Machado de Assis foi um escritor brilhante. Eu particularmente aplaudo aqueles
escritores que conseguem desenvolver questões filosóficas e polêmicas em forma de estórias. Autores que à semelhança dos antigos rabinos do judaísmo falam da realidade sem parecer que estão se referindo a ela. Foi mais ou menos esse o método de Jesus Cristo ao narrar suas muitas parábolas: falar de um modo simples, às vezes irônico, sobre verdades profundas que os simples entendiam e os mais sabidos nem sempre captavam. Voltando para Machado de Assis, lembro-me do romance trágico de Quincas Borba cujo enredo acaba tendo como protagonista não aquele que dá nome à obra, mas o ingênuo Rubião que no dizer do próprio autor “era mais crédulo que crente; não tinha razões para atacar nem para defender nada: - terra eternamente virgem para se lhe plantar qualquer cousa”. Este argumento da ficção acabou, de certa forma, tornando-se o estereótipo que muita gente tem dos religiosos – pessoas ingênuas e iludidas que acreditam em qualquer coisa. Parte disso é culpa dos próprios religiosos ou de seus líderes que pensam que sua tarefa é isolar a igreja da crítica racionalista e assim protege-la dos questionamentos. Desconsideram que existe uma leva de jovens adentrando ano após ano as diversas carreiras universitárias, completamente despreparados para viver sua fé dentro do campus. O encontro desses jovens com autores céticos e de grande envergadura intelectual termina, em muitos casos, produzindo um conflito de fé que leva vários para o campo do abandono das crenças nas quais antes fora educado. Não há mais espaço em seu universo para relatos de virgem dando luz ao Messias. Eles não creem mais em milagres, intervenção divina ou inspiração bíblica. O céu deixou de ser a morada de Deus e seus anjos para se tornar uma mera combinação de gases e partículas atmosféricas. Não existe nenhum trono branco lá. O quadro se torna agravado com a pressão que esses mesmos jovens enfrentam vinda ora de uma mídia antirreligiosa, ora de colegas que relegam ao ostracismo aqueles que não seguem as normas do grupo muitas vezes pautadas por atitudes incompatíveis com a fé que antes abraçaram. Para piorar, os sermões que ouvem na igreja são reduzidos a sistematizações do óbvio sem oferecer resposta alguma às perguntas que eles enfrentam no dia a dia de sua jornada acadêmica. Aos que escolhem Rubião para retratar os crentes, resta chamar a atenção para uma parte do enredo que poucos observam. Machado de Assis descreve o personagem como “crédulo”, palavra que contrasta com o substantivo “crente”. Logo, Rubião não é um religioso crente, ele é um religioso crédulo. Até as raízes etimológicas são diferentes: crente vem do latim credente que significa aquele que crê, confia, a partir de uma evidência racional. Já o adjetivo crédulo pertence ao latim credúlu e se refere ao ingênuo que crê facilmente em qualquer coisa. Portanto, diferente do que diz o senso comum, a fé não é o oposto da razão. A fé é racional, caso contrário Deus a produziria em nosso estômago e não em nossa mente! Ela se vale de sinapses igualmente dadas por Deus para entender sua revelação na história. O que ela não pode ser é “racionalista” e ainda bem que não o seja! Devemos ter cuidado as consequências práticas desse sufixo “ismo”, pois, usado indistintamente, pode implicar numa absolutização ilegítima de conceitos humanos como se estes dessem conta de toda a realidade existente. O racionalismo ou “razão sem a fé” é estúpido pois pensa abarcar como mundanas realidades que são supraterrenais. Por isso ele as rejeita por não poder predicar sobre elas. O mais sensato seria dar espaço para a percepção dos atos de Deus, pois se ele realmente existir, haverá de falar à nossa mente. Por outro lado, no que diz respeito à fé igualmente corre-se o risco de acoplá-la ao sufixo “ismo” criando o fideísmo que é uma distorção da fé verdadeira. São muitos os que por não entenderem o papel da fé na experiência racional cristã, incorrem no erro de transformá-la em crendice.