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COLOMBÁS, MB
DIÁLOGO COM
DEUS
Introdução à "Lectio Divina”
DIÁLOGO COM DEUS
D. GARCÍA M. COLOMBÁS, MB
DIÁLOGO
COM DEUS
Introdução à Lectio Divina
PAULUS
Título original
La lectura de Dios - aproximación a Ia lectio divina
© Ediciones Monte Casino (Colección Espiritualidade Monástica —
fuentes e estudios, n. 6), Zamora, Espanha, 1982.
Tradução
Monges do Mosteiro da Ressurreição
Revisão
José Dias Goulart
Capa
Visa
Foto da capa
Lucerna bizantina, com inscrição inspirada no Evangelho: “A luz de
Cristo ilumina a todos e é bela”.
1a edição, 1996
3a reimpressão, 2016
© PAULUS - 1996
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 - São Paulo (Brasil)
Tel.: (11) 5087-3700 • Fax: (11) 5579-3627
paulus.com.br • editorial@paulus.com.br
ISBN 978-85-349-0689-0
Apresentação
6
Prólogo
9
Capítulo I
Preliminares
22
Capítulo II
História
Os monges2
São João Crisóstomo se indignava quando lhe
diziam que ler a Escritura era coisa de monges.
“Não”, dizia ele, “é próprio de todos os que se prezam
de ser cristãos”. E tinha razão, é claro. Sem dúvida,
a objeção de seus interlocutores é significativa. A
Bíblia se estava convertendo em livro do monge, e
o monge, em homem da Bíblia. 3
Já os eremitas e cenobitas mais antigos pra
ticavam a “leitura divina” e aprendiam de cor lon
gas passagens da Escritura, com freqüência livros
inteiros, para “meditá-los” sem cessar. Pacômio,
Orsiésio, Basílio, Evágrio Pôntico, todos os mestres
do monaquismo recomendavam encarecidamente
a lectio divina. Cassiano, o grande divulgador da
espiritualidade monástica no Ocidente, insiste,
seguindo a Orígenes, no poder de renovação espiri-
-tual contido na leitura direta da Bíblia, não na de
seus comentaristas. Os legisladores do cenobismo,
ao distingui-la das leituras do Ofício Divino e de
outras feitas em comunidade, codificaram pouco a
pouco a prática da “leitura divina”, precisando seus
horários e os livros que se devem ler.
2Para a espiritualidade monástica, cf. a coleção A oração dos pobres,
Paulus Editora (N. do T.)
3Eremitas: monges que vivem solitariamente; cenobitas, os que
vivem em comunidade (N. do T.)
25
Assim, no séculos V-VI, a já está institu-
-cionalizada nos mosteiros, ocupando um lugar
determinado no horário das comunidades. Segundo
todas as regras da época, os monges dedicavam à
leitura de duas a três horas nos dias de trabalho.
São Cesáreo dispõe que, depois das duas horas
ordinárias de leitura, uma das monjas leia em
voz alta por mais uma hora, enquanto as demais
trabalham. De acordo com um documento de tra
dição agostiniana, o Ordo monasterii, esta leitura
se dava4 no centro da jornada: entre as horas sexta
e noa . Segundo a Regra de São Bento, somente
se lia durante três horas seguidas na Quaresma
(das sete às dez horas da manhã, aproximadamen
te). No verão liam da hora quarta à sexta, isto é,
quando o calor se intensificava; e os que o dese
jassem podiam ler também durante a hora sexta
(uma hora). No inverno, os monges dedicavam-se
à leitura da primeira hora da manhã, depois que
saíam de laudes, até a hora tércia5, e a retomavam
depois da refeição, com exceção dos que tinham
necessidade de aprender de cor o saltério (vacare
psalmis), até completas. O domingo era o grande
dia semanal da lectio divina, a que deviam dedicar
todo o tempo livre entre os ofícios, exceto os que
fossem designados para tarefas específicas e os ne
gligentes ou desidiosi, que não conseguiam ou não
queriam ocupar-se com a leitura ou a meditatio.
Aos últimos se lhes determinava algum trabalho
para que não ficassem ociosos.
Para poderem dedicar-se à lectio divina, era
preciso que tanto os monges como as monjas sou
4Orações celebradas respectivamente às doze e às quinze horas
(N. do T.)
5Ou seja, das seis às nove horas (N. do T.)
26
bessem ler. Já nas Regras de São Pacômio se deter
mina que todo noviço aprenda a ler, “mesmo que não
queira”. “Todas aprendam a ler”, ordena a Regula
ad virgines, 18, de São Cesáreo de Aries. A mesma
disposição se repete tanto na.Regula ad monachos,
'23, como na Regula ad virgines, 26, de Santo Aure-
liano. A Regula Ferioli, 11, diz mais solenemente:
“Todo aquele deseja ser chamado de ‘monge’ não tem
direito a não saber ler”.
Segundo a Regula Magistri, a lectio se prati
ca deste modo: os monges “se reúnem em grupos
de dez e escutam a um leitor; cada um por sua
vez lê em um único livro. Paralelamente, um dos
litterati ensina os meninos e os analfabetos a
ler, e os que não sabem o saltério exercitam-se
em recitá-lo”. São Bento, ao contrário, quer que
cada monge tenha seu livro e se instale onde lhe
pareça melhor para entregar-se à leitura. Por
que motivo? Uma razão parece óbvia: porque os
antigos gostavam de ler em voz alta. Não liam,
normalmen-te, somente com os olhos, mas com a
boca e os ouvidos, escutando as palavras que iam
pronunciando. Mas isso não exclui que buscassem
a solidão para ler e orar com mais recolhimento.
O fato de se dar a cada irmão um livro mostra
claramente que para São Bento a “leitura divina”
era assunto estritamente pessoal: as leituras
comunitárias aconteciam em outros momentos.
Entretanto, eram designados um ou dois dos mais
velhos para que percorressem o mosteiro durante
a leitura, e observassem se algum monge acedio-
sus, em vez de entregar-se à leitura, dava-se ao
ócio ou às conversas. Durante a sesta no verão,
os que queriam ler deviam fazê-lo “para si” (sibi)
de modo que não perturbassem os demais, o que
27
significa que liam no dormitório, enquanto os
demais dormiam ou tentavam dormir.
Os monges da Idade Média permaneceram
fiéis à prática da lectio, pelo menos até certo ponto,
pois, diante de alguns textos, temos a impressão de
que a “leitura divina” ia sendo desvirtuada, desfi
gurada, transformada, e até esquecida, pelo menos
em certos ambientes. Apesar das honrosas e notá
veis exceções pessoais (Santo Anselmo, Ruperto de
Deutz, Pedro das Celas e tantos outros) e coletivas
(as primeiras gerações cistercienses sobretudo); e
embora a chamada “teologia monástica” se nutrisse
da lectio divina, esta caminhava para um lamentá
vel declínio.
Decadência
É curioso notar como desde os fins do século
XII, idade de ouro da espiritualidade monástica
medieval, a expressão se faz cada vez mais rara,
somente usada por algum escritor místico. E não
apenas desaparece a expressão lectio divina: na
época da devotio moderna, os espirituais encontram
uma forma de oração que a supera, a “oração men
tal”, exercício independente do que mais adiante se
chamará “leitura espiritual”. Nessa época de tran
sição, a leitura se converte em “exercício espiritual”
autônomo e específico, não orientado para a oração.
E logo se vai afastando também da Escritura. Surge
uma nítida distinção entre estudo, isto é, leitura
intelectual ou teológica, e “leitura espiritual”, exer
cício de piedade sem a tensão nem a exigência da
lectio divina, e sobretudo, diferentemente desta,
nutrindo-se muito mais de hagiografia popular,
28
manuais de vida cristã e obras de meditação. A
Escritura recupera, esporadicamente, seu lugar
proeminente apenas em certos autores, como São
.João Eudes, e em certos ambientes religiosos. En-
tre os monges, com efeito, sobretudo em algumas
reformas beneditinas, sempre ficou pelo menos
algum resquício do que havia sido a lectio divina
em tempos precedentes.
Restauração
Dois livros contribuíram especialmente para
ressuscitar a expressão lectio divina já em pleno
século XX: o do doutor Denis ,A‘lectio divina’
das origens do cenobitismo a São Bento e Cassiodo-
ro, Paris, 1925 (que trata apenas de São Jerônimo,
uma vez que a obra não teve continuidade), e o de
Dom Usmer Berlière, A ascese beneditina das ori
gens ao final do século XII, Paris-Maredsous, 1927
(que contém um capítulo sobre a lectio divina). Mas
a fórmula não se difundiu verdadeiramente até a
década de 1940-1950, com o desenvolvimento do
movimento litúrgico dentro e fora dos ambientes
monásticos. É muito significativo que uma coleção
de estudos sobre a Bíblia, que Edições du Cerf
começou a publicar em 1946 e continua ainda edi
tando, se chamasse Lectio Divina. Finalmente, o
Vaticano II, em sua constituição Dei Verbum, 25,
ratificou e promoveu ainda mais, com todo o peso
de sua autoridade, a restauração da “leitura divi
na”: “O Santo Sínodo recomenda insistentemente
a todos os fiéis, especialmente aos religiosos, a
leitura assídua da Escritura para que adquiram
a ciência suprema de Jesus Cristo (cf. FL 3,8), pois
29
‘desconhecer a Escritura, é desconhecer a Cristo’
(São Jerônimo, Com. in Is., pról.). Procurem de boa
vontade o próprio texto mesmo (...)• Recordem que
a leitura da Sagrada Escritura deve acompanhar
a oração, para que se realize o diálogo de Deus com
o homem, pois ‘a Deus falamos quando oramos, e a
Deus escutamos quando lemos suas palavras’ E
no decreto Perfectae Caritatis, 6, repete o Concilio,
referindo-se aos religiosos: “Tenham, antes de tudo,
diariamente nas mãos a Sagrada Escritura, a fim de
adquirir, pela leitura e meditação dos livros sagra
dos, ‘a excelência do conhecimento de Cristo Jesus’
” (F1 3,8). Como se terá notado, no texto anterior o
Concilio fala de leitura assídua da Escritura, neste
último, se refere à leitura diária.
Capítulo III
O livro dos que buscam a Deus
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Capítulo IV
Deus falou, Deus me fala
Leitura repleta de fé
A característica primeira e fundamental da
lectio divina é a fé que deve animá-la. Sem fé viva,
radical, em que Deus escreveu a Bíblia, em que o
autor último, principal e verdadeiro da Escritura
é o próprio Deus, como seria possível “ler a Deus”?
Mas não basta estar persuadido de que Deus
escreveu, de que Deus falou. É preciso fazer um
ato de fé em Deus que continua falando. Não se
lêem suas palavras como as de um autor de outros
tempos. Deus não está morto. É o “Deus vivo”.
Sua palavra está viva. “A Palavra de Deus é viva,
eficaz”, diz a Carta aos Hebreus (4,12). Sem crer
firmemente que “abrir a Bíblia é encontrar a Deus”,
que “nos livros sagrados, o Pai que está nos céus
sai amorosamente ao encontro de seus filhos para
conversar com eles”, que “Cristo está presente em
sua palavra”, a verdadeira “leitura de Deus” resulta
completamente impossível.
Deus está presente na Escritura. Cristo está
presente na Escritura. Por isso escrevia Paulo Gius-
tiniani, reformador dos camaldulenses: “O monge
deve aproximar-se da Palavra, não para entreter-se,
nem para estudar, mas como se subisse ao altar de
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Deus, com grandes preparativos de alma e de corpo,
com profundíssimo respeito”.
Leitura pessoal
Deus falou; Deus fala; Deus me fala. Dirige-se a
mim, pessoalmente, aqui e agora. Assim pensavam
os monges antigos, profissionais da “leitura divina”.
Estavam convencidos de que cada um dos vocábu
los contidos na Escritura é uma palavra que Deus
dirige a cada um dos leitores para sua salvação e
santificação. Sendo a Bíblia “ciência de salvação”,
acreditavam sem a menor vacilação que tudo tem
nela um valor pessoal, atual, para a vida presente
e com vistas à vida eterna.
Deus dirige a cada um de seus leitores uma
mensagem pessoal e única. Esta mensagem pes
soal está contida na grande mensagem universal,
endereçada à comunidade dos homens. São Gregório
Magno já o explicou: Deus nos disse tudo. Falou uma
vez, e é suficiente. Não há que esperar outra reve
lação. “Deus não responde ao coração de cada um
por revelações particulares, porque preparou uma
palavra que pode solucionar todos os problemas. Na
Palavra de sua Escritura, com efeito, se soubermos
procurar, encontraremos resposta para cada uma
de nossas necessidades. Para dar um só exemplo:
se estamos afligidos por um sofrimento qualquer ou
por uma enfermidade corporal, encontramos alívio
quando conhecemos suas causas ocultas. Como em
cada uma de nossas provações não somos respondi
dos em particular, recorremos à Sagrada Escritura.
Aí encontramos Paulo que, tentado pela fragilidade
da carne, ouve esta resposta: ‘Basta-te a minha gra
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ça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o
seu poder’ (2Cor 12,9). Deus recolheu na Escritura
Santa tudo o que pode suceder a cada um de nós e
nos deu por modelo os exemplos dos que nos pre
cederam” (Mor.23,19, 34). Admirável lição sobre a
atualidade da Palavra de Deus.
É claro que Deus não está aprisionado na
Bíblia. Deus é um Deus vivo que fala, “ora pela
Escritura, ora por uma inspiração secreta”. Mas a
norma de toda “inspiração secreta” é a Bíblia. “A
pessoa cai facilmente em erro, se não sabe confron
tar o que recolheu na contemplação secreta com a
eminente verdade da Escritura Santa”. Até aqui,
São Gregório Magno.
A “leitura de Deus” tenta individualizar e
interiorizar a grande mensagem dirigida a todos
os homens. Com muita precisão escreveu David
Stanley: “Por meio de minha reação de fé, amor e
esperança, o mistério se converte em evento para
mim. Acontece comigo”. Diz um documento da an
tiguidade cristã, a Carta a Diogneto (11,4): “Aquilo
que se nos apresenta como novo, que descobrimos
que existe desde sempre e que renasce diariamente
nos corações dos fiéis”... O objetivo da lectio divina
é na realidade o que Santo Inácio denomina “um
conhecimento interno do Senhor, que por mim se
fez homem para que mais o ame e o siga” (
-cios, 104). O autor do Deuteronomio expressou
muito bem a profunda percepção de Israel de como
nas Escrituras o acontecimento do passado se con
verte em experiência contemporânea. Ainda que
compondo seu livro quinhentos ou seiscentos anos
depois do acontecimento da Aliança no monte Sinai,
é capaz de representar a Moisés falando, através
dos séculos, a seus próprios contemporâneos (do
41
autor): “Ouve, ó Israel, os estatutos e as normas
que hoje proclamo aos vossos ouvidos (...) Iahweh
nosso Deus concluiu conosco uma Aliança no Horeb.
Iahweh não concluiu essa Aliança com nossos pais,
mas conosco, conosco que estamos hoje aqui, todos
vivos” (Dt 5,1-3). “É justamente para criar uma
experiência semelhante, contemporânea e pessoal,
em mim, como membro do povo de Deus, que foi
instituída a lectio divina”.
Continua dizendo o Pe. Stanley: “Por conse
guinte (e este é o segundo passo), deve-se refletir
com fé sobre o sentido literal já descoberto, para
escutar o que Cristo ressuscitado me diz através
de seu Espírito, quando leio uma passagem em
dado momento”. Trata-se de escutar a Cristo para
prestar-lhe a “obediência da fé” (Rm 1,5). A lectio
divina é o defrontar-se com Deus em Cristo. Que me
diz Deus hoje nesta passagem da Bíblia? “Abertos
nossos olhos à luz de Deus, escutemos atentos o que
diariamente nos admoesta a voz divina que clama”
(RB Pról., 9).
O caso de Santo Antão ilustra essa doutrina.
Antão, como é bem conhecido, era um jovem copta,
bom e piedoso. Um dia, dirigia-se à igreja e pelo
ca-minho ia pensando na vida que levavam os pri
meiros cristãos de Jerusalém, segundo a descrevem
os Atos dos Apóstolos. Formavam uma comunidade
maravilhosa: perseveravam na doutrina dos após
tolos, na fração do pão e na oração; possuíam tudo
em comum; tinham um só coração e uma só alma...
Antão chegou atrasado à Eucaristia, quando já se
estava proclamando o Evangelho do jovem rico: “Se
queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá
aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois, vem
e segue-me”. A passagem evangélica acaba mal: o
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jovem rico recusou o convite de Jesus, “pois possuía
muitos bens”. Mas Antão o aceitou. O Espírito Santo
o fez compreender que as palavras do Evangelho
se dirigiam a ele pessoalmente. Daí em diante toda
a vida de Antão não será outra coisa senão uma
resposta a essa voz.
Outro exemplo. Alexandre, que com o tempo
fundaria o célebre mosteiro dos Acemetas6, pró
ximo de Constantinopla, também se sentiu cha
mado à vida monástica enquanto lia o Evangelho.
E no Evangelho continuou inspirando-se, muito
concretamente, e ao longo de sua vida. “Padre” —
costumava perguntar ao arquimandrita Elias — “é
verdade tudo o que está escrito no Evangelho? E se
é verdade, por que não o cumprimos?” Alexandre
optou finalmente por empreender, com não poucos
companheiros, a santa aventura de viver como os
pássaros do céu e os lírios do campo, louvando a
Deus continuamente.
Terceiro e último exemplo: Santa Teresa do
Menino Jesus. “Sou demasiado pequena” — es
creve — “para subir a rude escada da perfeição...
Procurei nos livros santos e li estas palavras saídas
da Sabedoria eterna: ‘Se alguém é pequeno, que ve
nha a mim’... Havia encontrado o que procurava...
Continuei procurando e encontrei esta frase: ‘Como
mãe acaricia seu filho, assim eu os consolarei, e os
levarei no colo e os embalarei sobre meu joelhos’.
Nunca palavras tão ternas, tão melodiosas alegra
ram minha alma. O elevador que deve levar-me até
o céu são teus braços, ó Jesus. Portanto, não tenho
necessidade de crescer; ao contrário, o que preciso
é continuar sendo pequena, esforçar-me em sê-lo
6“Os que não dormem” (N. do T.)
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cada vez mais”. As palavras de Isaías, como se vê,
foram a inspiração e a base da definição perfeita
da “infância espiritual”, tal como Santa Teresa a
entende e Cristo a exige: “Ser criança é reconhecer
seu próprio nada, esperar tudo de Deus, como o
menino pequeno espera tudo de seu pai”. Teresa do
Menino Jesus soube individualizar e interiorizar
a mensagem da Escritura. Descobriu que a voz de
Deus se dirigia a ela pessoalmente. E assim nasceu
sua doutrina da “infância espiritual”, que ela foi a
primeira a viver, e que tanto bem fez e continua
fazendo na Igreja.
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Capítulo V
Uma conversa íntima
Leitura sapiencial
A “leitura divina” não procura uma finalidade
científica, não se propõe alcançar um objetivo pu
ramente — nem sequer principalmente — de tipo
intelectual. A Bíblia não é um tratado de teologia,
um estudo sobre Deus. É muito mais: é a grande
mensagem que Deus nos deixou. A lectio consiste,
por conseguinte, em escutar e saborear essa men
sagem. É sentar-se, como Maria, ao pés de Jesus,
e não perder uma única das palavras saídas de
seus lábios.
Comumente, costumamos ler, não para ler,
mas para ter lido. Isto é, buscamos em nossas
leituras um fim prático, utilitário: ampliar nossos
conhecimentos, seja lá por que razão for. A “leitura
divina” é, neste sentido, uma leitura completamente
desinteressada, gratuita. Dela podería dizer-se o
que São Bernardo diz sobre o amor: “O amor não
busca sua justificação fora de si mesmo. O amor é
suficiente em si mesmo, é agradável em si mesmo e
para si mesmo. O amor é seu próprio mérito e sua
própria recompensa; não busca uma causa fora de
si mesmo nem outro resultado a não ser o amor
mesmo. O fruto do amor é o amor”. E acrescenta
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que esse caráter auto-suficiente do amor se explica
porque tem a Deus por origem e volta a ele como
a seu fim, porque Deus é o Amor. O mesmo ocorre
com a “leitura de Deus”. A pessoa lê a Deus sim
plesmente para estar com Ele, para escutar sua voz.
É ler por ler.
Daí porque a lectio é uma leitura pausada,
alheia a toda pressa. O que se pretende é saborear,
mais que saber; admirar, e não especular ou ques-
-tionar. Existe uma notável diferença entre “ciência”
e “sabedoria”; os monges antigos o enfatizaram. Há
uma diferença entre um saber de tipo acadêmico e
universitário, e um saber de tipo monástico; entre
um saber conceituai e um saber que Newman cha
mava “real”; entre um saber impessoal na ordem do
“ter”, e um saber existencial na ordem do “ser”. A
lectio divina ultrapassa a informação meramente
humana, o trabalho puramente científico, teológico
ou pastoral, como reconhecia o congresso dos aba
des beneditinos de 1967. Hoje em dia os monges que
melhor penetraram na realidade da lectio divina, e
mais convencidos estão da conveniência urgente de
sua plena restauração nos mosteiros, insistem em
idéias como a seguinte: a “leitura divina” e o estudo
são duas realidades distintas, mas se completam e
se sustentam mutuamente; o objetivo da formação
deveria levar a procurar que cada monge, segundo
suas possibilidades e necessidades pessoais, encon
tre o método apropriado para dedicar-se à lectio e
aplicar-se ao estudo; lectio e estudo deveríam ser
considerados como dois caminhos complementares
de uma mesma busca de Deus, na qual se encon
tra comprometida a pessoa inteira, inteligência
e coração. Há os que vão muito mais longe, e não
hesitam em afirmar que a Bíblia deveria ocupar
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no saber monástico não somente o primeiro lugar,
mas todo o lugar, no sentido de que qualquer outro
estudo a ela deve referir-se de alguma maneira
como preparação, ilustração ou comentário. Desse
modo, todo o estudo do monge estará a serviço de
sua lectio divina. Deve-se advertir que nem todo
estudo é apto para facilitar e favorecer a lectio,
mas somente aquele que se realiza nas mesmas
condições e idênticas disposições interiores. Lectio
e estudo não devem nunca ser atividades opostas,
reservando-se o estudo ao monopólio da inteligên
cia, e a lectio ao da vontade. O estudo do monge
deveria ser de certa maneira “leitura divina”, posto
que já é um encontro pessoal com Deus. Um estudo
realizado como lectio divina torna-se profundamen-
le unifi-cante. Comumente se desdobra em oração e
louvor, como a lectio propriamente dita. A “leitura
de Deus” — não se insistirá nunca o bastante nisso
— é uma leitura gostosa e degustada, palatável.
É saborear o Verbo, saborear a Deus, no Espírito
Santo, que vivifica a letra e suscita no leitor um
gosto secreto para que se ponha em harmonia com
o que leu e responda com sua oração e toda a sua
vida à Palavra do Pai. É uma experiência de Deus,
pois nela se verifica uma comunicação de vida, uma
participação, uma comunhão.
Leitura íntima
A “leitura divina” busca não tanto obter um
conhecimento tão exaustivo quanto seja possível da
verdade — tarefa própria da teologia especulativa
— como chegar a um contato direto com Deus, a
um estar com Deus, a um escutar a Deus que fala
47
pessoalmente, aqui e agora, a cada um dos homens
que abre com fé as Escrituras.
Com efeito, Deus nos fala. Mais ainda: Deus nos
abre seu coração e nos convida a penetrar nele, a
esquadrinhá-lo, a conhecê-lo. São João Crisóstomo
nos descreve os monges de Antioquia “cravados em
seus livros”, completamente embebidos no mundo
da Bíblia: “Alguns tomam Isaías, e com ele conver
sam; outros falam com os apóstolos”. E em outro
lugar: “O monge tem literalmente convívio com os
profetas, e adorna sua alma com a sabedoria de
Paulo, e a cada passo pode saltar de Moisés a Isaías,
e deste a João e a qualquer outro”. Mas o mesmo
João Crisóstomo diz em outro lugar: “Consideremos
que pela língua dos profetas escutamos a Deus que
fala conosco”. Isso é o importante, o que interessa
de verdade, o que se deseja acima de qualquer ou
tra coisa. Segundo São Gregório Magno, a oração
dos salmos — um dos modos de se praticar a lectio
divina — é o lugar de encontro íntimo entre nós,
que vamos até Deus, e Deus, que vem a nós. Porque,
“para onde se dirigem as palavras de Deus senão ao
coração dos homens”? E que se faz ao ler as Escri
turas, senão estudar o coração de Deus? Gregório
revela acertadamente um dos aspectos essenciais
da lectio, quando escreve: “ cor Dei in verbis
Dei”, expressão que, sem dúvida alguma, reflete
uma experiência pessoal.
Vejamos o texto completo. Gregório havia sido
embaixador na corte de Constantinopla. Aí conhe
ceu o nobre Teodoro, e ficaram amigos. Gregório
tornou-se seu diretor espiritual. Em seguida, Gre
gório regressou a Roma e o elegeram papa. Teodoro,
por sua vez, chegou a ser médico do imperador.
Gregório escreveu-lhe uma carta para exortá-lo a
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ler com assiduidade a Sagrada Escritura: “Tenho
que dirigir-te uma queixa, ilustre filho Teodoro.
Recebeste gratuitamente da Santíssima Trindade
a inteligência e os bens temporais, a misericórdia
e o amor; mas estás constantemente imerso em as
suntos materiais, obrigado a freqüentes viagens, e
deixas de ler diariamente as palavras do teu Reden
tor. Não é a Sagrada Escritura uma carta do Deus
Todo-Poderoso à sua criatura? Se te afastasses por
algum tempo do imperador e recebesses dele uma
carta, não descansarias nem dormirías até que les
ses o que te havia escrito um imperador da terra.
O imperador do céu, o Senhor dos homens e dos
anjos, te dirigiu uma carta em que se refere à tua
vida, e tu não te ocupas em lê-la com fervor. Aplica-
-te, rogo-te, a meditar cada dia as palavras de teu
Criador. Aprende a conhecer o coração de Deus nas
palavras de Deus, para que tendas com maior ardor
às coisas eternas, para que tua mente se acenda em
maiores desejos dos gozos celestiais. Porque somente
então alcançaremos o máximo descanso, se agora,
por amor a nosso Criador, não nos damos repouso
algum” (Ep. IV, 31).
A Escritura, carta de Deus, nos permite conhe
cer o coração de Deus. E esse conhecimento nos faz
desejar conhecê-lo mais e mais, até possuí-lo nos
“gozos celestiais”. O coração do homem não deve dar-
-se “repouso algum” até possuir o coração de Deus.
O caminho do aprofundamento é infinito. Nunca
esgotaremos o coração de Deus.
Em uma biografia de Cecília Bruyère, primeira
abadessa de Santa Cecília de Solesmes, se lê que
seu livro predileto era a Bíblia e que “sabia lê-la,
sob o olhar de Deus, com olhos de esposa”. É uma
frase feliz. A esposa, ao ler as cartas do esposo,
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descobre nelas pormenores, matizes, profundidades
que nenhuma outra pessoa é capaz de vislumbrar.
“O coração de Deus”, “olhos de esposa”: o amor
representa evidentemente um grande papel, um
papel de protagonista, na “leitura de Deus”. Trata-
-se de uma leitura não apenas pessoal, mas também
íntima; e na intimidade é tudo. Na novela de Nikos
Kazantzakis, O Cristo Recrucificado, aparece um
personagem, Yannakos, que se distingue pela sa
bedoria de suas sentenças — “Diga-nos, Yannakos,
o rei Salomão reencarnou em ti?”, perguntam-lhe.
“Velho, eu não explico isso com minha inteligência”,
responde Yannakos, “mas com o coração; ele é o rei
Salomão”! E mais adiante, o bom pope Fotis decide:
“Tens razão, Yannakos, o Evangelho não se lê com a
cabeça; nosso pobre entendimento compreende bem
pouca coisa; deve ser lido com o coração. Este sim
compreende tudo”.
Tal é a opinião de um escritor. Vejamos o que
pensa um cientista, o doutor Alexis Carrel: “Nós,
homens do Ocidente, temos a razão em muito mais
alta estima que a intuição. Preferimos, de muito, a
inteligência ao sentimento (...). A atrofia dessas ati
vidades fundamentais [não intelectuais] transforma
o homem moderno em um ser espiritualmente cego”.
E em outro lugar: “Os simples percebem a Deus
tão naturalmente como sentem o calor do sol ou o
perfume de uma flor. Mas este Deus, tão acessível
para aquele que sabe amar, se esconde para aquele
que só sabe compreender”.
O Deus de Jesus Cristo, o Deus único e ver
dadeiro, Pai, Filho e Espírito Santo, nos fala na
lectio divina, de coração a coração, numa intimi
dade inefável. As três Divinas Pessoas, como no
ícone de Andrei Rublev, parecem convidar-nos a
50
participar de sua conversação. Mas é natural e
compreensível que o cristão encontre com mais
freqüência na Escritura a palavra e a pessoa de
Jesus de Nazaré. Santa Teresa do Menino Jesus
intuiu, graças a seu grande amor, esta verdade
inalterável: “Guardar a palavra de Jesus é a úni
ca condição de nossa felicidade, a prova de nosso
amor por ele. Mas que é esta palavra? Creio que
a palavra de Jesus é ele mesmo. Jesus, o Verbo, a
Palavra de Deus, nos diz depois: "... santifica-os
por tua Palavra, tua Palavra é a verdade (...)”.
Jesus nos ensina que ele é o caminho, a verdade
e a vida. Nós sabemos, pois, qual é a palavra que
devemos guardar, e não perguntaremos a Jesus,
como perguntou Pilatos, “ ‘O que é a verdade?’. Nós
possuímos a verdade, pois guardamos a Jesus em
nossos corações”.
Um teólogo protestante, H. Zahrnt, depois de
referir a definição de Schleiermacher sobre o cristia-
-nismo—“religião histórica positiva”, que tem como
condição uma pessoa concreta e um livro concreto:
Jesus Cristo e a Bíblia —, acrescenta estas palavras:
“A Bíblia é a fonte e o cânon da vida da Igreja... Mas
bem entendido: não é porque Jesus Cristo está na
Bíblia que ele tem um significado para nós; ao con
trário, a Bíblia tem um significado para nós, porque
Jesus Cristo está nela”.
Professamos a fé cristã. Zahrnt escreve: “A fé
cristã é fé em Jesus Cristo. Que outra coisa podería
ser”? E Paul Evdokimov cita um texto de Simeão,
o Novo Teólogo: “Quando Jesus se nos apresenta,
vemos os mistérios ocultos nas Escrituras”. Depois
afirma com todo o direito: “A heresia provém da
razão raciocinante sobre uma palavra abstrata,
e por isso mesmo morta. Por conseguinte, todo o
51
significado da Tradição está no descobrir de Cristo,
descoberta que enche com sua presença todas as
formas da fé”. São Gregório de Nissa havia escrito:
“A fé não somente introduz a flecha, mas também o
Arqueiro com ela” (o Arqueiro é Cristo). “Qualquer
outro método, estudo ou leitura das Escrituras” —
conclui Evdokimov —, “não tem outro resultado
senão submergir-nos no erro”. É a Jesus que encon
tramos, sobretudo nos livros sagrados, e ao mesmo
tempo é ele quem nos abre o sentido das Escrituras,
como aos discípulos de Emaús; e ao se comunicar
conosco, faz arder nossos corações. A lectio divina é
uma leitura íntima.
Voltemos a Santa Teresa do Menino Jesus.
Sem ter a abundância de meios de que se dispõe
atualmente, a santa carmelita viveu e morreu na
íntima união com a Escritura, no diálogo contínuo
com a Palavra de Deus. As expressões e os matizes
desse diálogo são infinitamente delicados. Assim,
por exemplo: “Volto ao santo Evangelho, onde não
é São Mateus, nem São Marcos, nem São Lucas,
nem São João, é o Senhor quem me explica em que
consiste seu mandamento novo”. Jesus ajuda irmã
Teresa a manter toda a sua existência em contato
vivo com a Escritura. A carmelita acaba de vencer,
a duras penas, seu mau humor; sua imperfeição a
tinha oprimido. “Estava me perguntando o que Jesus
pensaria de mim, quando me recordei das palavras
que ele dirigiu um dia à mulher adúltera: ‘Ninguém
te condenou?’. E lhe respondi chorando: ‘Ninguém,
Senhor’. Por que Jesus é tão doce comigo”? E em outro
lugar: “Não tenho mais que fixar os olhos no santo
Evangelho; aspiro imediatamente o perfume da vida
de Jesus e sei por que caminho correr”...
52
Leitura orante
Ensinam os Padres que a oração deve in
terromper a leitura. Assim, São Jerônimo, Santo
Agostinho, Cassiano, Santo Isidoro de Sevilha. Este
último dá uma razão: “Muitas vezes, uma leitura
prolongada fatiga a memória; por isso é melhor ler
um parágrafo, fechar o livro e repassar dentro da
alma a verdade que se acaba de ler. Dessa maneira
se lerá sem fadiga, e a doutrina não resvalará pela
superfície do espírito”. Orígenes dá outra razão:
“Quando não se encontra o que se busca, quando
não se entende o texto que se lê, deve-se recorrer a
Deus, pedir-lhe que no-lo dê a conhecer; desse modo
a leitura se converte em oração, pois é absoluta
mente necessário orar para compreender as coisas
divinas”. É preciso orar, em primeiro lugar — diz
São Basílio —, porque somente o Espírito Santo nos
permite descobrir o sentido das palavras da Escri
tura. Um medieval, Guilherme de Saint-Thierry,
assegura que as interrupções dedicadas à oração,
que ele recomenda vivamente, longe de molestar
a alma, comunicam-lhe uma lucidez que a ajuda
a compreender o que se lê. São Bento, por sua vez,
enumera, entre as principais práticas quaresmais,7
a oratio cum fletibus, a lectio e a compunctio .
Essa passagem do admirável capítulo 49 da Regra
revela melhor que qualquer outra mentalidade do
santo. Evidentemente, segundo ele, quando se pro
duz o affectus inspirationis divinae gratiae, ou seja,
a graça da oração íntima de que nos fala o capítulo
20, o monge interrompe a leitura para orar, e se
7Respectivamente, “oração com lágrimas”, “leitura divina” e “com-
punção do coração”. (N. do T.)
53
entabula o diálogo entre Deus e o homem. “Quando
oras, falas a teu Esposo; quando lês, ele fala a ti”.
Na realidade, não seria preciso que os Padres
e outros mestres espirituais aconselhassem asso-
-ciar a oração à leitura. Quando a lectio divina se
pratica como ensina a tradição, isto é, quando a
“leitura divina” é verdadeiramente “leitura divina”
e não mera “leitura espiritual” nem está dominada
por preocupações intelectuais ou utilitárias; quando
a lectio é atenção a Deus e contato pessoal e ínti
mo com sua Palavra, a oração brota espontânea e
irresistivelmente. E mais, a oração torna-se parte
da lectio. Com efeito, não se lê a Deus como a um
autor qualquer. Muito se tem insistido em que ler
é colocar-se em íntima comunicação com o autor,
e é verdade. Para ler bem, para que um autor nos
comunique de verdade seu pensamento e responda
às nossas interrogações, é preciso considerarmos
que estamos conversando com ele. Claro que isso
é uma ficção, porque o autor não nos conhece nem
está presente, e portanto não pode responder às
nossas perguntas, mas enquanto as respostas já
estão contidas em seu texto. Com a Bíblia é dife
rente. Deus, que está presente nela, é um Deus
vivo, um Deus que não só falou, mas que fala, que
me fala. Por isso, “leitura de Deus” equivale uma
“conversação com Deus”.
O cisterciense Arnold de Bohéries diz do mon
ge noviço: “Quando ler, que busque o sabor, não
a ciência. A Sagrada Escritura é o poço de Jacó,
de onde se extrai a água que imediatamente se
derrama pela oração. Não será necessário ir ao
oratório para começar a orar, mas na própria lei
tura haverá ocasião para orar e contemplar”. Por
isso, na hagiografia e nos tratados monásticos me-
54
dievais, lêem-se expressões como estas: “Quin
ipsa lectio erat oratio“Totus in lectione, totus in
oratione”... Outro cisterciense anônimo do século 8
XII escrevia: “Legendo oro, orando .
Na mesma linha situam-se o abade geral Dom
Ambrose Southey, para quem a lectio consiste
em “ruminar a Palavra de Deus na oração”, e um
monge de nossos dias, que a descreve como “uma
leitura meditada, sobretudo da Bíblia, e prolon
gada em oração contem-plativa”. A lectio divina é
um diálogo de amor, de coração a coração, na mais
completa intimidade pes-soal. Leitura e oração são
inseparáveis. Em muitos textos se identificam.
Leitura atenta
A Bíblia é “o livro dos que buscam a Deus”; a
“leitura divina”, uma tarefa própria dos que buscam
a Deus. Ora, buscar supõe sempre algum esforço.
Ainda que repousada e aprazível, a lectio divina
requer freqüentemente uma notável, uma perse
verante dedicação.
Há que descartar de uma vez por todas a
idéia de que a lectio consiste ou pode consistir em
uma espécie de “passatempo espiritual”, uma leve
recrea-ção piedosa. Tal maneira de pensar revela
completo desconhecimento dos ensinamentos da
Tradição. Para os Padres e legisladores monásticos,
com efeito, a “leitura divina” era uma tarefa muito
séria, muito grave, muito árdua. Parece significativo
que a “leitura divina” ocupe lugar semelhante ao
do trabalho físico nas regras monásticas. Fora do
tempo reservado ao Ofício Divino, “devem ocupar-se
os irmãos em algumas horas no trabalho manual,
e outras na leitura divina”, diz, por exemplo, São
Bento (RB 48,1). A lectio,fundamentalmente, repre
senta o exercício do “homem interior”, um exercício
que requer, sem nenhuma desculpa, a total aten
ção, a enérgica aplicação das potências da alma: a
memória, o entendimento, a afetividade. Implica a
lectio uma grande firmeza de ânimo para perscru
tar, captar e compreender, na mais plena acepção
do termo, a Palavra de Deus. Há que aplicar-se a
isso — proséchein, como escreve insistentemente
Orígenes — com perseverante esforço.
Ora, o cansaço, o sono, a apatia, o tédio, a pre
guiça são realidades demasiado humanas para que
não afetem, ao menos de vez em quando, o leitor
da Escritura. Na coleção latina dos Apoftagemas dos
Padres nos é dito: “Os profetas escreveram livros,
nossos pais os puseram em prática, seus sucessores
os aprenderam de memória, e a presente geração os
transcreve em pergaminhos e os deixa dormir nas
bibliotecas”. Este apoftegma reflete — exagerando
um pouco, evidentemente — uma falta de interesse
coletiva. Muito mais freqüentemente, sem dúvida, o
indivíduo está pouco disposto a ler, sobretudo com
toda a atenção e a total dedicação próprias da lectio
divina. Cassiano nos pinta uma pequena cena que
devia repetir-se com certa freqüência na prosaica
realidade cotidiana do deserto, quando escreve:
“Talvez eu deseje dar firmeza ao meu coração, for-
çando-me a ler a Escritura; mas uma dor de cabeça
me impede, e até às nove da manhã dormi com a
cabeça sobre o livro” (Col. 10, 10). Outras vezes a
alma se sente como que submergida no letal torpor
da acédia, e a leitura causa aversão e desagrado
(Col. 4, 2). Perseverar nela, custe o que custar,
supõe uma vontade quase heróica. Na sentença
da Regra de São Bento: “Lectiones sanctas libenter
audire” (RB 4, 55), o advérbio libenter (com gosto)
se refere à repugnância que certos espíritos sentiam
pela leitura. São Bento censura severamente tais
negligências (RB 48,17, 20).
66
A essas dificuldades de tipo bem mais subjetivo
se acrescentam outras de caráter objetivo, deriva
das da natureza mesma da Escritura. Porque, não
nos enganemos, a leitura da Bíblia é uma leitura
austera em muitíssimas de suas páginas. Por várias
razões. Uma delas são suas obscuridades, as difi
culdades de interpretá-las corretamente. Mesmo o
Evangelho as apresenta. O beneditino Alonso Ruiz
de Virués não faz mais que resumir a doutrina de
Cassiano e de uma longa tradição, quando escreve:
Cristo “fechou e obscureceu com palavras místicas”
os mistérios do Evangelho, “de tal maneira que, tra
zidos entre as mãos, não podem ser vistos senão por
aqueles quibus Ipse tradiderit elavem sem
a qual todos os silogismos e formalidades aprendi
dos nas escolas servem muito pouco”.
A leitura da Bíblia é austera porque, como
diz a própria Escritura, “a Palavra de Deus é viva,
eficaz e mais penetrante que qualquer espada de
dois gumes; penetra até dividir alma e espírito,
junturas e medulas. Ela julga as disposições e as
intenções do coração” (Hb 4,12). Viva como Deus,
tem a atividade que é o poder de Deus atuante:
penetra até o mais recôndito, o mais íntimo do
ser, onde o espírito sobrenatural se encontra com
nosso princípio vital. E aí, no interior do homem,
possui uma capacidade de julgar e sentenciar,
porque obriga o homem a tomar posição; diante
dessa palavra não é possível o compromisso nem a
dissimulação. Porque o juiz está no interior. A lectio
divina, como diz A.-M. Besnard, é “uma aventura
perigosa”. Com freqüência pode converter-se 9 em
combate corpo a corpo com Deus, pois Deus nos
9“Que trazem em si a chave da ciência”. (N. do T.)
67
assalta quando menos o esperamos. Encontrar-se
com Deus é freqüentemente doloroso.
Mas tudo isso pertence à natureza mesma da
“leitura de Deus”. Nela se busca a Deus, e a pessoa
o busca, evidentemente, para encontrá-lo. Algumas
vezes nos consolará, outras nos julgará, outras —
com freqüência — nos pedirá isto ou aquilo. Precisa
mente porque “a Palavra de Deus pode exigir de mim
hoje uma coisa que não exigiu ontem” — escreve
H. U. von Balthasar —, “devo permanecer aberto e
atento para escutar o que exige”.
Leitura assídua
Uma última qualidade importante da lectio
divina deve ser assinalada: seu caráter de leitura
assídua, de releitura constante, que não conhece fim.
Ao esforço da atenção mantida deve somar-se o da
perseverança a todo custo. São Serafim de Sarov lia
a cada semana todo o Novo Testamento. De Nepo-
ciano escreve São Jerônimo: “Pela assídua leitura
e meditação prolongada, havia feito de seu peito
uma biblioteca de Cristo” (Ep. 60, 10). Os modelos
insignes de perseverança na lectio são numerosos,
e alguns, cativantes.
Dimitri Marejkovsky diz do Evangelho: “Livro
singular. Nunca é lido por inteiro. Agrada lê-lo, parece
que sempre fica por terminar, que se omitiu algo, que
ficou algo incompreendido. Volta-se a ler, e se sente a
mesma impressão. E assim cada vez. Como o céu à noi
te. À medida que a pessoa o contempla, se descobrem
novas estrelas”. O mesmo se podería dizer dos demais
livros que compõem a divina Biblioteca. À medida que
os vamos lendo e voltando a ler, descobrimos “novas
68
estrelas”, se nos abre um pouco mais o maravilhoso, o
estupendo horizonte do universo da Bíblia.
Diz a Regula Ferioli: “In manibus monachi
frequens sit lectio”10. Toda a tradição monástica
recomenda o mesmo: o livro deve estar quase con
tinuamente nas mãos do monge. A assiduidade na
“leitura divina” encontrou em S. Gregório Magno um
advogado incansável. Gregório havia experimentado
as profundezas da Bíblia, tão insondáveis como as
de Deus. Ele observa: “Ninguém se aprofundou tanto
em seu conhecimento que não possa avançar ainda
mais, porque todo progresso humano permanece
abaixo da altura da divindade que inspirou a Escri
tura”. Esta, “por muito que seja explicada, continua
tendo segredos”, pois “está composta de tal maneira
que continua ignorada ainda quando conhecida, é
lida com maior agrado se é estudada a cada dia, e,
podendo-se descobrir sempre algo novo nela, possui
a arte de enlevar” (In Reg., proêm. 3). Em outro
lugar escreve: quanto mais se lê a Bíblia, mais se
quer ler; acessível aos leitores sem cultura, é sempre
nova para o sábio Mor.20, 1, 1). Ao freqüentar a
Escritura, vai-se descobrindo progressivamente, e
esse descobrimento não acaba nunca. Na realidade,
valeria pouco se fosse de fácil acesso. “Quando a
inteligência encontra o sentido de cer-tos lugares
obscuros, tanto mais se sente reconfortada quanto
mais se tenha esforçado em sua busca” (Hom. in
Ez. 1, 6, 1). O esforço necessário torna fecunda a
leitura. “Suas passagens obscuras querem despertar
nossa inteligência para que estejamos atentos à sua
profundidade, mesmo naquelas passagens aparen
temente simples e claras” (Mor.18,1).
10“Nas mãos do monge seja freqüente a leitura”. (N. do T.)
69
Da lectio divina não se pode descuidar, não se
admitem férias. Assim como Rebeca — diz Orígenes
—, é preciso voltar todos os dias ao poço das Escritu
ras. Se às vezes deixamos de fazer delas o objeto de
nossa lectio, e lemos outros autores, é a fim de que
nos ajudem a aproveitarmos melhor a Palavra de
Deus contida na Bíblia. Mas, em seguida, é preciso
regressar às Escrituras, ou melhor, devem-se reali
zar ambas as leituras simultaneamente.
A Bíblia, ademais, deve ser lida por inteiro.
Todos os seus livros, mesmo os que parecem menos
úteis — se não de todo inúteis — para a vida espi
ritual, contêm a Palavra de Deus. Essa é a razão
principal. Mas há também um motivo de ordem
psicológica: a amplitude e a diversidade dos livros
sagrados contêm um elemento de variedade nada
desprezível. Somos humanos, e, conseqüentemente,
limitados e inconstantes. Tudo, inclusive as coisas
mais santas e sublimes, se nos converte em rotina,
até chegar a causar-nos fastio. Nosso espírito se
acostuma tanto a tudo, que pode chegar a sentir-se
indiferente ante as páginas do Saltério ou do próprio
Evangelho. Pode-se dizer que Deus leva isso em con
ta, e quis ajudar-nos oferecendo-nos uma Biblioteca
extremamente rica. Com efeito, quanta variedade
na Escritura, especialmente no Antigo Testamento!
Quantas riquezas para quem saiba encontrá-las,
ou melhor, para aquele a quem o Espírito Santo
concede descobri-las! Tanto pelo número, extensão e
diversidade de caráter dos escritos que o integram,
como pela profundidade das idéias que contém, se
iluminadas com a luz de Cristo, o Antigo Testamento
é realmente inesgotável. Assim, nosso esforço por
perseverar na “leitura de Deus” será apoiado pela
maravilhosa variedade dos livros sagrados.
70
Em suma, como escreve J.-M. Delvaux, na lec
tio divina não se trata de se dedicar ao estudo de
textos, por veneráveis que sejam, mas de conhecer
e amar a Deus, pois amamos na medida em que co
nhecemos. “Um coração que ama não pode deixar de
esforçar-se por conhecer melhor aquele a quem ama,
por descobrir cada vez mais seu verdadeiro rosto”.
Essa é talvez a principal razão para a assiduidade
na “leitura de Deus”.
71
Capítulo VIII
Requisitos e disposições
Um ambiente favorável
O congresso dos abades beneditinos de 1967
pensava que a lectio divina “exige uma formação
idônea” e “a criação de um ambiente favorável”. Da
“formação idônea” nos ocuparemos mais adiante.
Tentaremos aqui determinar qual deve ser o “am
biente favorável”. Infelizmente, os abades reunidos
em congresso não o fizeram.
Penso que este clima propício à lectio deveria
ser integrado de paz — exterior e interior, mas
sobretudo interior —, de distensão, de caridade
fraterna — sem caridade não há verdadeira paz
—, de silêncio, de tempo livre. Sobre o silêncio tão
necessário para escutar, observa Dietrich Bonhõffer:
“Ficamos calados antes de escutar, porque nossos
pensamentos já estão dirigidos para a mensagem,
como um menino se cala no momento de entrar no
quarto de seu pai. Calamos depois de ter escutado
a Palavra de Deus, porque ela ressoa, vive e quer
habitar em nós”. Paz, caridade, silêncio, tempo livre:
é o ambiente que, supostamente, reina nos mostei
ros; é o otium monástico, em que tanto insistiram
os autores medievais; é o vacare Deo, isto é, estar
disponível para dedicar-se a Deus. Sem que isso,
72
evidentemente, implique nenhum desinteresse,
nenhuma ruptura com todos e cada um de nossos ir
mãos. Porque, quando me dedico a Deus, quando abro
a Bíblia e encontro a Deus, estou em comunicação com
todos os meus irmãos. É a esposa Igreja, que, através
do um de seus membros, busca e encontra o Esposo.
Pureza de coração
Mas, é claro, não basta um ambiente propício,
não basta uma preparação, uma formação idônea de
tipo intelectual. Cassiano, grande mestre de mon
ges, não se cansa de repetir que a ciência humana,
o estudo dos comentaristas da Bíblia, de pouco ou
nada serve para alcançar a “inteligência espiritual”
da Escritura, que alimenta o “homem interior”, isto
é, a vida de união com Deus. É certo que, segundo
ele, deve-se ler assiduamente a Bíblia; é certo que
devemos esforçar-nos por aprendê-la de cor, a fim de
repassar em seguida as passagens aprendidas em
silêncio, sobretudo durante a noite, pois às vezes
“penetramos em seus sentidos mais ocultos” inclu
sive durante o sono. Mas o que se necessita antes
de tudo e sobretudo é a “pureza de coração”.
Diz Cassiano pela boca do abade Nesteros nas
famosas Colações (14,9): “Se desejais chegar à luz da
ciência espiritual (...) inflamai-vos antes de tudo no
desejo da bem-aventurança, da qual se disse: ‘Bem-
-aventurados os puros de coração, porque verão a
Deus’ ” (Mt 5,8). Somente depois de extirpar os vícios
e adquirir a humildade, será possível “penetrar até
o coração das palavras celestes e contemplar com o
olhar puro da alma os mistérios mais profundos e
escondidos”. E acrescenta uma vez mais Cassiano:
73
“Isso não é dado pela ciência humana, nem pela
cultura dos homens, mas somente pela pureza
da alma, iluminada pela luz do Espírito Santo”.
Desse modo, à medida que vamos progredindo na
purificação interior e na leitura humilde e assídua,
nosso espírito vai se renovando e “nos parecerá que
a Sagrada Escritura começa a mudar para nós. Ela
nos comunica uma compreensão mais profunda e
misteriosa, cuja beleza vai aumentando na razão
direta de nosso progresso. Porque o texto inspirado
se acomoda efetivamente à capacidade receptiva da
inteligência humana”. Por isso, “aos homens carnais
a Escritura parece coisa terrena; aos espirituais,
coisa celestial e divina. E aqueles que a viam antes
como envolta em espessas trevas, são agora capazes
de sondar sua profundidade ou sustentar seu fulgor
com o olhar” (Col. 14,11).
Os biógrafos dos santos observaram às vezes
essa correspondência entre o progresso na purifica
ção interior e a melhor compreensão da Palavra de
Deus contida nos livros sagrados. Assim, para citar
apenas um exemplo, lemos na vida de São Dositeu
que “começou, graças à sua pureza, a entender cer
tas passagens da Escritura”. Segundo a expressão
de Paul Evdokimov, a “encarnação” da Escritura
“pressupõe a reação do meio receptivo, uma compe
netração”, uma pericorésis, segundo o exemplo das
duas naturezas de Cristo.
Desprendimento e docilidade
Outras disposições fundamentais para nos
aproximarmos de Deus que nos espera na Escritura
são a simplicidade, o desprendimento, a docilida-de,
74
a entrega. O cardeal Eduardo Pironio escreve: “A
Palavra de Deus é simples. É preciso penetrá-la com
alma de pobre e coração contemplativo. Somente
assim nasce em nós ‘o gosto da Sabedoria’, e age a
‘potência do Espírito’ que nos torna livres (cf. 2Cor
3,17). Assim sucedeu a Maria, a Virgem pobre e
contemplativa, que recebeu em silêncio a Palavra, a
realizou na obediência da fé (cf. Lc 11,27) e a revestiu
com a simplicidade de sua carne”. Infelizmente, “nós
às vezes complicamos o Evangelho, e assim já não
entendemos a clareza e a força de suas exigências.
Possivelmente olhamos o Evangelho demasiada
mente a partir de nós mesmos”. Mas “a Palavra de
Deus transcende nossa realidade, e é preciso entrar
nela a partir da profundidade do Espírito que ‘son
da todas as coisas, até mesmo as profundidades de
Deus’ ” (1Cor 2,10).
O desprendimento deve libertar-nos, como diz
A. Southey, do “desejo ansioso de resultados”. Pois
não se deve ir em busca de sentimentos, de “expe-
-riências”, de idéias bonitas para comunicar aos
demais... A lectio é um esforço de longa duração,
que leva a um aprofundamento incessante, mas
normalmente imperceptível, de nossa intimidade
com Deus.
No já citado simpósio cisterciense sobre a lectio
divina, notou-se com que insistência costumamos
recorrer à Bíblia para ver o que podemos tirar dela,
não para ver o que pode ela tirar de nós... Isso,
naturalmente, é da maior importância. Para que
a “leitura de Deus” seja autêntica, é preciso apro-
ximar-se dela com espírito de entrega, de perfeita
disponibilidade ao que o Senhor irá pedir-nos. “A
lectio é uma verdadeira ascese. Não permanece em
nível teórico, mas, como a própria Palavra de Deus,
é uma espada de dois gumes, que chega às profun
dezas mais íntimas e requer uma resposta pessoal”.
Segundo São Gregório Magno — um dos mais
exímios mestres da “leitura do Deus” —, saber ler
a Escritura pode converter-se em uma definição
de cristão, na medida em que essa leitura seja
existencial, e não apenas um exercício superficial
da inteligência. “Como estão os bons servos sempre
atentos aos olhos de seus senhores para executar
sem demora o que ordenam, assim também os
espíritos dos justos permanecem atentos à pre
sença de Deus todo-poderoso, fixando os olhos na
Escritura, como se fosse sua boca. Porque, como na
Escritura Deus expressa sua vontade, quanto mais
a conhecem através de sua Palavra, tanto menos
se afastam dela. Não ressoa em seus ouvidos sem
deixar marca, mas fica gravada em seus corações”
(Mor. 16, 35, 43). Essa disposição fundamental
de esquadrinhar as Escrituras para cumprir a
vontade do Senhor que nelas se manifesta, essa
atitude generosa do coração abre aos simples e
menos preparados o sentido dos preceitos divinos,
que ignorem por negligência espíritos dotados. “O
olho do amor ilumina as trevas de sua rudeza (...).
Chegam assim aos cumes do entendimento, porque
não deixam de cumprir o que compreenderam, até
as menores coisas” (Mor. 6,10,12).
Um dos segredos da santidade de Irmã Teresa
do Menino Jesus — talvez o principal — era sua
plena aceitação da Palavra de Deus para realizá-la
e vivê-la. Jamais tentou acomodá-la a seu caminho,
mas acomodou seu caminho à Palavra de Deus, de
modo total e absoluto. Iñaki Aranguren assegura
que: conhece um monge que nas horas noturnas
depois das vigílias, quando abre sua Bíblia, “o livro
76
mais pessoal do monge”, de joelhos evoca o texto de
Isaías 50,4-5: O Senhor “cada manhã me aviva o
ouvido para que escute como os iniciados. O Senhor
me abriu o ouvido: eu não resisti nem me retirei”.
De outro monge nos conta que sobre a capa de sua
Bíblia tinha escrito estas palavras do Apocalipse:
“Tomei o livro das mãos do anjo, e o comi, e era doce
como o mel em minha boca, mas amargo em minhas
entranhas”. Esse religioso costuma ainda dizer que
a lectio divina não é autêntica se a “Palavra de Deus
não te vira do avesso”. Quem não está disposto a
que a Palavra de Deus o vire do avesso não abra a
Escritura: perdería seu tempo.
São Bento nos dá uma excelente norma ao
falar da oração: temos de aproximar-nos de Deus
“ cum omni humilitate et puritatis devotione” (RB
20,2), isto é, com toda humildade e pura devoção,
no sentido próprio da palavra devotio, que é o de
“entrega”. O mesmo vale para a lectio divina, que
é aproximar-se de Deus e é colóquio com Deus,
como a oração. A lectio exige entrega, a entrega
sincera — puritatis devotio — de quem a pratica.
“Supõe que o leitor se abandona a Deus, que lhe
está falando e que lhe concede uma mudança do
coração”, segundo a bela expressão, já citada, dos
padres da Companhia de Jesus reunidos em sua
31a Congregação Geral.
Espírito de oração
Já vimos que, segundo Paolo Giustiniani, “o
monge deve aproximar-se da Palavra, não para
entreter-se, não para estudar, mas como se subisse
ao altar de Deus, com grandes preparativos de alma
77
e de corpo”. Deus se nos oferece para que leiamos
em seu coração, nos chama à sua intimidade. Mas
esse contato com Deus não pode efetuar-se senão
em clima de fé viva, e, como escreve A. Southey,
“requer que nos preparemos com uma atitude de
desejo humilde, uma atitude de oração”.
Os Padres insistem neste princípio fundamen
tal: compreender a Escritura é um dom de Deus. São
Gregório Magno, por exemplo, diz que “as palavras
de Deus não podem ser penetradas sem sua sabe
doria, e quem não recebeu seu Espírito não pode de
modo algum entender suas palavras” (Mor. 18, 39,
60). Marcos Eremita ensina que “o Evangelho está
fechado para os esforços do homem; abri-lo é dom de
Cristo”. Por isso São João Crisóstomo orava ante a
Bíblia: “Senhor Jesus Cristo, abre os olhos do meu
coração, (...) ilumina meus olhos com tua luz (...), tu
somente, a única luz”. E Santo Efrém aconselhava:
“antes de toda leitura, reza e suplica a Deus para
que se revele a ti”. Se a “leitura divina” é um dom
da graça, devemos suplicar ao Senhor da graça para
que no-la conceda. Somente a oração humilde, sin
cera, amorosa, pode conseguir que aquele que nos
deu as Escrituras nos abra seu sentido profundo.
78
Capítulo IX
Três exemplos
93
Capítulo XI
Complementos
Meditatio
O mais importante destes três elementos é,
sem dúvida alguma, a meditatio. Tão importante
que faz parte da própria lectio e freqüentemente se
identifica com ela.
Meditatio e meditari (ou meditare) não são
palavras fáceis de traduzir. Em primeiro lugar, não
significam “meditação” e “meditar”, tal como se en
tende hoje, depois de uma longa evolução semântica.
Pouco a pouco, com efeito, conforme ia predomi
nando o elemento racional em matéria de oração e
contemplação, o sentido da meditatio foi sofrendo
uma importante transformação, até converter-se
em uma reflexão sobre as verdades da fé. Mas, no
princípio e durante longos séculos, seu significado
era outro. Na realidade, tanto meditatio como me
ditari ou meditare têm várias acepções e matizes.
Na antiguidade cristã e, sobretudo, monástica, o
94
termo melete (em grego) ou meditatio (em latim)
adquire essencialmente dois sentidos: primeiro,
aprender um texto de cor — às vezes os Evangelhos,
normalmente o Saltério, etc. — repetindo-o em voz
alta. Este era o único meio de “ler” a Bíblia dos
analfabetos, mas mesmo os que sabiam ler apren
diam textos de cor para poder ruminá-los fora dos
horários de leitura. Segundo, recitar de cor, ou ler,
um texto determinado.
A meditatio ou melete não foi inventada pelos
monges, nem pelos cristãos. Tanto no mundo gentio
como entre os judeus já era praticada há muito. É sabido que algumas e
seus adeptos que aprendessem de cor certas sen
tenças e se exercitassem em repeti-las em voz alta.
Os judeus, por sua parte, praticavam — e alguns
continuam praticando — a meditatio da Bíblia.
André Chouraqui nos fornece algumas informa
ções muito interessantes sobre esse particular. Diz o
Salmo 1: “Feliz o homem que não vai ao conselho dos
ímpios (...), mas seu prazer está na lei de Iahweh, e
medita sua lei, dia e noite” (v. 1-2). O homem não se
enamora da lei, mas da torá, cujo primeiro sentido é
tudo o que emana de Deus, sua Palavra criadora e
tudo o que a expressa. Em primeiro lugar, os escritos
que a revelam. Esse desejo do homem — é melhor
traduzir “desejo” em vez de “gozo” — se manifesta
em uma atitude concreta: haga, verbo que se traduz
normalmente por “meditar”. De fato, seu primeiro
significado é “gemer”, “rugir”, “cochichar”, “falar”.
Expressa o rugido do leão, o arrulho da pomba, o ge
mido do homem. Somente por derivação do sentido,
a palavra haga pode ser traduzida por “expressar”,
“monologar” ou, mais remotamente, por “meditar”,
“sonhar”, “imaginar”. Mas, já estamos afastados dos
95
primeiros significados, que são sempre concretos
e imediatos. A meditação não se faz em abstrato,
mas implica uma atitude: abrir a de Iahweh,
desejada porque amada, e sussurrar o texto dia e
noite. Não se trata de exageros orientais, mas de
murmurar a torá sem cessar, de verdade, mesmo
enquanto se dorme, se come e se viaja. Chouraqui
confessa tê-lo experimentado quando estava tra
duzindo a Bíblia para o francês. “O desejo nascido
do amor provoca uma união essencial do amante
com o amado”. O versículo 2 do Salmo 1 sugere que
a torá de Iahweh se converte também na torá do
homem. “Há como que uma morte de si mesmo e
um renascer à luz do amor: o homem transformou-
-se ele mesmo em torá de Iahweh e não pode fazer
outra coisa senão recitá-la dia e noite. Não porque
se esforce para fazê-lo, mas gratuitamente, porque
se tornou assim sob o influxo do amor”.
As técnicas de instrução herdadas da Bíblia
“tendem a desposar o homem, indissoluvelmente,
com a torá de Iahweh”. Trata-se de apropriar-se dela,
de engoli-la. Isso se pode ver nas Yeshivot, escolas
teológicas de Jerusalém que perpetuam as tradições
herdadas da Bíblia. Mais do que um ambiente uni
versitário, a Yeshivah se parece com “um campo de
batalha onde cada um, de dezesseis a dezoito horas
por dia, não apenas recita sua torá, mas a declama
em um alvoroço dificilmente concebível sem que
se o tenha visto. Nesse regime, o estudante chega
a conhecer muito rapidamente seus textos de cor.
Para ele, a torá de Iahweh se converteu em sua torá,
viva até à obsessão em seu espírito, constantemente
tensionado para a mesma direção”.
Essas observações de Chouraqui parecem ex
tremamente esclarecedoras para se compreender o
96
que pretendiam os monges antigos e medievais ao
praticar a meditatio: assimilar melhor o que liam,
assimilá-lo por completo, mediante uma espécie
de mastigação e digestão comparáveis às dos ru
minantes. Na realidade, tanto nos autores antigos
como nos medievais, aparecem com freqüência as
expressões ruminatio e ruminare como sinônimos
de meditatio e meditare. J. B. Lotz compara a medi
tatio a um bom enólogo que conserva e agita sobre
a língua um vinho generoso, até que tenha provado
completamente seu sabor, absorvendo-o inteiramen
te. A. Louf “pensa involuntariamente na plácida e
interminável ruminação das vacas” à sombra de
uma árvore. “A imagem é um pouco trivial, mas
eloqüente. Evoca o repouso, a quietude, uma total
concentração, uma paciente assimilação”. F. Ruppert
prefere ruminatio a meditatio, mesmo reconhecendo
que são sinônimos, porque resiste melhor ao perigo
do intelectualismo. A ruminatio, segundo ele, consta
de dois elementos: primeiro, repetir com freqüên
cia e mesmo continuamente uma palavra ou um
texto; segundo, saborear e assimilar interiormente
essa palavra. A imagem de mastigação, digestão e
assimilação interior convém melhor ao efeito que
se pretende: fazer a Palavra de Deus passar não à
cabeça, mas ao coração.
Desde os inícios do monaquismo, a meditatio
aparece como um elemento que poderia classificar-
-se entre os mais essenciais, sendo praticada por
Santo Antão e os anacoretas, São Pacômio e seus
discípulos. Os mestres dos monges a aconselharam,
a impuseram, sem cansar-se de insistir. Um apofteg-
ma atribuído a Santo Antão, em uma coleção copta,
afirma que o monge não deve ser como o cavalo, que
come muito e a todas as horas e em seguida perde
97
o que come, mas como o camelo, que vai ruminando
o que comeu até que o alimento penetre em “seus
ossos e suas carnes”. Cassiano ensinava: “Devemos
procurar aprender de cor as divinas Escrituras
e ruminá-las incessantemente. Essa meditação
ininterrupta nos alcançará dois frutos principais.
O primeiro será este: enquanto a atenção estiver
ocupada em ler e estudar, estará também livre dos
maus pensamentos. O segundo é que, depois de
ter percorrido várias vezes certas passagens, nos
esforçando por aprendê-las de cor — e sem que
pudéssemos compreendê-las, por nosso espírito
não estar livre para isso —, então, superando as
distrações que nos solicitavam, e repassando as
mesmas passagens em silêncio, especialmente à
noite, as percebemos mais claramente, penetrando
às vezes em seus sentidos mais ocultos. E aquilo
que durante o dia não conseguíamos entender senão
superficialmente, percebemos à noite, quando nos
encontramos submergidos em sono profundo” (
14,10). Em sua Regra das Virgens, 20, São Cesáreo
de Aries as exorta a não abandonar jamais “a me
ditatio da Palavra de Deus e a oração do coração”.
E mais adiante insiste: “Seja qual for a obra que
estais realizando, quando não se faz alguma leitu
ra, ruminai sem cessar alguma coisa da Sagrada
Escritura” (22). Em sua famosa Carta de Ouro aos
cartuxos de Mont-Dieu, Guilherme de Saint-Thierry
lhes dizia: “É preciso arrancar todos os dias um bo
cado da leitura cotidiana e confiá-lo ao estômago da
memória. A passagem é melhor digerida e, de volta
à boca, será freqüentemente ruminada”.
Sejam esses testemunhos como que amostras
de uma tradição ininterrupta no seio do monaquis-
-mo antigo e medieval. Fora dele, inclusive entre os
98
protestantes, praticou-se certa meditatio ou rumi
natio da Escritura. O próprio Lutero a aconselhava.
E já vimos anteriormente como Dietrich Bonhöffer
meditava com freqüência, ao longo do dia, um texto
da Escritura que escolhia para a semana e procura
va “mergulhar-se nele profundamente, para poder
entender de verdade o que nele nos é dito”.
Meditare, ruminare — escreve J. Leclerq —
significa “aderir intimamente à frase que se recita
e avaliar todas as suas palavras, para alcançar a
plenitude do seu sentido”; “assimilar o conteúdo de
um texto por meio de uma certa mastigação que
lhe extrai todo o sabor”; saboreá-lo “com o pala
dar do coração”. Ora, a lectio divina se confundia
freqüentemente com a meditatio, já que entre os
antigos e medievais não costumava ser silenciosa:
ao ler pronunciavam — em voz alta, em voz baixa,
ou pelo menos interiormente — o que liam. E ao
repetir indefinidamente certos textos para retê-los
na memória e convertê-los, de algum modo, em sua
própria substância, praticavam de fato a meditatio.
E essa atividade espiritual, como facilmente se
compreende, não era tão somente meditatio, mas
também oratio. Como saborear e mastigar a Pala
vra de Deus sem responder cordialmente a essa
Palavra que ama e salva? Lectio, meditatio e oratio
representam, pois, três conceitos intimamente rela
cionados entre si. Com freqüência se convertem em
sinônimos. Guigo II, prior da Grande Cartuxa —já
o vimos —, acrescenta a esta tríade a contemplação
como o quarto degrau de sua Scala claustralium: “a
lectio apresenta um alimento sólido, a meditatio o
mastiga, (...) a oratio a saboreia, (...) a contemplatio
é o próprio sabor”.
Collatio
A lectio divina, feita em particular, encontra
na collatio um complemento freqüente, pelo menos
segundo os textos monásticos antigos e medievais.
A palavra é expressiva. Vem de confero, no sentido
de “confrontar” e também de “contribuir”.
Em que consistia a collatio? Em um colóquio de
tipo estritamente espiritual, no qual se colocavam
em comum as experiências individuais obtidas no
contato com a Palavra de Deus. Nesse colóquio,
cada participante era livre para expor o que o texto
sagrado, lido e saboreado na intimidade do diálogo
com Deus, lhe havia sugerido: idéias, sentimentos,
propósitos; o que resultava na edificação e enrique
cimento de todos. Com freqüência, a finalidade que
visavam os participantes do colóquio não era outra
senão ajudar-se mutuamente a resolver os proble
mas que o texto bíblico colocava: o que significava
tal ou qual expressão, como devia interpretar-se
determinada passagem. E sempre com um pro
pósito prático: amoldar melhor a própria vida à
Palavra de Deus.
Quando se fala em collatio, muitos lembram-se
imediatamente das famosas Colações de Cassiano.
Na verdade, os colóquios entre Cassiano e seu amigo
Germano, de um lado, e alguns dos mais afamados
Padres do deserto daquela época, de outro, que as
Colações nos oferecem, são puro artifício literário.
Têm, contudo, uma base real. Eram muitos, na
quela época, os seculares ou monges principiantes
que percorriam os eremitérios do Egito e de outras
regiões em busca da “palavra que salva”, de luz, de
edificação para sua própria vida espiritual. Ade
mais, as Colações de Cassiano nos dão a conhecer
100
a estrutura, o objeto e o espírito das verdadeiras
conferências espirituais dos monges antigos, que
infelizmente se perderam, ou melhor, nunca foram
registradas por escrito. Com efeito, as que aparecem
na Vita Antonii ou em outros documentos monásti
cos são, com toda probabilidade, tão fictícias como
as de Cassiano. Talvez os vestígios mais autênticos
de tais conferências se encontrem em uns poucos
apoftegmas que a elas aludem e nos dão a conhecer
alguns dos fatos que nelas ocorriam. São também
mencionadas em alguns textos procedentes da
koinonía pacomiana, e no suplemento sobre Santo
Orsiésio em uma vida de São Pacômio lemos: “Desde
o princípio, costumavam todas as tardes, depois do
trabalho e da refeição, sentar-se juntos e discutir
sobre as Escrituras”.
É patente o interesse e proveito de tais con
ferências espirituais para os que tomavam parte
nelas. Compartilhar as experiências pessoais do
contato com a Escritura, compará-las com as dos
outros monges, não podia deixar de constituir um
estímulo poderosíssimo para seguir adiante pelo
caminho do ascetismo e na prática assídua da “lei
tura de Deus”.
Eructatio
A palavra eructatio, tão desagradável para a
sensibilidade moderna, é o substantivo do verbo
eructare,“eructar”. Pertence, pois, à terminologia da
alimentação e da digestão. Eructa o que está farto,
enfastiado, repleto de alimento. Provavelmente, o
uso deste termo foi sugerido pelo início do Salmo
44 na versão da Vulgata: “Eructavit cor meum ver-
101
-bum bonum”, que hoje traduzimos com mais finura:
“Transborda um poema do meu coração”. Ou talvez
o versículo 7 do Salmo 144: “Memoriam abundantiae
suavitatis tuae eructabunt”, que hoje soa assim em
nossas igrejas: “Recordam vosso amor tão grandio
so”. Há de se notar que tais traduções não são infiéis
ao texto original, já que eructare significa também
“proferir”, “expressar”, e se usa sobretudo para falar
da linguagem inspirada dos profetas.
O que pretendiam os autores espirituais ao
utilizar essa expressão, símbolo bíblico do entu
siasmo e do amor? Simplesmente, que toda a nossa
conversação, todos os nossos escritos, não deveríam
ser outra coisa que uma efusão, um transbordar da
superabundância e intensidade dos pensamentos e
afetos que a lectio divina, a meditatio, a freqüên-
cia assídua, pessoal e íntima da Palavra de Deus,
foram gerando e acumulando em nosso espírito.
O abade Hiperíquio dizia: “Que o monge trans
borde em palavras de bondade; que de sua boca
brotem as palavras do Altíssimo”. E, segundo São
João Crisóstomo, os solitários da Síria recolhiam
na leitura dos livros sagrados “o mel de suas ora
ções e de sua conversação”. São belos pensamentos,
e verdadeiros. A Palavra de Deus escrita nos pro
porciona “as palavras do Altíssimo”, o “mel” — isto
é, o melhor — que podemos devolver ao próprio
Deus depois de nos apropriarmos dela, na oração, e
compartilhar com os irmãos em nossa convivência
com eles. Um mel que flui espontaneamente dos
lábios e do coração, sem premeditação, sem esforço,
sem que sequer nos demos conta disso. Que tudo
isso não seja mera imaginação, é o que nos atestam
inumeráveis escritos devidos a homens e mulheres
que, na realidade, não são outra coisa senão um
102
transbordamento, uma efusão incoercível do me
lhor que havia na alma deles e delas. E que tudo
isso fosse efeito da lectio divina,da meditatio,
no-lo provam incontestavelmente as contínuas
citações, reminiscências, imagens, expressões e
termos procedentes da Escritura que formam a
trama de tais escritos.
Em síntese, poderia dizer-se que a lectio di
vina, em que se degusta a Palavra de Deus, fica
extasiada; se ao contato e comunhão com essa Pa
lavra, só é possível no espaço interior do coração,
caixa de ressonância em que os ecos dão vida a uma
meditação, um contínuo revolver da verdade e da
vida que se nos revelam e comunicam. Como Maria,
que conservava e revolvia em seu coração todas
as palavras pronunciadas a propósito de Filho, o
leitor fiel da Escritura não deixa de exercitar-se
na meditatio para aprofundar a Palavra de Deus,
para apropriar-se dela e convertê-la na substância
de seu próprio ser. Em seguida a comunica natu
ralmente aos irmãos, a compartilha, como canta a
liturgia da Igreja nas festas dos seus doutores: “A
boca do justo medita a sabedoria e sua língua fala
o direito; no seu coração está a lei do seu Deus,
seus passos nunca vacilam” (SI 36,30-31). O que os
lábios expõem foi meditado longamente, foi vivido
em seu interior.
A propósito da pregação de Santo Agostinho,
escreveu F. Van der Meer: Apenas ele toca os tex
tos, estes se abrem como flores ao sol da manhã. E
quando os textos o tocam, convertem-se em fontes
de água que salta para a vida eterna. Então, das
mais recônditas passagens da Escritura, brota de
seus lábios água viva”. Esta é a eructatio de que
falam os antigos.
Capítulo XII
A leitura dos Padres11
Os Padres e a Bíblia
Os Padres nos conduzem como que pela mão
à fonte da sabedoria cristã, a Sagrada Escritura, e
nos ensinam a amá-la, lê-la e saboreá-la.
Na realidade, a razão mais poderosa para
incluir os escritos dos Padres como objeto da lec
tio divina ao lado da Bíblia é porque, segundo os
monges antigos e medievais, a Bíblia não pode ser
separada dos comentários feitos pelos Padres da
Igreja. Não importam os gêneros literários de que
se servem os Padres: sempre explicam ou desenvol
vem a Escritura. Mais ainda: tudo o que os Padres
não somente escreveram ou disseram, mas também
fizeram, está relacionado, segundo o pensamento dos
antigos monges, com a Escritura: tudo se reduzia a
uma ilustração, teórica ou prática, sobre ela.
Os Padres — e as diversas liturgias, obra deles
—, nos ajudam de modo excelente a interpretar
as Escrituras, a desentranhar seus mistérios, a
descobrir os tesouros de vida que contém. Eles nos
ajudam a ler a Escritura “com os olhos da Esposa”.
São, com efeito, primordialmente os expositores
autorizados da Escritura. Sua obra está em cons
tante e íntima dependência em relação aos livros
sagrados. Paul Evdokimov não exagera ao dizer que
“viviam da Bíblia, pensavam e falavam pela Bíblia,
com essa admirável penetração que chega até à
identificação de seu ser com a própria substância
bíblica”. Sua espiritualidade — diferentemente do
que encontramos em autores posteriores — se refe
re à Bíblia de modo imediato, explícito e constante.
Os Padres exploraram quase todo o conteúdo espi
ritual da Escritura, e essa exploração deu origem a
toda a ascética e mística posteriores. É verdade que
às vezes divagam, deixando-se levar por fantasias
alegóricas, mas normalmente fundamentam sua
exegese espiritual em uma interpretação literal
do texto sagrado. Para eles, o Antigo Testamento
é uma profecia de Cristo, uma figura dos tempos
escatológicos do Novo Testamento. Nunca devemos
ler a Escritura com olhos de arqueólogos, filólogos
ou historiadores, mas com olhos e com coração de
cristãos: esta é a grande lição que nos ensinam os
Santos Padres.
Dificuldades
Como a da Bíblia, a leitura dos Padres não é
fácil. Requer um esforço quase constante, sobretudo
no início.
Os Padres, com efeito, pertencem a uma época
muito diferente da nossa, com gostos e preferências,
problemas e circunstâncias em grande parte dife
110
rentes dos nossos. Sua sociedade, seu ambiente, sua
língua e literatura, sua cultura humana e religiosa,
estão já muito distantes no passado. A maior parte
de suas obras — para não dizer todas —, inclusive
as de caráter mais doutrinai, está profundamente
marcada por seu tempo. Quase todos os Padres,
pelo menos os mais importantes, foram bispos que
intervieram muito ativamente na vida da Igreja, e
suas obras têm um fim prático e imediato. Apologias,
catequeses, homilias, sermões, tratados dogmáticos,
exegéticos ou espirituais, tais escritos se adaptam
a gostos e necessidades do momento à mentalidade
de seus leitores imediatos. Apesar da habilidade dos
tradutores modernos, o próprio estilo dos Padres nos
parece anacrônico e difícil. Penetrar nesse mundo tão
diferente requer não pouca disposição. Mas vale o
que custa. E a Igreja nos pede esse esforço, que vale
a pena realizar. Se conseguimos romper essa casca
um pouco dura e alcançamos o miolo dos escritos
dos Padres, já não conseguimos prescindir deles.
Convertem-se para nós, segundo a expressão de New-
man, em ‘livros familiares”. O contato com eles nos
permite desfrutar de uma herança incomparável, da
alegria do trato familiar com amigos que conhecemos
intimamente. Nossa alma sempre se enriquece na
companhia e amizade dos Padres. Porque não estão
mortos: os amigos de Deus não morrem nunca.
Finalmente — deve-se ressaltar com ênfa
se —, a leitura assídua dos Padres produz uma
grande satisfação religiosa, um aumento da ver
dadeira piedade. Ele nos comunica uma concepção
mais ampla e completa da Igreja, de sua doutrina,
de sua continuidade, de sua vida oculta. E nos ajuda
a viver em plenitude a fraternidade cristã, como
filhos de Deus e membros do corpo místico do Cristo.
Os Padres monásticos
Os Padres católicos, os Padres da Igreja uni
versal, nos ensinam a ler a Bíblia “com os olhos da
Esposa”. Os Padres monásticos nos iniciam na “exe
gese real”, isto é, na arte de aplicar praticamente a
Escritura à vida monástica, ou melhor, de adaptar
a vida monástica às exigências da Escritura.
As regras cenobíticas, as catequeses dos gran
des mestres do deserto, os tratados espirituais,
toda a produção literária devida aos monges, não
são, nem pretendem ser, em última análise, mais
que uma exegese, uma adaptação prática do Evan
gelho, da Palavra de Deus em geral, para uso dos
cenobitas ou dos eremitas. As volumosas Regras
de São Basílio, para citar apenas um exemplo
conhecido, constituem uma tentativa, indubita
velmente feliz, de fundamentar a vida monástica
e cada uma de suas instituições e observâncias na
Palavra de Deus escrita, especialmente no Novo
Testamento.
Os escritos dos monges nos mostram na prá
tica como liam a Bíblia, como a interpretavam
espiritualmente, que temas chamavam com mais
força sua atenção e nos quais se compraziam. Para
eles, como para toda a Igreja dos primeiros séculos,
existe uma íntima relação entre os dois Testamen
tos. Não são duas realidades distintas, mas duas
grandes etapas ou períodos da mesma “história da
salvação”. Cristo é o centro. Tudo, absolutamente
tudo, a ele se refere e para ele converge. Tudo é
história de Cristo e história de seu corpo místico, a
Igreja, que se desenvolve desde o princípio do Gêne
sis até as grandiosas visões apocalípticas dos últi
mos tempos. O monaquismo, inserido intimamente
112
na Igreja, constitui uma parte dessa história. Por
isso, não é estranha a predileção que demonstram
os monges pelos livros do Êxodo e dos Números,
como imagens de sua própria vida, composta de
saída do mundo, deserto, luta ascética, tentações,
contemplação sinaítica, ardentes desejos de pene
trar no Paraíso escatológico, simbolizado pela Terra
Prometida. Tampouco pode surpreender-nos sua
enorme afeição pelos Salmos, que consideravam
como a voz de sua própria oração, expressão de
seus anseios, oráculos dirigidos diretamente e em
particular a cada um deles ou a suas comunidades.
Nada mais belo e significativo, sob esse aspecto,
que os comentários aos Salmos que São Jerônimo
fez para seus irmãos monges em Belém, e que um
deles registrou.
Mais significativo ainda era o empenho que
os autores monásticos punham para encontrar na
Escritura modelos do gênero de vida que pratica
vam, ou, como diz São Basílio, “estátuas animadas
da vida segundo Deus, propostas para que sejam
imitadas em suas boas obras” (Ep. 2, 3). Assim se
formou uma rica tipologia do monaquismo, que
os escritores sentem prazer em citar com fre-
qüência. Lendo suas obras vê-se claramente sua
preocupação em imitar os personagens bíblicos
que consideram seus predecessores, seus “pais”, e
desse modo autorizam seu próprio gênero de vida:
Adão, Elias, Eliseu, os “filhos dos profetas”, João
Batista, Jesus, os apóstolos, a primeira comuni
dade de Jerusalém.
Escreveu-se, não sem razão, que “não é possível
ser monge ou monja de obediência beneditina sem
ter lido Cassiano, a Vida de Santo Antão, as Regras
de São Basílio, os Apoftegmas e alguns outros tex
tos monásticos da Antiguidade. E isso não apenas
porque São Bento recomenda sua leitura, mas
também, e em primeiro lugar, porque não há nada
como o contato pessoal com os autores clássicos —
isto é, sempre atuais, nunca saem de moda — para
adquirir o sentido do discernimento dos valores em
que se apóia a vida monástica e o sentido de Cristo,
discernimento esse que nasce de uma interpretação
real e efetiva da Escritura, na qual se juntam exe
gese e experiência.
114
Epílogo
A restauração da Leitura Divina
Perigos e inimigos
Que a lectio divina, como tudo o que é bom,
tem perigos e inimigos, é evidente. Os antigos
assinalaram alguns. Por exemplo, a vaidade, que
pode tornar completamente estéril nosso esforço.
Cassiano adverte: “Sem dúvida nenhuma aquele
que se aplica à leitura com o vão intento de adquirir
a glória humana não alcança o dom da verdadeira
ciência. Escravo dessa paixão, será igualmente
preso pelos laços dos outros vícios, particularmente
da soberba”. Evágrio Pôntico adverte que o peri
go pode proceder do espírito de fornicação, e São
Bento não permite que se leia o Heptateuco nem
o livro dos Reis na leitura que precede o ofício de
Completas, “porque às inteligências débeis não será
de proveito naquelas horas ouvir estas Escrituras.
Leiam-se porém em outras horas”. O demônio pode
servir-se inclusive da desmedida afeição à lectio
para perder o monge: há, com efeito, outras ocupa
ções que atender. Cassiano atribui a Santo Antão
esta advertência: “Vale mais ler menos e ganhar a
vida com o fruto do próprio trabalho, como ordena
a Escritura, que deixar de trabalhar a fim de ter
mais tempo para ler”.
Entre os inimigos da lectio, podem-se mencio
nar alguns tipicamente modernos. Dom Ambrose
Southey cita de modo especial quatro deles:
1º “O querer conseguir resultados imediatos”.
Vivemos na sociedade de consumo, na qual “tudo
está organizado para produzir o máximo possível no
menor tempo”. Daí nasce uma “mentalidade utilita-
rista”, e por isso “nos é difícil dedicar-nos a algo que
não está orientado a resultados imediatos”.
2º “Há uma tal proliferação de livros que fica
mos inclinados a passar de um livro a outro, com
a sutil tendência para a última novidade, de modo
que a disposição para ler mudou muito”.
3º “A insistência moderna do processo intelec
tual em detrimento do aspecto intuitivo e afetivo”.
Presta-se “pouca atenção ao sentimento e à afetivi-
dade”, considerando-se inclusive “o aspecto afetivo
como inferior, senão perigoso”. Alguns monges e
monjas chegam a ridicularizar a lectio divina como
“sentimentalismo piedoso” (...), feito somente para
120
os fracos, enquanto “o estudo sólido é considerado
como alimento dos fortes”.
4º “O sistema de exames escolares”. Os graus o
diplomas universitários exigem passar por muitos
e freqüentes exames. Na prática, trata-se de “con
seguir muita informação por meio de uma leitura
rápida”, o que “tende a formar hábitos difíceis de
serem mudados posteriormente”.
Dom Ambrose Southey também alude a outros
inimigos da “leitura de Deus”, entre eles a paixão
por jornais e revistas e pela televisão. A essa lista
poderiam acrescentar-se ainda outros inconvenien
tes ou estorvos. Mesmo sem rádio nem televisão,
sem jornais e revistas, todo acontecimento de im
portância mediana é conhecido imediatamente em
todo o mundo, e o monge começa sua lectio assaltado
por preocupações, idéias e imagens que a dificultam.
Outro inimigo talvez mais temível e poderoso é o
ritmo trepidante, desenfreado da vida moderna, do
qual dificilmente podemos escapar: não há tempo,
as ocupações prementes nos absorvem, e, se encon
tramos alguns momentos para a lectio, sentimos com
muita freqüência um real vazio interior.
Concluímos então, com desesperança, que tan
tos e tais inimigos são invencíveis? De modo algum.
Também os antigos conheceram tentações e inimigos
que obstaculizavam sua lectio, e não vacilaram.
Nada se obtém, se não se paga seu preço.
Um clima propício
A esses inimigos, devemos combatê-los. Fechan
do as portas aos que vêm de fora, e opondo uma
resistência tenaz aos de dentro, aos que levamos
em nós mesmos, esforçando-nos, com a graça de
Deus, por descobri-los, desmascará-los e vencê-los.
Se estamos realmente persuadidos da verdadeira
natureza da lectio e do papel importante que deve
desempenhar na vida, tanto de cada um dos monges
como da comunidade inteira; se queremos realmente
restabelecê-la, teremos que redescobrir o valor do
otium claustral, isto é, a importância do “tempo
livre” para dedicá-lo a Deus e às coisas do Espírito.
Trata-se de uma necessidade urgente que se faz
sentir vivamente em muitos mosteiros. Em alguns,
já se implantaram dias de “repouso espiritual”, ou
“dias de deserto”, o que representa uma conquista
interessante. Mas não basta, evidentemente, reser
var para Deus um dia de vez em quando, ainda que
seja cada semana. É preciso reagir corajosamente
contra o nervosismo, contra o esbaforido afã de pro
duzir, contra os hábitos que nos vai impondo nossa
sociedade de consumo e que nos obriga a fazer horas
extraordinárias — cada vez mais ordinárias — de
trabalho manual ou intelectual. É indispensável
que haja no horário monástico de todos os dias um
lugar folgado para a leitura lenta, desinteressada,
penetrada de oração, dedicada exclusivamente à
busca de Deus, ao diálogo com Deus, a estudar o
coração de Deus.
A “leitura divina” só pode florescer e frutificar
em clima de recolhimento, de paz, de oração. Deve
mos restaurar esse clima, se queremos restaurar a
lectio. Porque “ninguém pode penetrar o sentido do
Evangelho se não descansou como João, em íntimo
colóquio, sobre o peito de Jesus”, como diz Orígenes
(In Io. 1, 6). E quem pode desmenti-lo?
122
Preparação para a lectio divina
Mantendo-se o conceito autêntico de “leitura
divina”, aparece nitidamente a distinção entre lectio
e estudo, o que não implica, é claro, nenhum menos
prezo pelo estudo. Uma vida espiritual profunda
requer, geralmente, uma boa formação intelectual,
teológica, para os que são capazes e têm oportuni
dade de adquiri-la. Dom Ambrose Southey, como
de costume, acerta plenamente quando escreve: “A
lectio divina se refere a um tipo de conhecimento es
pecial; o estudo, a um conhecimento mais conceituai.
Naturalmente, não é preciso reagir exageradamente
contra a insistência atual sobre a inteligência do
Ocidente, caindo em um antiintelectualismo. Não.
Ambos os conhecimentos caminham lado a lado. São
complementares, e não mutuamente exclusivos”.
Em todo caso, atualmente estão todos de acordo
em que se necessita uma certa preparação para a
lectio. Alguns, como Dom Gaillard, não hesitam em
afirmar que a lectio, “no contexto atual, supõe uma
cultura e formação rigorosas”. Talvez Dom Gaillard
exagere um pouco, mas é certo que a leitura da
Bíblia apresenta muitas dificuldades, e seria uma
lástima que não aproveitássemos os abundantes e
excelentes instrumentos que a exegese moderna
que nos oferece para abordá-la frutuosamente.
Sem uma suficiente iniciação à Bíblia, sua leitura
poderia decepcionar o leitor iniciante. Não poucas de
suas páginas quase dariam razão ao livre-pensador
inglês que escreveu: “Trata-se de uma história do
tanta lascívia, sodomia, chacinas e horríveis de-
pravações, que as mais vis das outras histórias,
compendiadas em um livro monstruoso, poderiam
apenas equiparar-se a ela”.
Formação na lectio divina
Muito mais importante que a preparação inte
lectual com vistas a ler melhor o coração de Deus é,
sem dúvida, a própria formação na “leitura divina”,
que se pretende restaurar.
Uma restauração dessa envergadura, imposta
de repente, sem uma longa preparação, sem uma ca
tequese prévia, equivaleria em muitas comunidades
de monges, sobretudo de monjas, a uma autêntica
revolução. Para evitar traumas, deveria realizar-se
com a maior prudência e a mais solícita caridade.
Impor através de decreto a “leitura divina”, em toda
a sua pureza e a todo custo, seria uma imprudência
desastrosa. É preciso respeitar infinitamente — como
Deus as respeita — as pessoas, a cada uma delas.
Cada qual tem sua capacidade, sua formação, seus
costumes, seu carisma e... sua idade. O importante
é propor-se esse ideal, convencer-se de que a “leitura
divina” é o nosso ideal — dos beneditinos, dos cis-
tercienses e da Igreja, como expressa claramente a
constituição Dei Verbum —, e esforçar-se individual
e comunitariamente, mas sem obrigar a ninguém a
praticá-la da melhor maneira possível.
Dom Ambrose Southey propõe, para a formação
na “leitura divina”, o seguinte plano:
1º Em nível comunitário, estabelecer no horário
um tempo suficiente, tanto para a lectio como para
o estudo. Que esse horário, de fato, se possa seguir.
Que a comunidade tenha uma idéia exata do que a
lectio divina é e requer.
2º Em nível individual, o mestre de noviços expli
cará a verdadeira natureza da lectio e suas principais
dificuldades, e buscará com os noviços os modos e
meios de superá-las. Habituará os noviços, pouco a
124
pouco, à lectio divina, dedicando-lhe cada dia meia
hora ou uma hora inteira. Provavelmente, os noviços
necessitarão ser orientados na escolha de livros, pelo
menos no início. “De quando em quando, seria conve
niente uma confrontação sobre a lectio, de modo que
as experiências sobre elas possam ser compartilhadas
(...). Pode ser também conveniente organizar, de um
modo ou de outro, um ‘Evangelho compartilhado’”.
Como se vê, Dom Ambrose Southey insiste
na formação pessoal, mais do que na comunitária,
na formação de cada noviço em particular e não
somente dos noviços como grupo. É, com efeito, no
noviciado que o monge deve aprender teórica e
praticamente em que consiste a lectio. Desse modo
se irá implantando realmente em cada mosteiro um
exercício que, como o próprio Dom Ambrose Southey
reconhece, não é fácil, mas “exige realmente esforço
e sacrifício. No entanto, se conseguirmos progredir,
dará frutos de grande transcendência na qualidade
de nossa vida monástica, e enriquecerá a dimensão
contemplativa de nossos mosteiros”.
Últimas palavras
As fraternidades da Virgem dos Pobres, que
conservaram ou restauraram não poucos valores
fundamentais do monaquismo, praticam a “leitura
divina”. Sua regra fala sobre ela de modo exato o
prático. Todos os dias se deve consagrar à lectio uma
hora inteira. Na linguagem simples e direta própria
desse belo documento espiritual, se diz a cada um
dos irmãos: “Não podes prescindir deste alimento
cotidiano, com o qual Deus te fortalecerá o espírito
e te ajudará a orar melhor. Esta mesma leitura, se
a fazes bem, será cada vez mais um encontro com
Deus, uma oração.
Será, antes de tudo e sobretudo, leitura da Bí
blia. Por isso se chama lectio divina, porque a Escri
tura é a Palavra de Deus, e cada dia Deus te falará
nela. Deves receber a Palavra dele em tua alma
com infinito respeito e na pureza de um coração de
criança, que seja inteiramente escuta e acolhimento.
Encontrarás nela a Vontade de Deus sobre ti.
Deves crer na presença de Jesus nessas pala
vras, através das quais ele te fala ao coração. Para
ajudar-te a venerá-la, uma Bíblia aberta estará
sempre presente no oratório. A Bíblia deve ir for
mando tua alma pouco a pouco. Deveria chegar a
constituir tua única leitura, como o foi para tantas
gerações de monges. Não poderá ser assim desde o
início, pois a compreensão do texto sagrado pede um
esforço sério de reflexão e assimilação, e, ademais,
teu coração não será bastante puro nem bastante
desapegado da satisfação de tua própria inteligên
cia. Mas, à medida que o Senhor te desapegue de ti
mesmo, irás preferindo cada vez mais somente sua
Palavra dele”.
Fala aqui, sem dúvida alguma, um “ancião”
experimentado na “leitura de Deus”. Alguém que
conhece sua natureza e sabe como praticá-la. Seus
conselhos, tão simples e autênticos, constituem o
melhor final imaginável para este livro.
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Bibliografia
127
SUMÁRIO
5 Apresentação
7 Prólogo
11 1. Preliminares
23 2. História
31 3. O livro dos que buscam a Deus
39 4. Deus falou, Deus me fala
45 5. Uma conversa íntima
56 6. Qualidades paradoxais
65 7. Uma tarefa árdua e penosa
72 8. Requisitos e disposições
79 9. Três exemplos
86 10. Frutos
94 11. Complementos
104 12. A leitura dos Padres
115 13. A restauração da Leitura Divina
127 Bibliografia