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D. GARCIA M.

COLOMBÁS, MB

DIÁLOGO COM
DEUS
Introdução à "Lectio Divina”
DIÁLOGO COM DEUS
D. GARCÍA M. COLOMBÁS, MB

DIÁLOGO
COM DEUS
Introdução à Lectio Divina

PAULUS
Título original
La lectura de Dios - aproximación a Ia lectio divina
© Ediciones Monte Casino (Colección Espiritualidade Monástica —
fuentes e estudios, n. 6), Zamora, Espanha, 1982.
Tradução
Monges do Mosteiro da Ressurreição
Revisão
José Dias Goulart
Capa
Visa
Foto da capa
Lucerna bizantina, com inscrição inspirada no Evangelho: “A luz de
Cristo ilumina a todos e é bela”.

1a edição, 1996
3a reimpressão, 2016

© PAULUS - 1996
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 - São Paulo (Brasil)
Tel.: (11) 5087-3700 • Fax: (11) 5579-3627
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ISBN 978-85-349-0689-0
Apresentação

Os últimos anos têm testemunhado na Igreja


um movimento de retorno às fontes mais antigas
e genuínas da espiritualidade cristã, tanto entre
leigos como religiosos, estes últimos com particular
interesse nas experiências e intuições que deram
origem aos seus respectivos institutos (Perfectae
Caritatis, 1), bem como na tradição precedente. As­
sim, a patrística, a liturgia e os escritos monásticos
antigos e medievais têm sido objeto de renovado e in­
tenso interesse. Também noutros ambientes, a busca
espiritual do homem contemporâneo tem se voltado
freqüentemente para antigos textos, especialmente
monásticos, de tradições religiosas diferentes, tanto
do Ocidente como do Oriente.
Uma antiga prática vem sendo como que “re-
descoberta” e vivamente estimulada (Dei Verbum,
25): é a lectio divina, a leitura meditada e orante
da Sagrada Escritura, e isso entre religiosos e
leigos, católicos e protestantes, e até entre muitos
não-cristãos. A finalidade não é intelectual nem
apologética, não se procura um estudo religioso,
nem mesmo “conhecer” a Bíblia, mas um encontro
pessoal e íntimo com Deus.
O presente texto, como lemos no prólogo da edi­
ção espanhola, reúne conferências originariamente
5
dirigidas a auditórios monásticos. Podem, entretan­
to, por sua simplicidade, aliada ao domínio seguro
e profundo do tema, orientar leigos e religiosos na
prática frutuosa da lectio divina, com especial pro­
veito, a nosso ver, para formadores e formandos na
vida religiosa. Seu autor, Dom Garcia Colombás, é
espanhol, monge beneditino do mosteiro de Mont-
serrat e um dos maiores especialistas em história
e espiritualidade monásticas.
Expor-se com simplicidade, perseverança e
filial confiança ao fogo purificador da Palavra de
Deus, e deixar-se absorver e transformar por ela,
é o meio pelo qual o praticante fiel da lectio divina
procura alcançar sua finalidade última: o encontro
com Deus. Na Sagrada Escritura encontramos, a um
tempo, a Palavra amorosa que o Pai dirige a todos
os homens — e que atinge sua máxima expressão
na encarnação de Jesus Cristo — e o compromisso
sem reservas dos que respondem afirmativamente
ao apelo do amor. Cada uma de suas linhas aponta
para o mistério de Cristo, e a ele conduz num “diá­
logo unitivo que é graça e salvação”.
Aquele que leva a sério a prática da lectio
divina assemelha-se a Maria, ao conservar cui­
dadosamente a Palavra divina, meditando-a em
seu coração (Lc 2,19); e a Moisés, com quem “Deus
falava face a face, como um homem fala com outro”
(Ex 33,11). Finalmente, no dizer de Dom Colombás,
lectio divina “é uma experiência de Deus, pois nela
acontece uma comunicação de vida, uma partici­
pação, uma comunhão”.
Um monge do Mosteiro da Ressurreição

6
Prólogo

Ao ler a Bíblia, os Padres não liam os textos,


mas o Cristo vivo, e o Cristo lhes falava.
P. Evdokimov

Lectio divina é uma expressão que está na


moda. Tanto nos mosteiros como em outros ambien­
tes cristãos é mencionada com freqüência. Contudo,
sabe-se o que significa realmente? Suspeita-se das
riquezas que contém, das ressonâncias espirituais
profundas que pode despertar?
Este livro contém os textos, apenas retocados,
de algumas palestras que fiz às monjas beneditinas
de Santa Maria de Carbajal e, em parte, às de Alba
de Tormes. Era nosso propósito — das monjas e meu
— aprofundar um tema por si mesmo inesgotável.
Porque lectio divina significa ‘leitura de Deus’, e a
Deus nunca acabamos de ler.
‘Arte de estudar o coração de Deus’, segundo
a bela definição de São Gregório Magno, a lectio
participa, de certo modo, da infinitude de seu pró­
prio objeto. Por isso, quanto mais é estudada, tanto
mais qualidades se descobrem nela, mais ricos se
revelam os múltiplos aspectos que apresenta. E
ao dar por concluídos nossos colóquios, tivemos
a impressão de que apenas havíamos abordado o
assunto.
A mesma sensação experimento agora, com
a publicação destas páginas, escritas com toda a
simplicidade e desprovidas de qualquer aparato
7
erudito. Com efeito, não me pareceu oportuno
sobrecarregá-las com discussões e notas, mas con­
servar o quanto possível seu caráter de exposição
oral, informal e fraterna, que originariamente
pretenderam ter.
Obra de edificação, não de erudição, tende
a um fim eminentemente prático: colaborar —
modestamente — com a restauração da ‘leitura
de Deus’ em seu sentido mais próprio. Na bi­
bliografia limito-me a citar os trabalhos de que
me servi, entre os quais estão os melhores — de
caráter geral — que se publicaram sobre o assun­
to e a que poderão recorrer com proveito todos
os leitores que desejarem uma informação mais
completa e precisa.
Os auditórios aos quais se dirigiram estas
palestras justificam, em parte, que se enfatize o
aspecto monástico e beneditino — por assim dizer
— da ‘leitura divina’; em parte, explica também
esta insistência o fato inquestionável de que os
monges e monjas se tornaram muito cedo profis­
sionais e especialistas deste método de leitura.
Entretanto, é importante afirmar vigorosamente
desde já que a lectio divina não foi inventada pe­
los monges, nem constituiu jamais um monopólio
monástico. Pertence a todos os cristãos, e me
atrevería mesmo a dizê-lo, à humanidade inteira.
Deus escreveu para que todos o léssemos, e nunca
nos cansássemos de lê-lo.
Com fraterno e muito sincero agradecimento
dedico esta pequena obra à Madre Maria Imaculada
Alonso e às beneditinas de Santa Maria de Carbajal
e de Alba de Tormes, que com tanta paciência e in­
teresse escutaram e discutiram — amistosamente
— minhas exposições, assim como à Madre Maria
8
Rosário Santiago e às beneditinas de Zamora, por
tê-la incluído em sua coleção Espiritualidade Mo­
nástica.
Mosteiro de Santa Maria de Sobrado,
24 de junho de 1979

9
Capítulo I
Preliminares

O diálogo entre Deus e o homem


“Adão, onde estás?” A voz do Todo-Poderoso
ressoou no paraíso. Deus buscava o homem, a
quem havia plasmado à sua imagem e semelhança.
Queria falar com ele, como todos os dias, quando
“passeava pelo jardim” (Gn 3,8).1 Adão — o homem
— havia desobedecido a seu Criador e se escondera.
O pecado do homem destruiu brutalmente a fami­
liaridade com Deus na qual havia sido criado. Isto
é o que quer nos dizer o Gênesis em suas primeiras
páginas.
O homem perdeu a parrhesía, essa doce e intei­
ra liberdade de expressão que lhe permitia falar a
Deus como um filho fala a seu pai, como um amigo
fala com seu amigo. O homem perdeu Deus, seu
criador e pai, e Deus perdeu o homem, sua ima­
gem, seu filho, seu interlocutor. E desde então Deus
procurou o homem, e o homem tem que procurar
a Deus.
‘Buscar a Deus’ é uma ocupação arrebatadora.
Abarca toda a vida e toda a pessoa. É como o amor
1As citações bíblicas, quando referidas, estão de acordo com a Bíblia
de Jerusalém (N. do T.)
11
a Deus: “Ouve, Israel! o Senhor nosso Deus é o único
Senhor! Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu
coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendi­
mento e com toda a tua força” (Mc 12,29-30). Acaso
não é o amor, o desejo que tem sua origem no amor,
o que impulsiona nossa busca? Não seriam amor e
busca de Deus dois conceitos tão próximos um do
outro que se complementam?
Há que se buscar a Deus onde ele está: nas
pessoas, nos acontecimentos, na Eucaristia, no
íntimo de nosso próprio ser... Onde Deus não está?
Devemos buscá-lo, evidentemente, no cumprimento
de sua vontade:
Felizes os íntegros em seu caminho,
os que andam conforme a lei de Iahweh!
Felizes os que guardam seus testemunhos,
procurando-o de todo o coração!
(SI 118,1-2)
Entretanto, a busca pessoal de Deus e o en­
contro pessoal com Deus se verificam no diálogo.
O diálogo — como acentuou energicamente Martin
Buber — é o lugar privilegiado para o qual conver­
gem os desejos do “verdadeiro Deus” e do “verda­
deiro homem”. O “verdadeiro Deus”, o “Deus vivo”,
que fala e a quem se pode falar; o Deus pessoal
que quer comunicar-nos a plenitude da existência
pessoal e se abaixa para elevar-nos a seu próprio
nível. O “verdadeiro homem”, “imagem de Deus”,
aparição de Deus, que torna visível o Deus invi­
sível, e quer encontrar seu Criador, de quem se
havia afastado. Assim convergem a sede de Deus
de encarnar-se no homem, e a sede de infinito que
atormenta o coração humano, o Deus desiderans e
o Deus desideratus, como diziam os autores medie­
vais. O Deus que nos persegue porque nos deseja,
12
e o homem que busca ansiosamente ao Deus de
quem necessita.
Para a tradição cristã primitiva, o diálogo com
Deus tem dois tempos: a leitura e a oração. Já São
Cipriano de Cartago aconselhava a Donato: “Sê
assíduo tanto à oração como à leitura. Ora falas
tu com Deus, ora fala Deus contigo” Donatum,
15). São Jerônimo diz do anacoreta Bonoso: “Ora
ouves a Deus quando percorre pela leitura os livros
sagrados, ora falas com Deus quando fazes oração
ao Senhor” (Ep.3, 4). Santo Ambrósio de Milão
escreve: “A Deus falamos quando oramos, a Deus
escutamos quando lemos suas palavras (De officiis
ministrorum 1, 20, 88). Santo Agostinho, comen­
tando o Salmo 85, diz: “Tua oração é um diálogo
com Deus. Quando lês, Deus te fala; quando oras,
tu falas a Deus” (Enarr. in ps. 85, 7). Mas a mais
bela formulação do diálogo entre Deus e o homem é
a de São Jerônimo, quando escreve à sua discípula
Eustóquia, a nobre virgem romana: “Seja tua guar­
da o segredo de teu aposento, e lá dentro recreie-se
contigo teu Esposo. Quando oras, falas a teu Esposo;
quando lês, ele fala contigo” (Ep. 22, 25).
Os mesmos conceitos se encontram repetidos
inumeráveis vezes nos autores antigos e medievais.
Assim, por exemplo, em uma carta sobre a vocação
monástica: “Fala a Deus orando, e escuta lendo a
Deus que te fala”. E Bernardo Aygler, abade de
Monte Cassino: “Da mesma forma como falamos
com Deus quando oramos, Deus fala conosco quan­
do lemos a Sagrada Escritura. Por isso São Bento
não só nos exorta a entregar-nos à oração, mas
também quer que nos ocupemos assiduamente com
a leitura”. Em nossos dias, o Concilio Vaticano II
cita o texto de Santo Ambrósio: “Lembrem-se que
13
a leitura da Sagrada Escritura deve acompanhar
a oração para que se realize o diálogo de Deus com
o homem, pois ‘a Deus falamos quando oramos, e
a Deus escutamos quando lemos suas palavras’”
(Dei Verbum, 25). E o congresso dos abades bene­
ditinos de 1967 expressava a mesma idéia, ainda
que mais profusamente e menos poeticamente que
São Jerônimo: “Como todos os batizados, mas de
modo muito especial, o monge está sempre aten­
to à Palavra de Deus, para recebê-la, guardá-la,
prestar-lhe obediência e vivê-la, e entrar assim na
salvação que ela oferece. O monge faz retornar a
Deus essa palavra em sua oração, tanto particular
como conventual”.
Na realidade, que fazem os monges segundo a
Regra de São Bento e a tradição? Três coisas: orar,
ler e trabalhar. Trabalham por várias razões: porque
é vontade do Criador que o homem trabalhe, para
exercitar o corpo; porque são pobres, voluntaria­
mente pobres, e devem ganhar o próprio sustento;
para conservar um prudente equilíbrio entre as
ocupações de cada dia e evitar a ociosidade e suas
conseqüências; para aliviar as necessidades dos que
são mais pobres que eles... Mas, evidentemente, para
trabalhar não é preciso ingressar em um mosteiro
ou fazer-se eremita. O característico do monge —
ainda que não exclusivo — são a leitura e a oração,
isto é, a continuidade do diálogo com Deus, que
nem sequer o trabalho deve interromper. “A oração
sucedia à leitura; a leitura, à oração”, escreve São
Jerônimo, referindo-se a Orígenes e seus discípulos.
Algo semelhante acontecia nos desertos e cenóbios.
Um dos grandes elogios que se fizeram ao primeiro
monge-bispo do Ocidente, São Martinho de Tours,
é este: “Não passou hora nem momento algum que
14
não dedicasse à oração ou à leitura, e mesmo en­
quanto lia ou fazia outra coisa, nunca deixava de
orar”. Um monge da observância de Cluny afirmava:
“Em nossa Ordem, da leitura se passa à oração, e
da oração à leitura”.
A leitura se complementava e prolongava
mediante um exercício muito característico, que se
chamou em grego melete e em latim meditatio, sendo
mesmo assim oração, como veremos mais adiante.
Leitura e oração se convertiam, a intervalos, em
contemplação de Deus e das coisas divinas. Nas
pegadas de Hugo de São Vítor, Guigo II, prior da
Grande Cartuxa, construiu com esses elementos
uma escada de quatro degraus, a famosa Scala
Claustralium:
1. Lectio.
2. Meditatio.
3. Oratio.
4. Contemplatio.
Ensina Guigo II que a lectio, “estudo atento
das Escrituras”, busca a vida bem-aventurada, a
meditatio a encontra, a oratio a implora, a contem­
platio a saboreia. A Scala obteve grande sucesso
entre os contemplativos. Muitos autores referem-
-se a ela ou a comentam. Outros ficam apenas com
os três primeiros degraus. Assim, um anônimo da
abadia cisterciense de Salém escreve: “A leitura é
boa; a meditação, melhor; a oração, ótima. A leitura
ilumina a mente, a meditação fortalece o ânimo, a
oração vivifica e sacia. Essa é a tríplice corda que,
segundo Salomão, rompe-se com dificuldade. Nessas
três coisas consiste a vida do espírito. Sem essas
três asas espirituais, ninguém chega a ser verda­
deiramente espiritual”.
15
Faz bem o monge anônimo em não considerar
a leitura, a meditação e a oração como graus suces­
sivos, mas como três fios de uma mesma corda. Na
realidade, a escada de Guigo, como tantas outras
escadas espirituais, é fictícia. Seus degraus não se
sucedem um após outro, mas são elementos que
coexistem pacificamente. E não só coexistem, mas
se interpenetram, e apresentam características tão
semelhantes que com freqüência fica muito difícil
distingui-los entre si. A íntima união que existe
entre lectio, meditatio e oratio pode ser compro­
vada nos autores medievais, cujos escritos estão
ilustrados com textos e reminiscências da Bíblia.
É o fruto lógico de certo conceito de oração então
predominante. Para orar, não é preciso fazer nada
além de ler, escutar, ruminar e em seguida voltar a
dizer a Deus tudo o que Ele mesmo nos disse antes,
imprimindo nestas palavras todo o nosso pensa­
mento, todo o nosso amor, toda a nossa vida. Desse
modo, a Palavra de Deus se converte em lugar e
meio de encontro com Ele. Lectio, meditatio e oratio,
mais que atos distintos, são diversos aspectos de um
mesmo gesto: o do homem que fala com seu Deus
tendo ante os olhos — ou ao menos em mente — a
Palavra de Deus escrita.

O problema da “leitura divina"


A lectio divina, como escreve São Bento, a
exemplo de Santo Ambrósio, Santo Agostinho e
outros Padres — já encontramos essa expressão
em Orígenes (theía anágnosis) —, é “considerada
por toda a tradição” — e pelo congresso dos abades
beneditinos de 1967 — “como um dos meios mais
16
adequados e necessários para a vida dos monges”.
Constitui uma parte essencial da conversatio mo­
nástica, um dos instrumentos tradicionais mais
característicos para buscar a Deus. Possivelmen­
te deve considerar-se também como o “exercício
espiritual” mais próprio do monge. E também o
que necessita maior atenção, pois nem sempre é
compreendido corretamente, nem se lhe dá, com
demasiada freqüência, toda a importância que
realmente tem.
Temos vivido — estamos vivendo ainda — uma
época de restauração, tanto na Igreja como em
nossos mosteiros. Estamos buscando nossa própria
identidade; desejamos chegar a ser o que somos, tão
plenamente quanto pudermos. Ora, das três ocupa­
ções que integram a jornada do monge segundo São
Bento, temos restaurado duas: o Oficio Divino e o
trabalho. Temos inclusive dado a este último, em
geral, bastante mais tempo que o devido. E a lectio
divina? Tem sido relegada. Continua esperando
ainda, em grande parte de nossos mosteiros, que se
lhe dê o lugar de honra que lhe corresponde, e que
nunca deveria ter perdido.
Felizmente, a lectio divina, já faz alguns anos,
é um tema que nos ocupa e preocupa. É objeto de
reuniões de estudo, como, por exemplo, o simpósio
realizado em Mount Saint Bernard em 1975, com
a participação de trinta e nove monges e monjas
cistercienses. Numerosos artigos tratam dela, sob
os mais diversos enfoques. É tema de pesquisas
realizadas entre monges e monjas de diferentes
observâncias. Nas assembléias de superiores mo­
násticos, começando pelo mencionado congresso de
abades da Confederação Beneditina, tem-se tentado
precisar seu conceito e estimular sua prática. O
2. Diálogo com Deus 17
abade geral dos cistercienses da estrita observância,
Dom Ambrose Southey, por ocasião do Natal de 1978,
consagrou à lectio divina uma carta circular, em que,
com a simplicidade característica de sua Ordem, põe
o dedo na chaga, e com indiscutível acerto oferece
uma doutrina concisa e segura, e esboça as grandes
linhas de um plano de restauração que mereceria
ser aplicado sem demora.
Mas não são unicamente os abades e os mon­
ges que se ocupam com renovado interesse da
“leitura de Deus”. Inclusive nos documentos da
31a Congregação Geral da Companhia de Jesus
se lêem linhas tão significativas como estas: “A
lectio divina, prática que data dos primeiros tem­
pos da vida religiosa na Igreja, supõe que o leitor
se abandone a Deus, que lhe está falando e lhe
concede uma mudança do coração, sob a ação da
espada de dois gumes da Escritura, que o desafia
continuamente a uma conversão. Verdadeiramente,
podemos esperar da leitura orante da Escritura
uma renovação de nosso ministério da palavra e
dos Exercícios Espirituais”.
Destes e de outros documentos semelhantes
se deduzem vários fatos: que se volta a dar im­
portância à lectio divina; que se tenta restaurá-la;
que se reconhece que a sua prática implica certas
dificuldades... Muito notável, por suas afirmações
categóricas, é o que diz a esse respeito o chamado
“Pacto de Paz” da Federação Beneditina das Amé­
ricas (Guatemala, 1970): a lectio divina essencial
à vida beneditina”; os monges de São Bento “são
muito conscientes das dificuldades da vida moderna
para encontrar o tempo e a energia, a determinação
e a disciplina necessários para devolver a prática
da leitura sagrada ao lugar que lhe corresponde”;
18
mas “estão convencidos de que somente ao resta­
belecê-la é que se fará a experiência de uma vida
beneditina mais significativa para eles mesmos e
para seus contemporâneos”. Entre os cistercienses
se ouve algo semelhante. J. McMurray o comprova:
“A importância de esquadrinhar as Escrituras, de
estudar e meditar as palavras da Bíblia, está sendo
hoje cada vez mais valorizada, nesta era de renas­
cimento, não só na Igreja em geral, mas também
no âmbito monástico”. Outro cisterciense, depois de
citar a frase de Jeremias: “Tua palavra me fascina”,
define o monge como “o homem que se liberta de
uma quantidade de coisas, de obrigações, de servi­
dões, para defrontar-se com a Palavra de Deus. Às
vezes doce, às vezes amarga, às vezes uma espada
cortante de dois gumes”... E também o monge é
“aquele que na Igreja está calado, porque toda a
sua tarefa eclesial consiste em viver da Palavra de
Deus” (I. Aranguren).
Em 1973, com admirável otimismo, o então
abade primaz da Confederação Beneditina, Rem-
-bert Weakland, dizia aos superiores beneditinos
de todo o mundo reunidos em congresso: “Que
lêem os monges em sua lectio ? A resposta é
invariável: a Bíblia. Entre nós vem crescendo um
verdadeiro amor à Sagrada Escritura”; “a avidez
adquirida pela freqüência à Sagrada Escritura é
positiva”. E Jean Leclerq concluía o artigo Lectio
divina, recentemente publicado no Dizionario
degli Istituti di Perfezione, com estas afirmações
animadoras: a “leitura divina” é mais fácil de pra­
ticar, para a psicologia moderna, que os métodos
de oração desenvolvidos nos fins da Idade Média;
corresponde melhor ao interesse que hoje se tem
pelas “fontes cristãs”: a Bíblia, os Padres, a Liturgia
19
— que constituem o patrimônio comum de todas as
Igrejas. A Constituição dogmática Verbum, do
Concilio Vaticano II, está repleta de idéias e termos
tomados da tradição da lectio divina, e pode-se
afirmar que toda a parte final dessa Constituição
nada mais é que uma recomendação da lectio, a
que recentes regras religiosas concedem lugar
preeminente.
Tudo isso é certo e abre o coração à esperança.
Mas também é verdade que se notam pelo menos
duas coisas negativas: bastante resistência a restau­
rar plenamente uma observância tão fundamental,
e não pouca confusão acerca de sua verdadeira
natureza.
Com efeito, está ainda muito arraigada a
convicção de que a lectio divina equivale à “leitura
espiritual”, isto é, uma leitura que trata ex professo
de temas espirituais, não importa em que tipo de
livro se faça, e que se distingue nitidamente da
oração. Ademais, não poucos autores modernos
expandem excessivamente o conceito de lectio;
por exemplo, Agostinho Roberts quando escreve:
“O objeto da lectio divina é a Palavra de Deus que
chega ao monge por diversos caminhos individuais
e coletivos: através da Sagrada Escritura, pela Igre­
ja, na Eucaristia e no resto da liturgia, pelo abade
e pelos irmãos, e também pelos acontecimentos
concretos e históricos”. Da mesma forma não foi
feliz, por demasiada parcialidade e imprecisão, o
por tantos motivos benemérito Dom Paul Delatte,
ao descrever a lectio como “o conjunto ordenado
dos procedimentos intelectuais, mediante os quais
nos familiarizamos com as coisas de Deus e nos
acostumamos a contemplar o invisível”. Inclusive
não faltam hoje os que pensam que a leitura de
20
jornais e a “contemplação” da televisão são formas
modernas de lectio divina...
As conclusões do mencionado simpósio cis-
terciense realizado em Mount Saint Bernard em
1975 são sumamente significativas. Os partici­
pantes — pessoas sérias e com experiência do que
tratavam — negaram-se a formular uma definição
da “leitura divina”. Tampouco quiseram emitir
diretrizes gerais e uniformes, pois, como dizem,
as aptidões e necessidades pessoais são muito
diversificadas. Reconheceram que nossa época
oferece certas vantagens para a prática da lectio,
tais como melhor formação intelectual e melhores
meios, mas também uma série de inconvenientes:
excesso de livros e revistas, desintegração da es­
pecialização, pressa, tensões pessoais e comuni­
tárias que perturbam a paz, tão necessária para
uma lectio frutífera. Enfim — diz o simpósio — o
importante não é saber o que ler, mas por que
e como.
Particular atenção merecem as observações
que faz na já mencionada carta circular Dom Am-
brose Southey: “Na quarta conferência ao Capítulo
Geral das abadessas deste ano, indicava que a lectio
é talvez um dos pontos mais frouxos da Ordem neste
momento”. Não obstante, continuava explicando:
“Não queria dizer que nossos monges e monjas não
façam leitura espiritual, ainda que também nisto
seja necessário fazer progressos, mas que a lectio,
como prática específica monástica, não é bem en­
tendida hoje em dia”. E mais adiante: “Atualmente,
número considerável de monges e monjas está in­
teressado em técnicas orientais como o ioga, o zen
e a meditação transcendental. Tais métodos podem
ser úteis para conseguir certa calma e tranqüilida-
21
de interior... Mas não posso deixar de pensar que,
se se entendesse e praticasse melhor a lectio em
nossa Ordem, veriamos que não temos necessidade
dessas coisas”.

22
Capítulo II
História

Que freqüentemente não se saiba muito bem


em que consiste exatamente a “leitura divina”, se
explica por que tanto seu nome como sua prática
caíram geralmente em desuso há séculos. Hoje,
graças a modernas investigações, é possível conhecer
em linhas gerais sua história. Vejamos rapidamente.
Os Padres
A lectio divina aprofunda suas raízes na reli­
gião judaica, nos usos da sinagoga, na “meditação”
(haga) ou releitura da Bíblia, própria dos rabinos e
seus discípulos. Mas foi necessário esperar Oríge-
-nes, o famoso mestre alexandrino, para que a prá­
tica da “leitura divina” (theía anágnosis) aparecesse
com clareza e já perfeitamente definida.
Orígenes, com toda a probabilidade, aprendeu
esses método com seus mestres judeus, e considera
a lectio divina como a base necessária de toda a
vida ascética, de todo conhecimento espiritual, de
toda contemplação. A Escritura, com efeito, não
constitui um instrumento, entre outros, que ajuda
a progredir na vida do espírito, nem a leitura da
Bíblia representa mero exercício de piedade. Muito
melhor é dizer que a vida espiritual do cristão é a
23
Escritura lida, meditada, compreendida e vivida.
A Bíblia, junto com a Encarnação e a Igreja, é a
manifestação sensível da presença do Logos na
história, é a voz mesma de Cristo que se dirige
a seus fiéis através da Igreja. Daí que todo fiel
cristão deva dedicar-se assiduamente à “leitura
divina”. A penetração no mistério de Cristo pela
via da Escritura se realiza progressivamente, e
sua compreensão profunda não tem lugar senão
depois de uma leitura insistente e permeada pela
oração. Com razão diz Denis Gorce que os Padres
da idade de ouro não faziam mais que repetir, cada
um à sua maneira e em seu próprio contexto histó­
rico e cultural, as idéias de Orígenes sobre o papel
primordial que a leitura sagrada desempenha na
vida contemplativa.
Ler a escritura é, segundo os Padres, a prin­
cipal obrigação de todo cristão. Os Padres não se
cansavam de recomendar: vacare lectioni, studere
lectioni, insistere lectioni. Pode-se dizer que a li­
turgia, obra do povo de Deus, é, em grande parte,
uma lectio divina comunitária: alterna a leitura da
Bíblia com sua meditação no canto dos salmos e
na homilia; todavia, para que seja de real proveito
para a alma, é necessário que esta leitura comuni­
tária seja fecundada por uma leitura pessoal, feita
em particular, que seja como um prolongamento da
leitura da Palavra de Deus em comunidade. São
João Crisóstomo, Santo Ambrósio de Milão e São
Cesáreo de Aries insistiam muito nisso. O que se
realiza na igreja deve continuar sendo feito pelo
cristão em sua casa, pois somente assim é possível
“apropriar-se” da Palavra de Deus. Para São Gre-
gório Magno, como para Orígenes, a lectio divina
não é um exercício isolado na vida do cristão. Em
24
certo sentido, pode-se afirmar que é o essencial,
pois não seria exagerado dizer que, para o grande
papa monge, o cristão perfeito é aquele que sabe
ler a Escritura, uma vez que entender sua leitura
compromete a vida toda.

Os monges2
São João Crisóstomo se indignava quando lhe
diziam que ler a Escritura era coisa de monges.
“Não”, dizia ele, “é próprio de todos os que se prezam
de ser cristãos”. E tinha razão, é claro. Sem dúvida,
a objeção de seus interlocutores é significativa. A
Bíblia se estava convertendo em livro do monge, e
o monge, em homem da Bíblia. 3
Já os eremitas e cenobitas mais antigos pra­
ticavam a “leitura divina” e aprendiam de cor lon­
gas passagens da Escritura, com freqüência livros
inteiros, para “meditá-los” sem cessar. Pacômio,
Orsiésio, Basílio, Evágrio Pôntico, todos os mestres
do monaquismo recomendavam encarecidamente
a lectio divina. Cassiano, o grande divulgador da
espiritualidade monástica no Ocidente, insiste,
seguindo a Orígenes, no poder de renovação espiri-
-tual contido na leitura direta da Bíblia, não na de
seus comentaristas. Os legisladores do cenobismo,
ao distingui-la das leituras do Ofício Divino e de
outras feitas em comunidade, codificaram pouco a
pouco a prática da “leitura divina”, precisando seus
horários e os livros que se devem ler.
2Para a espiritualidade monástica, cf. a coleção A oração dos pobres,
Paulus Editora (N. do T.)
3Eremitas: monges que vivem solitariamente; cenobitas, os que
vivem em comunidade (N. do T.)
25
Assim, no séculos V-VI, a já está institu-
-cionalizada nos mosteiros, ocupando um lugar
determinado no horário das comunidades. Segundo
todas as regras da época, os monges dedicavam à
leitura de duas a três horas nos dias de trabalho.
São Cesáreo dispõe que, depois das duas horas
ordinárias de leitura, uma das monjas leia em
voz alta por mais uma hora, enquanto as demais
trabalham. De acordo com um documento de tra­
dição agostiniana, o Ordo monasterii, esta leitura
se dava4 no centro da jornada: entre as horas sexta
e noa . Segundo a Regra de São Bento, somente
se lia durante três horas seguidas na Quaresma
(das sete às dez horas da manhã, aproximadamen­
te). No verão liam da hora quarta à sexta, isto é,
quando o calor se intensificava; e os que o dese­
jassem podiam ler também durante a hora sexta
(uma hora). No inverno, os monges dedicavam-se
à leitura da primeira hora da manhã, depois que
saíam de laudes, até a hora tércia5, e a retomavam
depois da refeição, com exceção dos que tinham
necessidade de aprender de cor o saltério (vacare
psalmis), até completas. O domingo era o grande
dia semanal da lectio divina, a que deviam dedicar
todo o tempo livre entre os ofícios, exceto os que
fossem designados para tarefas específicas e os ne­
gligentes ou desidiosi, que não conseguiam ou não
queriam ocupar-se com a leitura ou a meditatio.
Aos últimos se lhes determinava algum trabalho
para que não ficassem ociosos.
Para poderem dedicar-se à lectio divina, era
preciso que tanto os monges como as monjas sou­
4Orações celebradas respectivamente às doze e às quinze horas
(N. do T.)
5Ou seja, das seis às nove horas (N. do T.)

26
bessem ler. Já nas Regras de São Pacômio se deter­
mina que todo noviço aprenda a ler, “mesmo que não
queira”. “Todas aprendam a ler”, ordena a Regula
ad virgines, 18, de São Cesáreo de Aries. A mesma
disposição se repete tanto na.Regula ad monachos,
'23, como na Regula ad virgines, 26, de Santo Aure-
liano. A Regula Ferioli, 11, diz mais solenemente:
“Todo aquele deseja ser chamado de ‘monge’ não tem
direito a não saber ler”.
Segundo a Regula Magistri, a lectio se prati­
ca deste modo: os monges “se reúnem em grupos
de dez e escutam a um leitor; cada um por sua
vez lê em um único livro. Paralelamente, um dos
litterati ensina os meninos e os analfabetos a
ler, e os que não sabem o saltério exercitam-se
em recitá-lo”. São Bento, ao contrário, quer que
cada monge tenha seu livro e se instale onde lhe
pareça melhor para entregar-se à leitura. Por
que motivo? Uma razão parece óbvia: porque os
antigos gostavam de ler em voz alta. Não liam,
normalmen-te, somente com os olhos, mas com a
boca e os ouvidos, escutando as palavras que iam
pronunciando. Mas isso não exclui que buscassem
a solidão para ler e orar com mais recolhimento.
O fato de se dar a cada irmão um livro mostra
claramente que para São Bento a “leitura divina”
era assunto estritamente pessoal: as leituras
comunitárias aconteciam em outros momentos.
Entretanto, eram designados um ou dois dos mais
velhos para que percorressem o mosteiro durante
a leitura, e observassem se algum monge acedio-
sus, em vez de entregar-se à leitura, dava-se ao
ócio ou às conversas. Durante a sesta no verão,
os que queriam ler deviam fazê-lo “para si” (sibi)
de modo que não perturbassem os demais, o que
27
significa que liam no dormitório, enquanto os
demais dormiam ou tentavam dormir.
Os monges da Idade Média permaneceram
fiéis à prática da lectio, pelo menos até certo ponto,
pois, diante de alguns textos, temos a impressão de
que a “leitura divina” ia sendo desvirtuada, desfi­
gurada, transformada, e até esquecida, pelo menos
em certos ambientes. Apesar das honrosas e notá­
veis exceções pessoais (Santo Anselmo, Ruperto de
Deutz, Pedro das Celas e tantos outros) e coletivas
(as primeiras gerações cistercienses sobretudo); e
embora a chamada “teologia monástica” se nutrisse
da lectio divina, esta caminhava para um lamentá­
vel declínio.

Decadência
É curioso notar como desde os fins do século
XII, idade de ouro da espiritualidade monástica
medieval, a expressão se faz cada vez mais rara,
somente usada por algum escritor místico. E não
apenas desaparece a expressão lectio divina: na
época da devotio moderna, os espirituais encontram
uma forma de oração que a supera, a “oração men­
tal”, exercício independente do que mais adiante se
chamará “leitura espiritual”. Nessa época de tran­
sição, a leitura se converte em “exercício espiritual”
autônomo e específico, não orientado para a oração.
E logo se vai afastando também da Escritura. Surge
uma nítida distinção entre estudo, isto é, leitura
intelectual ou teológica, e “leitura espiritual”, exer­
cício de piedade sem a tensão nem a exigência da
lectio divina, e sobretudo, diferentemente desta,
nutrindo-se muito mais de hagiografia popular,
28
manuais de vida cristã e obras de meditação. A
Escritura recupera, esporadicamente, seu lugar
proeminente apenas em certos autores, como São
.João Eudes, e em certos ambientes religiosos. En-
tre os monges, com efeito, sobretudo em algumas
reformas beneditinas, sempre ficou pelo menos
algum resquício do que havia sido a lectio divina
em tempos precedentes.

Restauração
Dois livros contribuíram especialmente para
ressuscitar a expressão lectio divina já em pleno
século XX: o do doutor Denis ,A‘lectio divina’
das origens do cenobitismo a São Bento e Cassiodo-
ro, Paris, 1925 (que trata apenas de São Jerônimo,
uma vez que a obra não teve continuidade), e o de
Dom Usmer Berlière, A ascese beneditina das ori­
gens ao final do século XII, Paris-Maredsous, 1927
(que contém um capítulo sobre a lectio divina). Mas
a fórmula não se difundiu verdadeiramente até a
década de 1940-1950, com o desenvolvimento do
movimento litúrgico dentro e fora dos ambientes
monásticos. É muito significativo que uma coleção
de estudos sobre a Bíblia, que Edições du Cerf
começou a publicar em 1946 e continua ainda edi­
tando, se chamasse Lectio Divina. Finalmente, o
Vaticano II, em sua constituição Dei Verbum, 25,
ratificou e promoveu ainda mais, com todo o peso
de sua autoridade, a restauração da “leitura divi­
na”: “O Santo Sínodo recomenda insistentemente
a todos os fiéis, especialmente aos religiosos, a
leitura assídua da Escritura para que adquiram
a ciência suprema de Jesus Cristo (cf. FL 3,8), pois
29
‘desconhecer a Escritura, é desconhecer a Cristo’
(São Jerônimo, Com. in Is., pról.). Procurem de boa
vontade o próprio texto mesmo (...)• Recordem que
a leitura da Sagrada Escritura deve acompanhar
a oração, para que se realize o diálogo de Deus com
o homem, pois ‘a Deus falamos quando oramos, e a
Deus escutamos quando lemos suas palavras’ E
no decreto Perfectae Caritatis, 6, repete o Concilio,
referindo-se aos religiosos: “Tenham, antes de tudo,
diariamente nas mãos a Sagrada Escritura, a fim de
adquirir, pela leitura e meditação dos livros sagra­
dos, ‘a excelência do conhecimento de Cristo Jesus’
” (F1 3,8). Como se terá notado, no texto anterior o
Concilio fala de leitura assídua da Escritura, neste
último, se refere à leitura diária.
Capítulo III
O livro dos que buscam a Deus

Objeto da “leitura divina”


Vamos tratar agora do conceito mesmo de lectio
divina, seu objeto, sua natureza, suas características
mais notáveis.
Lectio, como “leitura”, é um substantivo ambí­
guo, podendo designar tanto a ação de ler como o
escrito que se lê. Divina é um adjetivo que qualifica
o substantivo lectio, e significa “de Deus”. A expres­
são lectio divina quer dizer, literalmente, “leitura
divina”, “leitura de Deus”. Ou seja, significa uma
leitura que tem a Deus por objeto. Lemos a Cervan-
tes ou Marx; na lectio divina lemos Deus. Porque
Deus é o autor de um livro, ou, mais exatamente, de
uma biblioteca: a coleção de escritos de naturezas
diversas que formam o Antigo e o Novo Testamento.
São Gregório Magno chama a Escritura scripta Dei
(os escritos de Deus), scripta Redemptoris nostri (os
escritos de nosso Redentor), e a considera uma carta
que Deus nos enviou.
A Bíblia contém a Palavra de Deus escrita.
Portanto, a matéria específica, imediata, da lec­
tio divina, não pode ser outra além da Escritura.
Somente por ter como objeto a Palavra de Deus
contida na Bíblia, pode chamar-se “leitura divina”,
“leitura de Deus”. Um crítico avisado, A. Mundó,
observava que os monges antigos, diferentemente
de muitos modernos, davam à lectio divina “um
sentido estritíssimo”, a saber: “a leitura da Palavra
de Deus contida nos livros da Sagrada Escritura,
e por concomitância os comentário sobre ela”. Só
“por concomitância”, subsidiariamente, enquanto
ajudavam a compreender melhor a Escritura, se
admitiam como matéria da lectio divina os comen­
tários dos Padres da Igreja.
Por ser a Bíblia seu objeto próprio, a lectio divina
tomou sua forma específica, já que não se pode ler a
Deus como se lê a um autor qualquer. A “leitura de
Deus” não pode ser como as demais leituras. E assim,
à medida que se foram acumulando experiências pes­
soais desse contato com a Palavra de Deus, à medida
que se conheceram as maneiras dos homens envolvi­
dos com a Palavra de penetrar em suas profundezas
insondáveis, para saboreá-la, para assimilá-la e pô-la
em prática, foram sendo definidos os diversos traços
característicos que configuram a “leitura divina”.

Deus está na Bíblia


Pelágio e a Regra dos Quatro Padres não usam
a expressão lectio divina, mas servem-se de uma fór­
mula equivalente: vacare Deo, “dedicar-se a Deus”.
Porque, como comenta A. de Vogué, “abrir a Bíblia é
encontrar a Deus”. É uma frase feliz. Como também
o é a de G. Bessière quando chama a Escritura de
“o livro dos que buscam a Deus”. Se Deus se encon­
tra na Bíblia, a “meta da lectio divina” não pode
ser outra senão “a busca de Deus em sua Palavra
escrita”, como declaravam os abades beneditinos
32
ao congresso de 1967, ou, como diz Yeomans com
um jogo de palavras: “a reverente, piedosa busca da
Palavra na palavra”.
Como “abrir a Bíblia é encontrar a Deus”,
compreende-se como aqueles que buscavam a Deus
se lançassem à Bíblia com verdadeira paixão. Assim
sucedeu com os monges, considerados como os pro­
fissionais da procura de Deus. Desde as origens até
os fins da Idade Média, quando aconteceu a grande
decadência dos mosteiros e a lectio foi abandonada
e logo substituída pela “leitura espiritual”, a Bíblia
desfrutou entre eles de prestígio incomparável. A
leitura e a “meditação” da Escritura constituiu,
para gerações e gerações de monges, uma ocupação
assídua e das mais essenciais e estimadas. A Bíblia
era para eles não somente a regra suprema de vida,
um espelho onde contemplar-se, o livro de edificação
por excelência, o alimento da alma — um manjar tão
nutritivo que, segundo são João Crisóstomo, às vezes
basta uma só palavra da Escritura “como alimento
para todo o caminho da vida”; não só era um “porto
seguro”, um “muro intransponível, uma torre inabalá­
vel, glória que ninguém pode roubar, arma que nunca
falha, segurança absoluta, prazer inefável e quanto
de bom se pode pensar”, segundo assegura São Basílio
de Cesaréia; não só constituía “remédio divino” para
as feridas da alma, uma “armadura” protetora contra
os dardos do inimigo, as “ferramentas” próprias do
ofício de cristão, um “tesouro” inesgotável que não
deve enterrar-se, no dizer de São João Crisóstomo;
pão de vida, vinho que embriaga, força na provação,
luz na noite e fogo que consome o coração, segundo
São Gregório Magno... Era também, e sobretudo,
um lugar privilegiado de encontro com Deus. “Nas
Escrituras” — escreveu Orígenes — “com rosto des­
33
coberto contemplamos a glória do Senhor”. A Bíblia,
assegura o biógrafo de Santo Odilon de Cluny, é “o
livro da contemplação de Deus”.
Não são piedosas hipérboles. Deus fala e pes­
soalmente se manifesta na Bíblia. A palavra é a
forma plena da comunicação humana. Podemos
comunicar-nos de muitas maneiras: um olhar, um
sinal... Mas somente a palavra pode expressar com
precisão, em pormenor e por extenso, tudo o que se
pode expressar. Na linguagem se cumpre a supre­
ma revelação humana. Ora, Deus escolhe também
esse modo de comunicação para manifestar-se ao
homem. E nisso consiste formalmente a revelação so­
brenatural. Na criação e governo do universo há uma
revelação natural: Deus se manifesta como objeto me-
diatamente cognoscível. Pelo contrário, na revelação
sobrenatural, Deus manifesta sua mente, como uma
pessoa comunica seus pensamentos a outra pessoa,
mediante a linguagem propriamente dita. Deus nos
fala imediatamente na Escritura, porque a Escritura
é a Palavra formal de Deus, em sentido estrito.
A Bíblia é “o livro dos buscadores de Deus”. “Nos li­
vros sagrados, o Pai que está nos céus sai amorosamen­
te ao encontro de seus filhos para conversar com eles”
(Dei Verbum, 21). “Abrir a Bíblia é encontrar a Deus”.

Cristo está na Bíblia


Abrir a Bíblia — poderia dizer-se igualmente
— é encontrar a Cristo. Os Padres estavam per­
suadidos disso. E o Vaticano II ensina que Cristo
“está presente em sua palavra, pois quando se lê
na Igreja a Sagrada Escritura, é Ele quem fala”
(Sacrosanctum Concilium, 7).
34
São Jerônimo tem uma frase famosa: “Ignoratio
scripturarum, ignoratio Christi est” (In pról., 1):
desconhecer a Bíblia é desconhecer a Cristo. Cristo
está na Bíblia. Paul Evdokimov escreve: “Pode-se
afirmar que para os Padres a Bíblia é Cristo, pois
cada uma de suas palavras nos conduz até Ele,
que as pronunciou, e nos põe em sua presença (...).
Consome-se ‘eucaristicamente’ a ‘palavra miste­
riosamente partida’ com vistas à comunhão com
Cristo”. Todos os antigos assinalam a íntima relação
existente entre Bíblia e Eucaristia: Clemente, Orí-
genes, Santo Agostinho, São João Crisóstomo, São
Jerônimo... “Ao ler a Bíblia, os Padres não liam os
textos, mas a Cristo vivo, e Cristo lhes falava; consu­
miam a Palavra como o pão e o vinho eucarísticos, e
a Palavra se oferecia com a profundidade de Cristo”.
As Escrituras são a carne e o sangue de Cristo.
“Eu creio” — diz São Jerônimo—“que o Evangelho
é o corpo de Cristo (...) E ainda que as palavras
‘Quem não comer minha carne e beber meu sangue’
possam entender-se também do mistério [da Euca­
ristia], contudo, as Escrituras, a doutrina divina,
são verdadeiramente o corpo e o sangue de Cristo”
(Tr. de ps. 131). E em outro lugar: “É nosso dever
conhecer as veias e carnes da Escritura” (Tr. in
Marci Evang., 4). São Gregório Magno, com realis­
mo impressionante, dizia ao povo: “Vós que tendes
o costume de assistir aos divinos mistérios, sabeis
bem que é necessário conservar com sumo cuidado
e respeito o corpo de nosso Senhor que recebeis,
para não perder dele nenhuma partícula, a fim de
que nada do que tenha sido consagrado caia por
terra. Pensais vós acaso que seja um delito menor
tratar com negligência a palavra de Deus, que é seu
corpo?” ( Hom. in Ez. 13, 3).
35
A comparação Escritura-Eucaristia é, como se
vê, constante na tradição cristã. Ambas contém o
Verbo de Deus. O Pe. Congar nota que, se o homem
não vive só de pão, mas de toda palavra que sai da
boca de Deus, a Bíblia é, como a Eucaristia, o pão
da vida descido do céu, e que se Deus atua para
unir-nos a Ele nos sacramentos da Igreja, atua
também, e não com menor eficácia, no sacramento
de sua Palavra. A celebração Eucarística consta
de duas partes: Eucaristia e Palavra de Deus, que
formam um sacramento completo. Na Bíblia, como
na Eucaristia, encontramos o verdadeiro pão da
vida eterna, aquele de que devem alimentar-se os
que foram chamados a viver além deste mundo a
vida mesma de Deus. E o Vaticano II destacou, e
de certo modo consagrou essa relação íntima entre
Escritura e Eucaristia quando declara: “A Igreja
sempre venerou a Sagrada Escritura, como o fez
com o corpo de Cristo, pois sobretudo na sagrada
liturgia nunca cessou de tomar e repartir a seus
fiéis o pão da vida, que oferece a mesa da Palavra
de Deus e do corpo de Cristo” Verbum, 21). E
também: “Como pela assídua freqüência do mistério
eucarís-tico se incrementa a vida da Igreja, assim é
de se esperar um novo impulso da vida espiritual a
partir da progressiva veneração da Palavra de Deus,
que permanece para sempre” (n. 26).

A essência da lectio divina


Deus falou diretamente a homens escolhidos,
privilegiados. E através deles a todo o seu povo, à
humanidade inteira. Esses homens foram, no senti­
do amplo do termo, os profetas. Tiveram os profetas
36
clara consciência de que Deus se comunicava com
eles. De diversos modos, segundo cada caso. Quando
queria e como queria. Tinham a sensação de que a
Palavra de Deus se apoderava deles, até fazer-lhes
violência. Em outros casos — o caso dos sábios de
Israel, especialmente — a Palavra de Deus se ma­
nifestava por vias aparentemente mais próximas
da psicologia normal. Profetas e sábios, em comu­
nicação direta com o Deus vivo, nos transmitiram
mensagem divina. Deus falou através de seus in­
termediários. Através de profetas e sábios, Deus foi
manifestando sua vontade, revelando o sentido das
coisas e da vida, prometendo e anunciando o futuro.
Deus foi se revelando. Essa revelação alcançou o
ápice em Jesus Cristo. “Muitas vezes e de modos
diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas;
agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por
meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas
as coisas, e pelo qual fez os séculos” (Hb 1,1-2). Poder
que opera, luz que revela, Jesus enquanto Filho se
identifica com a Palavra de Deus, é Ele mesmo a
Palavra de Deus.
Na divina Biblioteca encontramos a Palavra
de Deus. Aqueles que procuram a Deus têm seu
Livro: a Sagrada Escritura. Na Bíblia encontram a
Deus. Porque a Bíblia é o lugar que o próprio Deus
escolheu para seu encontro com o homem. Dietri-
ch Bonhöffer tem a esse respeito algumas linhas
preciosas: “Se fosse eu que tivesse que determinar
onde encontrar a Deus, encontraria sempre um
Deus que estivesse de acordo com minha maneira
de ser. Mas, se é Deus que estabelece o lugar do
encontro, nesse caso não será um lugar para agra­
dar a natureza humana, um lugar conforme o meu
gosto. Este lugar é a cruz de Cristo. E todo aquele
37
que quiser encontrá-lo deverá correr ao pé da cruz,
como o exige o Sermão da Montanha. Isso em nada
agrada à nossa natureza, mas lhe é inteiramente
contrário. Tal é a mensagem bíblica, não somente no
Novo Testamento, mas também no Antigo. E quero
fazer-lhes uma confidência pessoal: desde que consi­
dero a Bíblia como o lugar de encontro com Deus, ‘o
lugar que Deus me oferece para encontrá-lo’, todos
os dias vou de maravilha em maravilha. Leio-a pela
manhã e à tarde, e com freqüência, ao longo do dia,
medito um texto que escolhi para a semana e pro­
curo submergir profundamente nele para entender
de verdade o que nele nos é dito. Estou convencido
de que sem isso não podería viver verdadeiramente,
e certamente já não podería crer...”.
Essa é, formulada em termos de nossos dias,
a “leitura de Deus”. Porque, evidentemente, não é
qualquer leitura da Bíblia que pode qualificar-se
como lectio divina. Assim, percorrer suas páginas
superficialmente, por mera curiosidade, sem inte-
ressar-se verdadeiramente por ela, não é “leitura
divina”. Não é tampouco esquadrinhá-la com finali­
dade de estudo. Ler, escutar, reter, aprofundar, viver
a Palavra de Deus contida na Escritura, mergulhar
nela com fé e amor: nisso consiste, essencialmente,
a lectio divina.

38
Capítulo IV
Deus falou, Deus me fala

Leitura repleta de fé
A característica primeira e fundamental da
lectio divina é a fé que deve animá-la. Sem fé viva,
radical, em que Deus escreveu a Bíblia, em que o
autor último, principal e verdadeiro da Escritura
é o próprio Deus, como seria possível “ler a Deus”?
Mas não basta estar persuadido de que Deus
escreveu, de que Deus falou. É preciso fazer um
ato de fé em Deus que continua falando. Não se
lêem suas palavras como as de um autor de outros
tempos. Deus não está morto. É o “Deus vivo”.
Sua palavra está viva. “A Palavra de Deus é viva,
eficaz”, diz a Carta aos Hebreus (4,12). Sem crer
firmemente que “abrir a Bíblia é encontrar a Deus”,
que “nos livros sagrados, o Pai que está nos céus
sai amorosamente ao encontro de seus filhos para
conversar com eles”, que “Cristo está presente em
sua palavra”, a verdadeira “leitura de Deus” resulta
completamente impossível.
Deus está presente na Escritura. Cristo está
presente na Escritura. Por isso escrevia Paulo Gius-
tiniani, reformador dos camaldulenses: “O monge
deve aproximar-se da Palavra, não para entreter-se,
nem para estudar, mas como se subisse ao altar de
39
Deus, com grandes preparativos de alma e de corpo,
com profundíssimo respeito”.

Leitura pessoal
Deus falou; Deus fala; Deus me fala. Dirige-se a
mim, pessoalmente, aqui e agora. Assim pensavam
os monges antigos, profissionais da “leitura divina”.
Estavam convencidos de que cada um dos vocábu­
los contidos na Escritura é uma palavra que Deus
dirige a cada um dos leitores para sua salvação e
santificação. Sendo a Bíblia “ciência de salvação”,
acreditavam sem a menor vacilação que tudo tem
nela um valor pessoal, atual, para a vida presente
e com vistas à vida eterna.
Deus dirige a cada um de seus leitores uma
mensagem pessoal e única. Esta mensagem pes­
soal está contida na grande mensagem universal,
endereçada à comunidade dos homens. São Gregório
Magno já o explicou: Deus nos disse tudo. Falou uma
vez, e é suficiente. Não há que esperar outra reve­
lação. “Deus não responde ao coração de cada um
por revelações particulares, porque preparou uma
palavra que pode solucionar todos os problemas. Na
Palavra de sua Escritura, com efeito, se soubermos
procurar, encontraremos resposta para cada uma
de nossas necessidades. Para dar um só exemplo:
se estamos afligidos por um sofrimento qualquer ou
por uma enfermidade corporal, encontramos alívio
quando conhecemos suas causas ocultas. Como em
cada uma de nossas provações não somos respondi­
dos em particular, recorremos à Sagrada Escritura.
Aí encontramos Paulo que, tentado pela fragilidade
da carne, ouve esta resposta: ‘Basta-te a minha gra­
40
ça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o
seu poder’ (2Cor 12,9). Deus recolheu na Escritura
Santa tudo o que pode suceder a cada um de nós e
nos deu por modelo os exemplos dos que nos pre­
cederam” (Mor.23,19, 34). Admirável lição sobre a
atualidade da Palavra de Deus.
É claro que Deus não está aprisionado na
Bíblia. Deus é um Deus vivo que fala, “ora pela
Escritura, ora por uma inspiração secreta”. Mas a
norma de toda “inspiração secreta” é a Bíblia. “A
pessoa cai facilmente em erro, se não sabe confron­
tar o que recolheu na contemplação secreta com a
eminente verdade da Escritura Santa”. Até aqui,
São Gregório Magno.
A “leitura de Deus” tenta individualizar e
interiorizar a grande mensagem dirigida a todos
os homens. Com muita precisão escreveu David
Stanley: “Por meio de minha reação de fé, amor e
esperança, o mistério se converte em evento para
mim. Acontece comigo”. Diz um documento da an­
tiguidade cristã, a Carta a Diogneto (11,4): “Aquilo
que se nos apresenta como novo, que descobrimos
que existe desde sempre e que renasce diariamente
nos corações dos fiéis”... O objetivo da lectio divina
é na realidade o que Santo Inácio denomina “um
conhecimento interno do Senhor, que por mim se
fez homem para que mais o ame e o siga” (
-cios, 104). O autor do Deuteronomio expressou
muito bem a profunda percepção de Israel de como
nas Escrituras o acontecimento do passado se con­
verte em experiência contemporânea. Ainda que
compondo seu livro quinhentos ou seiscentos anos
depois do acontecimento da Aliança no monte Sinai,
é capaz de representar a Moisés falando, através
dos séculos, a seus próprios contemporâneos (do
41
autor): “Ouve, ó Israel, os estatutos e as normas
que hoje proclamo aos vossos ouvidos (...) Iahweh
nosso Deus concluiu conosco uma Aliança no Horeb.
Iahweh não concluiu essa Aliança com nossos pais,
mas conosco, conosco que estamos hoje aqui, todos
vivos” (Dt 5,1-3). “É justamente para criar uma
experiência semelhante, contemporânea e pessoal,
em mim, como membro do povo de Deus, que foi
instituída a lectio divina”.
Continua dizendo o Pe. Stanley: “Por conse­
guinte (e este é o segundo passo), deve-se refletir
com fé sobre o sentido literal já descoberto, para
escutar o que Cristo ressuscitado me diz através
de seu Espírito, quando leio uma passagem em
dado momento”. Trata-se de escutar a Cristo para
prestar-lhe a “obediência da fé” (Rm 1,5). A lectio
divina é o defrontar-se com Deus em Cristo. Que me
diz Deus hoje nesta passagem da Bíblia? “Abertos
nossos olhos à luz de Deus, escutemos atentos o que
diariamente nos admoesta a voz divina que clama”
(RB Pról., 9).
O caso de Santo Antão ilustra essa doutrina.
Antão, como é bem conhecido, era um jovem copta,
bom e piedoso. Um dia, dirigia-se à igreja e pelo
ca-minho ia pensando na vida que levavam os pri­
meiros cristãos de Jerusalém, segundo a descrevem
os Atos dos Apóstolos. Formavam uma comunidade
maravilhosa: perseveravam na doutrina dos após­
tolos, na fração do pão e na oração; possuíam tudo
em comum; tinham um só coração e uma só alma...
Antão chegou atrasado à Eucaristia, quando já se
estava proclamando o Evangelho do jovem rico: “Se
queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá
aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois, vem
e segue-me”. A passagem evangélica acaba mal: o
42
jovem rico recusou o convite de Jesus, “pois possuía
muitos bens”. Mas Antão o aceitou. O Espírito Santo
o fez compreender que as palavras do Evangelho
se dirigiam a ele pessoalmente. Daí em diante toda
a vida de Antão não será outra coisa senão uma
resposta a essa voz.
Outro exemplo. Alexandre, que com o tempo
fundaria o célebre mosteiro dos Acemetas6, pró­
ximo de Constantinopla, também se sentiu cha­
mado à vida monástica enquanto lia o Evangelho.
E no Evangelho continuou inspirando-se, muito
concretamente, e ao longo de sua vida. “Padre” —
costumava perguntar ao arquimandrita Elias — “é
verdade tudo o que está escrito no Evangelho? E se
é verdade, por que não o cumprimos?” Alexandre
optou finalmente por empreender, com não poucos
companheiros, a santa aventura de viver como os
pássaros do céu e os lírios do campo, louvando a
Deus continuamente.
Terceiro e último exemplo: Santa Teresa do
Menino Jesus. “Sou demasiado pequena” — es­
creve — “para subir a rude escada da perfeição...
Procurei nos livros santos e li estas palavras saídas
da Sabedoria eterna: ‘Se alguém é pequeno, que ve­
nha a mim’... Havia encontrado o que procurava...
Continuei procurando e encontrei esta frase: ‘Como
mãe acaricia seu filho, assim eu os consolarei, e os
levarei no colo e os embalarei sobre meu joelhos’.
Nunca palavras tão ternas, tão melodiosas alegra­
ram minha alma. O elevador que deve levar-me até
o céu são teus braços, ó Jesus. Portanto, não tenho
necessidade de crescer; ao contrário, o que preciso
é continuar sendo pequena, esforçar-me em sê-lo
6“Os que não dormem” (N. do T.)

43
cada vez mais”. As palavras de Isaías, como se vê,
foram a inspiração e a base da definição perfeita
da “infância espiritual”, tal como Santa Teresa a
entende e Cristo a exige: “Ser criança é reconhecer
seu próprio nada, esperar tudo de Deus, como o
menino pequeno espera tudo de seu pai”. Teresa do
Menino Jesus soube individualizar e interiorizar
a mensagem da Escritura. Descobriu que a voz de
Deus se dirigia a ela pessoalmente. E assim nasceu
sua doutrina da “infância espiritual”, que ela foi a
primeira a viver, e que tanto bem fez e continua
fazendo na Igreja.

44
Capítulo V
Uma conversa íntima

Leitura sapiencial
A “leitura divina” não procura uma finalidade
científica, não se propõe alcançar um objetivo pu­
ramente — nem sequer principalmente — de tipo
intelectual. A Bíblia não é um tratado de teologia,
um estudo sobre Deus. É muito mais: é a grande
mensagem que Deus nos deixou. A lectio consiste,
por conseguinte, em escutar e saborear essa men­
sagem. É sentar-se, como Maria, ao pés de Jesus,
e não perder uma única das palavras saídas de
seus lábios.
Comumente, costumamos ler, não para ler,
mas para ter lido. Isto é, buscamos em nossas
leituras um fim prático, utilitário: ampliar nossos
conhecimentos, seja lá por que razão for. A “leitura
divina” é, neste sentido, uma leitura completamente
desinteressada, gratuita. Dela podería dizer-se o
que São Bernardo diz sobre o amor: “O amor não
busca sua justificação fora de si mesmo. O amor é
suficiente em si mesmo, é agradável em si mesmo e
para si mesmo. O amor é seu próprio mérito e sua
própria recompensa; não busca uma causa fora de
si mesmo nem outro resultado a não ser o amor
mesmo. O fruto do amor é o amor”. E acrescenta
45
que esse caráter auto-suficiente do amor se explica
porque tem a Deus por origem e volta a ele como
a seu fim, porque Deus é o Amor. O mesmo ocorre
com a “leitura de Deus”. A pessoa lê a Deus sim­
plesmente para estar com Ele, para escutar sua voz.
É ler por ler.
Daí porque a lectio é uma leitura pausada,
alheia a toda pressa. O que se pretende é saborear,
mais que saber; admirar, e não especular ou ques-
-tionar. Existe uma notável diferença entre “ciência”
e “sabedoria”; os monges antigos o enfatizaram. Há
uma diferença entre um saber de tipo acadêmico e
universitário, e um saber de tipo monástico; entre
um saber conceituai e um saber que Newman cha­
mava “real”; entre um saber impessoal na ordem do
“ter”, e um saber existencial na ordem do “ser”. A
lectio divina ultrapassa a informação meramente
humana, o trabalho puramente científico, teológico
ou pastoral, como reconhecia o congresso dos aba­
des beneditinos de 1967. Hoje em dia os monges que
melhor penetraram na realidade da lectio divina, e
mais convencidos estão da conveniência urgente de
sua plena restauração nos mosteiros, insistem em
idéias como a seguinte: a “leitura divina” e o estudo
são duas realidades distintas, mas se completam e
se sustentam mutuamente; o objetivo da formação
deveria levar a procurar que cada monge, segundo
suas possibilidades e necessidades pessoais, encon­
tre o método apropriado para dedicar-se à lectio e
aplicar-se ao estudo; lectio e estudo deveríam ser
considerados como dois caminhos complementares
de uma mesma busca de Deus, na qual se encon­
tra comprometida a pessoa inteira, inteligência
e coração. Há os que vão muito mais longe, e não
hesitam em afirmar que a Bíblia deveria ocupar
46
no saber monástico não somente o primeiro lugar,
mas todo o lugar, no sentido de que qualquer outro
estudo a ela deve referir-se de alguma maneira
como preparação, ilustração ou comentário. Desse
modo, todo o estudo do monge estará a serviço de
sua lectio divina. Deve-se advertir que nem todo
estudo é apto para facilitar e favorecer a lectio,
mas somente aquele que se realiza nas mesmas
condições e idênticas disposições interiores. Lectio
e estudo não devem nunca ser atividades opostas,
reservando-se o estudo ao monopólio da inteligên­
cia, e a lectio ao da vontade. O estudo do monge
deveria ser de certa maneira “leitura divina”, posto
que já é um encontro pessoal com Deus. Um estudo
realizado como lectio divina torna-se profundamen-
le unifi-cante. Comumente se desdobra em oração e
louvor, como a lectio propriamente dita. A “leitura
de Deus” — não se insistirá nunca o bastante nisso
— é uma leitura gostosa e degustada, palatável.
É saborear o Verbo, saborear a Deus, no Espírito
Santo, que vivifica a letra e suscita no leitor um
gosto secreto para que se ponha em harmonia com
o que leu e responda com sua oração e toda a sua
vida à Palavra do Pai. É uma experiência de Deus,
pois nela se verifica uma comunicação de vida, uma
participação, uma comunhão.

Leitura íntima
A “leitura divina” busca não tanto obter um
conhecimento tão exaustivo quanto seja possível da
verdade — tarefa própria da teologia especulativa
— como chegar a um contato direto com Deus, a
um estar com Deus, a um escutar a Deus que fala
47
pessoalmente, aqui e agora, a cada um dos homens
que abre com fé as Escrituras.
Com efeito, Deus nos fala. Mais ainda: Deus nos
abre seu coração e nos convida a penetrar nele, a
esquadrinhá-lo, a conhecê-lo. São João Crisóstomo
nos descreve os monges de Antioquia “cravados em
seus livros”, completamente embebidos no mundo
da Bíblia: “Alguns tomam Isaías, e com ele conver­
sam; outros falam com os apóstolos”. E em outro
lugar: “O monge tem literalmente convívio com os
profetas, e adorna sua alma com a sabedoria de
Paulo, e a cada passo pode saltar de Moisés a Isaías,
e deste a João e a qualquer outro”. Mas o mesmo
João Crisóstomo diz em outro lugar: “Consideremos
que pela língua dos profetas escutamos a Deus que
fala conosco”. Isso é o importante, o que interessa
de verdade, o que se deseja acima de qualquer ou­
tra coisa. Segundo São Gregório Magno, a oração
dos salmos — um dos modos de se praticar a lectio
divina — é o lugar de encontro íntimo entre nós,
que vamos até Deus, e Deus, que vem a nós. Porque,
“para onde se dirigem as palavras de Deus senão ao
coração dos homens”? E que se faz ao ler as Escri­
turas, senão estudar o coração de Deus? Gregório
revela acertadamente um dos aspectos essenciais
da lectio, quando escreve: “ cor Dei in verbis
Dei”, expressão que, sem dúvida alguma, reflete
uma experiência pessoal.
Vejamos o texto completo. Gregório havia sido
embaixador na corte de Constantinopla. Aí conhe­
ceu o nobre Teodoro, e ficaram amigos. Gregório
tornou-se seu diretor espiritual. Em seguida, Gre­
gório regressou a Roma e o elegeram papa. Teodoro,
por sua vez, chegou a ser médico do imperador.
Gregório escreveu-lhe uma carta para exortá-lo a
48
ler com assiduidade a Sagrada Escritura: “Tenho
que dirigir-te uma queixa, ilustre filho Teodoro.
Recebeste gratuitamente da Santíssima Trindade
a inteligência e os bens temporais, a misericórdia
e o amor; mas estás constantemente imerso em as­
suntos materiais, obrigado a freqüentes viagens, e
deixas de ler diariamente as palavras do teu Reden­
tor. Não é a Sagrada Escritura uma carta do Deus
Todo-Poderoso à sua criatura? Se te afastasses por
algum tempo do imperador e recebesses dele uma
carta, não descansarias nem dormirías até que les­
ses o que te havia escrito um imperador da terra.
O imperador do céu, o Senhor dos homens e dos
anjos, te dirigiu uma carta em que se refere à tua
vida, e tu não te ocupas em lê-la com fervor. Aplica-
-te, rogo-te, a meditar cada dia as palavras de teu
Criador. Aprende a conhecer o coração de Deus nas
palavras de Deus, para que tendas com maior ardor
às coisas eternas, para que tua mente se acenda em
maiores desejos dos gozos celestiais. Porque somente
então alcançaremos o máximo descanso, se agora,
por amor a nosso Criador, não nos damos repouso
algum” (Ep. IV, 31).
A Escritura, carta de Deus, nos permite conhe­
cer o coração de Deus. E esse conhecimento nos faz
desejar conhecê-lo mais e mais, até possuí-lo nos
“gozos celestiais”. O coração do homem não deve dar-
-se “repouso algum” até possuir o coração de Deus.
O caminho do aprofundamento é infinito. Nunca
esgotaremos o coração de Deus.
Em uma biografia de Cecília Bruyère, primeira
abadessa de Santa Cecília de Solesmes, se lê que
seu livro predileto era a Bíblia e que “sabia lê-la,
sob o olhar de Deus, com olhos de esposa”. É uma
frase feliz. A esposa, ao ler as cartas do esposo,
49
descobre nelas pormenores, matizes, profundidades
que nenhuma outra pessoa é capaz de vislumbrar.
“O coração de Deus”, “olhos de esposa”: o amor
representa evidentemente um grande papel, um
papel de protagonista, na “leitura de Deus”. Trata-
-se de uma leitura não apenas pessoal, mas também
íntima; e na intimidade é tudo. Na novela de Nikos
Kazantzakis, O Cristo Recrucificado, aparece um
personagem, Yannakos, que se distingue pela sa­
bedoria de suas sentenças — “Diga-nos, Yannakos,
o rei Salomão reencarnou em ti?”, perguntam-lhe.
“Velho, eu não explico isso com minha inteligência”,
responde Yannakos, “mas com o coração; ele é o rei
Salomão”! E mais adiante, o bom pope Fotis decide:
“Tens razão, Yannakos, o Evangelho não se lê com a
cabeça; nosso pobre entendimento compreende bem
pouca coisa; deve ser lido com o coração. Este sim
compreende tudo”.
Tal é a opinião de um escritor. Vejamos o que
pensa um cientista, o doutor Alexis Carrel: “Nós,
homens do Ocidente, temos a razão em muito mais
alta estima que a intuição. Preferimos, de muito, a
inteligência ao sentimento (...). A atrofia dessas ati­
vidades fundamentais [não intelectuais] transforma
o homem moderno em um ser espiritualmente cego”.
E em outro lugar: “Os simples percebem a Deus
tão naturalmente como sentem o calor do sol ou o
perfume de uma flor. Mas este Deus, tão acessível
para aquele que sabe amar, se esconde para aquele
que só sabe compreender”.
O Deus de Jesus Cristo, o Deus único e ver­
dadeiro, Pai, Filho e Espírito Santo, nos fala na
lectio divina, de coração a coração, numa intimi­
dade inefável. As três Divinas Pessoas, como no
ícone de Andrei Rublev, parecem convidar-nos a
50
participar de sua conversação. Mas é natural e
compreensível que o cristão encontre com mais
freqüência na Escritura a palavra e a pessoa de
Jesus de Nazaré. Santa Teresa do Menino Jesus
intuiu, graças a seu grande amor, esta verdade
inalterável: “Guardar a palavra de Jesus é a úni­
ca condição de nossa felicidade, a prova de nosso
amor por ele. Mas que é esta palavra? Creio que
a palavra de Jesus é ele mesmo. Jesus, o Verbo, a
Palavra de Deus, nos diz depois: "... santifica-os
por tua Palavra, tua Palavra é a verdade (...)”.
Jesus nos ensina que ele é o caminho, a verdade
e a vida. Nós sabemos, pois, qual é a palavra que
devemos guardar, e não perguntaremos a Jesus,
como perguntou Pilatos, “ ‘O que é a verdade?’. Nós
possuímos a verdade, pois guardamos a Jesus em
nossos corações”.
Um teólogo protestante, H. Zahrnt, depois de
referir a definição de Schleiermacher sobre o cristia-
-nismo—“religião histórica positiva”, que tem como
condição uma pessoa concreta e um livro concreto:
Jesus Cristo e a Bíblia —, acrescenta estas palavras:
“A Bíblia é a fonte e o cânon da vida da Igreja... Mas
bem entendido: não é porque Jesus Cristo está na
Bíblia que ele tem um significado para nós; ao con­
trário, a Bíblia tem um significado para nós, porque
Jesus Cristo está nela”.
Professamos a fé cristã. Zahrnt escreve: “A fé
cristã é fé em Jesus Cristo. Que outra coisa podería
ser”? E Paul Evdokimov cita um texto de Simeão,
o Novo Teólogo: “Quando Jesus se nos apresenta,
vemos os mistérios ocultos nas Escrituras”. Depois
afirma com todo o direito: “A heresia provém da
razão raciocinante sobre uma palavra abstrata,
e por isso mesmo morta. Por conseguinte, todo o
51
significado da Tradição está no descobrir de Cristo,
descoberta que enche com sua presença todas as
formas da fé”. São Gregório de Nissa havia escrito:
“A fé não somente introduz a flecha, mas também o
Arqueiro com ela” (o Arqueiro é Cristo). “Qualquer
outro método, estudo ou leitura das Escrituras” —
conclui Evdokimov —, “não tem outro resultado
senão submergir-nos no erro”. É a Jesus que encon­
tramos, sobretudo nos livros sagrados, e ao mesmo
tempo é ele quem nos abre o sentido das Escrituras,
como aos discípulos de Emaús; e ao se comunicar
conosco, faz arder nossos corações. A lectio divina é
uma leitura íntima.
Voltemos a Santa Teresa do Menino Jesus.
Sem ter a abundância de meios de que se dispõe
atualmente, a santa carmelita viveu e morreu na
íntima união com a Escritura, no diálogo contínuo
com a Palavra de Deus. As expressões e os matizes
desse diálogo são infinitamente delicados. Assim,
por exemplo: “Volto ao santo Evangelho, onde não
é São Mateus, nem São Marcos, nem São Lucas,
nem São João, é o Senhor quem me explica em que
consiste seu mandamento novo”. Jesus ajuda irmã
Teresa a manter toda a sua existência em contato
vivo com a Escritura. A carmelita acaba de vencer,
a duras penas, seu mau humor; sua imperfeição a
tinha oprimido. “Estava me perguntando o que Jesus
pensaria de mim, quando me recordei das palavras
que ele dirigiu um dia à mulher adúltera: ‘Ninguém
te condenou?’. E lhe respondi chorando: ‘Ninguém,
Senhor’. Por que Jesus é tão doce comigo”? E em outro
lugar: “Não tenho mais que fixar os olhos no santo
Evangelho; aspiro imediatamente o perfume da vida
de Jesus e sei por que caminho correr”...
52
Leitura orante
Ensinam os Padres que a oração deve in­
terromper a leitura. Assim, São Jerônimo, Santo
Agostinho, Cassiano, Santo Isidoro de Sevilha. Este
último dá uma razão: “Muitas vezes, uma leitura
prolongada fatiga a memória; por isso é melhor ler
um parágrafo, fechar o livro e repassar dentro da
alma a verdade que se acaba de ler. Dessa maneira
se lerá sem fadiga, e a doutrina não resvalará pela
superfície do espírito”. Orígenes dá outra razão:
“Quando não se encontra o que se busca, quando
não se entende o texto que se lê, deve-se recorrer a
Deus, pedir-lhe que no-lo dê a conhecer; desse modo
a leitura se converte em oração, pois é absoluta­
mente necessário orar para compreender as coisas
divinas”. É preciso orar, em primeiro lugar — diz
São Basílio —, porque somente o Espírito Santo nos
permite descobrir o sentido das palavras da Escri­
tura. Um medieval, Guilherme de Saint-Thierry,
assegura que as interrupções dedicadas à oração,
que ele recomenda vivamente, longe de molestar
a alma, comunicam-lhe uma lucidez que a ajuda
a compreender o que se lê. São Bento, por sua vez,
enumera, entre as principais práticas quaresmais,7
a oratio cum fletibus, a lectio e a compunctio .
Essa passagem do admirável capítulo 49 da Regra
revela melhor que qualquer outra mentalidade do
santo. Evidentemente, segundo ele, quando se pro­
duz o affectus inspirationis divinae gratiae, ou seja,
a graça da oração íntima de que nos fala o capítulo
20, o monge interrompe a leitura para orar, e se
7Respectivamente, “oração com lágrimas”, “leitura divina” e “com-
punção do coração”. (N. do T.)
53
entabula o diálogo entre Deus e o homem. “Quando
oras, falas a teu Esposo; quando lês, ele fala a ti”.
Na realidade, não seria preciso que os Padres
e outros mestres espirituais aconselhassem asso-
-ciar a oração à leitura. Quando a lectio divina se
pratica como ensina a tradição, isto é, quando a
“leitura divina” é verdadeiramente “leitura divina”
e não mera “leitura espiritual” nem está dominada
por preocupações intelectuais ou utilitárias; quando
a lectio é atenção a Deus e contato pessoal e ínti­
mo com sua Palavra, a oração brota espontânea e
irresistivelmente. E mais, a oração torna-se parte
da lectio. Com efeito, não se lê a Deus como a um
autor qualquer. Muito se tem insistido em que ler
é colocar-se em íntima comunicação com o autor,
e é verdade. Para ler bem, para que um autor nos
comunique de verdade seu pensamento e responda
às nossas interrogações, é preciso considerarmos
que estamos conversando com ele. Claro que isso
é uma ficção, porque o autor não nos conhece nem
está presente, e portanto não pode responder às
nossas perguntas, mas enquanto as respostas já
estão contidas em seu texto. Com a Bíblia é dife­
rente. Deus, que está presente nela, é um Deus
vivo, um Deus que não só falou, mas que fala, que
me fala. Por isso, “leitura de Deus” equivale uma
“conversação com Deus”.
O cisterciense Arnold de Bohéries diz do mon­
ge noviço: “Quando ler, que busque o sabor, não
a ciência. A Sagrada Escritura é o poço de Jacó,
de onde se extrai a água que imediatamente se
derrama pela oração. Não será necessário ir ao
oratório para começar a orar, mas na própria lei­
tura haverá ocasião para orar e contemplar”. Por
isso, na hagiografia e nos tratados monásticos me-
54
dievais, lêem-se expressões como estas: “Quin
ipsa lectio erat oratio“Totus in lectione, totus in
oratione”... Outro cisterciense anônimo do século 8
XII escrevia: “Legendo oro, orando .
Na mesma linha situam-se o abade geral Dom
Ambrose Southey, para quem a lectio consiste
em “ruminar a Palavra de Deus na oração”, e um
monge de nossos dias, que a descreve como “uma
leitura meditada, sobretudo da Bíblia, e prolon­
gada em oração contem-plativa”. A lectio divina é
um diálogo de amor, de coração a coração, na mais
completa intimidade pes-soal. Leitura e oração são
inseparáveis. Em muitos textos se identificam.

6“Pois a própria lectio também era oração"; “Inteiro na leitura, inteiro


na oração“Lendo oro, orando contemplo”. (N. do T.)
55
Capítulo VI
Qualidades paradoxais

Leitura exata e espiritual


Pedro, o Grande, czar de todas as Rússias, de­
cretou: “Os monges não apenas leiam as Sagradas
Escrituras, mas as entendam”. De nada serve, com
efeito, ler a Bíblia se não a entendemos. A leitura da
Palavra de Deus nunca foi considerada pela Igreja
como um rito mágico.
Algumas páginas da Bíblia são claras; outras,
obscuras. Considerada globalmente, a Escritura é
bem mais obscura que clara. Não é fácil, muitas
vezes, entender perfeitamente o que quer dizer. A
transmissão do texto tem sido freqüentemente de­
feituosa. A língua hebraica, como toda língua, tem
evoluído através dos séculos. A forma de expressão
de autores tão remotos e tão pessoais — como São
Paulo — está muito distante da nossa. Descobrir o
significado preciso de certas expressões, de certas
passagens, não apenas do Antigo Testamento, mas
também do Novo, exige esforço e estudo.
É um esforço e um estudo de que o leitor da
Escritura não pode prescindir, segundo nos adver­
tem os mestres da lectio divina. Isso não significa,
naturalmente, que todo leitor da Bíblia tenha que
ser um mestre consumado em exegese, mas deve
56
sim utilizar os trabalhos dos mestres em exegese.
Recordemos os esforços de um Orígenes, de um São
Jerônimo, para chegar a possuir um texto correto
da Escritura e penetrar em seu verdadeiro sentido.
Antes de tudo, seu sentido literal, ao qual deve
ajustar-se a “leitura divina”. Nada deve ficar con­
fuso, vago, impreciso, tanto quanto seja possível. A
filologia, as ciências naturais, todo o saber humano
deve pôr-se em ação para se descobrir o sentido
histórico da Palavra de Deus escrita.
Tudo isso, entretanto, não é mais que o ponto
de partida para o fiel que lê a Escritura com o fim
de impregnar-se da “verdade que Deus fez consig­
nar nela para nossa salvação” (DeiVerbum, 11). A
“leitura divina” é uma leitura espiritual, não uma
leitura científica. Busca na Escritura — e nos textos
da tradição cristã que a ilustram e completam — seu
significado para a vida espiritual, para a própria
vida de cada um. Está orientada para a prática e
pretende ilustrar, alimentar, edificar a piedade. E
se supõe ou pressupõe um conhecimento preciso do
sentido literal — somente assim se evitarão fanta­
sias ou desvios deploráveis —, toda a tradição cristã
convida, anima, estimula o leitor fiel a investigar
amorosamente seu sentido espiritual. Em vez de nos
determos nos fatos, nas imagens materiais, devemos
partir deles para que nos elevemos às idéias e
realidades que evocam ou simbolizam.
Isso se aplica sobretudo ao Antigo Testamento,
que não tem seu cumprimento senão na revelação
do Novo. Assim os textos de ambos não cessam de
alternar-se, de corresponder-se. “Antes de Jesus
Cristo, o Antigo Testamento era água, agora é vi­
nho”, ensinava Orígenes de Alexandria. A propósito
de Santo Agostinho, escreveu F. van der Meer que o
57
jovem mestre de eloqüência começou a sentir “certa
reverência” ante a Bíblia em Milão, quando escutou
as explicações alegóricas de Santo Am-brósio. “De
pronto, aqueles mitos carnais e bárbaros se lhe re­
velaram cheios de espírito, capazes de um sentido
mais alto. Esse foi um momento decisivo em sua
vida, (...) pois até sua morte esteve persuadido da
realidade desse sentido espiritual. Tratava-se de
uma crença bem fundada, mais que de uma verdade
demonstrada. Agostinho podia apelar ao exemplo do
próprio Senhor e dos apóstolos Pedro e Paulo, que
citaram textos do Antigo Testamento para confir­
mação do Novo (...). Também podia referir-se a uma
tradição já então secular da liturgia, da catequese
e da teologia”.
Os mestres da espiritualidade cristã, especial­
mente os Padres, podem e devem iniciar-nos nesta
leitura espiritual da Bíblia. Mas todos os livros do
mundo serão incapazes de formar-nos nesta sabo­
rosa ciência, se não apresentarmos, de nossa parte,
uma total generosidade. Cassiano o enfatiza com
grande energia. Se não nos entregamos de corpo e
alma à Palavra de Deus, esta nunca se entregará
plenamente a nós. A Sagrada Escritura tem uma
graça especial: suas palavras, além de seu sentido
literal, possuem uma profunda ressonância espiri­
tual, que o homem só pode descobrir por uma certa
conaturalidade. O homem, quanto mais tiver pro­
gredido no trabalho de purificar-se de seus vícios e
pecados e na aquisição das virtudes cristãs, tanto
mais perceberá esse sentido profundo e escondido.
Somente o homem espiritual pode saborear o sen­
tido espiritual.
São Gregório Magno observa por sua vez que,
se a Bíblia é em parte fácil, em parte difícil, isso se
58
deve a que tenha sido escrita para todos, tanto para
os fortes como para os fracos: exercita os primeiros
por suas dificuldades e se mostra indulgente com
os segundos graças à sua simplicidade. Coloca-se
ao alcance de cada leitor. “Se buscas nas palavras
de Deus algo elevado, estas palavras santas se
elevam contigo e sobem contigo às alturas”. Como
o maná no deserto, a Escritura se adapta ao gosto
de cada um, convém a todos, e, permanecendo fiel
a si mesma, condescende com as possibilidades dos
que a utilizam.

Leitura ativa e passiva


Ler é uma atividade. Ortega y Gasset advertia:
“Não se esqueça de que a leitura é sempre uma co­
laboração”. E Péguy: a verdadeira leitura é “o ato
comum, a operação comum, do que lê e do que é lido”.
A lectio divina é isto em sumo grau: o ato comum, a
assimilação mútua — a Palavra de Deus está viva
—, a aventura de um homem aprisionado na rede
da Palavra e o curso imprevisível da Palavra na
existência de um homem.
Não se trata, na “leitura divina”, de sairmos
de nossa própria existência, nem sequer por um
momento fugaz; a “leitura de Deus” não é uma
fuga, por sublime que pareça. Trata-se de assimilar
a Palavra e, ao mesmo tempo, de nos integrarmos
na Palavra, deixar-nos assimilar por ela. Trata-se
de defrontarmos não apenas com uma mensagem
de Deus, uma doutrina, mas com a própria voz de
Deus. Trata-se de refazer pessoalmente, de reviver a
experiência do compromisso de Deus com o homem
em uma história que culmina com a Encarnação
59
da Palavra e que deixou sua marca escrita, porém
viva, na Escritura.
Uma das razões do interesse primordial e quase
exclusivo que sentiam os monges antigos pela Escri­
tura se encontra precisamente na convicção de que
existe um laço muito estreito entre a vida monástica
e a Palavra de Deus. Estavam persuadidos particu­
larmente de que há uma profunda unidade entre as
fases sucessivas da História da Salvação: tanto no
Antigo Testamento como no Novo e na vida da Igreja
através dos séculos, trata-se da mesma história da
Salvação, cujo ponto culminante se encontra no mis­
tério pascal, do qual todo cristão, todo monge deve
participar, revivendo-o, renovando-o em si mesmo.
Ora, isso não se pode verificar se cada um não se
apropria dos mistérios de que falam as Escrituras
que contam tais histórias. De certo modo pode-se
dizer que o mesmo Espírito de Deus que inspirou
os autores dos livros sagrados continua agindo nos
que os lêem e procuram experimentar a realidade
do que a Bíblia nos fala.
Em outras palavras, a “leitura divina” é uma
leitura ativa enquanto quem a pratica deve tentar
de verdade adaptar-se ao que diz a Escritura. Não
basta, com efeito, atentar à letra e à interpretação
espiritual, e assim descobrir o que realmente acon­
teceu na “história da salvação”; deve-se reviver,
por assim dizer, as aventuras do povo de Deus no
deserto, o Evangelho, a vida dos apóstolos com nosso
Senhor, a dos primeiros cristãos, as experiências
religiosas dos personagens de que fala a Escritura.
Tais experiências são muito variadas e respondem
às necessidades de todos, seja qual for sua idade, e
em todas as circunstâncias e situações espirituais.
Em suma, a “história da salvação” não é um drama
60
que o leitor da Bíblia contempla de fora, como sim­
ples espectador, mas uma ação da qual participa
intensamente, experimentando os estados interiores
dos santos do Antigo e do Novo Testamento, reprodu­
zindo suas virtudes, evitando seus vícios, imitando
sua penitência... Isso, evidentemente, requer uma
grande atividade.
A Bíblia não costuma propor-nos teorias, mas
fatos, exemplos concretos e pessoais, experiências.
De tudo isso devemos apropriar-nos e fazê-lo pene­
trar em nossa própria vida. Sobretudo, evidentemen­
te, quando se trata do Evangelho. Ler ativamente as
palavras e os feitos do Senhor equivale a colocar em
prática a exortação de São Paulo: “Tende em vós o
mesmo sentimento de Cristo Jesus” (FL 2,5). “Sentir
com Cristo”. Transformar-se de algum modo em
Cristo. Realizar de verdade o que significa o nome
de cristão. Ler desse modo, com toda a alma, com
todo o coração, colocando em cada leitura nossa per­
sonalidade inteira, é o que poderiamos chamar uma
“leitura integral”. Uma leitura que penetra em toda
a nossa vida e põe em movimento todo o nosso ser:
imaginação, inteligência, afeti-vidade. Uma leitura
realmente vivida e vivificante.
Mas, ainda que eminentemente ativa, a lectio
divina pode chamar-se ao mesmo tempo passiva,
enquanto consiste também em deixar ressoar em
nós a voz de Deus que nos fala, em deixar que sua
Palavra nos transforme, em abandonar-nos a Deus.
O Pe. Besnard tem uma página muito profunda
sobre “como se deve responder” a Deus. Para quem
superou uma prova que o levou aos limites do
desespero — diz —, “pôr em prática a Palavra” já
não significaria “a conformação voluntária de uma
conduta a uma regra, com recurso ao esforço moral
61
e à sutil vaidade que acompanha o domínio do ego
sobre os próprios atos”; “pôr em prática a Palavra
significará deixar-se transformar por ela (...), deixar-
-se conduzir por ela até o homem novo, criado por
Deus desde antes da criação do mundo, mas em vista
da ressurreição de Jesus segundo a santidade da
verdade (...). Significará também deixar à Palavra
a possibilidade de nos comunicar todas as energias
contidas no Evangelho que ela anuncia”. Significa­
rá “dar tempo a Deus para dizer-nos que somente
ele nos cria, nos salva, nos aperfeiçoa, nos ama, e
quando nos tiver dito, dar-lhe por fim a oportunidade
de realizar o que disse. Pois é tudo quanto espera
de nós”!

Leitura privada e eclesial


A “leitura de Deus”, como toda oração, consti­
tui a atividade mais pessoal e privada do homem.
Não existem duas maneiras de orar exatamente
idênticas, porque não há duas pessoas inteiramente
iguais. Deus não nos criou em série, nem nos salva
e santifica em série. O amor que professa a cada
umas das pessoas é estritamente pessoal, e o amor
que as pessoas lhe professam tem exatamente o
mesmo caráter pessoal e particular.
Deus me fala a mim, pessoalmente, aqui e
agora, quando leio com fé e amor sua Escritura.
Mas eu, quando leio, assim como quando oro — e a
lectio divina é uma combinação de leitura e oração
—, sou, continuo sendo, talvez mais do que nunca,
um membro vivo do Corpo vivo de Cristo que é a
Igreja. Quando leio, como quando oro, é a Igreja
mesma quem lê, quem busca e descobre um pouco
62
mais aquele que é sua Cabeça e seu Esposo, através
de seu humilde membro que sou eu.
Daí se segue, sem a menor dúvida, que todo
cristão deve ler a Escritura, não somente com “olhos
de esposa”, como o fazia Cecília Bruyère, isto é, com
amor, com ternura, mas com os olhos da Esposa, com
os olhos da Igreja, da qual é membro vivo. Assim,
o que se costuma chamar de “livre exame” não tem
cabimento na lectio divina. Interpretar a Escritura
ao nosso modo, sem ter em conta a tradição da Igre­
ja, e, sobretudo, em oposição a ela, é uma aberração
intolerável, implica uma auto-suficiência que nos
levaria irremediavelmente ao erro. É preciso que
a lectio divina de cada um dos cristãos seja uma
“leitura autêntica”, isto é, uma leitura respaldada
e garantida pela autoridade de Deus na Igreja. A
Bíblia, com efeito, não pode ser interpretada com
segurança sem a intervenção da Igreja. Nós possu­
ímos a garantia de poder captar sempre a Palavra
de Deus, tanto em sua expressão autêntica como
em seu verdadeiro sentido, somente pela promessa
feita à Igreja de uma assistência permanente do
mesmo Espírito Santo que inspirou a Escritura.
Todavia, se essa assistência do Espírito à Igreja
não nos dispensa de recorrer ao texto sagrado que
ela permite ler sempre em seu verdadeiro sentido,
menos ainda pode dispensar de recorrer a todos os
testemunhos da verdade da Palavra de Deus no
corpo místico de Cristo, que constitui a Tradição.
Ademais, como diz muito bem o Pe. Louis Bouyer,
“mais que imaginar a Escritura e a Tradição como
duas fontes complementares da verdade, ainda que
independentes, convém entender que a Escritura
constitui como que o núcleo da Tradição, da qual
não se pode separar para compreendê-la, enquanto
63
a mesma Tradição não se pode organizar senão em
torno da Escritura”.
Paul Evdokimov tem sobre esse tema frases
de um vigor e de uma convicção impressionantes. A
Bíblia, diz ele, “nunca pode ser separada da Igreja
sem que se corra o risco de deformá-la”. O Senhor
abriu aos discípulos de Emaús o sentido das Escri­
turas (cf. Lc 24, 32), revelando assim que “a Bíblia
é o ícone verbal de Cristo”. Deus quis que Cristo
tomasse “o corpo no qual suas palavras ressoassem
autenticamente como palavras de vida. Deve-se,
pois, ler a Bíblia e escutar a Deus em Cristo, a
partir do interior do seu Corpo, na Igreja. A partir
do momento em que um fiel abre a Bíblia, acontece
o milagre: um documento histórico aparece como
Livro Santo completamente pleno de presença. O
grau de minha receptividade está em função do
meu lugar ontológico no Corpo, de minha vida na
Igreja”. De fato, em última análise, “é a Igreja quem
lê a Bíblia, a partir do momento em que se abrem
suas páginas. Mesmo a sós, a Bíblia se lê comuni-
tariamente, liturgicamente. Deus o quis assim. O
verdadeiro sujeito do conhecimento e da comunhão
não é o homem isolado, desgarrado do Corpo, mas
o homem enquanto membro, o homem litúrgico”.
A leitura dos Santos Padres, e muito particu­
larmente a participação no culto da Igreja, constitui
uma valiosa ajuda neste ponto. Sobre os antigos
monges, escreve Gregório Penco: a lectio divina
encontrava seu pleno desenvolvimento na oração
litúrgica, de modo que o monge lia a Bíblia com os
olhos da liturgia. Ora, ler a Escritura com os olhos
da liturgia equivale, sem dúvida alguma, a lê-la com
os olhos da Igreja.
64
Capítulo VII
Uma tarefa árdua e penosa

Leitura atenta
A Bíblia é “o livro dos que buscam a Deus”; a
“leitura divina”, uma tarefa própria dos que buscam
a Deus. Ora, buscar supõe sempre algum esforço.
Ainda que repousada e aprazível, a lectio divina
requer freqüentemente uma notável, uma perse­
verante dedicação.
Há que descartar de uma vez por todas a
idéia de que a lectio consiste ou pode consistir em
uma espécie de “passatempo espiritual”, uma leve
recrea-ção piedosa. Tal maneira de pensar revela
completo desconhecimento dos ensinamentos da
Tradição. Para os Padres e legisladores monásticos,
com efeito, a “leitura divina” era uma tarefa muito
séria, muito grave, muito árdua. Parece significativo
que a “leitura divina” ocupe lugar semelhante ao
do trabalho físico nas regras monásticas. Fora do
tempo reservado ao Ofício Divino, “devem ocupar-se
os irmãos em algumas horas no trabalho manual,
e outras na leitura divina”, diz, por exemplo, São
Bento (RB 48,1). A lectio,fundamentalmente, repre­
senta o exercício do “homem interior”, um exercício
que requer, sem nenhuma desculpa, a total aten­
ção, a enérgica aplicação das potências da alma: a
memória, o entendimento, a afetividade. Implica a
lectio uma grande firmeza de ânimo para perscru­
tar, captar e compreender, na mais plena acepção
do termo, a Palavra de Deus. Há que aplicar-se a
isso — proséchein, como escreve insistentemente
Orígenes — com perseverante esforço.
Ora, o cansaço, o sono, a apatia, o tédio, a pre­
guiça são realidades demasiado humanas para que
não afetem, ao menos de vez em quando, o leitor
da Escritura. Na coleção latina dos Apoftagemas dos
Padres nos é dito: “Os profetas escreveram livros,
nossos pais os puseram em prática, seus sucessores
os aprenderam de memória, e a presente geração os
transcreve em pergaminhos e os deixa dormir nas
bibliotecas”. Este apoftegma reflete — exagerando
um pouco, evidentemente — uma falta de interesse
coletiva. Muito mais freqüentemente, sem dúvida, o
indivíduo está pouco disposto a ler, sobretudo com
toda a atenção e a total dedicação próprias da lectio
divina. Cassiano nos pinta uma pequena cena que
devia repetir-se com certa freqüência na prosaica
realidade cotidiana do deserto, quando escreve:
“Talvez eu deseje dar firmeza ao meu coração, for-
çando-me a ler a Escritura; mas uma dor de cabeça
me impede, e até às nove da manhã dormi com a
cabeça sobre o livro” (Col. 10, 10). Outras vezes a
alma se sente como que submergida no letal torpor
da acédia, e a leitura causa aversão e desagrado
(Col. 4, 2). Perseverar nela, custe o que custar,
supõe uma vontade quase heróica. Na sentença
da Regra de São Bento: “Lectiones sanctas libenter
audire” (RB 4, 55), o advérbio libenter (com gosto)
se refere à repugnância que certos espíritos sentiam
pela leitura. São Bento censura severamente tais
negligências (RB 48,17, 20).
66
A essas dificuldades de tipo bem mais subjetivo
se acrescentam outras de caráter objetivo, deriva­
das da natureza mesma da Escritura. Porque, não
nos enganemos, a leitura da Bíblia é uma leitura
austera em muitíssimas de suas páginas. Por várias
razões. Uma delas são suas obscuridades, as difi­
culdades de interpretá-las corretamente. Mesmo o
Evangelho as apresenta. O beneditino Alonso Ruiz
de Virués não faz mais que resumir a doutrina de
Cassiano e de uma longa tradição, quando escreve:
Cristo “fechou e obscureceu com palavras místicas”
os mistérios do Evangelho, “de tal maneira que, tra­
zidos entre as mãos, não podem ser vistos senão por
aqueles quibus Ipse tradiderit elavem sem
a qual todos os silogismos e formalidades aprendi­
dos nas escolas servem muito pouco”.
A leitura da Bíblia é austera porque, como
diz a própria Escritura, “a Palavra de Deus é viva,
eficaz e mais penetrante que qualquer espada de
dois gumes; penetra até dividir alma e espírito,
junturas e medulas. Ela julga as disposições e as
intenções do coração” (Hb 4,12). Viva como Deus,
tem a atividade que é o poder de Deus atuante:
penetra até o mais recôndito, o mais íntimo do
ser, onde o espírito sobrenatural se encontra com
nosso princípio vital. E aí, no interior do homem,
possui uma capacidade de julgar e sentenciar,
porque obriga o homem a tomar posição; diante
dessa palavra não é possível o compromisso nem a
dissimulação. Porque o juiz está no interior. A lectio
divina, como diz A.-M. Besnard, é “uma aventura
perigosa”. Com freqüência pode converter-se 9 em
combate corpo a corpo com Deus, pois Deus nos
9“Que trazem em si a chave da ciência”. (N. do T.)

67
assalta quando menos o esperamos. Encontrar-se
com Deus é freqüentemente doloroso.
Mas tudo isso pertence à natureza mesma da
“leitura de Deus”. Nela se busca a Deus, e a pessoa
o busca, evidentemente, para encontrá-lo. Algumas
vezes nos consolará, outras nos julgará, outras —
com freqüência — nos pedirá isto ou aquilo. Precisa­
mente porque “a Palavra de Deus pode exigir de mim
hoje uma coisa que não exigiu ontem” — escreve
H. U. von Balthasar —, “devo permanecer aberto e
atento para escutar o que exige”.

Leitura assídua
Uma última qualidade importante da lectio
divina deve ser assinalada: seu caráter de leitura
assídua, de releitura constante, que não conhece fim.
Ao esforço da atenção mantida deve somar-se o da
perseverança a todo custo. São Serafim de Sarov lia
a cada semana todo o Novo Testamento. De Nepo-
ciano escreve São Jerônimo: “Pela assídua leitura
e meditação prolongada, havia feito de seu peito
uma biblioteca de Cristo” (Ep. 60, 10). Os modelos
insignes de perseverança na lectio são numerosos,
e alguns, cativantes.
Dimitri Marejkovsky diz do Evangelho: “Livro
singular. Nunca é lido por inteiro. Agrada lê-lo, parece
que sempre fica por terminar, que se omitiu algo, que
ficou algo incompreendido. Volta-se a ler, e se sente a
mesma impressão. E assim cada vez. Como o céu à noi­
te. À medida que a pessoa o contempla, se descobrem
novas estrelas”. O mesmo se podería dizer dos demais
livros que compõem a divina Biblioteca. À medida que
os vamos lendo e voltando a ler, descobrimos “novas
68
estrelas”, se nos abre um pouco mais o maravilhoso, o
estupendo horizonte do universo da Bíblia.
Diz a Regula Ferioli: “In manibus monachi
frequens sit lectio”10. Toda a tradição monástica
recomenda o mesmo: o livro deve estar quase con­
tinuamente nas mãos do monge. A assiduidade na
“leitura divina” encontrou em S. Gregório Magno um
advogado incansável. Gregório havia experimentado
as profundezas da Bíblia, tão insondáveis como as
de Deus. Ele observa: “Ninguém se aprofundou tanto
em seu conhecimento que não possa avançar ainda
mais, porque todo progresso humano permanece
abaixo da altura da divindade que inspirou a Escri­
tura”. Esta, “por muito que seja explicada, continua
tendo segredos”, pois “está composta de tal maneira
que continua ignorada ainda quando conhecida, é
lida com maior agrado se é estudada a cada dia, e,
podendo-se descobrir sempre algo novo nela, possui
a arte de enlevar” (In Reg., proêm. 3). Em outro
lugar escreve: quanto mais se lê a Bíblia, mais se
quer ler; acessível aos leitores sem cultura, é sempre
nova para o sábio Mor.20, 1, 1). Ao freqüentar a
Escritura, vai-se descobrindo progressivamente, e
esse descobrimento não acaba nunca. Na realidade,
valeria pouco se fosse de fácil acesso. “Quando a
inteligência encontra o sentido de cer-tos lugares
obscuros, tanto mais se sente reconfortada quanto
mais se tenha esforçado em sua busca” (Hom. in
Ez. 1, 6, 1). O esforço necessário torna fecunda a
leitura. “Suas passagens obscuras querem despertar
nossa inteligência para que estejamos atentos à sua
profundidade, mesmo naquelas passagens aparen­
temente simples e claras” (Mor.18,1).
10“Nas mãos do monge seja freqüente a leitura”. (N. do T.)

69
Da lectio divina não se pode descuidar, não se
admitem férias. Assim como Rebeca — diz Orígenes
—, é preciso voltar todos os dias ao poço das Escritu­
ras. Se às vezes deixamos de fazer delas o objeto de
nossa lectio, e lemos outros autores, é a fim de que
nos ajudem a aproveitarmos melhor a Palavra de
Deus contida na Bíblia. Mas, em seguida, é preciso
regressar às Escrituras, ou melhor, devem-se reali­
zar ambas as leituras simultaneamente.
A Bíblia, ademais, deve ser lida por inteiro.
Todos os seus livros, mesmo os que parecem menos
úteis — se não de todo inúteis — para a vida espi­
ritual, contêm a Palavra de Deus. Essa é a razão
principal. Mas há também um motivo de ordem
psicológica: a amplitude e a diversidade dos livros
sagrados contêm um elemento de variedade nada
desprezível. Somos humanos, e, conseqüentemente,
limitados e inconstantes. Tudo, inclusive as coisas
mais santas e sublimes, se nos converte em rotina,
até chegar a causar-nos fastio. Nosso espírito se
acostuma tanto a tudo, que pode chegar a sentir-se
indiferente ante as páginas do Saltério ou do próprio
Evangelho. Pode-se dizer que Deus leva isso em con­
ta, e quis ajudar-nos oferecendo-nos uma Biblioteca
extremamente rica. Com efeito, quanta variedade
na Escritura, especialmente no Antigo Testamento!
Quantas riquezas para quem saiba encontrá-las,
ou melhor, para aquele a quem o Espírito Santo
concede descobri-las! Tanto pelo número, extensão e
diversidade de caráter dos escritos que o integram,
como pela profundidade das idéias que contém, se
iluminadas com a luz de Cristo, o Antigo Testamento
é realmente inesgotável. Assim, nosso esforço por
perseverar na “leitura de Deus” será apoiado pela
maravilhosa variedade dos livros sagrados.
70
Em suma, como escreve J.-M. Delvaux, na lec­
tio divina não se trata de se dedicar ao estudo de
textos, por veneráveis que sejam, mas de conhecer
e amar a Deus, pois amamos na medida em que co­
nhecemos. “Um coração que ama não pode deixar de
esforçar-se por conhecer melhor aquele a quem ama,
por descobrir cada vez mais seu verdadeiro rosto”.
Essa é talvez a principal razão para a assiduidade
na “leitura de Deus”.

71
Capítulo VIII
Requisitos e disposições

Um ambiente favorável
O congresso dos abades beneditinos de 1967
pensava que a lectio divina “exige uma formação
idônea” e “a criação de um ambiente favorável”. Da
“formação idônea” nos ocuparemos mais adiante.
Tentaremos aqui determinar qual deve ser o “am­
biente favorável”. Infelizmente, os abades reunidos
em congresso não o fizeram.
Penso que este clima propício à lectio deveria
ser integrado de paz — exterior e interior, mas
sobretudo interior —, de distensão, de caridade
fraterna — sem caridade não há verdadeira paz
—, de silêncio, de tempo livre. Sobre o silêncio tão
necessário para escutar, observa Dietrich Bonhõffer:
“Ficamos calados antes de escutar, porque nossos
pensamentos já estão dirigidos para a mensagem,
como um menino se cala no momento de entrar no
quarto de seu pai. Calamos depois de ter escutado
a Palavra de Deus, porque ela ressoa, vive e quer
habitar em nós”. Paz, caridade, silêncio, tempo livre:
é o ambiente que, supostamente, reina nos mostei­
ros; é o otium monástico, em que tanto insistiram
os autores medievais; é o vacare Deo, isto é, estar
disponível para dedicar-se a Deus. Sem que isso,
72
evidentemente, implique nenhum desinteresse,
nenhuma ruptura com todos e cada um de nossos ir­
mãos. Porque, quando me dedico a Deus, quando abro
a Bíblia e encontro a Deus, estou em comunicação com
todos os meus irmãos. É a esposa Igreja, que, através
do um de seus membros, busca e encontra o Esposo.

Pureza de coração
Mas, é claro, não basta um ambiente propício,
não basta uma preparação, uma formação idônea de
tipo intelectual. Cassiano, grande mestre de mon­
ges, não se cansa de repetir que a ciência humana,
o estudo dos comentaristas da Bíblia, de pouco ou
nada serve para alcançar a “inteligência espiritual”
da Escritura, que alimenta o “homem interior”, isto
é, a vida de união com Deus. É certo que, segundo
ele, deve-se ler assiduamente a Bíblia; é certo que
devemos esforçar-nos por aprendê-la de cor, a fim de
repassar em seguida as passagens aprendidas em
silêncio, sobretudo durante a noite, pois às vezes
“penetramos em seus sentidos mais ocultos” inclu­
sive durante o sono. Mas o que se necessita antes
de tudo e sobretudo é a “pureza de coração”.
Diz Cassiano pela boca do abade Nesteros nas
famosas Colações (14,9): “Se desejais chegar à luz da
ciência espiritual (...) inflamai-vos antes de tudo no
desejo da bem-aventurança, da qual se disse: ‘Bem-
-aventurados os puros de coração, porque verão a
Deus’ ” (Mt 5,8). Somente depois de extirpar os vícios
e adquirir a humildade, será possível “penetrar até
o coração das palavras celestes e contemplar com o
olhar puro da alma os mistérios mais profundos e
escondidos”. E acrescenta uma vez mais Cassiano:
73
“Isso não é dado pela ciência humana, nem pela
cultura dos homens, mas somente pela pureza
da alma, iluminada pela luz do Espírito Santo”.
Desse modo, à medida que vamos progredindo na
purificação interior e na leitura humilde e assídua,
nosso espírito vai se renovando e “nos parecerá que
a Sagrada Escritura começa a mudar para nós. Ela
nos comunica uma compreensão mais profunda e
misteriosa, cuja beleza vai aumentando na razão
direta de nosso progresso. Porque o texto inspirado
se acomoda efetivamente à capacidade receptiva da
inteligência humana”. Por isso, “aos homens carnais
a Escritura parece coisa terrena; aos espirituais,
coisa celestial e divina. E aqueles que a viam antes
como envolta em espessas trevas, são agora capazes
de sondar sua profundidade ou sustentar seu fulgor
com o olhar” (Col. 14,11).
Os biógrafos dos santos observaram às vezes
essa correspondência entre o progresso na purifica­
ção interior e a melhor compreensão da Palavra de
Deus contida nos livros sagrados. Assim, para citar
apenas um exemplo, lemos na vida de São Dositeu
que “começou, graças à sua pureza, a entender cer­
tas passagens da Escritura”. Segundo a expressão
de Paul Evdokimov, a “encarnação” da Escritura
“pressupõe a reação do meio receptivo, uma compe­
netração”, uma pericorésis, segundo o exemplo das
duas naturezas de Cristo.

Desprendimento e docilidade
Outras disposições fundamentais para nos
aproximarmos de Deus que nos espera na Escritura
são a simplicidade, o desprendimento, a docilida-de,
74
a entrega. O cardeal Eduardo Pironio escreve: “A
Palavra de Deus é simples. É preciso penetrá-la com
alma de pobre e coração contemplativo. Somente
assim nasce em nós ‘o gosto da Sabedoria’, e age a
‘potência do Espírito’ que nos torna livres (cf. 2Cor
3,17). Assim sucedeu a Maria, a Virgem pobre e
contemplativa, que recebeu em silêncio a Palavra, a
realizou na obediência da fé (cf. Lc 11,27) e a revestiu
com a simplicidade de sua carne”. Infelizmente, “nós
às vezes complicamos o Evangelho, e assim já não
entendemos a clareza e a força de suas exigências.
Possivelmente olhamos o Evangelho demasiada­
mente a partir de nós mesmos”. Mas “a Palavra de
Deus transcende nossa realidade, e é preciso entrar
nela a partir da profundidade do Espírito que ‘son­
da todas as coisas, até mesmo as profundidades de
Deus’ ” (1Cor 2,10).
O desprendimento deve libertar-nos, como diz
A. Southey, do “desejo ansioso de resultados”. Pois
não se deve ir em busca de sentimentos, de “expe-
-riências”, de idéias bonitas para comunicar aos
demais... A lectio é um esforço de longa duração,
que leva a um aprofundamento incessante, mas
normalmente imperceptível, de nossa intimidade
com Deus.
No já citado simpósio cisterciense sobre a lectio
divina, notou-se com que insistência costumamos
recorrer à Bíblia para ver o que podemos tirar dela,
não para ver o que pode ela tirar de nós... Isso,
naturalmente, é da maior importância. Para que
a “leitura de Deus” seja autêntica, é preciso apro-
ximar-se dela com espírito de entrega, de perfeita
disponibilidade ao que o Senhor irá pedir-nos. “A
lectio é uma verdadeira ascese. Não permanece em
nível teórico, mas, como a própria Palavra de Deus,
é uma espada de dois gumes, que chega às profun­
dezas mais íntimas e requer uma resposta pessoal”.
Segundo São Gregório Magno — um dos mais
exímios mestres da “leitura do Deus” —, saber ler
a Escritura pode converter-se em uma definição
de cristão, na medida em que essa leitura seja
existencial, e não apenas um exercício superficial
da inteligência. “Como estão os bons servos sempre
atentos aos olhos de seus senhores para executar
sem demora o que ordenam, assim também os
espíritos dos justos permanecem atentos à pre­
sença de Deus todo-poderoso, fixando os olhos na
Escritura, como se fosse sua boca. Porque, como na
Escritura Deus expressa sua vontade, quanto mais
a conhecem através de sua Palavra, tanto menos
se afastam dela. Não ressoa em seus ouvidos sem
deixar marca, mas fica gravada em seus corações”
(Mor. 16, 35, 43). Essa disposição fundamental
de esquadrinhar as Escrituras para cumprir a
vontade do Senhor que nelas se manifesta, essa
atitude generosa do coração abre aos simples e
menos preparados o sentido dos preceitos divinos,
que ignorem por negligência espíritos dotados. “O
olho do amor ilumina as trevas de sua rudeza (...).
Chegam assim aos cumes do entendimento, porque
não deixam de cumprir o que compreenderam, até
as menores coisas” (Mor. 6,10,12).
Um dos segredos da santidade de Irmã Teresa
do Menino Jesus — talvez o principal — era sua
plena aceitação da Palavra de Deus para realizá-la
e vivê-la. Jamais tentou acomodá-la a seu caminho,
mas acomodou seu caminho à Palavra de Deus, de
modo total e absoluto. Iñaki Aranguren assegura
que: conhece um monge que nas horas noturnas
depois das vigílias, quando abre sua Bíblia, “o livro
76
mais pessoal do monge”, de joelhos evoca o texto de
Isaías 50,4-5: O Senhor “cada manhã me aviva o
ouvido para que escute como os iniciados. O Senhor
me abriu o ouvido: eu não resisti nem me retirei”.
De outro monge nos conta que sobre a capa de sua
Bíblia tinha escrito estas palavras do Apocalipse:
“Tomei o livro das mãos do anjo, e o comi, e era doce
como o mel em minha boca, mas amargo em minhas
entranhas”. Esse religioso costuma ainda dizer que
a lectio divina não é autêntica se a “Palavra de Deus
não te vira do avesso”. Quem não está disposto a
que a Palavra de Deus o vire do avesso não abra a
Escritura: perdería seu tempo.
São Bento nos dá uma excelente norma ao
falar da oração: temos de aproximar-nos de Deus
“ cum omni humilitate et puritatis devotione” (RB
20,2), isto é, com toda humildade e pura devoção,
no sentido próprio da palavra devotio, que é o de
“entrega”. O mesmo vale para a lectio divina, que
é aproximar-se de Deus e é colóquio com Deus,
como a oração. A lectio exige entrega, a entrega
sincera — puritatis devotio — de quem a pratica.
“Supõe que o leitor se abandona a Deus, que lhe
está falando e que lhe concede uma mudança do
coração”, segundo a bela expressão, já citada, dos
padres da Companhia de Jesus reunidos em sua
31a Congregação Geral.

Espírito de oração
Já vimos que, segundo Paolo Giustiniani, “o
monge deve aproximar-se da Palavra, não para
entreter-se, não para estudar, mas como se subisse
ao altar de Deus, com grandes preparativos de alma
77
e de corpo”. Deus se nos oferece para que leiamos
em seu coração, nos chama à sua intimidade. Mas
esse contato com Deus não pode efetuar-se senão
em clima de fé viva, e, como escreve A. Southey,
“requer que nos preparemos com uma atitude de
desejo humilde, uma atitude de oração”.
Os Padres insistem neste princípio fundamen­
tal: compreender a Escritura é um dom de Deus. São
Gregório Magno, por exemplo, diz que “as palavras
de Deus não podem ser penetradas sem sua sabe­
doria, e quem não recebeu seu Espírito não pode de
modo algum entender suas palavras” (Mor. 18, 39,
60). Marcos Eremita ensina que “o Evangelho está
fechado para os esforços do homem; abri-lo é dom de
Cristo”. Por isso São João Crisóstomo orava ante a
Bíblia: “Senhor Jesus Cristo, abre os olhos do meu
coração, (...) ilumina meus olhos com tua luz (...), tu
somente, a única luz”. E Santo Efrém aconselhava:
“antes de toda leitura, reza e suplica a Deus para
que se revele a ti”. Se a “leitura divina” é um dom
da graça, devemos suplicar ao Senhor da graça para
que no-la conceda. Somente a oração humilde, sin­
cera, amorosa, pode conseguir que aquele que nos
deu as Escrituras nos abra seu sentido profundo.

78
Capítulo IX
Três exemplos

Antes de enumerar e descrever sumariamente


alguns dos frutos mais saborosos da “leitura de
Deus”, não será inútil recolher três exemplos de
como a praticavam nossos antepassados na fé,
pois “os exemplos arrastam”, exempla trahunt.
Dois desses exemplos correspondem a dois santos
surpreendidos enquanto faziam sua lectio — Santo
Am-brósio de Milão e São Domingos de Gusmão;
o terceiro nos é oferecido pelo prólogo da Regra de
São Bento.

Santo Ambrósio de Milão


O primeiro texto, referente a Santo Ambrósio,
encontra-se nas Confissões de Santo Agostinho (6,
3, 3). Quando Agostinho vivia em Milão, em meio
às lutas e trabalhos de sua conversão, interessou-se
vivamente pelo bispo Ambrósio, que brilhava por
sua eloqüência e santidade de vida. Nos parágrafos
que lhe dedica em sua obra, escreve: “Somente seu
celibato me parecia trabalhoso. Mas eu não podia
suspeitar, por não tê-lo experimentado nunca (...), os
saborosos deleites que degustava quando ruminava
teu pão”. Quando o deixavam livre, “que era muito
79
pouco tempo, dedicava-se a reparar as forças do cor­
po com o alimento necessário, ou as do espírito com
a leitura. Quando lia, fazia-o passando os olhos por
cima das páginas, enquanto seu coração penetrava
o sentido, sem dizer palavra nem mover a língua.
Muitas vezes, estando eu presente — pois a ninguém
se proibia entrar, nem havia costume de avisar-lhe
quem vinha —, eu o vi ler calado, e nunca de outro
modo; e depois de muito tempo sentado em silêncio
— por que quem se atreveria a perturbar um homem
tão absorto? —, ia-me embora, conjeturando que
naquele pouco tempo que se concedia para reparar
seu espírito, livre dos assuntos alheios, não queria
que o ocupassem com outras coisas”.
No texto citado se reflete tanto a maneira de
ler e a assiduidade à lectio de Santo Ambrósio, como
o conceito da própria “leitura divina” que tinha
Santo Agostinho. Este, com efeito, quando escre­
veu o referido parágrafo, já havia experimentado
durante longos anos o que realmente significava
a lectio divina. Ruminar o pão de Deus, degustar
os saborosos deleites que reparam as forças do
espírito, penetrar o sentido do texto com o coração,
são expressões muito significativas e tão claras que
dispensam qualquer comentário. Quanto a Santo
Ambrósio, ficamos sabendo que o dedicava à lectio
todo o tempo que lhe deixavam livre suas muitas
ocupações e o necessário cuidado da vida corporal,
e que, contrariamente ao costume de seu tempo, lia
em silêncio, provavelmente porque, como já vimos,
sua casa estava sempre aberta a todos, e as pessoas
entravam livremente nos aposentos onde o santo
costumava ler. Ambrósio, segundo Agostinho, culti­
vava diligentemente a “leitura de Deus”.
80
São Domingos de Gusmão
Muito mais pitoresca e completa é a descrição
da lectio divina de São Domingos de Gusmão, que
se conserva na curiosa obra intitulada As nove
maneiras de orar de São Domingos. A reserva de
Ambrósio, imposta pelo fato de ler diante de qual­
quer um que se apresentasse em sua casa, torna-se
espontaneidade e plena liberdade quando se trata
do fundador da Ordem dos Pregadores.
Escreve um autor anônimo: “Sossegadamente,
o Irmão Domingos se sentava, e depois de ter feito
o sinal da cruz, lia em algum livro aberto diante de
si. Sua alma experimentava então uma doce emoção,
como se tivesse escutado o próprio Senhor dirigir-
-lhe a palavra, segundo está escrito: ‘Eu escutarei
a palavra que o Senhor Deus dirá dentro do meu
coração’. E, como se estivesse conversando com um
amigo, parecia não poder conter suas palavras e pen­
samentos, ou então escutar com agrado, ou discutir,
ou lutar. Era visto a rir e a chorar sucessivamente,
olhar fixamente e baixar os olhos; e em seguida falar
em voz baixa consigo mesmo e bater no peito. Aos
olhos de algum curioso que secretamente o espias­
se, o santo pai Domingos aparecia tal como Moisés
quando, adiantando-se no deserto, chegou à monta­
nha de Deus, o Horeb, contemplou a sarça ardente,
falou ao Senhor e humilhou-se em sua presença.
Essa montanha de Deus não será acaso como que a
imagem profética do santo costume que tinha nosso
pai de ascender rapidamente da leitura à súplica,
da súplica à oração, da oração à contemplação? E
enquanto lia desse modo na solidão, venerava seu
livro e inclinando-se até ele o beijava com amor, so­
bretudo quando se tratava do livro dos Evangelhos
81
e ele havia lido as palavras que Jesus se dignava
pronunciar por sua boca”.
Como se terá observado, quase todas as carac­
terísticas que temos distinguido na lectio divina se
encontram na descrição anterior. São Domingos,
segundo esse texto, lia com fé, com atenção, com a
inteligência e o coração, ativamente. Seu contato
com Deus o enchia de emoção, era pessoal e íntimo.
Domingos, a cada vez que lia, orava. Entabulava-se
um verdadeiro diálogo entre o leitor e a Palavra de
Deus. Os monges, no século XIII, estavam esque­
cendo, ou talvez já tivessem esquecido, o sentido
e a prática da “leitura divina”; São Domingos de
Gusmão continuava fiel a ela.
O Pe. Lassus comentou maravilhosamente esse
texto. Domingos, diz ele, aparece como um discípulo.
Ele se faz menino, tem a docilidade de um aluno.
Porque quando Deus fala, o homem deve fazer-se
menino, não só para poder penetrar no Reino, mas
também para que o Reino penetre nele. Domingos
é um pobre, um mendigo, de modo algum envergo­
nhado de sua pequenez ou de sua indigência. Está
sentado, as mãos abertas, os olhos levantados, pura
capacidade de luz, pronto a entregar-se, a permane­
cer confiante frente ao terrível e fascinante mistério
de Deus, o mistério da Palavra de Deus, que não é
palavra humana — ainda que se sirva de palavras
e expressões humanas —, mas é imensidão, infini-
tude, simplicidade. Humilde, pobre, com a docilidade
de um menino pequeno, Domingos simplesmente
espera que se realize nele a bem-aventurança pro­
clamada pelo próprio Jesus ao dizer: “Eu te louvo,
ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste
essas coisas aos sábios e doutores e as revelaste aos
pequeninos” (Mt 11,25).
82
Domingos é também um “homem de desejo”.
Não se contenta com o exterior da Palavra de Deus.
Busca, pede, chama, ri e chora sucessivamente. É
insaciável. Busca, e, quando encontra, continua
buscando. O amor gera e aviva o desejo. Esse amor
o faz inclinar-se profundamente ante o Evangelho e
beijá-lo, porque no Evangelho está Cristo. Domingos
fala e discute com seu Deus. Domingos é o interlocu­
tor de Deus. Como Adão no Paraíso, com parrhesía.

O Prólogo da Regra de São Bento


O terceiro exemplo difere dos anteriores. Nes­
tes, dois autores nos disseram como Santo Ambrósio
e São Domingos se dedicavam à lectio divina. Agora
é um autor que nos confia, indiretamente, como a
praticava ele mesmo. Ou, se quisermos, somos nós
que adivinhamos, através de seu texto, sua maneira
de ler Deus.
Trata-se de um personagem que atribui a si
mesmo os nomes de pai e mestre; sem dúvida, um
abade. O “pai amoroso” dirige a seu eventual dis­
cípulo uma exortação comovedora. Suas palavras
transbordam ternura e sabedoria. Uma sabedoria
bebida nas Escrituras, fruto evidente de longa prá­
tica da “leitura divina”. Somente o contato ininter­
rupto com a Palavra de Deus pôde produzir páginas
tão estupendas.
O discurso tem como tema principal a vocação
monástica. Sua trama é feita de textos, palavras e
reminiscências da Bíblia. Deus fala, Deus chama;
Deus se dirige ao homem diretamente, pessoalmen­
te. O pai e mestre não apenas o crê com firmeza:
sabe disso por experiência. “Levantemo-nos de uma
83
vez” — escreve —, “que a Escritura nos desperta,
dizendo: ‘Já é hora de acordarmos do sono’ (Rm
13,11) . E, abrindo nossos olhos à luz de Deus, es­
cutemos atentos o que cada dia nos adverte a voz
divina que clama: ‘Se hoje escutais a sua voz, não
endureçais vossos corações’ (SI 94,8). E também:
‘Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às
Igrejas’ (Ap 2,7). E o que é que diz? “Vinde, filhos,
escutai-me, e os instruirei no temor do Senhor, (SL
33,12) . ‘Apressai-vos enquanto ainda tendes a luz da
vida, antes que vos surpreendam as trevas da morte’
” (Jo 12,35). Os textos bíblicos brotam, se juntam e
se entrelaçam, com toda a naturalidade. Vê-se que
o autor os meditou longamente, os revolveu em
seu coração, assimilando-os e convertendo-os na
substância de seu próprio ser. E “da abundância do
coração fala a boca”.
O Senhor — Jesus Cristo — busca “um ope­
rário entre a multidão a que lança seu apelo”. É
a vocação pessoal, que o autor descobre lendo o
Salmo 33. Cristo lhe fala de coração a coração. Após
o convite geral: “Vinde, filhos, escutai-me e os ins­
truirei no temor do Senhor” (v. 12), pergunta: “Há
alguém que queira viver e deseje dias prósperos?”
(v. 13). A isso ele responde: “Eu”. O diálogo está
estabelecido. Jesus, servindo-se do mesmo Salmo
33, aceita essa resposta a seu chamado e prossegue
dizendo: “Se queres gozar de uma vida verdadeira
e eterna, ‘guarda tua língua do mal; teus lábios,
da falsidade. Afasta-te do mal, faze o bem, busca a
paz e vá ao encontro dela’ ” (v. 14-15). Até aqui se
cita literalmente o Salmo. A continuação inspira-se
ainda nele (v. 16) e em Isaías (58,9; 65,24). O Senhor,
com efeito, prossegue dizendo: “Quando cumprirdes
tudo isso, terei meus olhos fixos sobre vós, meus
84
ouvidos escutarão vossas súplicas e antes que me
chameis vos direi eu: ‘Aqui estou’ O pai e mestre,
ao chegar a este ponto culminante, não consegue
conter sua emoção e prorrompe nestas palavras:
“Irmãos amadíssimos, pode haver algo mais doce
para nós que esta voz do Senhor, que nos convida?
Vede como o Senhor, em sua bondade, nos indica o
caminho da vida”.
O caminho da vida conduz ao Reino. Mas,
somos advertidos, “temos de saber que nunca po­
deremos chegar lá, se não formos correndo com as
boas obras”. Nosso pai e mestre não quer que nos
fiemos apenas em suas palavras: remete-nos a Jesus
Cristo. “Perguntemos ao Senhor”, diz. Ele mesmo o
fez, percorrendo com uma leitura pessoal o Salmo
14. Novamente estamos fazendo “leitura divina”. O
Salmo 14 põe em nossa boca, na boca de cada um de
nós, a pergunta: “Senhor, quem poderá habitar em
tua casa, e descansar em teu monte santo?” (v. 1).
“Escutemos, irmãos” — adverte o autor —, “o que
o Senhor responde a essa pergunta”. Jesus Cristo,
com efeito, responde, nos responde: “Aquele que
anda sem pecado e pratica a justiça. Que fala com
sinceridade em seu coração e não engana com sua
língua. O que não faz mal a seu próximo” (v. 2-3).
E prossegue o Senhor falando a seu discípulo com
frases tanto do Antigo como do Novo Testamento
— não importa, é sempre ele quem fala em ambos —
sobre tema tão transcendental. A conclusão é esta:
“Perguntamos ao Senhor, irmãos, quem é aquele que
poderá habitar em sua casa, e escutamos quais as
condições para isso”.
O prólogo da Regra de São Bento, como tantas
obras da Antiguidade e da Idade Média cristã, nos
revela o modo como nossos Pais na fé liam a Bíblia.
85
Capítulo X
Frutos

Já foi dito que a lectio é uma leitura desinteres­


sada. Lê-se por ler. Penetra-se na leitura como se
se entrasse na sala de audiências de Deus, de Jesus
Cristo. O que interessa é estar com Deus, com Jesus.
Escutar sua voz para responder-lhe, primeiro na pró­
pria lectio com palavras, e, depois, ao longo da vida,
com atos. Mas tudo isso não significa que o homem não
recolha outros frutos de seu diálogo com Deus, além da
grande honra de ter sido recebido em audiência.
Vários e muito saborosos são os frutos da lectio
divina. Segundo São Bento, ela nos conduz à per­
feição; segundo São Bernardo, nos infunde sabedo­
ria; segundo São Ferreol, gera o fervor espiritual; se­
gundo Bernardo Aygler, dissipa a cegueira da mente,
ilumina o entendimento, cura a fraqueza do espírito,
sacia a fome da alma, gera a compunção do coração.
Resumindo os frutos da “leitura de Deus” entre os
monges antigos, escreveu-se: “A lectio divina era o
paraíso do monge, o lugar de seus deleites espirituais.
Ela o consolava em sua provas, o purificava de suas
paixões, o mantinha fervoroso no serviço divino e lhe
proporcionava as lágrimas da compunção, a voz de
sua oração e o alimento de sua contemplação”. A lista,
sem dúvida alguma, poderia alongar-se facilmente.
É impossível tratar aqui de todos os frutos da lectio.
Vejamos, ao menos, alguns dos mais destacados.
86
Uma mentalidade bíblica
Pode-se dizer em primeiro lugar que o contato
pessoal, assíduo e profundo com a Palavra de Deus
gera no leitor o que se chama uma “mentalidade
bíblica”. As idéias, as expressões, as imagens da
Escritura se convertem cada vez mais em seu patri-
-mônio espiritual. Sua fé se nutre das verdades
da Bíblia, sua vida moral se ajusta aos preceitos,
diretrizes e modelos contidos na Bíblia. Suas idéias
e seu imaginário, tantas vezes inúteis e mesmo
perigosos, são substituídos com grande vantagem
pelas idéias e imagens da Bíblia, isto é, pelas idéias
e imagens de Deus, de Jesus, dos amigos de Deus. O
leitor se acostuma a pensar como que naturalmente
nas realidades da salvação, eleva-se com facilidade
até elas. Pensa e fala com a Bíblia e como a Bíblia.
Imitando a Cristo, encontra na Bíblia as armas com
que vencer a tentação. A Bíblia, em uma palavra,
chega a fazer parte integrante de sua personalida­
de, ou, melhor, esta acaba sendo transformada pela
leitura da Bíblia. Cassiano, entre muitos outros,
aconselha: “Uma vez afastada toda preocupação
e todo pensamento terreno, aplica-te com assidui­
dade e sem interrupção à leitura sagrada, até que
a incessante meditação impregne teu espírito, e,
por assim dizer, a Escritura te transforme à sua
semelhança” (Col. 14,10).

Uma total renovação


Na “leitura divina”, efetivamente, ocorre o que
diz Santo Irineu: Deus nos toma com suas as mãos,
a Palavra no exterior e o Espírito no interior. E nos
87
modifica radicalmente. Que a lectio representa na
vida espiritual um papel purificador, é uma afirma­
ção constante dos Padres e dos autores monásticos.
Que a Bíblia nos ajuda eficazmente a prosseguir
com esperança o combate espiritual, o próprio São
Paulo o afirma: “Ora, tudo o que se escreveu no
passado é para nosso ensinamento que foi escrito,
a fim de que, pela perseverança e pela consolação
que nos proporcionam as Escrituras, tenhamos
a esperança” (Rm 15,4). A esse respeito escrevia
São Basílio de Cesaréia: “Como tens o consolo
da Sagrada Escritura, não terás necessidade de
mim nem de ninguém para reconheceres o que é
certo, pois basta possuires o conselho do Espírito
Santo e sua direção para o bem” (Ep. 283). Ainda,
que a lectio constitui um precioso instrumento de
reforma, de renovação e de progresso espiritual, a
história o demonstra apoditicamente, em particu­
lar a história monástica. Na Regra de São Bento
toda referência à leitura costuma ser acompanhada
da idéia de edificação. A lectio, com efeito, edifica,
constitui a alma, no sentido forte do verbo latino.
Porque o homem é aquilo que ele lê. O “homem
novo”, que começamos a ser no batismo, chega as­
sim à sua maturidade. O monge fiel à prática da
lectio se converte em “homem de Deus”, servidor e
testemunha de sua Palavra; um “homem de Deus”
sensível à sua presença e às inspirações de sua von­
tade, “cheio de seu Espírito de sabedoria, solícito
ao santo louvor, disposto a servir a Deus em todas
as circunstâncias da vida de comunidade e a ser
testemunha do Senhor por meio de sua vida” (do
congresso dos abades beneditinos de 1967).
Todos os que, fascinados pela Palavra de
Deus, entram na escola dessa Palavra e nela per-
88
severam, realizam o famoso lema de Orígenes,
desenvolvido por São Bernardo e outros autores
espirituais: “conceber a Palavra no coração”. Diz
Orígenes: “Não poderás oferecer a Deus algo de
tua mente ou de tua palavra, se primeiro não ti-
-veres concebido em teu coração o que foi escrito”
(Hom. 13 in Ex., 3). Que quer ele dizer com isso?
Que para sermos interlocutores válidos de Deus
é necessário que a Escritura esteja enraizada em
nós, que se tenha convertido em nossa própria
substância, isto é, que Cristo, Palavra de Deus,
se tenha formado dentro de nós. Não é esse o
verdadeiro objetivo da “leitura divina” como aliás
de todo o conjunto de elementos que integram
a vida cristã? “Conceber a Palavra de Deus no
coração”! A Palavra salvadora, acolhida com as
devidas condições, forma Cristo em nós, nos faz
verdadeiramente cristãos.

Uma piedade objetiva


A lectio divina, ademais, confere à piedade um
caráter objetivo. Longe de baseá-la em imaginações
e sentimentalismos inconsistentes, a edifica sobre
fatos, modelos e mistérios reais, com que o cristão
procura identificar-se. Centra-a em Deus, ou, mais
exatamente, em Cristo e na Santíssima Trindade.
Iñaki Aranguren, com estilo incisivo, escreveu, sem
a lectio divina no sentido mais próprio da expressão
— leitura da Palavra de Deus contida na Escritu­
ra: “A oração contemplativa cairia no niilismo, no
mais febril subjetivismo ou no sentimentalismo
mais patológico”.
89 ! >
Uma vida de oração
A “leitura divina” favorece e vivifica a vida de
oração.
Os monges antigos a apreciavam, em primeiro
lugar como disciplina para concentrar seus pensa­
mentos, impedindo a “vagabundagem” do espírito,
para usar uma expressão de Evágrio Pôntico. Ade­
mais, proporciona a paz, a serenidade, a consolação,
sem as quais a vida de oração é instável.
A interpretação das coisas visíveis e invisíveis,
da vida e da história humana, “do ponto de vista
de Deus” que a leitura da Bíblia oferece; o conhe­
cimento do desígnio de Deus sobre a humanidade
e sobre cada um dos homens — desígnio que con­
siste no desejo de comunicar-se ao homem, unir-se
a ele, prolongar até ele a comunhão de vida que
constitui o mistério íntimo de Deus —, produz na
alma uma grande paz. O leitor devoto e assíduo
das Escrituras sabe, com certeza inabalável, que
alguém pensa nele, que alguém sai ao seu encon­
tro, que alguém está com ele. Sua alma se sente
fortalecida como na presença de um Amigo. Tudo
isso, é claro, fomenta uma vida de união consciente,
intensa, com Deus.

Uma experiência de Deus


Mais ainda: a lectio divina, praticada com fide­
lidade, produz a experiência de Deus.
“Experiência” é uma expressão utilizada abusi-
-vamente nos dias de hoje. Na realidade, não implica
em nada esotérico. Significa simplesmente a “graça
da oração íntima”, o affectus divinae gratiae de que
90
fala São Bento, o provar e saborear as realidades
divinas, como ensina constantemente a tradição
patrística. É um sentimento de estar unido a Deus
por meio de Cristo na oração.
A oração, a oração viva e verdadeira, que brota do
contato com a Palavra de Deus, é um de seus melhores
frutos. Ou melhor, faz parte da lectio. Como também
é elemento constitutivo dela a meditatio, com a qual
criamos em nosso espírito um espaço onde ressoe a
Palavra de Deus. L. Alonso Schöekel resume a tradi­
ção patrística e monástica quando escreve: “Que ao
ecoar essa Palavra, o espaço de nosso espírito se dilate
para dar lugar a uma ressonância maior. Nesse espaço
interior Deus está presente com sua palavra. Então
o nosso espírito toma outra palavra de Deus, para
responder-lhe, em forma de hino e oração, e outra vez
a deixa ressoar internamente, para que essa palavra,
agora nossa, chegue a Deus no espaço interior. Assim
continua o diálogo, a união com Deus, que é graça
e salvação, a união pessoal em uma palavra, que é
verdadeiramente divina e humana. Deus, falando em
nossa língua, de modo humano, nos procurou e nos
encontrou; e ao sermos encontrados por Deus, tam­
bém nós o encontramos, no mistério de sua Palavra”.

Uma grande felicidade


O mosteiro, escreve Thomas Merton, é uma
escola em que o monge aprende do próprio Deus
a ser feliz. É certo. E também é certo que a lectio
divina, observância monástica essencial, contribui
para isso de modo eminente, excepcional e único. O
Salmo 1,1-2 o diz claramente:
91
Feliz o homem
que não vai ao conselho dos ímpios,
não pára no caminho dos pecadores,
nem se assenta na roda dos zombadores.
Pelo contrário:
seu prazer está na lei de Iahweh,
e medita sua lei, dia e noite.
Não somente Deus nos diz na lectio como ser
felizes, mas a própria lectio é nossa felicidade. São
Jerônimo, mestre indiscutível em tudo o que se
refere à “leitura divina”, tem páginas belíssimas
sobre este tema. Conhecia por experiência as delí­
cias escondidas nas Escrituras para os que sabem
descobri-las. “Eu te pergunto, irmão caríssimo”,
escreve a São Paulino de Nola: “viver entre estas
coisas, meditá-las, nada saber, nada buscar fora
delas, não te parece que é ter já aqui na terra uma
morada do reino celeste”? E a Paula, sua fiel discípu­
la na vida ascética e na leitura da Bíblia: “Que mel,
que manjares podem ser mais doces que conhecer
a providência de Deus, penetrar seus segredos, exa­
minar o pensamento do Criador e ser instruído nas
palavras do Senhor, objeto de zombaria dos sábios
deste mundo, mas que estão cheias de sabedoria
espiritual? Que outros tenham suas riquezas em
outros lugares, bebam em copos engastados de pé­
rolas, brilhem com a seda, gozem de popularidade,
e, por causa da variedade de prazeres, não sejam
capazes de vencer sua opulência. Nossas delícias
sejam meditar a lei do Senhor dia e noite, chamar
à porta que não se abre, receber os pães da Trinda­
de, e, com o Senhor à frente, pisar as ondas deste
século” (Ep. 30,13).
Seria errôneo afirmar — paradoxalmente
— que o mais saboroso fruto da lectio divina é a
92
própria lectio divina? A leitura que busca dá ori­
gem à leitura que encontra; a leitura laboriosa,
trabalhosa, ascética, gera a leitura sossegada, doce,
con-templativa, mística.

93
Capítulo XI
Complementos

A “leitura divina” tem vários complementos,


mais ou menos interessantes. Fiquemos com três: a
meditatio, a collatio e a eructatio. Como são termos
técnicos, convém enunciá-los em latim.

Meditatio
O mais importante destes três elementos é,
sem dúvida alguma, a meditatio. Tão importante
que faz parte da própria lectio e freqüentemente se
identifica com ela.
Meditatio e meditari (ou meditare) não são
palavras fáceis de traduzir. Em primeiro lugar, não
significam “meditação” e “meditar”, tal como se en­
tende hoje, depois de uma longa evolução semântica.
Pouco a pouco, com efeito, conforme ia predomi­
nando o elemento racional em matéria de oração e
contemplação, o sentido da meditatio foi sofrendo
uma importante transformação, até converter-se
em uma reflexão sobre as verdades da fé. Mas, no
princípio e durante longos séculos, seu significado
era outro. Na realidade, tanto meditatio como me­
ditari ou meditare têm várias acepções e matizes.
Na antiguidade cristã e, sobretudo, monástica, o
94
termo melete (em grego) ou meditatio (em latim)
adquire essencialmente dois sentidos: primeiro,
aprender um texto de cor — às vezes os Evangelhos,
normalmente o Saltério, etc. — repetindo-o em voz
alta. Este era o único meio de “ler” a Bíblia dos
analfabetos, mas mesmo os que sabiam ler apren­
diam textos de cor para poder ruminá-los fora dos
horários de leitura. Segundo, recitar de cor, ou ler,
um texto determinado.
A meditatio ou melete não foi inventada pelos
monges, nem pelos cristãos. Tanto no mundo gentio
como entre os judeus já era praticada há muito. É sabido que algumas e
seus adeptos que aprendessem de cor certas sen­
tenças e se exercitassem em repeti-las em voz alta.
Os judeus, por sua parte, praticavam — e alguns
continuam praticando — a meditatio da Bíblia.
André Chouraqui nos fornece algumas informa­
ções muito interessantes sobre esse particular. Diz o
Salmo 1: “Feliz o homem que não vai ao conselho dos
ímpios (...), mas seu prazer está na lei de Iahweh, e
medita sua lei, dia e noite” (v. 1-2). O homem não se
enamora da lei, mas da torá, cujo primeiro sentido é
tudo o que emana de Deus, sua Palavra criadora e
tudo o que a expressa. Em primeiro lugar, os escritos
que a revelam. Esse desejo do homem — é melhor
traduzir “desejo” em vez de “gozo” — se manifesta
em uma atitude concreta: haga, verbo que se traduz
normalmente por “meditar”. De fato, seu primeiro
significado é “gemer”, “rugir”, “cochichar”, “falar”.
Expressa o rugido do leão, o arrulho da pomba, o ge­
mido do homem. Somente por derivação do sentido,
a palavra haga pode ser traduzida por “expressar”,
“monologar” ou, mais remotamente, por “meditar”,
“sonhar”, “imaginar”. Mas, já estamos afastados dos
95
primeiros significados, que são sempre concretos
e imediatos. A meditação não se faz em abstrato,
mas implica uma atitude: abrir a de Iahweh,
desejada porque amada, e sussurrar o texto dia e
noite. Não se trata de exageros orientais, mas de
murmurar a torá sem cessar, de verdade, mesmo
enquanto se dorme, se come e se viaja. Chouraqui
confessa tê-lo experimentado quando estava tra­
duzindo a Bíblia para o francês. “O desejo nascido
do amor provoca uma união essencial do amante
com o amado”. O versículo 2 do Salmo 1 sugere que
a torá de Iahweh se converte também na torá do
homem. “Há como que uma morte de si mesmo e
um renascer à luz do amor: o homem transformou-
-se ele mesmo em torá de Iahweh e não pode fazer
outra coisa senão recitá-la dia e noite. Não porque
se esforce para fazê-lo, mas gratuitamente, porque
se tornou assim sob o influxo do amor”.
As técnicas de instrução herdadas da Bíblia
“tendem a desposar o homem, indissoluvelmente,
com a torá de Iahweh”. Trata-se de apropriar-se dela,
de engoli-la. Isso se pode ver nas Yeshivot, escolas
teológicas de Jerusalém que perpetuam as tradições
herdadas da Bíblia. Mais do que um ambiente uni­
versitário, a Yeshivah se parece com “um campo de
batalha onde cada um, de dezesseis a dezoito horas
por dia, não apenas recita sua torá, mas a declama
em um alvoroço dificilmente concebível sem que
se o tenha visto. Nesse regime, o estudante chega
a conhecer muito rapidamente seus textos de cor.
Para ele, a torá de Iahweh se converteu em sua torá,
viva até à obsessão em seu espírito, constantemente
tensionado para a mesma direção”.
Essas observações de Chouraqui parecem ex­
tremamente esclarecedoras para se compreender o
96
que pretendiam os monges antigos e medievais ao
praticar a meditatio: assimilar melhor o que liam,
assimilá-lo por completo, mediante uma espécie
de mastigação e digestão comparáveis às dos ru­
minantes. Na realidade, tanto nos autores antigos
como nos medievais, aparecem com freqüência as
expressões ruminatio e ruminare como sinônimos
de meditatio e meditare. J. B. Lotz compara a medi­
tatio a um bom enólogo que conserva e agita sobre
a língua um vinho generoso, até que tenha provado
completamente seu sabor, absorvendo-o inteiramen­
te. A. Louf “pensa involuntariamente na plácida e
interminável ruminação das vacas” à sombra de
uma árvore. “A imagem é um pouco trivial, mas
eloqüente. Evoca o repouso, a quietude, uma total
concentração, uma paciente assimilação”. F. Ruppert
prefere ruminatio a meditatio, mesmo reconhecendo
que são sinônimos, porque resiste melhor ao perigo
do intelectualismo. A ruminatio, segundo ele, consta
de dois elementos: primeiro, repetir com freqüên­
cia e mesmo continuamente uma palavra ou um
texto; segundo, saborear e assimilar interiormente
essa palavra. A imagem de mastigação, digestão e
assimilação interior convém melhor ao efeito que
se pretende: fazer a Palavra de Deus passar não à
cabeça, mas ao coração.
Desde os inícios do monaquismo, a meditatio
aparece como um elemento que poderia classificar-
-se entre os mais essenciais, sendo praticada por
Santo Antão e os anacoretas, São Pacômio e seus
discípulos. Os mestres dos monges a aconselharam,
a impuseram, sem cansar-se de insistir. Um apofteg-
ma atribuído a Santo Antão, em uma coleção copta,
afirma que o monge não deve ser como o cavalo, que
come muito e a todas as horas e em seguida perde
97
o que come, mas como o camelo, que vai ruminando
o que comeu até que o alimento penetre em “seus
ossos e suas carnes”. Cassiano ensinava: “Devemos
procurar aprender de cor as divinas Escrituras
e ruminá-las incessantemente. Essa meditação
ininterrupta nos alcançará dois frutos principais.
O primeiro será este: enquanto a atenção estiver
ocupada em ler e estudar, estará também livre dos
maus pensamentos. O segundo é que, depois de
ter percorrido várias vezes certas passagens, nos
esforçando por aprendê-las de cor — e sem que
pudéssemos compreendê-las, por nosso espírito
não estar livre para isso —, então, superando as
distrações que nos solicitavam, e repassando as
mesmas passagens em silêncio, especialmente à
noite, as percebemos mais claramente, penetrando
às vezes em seus sentidos mais ocultos. E aquilo
que durante o dia não conseguíamos entender senão
superficialmente, percebemos à noite, quando nos
encontramos submergidos em sono profundo” (
14,10). Em sua Regra das Virgens, 20, São Cesáreo
de Aries as exorta a não abandonar jamais “a me­
ditatio da Palavra de Deus e a oração do coração”.
E mais adiante insiste: “Seja qual for a obra que
estais realizando, quando não se faz alguma leitu­
ra, ruminai sem cessar alguma coisa da Sagrada
Escritura” (22). Em sua famosa Carta de Ouro aos
cartuxos de Mont-Dieu, Guilherme de Saint-Thierry
lhes dizia: “É preciso arrancar todos os dias um bo­
cado da leitura cotidiana e confiá-lo ao estômago da
memória. A passagem é melhor digerida e, de volta
à boca, será freqüentemente ruminada”.
Sejam esses testemunhos como que amostras
de uma tradição ininterrupta no seio do monaquis-
-mo antigo e medieval. Fora dele, inclusive entre os
98
protestantes, praticou-se certa meditatio ou rumi­
natio da Escritura. O próprio Lutero a aconselhava.
E já vimos anteriormente como Dietrich Bonhöffer
meditava com freqüência, ao longo do dia, um texto
da Escritura que escolhia para a semana e procura­
va “mergulhar-se nele profundamente, para poder
entender de verdade o que nele nos é dito”.
Meditare, ruminare — escreve J. Leclerq —
significa “aderir intimamente à frase que se recita
e avaliar todas as suas palavras, para alcançar a
plenitude do seu sentido”; “assimilar o conteúdo de
um texto por meio de uma certa mastigação que
lhe extrai todo o sabor”; saboreá-lo “com o pala­
dar do coração”. Ora, a lectio divina se confundia
freqüentemente com a meditatio, já que entre os
antigos e medievais não costumava ser silenciosa:
ao ler pronunciavam — em voz alta, em voz baixa,
ou pelo menos interiormente — o que liam. E ao
repetir indefinidamente certos textos para retê-los
na memória e convertê-los, de algum modo, em sua
própria substância, praticavam de fato a meditatio.
E essa atividade espiritual, como facilmente se
compreende, não era tão somente meditatio, mas
também oratio. Como saborear e mastigar a Pala­
vra de Deus sem responder cordialmente a essa
Palavra que ama e salva? Lectio, meditatio e oratio
representam, pois, três conceitos intimamente rela­
cionados entre si. Com freqüência se convertem em
sinônimos. Guigo II, prior da Grande Cartuxa —já
o vimos —, acrescenta a esta tríade a contemplação
como o quarto degrau de sua Scala claustralium: “a
lectio apresenta um alimento sólido, a meditatio o
mastiga, (...) a oratio a saboreia, (...) a contemplatio
é o próprio sabor”.
Collatio
A lectio divina, feita em particular, encontra
na collatio um complemento freqüente, pelo menos
segundo os textos monásticos antigos e medievais.
A palavra é expressiva. Vem de confero, no sentido
de “confrontar” e também de “contribuir”.
Em que consistia a collatio? Em um colóquio de
tipo estritamente espiritual, no qual se colocavam
em comum as experiências individuais obtidas no
contato com a Palavra de Deus. Nesse colóquio,
cada participante era livre para expor o que o texto
sagrado, lido e saboreado na intimidade do diálogo
com Deus, lhe havia sugerido: idéias, sentimentos,
propósitos; o que resultava na edificação e enrique­
cimento de todos. Com freqüência, a finalidade que
visavam os participantes do colóquio não era outra
senão ajudar-se mutuamente a resolver os proble­
mas que o texto bíblico colocava: o que significava
tal ou qual expressão, como devia interpretar-se
determinada passagem. E sempre com um pro­
pósito prático: amoldar melhor a própria vida à
Palavra de Deus.
Quando se fala em collatio, muitos lembram-se
imediatamente das famosas Colações de Cassiano.
Na verdade, os colóquios entre Cassiano e seu amigo
Germano, de um lado, e alguns dos mais afamados
Padres do deserto daquela época, de outro, que as
Colações nos oferecem, são puro artifício literário.
Têm, contudo, uma base real. Eram muitos, na­
quela época, os seculares ou monges principiantes
que percorriam os eremitérios do Egito e de outras
regiões em busca da “palavra que salva”, de luz, de
edificação para sua própria vida espiritual. Ade­
mais, as Colações de Cassiano nos dão a conhecer
100
a estrutura, o objeto e o espírito das verdadeiras
conferências espirituais dos monges antigos, que
infelizmente se perderam, ou melhor, nunca foram
registradas por escrito. Com efeito, as que aparecem
na Vita Antonii ou em outros documentos monásti­
cos são, com toda probabilidade, tão fictícias como
as de Cassiano. Talvez os vestígios mais autênticos
de tais conferências se encontrem em uns poucos
apoftegmas que a elas aludem e nos dão a conhecer
alguns dos fatos que nelas ocorriam. São também
mencionadas em alguns textos procedentes da
koinonía pacomiana, e no suplemento sobre Santo
Orsiésio em uma vida de São Pacômio lemos: “Desde
o princípio, costumavam todas as tardes, depois do
trabalho e da refeição, sentar-se juntos e discutir
sobre as Escrituras”.
É patente o interesse e proveito de tais con­
ferências espirituais para os que tomavam parte
nelas. Compartilhar as experiências pessoais do
contato com a Escritura, compará-las com as dos
outros monges, não podia deixar de constituir um
estímulo poderosíssimo para seguir adiante pelo
caminho do ascetismo e na prática assídua da “lei­
tura de Deus”.

Eructatio
A palavra eructatio, tão desagradável para a
sensibilidade moderna, é o substantivo do verbo
eructare,“eructar”. Pertence, pois, à terminologia da
alimentação e da digestão. Eructa o que está farto,
enfastiado, repleto de alimento. Provavelmente, o
uso deste termo foi sugerido pelo início do Salmo
44 na versão da Vulgata: “Eructavit cor meum ver-
101
-bum bonum”, que hoje traduzimos com mais finura:
“Transborda um poema do meu coração”. Ou talvez
o versículo 7 do Salmo 144: “Memoriam abundantiae
suavitatis tuae eructabunt”, que hoje soa assim em
nossas igrejas: “Recordam vosso amor tão grandio­
so”. Há de se notar que tais traduções não são infiéis
ao texto original, já que eructare significa também
“proferir”, “expressar”, e se usa sobretudo para falar
da linguagem inspirada dos profetas.
O que pretendiam os autores espirituais ao
utilizar essa expressão, símbolo bíblico do entu­
siasmo e do amor? Simplesmente, que toda a nossa
conversação, todos os nossos escritos, não deveríam
ser outra coisa que uma efusão, um transbordar da
superabundância e intensidade dos pensamentos e
afetos que a lectio divina, a meditatio, a freqüên-
cia assídua, pessoal e íntima da Palavra de Deus,
foram gerando e acumulando em nosso espírito.
O abade Hiperíquio dizia: “Que o monge trans­
borde em palavras de bondade; que de sua boca
brotem as palavras do Altíssimo”. E, segundo São
João Crisóstomo, os solitários da Síria recolhiam
na leitura dos livros sagrados “o mel de suas ora­
ções e de sua conversação”. São belos pensamentos,
e verdadeiros. A Palavra de Deus escrita nos pro­
porciona “as palavras do Altíssimo”, o “mel” — isto
é, o melhor — que podemos devolver ao próprio
Deus depois de nos apropriarmos dela, na oração, e
compartilhar com os irmãos em nossa convivência
com eles. Um mel que flui espontaneamente dos
lábios e do coração, sem premeditação, sem esforço,
sem que sequer nos demos conta disso. Que tudo
isso não seja mera imaginação, é o que nos atestam
inumeráveis escritos devidos a homens e mulheres
que, na realidade, não são outra coisa senão um
102
transbordamento, uma efusão incoercível do me­
lhor que havia na alma deles e delas. E que tudo
isso fosse efeito da lectio divina,da meditatio,
no-lo provam incontestavelmente as contínuas
citações, reminiscências, imagens, expressões e
termos procedentes da Escritura que formam a
trama de tais escritos.
Em síntese, poderia dizer-se que a lectio di­
vina, em que se degusta a Palavra de Deus, fica
extasiada; se ao contato e comunhão com essa Pa­
lavra, só é possível no espaço interior do coração,
caixa de ressonância em que os ecos dão vida a uma
meditação, um contínuo revolver da verdade e da
vida que se nos revelam e comunicam. Como Maria,
que conservava e revolvia em seu coração todas
as palavras pronunciadas a propósito de Filho, o
leitor fiel da Escritura não deixa de exercitar-se
na meditatio para aprofundar a Palavra de Deus,
para apropriar-se dela e convertê-la na substância
de seu próprio ser. Em seguida a comunica natu­
ralmente aos irmãos, a compartilha, como canta a
liturgia da Igreja nas festas dos seus doutores: “A
boca do justo medita a sabedoria e sua língua fala
o direito; no seu coração está a lei do seu Deus,
seus passos nunca vacilam” (SI 36,30-31). O que os
lábios expõem foi meditado longamente, foi vivido
em seu interior.
A propósito da pregação de Santo Agostinho,
escreveu F. Van der Meer: Apenas ele toca os tex­
tos, estes se abrem como flores ao sol da manhã. E
quando os textos o tocam, convertem-se em fontes
de água que salta para a vida eterna. Então, das
mais recônditas passagens da Escritura, brota de
seus lábios água viva”. Esta é a eructatio de que
falam os antigos.
Capítulo XII
A leitura dos Padres11

Objeto secundário da lectio divina


Diz a Regra de São Bento em seu capítulo 73 (e
último): “Quem tiver pressa de chegar à perfeição
de vida tem à sua disposição os ensinamentos dos
Santos Padres, que, postos em prática, levam o ho­
mem à perfeição. Por que, haverá alguma página ou
palavra inspirada por Deus no Antigo ou no Novo
Testamento que não seja uma norma retíssima para
a vida do homem? Ou será que existe algum livro
em que os Santos Padres católicos não nos repitam
para que sigamos pelo caminho reto até o Criador?
Aí estão as Colações dos Padres, suas Instituições e
Vidas, e também a Regra de nosso Pai São Basílio.
Que outra coisa são senão meios para chegarem à
virtude os monges obedientes e de vida santa?”.
São Bento recomenda aqui, claramente, três
espécies de leituras: a Bíblia, os Padres católicos e
os Padres monásticos. Não diz que se leiam as obras
dos Padres durante o tempo destinado à lectio, mas
é evidente que, em particular, eram lidas nesse
horário, ou não eram lidas, pois não restava outro
11Cf. a coleção Patrística e as obras de Santo Agostinho, ed. Paulus.
(N. do T.)
104
tempo disponível na jornada diária, nem nos dias
de trabalho, nem nos domingos e festas. As obras
dos Padres, por conseguinte, eram objeto da lectio
divina, segundo São Bento.
Por sua parte, os abades beneditinos reunidos
em congresso em 1967 definiam a respeito da “lei­
tura divina”: “Seu objeto primordial é a Sagrada
Escritura. Contudo, também abrange o estudo dos
Padres, da Tradição, dos exemplos e da doutrina
dos santos, da reflexão viva da Igreja ao longo dos
séculos”. “Contudo, também...” são palavras signi­
ficativas. É como se tais leituras fossem admitidas
como legítima lectio divina com alguma indulgência.
“Sim, também podem servir. Mas o objeto próprio
da lectio divina, o único que justifica seu nome, é a
Sagrada Escritura”.
Como se tem observado, os abades benediti­
nos ampliam notavelmente o âmbito da “leitura
divina”, em relação à lista de leituras oferecidas
pela Regra de São Bento. Na realidade, quase se
poderia dizer que admitem como objeto da lectio,
ainda que secundário, toda a imensa produção lite­
rária nascida no seio da Igreja através dos tempos:
os Padres, os autores espirituais, a hagiografia, os
teólogos. Há que se reconhecer que os abades do
congresso de 1967 se mostraram extremamente
abertos, acolhedores, liberais.
Não vamos ocupar-nos aqui, evidentemente,
de toda essa imensa literatura, mas tão somente
dos Padres. O que não significa de modo algum que
pretendamos contradizer os abades beneditinos no
que concerne ao objeto secundário da lectio divina.
Como dizia F. Vandenbroucke, a Regra de São Bento
deixa um campo muito amplo à leitura do monge.
Este poderá obter sua informação espiritual de qual
quer parte onde descubra “Santos Padres católicos”
e escritos monásticos: nada o obriga a limitar-se,
por tais expressões da Regra, à literatura anterior
a São Bento. É de senso comum.

Preferência pelos Padres


Que São Bento se refira apenas aos Padres
católicos e monásticos parece normal, já que pou­
cas seriam as obras cristãs em circulação além dos
escritos patrísticos. Mas é importante observar que,
ao lado dos livros inspirados, o ofício romano nos
oferece hoje sobretudo leituras tiradas dos Santo
Padres. Por que essa preferência pelos escritores e
pastores de almas que floresceram nos primeiros
séculos da Igreja? Por inércia ou rotina? Evidente­
mente que não.
Na Constituição sobre a Revelação Divina (n.
23), encontramos um texto significativo: “A esposa
do Verbo encarnado, isto é, a Igreja, instruída pelo
Espírito Santo, se esforça por chegar a uma com­
preensão cada dia mais profunda das Sagradas
Escrituras, a fim de alimentar incessantemente a
seus filhos com as palavras divinas. Por isso fomenta
também devidamente o estudo dos Santos Padres, do
Oriente e do Ocidente, e o das sagradas liturgias”.
Porque quer entender mais profundamente
a Palavra de Deus, a Igreja estuda os escritos dos
Padres. Os Padres — e as diferentes liturgias, que
são essencialmente obras dos Padres —, estão
em íntima relação com a Palavra de Deus. Esta é
evidentemente a mentalidade do Concilio, que no
Decreto sobre o Ecumenismo, ao tratar da tradição
litúrgica e espiritual das Igrejas orientais, insiste
106
em sua recomendação para se freqüentar a leitura
dos Padres: “Os católicos recorram com maior fre-
qüência a estas riquezas espirituais dos Padres do
Oriente, que elevam todo homem à contemplação
do divino” (n. 15).

Excelência dos Padres da Igreja


Os Padres da Igreja são nossos Pais na fé,
as testemunhas fiéis do Espírito Santo. Sua im­
portância na história da espiritualidade cristã é
excepcional. Se os consideramos individualmente,
seus méritos são muito diversos, dependendo do
ângulo de observação. Comparados entre si, apre­
sentam grandes diferenças, em todos os sentidos.
Assim, um São João Crisóstomo não é um São
Gregório de Nissa, e Santo Agostinho difere muito
de Cassiano. Mas é comum a todos a incomparável
qualidade de terem sido instrumentos do Espírito
Santo na época privilegiada da Igreja em que Deus
cumulou-a de dons para que servisse de luz e guia
aos séculos vindouros.
Foram os Padres, depois dos apóstolos, os pri­
meiros mestres espirituais da Igreja. Esta é, sem
dúvida, a mais essencial de suas características, e
poderia considerar-se como o denominador comum
de suas atividades. Podemos considerá-los como
testemunhas da fé cristã, apologistas, exegetas,
teólogos, polemistas. Mas todos esses não são mais
que aspectos acidentais de sua tarefa primordial
de salvaguardar, iluminar, pormenorizar, divulgar
entre os cristãos a pura doutrina espiritual. Em
seus escritos não existem limites que dividam
nitidamente a espiritualidade da teologia, o co­
107
mentário bíblico da doutrina ascética, a mística
da moral. Os Padres não separam nada: para eles
tudo é vida divina. E ao tomar a pena ou pronun­
ciar a homilia ou o sermão, visam a um único fim:
que os fiéis de Cristo tenham vida, e a tenham em
abundância. Por isso, pode-se afirmar sem exagero
que toda a literatura patrística é espiritual, tanto
quanto exegética e pastoral. Em tudo o que fizeram
e escreveram, encontra-se presente a essência viva,
total, do cristianismo, que, por meio deles — elos
insignes da Tradição —, chegou até nós explicada,
viva e incontaminada.
Os Padres souberam assimilar o espírito de
Cristo até um ponto realmente maravilhoso. Hans
Urs von Balthasar escreveu com razão: “Moderna­
mente, com grave prejuízo para ambas, a teologia
e a santidade se têm desenvolvido separadamente.
Hoje em dia é raro que os santos sejam teólogos.
Por isso os teólogos não os têm em consideração”.
Isso não se dá com os Padres. Neles, pelo contrário, a
palavra e a vida, a doutrina e a santidade, estão em
perfeita consonância, interpretam-se reciprocamen­
te. Os Padres viviam o que ensinavam, e ensinavam
o que viviam. Seus escritos, por conseguinte, nos
transmitem ao mesmo tempo uma doutrina e uma
experiência.
Sua fé, extremamente vigorosa, manifesta-se
em seu lirismo. São poetas — poetas espirituais
— que sabem descobrir e cantar a ação de Deus no
universo visível da natureza e no universo invisível
das almas. Em lugar de enunciar seu cristianismo
de modo abstrato e impessoal, possuem um estilo
tão comunicativo, cordial e lírico de amar e expor
as realidades cristãs que arrebatam o leitor. Assim,
por exemplo, quando tratam de Jesus, da materni­
108
dade de Maria e da Igreja, da ação das Três Divinas
Pessoas na alma humana.
É sabido o caráter eminentemente intuitivo da
sensibilidade. Plenos de amor, de entusiasmo por
Cristo e por sua Igreja, os Padres possuíam uma
intuição admirável e arrebatadora. Neles, a vida,
em sua complexidade e simplicidade, ostenta uma
primazia efetiva sobre a fórmula; a comunhão do
Espírito Santo sobre o desenvolvimento lógico do
pensamento. Têm o sentido do divino, uma exata vi­
são teológica do mundo visível e invisível. E possuem
o segredo de expressar o que pensam, e sentem de um
modo maravilhoso. Sabem comunicar seu entusiasmo.

Os Padres e a Bíblia
Os Padres nos conduzem como que pela mão
à fonte da sabedoria cristã, a Sagrada Escritura, e
nos ensinam a amá-la, lê-la e saboreá-la.
Na realidade, a razão mais poderosa para
incluir os escritos dos Padres como objeto da lec­
tio divina ao lado da Bíblia é porque, segundo os
monges antigos e medievais, a Bíblia não pode ser
separada dos comentários feitos pelos Padres da
Igreja. Não importam os gêneros literários de que
se servem os Padres: sempre explicam ou desenvol­
vem a Escritura. Mais ainda: tudo o que os Padres
não somente escreveram ou disseram, mas também
fizeram, está relacionado, segundo o pensamento dos
antigos monges, com a Escritura: tudo se reduzia a
uma ilustração, teórica ou prática, sobre ela.
Os Padres — e as diversas liturgias, obra deles
—, nos ajudam de modo excelente a interpretar
as Escrituras, a desentranhar seus mistérios, a
descobrir os tesouros de vida que contém. Eles nos
ajudam a ler a Escritura “com os olhos da Esposa”.
São, com efeito, primordialmente os expositores
autorizados da Escritura. Sua obra está em cons­
tante e íntima dependência em relação aos livros
sagrados. Paul Evdokimov não exagera ao dizer que
“viviam da Bíblia, pensavam e falavam pela Bíblia,
com essa admirável penetração que chega até à
identificação de seu ser com a própria substância
bíblica”. Sua espiritualidade — diferentemente do
que encontramos em autores posteriores — se refe­
re à Bíblia de modo imediato, explícito e constante.
Os Padres exploraram quase todo o conteúdo espi­
ritual da Escritura, e essa exploração deu origem a
toda a ascética e mística posteriores. É verdade que
às vezes divagam, deixando-se levar por fantasias
alegóricas, mas normalmente fundamentam sua
exegese espiritual em uma interpretação literal
do texto sagrado. Para eles, o Antigo Testamento
é uma profecia de Cristo, uma figura dos tempos
escatológicos do Novo Testamento. Nunca devemos
ler a Escritura com olhos de arqueólogos, filólogos
ou historiadores, mas com olhos e com coração de
cristãos: esta é a grande lição que nos ensinam os
Santos Padres.

Dificuldades
Como a da Bíblia, a leitura dos Padres não é
fácil. Requer um esforço quase constante, sobretudo
no início.
Os Padres, com efeito, pertencem a uma época
muito diferente da nossa, com gostos e preferências,
problemas e circunstâncias em grande parte dife­
110
rentes dos nossos. Sua sociedade, seu ambiente, sua
língua e literatura, sua cultura humana e religiosa,
estão já muito distantes no passado. A maior parte
de suas obras — para não dizer todas —, inclusive
as de caráter mais doutrinai, está profundamente
marcada por seu tempo. Quase todos os Padres,
pelo menos os mais importantes, foram bispos que
intervieram muito ativamente na vida da Igreja, e
suas obras têm um fim prático e imediato. Apologias,
catequeses, homilias, sermões, tratados dogmáticos,
exegéticos ou espirituais, tais escritos se adaptam
a gostos e necessidades do momento à mentalidade
de seus leitores imediatos. Apesar da habilidade dos
tradutores modernos, o próprio estilo dos Padres nos
parece anacrônico e difícil. Penetrar nesse mundo tão
diferente requer não pouca disposição. Mas vale o
que custa. E a Igreja nos pede esse esforço, que vale
a pena realizar. Se conseguimos romper essa casca
um pouco dura e alcançamos o miolo dos escritos
dos Padres, já não conseguimos prescindir deles.
Convertem-se para nós, segundo a expressão de New-
man, em ‘livros familiares”. O contato com eles nos
permite desfrutar de uma herança incomparável, da
alegria do trato familiar com amigos que conhecemos
intimamente. Nossa alma sempre se enriquece na
companhia e amizade dos Padres. Porque não estão
mortos: os amigos de Deus não morrem nunca.
Finalmente — deve-se ressaltar com ênfa­
se —, a leitura assídua dos Padres produz uma
grande satisfação religiosa, um aumento da ver­
dadeira piedade. Ele nos comunica uma concepção
mais ampla e completa da Igreja, de sua doutrina,
de sua continuidade, de sua vida oculta. E nos ajuda
a viver em plenitude a fraternidade cristã, como
filhos de Deus e membros do corpo místico do Cristo.
Os Padres monásticos
Os Padres católicos, os Padres da Igreja uni­
versal, nos ensinam a ler a Bíblia “com os olhos da
Esposa”. Os Padres monásticos nos iniciam na “exe­
gese real”, isto é, na arte de aplicar praticamente a
Escritura à vida monástica, ou melhor, de adaptar
a vida monástica às exigências da Escritura.
As regras cenobíticas, as catequeses dos gran­
des mestres do deserto, os tratados espirituais,
toda a produção literária devida aos monges, não
são, nem pretendem ser, em última análise, mais
que uma exegese, uma adaptação prática do Evan­
gelho, da Palavra de Deus em geral, para uso dos
cenobitas ou dos eremitas. As volumosas Regras
de São Basílio, para citar apenas um exemplo
conhecido, constituem uma tentativa, indubita­
velmente feliz, de fundamentar a vida monástica
e cada uma de suas instituições e observâncias na
Palavra de Deus escrita, especialmente no Novo
Testamento.
Os escritos dos monges nos mostram na prá­
tica como liam a Bíblia, como a interpretavam
espiritualmente, que temas chamavam com mais
força sua atenção e nos quais se compraziam. Para
eles, como para toda a Igreja dos primeiros séculos,
existe uma íntima relação entre os dois Testamen­
tos. Não são duas realidades distintas, mas duas
grandes etapas ou períodos da mesma “história da
salvação”. Cristo é o centro. Tudo, absolutamente
tudo, a ele se refere e para ele converge. Tudo é
história de Cristo e história de seu corpo místico, a
Igreja, que se desenvolve desde o princípio do Gêne­
sis até as grandiosas visões apocalípticas dos últi­
mos tempos. O monaquismo, inserido intimamente
112
na Igreja, constitui uma parte dessa história. Por
isso, não é estranha a predileção que demonstram
os monges pelos livros do Êxodo e dos Números,
como imagens de sua própria vida, composta de
saída do mundo, deserto, luta ascética, tentações,
contemplação sinaítica, ardentes desejos de pene­
trar no Paraíso escatológico, simbolizado pela Terra
Prometida. Tampouco pode surpreender-nos sua
enorme afeição pelos Salmos, que consideravam
como a voz de sua própria oração, expressão de
seus anseios, oráculos dirigidos diretamente e em
particular a cada um deles ou a suas comunidades.
Nada mais belo e significativo, sob esse aspecto,
que os comentários aos Salmos que São Jerônimo
fez para seus irmãos monges em Belém, e que um
deles registrou.
Mais significativo ainda era o empenho que
os autores monásticos punham para encontrar na
Escritura modelos do gênero de vida que pratica­
vam, ou, como diz São Basílio, “estátuas animadas
da vida segundo Deus, propostas para que sejam
imitadas em suas boas obras” (Ep. 2, 3). Assim se
formou uma rica tipologia do monaquismo, que
os escritores sentem prazer em citar com fre-
qüência. Lendo suas obras vê-se claramente sua
preocupação em imitar os personagens bíblicos
que consideram seus predecessores, seus “pais”, e
desse modo autorizam seu próprio gênero de vida:
Adão, Elias, Eliseu, os “filhos dos profetas”, João
Batista, Jesus, os apóstolos, a primeira comuni­
dade de Jerusalém.
Escreveu-se, não sem razão, que “não é possível
ser monge ou monja de obediência beneditina sem
ter lido Cassiano, a Vida de Santo Antão, as Regras
de São Basílio, os Apoftegmas e alguns outros tex­
tos monásticos da Antiguidade. E isso não apenas
porque São Bento recomenda sua leitura, mas
também, e em primeiro lugar, porque não há nada
como o contato pessoal com os autores clássicos —
isto é, sempre atuais, nunca saem de moda — para
adquirir o sentido do discernimento dos valores em
que se apóia a vida monástica e o sentido de Cristo,
discernimento esse que nasce de uma interpretação
real e efetiva da Escritura, na qual se juntam exe­
gese e experiência.

114
Epílogo
A restauração da Leitura Divina

Costuma-se falar do que não se tem, do que


se deseja ter, do que já se possui, mas se quer pos­
suir com mais plenitude, com mais autenticidade.
“Da abundância do coração fala a boca”. O fato de
que há vários anos já se fale e escreva tanto so­
bre a “leitura divina”, como vimos sumariamente
no início destas páginas, demonstra que está no
coração dos monges de hoje o desejo de restaurar
plenamente uma prática cristã e eminentemente
monástica que com o tempo se havia descuidado,
esquecido, ou, no melhor dos casos, desvirtuado e
obscurecido. Sabemos hoje, indiscutivelmente, que
a lectio divina constitui elemento essencial da vida
monástica beneditina; e, se queremos chegar a ser
o que somos e recobrar nossa identidade, é preciso
que ela volte a ocupar em nossa escala de valores e
no horário de todos os dias o lugar de honra que lhe
corresponde. O já citado “pacto de paz” da Federação
Beneditina das Américas o declara sem rodeios: A lec­
tio divina “é essencial à vida beneditina” e “somente
restabelecendo-a se fará a experiência de uma vida
beneditina mais significativa”, tanto para os próprios
monges como para “seus contemporâneos”.
Como se pode realizar essa restauração? Sobro
isso se tem escrito e discutido bastante. Com a aju
da dessas contribuições, vamos agora tratar de um
tema tão urgente e tão atual.

O conceito de lectio divina


Penso, antes de tudo, que é preciso manter
firmemente o conceito estrito de “leitura divina”
que os modernos estudos de espiritualidade nos
permitiram recuperar. Hoje sabemos em que con­
sistia para os antigos e medievais, e seria um erro
de funestas conseqüências querer modificar tal
conceito, intelectualizando-o, convertendo a lectio
em estudo, ou ampliando-o de tal maneira que perca
sua verdadeira fisionomia.
Hoje sabemos perfeitamente que a lectio divi­
na, no sentido original e autêntico da expressão, é
uma “leitura espiritual”, mas de modo algum uma
“leitura espiritual” qualquer, uma simples leitura
edificante e piedosa. É, essencialmente, uma forma
específica de ler a Palavra de Deus contida nas Es­
crituras e, somente por concomitância e subsidia-
-riamente, nos escritos dos Padres e outros textos
da Tradição cristã. É, sobretudo, um contato diário,
pessoal, íntimo com o Pai, o Filho e o Espírito San­
to; um contato com Jesus Cristo, nosso Senhor e
nosso irmão, que se realiza na Sagrada Escritura.
É o que indica seu nome: “leitura de Deus”. Uma
leitura feita com fé — Deus fala, Deus me fala
aqui e agora — e com a maior atenção; uma lei­
tura lenta, meditada, saboreada; uma leitura que
busca antes de tudo o sentido literal e preciso do
texto, para em seguida buscar e encontrar o que
o Espírito de Deus se digne manifestar ao leitor;
uma leitura tão ativa que compromete a pessoa
116
inteira, mas ao mesmo tempo tão passiva, ou seja,
uma leitura em que o leitor se deixa arrastar pela
Palavra de Deus, que lhe fala pessoalmente, que
fala intimamente, de coração a coração; uma leitura
feita no seio da Igreja, corpo de Cristo, “com olhos
amorosos de esposa” e “com os olhos da Esposa”;
uma leitura assídua — uma releitura —, de todos
os dias, sem exceção; uma leitura desinteressada
— ler por ler, não para ter lido —, uma leitura em
que propriamente não se busca outra coisa fora
da leitura mesma. Lectio divina é “abrir a Bíblia e
encontrar Deus”, “aprender a conhecer o coração
de Deus”, escutar e responder a Deus no diálogo
sublime que chamamos oração contemplativa. A
lectio, diz o Pe. Lassus, é “uma ocupação que opera
com a qualidade, a dignidade e a eficácia de um sa­
cramento. Quem busca a Deus, o discípulo do Verbo,
vai a uma entrevista, a um encontro. Quer pôr-se
em contato com aquele que o busca muito mais do
que é buscado por ele. Eu imagino que escutar o
Verbo suscitará nele uma conversação, uma oração,
isto é, um discurso de fé e de admiração, de adora­
ção ou de júbilo, de eucaristia ou de lágrimas. Um
discurso que, por outro lado, vai simplificar-se cada
vez mais, até converter-se em contemplação, uma
espécie de encantamento, de magia”. É sumamente
importante que, como nossos Pais na fé, conside­
remos a Bíblia não como um livro “para ler”, mas
como um Tabernáculo, como a Tenda da Reunião de
que nos fala o capítulo 33 do Êxodo: “Moisés tomou
a tenda e a armou para ele, fora do acampamento,
longe do acampamento. Haviam-lhe dado o nome
de Tenda da Reunião. Quem quisesse interrogar a
Iahweh ia até a Tenda da Reunião, que estava fora
do acampamento. (...) E quando Moisés entrava
na Tenda, baixava uma coluna de nuvem, parava
à entrada da Tenda, e Ele falava com Moisés. (...)
Iahweh, então, falava com Moisés face a face, como
um homem fala com outro”.

Que livros se devem ler?


A Escritura — deve-se sustentar com energia
— é o objeto próprio da lectio divina. Sabemos
pela história que no início se liam a Bíblia e seus
comentários patrísticos, considerados como se
formassem parte dela, e não há dúvida de que
essa foi a causa pela qual a lectio tomou sua forma
específica e seu nome próprio. Que outro livro pode
aspirar a que sua leitura se chame “leitura divi­
na”? Mas logo se começaram a ler outros autores
cristãos. Hoje Dom Ambrose Southey pergunta
se se deve voltar à leitura exclusiva da Escritura.
“Minha resposta pessoal” — responde — “é ao
mesmo tempo ‘sim’ e ‘não’. Para nós, a Escritura
deve ter a primazia como matéria da lectio, mas
não precisamos excluir outros livros, contanto
que ajudem, de algum modo, ainda que indireto,
a compreender a Palavra de Deus. Não obstante,
deve-se acrescentar que nem todos os livros se
prestam ao método de leitura lenta, meditativa,
que foi recomendado anteriormente”.
Evidentemente, não serve para a “leitura di­
vina” qualquer obra, qualquer autor. Para saber o
que se pode e o que não se deve ler na lectio divina,
a Regra de São Bento nos proporciona um critério
precioso: somente se devem ler as obras dos “San­
tos Padres católicos”. Hoje podemos aplicar essa
expressão a todos os autores que, em qualquer épo­
118
ca, prosseguiram desenvolvendo a doutrina cristã,
fazendo-a crescer a partir da semente contida nos
livros sagrados.
Outro critério válido é o seguinte: o livro que
se lê deve ser apto para suscitar e manter a oração,
ou melhor, deve mover o leitor concreto a orar, pois
costuma acontecer o seguinte: o que a um deixa
frio e indiferente, a outro — as sensibilidades
são tão diversas — talvez lhe tocará o coração e
elevará sua alma a Deus. Não esqueçamos nunca
que a lectio divina é simultaneamente leitura e
oração. São Jerônimo escrevia à Santa Eustóquia:
“Quando oras, falas a teu Esposo; quando lês, ele
fala a ti”. Ele não queria com isso significar que se
deve terminar primeiro a leitura para em seguida
dedicar-se à oração. Ler e orar —já o vimos — eram
para os antigos duas atividades espirituais que se
complementavam, que deviam complementar-se
na lectio divina. E é perfeitamente claro que os
antigos e medievais não conheceram outro méto­
do de oração que a “leitura divina”, e que oravam
habitualmente tendo o texto sagrado ante os olhos,
ou, pelo menos, na memória.

Perigos e inimigos
Que a lectio divina, como tudo o que é bom,
tem perigos e inimigos, é evidente. Os antigos
assinalaram alguns. Por exemplo, a vaidade, que
pode tornar completamente estéril nosso esforço.
Cassiano adverte: “Sem dúvida nenhuma aquele
que se aplica à leitura com o vão intento de adquirir
a glória humana não alcança o dom da verdadeira
ciência. Escravo dessa paixão, será igualmente
preso pelos laços dos outros vícios, particularmente
da soberba”. Evágrio Pôntico adverte que o peri­
go pode proceder do espírito de fornicação, e São
Bento não permite que se leia o Heptateuco nem
o livro dos Reis na leitura que precede o ofício de
Completas, “porque às inteligências débeis não será
de proveito naquelas horas ouvir estas Escrituras.
Leiam-se porém em outras horas”. O demônio pode
servir-se inclusive da desmedida afeição à lectio
para perder o monge: há, com efeito, outras ocupa­
ções que atender. Cassiano atribui a Santo Antão
esta advertência: “Vale mais ler menos e ganhar a
vida com o fruto do próprio trabalho, como ordena
a Escritura, que deixar de trabalhar a fim de ter
mais tempo para ler”.
Entre os inimigos da lectio, podem-se mencio­
nar alguns tipicamente modernos. Dom Ambrose
Southey cita de modo especial quatro deles:
1º “O querer conseguir resultados imediatos”.
Vivemos na sociedade de consumo, na qual “tudo
está organizado para produzir o máximo possível no
menor tempo”. Daí nasce uma “mentalidade utilita-
rista”, e por isso “nos é difícil dedicar-nos a algo que
não está orientado a resultados imediatos”.
2º “Há uma tal proliferação de livros que fica­
mos inclinados a passar de um livro a outro, com
a sutil tendência para a última novidade, de modo
que a disposição para ler mudou muito”.
3º “A insistência moderna do processo intelec­
tual em detrimento do aspecto intuitivo e afetivo”.
Presta-se “pouca atenção ao sentimento e à afetivi-
dade”, considerando-se inclusive “o aspecto afetivo
como inferior, senão perigoso”. Alguns monges e
monjas chegam a ridicularizar a lectio divina como
“sentimentalismo piedoso” (...), feito somente para
120
os fracos, enquanto “o estudo sólido é considerado
como alimento dos fortes”.
4º “O sistema de exames escolares”. Os graus o
diplomas universitários exigem passar por muitos
e freqüentes exames. Na prática, trata-se de “con­
seguir muita informação por meio de uma leitura
rápida”, o que “tende a formar hábitos difíceis de
serem mudados posteriormente”.
Dom Ambrose Southey também alude a outros
inimigos da “leitura de Deus”, entre eles a paixão
por jornais e revistas e pela televisão. A essa lista
poderiam acrescentar-se ainda outros inconvenien­
tes ou estorvos. Mesmo sem rádio nem televisão,
sem jornais e revistas, todo acontecimento de im­
portância mediana é conhecido imediatamente em
todo o mundo, e o monge começa sua lectio assaltado
por preocupações, idéias e imagens que a dificultam.
Outro inimigo talvez mais temível e poderoso é o
ritmo trepidante, desenfreado da vida moderna, do
qual dificilmente podemos escapar: não há tempo,
as ocupações prementes nos absorvem, e, se encon­
tramos alguns momentos para a lectio, sentimos com
muita freqüência um real vazio interior.
Concluímos então, com desesperança, que tan­
tos e tais inimigos são invencíveis? De modo algum.
Também os antigos conheceram tentações e inimigos
que obstaculizavam sua lectio, e não vacilaram.
Nada se obtém, se não se paga seu preço.

Um clima propício
A esses inimigos, devemos combatê-los. Fechan­
do as portas aos que vêm de fora, e opondo uma
resistência tenaz aos de dentro, aos que levamos
em nós mesmos, esforçando-nos, com a graça de
Deus, por descobri-los, desmascará-los e vencê-los.
Se estamos realmente persuadidos da verdadeira
natureza da lectio e do papel importante que deve
desempenhar na vida, tanto de cada um dos monges
como da comunidade inteira; se queremos realmente
restabelecê-la, teremos que redescobrir o valor do
otium claustral, isto é, a importância do “tempo
livre” para dedicá-lo a Deus e às coisas do Espírito.
Trata-se de uma necessidade urgente que se faz
sentir vivamente em muitos mosteiros. Em alguns,
já se implantaram dias de “repouso espiritual”, ou
“dias de deserto”, o que representa uma conquista
interessante. Mas não basta, evidentemente, reser­
var para Deus um dia de vez em quando, ainda que
seja cada semana. É preciso reagir corajosamente
contra o nervosismo, contra o esbaforido afã de pro­
duzir, contra os hábitos que nos vai impondo nossa
sociedade de consumo e que nos obriga a fazer horas
extraordinárias — cada vez mais ordinárias — de
trabalho manual ou intelectual. É indispensável
que haja no horário monástico de todos os dias um
lugar folgado para a leitura lenta, desinteressada,
penetrada de oração, dedicada exclusivamente à
busca de Deus, ao diálogo com Deus, a estudar o
coração de Deus.
A “leitura divina” só pode florescer e frutificar
em clima de recolhimento, de paz, de oração. Deve­
mos restaurar esse clima, se queremos restaurar a
lectio. Porque “ninguém pode penetrar o sentido do
Evangelho se não descansou como João, em íntimo
colóquio, sobre o peito de Jesus”, como diz Orígenes
(In Io. 1, 6). E quem pode desmenti-lo?

122
Preparação para a lectio divina
Mantendo-se o conceito autêntico de “leitura
divina”, aparece nitidamente a distinção entre lectio
e estudo, o que não implica, é claro, nenhum menos­
prezo pelo estudo. Uma vida espiritual profunda
requer, geralmente, uma boa formação intelectual,
teológica, para os que são capazes e têm oportuni­
dade de adquiri-la. Dom Ambrose Southey, como
de costume, acerta plenamente quando escreve: “A
lectio divina se refere a um tipo de conhecimento es­
pecial; o estudo, a um conhecimento mais conceituai.
Naturalmente, não é preciso reagir exageradamente
contra a insistência atual sobre a inteligência do
Ocidente, caindo em um antiintelectualismo. Não.
Ambos os conhecimentos caminham lado a lado. São
complementares, e não mutuamente exclusivos”.
Em todo caso, atualmente estão todos de acordo
em que se necessita uma certa preparação para a
lectio. Alguns, como Dom Gaillard, não hesitam em
afirmar que a lectio, “no contexto atual, supõe uma
cultura e formação rigorosas”. Talvez Dom Gaillard
exagere um pouco, mas é certo que a leitura da
Bíblia apresenta muitas dificuldades, e seria uma
lástima que não aproveitássemos os abundantes e
excelentes instrumentos que a exegese moderna
que nos oferece para abordá-la frutuosamente.
Sem uma suficiente iniciação à Bíblia, sua leitura
poderia decepcionar o leitor iniciante. Não poucas de
suas páginas quase dariam razão ao livre-pensador
inglês que escreveu: “Trata-se de uma história do
tanta lascívia, sodomia, chacinas e horríveis de-
pravações, que as mais vis das outras histórias,
compendiadas em um livro monstruoso, poderiam
apenas equiparar-se a ela”.
Formação na lectio divina
Muito mais importante que a preparação inte­
lectual com vistas a ler melhor o coração de Deus é,
sem dúvida, a própria formação na “leitura divina”,
que se pretende restaurar.
Uma restauração dessa envergadura, imposta
de repente, sem uma longa preparação, sem uma ca­
tequese prévia, equivaleria em muitas comunidades
de monges, sobretudo de monjas, a uma autêntica
revolução. Para evitar traumas, deveria realizar-se
com a maior prudência e a mais solícita caridade.
Impor através de decreto a “leitura divina”, em toda
a sua pureza e a todo custo, seria uma imprudência
desastrosa. É preciso respeitar infinitamente — como
Deus as respeita — as pessoas, a cada uma delas.
Cada qual tem sua capacidade, sua formação, seus
costumes, seu carisma e... sua idade. O importante
é propor-se esse ideal, convencer-se de que a “leitura
divina” é o nosso ideal — dos beneditinos, dos cis-
tercienses e da Igreja, como expressa claramente a
constituição Dei Verbum —, e esforçar-se individual
e comunitariamente, mas sem obrigar a ninguém a
praticá-la da melhor maneira possível.
Dom Ambrose Southey propõe, para a formação
na “leitura divina”, o seguinte plano:
1º Em nível comunitário, estabelecer no horário
um tempo suficiente, tanto para a lectio como para
o estudo. Que esse horário, de fato, se possa seguir.
Que a comunidade tenha uma idéia exata do que a
lectio divina é e requer.
2º Em nível individual, o mestre de noviços expli­
cará a verdadeira natureza da lectio e suas principais
dificuldades, e buscará com os noviços os modos e
meios de superá-las. Habituará os noviços, pouco a
124
pouco, à lectio divina, dedicando-lhe cada dia meia
hora ou uma hora inteira. Provavelmente, os noviços
necessitarão ser orientados na escolha de livros, pelo
menos no início. “De quando em quando, seria conve­
niente uma confrontação sobre a lectio, de modo que
as experiências sobre elas possam ser compartilhadas
(...). Pode ser também conveniente organizar, de um
modo ou de outro, um ‘Evangelho compartilhado’”.
Como se vê, Dom Ambrose Southey insiste
na formação pessoal, mais do que na comunitária,
na formação de cada noviço em particular e não
somente dos noviços como grupo. É, com efeito, no
noviciado que o monge deve aprender teórica e
praticamente em que consiste a lectio. Desse modo
se irá implantando realmente em cada mosteiro um
exercício que, como o próprio Dom Ambrose Southey
reconhece, não é fácil, mas “exige realmente esforço
e sacrifício. No entanto, se conseguirmos progredir,
dará frutos de grande transcendência na qualidade
de nossa vida monástica, e enriquecerá a dimensão
contemplativa de nossos mosteiros”.

Últimas palavras
As fraternidades da Virgem dos Pobres, que
conservaram ou restauraram não poucos valores
fundamentais do monaquismo, praticam a “leitura
divina”. Sua regra fala sobre ela de modo exato o
prático. Todos os dias se deve consagrar à lectio uma
hora inteira. Na linguagem simples e direta própria
desse belo documento espiritual, se diz a cada um
dos irmãos: “Não podes prescindir deste alimento
cotidiano, com o qual Deus te fortalecerá o espírito
e te ajudará a orar melhor. Esta mesma leitura, se
a fazes bem, será cada vez mais um encontro com
Deus, uma oração.
Será, antes de tudo e sobretudo, leitura da Bí­
blia. Por isso se chama lectio divina, porque a Escri­
tura é a Palavra de Deus, e cada dia Deus te falará
nela. Deves receber a Palavra dele em tua alma
com infinito respeito e na pureza de um coração de
criança, que seja inteiramente escuta e acolhimento.
Encontrarás nela a Vontade de Deus sobre ti.
Deves crer na presença de Jesus nessas pala­
vras, através das quais ele te fala ao coração. Para
ajudar-te a venerá-la, uma Bíblia aberta estará
sempre presente no oratório. A Bíblia deve ir for­
mando tua alma pouco a pouco. Deveria chegar a
constituir tua única leitura, como o foi para tantas
gerações de monges. Não poderá ser assim desde o
início, pois a compreensão do texto sagrado pede um
esforço sério de reflexão e assimilação, e, ademais,
teu coração não será bastante puro nem bastante
desapegado da satisfação de tua própria inteligên­
cia. Mas, à medida que o Senhor te desapegue de ti
mesmo, irás preferindo cada vez mais somente sua
Palavra dele”.
Fala aqui, sem dúvida alguma, um “ancião”
experimentado na “leitura de Deus”. Alguém que
conhece sua natureza e sabe como praticá-la. Seus
conselhos, tão simples e autênticos, constituem o
melhor final imaginável para este livro.

126
Bibliografia

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monastica delia lectio divina. Brescia, 1981.
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Leloir, L., La lecture de l'Éscriture selon les anciens Pères, in
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Vandenbroueke, F.,La lectio divina aujourd'hui, in Collectanea
Cisterciensia 32 (1970) 256-267.

127
SUMÁRIO

5 Apresentação
7 Prólogo
11 1. Preliminares
23 2. História
31 3. O livro dos que buscam a Deus
39 4. Deus falou, Deus me fala
45 5. Uma conversa íntima
56 6. Qualidades paradoxais
65 7. Uma tarefa árdua e penosa
72 8. Requisitos e disposições
79 9. Três exemplos
86 10. Frutos
94 11. Complementos
104 12. A leitura dos Padres
115 13. A restauração da Leitura Divina
127 Bibliografia

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