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São Manuel González García: Reparador dos

“Sacrários Abandonados”
AUTOR: IR. LUCILIA LINS BRANDÃO VEAS, EP

De joelhos ante aquele monte de farrapos, a fé do Beato Manuel


via através daquela velha portinha um Jesus tão calado, tão
paciente, tão menosprezado, tão bom, que o fitava suplicante...

A Igreja comemorou há pouco o acontecimento mais esplendoroso da História, que a


dividiu em um antes e um depois: o Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Para
junto de Deus feito Homem acorreram pastores e Reis, e a eles nos unimos também nós,
a cada ano, quando ao redor do Presépio rezamos e cantamos para adorar o Menino
Jesus.

Ora, se a vinda de Jesus no Natal nos faz sentir tanto gáudio, com maior razão
deveríamos vibrar de entusiasmo ao aproximarmo-nos de um sacrário, onde está o
mesmo Jesus, real e verdadeiramente presente em Corpo, Sangue, Alma e
Divindade, sob as Espécies Eucarísticas.

Por isso Deus não deixa de suscitar ao longo dos tempos almas fervorosas que O
adorem no tabernáculo, assim como Ele chamou outrora os pastores e os Magos a
Belém. Entre estas almas especialmente devotas da Divina Eucaristia cabe destacar
uma, cuja vida hoje nos ocupa: Dom Manuel González García, o “Bispo do Sacrário
Abandonado”.
Chamado ao sacerdócio desde a infância

Nasceu ele em Sevilha, a 25 de fevereiro de 1877. Sua família era muito católica,
sobretudo a mãe, piedosa senhora que desde tenra juventude nunca deixara de assistir à
Missa e comungar todos os dias.

A infância, passou-a tranquila junto aos pais e irmãos. Embora em casa nada de
essencial lhe faltasse, alguns de seus pueris desejos nunca puderam ser satisfeitos,
como, por exemplo, possuir um burrico com o qual brincar e passear. Todavia, o fato de
não terem sido atendidos alguns destes anseios de criança levaram-no, anos depois, a
dar graças a Deus, porque com isso, dizia ele, aprendera a bem governar seus gostos
pessoais, a ter um conhecimento mais real da vida e a compadecer-se dos necessitados.

Fez sua Primeira Comunhão em 11 de maio de 1886, e recebeu o Sacramento da Crisma


em dezembro do mesmo ano. Por essa época pôde ver realizada uma das suas grandes
aspirações infantis: fazer parte dos seises, os famosos meninos que, por especial
privilégio, dançam diante do Santíssimo Sacramento na Catedral de Sevilha.

Fortalecido na fé pelos Sacramentos, crescia no pequeno Manuel a convicção de sua


vocação para o sacerdócio. Seus pais não escondiam o contentamento de poderem, um
dia, ver o filho subir ao altar para celebrar o Santo Sacrifício, mas o desvelo materno
não deixava de apontar a seriedade com que deveria ser feita a escolha: “Meu filho,
muito nos agradaria ver-te sacerdote, porém, se o Senhor não te chama, não o sejas;
desejo mais que sejas um bom cristão, que um mau sacerdote”.
Quando tinha 12 anos, uma vez desapareceu de casa. Caiu a noite e não havia indícios
de onde pudesse ser encontrado. Em vão buscaram-no pelas igrejas nas quais costumava
ir e por todo o bairro. Disfarçada aflição já se fazia sentir entre os familiares, quando,
em determinado momento, o menino chegou e pediu perdão aos pais pelo tardio da
hora. Apresentou-lhes alguns papéis e explicou que voltava do seminário menor, onde
sua matrícula acabava de ser aceita, por ter sido aprovado no exame de admissão.
Apesar de saber que os pais não se oporiam à sua decisão, resolvera dar sozinho os
primeiros passos, não esperando adquirir mais idade para atender a vocação que
chamejava em sua alma…

“Que eu não perca minha vocação”

De imaginação viva, grande capacidade intelectual e coração de generosos sentimentos,


logrou, por sua constância e vontade firme, passar por todas as dificuldades da primeira
etapa do seminário, desde assaltos de escrúpulos e doenças, até investidas contra o
sacerdócio, vindas dos flancos mais inesperados…

Certa manhã, em plena sala de aula, um de seus professores pronunciou-se jocosamente


contra o celibato eclesiástico. Ao ouvi-lo, Manuel pôs-se de pé e, cheio de brios,
declarou: “É indigno que um professor se atreva a falar com tão pouco respeito desta
delicada matéria. Não podemos consentir que se fale desta maneira aos que nos
preparamos para o sacerdócio. Eu protesto com toda a minha alma!”.

Irritou-se o professor ao ser repreendido por um aluno e a classe se encerrou em clima


de tensão. Na saída, seus condiscípulos o aplaudiram com entusiasmo pelo ato de
coragem e ousadia. Depois, o mestre retificou perante os alunos sua opinião e pediu-
lhes perdão por sua falta…

Outro fato da época de seminarista revela-nos seu zelo pela vocação: aproximando-se o
tempo do serviço militar, pôs sua causa nas mãos do Sagrado Coração de Jesus e de
Maria Imaculada, pedindo-Lhes que o livrassem deste risco para sua vocação. No
entanto, acabou sendo chamado às filas… Confiante, não se perturbou. Havia ainda a
possibilidade de se pagar um indulto de 1.500 pesetas para obter a dispensa.

Apresentou-se ao reitor do seminário e pediu autorização para recolher entre os


conhecidos a não pequena soma. Escreveu uma carta circular a estes todos, na qual
discorria sobre o mérito de quem ajuda os seminaristas, suprindo às suas necessidades.
Expunha em seguida a dificuldade na qual se encontrava e pedia auxílio para salvar sua
vocação, livrando-a dos perigos de uma vida de quartel, e do significativo atraso nos
estudos. A quantia arrecadada chegou em tal abundância que, além de ter sido suficiente
para ele, lhe permitiu também auxiliar outro seminarista em situação análoga.
“Que eu não perca minha vocação”, era seu lema. O futuro sacerdote – e mais tarde
Bispo – tinha bem clara a noção de que, por mais que os ventos sejam contrários, uma
pessoa só não cumpre o chamado recebido de Deus por falta de entrega a Ele ou por
negligência.

Triste e suplicante olhar de Jesus

Depois de ser ordenado diácono, em 11 de junho de 1901, o jovem seminarista foi


enviado a inúmeras missões, em diversas aldeias. Grandes sonhos evangelizadores
trazia no coração, mas logo começou a dar-se conta de uma terrível realidade: “Para ser
franco, as primeiras missões me decepcionaram. Voltava ao seminário amiúde com uma
desilusão tão grande quanto havia sido minha alegria ao tomar o trem, carro ou cavalo,
que me levaria ao povoado para exercer minhas funções. Ansioso por encontrar aquele
povo simples, aprazível e cristão, deparava-me com miniaturas de cidades grandes, com
toda a corrupção moral destas… […] Na verdade, nem tudo era desapontamento e
desencanto, pois encontrei também costumes cristianíssimos, conservados em toda a sua
força, e preciosos exemplos de fé simples, de corações sadios, de costumes patriarcais,
gente parecida à sonhada por mim… Contudo, tais pessoas não eram todo o povoado, e
não havia gente assim em todos os povoados”.

Apesar de não ver nos aldeões a sede das coisas divinas – e talvez exatamente por este
motivo! -, desejava ser para as almas como Cristo na Sagrada Hóstia: doar-se com amor
até o sacrifício e por toda a vida. Com este propósito no coração foi ordenado
presbítero, em 21 de setembro de 1901, aos 24 anos de idade.

Passou os três primeiros anos de sua vida sacerdotal pregando nas igrejas da Diocese de
Sevilha. Incansável na cura de almas, também o era no zelo por Jesus Sacramentado.
Numa de suas missões, em Palomares del Río – cidade-fantasma em matéria de
frequência à igreja e aos Sacramentos -, recebeu o chamado para ser reparador dos
“Sacrários Abandonados”.
Tendo ouvido do sacristão o relato da pouca piedade de seus habitantes, descreve-nos
ele mesmo o que se passou: “Fui direto ao sacrário da restaurada igreja, em busca de
asas para meu entusiasmo quase desfalecido e… que sacrário! Que esforços tiveram de
fazer minha fé e meu ânimo para eu não montar no burro, que ainda estava amarrado à
porta da igreja, e voltar correndo para minha casa! Mas não fugi! […] Ali, de joelhos
ante aquele monte de farrapos e sujeiras, minha fé via através daquela velha portinha
um Jesus tão calado, tão paciente, tão menosprezado, tão bom, que me fitava… Parecia-
me que depois de percorrer com sua vista aquele deserto de almas, pousava em mim seu
olhar, entre triste e suplicante, que me dizia muito e me pedia mais…”.

Dom Manuel à época de Arcipreste de Huelva

A partir de então, foi por toda a vida um adorador e reparador de Nosso Senhor
abandonado nos sacrários, e procurou transmitir seu espírito de reparação a todos
quantos se colocaram sob sua direção, sobretudo aos sacerdotes, pois bem sabia que do
exemplo deles depende muito a fé e a devoção do povo católico.

Fundador de obras reparadoras

A graça recebida em Palomares del Río calou fundo no espírito do padre Manuel.
Sempre que narrava o episódio, parecia revivê-lo. Foi esta graça ali recebida que deu
rumo ao seu ministério sacerdotal e a muitas de suas iniciativas pastorais.

Como capelão de um asilo em Sevilha, promoveu adorações ao Santíssimo entre os


anciãos, com o intuito de que eles, em sua soledade, fizessem companhia ao Grande
Abandonado do sacrário. E nunca perdiam sua hora de vigília! Nascia assim uma
espécie de “Irmandade dos Abandonados”, os primeiros reparadores do “Sacrário
Abandonado”.
Aos 28 anos foi enviado pelo Arcebispo de Sevilha como Arcipreste de Huelva, cidade
que jazia numa deplorável decadência moral e espiritual. “Que selva espessa e que
nuvem negra me esperavam em Huelva!”.6 Encontrava-se padecendo terríveis
provações, quando recebeu do Bispo de León o convite para secretariá-lo. Deixando a
escolha nas mãos de seu Arcebispo, recebeu deste a ordem de ali permanecer. “Sei bem
que não foste ordenado sacerdote para fazer carreira, nem para ganhar cidades e
fortalezas, senão almas”, argumentou o prelado.

O estado em que se encontrava o tabernáculo revelava ao padre Manuel a medida da


vida moral e espiritual da freguesia. Às paróquias vazias ou às igrejas com sacrários
abandonados costumava denominá-las “Calvários”. Para reverter tal situação, inaugurou
a Obra das Três Marias, composta por um grupo de piedosas colaboradoras de suas
atividades apostólicas, às quais lançou esta pungente conclamação: “Marias adoradoras,
ante os olhos dos fariseus modernos e as ingratidões do povo que foi cristão, e à
covardia e preguiça dos discípulos, ocupai vosso posto ‘iuxta crucem cum Maria Mater
eius – junto à Cruz com Maria, Mãe de Jesus'”.

Mais tarde, fundou a obra dos Discípulos de São João. Ambas as iniciativas tinham por
objetivo primordial incentivar os fiéis – homens e mulheres – a promoverem adoração e
reparação diante dos “sacrários-calvários”, a exemplo de Maria Santíssima, Maria
Madalena, Maria de Cléofas e São João Evangelista, aos pés da Cruz.

Para seu consolo, estes empreendimentos difundiram-se rápida e largamente. A eles se


uniram várias outras obras: Missionários Eucarísticos Diocesanos, Missionárias
Eucarísticas de Nazaré, de religiosas, Missionárias Auxiliares Nazarenas, de leigas
consagradas, Reparação Infantil Eucarística e Juventude Eucarística Reparadora.

Sobre seu intenso trabalho para reparar os “Sacrários Abandonados”, dizia: “Não é que
não existam ou nos importem pouco outros males que ofendem a Deus e afligem nossos
irmãos, senão que deixamos a outras obras e instituições, nascidas ou especializadas
para isso, o remédio para os outros males, pois estes não são mais que efeito ou
sintomas do gravíssimo e transcendental mal do abandono”.

Ser hóstia de amor para Jesus

Em dezembro de 1915 foi nomeado Bispo titular de Olimpo e auxiliar de Málaga, e em


janeiro seguinte recebia a ordenação episcopal. Ao se tornar o titular desta diocese, em
1920, fundamentou sua ação pastoral em três pilares: a formação dos sacerdotes, a
educação religiosa das crianças e o cultivo de uma piedade autêntica entre os fiéis. A
cada um destes aspectos deu uma atenção especial, não obstante, seu chamado a ser
reparador dos “Sacrários Abandonados” o levou a dar prioridade à preparação dos
futuros sacerdotes e a fundar um seminário em Málaga. Incansável nesta tarefa, Dom
Manuel muito lutou para vê-los compenetrados da importância de sua missão.

Preocupado pela onda secularizadora que influenciava até os próprios sacerdotes,


exortava-os: “Se o amor que tem meu Jesus é amor de Hóstia, eu devo ser para Jesus
hóstia de amor. Se Jesus é minha Hóstia de todos os dias e de todas as horas, não devo
aspirar e preparar-me para ser sua hóstia de todas as horas e de todos os dias?”.
Ademais, procurava sempre incutir-lhes a convicção de que, ao ser ordenado, o
sacerdote deixa de ser um “homem comum”. A pessoa do presbítero fica inteiramente
marcada por seu ministério; não se trata de uma função a ser exercida apenas por
algumas horas diárias. Por isso os alertava: “Sacerdotes, meus irmãos, sabei que cada
vez que vos vestis de homem, falais como homem, aspirais e ambicionais como homem,
olhais vossos irmãos e vossos superiores como homem, vos conduzis na sociedade
como homem e não como sacerdote, a revolução secularizadora conquista um triunfo e
o espírito cristão sofre uma derrota. Não vos esqueçais de que em ser e viver como
sacerdote está toda a vossa honra, vossa força e a fecundidade da missão que Deus e a
Igreja vos confiaram”.

Uma vida consagrada a Jesus Eucarístico

Em maio de 1931, o anticlericalismo tomou conta das ruas da Espanha. Igrejas e


conventos foram queimados e profanados das formas mais bárbaras e inumanas. A
cidade de Málaga foi uma das mais afetadas pela onda do ódio religioso. Imagens
históricas de Nosso Senhor e de Nossa Senhora arderam em praça pública e, junto com
elas, pinturas, documentos e valiosas peças litúrgicas.

Há pouco mais de uma década à testa da Diocese de Málaga, Dom Manuel vê seu
palácio episcopal ser consumido pelas chamas, sem ter meios de evitá-lo. Para salvar a
própria vida precisou refugiar-se na vizinha Gibraltar, e ali permaneceu exilado por
alguns meses. Estabeleceu-se mais tarde em Ronda, mas logo seguiu para Madri, de
onde acompanhava os acontecimentos de sua diocese. Em 1935, foi nomeado Bispo de
Palência, cidade em que passou o último período de sua vida.

Em novembro de 1939, sua saúde, já debilitada, sofreu grande abalo com uma
enfermidade renal, e em 31 de dezembro foi transladado ao Sanatório do Rosário, em
Madri, onde na madrugada de 4 de janeiro de 1940, aos 62 anos de idade, entregou sua
alma a Deus.

Seus restos mortais foram depositados aos pés do Santíssimo Sacramento, na Catedral
de Palência. Sobre a lápide de mármore branco, ficou gravado o seguinte epitáfio, por
ele mesmo composto: “Peço ser enterrado junto a um sacrário, para que meus ossos,
depois de morto, como a minha língua e a minha pena durante a vida, estejam sempre
dizendo aos passantes: Aí está Jesus! Aí está! Não O deixeis abandonado!”. (Revista
Arautos do Evangelho, Janeiro/2016, n. 169, pp. 32 a 35)

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