,
o homem ideal” retratar a paisagem de um tentar desenhar a quadratura
belo campo ou uma grande de um círculo”
cidade”

Pós-pós-modernidade, hipermodernidade ou modernidade líquida (anos 90...)


Alguns autores mais recentemente têm entendido que a globalização e a Internet
mergulharam o mundo num novo estágio que seria a pós-pós-modernidade.
Um dos promotores dessa nova época é o filósofo francês Gilles Lipovetsky. Ele
escreveu os livros “Os tempos hipermodernos”, “A Era do Vazio”, “O luxo eterno” e “O
império do efêmero”.Curiosamente ele não aceita chamar essa nova época de pós-pós-
modernidade porque, embora tenha sido um dos promotores do vernáculo pós-moderno, ele
o abandonou posteriormente e hoje acha que a pós modernidade não existiu. Ele prefere
falar de “hipermodernidade”, isso é, uma exacerbação dos valores criados na Modernidade,

65
que atualmente estão elevados de forma exponencial. O hiato criado entre os anos que
atribuimos à pós –modernidade (para ele anos 60, 70 até 85) são para ele apenas uma fase
de transição entre a modernidade e sua exacerbação e não um “pós” .
A Hipermodernidade é caracterizada por uma cultura do excesso, do sempre mais.
Todas as coisas se tornam intensas e urgentes. O movimento é uma constante e as
mudanças ocorrem em um ritmo quase esquizofrênico determinando um tempo marcado
pelo efêmero, no qual a flexibilidade e a fluidez aparecem como tentativas de acompanhar
essa velocidade.
HIPERMERCADO, HIPERCONSUMO, HIPERTEXTO, HIPERCORPO TUDO É
ELEVADO À POTÊNCIA DO MAIS, DO MAIOR. É O ÓPIO, OU A PREPARAÇÃO
PARA O ABISMO.
As características básicas deste fenômeno (que para alguns nem seria um período,
mas um desdobramento da pós-modernidade), seriam:
- Busca por vias alternativas às vias comuns – relacionamento virtual, sexo
por computador, celular cuja função principal não é a telefonia, medicina alternativa, novos
modelos de família sem casamento e sem convivência, novas modalidades de trabalho em
casa com horários não fixos etc.
- Busca por um governo mundial unificado – por causa dos riscos da
Internet, bolsa de valores, tráfico de drogas, terrorismo, problemas ecológicos.
- Fim dos mega-discursos. A troca das explicações tradicionais por ideias
sensacionalistas que chamem a atenção e apelem para o espírito de “furo” jornalístico ou de
revelação de um segredo que abalaria as estruturas de uma organização tradicional. Ex.
Código Da Vinci, adventistas.com etc.
- Busca por uma espiritualidade alternativa que não implique
necessariamente a um retorno ao Deus da pré-modernidade. Ex. Misticismo em todos os
seus sentidos, Igreja Universal, Harry Potter, Nova Era, etc...
- Alienação em face ao perigo. Nos anos 60 e 70 a ameaça de uma guerra
nuclear ou do fim do mundo fazia com que os americanos estocassem comida e
suprimentos. Hoje, mesmo em face da ameaça de falta d’água e outras tragédias
escatológicas todos parecem tranqüilos. Ideias como fim do mundo e Volta de Cristo
mexem com poucos.
E não podemos deixar de mencionar o trabalho de Z. Bauman que abandonou os
critérios de pós modernidade para propor que hoje vivemos numa sociedade líquida.
Na modernidade líquida, o indivíduo é que moldará a sociedade à sua personalidade.
Primeiro, sem os parâmetros da modernidade sólida, o indivíduo será definido pelo seu
estilo de vida, por aquilo que ele consome e o modo que consome. Segundo, na
modernidade líquida, há sempre movimentação. As pessoas agora se deslocam mais
facilmente e podem viver em vários lugares do mundo, sempre quando têm recursos para
tal. Terceiro, a competição econômica, que fez os salários diminuírem e os trabalhadores
perderem a segurança do emprego. Na modernidade líquida, já não é mais possível
trabalhar toda vida na mesma empresa.

Assim, a modernidade líquida:

66
 é fluída;
 está em movimento;
 é imprevisível.

Isto abre um novo paradigma, pois agora é preciso pensar a sociedade em termos fluidos,
de processos e não mais em termos de blocos.

Bauman argumenta que os indivíduos, na sociedade líquida, tendem a considerar que a


atitude mais racional é a de não se comprometer com o que seja. Assim, quando uma nova
oportunidade ou ideia aparecem, este indivíduo se engaja sem maiores dramas.

Como esta volatilidade impacta em nossa vida? A modernidade líquida nos dá uma
sensação de fracasso por tanta fragmentação. Por isso, uma questão muito importante para
Bauman será a construção de uma ética dentro desse cenário fluido60.

Desafios atuais61:
1º) O colapso das crenças. Quer seja a fé, quer seja o crer na educação, quer seja o aceitar a
cultura até então afirmada, há uma descrença em tudo que se afirmou até então. Não crêem
que seja verdade que o estudo pode melhorar a vida das pessoas e o mundo. Há desinteresse
pela herança passada. Tudo é visto como não funcional, como não resultável, não produtor
de bons resultados. Não há um conjunto de valores. O que se faz é desmantelar as regras e
as estruturas.
2º) A busca de novidades exóticas. Numa música espanhola se ilustra isso muito bem:
"Cada noite um rolo novo. Ontem o ioga, o tarô, a meditação. Hoje o álcool e a droga.
Amanhã a alimentação a partir de luz solar e a reencarnação" Normalmente as novidades
são contra o estabelecido, e as drogas, muito mais. Veja como a mídia cria mitos, cria
conceitos, projeta sempre o que é contra o estabelecido.
3º) A descrença nas instituições. As instituições sociais falharam em seu propósito de
prover um mundo melhor. Os governos, a família, a escola, todos eles falharam. O jovem
não crê na declaração romântica do educador de que está formando mente e educando para
o futuro. Não vê o professor encarar a profissão como um sacerdócio, mas como um ganha-
pão. Não vê a escola como um lugar agradável nem crê no seu discurso de que estudando a
pessoa pode ter oportunidades. Há milhares com diploma na mão e subempregados.
Também não crê nas igrejas porque os escândalos são muitos. A igreja dos anos noventas
não produz homens e mulheres santos, mas pessoas preocupadas com dinheiro. A
autoridade nunca é bem vista. É sinônimo de opressão.
4º.) Retorno do Existencialismo - As pessoas desejam ser livres. É o desdobramento do
existencialismo, como foi mostrado num filme dos anos sessentas, Cada um vive como
60
Adaptado de Juliana Bezerra, modernidade líquida, in https://www.todamateria.com.br/modernidade-
liquida/#:~:text=Modernidade%20l%C3%ADquida%20%C3%A9%20um%20termo,a%20conhec
%C3%ADamos%20at%C3%A9%20o%20momento.
61
Texto adaptado de Isaltino Gomes Coelho Filho, conforme conferência apresentada em 2002 aos pastores
da Igreja Batista.

67
quer. As pessoas são senhoras de suas vidas, sem convenções, sem compromissos e sem
autoridade. E as igrejas evangélicas são, hoje, mais instituição do que comunhão. O aspecto
institucional e uma maior importância à ordem e à lei do que à vida nos colocam em
desvantagem. Os regulamentos e o "está errado" falam mais alto que a celebração da vida.
5º) A necessidade de escandalizar ou a busca de sensacionalismo. É uma maneira de agredir
as pessoas e de se defender delas. Escandalizam com a conduta, com a recusa às regras, na
indumentária e no visual. A própria maneira de se vestir mostra desleixo e até falta de
asseio. Gasta-se muito dinheiro para se comprar uma roupa rasgada. Vestir-se mal e como
mendigo é sinal de estar na moda. O pós-moderno rejeita padrões e adora inovar, ir contra o
convencional. Ele quer encontrar o quinto evangelho, descobrir algo que ninguém disso,
denunciar uma verdade supostamente oculda da sociedade.. Costumo dizer que adolescente
não se veste, apenas se cobre. É aquela bermuda que não se sabe se é uma calça comprida
do irmão menor, porque ficou no meio da canela, ou se é uma bermuda do irmão maior
porque ficou pouco acima do tornozelo. Todo mundo é igual: o boné virado para trás, um
tênis encardido no pé e uma blusa de frio amarrada na cintura. Isto porque querem ser
diferentes. Copiam-se uns aos outros na sua diferenciação. Um piercing dá um toque a
mais. Julgam-se diferentes, mas são clones uns dos outros.
6º) Um estilo individualista, hedonista e narcisista. Os jovens de hoje são individualistas,
embora vivendo em "tribos". Vivem sua existência. Não se espere deles patriotismo ou
rasgos de idealismo. São hedonistas, vivendo em função do prazer, não necessariamente
sexual, mas a busca do que lhes é agradável. São narcisistas, no sentido de olharem mais
para si que para o mundo. Isto não é uma prerrogativa exclusiva deles, mas de toda a
cultura pós-moderna. O social e o outro são irrelevantes. O que vale é o próprio indivíduo.
7º) A falta de uma cosmovisão. O pós-moderno não tem uma cosmovisão nem mesmo
posturas coerentes. É a pessoa que nega a existência de Deus, mas que crê em energia vinda
de um cristal. Que nega a historicidade de Jesus, mas acredita em duendes. Agem assim
porque as cosmovisões são explicações totalizantes do mundo, trazem respostas cabais e
últimas. "Nenhuma certeza pode ser imposta a ninguém", diz o pós-moderno. Recusando
uma cosmovisão, uma visão integrada, as pessoas fazem uma crença tipo picadinho. Tudo
está bom, tudo está certo. Ao mesmo tempo, isto não faz diferença. Cada um faz sua crença
e sua religião. O valor último ou padrão aferidor é a própria pessoa. Foi isto que o roqueiro
brasileiro, Raul Seixas cantou: "Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter
aquela velha opinião formada sobre tudo...tudo". As pessoas não têm mais uma visão
determinada do mundo.
8º) A perda do sentido de história. Não existe uma história unificada, produto da visão
cristã que impregnou o Ocidente e lhe deu direção. Existem acontecimentos isolados,
histórias de pessoas que se cruzam entre si, sem nexo, sem ligação. Uma visão global da
vida não existe. Existe uma visão fragmentária.
Pensa-se no hoje, no fato de agora. Perdeu-se a visão de um passado, um presente e um
futuro integrados. O pós-moderno opta pelo efêmero, pelo modismo, pelo fragmentário,
pelo descontínuo. Com isto, a vida não tem sentido histórico nem dimensão linear. É para
ser vivida agora, numa dimensão pontilear.
9º) A substituição da ética pela estética. O dever cede lugar ao querer. As escolhas são
privadas e não mais ligadas à sociedade. A capacidade de viver e de desfrutar o belo

68
substituiu a responsabilidade. O negócio é experimentar sensações, cada vez mais fortes,
cada vez mais dinâmicas. Nada de sentimento de culpa ou de valores. Viver é fazer o que
me agrada. Em outras palavras: ninguém tem nada com a minha vida. Ninguém se prende
afetivamente a alguém.
10º) A crise de pertença, ou seja, a necessidade de pertencer a alguma coisa, se tornou mais
aguda, nesta situação. A maldição sobre Caim foi tirar-lhe a pertença. Ele seria sem raízes,
geográficas ou sociais, um nômade, um errante, um peregrino, andante. O homem necessita
pertencer a alguma coisa. É uma profunda carência existencial. Precisa pertencer a uma
igreja, um clube, uma associação, etc. Como a crise de pertença surgiu logo vieram os
relacionamentos "lights", imediatistas, sem ligações profundas, manifestadas no sexo
efêmero e casual. O instinto substitui o afeto. Cada semana, uma pessoa. Pertence-se a uma
"tribo", mas se refugia no anonimato de relações via Internet.
11º) A característica a seguir é a mais forte, em termos de nosso trabalho: a pluralidade
ideológica e cultural. Nossa época é uma época de síntese. As pessoas querem ter posições,
mas querem concordar com tudo. A pessoa tem uma cultura tecnológica, de informática
avançada, mas crê em florais, astrologia e numerologia. Não tem convicções, mas
conveniências. Seu credo é mais produto de ajustes de convivência do que de convicção
pessoal. Pode-se ter grande zelo pela ecologia e desprezo pelo humano. As crenças e
posturas são casuais e produto de circunstâncias. O evangelho pode ser verdade, mas é
verdade para uma pessoa e não para outra. Há tantas verdades como pessoas.
Cada uma tem a sua, cada uma faz a sua. Dei um folheto evangelístico a uma pessoa,
folheto que falava de Jesus. A pessoa me disse que não cria nessas coisas. No vidro de seu
carro brilhava um adesivo: "Eu creio em duendes". Mas o maior problema está hoje no
pentecostalismo. Ele está minado pelo paganismo. Veja essa declaração atribuída a um
pastor da Assembléia de Deus:
Na América Latina, as religiões pagãs populares vão se incorporando aos rituais
pentecostais. Pede-se ao diabo para se manifestar, com o objetivo de exercer poderes
exorcistas sobre ele, mapeiam-se as moradias demoníacas por causa da influência da
cosmovisão pagã de que os poderes malignos tomam posse de lugares. Os objetos
supersticiosos, como óleo ungido, rosas sagradas e a água do rio Jordão, passam a ter
o mesmo valor no Cristianismo que na religiosidade popular pagã.

8. Como pregar e educar uma Igreja neste contexto


É uma situação desvantajosa para o pregador, que sempre é um educador, geralmente
produto de outra cultura. Muitas vezes ele mesmo vive em conflito por causa do choque
cultural. Foi criado num estilo, mas já assimilou padrões de outro estilo. Como pregar numa
sociedade pós-moderna?
1º) Lembrando que temos valores eternos, como cristãos, que somos. Há valores
temporários, locais e mutáveis Mas há valores inegociáveis. O pregador e o pastor
necessitam ter uma cosmovisão cristã completa, saber de sua fé e de seus valores e vivê-los.
Muitos pastores não têm uma visão global do mundo, e, o que é pior, muitos não têm
sequer uma visão global de sua fé, sabendo encaixar o mundo nela, analisando o mundo por
ela. Sua fé é atomizada, de pequenos credos, sem uma visão holística do evangelho. Sem
ver o evangelho como uma cosmovisão, uma explicação global do mundo. Isto é trágico

69
para um pastor. Ele observa a vida cristã por um determinado dom, por uma visão de
ministério, pelo modismo contemporâneo, de igreja com propósito ou outro qualquer. Sem
uma visão global do evangelho fica difícil analisar o mundo.
2º) Nossas igrejas não podem se fiar apenas na repressão ou na contemplação, deve
trabalhar. Incentive o trabalho missionário e se for preciso, mande embora o obreiro
bíblico!.
3º) Coerência é fundamental. A frase é do papa Paulo VI, mas nem por isso deve ser tida
como inválida, muito pelo contrário: "Os jovens de hoje não querem mestres, querem
testemunhas". Querem pessoas que creiam nos valores que propagam.
4º) Precisamos amar o que fazemos. A roupa do pastor, a conduta, o comportamento devem
dizer que ele escolheu um bom caminho. Mal gosto no vestir ou cara acabrunhada não
convence ninguém a querer ser como você. O pastorado é uma atividade que só pode ser
feita passionalmente. E a pior tentação de um pastor é usar a Bíblia profissionalmente. O
trabalho deve ser feito com coração. As marcas ficarão na vida das pessoas que entrarem
em contato conosco.
5º) A igreja precisa dar respostas relevantes para a vida real das pessoas (respostas
teológicas e existenciais, não uma em detrimento da outra). Em um culto voltado para
jovens, o pregador convidado falou por quase 50 minutos sobre dicotomia ou tricotomia.
Segundo ele, este era um assunto palpitante, com o qual ele estava "muito preocupado". E
daí? Que diferença isto faria para os jovens? Mas cuidado para não deixar de pregar a sã
doutrina.
6º) A fé precisa ser viva numa igreja. Parece banal, mas tem nexo no que quero dizer. A
igreja deve expressar o caráter cristão nas suas relações e no seu ambiente. O pós-moderno
necessita ver uma igreja batista como uma instituição séria, espiritual, coerente em sua fé.
Ele está cansado de dicotomia entre conduta e fé. Farto de fingimentos. O jovem pós-
moderno clama, no dizer de Fausto, nos seguintes termos: "quem me vende um pouco de
autenticidade? A espiritualidade continua fora do culto? Cantamos o corinho "esta igreja
ama você" na hora de saudar o visitante. Mas, acabado o culto, temos interesse nele? Se
trouxer um problema a igreja mostrará que o ama? A fé e os relacionamentos aparecem
apenas na hora do culto ou permeiam a vida das pessoas?
7º) O púlpito precisa ser cristocêntrico. Cristo precisa voltar a ser o centro e o interesse da
pregação. Valorizam-se dons, exalta-se o Espírito Santo, mas a segunda pessoa da trindade
tem sido esquecida na sua própria Igreja. A IURD trocou a cruz pela pomba. Outro dia,
pela tevê, dizia um pastor pentecostal: "Cristo é o canal para nos trazer o Espírito Santo".
Que mudança doutrinária! E João 14 a 16, que fazer deles? E a cruz, onde colocá-la? Um
púlpito bíblico, exegético, com Cristo no centro, é uma necessidade insuperável da igreja.
Em suma
Hoje percebemos um tempo mergulhado numa profunda crise de identidade. O
homem se esvaziou devido às decepções sofridas com os sistemas organizados, o que inclui
com destaque a religião tradicional.
Conseguinte ao esvaziamento veio à tona a visibilidade de uma carência de Deus
pretensamente preenchida pelo consumismo de tudo que está à mão, quer seja do mercado
secular, quer seja do mercado religioso. Contudo este vazio com forma de Deus é
transcendente em sua essência. Por isso ele se apresenta cada dia maior, pois só a pessoa
70
viva de Deus pode preenche-lo. Enquanto não entende isso, o sujeito pós-moderno,
hipermoderno ou líquido, vai tentando saídas úteis de como manter satisfeita essa fome de
eternidade e nisso, perde-se de vista a linha divisória entre o sagrado e o profano.
Se existe um debate entre ateus e teístas que traz confusão aos ouvidos do auditório
é a polêmica de poder ou não falar de valores morais desprovido da crença em Deus. Neste
sentido, há exageros e distorções de ambos os lados.
O ponto de destaque aqui, não é saber se uma pessoa pode ou não ser boa
independente de crer em Deus. O que interessa é descobrir a fonte de um valor moral
absoluto, caso não haja Deus. Note, estamos falando de valores morais “absolutos”, não
circunstanciais, moldados pela contingência humana.
Aqueles que afirmam não existir valores absolutos devem estar conscientes de que
estão fazendo uma afirmação auto-refutável . Afinal, a pessoa que afirma se não haver
valores morais absolutos está, ela mesma, valorizando seu direito de negá-los. Seria o
mesmo que dizer: “toda regra tem exceção”, ao que alguém pergunta: “seria isso uma
regra?”
Veja os resultados obtidos na sociedade desde que o Iluminismo pretendeu libertar o
mundo dos grilhões religiosos e responder às perguntas existenciais sem qualquer
referência a Deus. Melhora efetiva não ocorreu, pelo contrário, contabilizamos prejuízos
morais em muitos setores da sociedade.
Procurou-se apregoar que o ser humano é produto acidental da natureza, resultado
de uma combinação aleatória de tempo, matéria e acaso, de modo que não há razão última
para nossa existência senão aquela advinda de situações circunstanciais. Como um
adolescente fugindo de casa, o homem moderno acreditou que ao romper com Deus, estaria
livre de tudo aquilo que reprimia seus desejos e impulsos. Porém, Deus não foi embora sem
levar consigo valores importantes como a moral absoluta e a objetividade de questões não
mensuráveis pelo método científico.
A vida e os valores passaram a ter valor relativo a certos acontecimentos e quanto
aos próprios acontecimentos? Quem lhe atribui valor de medida?

71
72

Você também pode gostar