Dianne Bergant, CSÁ

Robert J. Karris, OFM

(organizadore s )

a
Comentário
Bíblica

Edkões L o jt o la
A atençao que a 6ibKa vem recetendo no B rasil
merece este instrum ento de estudo e aprofun­
damento: um com entário pastoral completo,
destinado a nao-especiaKstas e leitores de di­
versos credos.
A edição ongm al, T k e CoUegeville Bd>le
Com m entary , acompankava a N e w A m erican
B itle (N A B ). A edição brasileira e organiza­
da segundo a Traduçao Ecumemca da BibKa
(T E B ).
Tornam -se acessíveis, sem a m isteriosa Kngua-
gem dos especialistas, as aquisições do estudo
bíblico dos últim os decenios.

fçez ‘poD
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Comentário
Bíblic©

V O L U M E
 Diane Bergant, OSÁ
Eobert J. Karris, OPM
(organizadores)

Comentário
Bíblic©

Introdução

Pentateuco

Profetas A n terio res

Bdifões Lo yo la
Título original:
The Collegeville Bible Commentary
© 1989 by The Order of St. Benedict, Inc.
The Lituigical Press Collegeville, Minnesota
Publicado em português sob licença de The Liturgical Press
Todos os direitos reservados
ISBN: 0-8146-1484-1

TRADUÇÃO:
Barbara Theoto Lambert

REVISÃO:
Bagoberto Bordin
Maurício Balthazar Leal

ASSESSORIA CIENTÍFICA:
Johan Korings

DIAGRAMAÇÃO:
iíaurélio Barbosa

Edições Loyola
Rua 1822 n° 347 - Ipiranga
04216-000 São Paulo, SP
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04299-970 São Paulo, SP
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obra pode ser reproduzida ou transm itida por
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ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou
arquivada em qualquer sistema ou banco de da­
dos sem permissão escrita da Editora.
ISBN da obra: 85-15-01742-3
ISBN do volume I: 85-15-01945-0
2® edição: setembro de 1999
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1999
 Plano da obra
V o L U M E

APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO BRASILEIRA

PREFÃCIO

INTRODUÇÃO À BÍBLIA

PENTATEUCO
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio

PROFETAS ANTERIORES
Josué, Juizes, 1 Samuel, 2 Samuel, 1 Reis, 2 Reis

V O L U M E

II

PROFETAS POSTERIORES
Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas,
Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias

ESCRITOS
Salmos, Jó, Provérbios, Rute, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes (Coélet),
Lamentações, Ester, Daniel, Esdras, Neemias, 1 Crônicas, 2 Crônicas

LIVROS DEUTEROCANÔNICOS
Judite, Tobit (Tobias), 1 Macabeus, 2 Macabeus, Sabedoria, Sirácida (Eclesiástico), Baruc

V O L U M E

III

EVANGELHOS E ATOS
Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos dos Apóstolos

CARTAS
Romanos, 1 Coríntios, 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses,
1 Tessalonicenses, 2 Tessalonicenses, 1 Timóteo, 2 Timóteo, Tito,
Filêmon, Hebreus, Tiago, 1 Pedro, 2 Pedro, 1 João, 2 João, 3 João, Judas

APOCALIPSE
Apocalipse
 ABREVIATURAS
LIVROS BÍBLICOS
(em Srifo, os livros deuterocanônicos)

Ab Abdias Jt Jiidite
Ag Ageu Jz Juizes
Am Amós Lc Lucas
Ap Apocalipse Lm Lamentações
At Atos Lv Levítico
Br Baruc Mc Marcos
Cl Colossenses IM c 1 Macabeus
ICor 1 Corintios 2Mc 2 Macabeus
2Cor 2 Corintios Ml Malaquias
ICr 1 Crônicas Mq Miquéias
2Cr 2 Crônicas Mt Mateus
Ct Cântico dos Cânticos Na Naum
Dn Daniel Ne Neemias
Dt Deuteronômio Nm Números
Ecl Eclesiastes (Coélet)
Os Oséias
Ef Efésios
IPd 1 Pedro
Esd Esdras
z7PH
r Li 2 Pedro
Est Ester Dr
ri Provérbios
Ex Êxodo Drvi
Km Romanos
Ez Ezequiel
11Ixb
Pq 1 Reis
F1 Filipenses 7Do
ZK.S 2 Reis
Fm Filêmon
Rt Rute
G1 Gálatas
Gn Gênesis - Sb Sabedoria
Hab Habacuc Sf Sofonias
Hb Hebreus SI Salmos
Is Isaías ISm 1 Samuel
Jd Judas 2Sm 2 Samuel
J1 Joel Sr Sirácida (Eclesiástico)
Jn Jonas Tb Tobit (Tobias)
Jo João Tg Tiago
Jó Jó ITm 1 Timóteo
IJo 1 João 2Tm 2 Timóteo
2Jo 2 João ITs 1 Tessalonicenses
3Jo 3 João 2Ts 2 Tessalonicenses
Jr Jeremias Tt Tito
Js Josué Zc Zacarias

OUTRAS ABREVIATU

NAB New American Bible RSV Revised Standard Version

NEB New English Bible TEB Tradução Ecumênica da Biblia
V., vv. verslculo(s)

NOMES b íb l ic o s

Grafamos os nomes biblicos como a Tradução Ecumênica da Biblia

(TEB — Ed. Loyola); cf. também as “Equivalências” (ed. integral, pp. XIV-XV)
 SUMARIO

A presentação da e d K ç ã o b r a s i l e i r a .............................. 9

P r e f á c i o .......................................................................................................... 11

I n t r o d u ç ã o à B í b l i a ........................................................................ 13
D ianne Bergant, CSA
Introdução aos profetas pós-exílicos (Mary Margaret Pazdan, OP) / 37 —
Introdução à Literatura sapiencial (Lawrence E. Boadt, CSP) / 42 —
Introdução aos Cinco Rolos (James A. Fischer) / 50 — Introdução às
novelas bíblicas (Irene Nowell, OSB) / 51 ■

P e n t a t e u c o ................................................................................................. 53
GÊNESIS.......................................................................................................... 55
PauUne A. Viviano
ÊX O D O ..............................................................................................: ............ 91
John F. Craghan
LEVÍTICO........................................................................................................ 121
Wayne A. Turner
NÚMEROS....................................................................................................... 145
Heleno Kenik M ainelli
DEUTERONÔMIO......................................................................................... 187
Leslie J. Hoppe, OFM

Profetas a n t e r i o r e s ........................................................................ 215

JO S U É .............................................................................................................. ■ 217
John A. Grindel, CM
JUÍZES............................................................................................................... 233
John A. Grindel, CM
1 E 2 SAMUEL................................................................................................. 247
Paula J. Bowes
1 E 2 R E IS ........................................................................................................ 273
A lice L. Laffey, RSM
 APRESENTAÇÃO DA
EDIÇÃO BRASILEIRA

crescente interesse pelo estudo da Bíblia entre nós fez sentir a necessidade de
um com entário com pleto prático e acessível. Publicada prim eiro em fascículos
e depois, em 1989, num volum e único pela Liturgical Press do m osteiro bene­
ditino de C ollegeville (U SA ), a presente obra vem preencher essa lacuna. Pre­
parada po r reconhecidos especialistas — m ulheres e hom ens — , caracteriza-se pela sim ­
plicidade, pela objetividade e pela abertura para leitores de diversos credos ou sim ples­
m ente interessados em com preender m elhor a experiência de fé que se exprim e no docu­
m ento básico das tradições ju d aica e cristã.
Será certam ente bem -vinda para os estudantes de religião, ministros, cooperadores
pastorais e pessoas em busca de aprofundam ento religioso em geral.
O peram os algum as adaptações, principalm ente adotando o texto e a ordem da Tra­
dução E cum ênica da Bíblia (TEB — Ed. Loyola) e elim inando um a página d a Introdu­
ção dedicada às traduções da B íblia em língua inglesa.

Johan Konings, SJ
Aos 40 ANOS DE E dições L oyola
São Paulo, 1999
 PREFACIO

estem unham os, nos dias de hoje, um interesse crescente pela Bíblia. H om ens e
m ulheres de todos os m odos de vida inscrevem -se em cursos, assistem a sem i­
nários e organizam grupos de estudos. A reflexão orientada sobre a tradição
bíblica é com ponente fundamental de programas de evangelização como The Rite
o f C hristian Initiation o f A dults (RCIA ) e RENEW. G rupos de oração procuram líderes
que possam guiá-los além da interpretação particular, para as profundezas espirituais da
tradição. As pessoas procuram um a com preensão nova e voltam-se para estudiosos bíblicos
que possam proporcioná-la. O s não-especialistas já n ã o estão satisfeitos com um entendi­
m ento apenas religioso da Bíblia. Fazem perguntas literárias, históricas e teológicas que
exigem respostas sábias.
Esforçando-se para satisfazer essa necessidade, The Liturgical Press encarregou trinta
e quatro especialistas para preparar cadernos individuais que, juntos, interpretassem todo o
cânon católico rom ano. Utilizando os m étodos críticos mais recentes e incluindo os frutos
da cultura contemporânea, em 1986 eles com pletaram o CoUegeville Bible Commentary,
série de trinta e seis livretes, todos incluindo perguntas para recapitulação e discussão. A
am pla seleção de autores resultou em um a variedade de posições teológicas e abordagens
metodológicas, o que contribuiu para a riqueza do empreendimento. Houve, do princípio ao
fim , um a tentativa consistente de ser sensível às preocupações contemporâneas. Este projeto
foi completado em pouco m ais de cinco anos, dessa form a assegurando o caráter atual da
interpretação. Em 1988, os autores dos comentários do Novo Testamento refizeram suas
obras à luz da edição revista do Novo Testamento da New A merican Bible.
Este volume reúne os eom entários de todos os trinta e seis cadernos. Sua abrangência
faz dela um recurso valioso, que permite ao leitor consultar com facilidade a interpretação de
todos os livros bíblicos. Além de ser usada para o estudo bíblico, tam bém serve de referência
para o planejamento litúrgico, para a preparação de homílias e para os serviços de oração
bíblica. A obra é resposta admirável à injunção do Concilio Vaticano II: “É preciso que o
acesso à Sagrada Escritura seja am plam ente aberto aos fiéis” (Dei Verbum, n° 22).

DIANNE BERGANT, C.S.A .

Coordenador geral. Comentário do Antigo Testamento

ROBERT J. KARRIS, O.F.M .

Coordenador geral. Comentário do Novo Testamento
 INTRODUÇÃO A BÍBLIA
D ia nne Ber gan t, CSA
ma introdução à Bíblia não é apenas
um prefácio à obra toda, algo elemen­
tar ou preliminar, que prepara o cami­
nho para a parte principal. É primor­
dialmente uma disciplina teológica por
seus próprios méritos e tem como norma examinar
a origem dos livros individuais da Bíblia, a história
do cânon e a história da tradição textual. Embora
não seja uma introdução nesse sentido exato, este
artigo trata de algumas questões que se incluem no
âmbito de uma introdução.
Como, nesta obra, as introduções aos livros da
Bíblia abordam questões pertinentes à origem dos
livros específicos, tais informações encontram-se
no comentário respectivo. Neste artigo damos aten­
ção à origem, ao crescimento e ao desenvolvimento
das tradições bíblicas em geral — tradições que,
em última análise, abrangem o cânon da Sagrada
Escritura. Depois esboçamos a história do cânon e
a “critica textual”, a documentação do texto. A for­
mação da tradição, o desenvolvimento do cânon e
a critica textual são assuntos que parecem seguir um
ao outro de maneira lógica. Como a Bíblia reivin­
dica a autoria divina, também examinamos o papel
da atividade de Deus neste processo de composição.
Por último, descrevemos os instrumentos interpreta-
tivos necessários para entender a Bíblia.
À primeira vista, o material aqui tratado pode
parecer esotérico e interessante apenas para o estu­
dioso profissional da Escritura. Entretanto, depois
de um exame mais rigoroso, deve ficar claro que
muitas das perguntas básicas que a pessoa comum
faz sobre a Bíblia estão respondidas nestas páginas:
Que livros pertencem à Bíblia? Por que algumas
igrejas têm mais livros que outras? Qual é a melhor
versão? O que a Bíblia realmente significa? As par­
tes foram organizadas de modo a responder a algu­
mas delas à medida que surgirem.
Talvez uma das primeiras perguntas feitas pelo
principiante no estudo da Escritura seja: Que livros
pertencem à Bíblia? Em seguida vem; Por que al­
gumas igrejas têm mais livros que outras? São per­
guntas que dizem respeito ao cânon da Bíblia e são
tratadas na primeira parte. Em vez de apenas dar
as informações concretas sobre o cânon e explicar
o papel que a autoridade desempenhou e con­
tinua a desempenhar nesta área, a primeira parte
tenta descrever o crescimento das Escrituras a partir
de seus primórdios até a época em que se decidiu
“encerrar o cânon”. Nosso conhecimento do desen­
volvimento das tradições, sejam elas religiosas, so­
ciais, políticas ou literárias, ajudou-nos em nossa
investigação desse processo de criação e desenvol­
vimento. Nosso conhecimento da história socio-
política e religiosa do antigo Israel e do cristianis­
mo primitivo também deu contribuições significa­
tivas nessa área. Parece que o prpcesso de forma­
ção da tradição foi dinâmico, não estático, empreen­
dimento comunitário, não realização individual,
isto é, obra de uma comunidade histórica, não de
um único autor.
Nessa mesma parte, tratamos da questão da
autoridade bíblica. O que é? Quem a tem? Como
a obtiveram? Demos realce à importância de movi­
mentos históricos e acontecimentos específicos.
Assim, vemos a Bíblia crescendo quando o povo
cresce, mudando com as mudanças do povo e se
tomando padronizada à medida que o povo busca
estabilidade. Ver as Escrituras a partir dessa pers­
pectiva deve ajudar o leitor a valorizar a descrição
da Bíblia como “a palavra de Deus em palavras
humanas”.
Mas o exame detalhado da dimensão humana
da composição da Bíblia não responde adequa­
damente à pergunta fundamental sobre sua nature­
za como Escritura Sagrada. Por que ela é a palavra
de Deus? Como Deus falou essa palavra em primei­
ra instância? Como Deus expressa essa palavra
hoje? Essas perguntas tocam no tema da inspiração,
centro da segunda parte, bem menor porque supõe
a descrição da formação da tradição esboçada na
parte anterior. Apresenta um entendimento da ins­
piração que a considera dinâmica e atuante em si­
tuações e acontecimentos humanos comuns. Tal vi­
são de modo algum deprecia as alegações de auto­
ridade da Bíblia; ao contrário, amplia o objetivo da
atividade divina e coloca o exercício da autoridade
honestamente dentro do contexto da comunidade
de fiéis. 13
 INTRODUÇÃO Â BÍBLIA
A alegação de que a Bíblia é inspirada influencia
a maneira de perceber sua veracidade. A compreen­
são humana é limitada e o julgamento humano está
sujeito a erro, mas com certeza a palavra de Deus
é fidedigna, Nos últimos anos vimos várias tentati­
vas de solucionar o dilema da autoria dual (divina e
humana) e as forças e fraquezas de cada solução.
Examinamos algumas delas nesta parte.
Mesmo o estudioso bíblico principiante logo
percebe a existência de grande variedade de edi­
ções da Bíblia. A menos que todos os membros de
um grupo de estudos bíblicos consultem a mesma
edição, pode haver confusão. Essa confusão resulta
de traduções diferentes ou do uso de fontes diferen­
tes para elaborar o texto. A terceira parte apresenta
um breve resumo da história dos textos e versões
que sobreviveram às devastações do tempo e formam
a base das Bíblias atuais.
O significado do texto é, em última análise, nador
questão mais importante. Saber como as tradições
se desenvolveram, acreditar que foram inspiradas
por Deus, recuperar versões antigas delas, tudo isso
tem pouca importância se essas tradições perma­
necem ininteligíveis. A hermenêutica proporciona
instrumentos e métodos para interpretação, descri­
tos na última parte. À proporção que cada vez mais
pessoas se envolvem no estudo sério da Bíblia, ex­
plicações simplórias das Escrituras são questiona­
das e, às vezes, até rejeitadas. Continua a haver per­
plexidade diante de interpretações conflitantes.
Além disso, o uso de passagens bíblicas para forta­
lecer 0 ponto de vista do intérprete tomou-se muito
popular na sociedade, até mesmo quando outro es­
pecialista apresenta uma interpretação contraditória.
Tudo isso indica a necessidade de entender os meios
de interpretação a fim de julgar a validade e a per­
tinência do uso atribuído à Bíblia.
De modo algum esta última parte pretende
abranger todas as abordagens interpretativas. Sua
intenção é explicar os métodos básicos usados nos
estudos contemporâneos. Os autores dos comentá­
rios neste volume freqüentemente identificam os
métodos que empregaram em sua pesquisa. As defi­
nições encontradas nesta parte talvez lancem algu­
ma luz nessa pesquisa e, assim, nas descobertas ofe­
recidas pelos autores respectivos.
Como em toda obra, outro autor pode perceber
o material em discussão de maneira diferente. Um
dos objetivos primordiais do C omentário bíblico é
trazer as descobertas da cultura contemporânea ao
alcance do estudioso bíblico principiante. Essas des­
cobertas podem ser muito novas para alguns, nem
tão novas para outros. Por causa da ampla seleção
de autores, estes comentários oferecem uma varie­
dade de posições teológicas e abordagens metodo­
lógicas. Houve uma tentativa consistente de ser
sensível às preocupações contemporâneas. Embora
tenha havido esforço para evitar a referência a Deus
14 em linguagem específica de gênero, a falta de con­
senso nesta área reflete-se nos estilos diferentes dos
autores. Apresentamos a obra aqui empreendida
como parte do processo permanente de interpreta­
ção biblica.
O CANON
CANON E AUTORIDADE
Antes mesmo de abrir a Bíblia para iniciar o
estudo de seu conteúdo, o pesquisador sério enfren­
ta diversas perguntas básicas. Que é a Bíblia? Como
a Bíblia adquiriu sua forma atual? Quem é respon­
sável pelo conteúdo da Bíblia? Por que a Bíblia per­
durou através dos séculos? É a Bíblia relevante para
0 mundo contemporâneo? Embora respostas bem
conhecidas a essas peiguntas possam ocorrer imedia­
tamente, é freqüente o esquecimento de um denomi­
a comum muito importante: toda resposta supõe
alguma dimensão de autoridade.
Que é a Bíblia? É uma coleção de tradições reli­
giosas reverenciadas como sagradas porque foram
inspiradas por Deus. O reconhecimento oficial pela
comunidade do caráter inspirado dessas tradições
conferiu-lhes status “canônico”. Isso significa que
gozam de um status de autoridade que nenhuma
outra tradição da comunidade possui.
Como a Bíblia adquiriu sua forma atual? A
história de sua criação e seu desenvolvimento é
longa e complicada e será tratada mais adiante.
Aqui basta dizer que as tradições que foram in­
corporadas à Bíblia e a forma que assumiram de-
pienderam de escolhas dentro da comunidade, feitas
por pessoas e grupos com autoridade para assim
escolher.
Quem é responsável pelo conteúdo da Bíblia?
Proeminentes legisladores, profetas e mestres, men­
cionados pelo nome nos próprios textos, não foram
os únicos responsáveis pelo material bíblico; houve
também redatores e compiladores que aprimoraram
e selecionaram material do vasto tesouro literário e
teológico da comunidade. Preservaram o que consi­
deraram normas religiosas e, assim, exerceram sig­
nificativa autoridade na comunidade.
Por que a Bíblia perdurou através dos séculos?
Reconhecendo que contém material originário de
épocas do passado distante e de culturas tão dife­
rentes da nossa, só podemos nos maravilhar com
sua permanência. A razão está no fato de que, ao
longo dos séculos, os fiéis permaneceram convictos
de seu caráter de autoridade. Eles também conside­
raram seu conteúdo normativo e tentaram moldar
sua vida de acordo com ela.
É a Bíblia relevante para o mundo contemporâ­
neo? Esta pergunta está no centro da maioria dos
debates bíblicos de nosso tempo. Não perguntamos
simplesmente: como a Bíblia fala ao mundo moder­
no?, mas pode a Bíblia falar ao mundo moderno?

A primeira indagação diz respeito à interpretação, ' breve descrição do processo dinâmico conhecido
a segunda, à questão da autoridade. Tem a Bíblia
ainda hoje valor normativo para homens e mulhe­
res? Não basta dizer que é inspiradora. A questão
é: E inspirada e, portanto, tem autoridade?
Ao abordar o caráter de autoridade da Bíblia,
precisamos lidar com algumas questões bastante
distintas, mas inter-relacionadas: 1) Por que emer­
giram essas tradições e não outras? 2) Quem tinha
o direito de decidir sobre elas? 3) A Bíblia é rele­
vante e ainda normativa?
Por que essas tradições?
Este estudo deve começar com uma breve
descrição instrumental de “tradição bíblica”. Em
palavras simples, tal tradição é, em essência, uma
afirmação sobre o auto-entendimento do antigo
Israel e/ou da comunidade cristã primitiva. Não só
os definiu especificamente conforme entendiam a
si mesmos como também orientou o desenvolvi­
mento posterior de seu auto-entendimento.
A expressão “povo de Deus” serve de exem­
plo. Nossos antepassados religiosos acreditavam que'
eram “o povo de Deus”, e esse conceito não só os
identificou, mas também moldou o caminho que
seguiram através da história e lhes explicou a ra­
zão de continuarem a sobreviver. Para eles, ser “o
povo de Deus” significava que Deus os chamara e
os conduzia e protegia. Acreditavam ser destinatá­
rios da revelação divina e suas tradições eram teste­
munhas dessa revelação. Na medida em que expres­
sam com autenticidade o auto-entendimento fun­
damental do povo, tais tradições podem ser conside­
radas munidas de autoridade.
Tradições ligeiramente divergentes e, às vezes,
até muito diferentes podiam surgir e, na verdade,
surgiram. Exemplos de tal diversidade incluem os
dois relatos da criação (Gn 1,1-2,4a e Gn 2,4b-25)
e os vários relatos da conversão de Paulo (G1 1,13­
17; At 9,1-9; 22,6-11; 26,12-18). Tradições diferen­
tes não causavam necessariamente tensões indevidas
dentro da comunidade, desde que a identidade do
povo não fosse ameaçada. Entretanto, quando havia
uma crise de identidade, a sobrevivência do grupo
exigia que se chegasse a alguma espécie de acor­
do. Esta crise de identidade freqüentemente prece­
dia uma crise de autoridade. Qual das diversas afir­
mações de auto-entendimento era autêntica? Que
tradições podiam reunir as forças dispersas dentro
da comunidade? As que, subsequentemente, funcio­
nariam como versão normativa da identidade pró­
pria da comunidade. Serviríam como uma espécie
de “cânon”, uma espécie de autoridade dentro da
comunidade. Continuariam como tal enquanto ex­
pressassem a identidade do grupo.
Os estudiosos concordam que nem todas as tra­
dições sagradas do antigo Israel e/ou do cristianismo
primitivo foram conservadas. Entre as que foram,
nem todas gozam do mesmo grau de autoridade. Esta
o CANON
como formação da tradição explica por que acontece
isso. Quando a experiência de vida e os eventos da
história forçavam-no a procurar um significado, o
povo passava a entender a si mesmo e a suas rela­
ções com Deus em termos dessa história. Assim,
tradições surgiam, desenvolviam-se e muitas vezes
tinham de ser remodeladas conforme o exigiam as
circunstâncias da vida.
A explicação definitiva para a durabilidade de
uma tradição parece ter sido sua capacidade de per­
manecer fundamentalmente inalterada e, mesmo
assim, aplicável a novas situações. Se não pudesse
ser remodelada nem renovada, deixaria de ter auto­
ridade e seu valor revelador seria questionável. Em
sentido bastante real, a autoridade bíblica está pre­
sente na interação entre uma tradição autêntica e a
comunidade viva.
Quem decide?
Reconhecer o caráter oficial do processo conhe­
cido como formação da tradição não é negar o pa­
pel desempenhado por pessoas expressivas dentro
da comunidade. Alguém precisava tomar decisões
muito importantes para o resto do grupo. Entretan­
to, essas pessoas expressivas não criaram simples­
mente entendimentos ou doutrinas religiosas inde­
pendentes da comunidade. Algumas podem ter tido
intuições criativas singulares, mas o que quer que
produzissem tinha de ser reconhecido e referenda­
do pelos outros como interpretação válida da fé co­
munitária. Isso explica por que algumas das procla­
mações dos profetas, por exemplo, não tiveram acei­
tação imediata. Talvez a maioria do povo não tenha
considerado autênticas suas proclamações. Em tais
casos, muitas vezes foram os discípulos dos profe­
tas que preservaram os ensinamentos. Somente em
época mais tardia, o caráter de autoridade dos pro­
nunciamentos obteve amplo reconhecimento.
Segundo essa visão, uma variedade de forças
agia para modelar e remodelar a consciência e o
auto-entendimento do povo. Isso significa que não
havia uma localização única de autoridade. Alguns
indivíduos e grupos originavam as tradições; outros
contribuíam para seu desenvolvimento e sua remo­
delação; outros contribuíram para a determinação
de seu lugar e importância no auto-entendimento
comunitário. Os que ocupavam posições de lide­
rança dentro da comunidade podem ter autenticado
as tradições, mas o povo precisava confirmar essa
decisão.
A Bíblia é relevante e ainda normativa?
Esta pergunta pode ser feita igualmente por
fiéis e infiéis. Em cada caso, parte de determinado
entendimento da natureza do material e evoca res­
posta diferente. Qualquer um pode sentir-se profun­
damente tocado pela qualidade inspirada da litera- 15
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
tura, religiosa ou não. O fiel, entretanto, aceita as
tradições da comunidade de fé como sendo, de cer­
to modo, vinculadoras. Vê-as como algo que não só
explica a fé, mas também forma os membros dentro
dessa fé. São as normas e os padrões que orientam
a vida dos fiéis. Exercem um tipo de autoridade
sobre essas pessoas. Para que fazem isso é questão
da fé obediente da comunidade de fiéis. Por que o
fazem é questão de inspiração. Como falam a uma
nova situação é questão de interpretação.
O cânon, então, tem a ver com autoridade.
uma afirmação do passado que continua a ser atuan­
te no presente. Como literatura, é uma coleção dos
escritos religiosos formativos da comunidade. Os
fiéis crêem que esses escritos tiveram suas origens
na revelação e que, como memória histórica, conti­
nuam hoje a ser fonte de revelação.
O CRESCIMENTO DA TRADIÇÃO
O estudo da tradição bíblica é um empreendi­
mento bastante complexo. Inclui não só a análise
do testemunho final ou “canônico” da comunida­
de, mas também o exame do longo e complicado
processo que deu origem a esse testemunho. Não
basta ver a tradição como um relato concluído. De­
vemos também valorizar o processo de tradição que
criou e aperfeiçoou essa articulação. Um breve
exame desse processo esclarecerá o que, de outro
modo, pode ser bastante confuso.
Uma das principais características desse pro­
cesso de transmissão era a interpretação e aplicação
constante de tradições mais antigas. O desenvolvi­
mento da tradição não era apenas a transmissão de
formulações estáveis; também incluía o processo re­
petido de atualização de material mais primitivo
dentro de novos contextos. Mudanças nos universos
político, social ou religioso necessitavam de novas
expressões da fé fundamental, e também da articu­
lação de novas intuições. A interação entre aconte­
cimentos históricos e forças dentro da comunidade
determinava a forma da tradição, forma que podia
mudar em outra ocasião e outro lugar. Esse proces­
so teria continuado até hoje se diversos eventos sig­
nificativos não forçassem a comunidade a preferir
certas afirmações a outras e a lhes conferir autori­
dade. A destruição do templo salomônico no tempo
do Exílio babilônico (587-538 a.C.) foi um desses
eventos. Um segundo divisor de águas foi a destrui­
ção do templo herodiano na época do surgimento
do cristianismo primitivo (70 d.C). Cada uma dessas
catástrofes desempenhou importante papel na esco­
lha dos materiais tradicionais que deveríam ser pre­
servados, na classificação específica do que era trans­
mitido e na sua interpretação subseqüente como teo­
logia normativa.
Todos estão familiarizados com a designação
16 “tribos de Israel”. Embora os estudiosos diviijam
em seu entendimento da história das origens tribais,
muitos concordam que a organização mais primi­
tiva do povo era a de uma federação unida de ma­
neira imprecisa, formada de clãs e tribos, cada uma
mantendo suas tradições singulares e ardentemente
fiel a seus chefes e líderes militares. É provável
que as tradições provenientes de suas experiências
tenham sido preservadas em formas poéticas, en­
quanto a estabilidade de suas estruturas sociais era
salvaguardada pelas leis. Essas tradições primi­
Étivas eram encaixadas em sagas e outras narrativas,
e seus detalhes podiam mudar, e realmente muda­
vam, com facilidade ao ser repetidamente narra­
das, enquanto as tradições essenciais permaneciam
intatas.
Esse foi um período de grande fluidez (c. 1200­
1040 a.C.). Grupos de pessoas mudavam de situa­
ção e transferiam sua lealdade social e política com
bastante freqüência. A medida que povos diferentes
se amalgamavam, suas tradições eram reunidas em
uma história comum. Embora essa história apareça
hoje bastante unida, o processo de assimilação ja­
mais apagou por completo as características que
diferenciam um grupo do outro. Essas característi­
cas revelam-se no estudo cuidadoso do texto.
A mudança sociopolítica de uma federação de
tribos para uma nação sob a administração de um
rei (c. séc. X a.C.) exigiu o exame do relaciona­
mento do povo com seu Deus. O povo foi forçado
a rever suas tradições religiosas, reafirmando umas
e reformando outras. As narrativas tribais anterio­
res foram reformuladas com uma tendência a favor
da monarquia. Como a situação contemporânea in­
fluenciava a maneira de entender o passado, era ine­
vitável que essas novas interpretações se tomas­
sem parte da narrativa original de maneira tal que
detalhes de períodos diferentes agora constavam
de um único relato. Esse processo interpretativo
explica por que a tradição conhecida como javis-
ta (J) é ao mesmo tempo epos narrativo da histó­
ria israelita primitiva e justificação da monarquia
davídica.
Em outra época e a partir de outra perspectiva,
formou-se a tradição agora conhecida como eloísta
(E). Basicamente, era um novo relato da mesma his­
tória narrada pela tradição javista, mas as preocupa­
ções não eram as mesmas e por isso o enfoque era
diferente. Durante aquele período, profetas como
Amós e Oséias, no norte, e Isaias, no sul, também
clamavam por uma reavaliação das crenças e práticas
em uso pelo povo. Embora um pouco dessa teologia
já se tivesse estabelecido com certo grau de autori­
dade, grande parte dela ainda estava em mudança.
Quando o reino do norte foi derrotado pelos
assírios (722 a.C.), as tradições originadas ali foram
incorporadas às do sul. Assim, descrições diferentes
dos antepassados tribais foram reunidas em uma só;
os costumes legais de uma comunidade tomaram­
-se parte da lei da outra. A seleção, a codificação e

a cristalização dessas diversas tradições resultou em
um rico e, às vezes, contraditório testemunho da
ação de Deus na história da nação. Esse testemunho
tomou-se a história oficial, o auto-entendimento de
autoridade para o povo. Provavelmente, as mensa­
gens dos profetas primitivos foram proclamadas
muitas vezes, enquanto puderam ser adaptadas às
necessidades do povo. É quase certo terem sido pre­
servadas por seguidores dos profetas, e esses disci-
pulos fizeram as adaptações necessárias, contudo
apropriadas.
A extinção do reino do norte também teve reper­
cussões teológicas no sul. Tomou-se catalisadora para
a reformulação das histórias do povoamento da terra,
histórias que não só mencionavam as razões da queda
como serviam de advertência para o sul. Houve reno­
vada atenção à Lei e ao ressurgimento da crítica
profética. Essas preocupações e a subseqüente refor­
mulação de tradições mais primitivas prepararam o
terreno para as teologias deuteronômista (D) e sacer­
dotal {priestly, P).
Como afirmamos acima, a destruição do tem­
plo, a queda da monarquia e a deportação do povo
desempenharam certo papel na formação das tradi­
ções. E provável que o período decisivo do cativeiro
tenha moldado as duas importantes partes biblicas
conhecidas como a Lei e os Profetas. As tradições
históricas, proféticas e legais primitivas receberam
a forma que, em sua maior parte, foi transmitida
até os dias de hoje. O texto exato da história primi­
tiva de Israel, inclusive a Lei, foi então estabilizado
e não deveria mais receber nenhuma reinterpretação
significativa. Em Esd 7,14 e Ne 8,1, encontram-se
referências à existência de uma versão da Lei e sua
importância para a comunidade pós-exílica. Livros
proféticos como Jeremias e Ezequiel seriam ainda
um tanto ampliados e revisados à medida que se
acrescentava material novo, mas depois de cessa­
das essas ampliações e revisões o corpus profético
também recebeu uma espécie de posição de autori­
dade. No século II, 2Mc 15,9 menciona essa posi­
ção. A comunidade de fiéis agora reverenciava essas
tradições como normativas. O que as instituições da
monarquia, do sacerdócio e da profecia haviam feito
ao moldar a identidade da comunidade pré-exílica,
as tradições autoritativas surgidas da situação afliti­
va do Exílio fizeram para a identidade do judaísmo
mais tardio.
Esses livros de material literário e teológico nar­
raram os primórdios do povo, mas terminaram a
história com o povo no limiar da terra prometida,
dessa forma proclamando uma mensagem de espe­
rança para a nação que almejava ter, no futuro,
uma terra sua. Agora a história nacional descrevia
a prosperidade como dependente da fidelidade ao
compromisso da aliança, explicando assim a atual
situação difícil da nação como julgamento pelos
fracassos passados e também incentivo ao arrepen­
dimento futuro. O material profético estabelecia a
o CANON
credibilidade dos profetas maiores como porta-vo­
zes de Deus. Seus ensinamentos deviam ser obser­
vados. Assim, a recém-formada comunidade exílica
reafirmava suas tradições normativas, preservan­
do-as para o futuro.
As necessidades da comunidade pós-exílica exi­
giram novas e diferentes tradições religiosas. Inter­
pretações teológicas de eventos, pronunciamentos
proféticos, reflexões teológicas sobre a vida, narra­
tivas didáticas, hinos e outros cânticos cultuais sur­
giram como parte do tesouro religioso do período
do segundo templo. A importância dessas tradições
era foco de disputa dentro da comunidade.
Parece que os samaritanos se desligaram da
comunidade que regressara do Exílio por volta de
300 a.C., e até hoje os que permanecem fiéis à tra­
dição samaritana consideram inspirado apenas o
Pentateuco, ou Torá. Os saduceus da era cristã pri­
mitiva eram herdeiros desse mesmo ponto de vista.
Só bem depois do início da era cristã o judaísmo
decidiu sobre a autoridade das Escrituras conheci­
das como “os Escritos”. Na época, havia diversas
coleções de material inspirado, todas a reivindicar
uma posição privilegiada dentro da comunidade.
A expansão do pensamento e da língua helenís-
ticos inspirou a tradução das tradições para o grego.
Essa versão veio a ser conhecida como Septuagin-
ta (LXX) ou versão alexandrina. O primeiro nome
vem de uma tradição que afirmava terem setenta
(LXX) tradutores produzido a mesma tradução, em­
bora trabalhassem independentemente. A segunda
designação vem do nome da cidade de origem. Esta
versão contém alguns livros não encontrados na Bí­
blia hebraica. Parece que a versão hebraica e a grega
gozavam do mesmo prestígio, embora em comuni­
dades diferentes.
Uma terceira coleção preservada desse período
pertencia a um grupo sectário conhecido como es-
sênios. Parte da biblioteca dessa comunidade foi en­
contrada nas grutas de Qumran, povoado no deserto
judaico. Parece que os essênios incluíram mais livros
em sua Escritura do que a Septuaginta e as Escritu­
ras hebraicas mais tradicionais da época. A existência
desses diversos “cânones” evidencia o que afirma­
mos acima sobre a diversidade de tradições religio­
sas dentro da comunidade de fiéis. Essa diversidade
resultou de diferentes perspectivas de vida, bem co­
mo de diferentes formas hermenêuticas ou interpre-
tativas de abordar o material.
O “evento de Cristo” constituiu um impacto
comparável ao de outros eventos reveladores da his­
tória do “povo de Deus”, pois, como eles, forçou os
fiéis a reexaminar seriamente suas crenças. Entre­
tanto, era radicalmente diferente deles em diversos
pontos significativos. Não foi apenas outra reve­
lação de Deus — os fiéis insistem que foi a revela- .
ção de Deus. Por essa razão, tradições mais primiti­
vas podem agora ser vistas sob uma luz inteiramente
nova. Nessa época, o judaísmo era uma religião do 17
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
“Livro”; o cristianismo, por outro lado, é uma re­
ligião do “Cristo vivo”. Os Evangelhos retratam
Jesus proclamando autoridade por seus próprios
méritos. Ele não parecia colocar-se dentro da cor­
rente de autoridade tradicional, mas invocava dire­
tamente a autoridade divina. Além disso, explicava
as tradições de Israel em termos de si mesmo. Aqui,
de maneira clara, Jesus, não a Bíblia, é o centro da
autoridade. Daí, então, é inevitável que suija a pergun­ fez. Apesar das expressões: “a Lei ou os Profetas”
ta final: Que relevância tem a Bíblia hebraica para a
experiência e para a teologia cristãs? É uma pergunta
que se apresentou aos cristãos primitivos e, desde
então, apresenta-se a toda geração de cristãos.
Como o próprio Jesus, os primeiros cristãos ha­
viam se formado dentro das tradições bíblicas anti­
gas. Assim, aceitavam-no ou o rejeitavam à luz dessas
tradições. As Escrituras tomaram-se a base de sua
fé nele como S enhor e ele passou a ser o centro por
intermédio do qual eles entendiam as Escrituras. Um
novo grupo religioso nasceu dessa fé em Jesus e
dessa reinterpretação das tradições. O novo fenôme­
no era a fonte de conflito dentro da comunidade ori­
ginal. A perspectiva radical de Jesus foi desafiada
pelas autoridades religiosas da época. Os Evange­
lhos preservaram recordações dessa nova interpreta­
ção (veja Mt 5,17-48). Seus seguidores enfrentaram
a mesma oposição. Estêvão foi apedrejado por essa
razão (veja At 7) e o próprio Paulo sofreu por causa
de sua pregação (veja At 14,4s; 19).
O novo ensinamento de Jesus e o favorecimentoxandria, Tertuliano, Orígenes e Eusébio, preserva­
dele por seus seguidores deu origem a uma nova
tradição que logo gozou de proeminência paralela
às Escrituras (veja 2Pd 3,2). Entretanto, isso não
aconteceu sem conflito interno. Dentro da comuni­
dade cristã havia os que sentiam que a Lei era não
apenas irrelevante, mas também um estorvo. Essa
atitude aparecia com mais freqüência nas Igrejas
estabelecidas por Paulo entre os pagãos (veja G1
3,23-4,7). Outros apegavam-se com tenacidade à
observância da Lei como necessária a si mesmos e
também aos novos convertidos. As comunidades ju-
deu-cristãs, em esjjecial a Igreja de Jerusalém e um
grupo conhecido como ebionitas, representavam essa
posição (veja At 15,1-4). Mais uma vez, a questão
era o relacionamento de tradições mais primitivas
com uma nova revelação.
Diversas forças atuavam durante aquele período.
A comunidade cristã expandia-se e assumia várias
formas diferentes e flexíveis. Na comunidade judai­
ca, da qual faziam parte muitos cristãos, as tradições plicada. Originalmente, significava “cana” e passou
bíblicas moviam-se para uma forma definitiva. Livros
de alguma forma associados a grandes figuras do
passado hebreu recebiam proeminência não conce­
dida a outros escritos. A cultura moderna não co­
nhece todos os critérios para tomar essas decisões e,
portanto, muitos detalhes do encerramento do cânon
permanecem obscuros. Uma coisa podemos dizer:
nem a coleção da Septuaginta, nem a de Qumran
18 tomaram-se o cânon oficial da comunidade judaica.
Isso é interessante, pois estudos mostram que a ver­
são de uso mais popular na época era a Septuaginta,
em especial entre os cristãos. Quando citavam as
tradições mais antigas, em geral referiam-se à versão
grega.
Embora a comunidade judaica possa ter toma­
do algumas decisões sobre a lista oficial, a comu­
nidade cristã, que usava as mesmas fontes, não o
(Mt 5,17) e “na Lei de Moisés, nos Profetas e nos
Salmos” (Lc 24,44), a controvérsia continuou até
depois de iniciado o século IV Não foi tanto o
conflito com forças de fora da comunidade, mas a
luta interna que repetidas vezes pôs em evidência
a questão do cânon. Grupos como os gnósticos e
mestres como Marcião, mais tarde condenados co­
mo hereges, por causa de suas concepções do cris­
tianismo, haviam usado suas interpretações bíblicas,
em especial a rejeição das Escrituras hebraicas, co­
mo base para seus argumentos teológicos. Assim,
tanto as Escrituras cristãs emergentes como as ju ­
daicas transformaram-se em armas na luta sobre a
ortodoxia cristã.
O grande apologista do século II Justino Mártir
foi um dos primeiros a testemunhar a prática de ler
escritos cristãos junto com as Escrituras judaicas
nos serviços litúrgicos. A defesa das Escrituras esta­
va no centro de seu ensinamento. Todos os primei­
ros paladinos da fé, como Irineu, Clemente de Ale­
ram listas canônicas dos escritos cristãos. Algumas
delas concordavam entre si, outras não. No século
IV, ambas as Igrejas, a do Ocidente e a do Oriente,
aceitaram uma lista cristã de vinte e sete livros, mas
não adotaram um padrão para as Escrituras judai­
cas, que teriam de esperar pela Reforma e a resposta
a ela no Concilio de Trento.
A FORMA DO CÂNON
O longo processo de formação e desenvolvi­
mento da tradição aqui descrito foi, finalmente, en­
cerrado. O encerramento resultou em uma versão
normativa da tradição que, como testemunho reco­
nhecido da revelação divina, possibilitava à comu­
nidade, daí em diante, organizar sua vida e confir­
mar sua esperança. Um cânon, ou padrão, foi assim
estabelecido nessa versão normativa. Devemos notar
que a palavra “cânon” tem história longa e eom-
a significar algo que atuava como norma, vara de
medir. No uso cristão, refere-se a um modelo ou
regra.
As formas canônicas definitivas das tradições
bíblicas atestam a presença e a revelação de Deus nas
experiências passadas do povo. Essas formas toma­
ram-se a regra ou o padrão para determinar a re­
velação dentro da comunidade de fiéis no presente
e no futuro. Também proporcionaram um meio de

alcançar unidade dentro da fé. Nascidas da comuni­
dade, serviram de meio para o renascimento dessa
comunidade, geração após geração.
Há três teorias judaicas principais no tocante ao
encerramento do cânon. Como a maior parte das
Escrituras hebraicas existia na época de Esdras, no
século V a.C., 0 término da coleção foi atribuído ao
próprio Esdras. Esta tradição é lendária e hoje goza
de pouca proeminência. Uma segunda teoria afirma
que um grupo de líderes da comunidade pós-exílica,
precursores do que veio a ser conhecido como a
Grande Sinagoga, trabalharam sob o incentivo de
Esdras e estabeleceram o cânon. Entretanto, não há
nenhuma prova da existência de um organismo se­
melhante à Grande Sinagoga antes da Idade Média
e, assim, esta teoria também costuma ser descarta­
da. A terceira posição, geralmente aceita hoje, afirma
que só na era cristã a comunidade judaica palesti-
nense encerrou seu cânon. Parece que a cidade de
Jâmnia (também conhecida como Javné/Iabnêj foi
O centro do judaísmo farisaico. Aqui, os líderes da
comunidade que sobrevivera à queda de Jerusalém
e à destruição do templo construído por Herodes
decidiram sobre a lista de livros inspirados.
Assim como uma interpretação específica da
presença e da revelação divinas formou a tradição,
outra interpretação específica finalmente conside­
rou o cânon encerrado. Não há certeza sobre os cri­
térios exatos seguidos para tomar essa decisão. O
conhecimento das forças sociopolíticas e religiosas
em ação naquela época determinada talvez lance
alguma luz nesta questão. A história perdeu muita
informação necessária, mas podemos supor alguns
critérios.
Se as Escrituras dão testemunho da revelação
divina, então obviamente a tradição profética, por­
tadora de revelação par excellence, desempenhou
papel significativo na canonização dessas Escritu­
ras. Somente os livros que se acreditava terem tido
origem antes do término da profecia genuína foram
considerados inspirados de modo singular. O uso
litúrgico foi um segundo critério. Os livros que al­
cançaram proeminência por causa de sua função
cultuai ou litúrgica também receberam status canô­
nico. A adesão a esses critérios produziu a Bíblia
tríplice: a Torá, ou Lei (os cinco primeiros livros);
os Profetas (os profetas anteriores, ou livros histó­
ricos, e os profetas posteriores); e os Escritos (sal­
mos, escritos sapienciais, os cinco rolos litúrgicos,
Daniel e a história pós-exílica). Eram os livros sa­
grados de Israel, que “enodoavam as mãos”. Essa
frase curiosa indica que, depois de manipular os
rolos acima mencionados, as mãos do leitor deviam
ser lavadas em reconhecimento ritual da santidade
das tradições e do desmerecimento do leitor.
Como afirmamos antes, a versão grega originá­
ria de Alexandria era provavelmente a que estava
em uso na época (c. 90 d.C.). Entretanto, a comuni­
dade judaica de Jâmnia adotou a versão hebraica
o CANON
mais antiga. Há quem acredite que essa escolha de­
veu-se à rivalidade que se criara entre as interpre­
tações judaica e cristã de algumas das tradições e
também à prática cristã de acrescentar escritos cris­
tãos às coleções. Outros estudiosos afirmam que
controvérsias dentro da própria comunidade judaica
influenciaram a decisão sobre o cânon. Na época, os
fariseus estavam em conflito com algumas das seitas
de disposição mais apocalíptica e adotaram posição
a favor de uma interpretação mais conservadora. (A
apocalíptica era uma forma muito imaginativa e sim­
bólica de interpretar os eventos da história. Com ffe-
qüência incluía uma descrição do futuro.) A época
de Esdras, o período posterior à destruição do primei­
ro templo, foi recordada nesta, a época da destruição
do segundo templo. Na época de Esdras foi elimina­
da a especulação apocalíptica e messiânica e a cole­
ção de livros advinda do Exílio tomou-se a versão
normativa. Assim, a mesma seleção ocorreu na época
de Jâmnia.
Entretanto, a especulação apocalíptica e messiâ­
nica satisfez a necessidade cristã de entender “o
evento de Cristo”. Essa provavelmente foi uma das
razões do uso continuado pelos cristãos de escritos
que faziam parte da versão grega. Não está claro
se Jesus e os discípulos usavam a versão hebraica
ou a grega. Contudo, está claro que as comunidades
das quais surgiram as Escrituras cristãs citavam do
grego, pois a grande maioria dos cristãos do sécu­
lo I era formada de convertidos pagãos de língua
grega. Como não acreditavam que a revelação ter­
minara com a morte do último profeta, mas conti­
nuava em Cristo, continuaram a usar a versão grega
mais extensa.
Só nos séculos II e III as controvérsias dentro
do judaísmo provocaram um movimento dos cris­
tãos para encerrar sua lista de livros sagrados ju­
daicos. No século IV, as Igrejas ocidentais já ha­
viam aceitado a decisão dos concílios norte-africa-
nos e adotado a Bíblia grega. Por outro lado, pare­
ce que as Igrejas orientais preferiram a lista orga­
nizada pelos judeus. Essas decisões eram tomadas
por Igrejas locais ou regionais. Foi o Concilio de
Trento que finalmente decidiu sobre o cânon para
as igrejas unidas a Roma.
A Reforma protestante rejeitou a autoridade do
papado e seu uso da Escritura para legitimar algu­
mas de suas doutrinas e, por isso, considerarou as
próprias Escrituras como normas para interpretar
a tradição e escolheram o cânon judaico mais cur­
to para sua lista oficial. Ao aceitar o cânon grego
mais amplo, a Igreja romana preservou uma tra­
dição autêntica da Igreja primitiva e está coerente
com 0 uso por aquela comunidade de certos livros
rejeitados pela comunidade judaica. Ao conservar
o cânon mais conciso, as Igrejas protestantes pre­
servaram uma versão mais antiga. Essas decisões
eclesiásticas resultaram nas listas dadas na página
seguinte. 19
 INTRODUÇÃO À BiBLIA

A história da criação e do desenvolvimento do

CÂNON CÂNON cânon judaico dá razões sólidas para a divisão tríplice
JUDAICO ALEXANDRINO Lei, Profetas e Escritos. Mas só podemos conjeturar
T orá (L ei) P entateuco sobre as razões da ordem do cânon alexandrino:
Gênesis Gênesis Pentateuco, História, Poesia, Profetas. Talvez remonte
Êxodo Êxodo ao fato de os judeus helenísticos serem treinados
Levítico em escolas gregas de retórica, onde a literatura era
Levítico
estudada de acordo com tipos literários. Por fim, há
Números Números
um aspecto teológico interessante nas orientações
Deuteronômio Deuteronômio
divergentes com as quais se encerra cada uma das
P rofetas H istória coleções. No cânon judaico, o leitor é exortado a
(Anteriores) Josué subir a Jerusalém e reconstruir o templo (2Cr 36,23),
Josué Juizes mensagem cara a todos os corações judeus. A ordem
Juizes Rute alexandrina, que reflete uma preocupação messiânica,
1-2 Samuel 1-2 Samuel termina com a promessa de enviar o profeta Elias
1-2 Reis 1-2 Reis antes da vinda do dia ^do S enhor (Ml 3,23). Os
1-2 Crônicas cristãos podiam facilmente considerar isso transição
(Posteriores) Esdras-Neemias apropriada ^tara suas tradições sagradas.
Isaías Ester Os sete livros que têm sua canonicidade con­
Jeremias Judite testada (Judite, Tobit, 1 e 2 Macabeus, Sabedoria,
Ezequiel Tobit Sirácida e Baruc) são chamados “deuterocanônicos”
(12 menores) 1-2 Macabeus pelos católicos romanos e “apócrifos” pelos protes­
Oséias tantes, que costumam incluí-los em uma seção sepa­
Joel rada no fim de suas Bíblias. A palavra “deuterocanô-
P oesia
nico” não sugere tanto um processo canonizador à
Amós Salmos
parte quanto um reconhecimento canônico delibe­
Abdias Provérbios
rado, julgado necessário por causa da controvérsia
Jonas Eclesiastes dentro da comunidade. A princípio, “apócrifos” sig­
Miquéias Cântico de Salomão nificava “ocultos”, o que indicava estar a mensagem
Naum JÓ desses livros oculta da maioria dos membros da co­
Habacuc Sabedoria munidade e poder ser entendida apenas pelos verda­
Sofonias Sirácida deiramente sábios. Aos poucos a palavra assumiu um
Ageu significado negativo, porque a ortodoxia dos livros
Zacarias P rofetas era duvidosa. Hoje, a palavra “apócrifo” refere-se ape­
Malaquias (Maiores) nas a escritos profundamente religiosos e inspirados,
Isaías mas que não são canônicos. Embora ausente do cânon
E scritos Jeremias hebraico, o material deuterocanônico ou apócrifo era
Salmos Baruc considerado parte da literatura religiosa judaica (e,
Jó Lamentações portanto, também da protestante) e, com frequência,
Provérbios Ezequiel usado em ambientes litúrgicos.
Rute Daniel Há outro grupo de escritos religiosos que, embora
Cântico dos Cânticos não sejam considerados canônicos nem pela comunida­
Eclesiastes (Menores) de judaica nem pela cristã, tiveram bastante influência
Lamentações Oséias sobre ambas. Neles encontram-se os alicerces de temas
Ester Amós como 0 Reino de Deus, o Filho do Homem, a ressur­
Daniel Miquéias reição dos mortos, os ensinamentos sobre anjos e de­
mônios. Essas obras intertestamentárias (escritos do
Esdras-Neemias Joel
período entre as épocas do Antigo e do Novo Testa­
1-2 Crônicas Abdias
mentos), quase sempre de caráter apocalíptico, estavam
Jonas
em expansão entre 200 a.C. e 100 d.C. e às vezes go­
Naum
zavam do mesmo respeito que alguns dos “Escritos”
Habacuc que acabaram por se tomar canônicos.
Sofonias Um grande número de manuscritos deste grupo
Ageu de escritos foi descoberto em Qumran, comunidade
Zacarias judaica que compartilhava muitas das esperanças apo­
Malaquias calípticas e messiânicas dos cristãos primitivos. A
O presente comentário segue para o AT o cânon judaico. intensidade dessas esperanças comuns explica a popu­
laridade deste tipo de literatura, que inclui obras co­
tratando logo em seguida os escritos deuterocanônicos.
20 mo 0 Livro de Henoc, o Livro dos Jubileus, os Testa-

mentos dos Doze Patriarcas, os Oráculos Sibilinos, a
Assunção de Moisés, para citar apenas alguns. Como
sua alegada autoria é contestável, essas obras são mui­
tas vezes citadas pelos protestantes como “pseudepí-
grafas”; devido a sua natureza um tanto esotérica, os
católicos chamam-nas de “apócrifas”. Na verdade,
nenhuma dessas palavras é satisfatória, mas por causa
do uso tradicional as designações permanecem.
E mais fácil seguir o curso da elevação de escri­
tos cristãos ao status de Escritura do que o dos escri­
tos judaicos, porque se encontram testemunhos de
sua influência nos escritos dos “mestres apostólicos”
dos primeiros séculos cristãos. Sua autori^de basea-
va-se não tanto no fato de serem as tradições dos
cristãos da primeira hora quanto no de preservarem
a autêntica “tradição de Jesus”. As palavras de Jesus é
que tinham autoridade. Paulo invocou essa autorida­
de ao ensinar sobre a vinda do S enhor (ITs 4,15) e
a instituição da refeição do S enhor (ICor 1 l,23ss).
Embora a tradição oral possa ter sido preferida, logo
ficou óbvia a necessidade de escritos cristãos. Com a
fundação de comunidades cristãs muito distantes de
Jerusalém e umas das outras, a comunicação escrita
tomou-se necessária. Quando os apóstolos se disper­
saram e as testemunhas oculares de Jesus começa­
ram a morrer, aumentou a necessidade de testemu­
nhos escritos oficiais. Esses testemunhos foram a
base das Escrituras cristãs.
Essas próprias Escrituras existiam como obras
individuais muito antes de serem reunidas em gru­
pos fixos. Os primeiros escritos conhecidos eram
as cartas de Paulo. Poderiam ter-se perdido para a
história, se alguém não as tivesse reunido e circu­
lado essa coleção pela Igreja. Estudiosos sugeriram
que 0 compilador foi o autor de Efésios, que escre­
veu essa carta sob o nome de Paulo e enviou-a como
introdução geral a toda a coleção. Seja qual for o
caso, mesmo antes do fim do século 1, um autor
cristão primitivo chamou as cartas de Paulo de “ver­
dadeira inspiração” (1 Clemente 47,3), semelhantes
às Escrituras hebraicas (veja 2Pd 3,15-16). Todos
os grandes mestres dos séculos II e III — Inácio,
Policarpo, Tertuliano e Orígenes — sabiam das car­
tas de Paulo e reconheciam a autoridade delas. Até
Marcião, gnóstico que repudiou toda a tradição ju­
daica, considerava Paulo proeminente. Arquitetou
um cânon que consistia apenas em dez cartas pauli-
nas e o Evangelho de Lucas.
A primeira referência a “tradição evangélica”
aparece lá pelo meio do século II; pouco tempo depois,
Justino Mártir menciona a leitura do Evangelho como
parte do culto dominical. Embora possa ter havido
indicações anteriores de que a “tradição de Jesus”
gozava da mesma autoridade de que a tradição hebrai­
ca, essa foi a primeira evidência clara de um novo
cânon que se desenvolvia ao lado do tradicional.
Não podemos deixar de perguntar: Por que qua­
tro evangelhos? Por que não apenas um, como su­
geriu Marcião? E, se mais de um, por que apenas
OCÂNON
quatro entre os muitos que foram compostos nos
primeiros séculos do período cristão? Até mesmo
Lucas nos diz que “muitos empreenderam compor
uma narração...” (Lc 1,1)- Os estudiosos modernos
alegam que essa variedade de evangelhos reflete a
diversidade e o pluralismo dentro do cristianismo
primitivo e a aclaptação da tradição evangélica a
novas e diferentes comunidades cristãs.
O exame cuidadoso dos evangelhos apócrifos
explica por que a Igreja rejeitou a maioria deles, mas
não responde à pergunta sobre a quádrupla tradição
evangélica. Têm sido apresentadas várias respostas,
todas um tanto hipotéticas. Alguns dizem que, como
a origem apostólica era critério para a canonização e
todos os quatro evangelhos podiam proclamar essa
origem (Mateus e João estavam entre os Doze; Mar­
cos estava ligado a Pedro e Lucas a Paulo), todos os
quatro tiveram de ser aceitos. Irineu aehava que como
havia quatro regiões no mundo, quatro ventos princi­
pais, quatro alianças na tradição hebraica, devia ha­
ver quatro testemunhos evangélicos como colunas da
Igreja. Outros sugerem que o fato de Marcião rejeitar
todos os evangelhos menos o de Lucas influenciou a
decisão a favor de uma tradição evangélica quádru­
pla. Qualquer que tenha sido a razão, no fim do sé­
culo II a coleção de quatro evangelhos era aceita em
toda a parte, exceto na Síria, onde um relato harmo­
nizado conhecido como Diatéssaron de Taciano con­
tinuou oficial até o século V
No fim do século 11, um novo cânon em duas
partes estava se formando. Era formada por quatro
evangelhos e uma coleção de escritos apostólicos.
O status de diversos escritos apostólicos foi assunto
de controvérsia até o século V Embora as citações
e listas da Igreja primitiva fossem os dois crité­
rios principais para determinar a autoridade das
Escrituras cristãs, está claro que ainda não havia
um acordo universal. Talvez essas listas diversas
da Igreja primitiva não reflitam nada mais que o
costume da Igreja local de cada autor. Se esse era
0 caso, a extensão do acordo encontrado é bastante
significativa.
A mais antiga lista oficial ou eclesiástica ainda
existente chama-se Fragmento de Muratori e é consi­
derada característica do uso romano do fim do século
II. O fato de Irineu, Policarpo, Clemente e Tertuliano,
concordarem todos, basicamente, com ela indica
catolicidade. Vinte e dois dos vinte e sete livros de
nosso cânon estavam incluídos nessa relação.
No início do século III, Orígenes foi além na
classificação dos livros então em uso. Depois de via­
jar extensamente, pôde comparar as listas de diver­
sas Igrejas em regiões diferentes e classificou os li­
vros em: 1) “reconhecidos” — quatro evangelhos,
treze cartas paulinas. Atos, duas epístolas não-pau-
linas (mais tarde chamadas “católicas”, porque pare­
cem mais enciclicas destinadas a toda a Igreja do que
a comunidades individuais, caso das cartas paulinas);
2) “contestáveis”; 3) “falsos”. 21
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
No século IV, Eusébio classificou os escritos
de modo semelhante. Entretanto, foi a lista de
Atanásio que incluiu todos e tão-somente os livros
que formam nosso testamento cristão canônico.
Além dos livros canônicos, ele relacionou alguns
dos escritos que tinham sido incluidos em várias
listas anteriores e recomendou sua leitura. A Igreja
latina foi influenciada por essa decisão grega e,
posteriormente, diversos concilios norte-africanos
sancionaram a mesma lista de vinte e sete livros.
Apesar de haver concordância geral em todas as
Igrejas gregas e latinas, isso aconteceu em resultado
de decisões tomadas por sínodos provinciais, não
por um concilio ecumênico. O cânon originou-se do
uso comum das comunidades cristãs.
Embora o Ocidente tivesse canonizado quatro
evangelhos, a Igreja síria apegou-se ao Diatéssaron
até o século V Nunca aceitou completamente todas
as epístolas católicas, nem o Apocalipse. Por outro
lado, a Igreja etíope ampliou seu cânon. Assim, a
Igreja do Oriente continuou a reverenciar uma Bíblia
cristã diferente.
Como já mencionamos, várias outras obras cris­
tãs primitivas foram com freqüência consideradas
canônicas até bem depois do início do século V
Trata-se de 1 e 2 Clemente, a Epístola de Barnabé,
a Didaqué e o Pastor de Hermas. Ainda não está
claro, em todos os casos, por que não foram incluídas
na relação definitiva.
Alguns fatores parecem ter sido aceitos gradati­
vamente para determinar quais livros deveriam e
quais não deveriam ser considerados canônicos. O
primeiro desses fatores era a. origem apostólica. A
obra tinha de estar associada a um apóstolo ou a al­
guém da era apostólica. Segundo, deveria haver uma
dimensão católica ou universal na mensagem. Esse
requisito não negava que alguns dos escritos foram
originalmente destinados a comunidades individuais,
mas exigia que a mensagem falasse a todas. Terceiro,
o ensinamento precisava estar de acordo com a regra
básica de fé e não propor uma mensagem esotérica.
Não há nenhuma evidência direta de que esses foram
os critérios usados para determinar a canonicidade.
Entretanto, alguns livros parecem ter sido rejeitados
porque se desviavam seriamente desses critérios.
Agora a Igreja tinha um cânon dual que ela
acreditava ter sido inspirado por Deus e que mani­
festava a presença e a revelação divinas nas expe­
riências passadas do povo. Além disso, ela o consi­
derava regra ou padrão para determinar a revela­
ção dentro da comunidade de fiéis no presente e
no futuro.
INSPIRAÇÃO
INSPIRAÇÃO E AUTORIDADE
A Bíblia tem sido definida como coleção de
22 tradições religiosas reverenciadas como sagradas
porque inspiradas por Deus. Na parte anterior, exa­
minamos o processo de criação e desenvolvimento
da tradição, mostrando como o fluxo e o refluxo
da história de Israel influenciaram-no de maneira
significativa à medida que reformava e reinterpre-
tava a tradição, e como decisões sobre a canonici­
dade puseram fim a esse processo criativo.
Até este ponto a autoria humana esteve no centro
desse estudo. As comunidades, primeiro do antigo
Israel e depois do cristianismo primitivo, acreditavam
que Deus fora revelado em seu meio por intermédio
dos eventos de sua história. A Bíblia é uma coleção
das tradições acalentadas como testemunhos autên­
ticos e duradouros da revelação divina. Ao canoni­
zar esses testemunhos, a comunidade declarava que,
embora Deus possa ser revelado de muitas maneiras,
há um relacionamento único entre a revelação e essas
Escrituras sagradas. Esse relacionamento é mencio­
nado em termos de inspiração e autoria divina. Os
que, de qualquer forma, contribuíram para a reda­
ção da Bíblia foram inspirados por Deus. Assim, a
Bíblia orgulha-se tanto da autoria humana como da
divina.
Essa consideração de inspiração bíblica come­
ça com uma passagem da própria Bíblia: “Toda a
Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar,
refutar, corrigir, educar na justiça” (2Tm 3,16).
Aqui, a palavra “inspirada” pode significar “respi­
ra” Deus ou “é exalada” por Deus. Embora a comu­
nidade creia verdadeiramente que as Escrituras con­
tinuem a nos comunicar a palavra de Deus hoje
(respira Deus), tradicionalmente o sentido passivo
do verbo é o preferido: as Escrituras foram “exala­
das” por Deus. Essa idéia recorda o tema profético
familiar do hálito ou espírito de Deus, aquela mani­
festação dinâmica da ação divina no mundo.
Não admira, então, que a inspiração bíblica tenha,
com freqüência, sido entendida como afim da inspi­
ração profética ou do êxtase profético. Entretanto,
se usarmos o modelo profético de inspiração para
entender a inspiração bíblica — como muitas pes­
soas fizeram no passado e algumas continuam a
fazer no presente — , poderemos nos inclinar a pre­
sumir que cada livro individual remonta a um único
autor que era inspirado ou cujas palavras eram inspi­
radas. O processo de formação da tradição exami­
nado nestas páginas rejeita essa noção de autoria e
mostra o modelo inadequado e enganador.
Além de presumir uma só autoria, o modelo
profético muitas vezes minimiza o papel desempe­
nhado pela reflexão e pela criatividade humanas.
As vezes. Deus é descrito tomando posse da imagi­
nação e do pensamento e outras vezes até ditando
as idéias e as próprias palavras do indivíduo. Não há
dúvida sobre a dificuldade de equilibrar os papéis
do humano e do divino nesse tipo de empreendimen­
to conjunto. Mas é melhor uma dificuldade ficar
sem solução do que a contribuição de uma das par­
tes desse empreendimento ser subestimada.

Sem negar o papel singular desempenhado por
alguns membros da comunidade, este estudo sugere
ter sido a própria comunidade que realmente deu
origem às tradições sagradas. Se é esse o caso e se
essas tradições são, na verdade, inspiradas por Deus,
então é na comunidade, e não apenas em alguns
membros escolhidos dessa comunidade, que a ins­
piração é atuante. As que primeiro reconheceram a
ação de Deus em sua história e depois desenvolve­
ram uma tradição para afirmar essa ação, as que
mais tarde transformaram essa tradição para que ela
falasse a uma nova comunidade em um novo tempo
e as que estabeleceram a tradição em sua forma
final eram todas comunidades inspiradas por Deus.
A partir dessa perspectiva, o próprio texto bíblico
não é visto como expressão de inspiração inicial.
Ao contrário, esse texto é a forma escrita que se tor­
nou normativa. A Bíblia representa um momento no
longo processo de inspiração divina. Foi precedida
pela criação e pelo desenvolvimento inspirados de
tradições religiosas e freqüentemente tem sido se­
guida pela reinterpretação inspirada dessas tradições.
Antes de passar à discussão do processo de
inspiração, precisamos fazer uma pergunta crucial:
Exatamente o que é inspirado? É o autor? E como
será essa última pergunta respondida se pensarmos
que quem criou a Bíblia foi a comunidade, não in­
divíduos escolhidos? As palavras são inspiradas?
Mas, então, que palavras? Seriam as usadas na pri­
meira expressão das tradições, palavras que, com
toda a probabilidade, se perderam na história? Ou
as palavras do texto final, nas línguas originais? E
as traduções? Além disso, que versões das tradu­
ções? São todas perguntas muito importantes, que
não serão negligenciadas, mas uma pergunta mais
fundamental tem a ver com a maneira como a ins­
piração atua na comunidade. As outras perguntas
serão examinadas dentro desse contexto.
Nossa discussão anterior sobre a formação da
tradição servirá de estrutura para este exame da
inspiração. Nem todo acontecimento deixou marca
duradoura na consciência da comunidade. Somen­
te aqueles eventos que ajudaram a formar e aperfei­
çoar sua fé fundamental tornaram-se imprescindí­
veis à tradição. Um determinado evento em si pode
ter sido significativo ou, então, aparentemente in­
significante. O sentido religioso do acontecimento
é que era lembrado e transmitido de geração a ge­
ração. Os que passavam pela experiência real per­
cebiam que ela contribuía para sua identidade e
sua vida. Ao transmitir essa tradição formativa a
outros, convidavam-nos a ser moldados pela tradi­
ção, da maneira exata como tinham sido. Assim,
havia uma dimensão da tradição que era continua­
mente formativa.
Ora, se era o poder dinâmico de Deus que
moldava um povo. em primeiro lugar, o que, senão
o mesmo poder dinâmico, podia continuar esse pro­
cesso de formação? Aqui precisamos notar que
INSPIRAÇÃO
estava acontecendo uma formação mútua: da mes­
ma maneira que a comunidade formulava a tradição,
a tradição formava, isto é, influenciava, a identidade
da comunidade. A força dinâmica atuante no desen­
volvimento do povo era a auto-revelação divina. A
força dinâmica atuante no desenvolvimento da tra­
dição era a inspiração divina. Assim, deve ficar
claro que limitar a inspiração a apenas um momento
do desenvolvimento é restringir a atividade divina
àquele momento.
Embora pareça difícil, é possível reconstituir o
desenvolvimento de uma tradição. O mesmo não se
pode dizer sobre reconstituir o movimento da inspi­
ração. O primeiro é um esforço humano verificável;
o segundo é, por definição, uma atividade divina
que exige fé e só é acessível por essa fé. Uma comu­
nidade de fé acredita que Deus se revela em seu
meio e se comunica com o povo por intermédio de
suas tradições religiosas. Essas tradições serão reve­
renciadas como inspiradas desde que se perceba que
Deus fala por meio delas. Como a fé dinâmica da
comunidade proclama que Deus não está preso ao
passado, mas traz o poder do passado ao frescor do
presente com uma abertura para o futuro, então, de
maneira análoga, a inspiração divina deve ser vista
como permanente. Na medida em que uma tradição
continua aberta à comunicação divina, pode-se dizer
que é inspirada Tradições que se originaram no pas­
sado devem continuar a interpelar a presença ativa
de Deus, na vida constante da comunidade. A Bíblia
fo i inspirada, porque, durante sua criação e seu desen­
volvimento, continuamente fonnou uma comunidade
de fiéis. A Bíblia é inspirada, pois não cessa de rea­
lizar esse mesmo prodígio, dando até hoje testemu­
nho da origem da comunidade e continuamente des­
pertando-a para seus propósitos.
INSPIRAÇÃO E VERDADE
Quando proclamamos que Deus é o autor da
Bíblia, estamos fazendo uma afirmação sobre sua
veracidade. Com certeza a palavra de Deus é digna
de confiança. Deus não enganaria a comunidade,
nem permitiría que fosse induzida em erro pela igno­
rância ou pelas perspectivas limitadas dos autores
humanos. Ao seguir esta sucessão de idéias, muitas
pessoas insistem que a Bíblia é inerrante ou isenta
de todo erro. Tal alegação formula várias perguntas
difíceis.
Como explicamos tradições divergentes e até
mesmo contraditórias? (Os seres humanos foram
criados depois que surgiram as plantas e os animais
— Gn 1,12.21.25.27. Os seres humanos foram
criados enquanto a terra ainda estava desabitada
— Gn 2,5.9.) Devemos aderir a uma percepção do
universo que contraria as descobertas científicas?
(A própria luz foi criada antes dos corpos celestes
que emitem luz — Gn 1,3.16.) Podemos conciliar
a cronologia conflitante na história evangélica? 23
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
(Jesus purificou o templo no início de seu ministé­
rio durante uma de suas diversas visitas a Jerusalém
— Jo 2,13-17. A purificação ocorreu durante sua
únipa visita, que aconteceu pouco antes de sua morte
— Mt 21,12-17; Mc 11,15-19; Lc 19,45-48.)
Os esforços para explicar as inconsistências
encontradas na Bíblia resultaram em diversos mé­
todos de interpretação. Os que optaram por inter­
pretações fundamentalistas freqüentemente rejeitam
a evidência histórica e científica e adotam o sen­
tido literal do texto, alegando não haver nenhuma
inconsistência real, pois Deus pode fazer o impos­
sível, se necessário.
Outra abordagem tenta conciliar a teoria da
inerrância com as discrepâncias presentes no texto.
As Escrituras são entendidas de forma bastante
literal até o encontro de uma passagem difícil. En­
tão, como crê que a revelação divina não pode ser
nem ilógica, nem incorreta, o intérprete conclui
que o que parece ser inconsistência na verdade
destina-se a ser interpretado alegoricamente. As­
sim, o que podería ser visto como discordante é
harmonizado.
Uma terceira maneira de resolver o dilema é
tomar uma decisão sobre o tipo de verdade que a
Bíblia se destina a revelar. Os estudiosos bíblicos
fazem exatamente isso, diferenciando entre verda­
de histórica e/ou científica e verdade religiosa —
decisão nada fácil de tomar. As referências histó­
ricas, científicas e religiosas estão entrelaçadas.
Nem sempre está claro por que os autores expres­
saram as idéias da forma como o fizeram. Se suas
referências históricas e científicas não devem ser
entendidas como expressões exatas de verdade teo­
lógica, eram elas apenas as melhores construções
literárias e figuradas disponíveis? Ou o entendi­
mento bastante humano, bastante limitado da rea­
lidade é apenas a plataforma da qual eles lançaram
sua profunda busca teológica de Deus e sobre a
qual se desenrolou o drama do envolvimento amoro­
so de Deus? Como quer que essas perguntas forem
respondidas, precisamos decidir que orientações
seguir ao fazer as distinções mencionadas. Na ten­
tativa de se concentrar no que é verdadeiramente
teológico, a crítica bíblica esforçou-se para ser o
mais sincera possível ao aplicar métodos de pesqui­
sa literária e histórica. Dessa maneira, emprestou
nova luz à questão da veracidade da Bíblia.
Nessa conjuntura, alguma coisa precisa ser dita
sobre o que entendemos por “verdade”. Este termo
deve ser entendido como algo semelhante a sinceri­
dade, integridade, a antítese de trapaça? Ou também
sugere precisão, acuidade de fato, isenção de erro?
Os estudiosos contemporâneos insistem que a
Bíblia foi, na verdade, inspirada por Deus, mas ins­
pirada mediante o processo natural de criação e de­
senvolvimento da tradição. Já que a Bíblia é o relato
não só da palavra divina, mas também da resposta
24 humana a essa palavra, o caráter de autoria huma­
na não pode ser desprezado. Discrepâncias óbvias
e contradições aparentes podem ser atribuídas a
erro humano, mas também podem resultar das inter­
pretações e reinterpretações produzidas pela comu­
nidade viva em gerações de desenvolvimento das
tradições. Tanto as necessidades de uma determina­
da comunidade de fé quanto as intuições específi­
cas que teve em sua tradição religiosa influenciam
a qualidade ou a limitação da expressão teológica
que emergiu da transmissão da tradição. Com certe­
za não rejeitaríamos como inadequada ou inexata
a teologia de Isaías ou Jeremias apenas porque os
profetas não se referiram ou não acreditavam na
Trindade nem na vida depois da morte.
As tradições bíblicas têm sido descritas como
testemrmhos. O enfoque da parte anterior foi na pró­
pria composição humana desses testemunhos. Nesta
parte, o assunto é o relacionamento entre os testemu­
nhos e a revelação de Deus que eles atestam. Esse
relacionamento tem sido entendido de maneiras sig­
nificativamente diferentes, dependendo de como a
inspiração é entendida. Os que afirmam que as pa­
lavras são inspiradas têm maior probabilidade de
reverenciar a própria Bíblia como revelação. Outros,
que acreditam que Deus é revelado primordialmente
nos acontecimentos da história, inclinam-se mais a
considerar a Bíblia o testemunho interpretado desses
eventos. Segundo esse último ponto de vista, a Bíblia
é testemunha da revelação. Em essência, a diferença
básica entre essas duas concepções é a diferença entre
o que se diz e o que se pretende. Embora ambas as
perspectivas sejam, na verdade, aspectos da mesma
realidade, com toda a certeza não são idênticas. Saber
o que a Bíblia diz não é a mesma coisa que saber o
que a Bíblia quer dizer.
O estudo do desenvolvimento da tradição indi­
ca que 0 que a comunidade lembrava com carinho
não era, em princípio, alguma expressão específi­
ca da tradição, mas sim seu sentido fundamental.
Se esse não fosse o caso, a comunidade teria resis­
tido de maneira consistente a qualquer tentativa de
reformulação.
Como afirmamos antes, a força dinâmica atuan­
te no desenvolvimento do povo era a auto-revela-
ção divina. A força dinâmica atuante no desenvol­
vimento da tradição era a inspiração divina. A Bíblia
alega ser não só um testemunho da auto-revelação
divina e da transformação da comunidade no pas­
sado, mas também ocasião singular para uma re­
velação e uma transformação comparáveis no
presente. Na medida em que essa alegação é com­
provada vezes sem conta, podemos afirmar a vera­
cidade da Bíblia. Não é tanto a exatidão das pala­
vras, mas 0 poder da mensagem que dá testemunho
de sua veracidade. O mesmo Espírito que foi atuan­
te na formação das Escrituras continua a dar teste­
munho de sua veracidade e a nos convencer de sua
natureza inspirada. Nesse ponto está a autoridade
da Bíblia.

TEXTOS E VERSÕES
Quem inicia o estudo da Bíblia logo se dá conta
da quantidade de versões disponíveis. Por que exis­
tem tantas? Qual é a melhor? Perguntas como es­
sas tocam em outro tema de investigação biblica
— 0 da crítica textual. Este aspecto particular do
estudo bíblico será examinado em detalhe na parte
sobre interpretação, ou hermenêutica. Aqui daremos
atenção aos diversos textos em si, não ao método
de examiná-los.
Há diversas razões para a variedade de versões
bíblicas. A mais óbvia é a diferença nas traduções.
Uma língua não se presta faeilmente à tradução lite­
ral em outra e os tradutores precisam tomar decisões
sobre a escolha de palavras e frases usadas. Alguns
tradutores fizeram uma eseolha, outros fazem outra;
daí resultam traduções diferentes. Abaixo trataremos
desse assunto mais extensamente.
Outra razão para algumas das diferenças é o
erro de cópia. Todos sabemos como é fácil cometer
erros ao transcrever alguma coisa. Se a essa ocor­
rência muito humana, muito comum, acrescentar­
mos o fato de os escribas terem precisado trabalhar
longas horas com manuscritos em línguas que rara­
mente eram a deles, então as repetições, omissões
e traduções incorretas são compreensíveis. Somente
prosseguindo na tarefa meticulosa de comparar di­
versos textos (e essa é uma tarefa da crítica textual)
podemos corrigir alguns desses erros. À medida que
mais textos antigos são encontrados, mais correções
podem ser feitas.
Essas duas explicações presumem que houve uma
versão bíblica comum, da qual surgiram traduções
diferentes, algumas das quais tiveram erros de cópia
ocasionais. Uma terceira razão alegada para a varie­
dade de traduções tem inferências que entram mais
fiindo na tradição. Os estudiosos acreditam que, embo­
ra possa haver listas que indiquem os livros que foram
incluídos no cânon dos escritos inspirados, em muitos
casos não havia um texto-padrão, fixo. Ao contrário,
existiam várias versões da tradição bastante similares,
mas, ainda assim, diferentes. Essa explicação justifi­
ca algumas das verdadeiras discrepâncias encontradas
nas versões modernas.
Até recentemente, as mais antigas edições com­
pletas da versão hebraica do Antigo Testamento dis­
poníveis não eram anteriores ao século XV Sabemos
agora que essas edições basearam-se em uma seleção
de manuscritos bastante limitada, alguns dos quais
não estão mais disponíveis para estudo. As versões
gregas mais antigas com ambos os Testamentos
datam do século IV; alguns fragmentos de livros são
ainda mais antigos. As descobertas arqueológicas
do século XX elevaram a milhares o número desses
manuscritos ou fragmentos de manuscritos. Foram
classificados com base no material usado (papiro ou
pergaminho) e o estilo da escrita (unciais era letra
de fôrma ou minúsculas cursivas).
TEXTOS E VERSÕES
O papiro vinha de uma planta alta semelhante
ao junco que cresce em abundância ao longo do rio
Nilo. Era o papel comum do mundo mediterrâneo.
O caule era cortado no sentido longitudinal e as tiras
estendidas lado a lado para formar uma camada. As
camadas eram então sobrepostas em ângulos retos
e prensadas juntas para formar uma folha. Depois
de secas eram coladas para formar um rolo, que
depois era enrolado em volta de uma vara. Os rolos
tinham cerca de um metro de comprimento. Em
alguma época do século II, a Igreja começou a usar
um novo formato. As folhas de papiro eram eostura-
das em vez de coladas, produzindo assim uma espé­
cie de livro que passou a ser chamado de “códice”.
O papiro era relativamente barato, mas com o tempo
ficava quebradiço. Por isso, aos poucos entrou em
uso um material novo, mais caro, porém mais durá­
vel. Descobriu-se que as peles de ovelhas e cabras,
depois de raspadas e secas, proporcionavam uma
superfície lisa para escrever. Este pergaminho, ou
velino, como era chamado, logo se tomou o mate­
rial de uso mais comum.
Em sua maioria, os textos antigos que foram
preservados eram escritos em grandes letras de for­
ma. Isso é verdade não só a respeito do hebraico,
escrito em caracteres relativamente quadrados, mas
também do grego. Reconhece-se a influência das
inscrições em grego antigo, que usava apenas letras
maiusculas (unciais), em manuscritos gregos pri­
mitivos. Por essa razão, esses manuscritos passa­
ram a ser conhecidos pelo mesmo nome — unciais.
Essa forma de escrita em letras de fôrma foi proe­
minente até o século IX, quando a escrita cursiva
entrou no uso popular. Esta escrita permitiu aos
escribas copiar manuscritos muito mais depressa e,
assim, tomar disponível um número maior de có­
pias. Entretanto, essas cópias mais numerosas não
eram necessariamente mais fáceis de ler. Como a
uncial, a escrita cursiva deu seu nome a uma forma
de manuscrito — minúscula.
TRANSMISSÃO DOS TEXTOS DO
ANTIGO TESTAMENTO
A primeira edição do Antigo Testamento que
pode, de algum modo, ser considerada crítica só
apareceu no século XVI. Junto com o texto comple­
to, incluía um sistema de marcas que representa­
vam sons vocálicos (o hebraico é lingua conso-
nantal), uma paráfrase aramaica do texto hebraico
(Targum) e parte do comentário judaico medieval
tradicional. Essa edição foi um progresso acentua­
do sobre as que a precederam, baseadas em manus­
critos mais primitivos que, como a critica contempo­
rânea demonstrou, tinham abrangência muito limi­
tada e eram inferiores em legibilidade e exatidão.
A edição do século XVI foi o modelo para a maio­
ria das Bíblias hebraicas até 1929, quando membros
de uma sociedade bíblica alemã publicaram uma 25
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
edição crítica bastante sofisticada, uma obra que
passou por revisões periódicas e continua a ocupar
lugar proeminente em alguns círculos. Essa edição
alemã inclui a menção de interpretações divergen­
tes, além de citações da Septuaginta.
Na virado do século, duas descobertas no Egito
apresentaram ao mundo dos estudiosos uma visão
prévia do que estava por vir. Em muitas sinagogas
medievais era costume armazenar cópias do texto
sagrado em uma sala designada especialmente para
isso, já que esses textos não deviam ser destruidos,
mesmo quando não eram mais úteis. Descobriu-se
que em uma sinagoga do Cairo, uma dessas salas,
ou genizá, continha um tesouro de manuscritos dos
séculos XI e Xll, inclusive diversas variantes bí­
blicas. Além do conteúdo bíblico e litúrgico dos
manuscritos, o material revelou um sistema primi­
tivo para auxiliar a pronúncia. Pelo exame dessas
descobertas, os estudiosos puderam reconstituir o
desenvolvimento do uso dos diacríticos vocálicos,
procedimento originalmente destinado a ajudar a
proclamação pública, que acabou por fazer parte
da língua hebraica.
A segunda descoberta foi um manuscrito de
papiro, que datava de cerca de 150 a.C., contendo
os Dez Mandamentos e uma passagem do capítulo
6 do Deuteronômio. Para ter seu valor merecida-
mente avaliado e apreciado, essas descobertas te-
riam de esperar a revelação dos Manuscritos do mar
Morto.
Em 1947, ano que foi um marco no mundo da
crítica textual, foram encontrados alguns rolos an­
tigos em grutas nas proximidades do mar Morto.
Os primeiros achados ocorreram em um lugar cha­
mado Qumran. Foram descobertos manuscritos da­
tados desde 250-175 a.C. Outros fragmentos foram
encontrados em diversos lugares da região do mar
Morto, até em 1964. Cerca de 190 manuscritos ou
fragmentos foram descobertos em sítios arqueoló­
gicos que remontam aos séculos I e II d.C. A com­
paração dos textos variantes mostra que as comu­
nidades judaicas dessa época ainda não haviam pa­
dronizado suas tradições. Podiam ter chegado a um
acordo sobre quais os livros que eram inspirados,
mas também toleravam grande diversidade de ex­
pressão textual.
Esse extenso material ainda não foi completa­
mente traduzido e avaliado. Mesmo assim, para ser
considerada uma versão plenamente confiável do
Antigo Testamento, toda edição crítica das Escritu­
ras hebraicas precisa levar em consideração o co­
nhecimento coligido dessas descobertas.
A história da versão grega do Antigo Testa­
mento não é menos complicada. Como já menci­
onamos, a tradição sobre os setenta estudiosos que
trabalharam de modo independente, mas produzi­
ram traduções idênticas, agora é considerada len­
dária. Comparações de manuscritos hebraicos pri-
26 mitivos com targumim aramaicos e versões gregas
proporcionaram discernimentos valiosos. Ao mes­
mo tempo, tais comparações deixaram os estudio­
sos com muitas perguntas novas. Uma das primei­
ras questões a abordar é: Foi a tradução grega feita
da versão hebraica específica que por fim se tor­
nou a versão modelo conhecida como texto maso-
rético? Segundo o estudo da transmissão do texto
resumido acima, a resposta é não. Embora seja
uma reconstrução cuidadosa de manuscritos primi­
tivos, o texto masorético não faz jus a ser conside­
rado anterior à era cristã. Além disso, a padroniza­
ção da versão hebraica obviamente não ocorreu
antes do século 11 d.C. Por outro lado, a versão
grega ou alexandrina faz jus a uma origem anterior
ao século III a.C. É mais provável que não houves­
se uma tradição hebraica unificada para ser usada
pelos tradutores.
A tradução em si mostra inconsistências textu­
ais. A maioria dos estudiosos concorda que prova­
velmente os livros do Pentateuco alcançaram rela­
tiva padronização durante o período pós-exílico.
Isso pode ser verdade não apenas a respeito do
conteúdo, mas também da forma textual. Essa pa­
dronização explica por que a tradução desse mate­
rial parece bastante fiel e consistente com um tex­
to hebraico muito semelhante ao que está por trás
do texto masorético. O mesmo não é verdade a
respeito da tradução dos outros livros do Antigo
Testamento; é provável que este processo se tenha
desenvolvido durante um período de duzentos einos.
Assim como não houve padronização do texto
hebraico, não havería uniformização no grego.
Somos levados a fazer uma segunda pergunta;
De onde o grego foi traduzido, se não o foi de um
texto hebraico padronizado? Provavelmente houve
muitas fontes. A primeira a ser considerada é a va­
riedade de interpretações hebraicas que existiam
ao lado das que finalmente se tornaram os textos
padrão, mas que não foram incluídas nesse grupo.
A tradução do grego de volta ao hebraieo e a eom-
paração desse hebraico com o texto masorético le­
vou os estudiosos a acreditar que parte da tradição
hebraica por trás da Septuaginta é mais antiga que
a tradição por trás do texto masorético.
Uma segunda fonte veio do texto litúrgico da
comunidade. Quando o grego se tomou a língua
do povo e o conhecimento do hebraico ficou cada
vez menos comum, o povo planejou um meio de
traduzir os sons hebreus para o aramaico. Dessa
forma ainda podiam rezar o texto hebraico, enquan­
to 0 liam em aramaico. Essas transi iterações eram
conhecidas como targumim e também proporciona­
ram material bíblico que podia ser usado em uma
tradução grega.
Finalmente, o próprio Novo Testamento lançou
alguma luz sobre essa questão. Como observamos
antes, as eitações do Antigo Testamento encontradas
no Novo foram, em sua maioria, tiradas da versão
grega. Traduzi-las de volta para o hebraico levou,

em alguns casos, à descoberta de uma versão mais
de acordo com o Pentateuco samaritano do que com
qualquer outra fonte hebraica conservada.
Esses três exemplos sugerem que, quando as
tradições bíblicas estavam sendo traduzidas para o
grego, as traduções usadas foram as versões he­
braicas que estavam em uso naquela época e naque­
le lugar, por aquela comunidade. Como a tradição
hebraica era um tanto fluida, a versão grega não
seria menos variante.
O século II viu cristãos e judeus em acalorada
controvérsia. Em seus argumentos, os cristãos usa­
vam com frequência a Septuaginta, o que levou os
judeus a rejeitar essa versão e produzir novas tra­
duções exclusivamente suas. Três dessas traduções
desempenharam um papel na critica textual que
seus autores e proponentes jamais poderiam ter ima­
ginado. O escritor cristão do século 111 Orígenes
produziu uma versão sextuplicada do Antigo Tes­
tamento, chamada Héxapla. Organizou o material
em seis colunas paralelas nesta ordem: 1) o texto
consonantal hebraico que era padrão no século II;
2) uma transliteração grega do hebraico; 3) a ver­
são grega de Aquila (uma das traduções judai­
cas); 4) a versão grega de Símaco (outra tradução
judaica); 5) a Septuaginta; 6) a versão grega de
Teodocião (a terceira tradução judaica). Esta obra
monumental sobreviveu em fragmentos e também
em citações feitas por diversos escritores cristãos
primitivos.
Entre todas as versões do Antigo Testamento,
foi a Septuaginta que serviu de base para os prin­
cipais manuscritos, os códices unciais, que surgi­
ram do século IV ao X.
TRANSMISSÃO DOS TEXTOS DO
NOVO TESTAMENTO
No último século, as descobertas arqueológi­
cas desenterraram fragmentos de papiro de manus­
critos do Novo Testamento que datam até do sécu­
lo II. Antes disso, as cópias neotestamentárias dis-
poniveis mais antigas eram os grandes códices un­
ciais mencionados acima. Nessa categoria, há quatro
testemunhas principais e várias obras menos im­
portantes: 1) Códice B ou Vaticano, assim chama­
do porque foi conservado na Biblioteca Vaticana;
provavelmente o mais antigo, datado do século IV.
Embora outrora deva ter incluído toda a Bíblia gre­
ga, hoje faltam algumas partes. 2) Códice K ou
Sinaitico, a única versão que contém todo o Novo
Testamento. Apesar de também datar do século IV,
era relativamcntc desconhecido até o século XIX,
quando foi encontrado no convento de santa Cata­
rina no monte Sinai — daí seu nome. 3) Códice A
ou Alexandrino, obra do século V Como os outros
manuscritos, agora está incompleto. Talvez tenha
recebido o nome da cidade de Alexandria, famosa
por sua escola de interpretação biblica. 4) Códice
TEXTOS E VERSÕES
D ou de Beza, que data do século V ou VI. Não tem
o Antigo Testamento, nem parte do material do
Novo Testamento. E uma Bíblia poliglota, isto é,
escrita em mais de uma língua. O grego e o latim
estão em páginas opostas. A obra recebeu o nome
de Teodoro Beza, sucessor de João Calvino.
Um outro códice talvez seja de interesse. É o
códice C, ou Ephraemi Rescriptus. O próprio nome
nos diz que foi reescrito. O escrito anterior, prova­
velmente uma Bíblia do século V, foi raspado e a
pele reutilizada no século XII para preservar alguns
dos escritos de Efrém. Esse foi o destino de muitos
manuscritos bíblicos. Este códice é exemplo famoso
de manuscritos reutilizados, chamados “palimpsestos”.
Já mencionamos que no século IX houve uma
espécie de revolução na escrita. O cursivo (letra
corrida) começou a substituir a escrita uncial (em
letra de fôrma). O resultado foi uma nova e exten­
sa categoria de manuscritos biblicos que datam do
século IX ao século XVIII.
Além dos manuscritos unciais e minúsculos,
outra fonte de informações sobre a tradição neotes-
tamentária é a evidência de obras teológicas primi­
tivas. Escritores da Igreja primitiva, como Eusébio
e Clemente, citaram as Escrituras em seus escritos.
O exame dessas citações tem sido valioso para a
crítica textual.
Apenas no fim do século XIX, quando as areias
do Egito entregaram seus tesouros de papiro, os
estudiosos puderam reconstruir um texto do Novo
Testamento anterior ao século IV. Alguns dos frag­
mentos encontrados recentemente remontam ao
século II, apenas um ou dois séculos depois da
composição original. Embora só tenham sido en­
contrados fragmentos, eles mostram que, pelo
menos no Egito do século II, não havia um tipo
dominante de texto neotestamentário.
Por fim, está começando a ser avaliada a im­
portância dos textos litúrgicos antigos. Como o
culto representava um papel tão importante para
formar os fiéis na tradição bíblica, esses textos
devem ser bastante esclarecedores. Como o estudo
dos lecionários ainda está na fase inicial, não se
pode fazer uma afirmação definitiva sobre sua
contribuição ao estudo do texto.
Com todas essas fontes textuais diferentes —
unciais, minúsculas, citações de autores da Igreja
primitiva, interpretações de lecionários — , o que
fazer para decidir sobre um texto único? Com cer­
teza a reconstrução de um Novo Testamento com­
pleto é mais do que a seleção subjetiva de manus­
critos diversos. Uma das respostas mais famosas a
essa questão é uma versão conhecida como Textus
Receptus (TR), ou “Texto Recebido”. Talvez mais
que a excelência dos estudos, o fenômeno da im­
prensa trouxe ao público essa obra de um impres-
sor-editor. Até recentemente, as versões provenien­
tes desta edição mantiveram a proeminência para
muitos cristãos protestantes. Entretanto, os estudos 27
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
atuais deram-nos mais evidências de manuscritos
e, assim, possibilitaram uma reconstrução mais
verdadeira do texto.
Uma das maneiras de se conseguir isso é pelo
processo de classificação de todos os dados em
categorias de famílias de textos. Nesse processo,
são avaliados a qualidade do grego usado, o estilo
literário empregado e o conteúdo. Uma vez feito
isso, os editores restringem-se a manuscritos com
características semelhantes, à medida que tentam
reconstruir o texto. No fim do século XIX, os tex­
tos do Novo Testamento foram classificados em
quatro grupos principais:
1) Textos neutros, reconhecidos como as formas
mais primitivas e mais puras. Não tinham emendas,
nem reinterpretação deliberada, e eram considerados
tradição comum de toda a Igreja oriental.
2) Textos alexandrinos, que receberam o nome
do centro literário do Egito. Esses textos tinham
considerável estilo e aprimoramento.
3) Textos ocidentais, preferidos pelos autores
cristãos ocidentais e que foram claramente edita­
dos e intercalados para refletir essa preferência.
4) Textos sírios, marcados pela combinação de
interpretações dos outros grupos. Mostravam mui­
ta semelhança com a tradição bizantina.
Novas descobertas arqueológicas e o reexame
diligente dessas categorias resultaram em aperfei­
çoamentos nas classificações. O cotejo e a avalia­
ção do material ainda não terminaram e, por isso,
os estudiosos ainda não têm todas as informações
necessárias para chegar a um consenso a respeito
dos agrupamentos. Nosso estudo não exige infor­
mações mais detalhadas sobre esse campo. Basta
saber que foram dados passos que permitem aos
estudiosos trabalhar com determinada tradição tex­
tual e, assim, chegar ao melhor texto possível.
Este breve resumo da história da transmissão
de textos e da descoberta de nova evidência desti­
na-se a dar uma explicação inicial para as muitas
versões da Bíblia. Se edições contemporâneas pa­
recem dizer coisas bem diferentes, talvez seja por­
que se originaram de fontes textuais diferentes. Pode
ser que uma edição baseie sua tradução na evidên­
cia derivada de um manuscrito uncial, enquanto
outra considere superior a interpretação de Qumran.
Uma boa edição crítica identifica suas fontes, para
que o leitor esclarecido saiba de que tradição tex­
tual a interpretação se originou.
VERSÕES ANTIGAS
Quando as tradições religiosas judaicas e cris­
tãs difundiram-se em novas áreas, tom ou-se óbvia
a necessidade de traduzir as línguas originais. Já
vim os que essa necessidade estimulou a criação da
Septuaginta e de outras versões gregas. Também
levou à formação das paráfrases aramaicas conhe-
28 cidas como targumim. Aos poucos, os manuscritos
hebraicos e gregos originais de ambos os Testamen­
tos, bem como as versões da Septuaginta e dos tar­
gumim, foram traduzidos para outras línguas, as
principais sendo o siriaco, o latim, o copta e o etió-
pico. Algumas dessas versões antigas continuam a
desempenhar papéis significativos no estudo da Bí­
blia primitiva.
Pelo estudo da história antiga, todos sabemos
que Alexandre, o Grande, conquistou o mundo no
século IV A cultura e a língua gregas começaram
a dominar o mundo antigo. O que talvez tenhamos
deixado de notar é que, desde o século V a.C., o
aramaico passou a ser a língua internacional do
Crescente Fértil. Essa situação perdurou até bem
depois de iniciada a era cristã. Os targumim come­
çaram a aparecer nos últimos séculos antes de Cristo
e continuaram até o período medieval. São ainda
hoje fonte de estudo judaico.
Além do Pentateuco samaritano, dos targumim
e do texto masorético, os escritos siríacos também
se originam da versão hebraica, não da Septuaginta.
Duas obras dessa tradição merecem destaque. Já
fizemos menção ao Diatéssaron de Taciano, harmo­
nização dos quatro relatos evangélicos em uma só
narrativa. Esse documento foi o Evangelho sírio
oficial até o século V Esse mesmo século viu a am­
pla aceitação de uma versão siríaca do Antigo e do
Novo Testamentos. Essa Bíblia é realmente uma
combinação de diversas fontes. O Antigo Testamen­
to baseou-se, provavelmente, na versão hebraica,
mas com influências dos targumim e da Septuagin­
ta. O Novo Testamento revela várias características
sírias. Essa Bíblia é conhecida como Peshitta, a
versão “simples”.
A versão latina mais amplamente conhecida é
a Vulgata de Jerônimo, texto oficial da Bíblia cató­
lica romana desde a época do Concilio de Trento
até recentemente. Embora não haja dúvida de que
Jerônimo foi influenciado pela Septuaginta e por
algumas versões latinas originárias dela, o Antigo
Testamento da Vulgata é tradução do hebraico.
Entretanto, o Novo Testamento origina-se realmen­
te de antigas versões latinas. Alguns estudiosos
acham que Jerônimo revisou apenas os evangelhos,
deixando o resto da tradução para outra pessoa
completar.
O copta é uma língua egípcia escrita no alfa­
beto grego. Esse fato faria com que a tradução do
grego fosse muito mais fácil do que a da versão
hebraica do Antigo Testamento. A própria Bíblia
copta não deriva de uma única tradição, mas sim
de diversas recensões ou revisões editoriais, o que
toma a qualidade da obra um tanto irregular. Como
acontece ffeqüentemente, o Novo Testamento é mais
consistente do que o Antigo, provavelmente por­
que as fontes neotestamentárias usadas eram em
menor número e mais padronizadas.
Como o hebraico e o aramaico, o etiópico é
língua semítica. Entretanto, o Antigo Testamento

da Bíblia etíope deriva da versão grega, não da he­
braica. De fato, é um dos testemunhos mais con­
fiáveis da Septuaginta não revisada. O Novo Testa­
mento é a parte que demonstra ter sido mais revi­
sada e, em conseqüência disso, é desprezada como
versão confiável.
HERMENÊUTICA
INTERPRETAÇÃO
Uma das questões mais excitantes e desafiadoras
do estudo bíblico contemporâneo é o da interpreta­
ção, ou hermenêutica, que não só prende a imaginação
dos estudiosos como também provoca considerável
confusão para o público em geral. A Bíblia significa
precisamente o quêl Entre as muitas interpretações
divergentes, qual é a correta? Que escola de interpre­
tação, ou que biblista em particular, devemos se­
guir? Embora com certeza não responda satisfato­
riamente a todas essas perguntas, o exame minu­
cioso dessa questão complexa e controversa poderá
lançar alguma luz nas fontes de algumas das confu­
sões sobre o significado do texto bíblico.
Precisamos nos lembrar de que a Biblia, como
realidade literária básica, é uma forma de comuni­
cação que abrange três componentes principais: re­
metente ou autor; mensagem ou texto; e destinatário
ou público. Historicamente, enquanto a comunica­
ção registrada nos textos bíblicos permaneceu na
comunidade de origem, o público exigia muito pou­
ca interpretação. A maior parte do público pertencia
ao mesmo universo de significado que o autor. Só
quando determinada mensagem bíblica era levada a
outro universo de significado havia necessidade de
amplos esforços de interpretação. Era inevitável que
resultassem entendimentos diferentes, conforme o
principal foco interpretativo estivesse no remetente,
na mensagem ou no destinatário.
A mensasem
Parece que nos primeiros séculos do cristianis­
mo, O centro primordial da maioria das interpreta­
ções estava na mensagem. Por isso, a tarefa interpre-
tativa era traduzi-la para o novo universo ou os novos
universos de significado. Na Idade Média, já haviam
sido desenvolvidos quatro tipos distintos de inter­
pretação da mensagem. Sobreviveram à marcha do
tempo e continuam a influenciar a forma como hoje
as pessoas entendem a Bíblia. São as interpretações
literal, alegórica, moral e escatológica. Como talvez
essas designações específicas sejam desconhecidas
do leitor, um breve exame de cada uma trará algum
esclarecimento.
Em geral, o sentido literal de um texto refere-se
ao significado que as palavras transmitem. Neste
caso, o texto é aceito por seu significado mani­
festo. Este entendimento indica que o público com­
preende imediatamente todas as nuanças da lingua­
HERMENEUTICA
gem da maneira pretendida pelo autor. Ele é aces­
sível sempre que autor e público compartilham a
mesma visão do mundo. Entretanto, um público
com uma visão do mundo bastante diferente não
tem tanta facilidade para compreender a intenção
do autor. A indefinição do sentido literal é óbvia
quando refletimos, por exemplo, sobre a rapidez
com que o significado das palavras muda. Os pais
de adolescentes muitas vezes ficam estarrecidos
ao ouvir os filhos falar uma língua que não faz
sentido para eles. Em essência, os dois universos
de significado — o dos pais e o dos filhos adoles­
centes — simplesmente não coincidem por com­
pleto; assim não pode haver pleno entendimento
mútuo.
Interpretações rigidamente literais ou funda-
mentalistas de textos bíblicos muitas vezes deixam
de levar em conta as inegáveis mudanças e evolu­
ções da língua. Os fundamentalistas bíblicos pare­
cem relutantes em reconhecer que o universo do
significado, a visão universal dos textos bíblicos,
não são iguais aos contemporâneos. A necessidade
de interpretação aumentará se a isso acrescentar­
mos o fato de a Bíblia ser produto de uma cultura
e de um tempo diferentes. O sentido literal da Bí­
blia, então, embora possa parecer o mais razoável
e provável, nem sempre é alcançado com a facili­
dade que alguns alegam.
O sentido alegórico da Escritura, bastante proe­
minente nos primeiros séculos do cristianismo e
também na Idade Média, expõe a Bíblia a uma in­
finidade de interpretações. Segundo essa aborda­
gem, o texto, na verdade, pretende dizer algo dife­
rente do que sugere sua redação literal. A contenda
é que significados místicos mais profundos estão
escondidos sob as palavras. Na verdade, esses sig­
nificados mais profundos em geral originam-se de
fora do texto bíblico em si e são levados a ele por
intérpretes que colocam nas imagens e ações do
texto significados de sua própria visão universal.
Por exemplo, a narrativa de Maria de Betânia que
escuta a palavra de Jesus, enquanto Marta se afoba
em um serviço complicado, foi alegoricamente in­
terpretada como se significasse que a vida contem­
plativa simbolizada por Maria é vocação mais su­
blime que a vida ativa simbolizada por Marta.
Contudo, dificilmente essa foi a preocupação do
autor original. Assim, pode haver tantas interpreta­
ções alegóricas de um texto quanto o número de
intérpretes com seus pontos de vista diversos. Por
isso, embora um texto apresente uma fecunda am­
plitude de significados, eles podem parecer arbitrá­
rios, subjetivos e distantes da mensagem mais ime­
diatamente aparente do texto.
No sentido moral, o texto é entendido primor­
dialmente em termos da vida espiritual de cada
fiel. Por exemplo, todo indivíduo é Abraão chama­
do a um novo relacionamento com Deus. A liber­
tação política do antigo Israel é entendida como 29
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
verdadeira descrição da liberdade pessoal que a
salvação traz à alm a do fiel. Embora tenha sido
empregado com freqüência por autores espirituais
para nutrir a vida interior das pessoas religiosas,
este método de interpretação tem graves deficiên­
cias. M uitas vezes o sentido comunitário da Bíblia
se perde e as responsabilidades sociais são quase
sempre esquecidas. As referências históricas têm
sua im portância minim izada e, às vezes, o texto
parece ser forçado a se ajustar ao formato prede­
terminado do intérprete.
O quarto método é o escatológico. Refere-se
ao significado espiritual do texto no que diz res­
peito às futuras realidades celestes ou escatológicas.
Segundo esse sentido, a “terra prometida” não é
nem o Israel histórico, como a interpretação literal
indicaria, nem a Igreja de Cristo, como o sentido
alegórico podería sugerir, nem a alm a do cristão
redimido, como afirm aria o sentido moral. É o
Reino do céu futuro. Este tipo de interpretação, tão
comum no fim da Idade M édia e até na época
moderna, inclinava-se a minim izar a im portância
da vida neste mundo. Tudo se concentrava na vida
futura. Como o sentido moral, essa maneira de en­
tender servia principalmente à vida religiosa do
povo. Se fazia ou não justiça ao texto bíblico é
outra história completamente diferente.
Como afirmamos antes, esses quatro sentidos
da Escritura continuam a influenciar a maneira
como muita gente entende a Bíblia hoje. Parte da
confusão atual talvez se origine das perspectivas
variadas empregadas nos métodos individuais, bem
como de qualquer mistura dos quatro. Traços de
todas essas abordagens ffeqüentemente vêm à tona
na pregação contemporânea e são proeminentes em
certa literatura religiosa contemporânea.
O rem etente
Uma conseqüência da Reform a foi a tentativa
persistente de evitar qualquer sinal de tendência
dogmática ou teológica na interpretação da Bíblia.
Muitos mestres da Reform a criticavam príncipal-
mente a maneira pela qual (alegavam eles) a igreja
rom ana estava lidando com a Biblia. Insistiam que
a Bíblia estava sendo mal empregada para defender
a doutrina oficial, de modo algum estabelecida na
Bíblia, e exigiam que se buscasse o sentido original
do texto, em vez de uma interpretação subjetiva ou
confessional.
Essa preocupação pôs um fim às tendências à
alegoria de grande parte dos biblistas. Embora esse
estilo de interpretação persistisse entre os católicos
romanos, os estudiosos e as comunidades protes­
tantes, em sua maioria, começaram a salientar os
antecedentes históricos da Bíblia. Assim começou
o movimento histórico-crítico, isto é, uma ampla
iniciativa entre biblistas predominantemente protes­
tantes para buscar o sentido de um texto bíblico por
30 meio de cuidadosa investigação e análise de seu
passado histórico. Só há bem pouco tempo este
movimento adquiriu proeminência em círculos
católicos. Foi incentivado desde a época do papa Pio
XII (1943) e recebeu ampla aprovação no Concilio
Vaticano II (Constituição Dogmática sobre a Reve­
lação Divina).
O centro mudara dos sentidos múltiplos da
mensagem ou do texto para o sentido “real” pre­
tendido pelo autor. Assim, agora o biblista tinha
que estar o mais bem informado possível sobre as
circunstâncias que cercavam as origens dos escri­
tos. Seus cenários históricos, culturais e religiosos
assumiram importância nova. As fontes emprega­
das em sua composição, o público para o qual se
destinavam e os propósitos aos quais deveríam ser­
vir passaram a ser assuntos que ocupavam a atenção
dos intérpretes.
Os resultados dessa mudança de método foram
muitos. Embora sempre reconhecidas como inspira­
das, as Escrituras começaram a ser apreciadas como
expressões humanas da fé de um povo. A partir
dessa perspectiva humana, homens e mulheres con­
temporâneos viam agora os antigos ocupados com
as mesmas lutas da vida em que eles estavam e
estão engajados. Começaram a ler as narrativas bí­
blicas com entusiasmo renovado. A teologia bíbli­
ca passou a ocupar um lugar significativo em suas
vidas. Procuraram responder à presença de Deus
em sua história, como haviam feito seus antepas­
sados dos tempos bíblicos. Sem dúvida, o novo
fervor bíblico introduzido pelo movimento históri­
co-crítico deu nova vida à Igreja.
O estudo da Escritura logo se transformou em
empreendimento muito sofisticado. Os que eram
inexperientes no método muitas vezes ficavam de­
sanimados com o que ele exigia e com os primeiros
frutos. Alguns sentiam que o próprio fundamento
de sua fé estava sendo despedaçado por descobertas
que não se harmonizavam com suas interpretações
religiosas, alegóricas, morais ou escatológicas. En­
tretanto, os que adquiriram alguma habilidade no
método e puderam apreciar seu valor logo tiveram
de reconhecer que ele tinha defeitos. Perceberam que
não bastava conhecer a teologia do passado. As ques­
tões com que lidavam tinham a ver com a aplicabi­
lidade da mensagem bíblica ao presente: a teologia
bíblica tem alguma relevância para os nossos dias?
Em caso afirmativo, como devemos traduzir para o
presente a mensagem teológica de outra era, outra
cultura, outra visão do universo?
Essas perguntas levaram os estudiosos a olhar
além da crítica histórica e se voltar para a questão
da hermenêutica, ou interpretação. Mas mesmo essa
mudança não parecia suficiente. Perguntas mais
radicais e mais abrangentes estavam vindo à tona.
A revelação só ocorreu há milhares de anos? Deve­
mos apenas reencenar em nossas vidas os eventos
salvíficos do passado? Uma segunda importante
mudança interpretativa estava para acontecer.

O destinatário
Agora a atenção está se concentrando no desti­
natário, ou público. Isso quer dizer que o intérprete
contemporâneo e o ato de interpretar tomaram-se obje­
to da análise. O método histórico-critico presume que
é possível um entendimento objetivo do significado
original. Tal posição ignora que o intérprete chega
ao texto com preconceitos históricos e religiosos. Os
novos métodos de interpretação admitem que a ma­
neira como o texto é entendido depende em grande
parte das perspectivas sociopolíticas e religiosas do
intérprete. Assim, por exemplo, as pessoas que já so­
freram opressão política, econômica ou religiosa vêem
a Bíblia de maneira diferente daqueles que olham
desde uma posição privilegiada.
Essa nova abordagem está apenas no início e,
portanto, ainda não pode ser adequadamente ava­
liada. Entretanto, já foram alcançados alguns re­
sultados muito excitantes e desafiadores. Homens
e mulheres começam a considerar sua própria vida
0 cenário onde está ocorrendo uma revelação, tão
autêntica quanto aquela descrita nos textos bíblicos.
A espiritualidade bíblica já não diz respeito exclu­
sivamente ao indivíduo. Recuperou sua dimensão
comunitária.
HCRMENEUTICA CONTEAáPORANEA
Outro jeito de abordar a questão da interpreta­
ção é distinguir entre o que a Bíblia significa e o
que a Bíblia significava. Como já mencionamos,
isso não é problema quando os autores e o públi­
co compartilham os mesmos universos de significa­
do. Toma-se problema quando a comunicação que
atravessa culturas e gerações já não garante mais
um entendimento comum. Os biblistas comprome­
tidos com a hermenêutica contemporânea compõem
um amplo espectro de posições a respeito do centro
principal desses dois pólos. Alguns afirmam que o
significado real é o pretendido pelo autor original
(o que a Bíblia significava). Outros alegam que,
depois de sair das mãos do autor, a obra literária
tem vida própria, independente da intenção do autor
(0 que a Bíblia significa). Muitas abordagens her­
menêuticas contemporâneas encontram-se em algum
lugar entre esses dois pólos, servindo de ponte entre
a intenção do autor e um contexto da atualidade.
Hoje, os biblistas referem-se à intenção do autor
(0 que a Bíblia significava) como sentido literal. É
importante esclarecer o significado exato dessa desig­
nação. Essa forma de entendimento toma as pala­
vras em seu significado manifesto, mas de acordo
com a intenção do(s) autor(es) ou editor(es) origi-
nal(is), não primordialmente como passaram a ser
entendidas hoje. Uma interpretação fundamentalista
da Escritura também entende as palavras em sentido
literal, mas lhes atribui um significado contempo­
râneo. A pressuposição que atua neste método, embo­
ra muitas vezes inconscientemente, é que o universo
HERMENÊUTICA
de significado de hoje é idêntico ao dos autores
antigos. A posição fundamentalista proclama ser
capaz de chegar ao significado literal apenas com a
leitura do texto. Os críticos, por outro lado, insistem
que, para o universo dos autores se revelar, é neces­
sária uma análise histórica precisa e ampla. Essa
análise critica abrange um grande número de metodo­
logias distintas, mas relacionadas. As principais se­
rão examinadas abaixo.
A concentração naquilo que a Bíblia significa
levou muitos estudiosos a estudos de caráter menos
histórico e mais literário. Diversas teorias literárias
foram examinadas e empregadas na interpretação
bíblica. Essa tendência levou à análise mais ex­
tensa de formas literárias, ao estudo do significado
dos símbolos e ao exame da própria natureza da
lingua em si como meio de comunicação. Ao con­
trário dos estudos históricos que lutam para apren­
der mais sobre o mundo do autor, a fim de decobrir
o significado original, é inevitável que os estudos
literários exponham o texto a uma pluralidade de
significados.
Sem negar a importância e a validade de cada
uma dessas duas abordagens, muitos biblistas acre­
ditam que nenhuma delas basta por si só. Insistem
que as Escrituras são mais que obras literárias —
são também tradição inspirada de uma comunida­
de permanente de fiéis. Assim, o sentido literal de­
sempenha papel normativo para ajudar a comunida­
de atual a chegar ao entendimento de sua identidade
e à apreciação dos tipos de estilo de vida que devem
fluir dessa identidade. Entretanto, se isso for verda­
de, então contextos históricos e/ou culturais dife­
rentes reinterpretarão e reafirmarão essas tradições
bíblicas de várias maneiras. O resultado será uma
pluralidade de significados válidos. O desafio da
hermenêutica contemporânea é planejar um méto­
do que leve em consideração essas duas abordagens.
Tal método estará qualificado para transmitir fiel­
mente a tradição inspirada. Assim, determinada ex­
pressão válida do significado do texto atuará como
a palavra de Deus, que transforma um novo povo
em uma comunidade de fiéis.
ABORDAGENS HISTÓRICO-CRÍTICAS
A expressão “método histórico-critico”, ou “crí­
tica histórica”, tem sido usada de forma tão impre­
cisa e errônea que a designação se tomou ambígua
e a utilidade da abordagem interpretativa foi ques­
tionada. Da forma como a entendemos aqui, é uma
abordagem que emprega todos os instrumentos his­
tóricos disponíveis na tentativa de reconstruir a
história e entender os documentos que essa história
produziu. Sua meta é histórica e ela trabalha de ma­
neira crítica e sistemática para alcançar essa meta.
Busca entender e interpretar as descobertas, mas não
as julgar. 31
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
O século XIX viu uma revolução em larga
escala na consciência histórica e o nascimento de
uma nova teoria histórica, o que levou ao desenvol­
vimento de instrumentos críticos para estudar o
passado. Os textos sagrados não podiam escapar
ao olho crítico desse tipo de investigação. Logo as
comunidades de fiéis estavam divididas entre o arre-
batamento de novas descobertas, novas interpreta­
ções e novos desafios à fé e o receio de que o que
era tão estimulante também fosse uma ameaça em
potencial a essa fé. O que fora acalentado como
“verdade” agora era questionado como “mito”. Prá­
ticas havia muito existentes eram consideradas irre­
levantes e sem fundamento histórico.
Embora ainda haja quem a rejeite como “sem
fé”, em geral essa abordagem crítica tem sido aceita.
Entretanto, essa aceitação não significa que os mé­
todos históricos responderam a todas as perguntas
sobre interpretação. Na verdade, os biblistas estão
cada vez mais convencidos da deficiência desses
métodos, começam a perceber que esperaram mais
dessas metodologias do que elas podiam oferecer.
Talvez a abordagem dê certo para tratar das ques­
tões históricas, mas certamente não é adequada para
expor as questões teológicas. Percebendo isso, os
biblistas continuam a empregar tais métodos histó­
ricos, mas não de forma incompatível com outras
abordagens críticas.
A pesquisa e a espiritualidade bíblicas têm uma
dívida com a abordagem histórica, que proporcio­
nou à comunidade de fiéis edições críticas da Bí­
blia que superam de longe as edições anteriores
em restauração e tradução textual. Essa abordagem
trouxe à luz a vida e a história do antigo Israel e
do cristianismo primitivo. Deu ao povo daqueles
tempos um enfoque mais nítido, que permitiu ao
leitor vê-lo como pessoas reais de quem podemos
entender as preocupações e os sonhos. Revelou a
profundeza da fé e a complexidade e o poder da
religião das comunidades de fiéis.
A crítica textual
A função da crítica textual é dupla; 1) restaurar
a redação original de um texto bíblico; 2) seguir o
rasto desse texto através dos séculos. A primeira
meta é impossível. Como o autógrafo ou m anus­
crito original de todos os livros da Bíblia se perdeu,
0 melhor que os biblistas podem fazer é recons­
truir o texto a partir dos manuscritos disponíveis.
Essa tarefa não garante nenhuma certeza histórica
por causa da inconsistência inerente ao material
dos manuscritos. Por meio da comparação de m a­
nuscritos os estudiosos criam o chamado “texto
crítico”, reconstituição hipotética, em geral acom­
panhada de extensas notas de rodapé (chamadas
aparato crítico) que indicam as fontes dos manus­
critos das passagens, além de interpretações alter­
nativas. As traduções modernas baseiam-se justa-
32 mente nesses textos críticos.
A segunda meta também é alcançada pela
comparação de textos, mas com um fim diferente
em vista. A reconstrução é movimento para trás em
direção a uma única interpretação. A história da
transmissão textual é busca para a frente, de inter­
pretações variantes que permitam ao biblista seguir
a mudança e o progresso que ocorreram à medida
que 0 texto se desenvolveu.
Como nenhum manuscrito contém o texto origi­
nal, todos são mais ou menos deturpados. A ques­
tão não é qual é a interpretação confiável, mas sim
de que maneira é confiável. Todo texto reflete o
período da história e a comunidade específica da
qual se originou e na qual sobreviveu. O exame cri­
tico do texto e a comparação com os textos varian­
tes nos dizem algo sobre esse período da história
e essa comunidade específica. As traduções exami­
nadas no capítulo anterior preenchem essa mesma
função. Revelam o estágio específico de estudo
crítico que a comunidade alcançou, o estágio atual
da língua para a qual o texto foi traduzido e, fre-
qüentemente, algumas questões teológicas de que
a comunidade precisa tratar.
Essa disciplina específica exige conhecimento
não só da língua original, mas também das línguas
relacionadas. A literatura de outras culturas que não
as comunidades é estudada para entender essas co­
munidades bíblicas no contexto mais amplo de seus
mundos respectivos. Embora pouca gente possa se
dedicar a esse tipo de pesquisa, as descobertas que
dela derivam devem ser consideradas tanto pelo tra­
dutor como pelo intérprete. Antes de ser dado qual­
quer outro passo interpretativo, é preciso estabele­
cer a melhor versão possível do texto.
Grande parte da história da crítica textual e
das explicações das principais fontes e tradições
dos manuscritos foi examinada na parte anterior e
não precisa ser estudada aqui.
A crítica literária
A palavra “crítica literária” é entendida de três
maneiras, pelo menos. 1) No sentido clássico, é a
abordagem crítica do estudo da literatura. São ana­
lisadas a estrutura, a forma e a linguagem. Essa
critica foi aplicada a material bíblico e, já no tempo
de Orígenes, levou os estudiosos a questionar a su­
posta autoria de alguns dos livros bíblicos. 2) Com
o surgimento da consciência histórica no século
XIX, foram feitas perguntas históricas sobre dife­
renças literárias e alguns passaram a chamar a
disciplina de “crítica das fontes”. 3) Recentemente,
os estudiosos estiveram outra vez fazendo pergun­
tas de natureza mais literária, indagações que tra­
tam do relacionamento entre conteúdo e forma e
da filosofia da linguagem.
No sentido bíblico tradicional, a critica literária
realmente surgiu de um estudo textual. Depois de
observar os vários nomes para Deus no livro do
Gênesis, um biblista do século XVIII descobriu pa-

drões literários nesse livro. Concluiu que fora com­
posto a partir de diversas fontes preexistentes. Poste­
riormente, a explicação para a composição do Penta-
teuco veio a ser conhecida como “ffipótese documen­
tária” (quatro fontes foram “descobertas”: a javista,
a eloísta, a deuteronômica e a sacerdotal). De modo
semelhante, a explicação para as diferenças na tra­
dição evangélica foi denominada “Hipótese das duas
fontes” (afirmava que o Evangelho de Marcos e
uma coleção de ditos conhecida como Q foram utili­
zadas por Mateus e Lucas). Acreditando que houve
diversas fontes para os textos bíblicos, os estudiosos
começaram a fazer perguntas sobre suas origens,
seus ambientes e as razões de sua composição. Desse
modo, a critica literária tomou-se uma disciplina
histórica.
Com todas as perguntas que foram respondi­
das, a crítica,literária também levantou algumas
questões novas que não conseguiu responder. Es­
tava aberta a porta para uma nova disciplina que
cuidasse dessas questões. (A nova crítica literária
será explicada mais adiante.)
A crítica das formas
A função da critica das formas é ir além das
fontes identificadas pela critica literária e descobrir
as situações de vida das quais se originaram. Pode
acontecer a critica literária ou das fontes estar inte­
ressada na autoria, mas ela ainda identifica esse autor
no singular. Por outro lado, a crítica das formas está
interessada nos cenários originais da vida da comuni­
dade. Descobre esses cenários por meio de identifi­
cação e análise das formas de expressão caracte­
rísticas encontradas na literatura existente. Embora
comece como abordagem literária, seu propósito é
descobrir o cenário histórico e a função histórica das
formas, a fim de entender seu estágio pré-literário
(oral).
E provável que o antigo Israel não fosse uma
cultura altamente literária. Assim, suas formas de
comunicação oral deviam ser muito convencionais,
o que significa que, antes de atingir a forma lite­
rária, essas formas alcançaram uma expressão oral
bastante consistente. Essas expressões faziam parte
da vida usual da comunidade. Reconhecer e inter­
pretar essas formas é o primeiro passo para intuir
essa vida.
A fim de realizar sua tarefa, primeiro os críti­
cos formais examinam a estrutura do texto de modo
a isolar as unidades individuais que o compõem e
que são, então, classificadas conforme o gênero ou
tipo literário. Essa classificação leva diretamente a
conclusões sobre o cenário, que aqui não se refere
à localização geográfica nem à determinação da
época específica, mas a situações socioculturais
que possam ou não incluir determinada estrutura
social ou religiosa. Por exemplo, o estudo dos sal­
mos de lamento nos diz muita coisa, ao mesmo
tempo que deixa muitas outras sem resposta. A la­
HERMENÊUTICA
mentação sugere uma situação humana que pode
ou não ser identificada. Esses salmos ffeqüente-
mente falam de corrupção e opressão social ou de
calamidade nacional, embora também se queixem
de infortúnio pessoal. Sabemos que os salmos fa­
ziam parte da liturgia do templo, mas seu uso não
se restringia àquele local, nem à liturgia oficial.
Assim, o lamento reflete o sofrimento humano, mas
nem sempre é específico sobre esse sofrimento.
Sugere a prática litúrgica, mas não se limitava a um
ritual formal. Estava associado ao templo, mas seu
uso não se restringia àquela instituição religiosa.
O último passo na análise de uma forma espe­
cífica é determinar exatamente o que se pretendia
que o gênero realizasse na comunidade. A lamen­
tação destinava-se a inspirar confiança em Deus?
Oferecia um caminho legítimo para a queixa? Ser­
via de admissão de culpa e confissão de arrepen­
dimento?
A alguns, a crítica das formas pode parecer um
processo negativo, que destrói a narrativa bíblica.
Na verdade, sua meta é positiva: reconstruir a tradi­
ção oral que está por trás da narrativa. As formas
são vistas como remanescentes da tradição primiti­
va. Portanto, a combinação dos tecidos, a mistura
das cores e a descoberta dos desenhos permite aos
estudiosos descobrir alguma coisa da peça original.
Da mesma forma que a critica literária originou-
-se do estudo textual, a crítica das formas trata de
questões que a critica literária ou das fontes era in­
capaz de resolver — questões sobre origens e cená­
rios e razões por trás da composição. Mas, como sua
predecessora, essa disciplina também tinha limita­
ções. Conseguiu identificar as formas da obra literá­
ria, mas não pôde explicar como se tomaram partes
do todo. A critica das formas conseguiu desmontar
o texto, mas não soube juntá-lo novamente. Seria
preciso a critica da tradição para fazer isso.
A crítica da tradição
A critica da tradição, ou história da tradição,
como às vezes é chamada, é uma análise da histó­
ria do processo de transmissão das tradições. É essa
disciplina que segue o rasto da criação e do desen­
volvimento de tradições, como esse processo foi
descrito na primeira parte deste artigo. Enquanto a
critica formal localiza os cenários de vida das uni­
dades, a crítica da tradição tenta descrever o que
aconteceu neles. Está interessada naquilo que mol­
dou a tradição à medida que era preservada e trans­
mitida, e procura seguir esse desenvolvimento. Daí
o nome história da tradição. Embora realmente se
ocupe do processo de transmissão, também exami­
na a tradição que está sendo transmitida, principal­
mente seu estágio oral. (A crítica redacional exami­
na os estágios literários desse desenvolvimento. Al­
guns estudiosos tratam-na como um passo na abor­
dagem tradição-história.) 33
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
A recorrência de motivos ou formas similares
toma possivel a crítica da tradição. Diversos exem­
plos são analisados para descobrir diferenças signifi­
cativas. (Esse processo difere da crítica formal, que
realça as semelhanças.) Depois de descobrir as di­
ferenças, o passo seguinte é determinar se elas resul­
tam ou não do desenvolvimento e, em caso afirma­
tivo, formular hipóteses sobre a causa desse desen­
volvimento. E bastante difícil reconstrair a história
literária. Quando estamos examinando os estágios
orais de uma tradição, há ainda menos provas con­
sistentes disponíveis e os estudiosos precisam ficar
atentos para que sua reconstrução não se afaste do
que 0 texto realmente diz.
A medida que descobrem por que a comuni­
dade de fiéis preservou as tradições nas formas em
que o fez e por que essas tradições passaram pelas
mudanças ocorridas, os estudiosos conseguem re­
construir a história da tradição da comunidade. Além
disso, esse estudo também revela informações que
podem ser consideradas históricas, no sentido estri­
to da palavra. Descobriu-se que as correntes da tra­
dição estão associadas a uma ou outra comunidade
ou grupo, por exemplo os profetas ou a comunidade
de Lucas. O exame dessas correntes de tradição nos
põe em contato com esse grupo, com suas preferên­
cias, suas estratégias e sua influência. Frequente­
mente, as tradições também são associadas a loca­
lidades específicas. Jerusalém é um exemplo. Quanto
mais detalhes conhecemos sobre o local, melhor po­
demos reconstruir o processo de tradição ali ocor­
rido. Tudo isso ajuda na descoberta das dinâmicas
sociopolíticas e religiosas que atuaram na criação e
no desenvolvimento das tradições.
Talvez o fiel comum possa apreciar mais dire­
tamente os frutos da crítica da tradição do que as
descobertas de outras disciplinas que já descreve­
mos. Esses frutos nos dizem como o antigo Israel
entendia sua história. (Como o processo de tradição
que resultou no Novo Testamento aconteceu em um
espaço de tempo consideravelmente menor, em geral
costuma ser estudado sob a crítica redacional. A crí­
tica da tradição tomou-se primordialmente uma disci­
plina veterotestamentária.) Também mostra como
eventos significativos dessa história tornaram-se
modelos para o entendimento de outras experiências;
por exemplo, a tipologia do Êxodo é com freqüên-
cia usada para descrever o Exílio. Por fim, a crítica
da tradição mostra como Israel entendia a revelação
de Deus. Era dentro do próprio processo de forma­
ção da tradição que Israel discernia a atividade de
Deus. Quando a comunidade lutou para manter, em
novas situações e novos tempos, a validade de suas
tradições inspiradas, reconheceu o ativo e orientador
envolvimento de Deus.
A crítica da redação
A crítica da redação dedica-se ao estudo de
34 como um editor ou redator usou as fontes escritas
e o que essa redação interpretativa diz sobre os in­
teresses teológicos desse redator. Essa disciplina é
semelhante à crítica da tradição, pois ambas se ocu­
pam em mostrar como os estágios de desenvolvi­
mento deram novas formas à tradição. Entretanto,
a crítica da redação preocupa-se com os estágios li­
terários, não com os orais. Como a crítica da tradi­
ção é, em princípio, disciplina do Antigo Testamen­
to, a crítica da redação desenvolveu-se a par com
os estudos do Novo Testamento. Seu enfoque mais
importante está na forma literária final, aquela que
chegou até nós.
Foi nos estudos dos Evangelhos que a crítica
da redação proporcionou os maiores resultados.
Comparando episódios de um evangelho sinótico
com os paralelos que aparecem nos outros dois, os
críticos da redação conseguem discernir o ponto
de vista teológico do evangelista. Dessa forma, con­
tribuem para nosso conhecimento da história teo­
lógica do cristianismo primitivo.
NOVAS ABORDAGENS CRITICAS
Por muitos anos, os métodos críticos resumidos
acima desenvolveram-se e aperfeiçoaram-se cons­
tantemente. Entretanto, nos últimos anos, novas
áreas de interesse foram examinadas, novas análises
empregadas e novas informações reunidas. Isso é
verdade a respeito da abordagem histórica e também
da análise mais estritamente literária.
Abordagens sociológicas
A sociologia é entendida de duas maneiras dis­
tintas, mas relacionadas. Em sentido amplo, é o es­
tudo da sociedade, o que inclui as ciências sociais,
tais como a própria sociologia, a antropologia, a
economia, a ciência política etc. Em sentido estrito,
a sociologia ocupa-se com a origem, o desenvolvi­
mento e os padrões do comportamento social.
A critica histórica tradicional produziu estudos
detalhados das realidades sociais do antigo Israel e
do cristianismo primitivo (a sociologia em sentido
amplo). Os estudiosos concentraram-se nas estru­
turas da vida social e usaram métodos de pesquisa
disponíveis para reunir os dados. A arqueologia foi
valiosa para essa abordagem, fornecendo artefatos,
literatura e documentos oficiais que foram exami­
nados minuciosamente, classificados e interpreta­
dos. As descobertas desenterradas foram compara­
das com material semelhante pertencente a outras
culturas antigas. Embora alguns estudos compara­
tivos se mostrassem valiosos, supôs-se que o ma­
terial analisado, retirado de seu contexto social
Único, tinha em seu contexto o significado e a im­
portância de material semelhante em outro contex­
to. Além disso, as teorias sociais da época determi­
naram a estrutura da interpretação. A perspectiva
evolucionária que com frequência equiparava mu­
dança e desenvolvimento a crescimento e progres-

so foi proeminente entre essas teorias. Assim, as
investigações sociológicas concentraram-se no de­
senvolvimento da religião e nas estruturas religio­
sas, não na dinâmica em jogo.
A virada do século viu os estudiosos fazendo
perguntas sociológicas e criando métodos socio­
lógicos para respondê-las. As ciências sociais ha­
viam atingido a maioridade e a sociologia em senti­
do estrito (o sentido que doravante lhe será atribuí­
do) começou a causar impacto não só nos círculos
especializados mas também no mundo em geral.
Esse novo estudo incentivou os biblistas a empregar
abordagens sociológicas em sua investigação das
Escrituras.
O estudo sociológico das Escrituras ainda está
no estágio primitivo e por isso é difícil avaliar suas
contribuições. Entretanto, já vieram à luz percep­
ções significativas. O entendimento das estruturas
sociais e políticas do antigo Israel acentuou o papel
que os profetas desempenharam ao criticar aquela
sociedade e incrementou a avaliação da mensagem
profética. Estudos da sociedade romana do século
I mostraram a Igreja cristã como uma singular e
contestadora comunidade de iguais.
Um dos ramos da antropologia, um segundo
campo sociológico, tem causado profundo impacto
no estudo literário das Escrituras: a lingüística ou
estudo da estrutura da linguagem. A partir dela se
desenvolveu a exegese estrutural, ou estruturalismo.
Ao contrário dos métodos histórico-críticos que in­
vestigam o processo histórico e buscam descobrir
0 significado original do texto, os métodos estrutu­
rais procuram o significado dentro da própria lin­
guagem, em vez de no evento histórico que fica
além da linguagem. Dessa maneira, partilham com
a nova crítica literária um mesmo enfoque.
Talvez um dos discernimentos mais importan­
tes que as abordagens sociológicas trouxeram aos
estudos bíblicos seja a percepção de que não só o
texto tem um contexto ou contextos sociais espe­
ciais dos quais se originou, mas os intérpretes tam­
bém atuam com preconceitos sociais. Todos os con­
textos têm suposições e pré-compreensões que pre­
cisam ser reconhecidas para que haja uma comuni­
cação atravessando cultjuras e gerações. Assim como
não podemos presumir que a linguagem tem o mes­
mo sentido em todos os contextos, não podemos
supor que as estruturas ou dinâmicas sociais desem­
penhem sempre os mesmos papéis.
A crítica da recepção
Um segundo desenvolvimento no estudo bíbli­
co, conhecido como critica da recepção, tem pouco
mais de uma década apenas. Seu interesse é o texto
bíblico em sua forma canônica ou final e o papel
que ela desempenha na fé da comunidade. Busca
pesquisar o desenvolvimento do cânon desde os
primórdios da formação da tradição, por meio das
etapas de interpretação, da seleção e organização
HERMENEUTICA
do material na formação de um livro bíblico e das
decisões finais que determinam a canonicidade. Di­
fere da crítica da tradição (que se interessa pelo
mesmo desenvolvimento) no fato de não se ocupar
da dinâmica histórica que formou a tradição, mas
sim dos métodos hermenêuticos que foram empre­
gados nessa formação, o que não faz da crítica ca­
nônica apenas outro método histórico, pois sua meta
não é histórica, mas teológica.
Como foi a interpretação que deu vida às tradi­
ções primitivas em um novo cenário, o estudo dos
princípios de interpretação devem descobrir como
isso foi feito. Os proponentes dessa abordagem
crêem que os métodos empregados na formação da
Bíblia podem ser aqueles usados pelos fiéis contem­
porâneos quando buscam fazer a mesma coisa que
fizeram por seus antepassados, isto é, dar vida às
tradições primitivas em novos cenários. Assim, a
Bíblia pode ser lida não só como literatura, mas
também como a Escritura Sagrada que é.
Embora reconheçam que princípios interpreta-
tivos foram empregados pelas diversas comunidades
em todas as etapas de criação e desenvolvimento das
tradições, os biblistas não têm um registro claro
desses princípios. Somente ao aplicar os métodos
de critica histórica e literária, justamente aqueles
aqui descritos, os biblistas podem ter esperança de
descobri-los. Quanto mais se souber sobre cada
etapa de desenvolvimento, mais fácil será discernir
o processo de desenvolvimento e os princípios que
o guiaram.
Está claro que o contexto, quer sociopolítico,
quer religioso, desempenha importante papel nessa
abordagem. Ao analisar os significados do passado
e também ao alcançar significados para o presente,
precisamos cuidar do contexto. Quando uma tradi­
ção do passado se deparava com novos interesses
ou um novo contexto, era reinterpretada segundo
alguma perspectiva teológica. De modo semelhante,
se essa tradição deve ser remodelada de maneira
autêntica e significativa, cabe ao intérprete com­
preender corretamente a situação contemporânea.
Nossa visão da realidade influencia, se é que não
determina, a forma que a tradição assumirá. Por
exemplo, o tema da aliança pode ser usado para
convencer uma sociedade acomodada de que sua
segurança é sinal da boa vontade divina e que ela
tem todo o direito de se apegar a ela. Por outro lado,
pode desafiar essa sociedade para que assuma suas
responsabilidades com os menos favorecidos e re­
distribua seus recursos em nome da justiça social.
As necessidades mais profundas da comunidade
(segurança ou desafio) devem ser reconhecidas.
Embora ainda em suas etapas iniciais, essa
abordagem da interpretação tem gerado bastante en­
tusiasmo. Muitos são os que têm esperança de que
seja um meio de preencher a lacuna entre o que a
Bíblia significava e o que a Bíblia significa hoje. 35
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
A nova critica literária
A nova crítica literária busca entender a Bíblia
estritamente como literatura. As questões históricas
que relacionam o material a sua origem são igno­
radas. O mundo que interessa a essa crítica não é
um mundo do passado, mas o mundo imaginoso
criado pela própria obra literária. Para entendê-lo,
não consultamos a arqueologia, nem a sociologia,
ou a crítica das fontes, mas a linguagem e as for­
mas usadas, a estrutura criada e os movimentos
literários desenvolvidos na obra. Dizer que o mun­
do de uma obra literária é imaginoso não significa
que seja irreal, mas que a obra não tem a pretensão
de descrever a realidade como ela é; imita a reali­
dade. Sua integridade não é determinada pela exa­
tidão histórica, mas por sua harmonia interna.
Se o mundo imaginoso da literatura é imitação
do mundo histórico da realidade, então os compo­
nentes dos quais é formado não são historicamente
reais, mas simbolizam a realidade histórica. São
todos basicamente metafóricos, análogos a alguma
outra coisa. Os indícios daquilo que esses componen­
tes representam não se encontram fora da obra, mas
dentro dela. A interpretação desses indícios devb ser
procurada no objetivo do gênero ou forma literária
a que pertence a obra. Como um gênero não é tanto
um conjunto de significados quanto um conjunto de
relacionamentos, toda obra literária está aberta a uma
pluralidade de interpretações. Existe pouco ou tal­
vez nenhum controle externo sobre a interpretação,
e assim precisamos nos ater estritamente aos pa­
drões estabelecidos pelo gênero. Embora a obra lite­
rária admita diversas interpretações, isso não quer
dizer que sua análise possa ser feita de qualquer jeito,
nem que signifique qualquer coisa que o intérprete
queira. Por exemplo, uma peça pode ter diversas
interpretações, mas seus relacionamentos internos
estabelecem certos limites. O mesmo acontece.com
sonetos, poemas humorísticos, parábolas, relatos de
milagres.
Este tipo de crítica literária passou por vários
estágios de desenvolvimento. A princípio, os textos
caracterizavam-se como janelas pelas quais o intér­
prete podia ver o significado à distância. Os críticos
contemporâneos preferem ver o texto atuando como
janela e também como espelho. Seu significado
deve ser encontrado dentro dele mesmo, mas não
de maneira tal que limite o leitor a ele. A boa lite­
ratura leva o leitor além dela. Essa abordagem inter-
pretativa permite que o crítico descubra o que o
texto significa, mas sem nenhuma consideração pelo
que ele significava.
PARA DESENVOLVER UM AáÉTODO
DE INTERPRETAÇÃO
Obviamente, a interpretação é mais do que ape­
nas a coleta de informações sobre um texto (crítica
36 histórica estrita). É explicação do significado do
texto. E quando o texto em questão é reverenciado
como a tradição sagrada de uma comunidade de
fiéis, tradição de certo modo enraizada na identi­
dade própria dessa comunidade, para a interpreta­
ção correta parece essencial um tipo de continui­
dade histórica com aquela comunidade permanen­
te. O que segue é exemplo de como as abordagens
históricas e literárias podem contribuir para desen­
volver um método de interpretação do texto bíblico
como Escritura (tradição sagrada), não apenas como
literatura.
Voltando ao modelo de comunicação descrito
no início desta parte, podemos nos concentrar no
remetente, na mensagem ou no público. Outra ma­
neira de entender essa tríade é falar de três universos;
o universo do qual surgiu o texto, aquele criado pelo
próprio texto e o do leitor. Cada universo é indepen­
dente dos outros. Entretanto, o do texto está em dí­
vida para com o universo do qual se originou, por
sua estrutura e pelo significado fundamental que
essa estrutura projeta. Isso não significa que o texto
se restrinja ao significado original e não possa gerar
uma pluralidade de significados legítimos. A nova
crítica literária mostrou que isso pode ser feito. Como
usada aqui, a expressão “dívida para com o universo
do qual se originou” significa que o objeto das in­
terpretações possíveis foi estabelecido amplamente
pelo contexto original. Esse universo pretendia ex­
pressar uma mensagem (o significado original) e
moldou o texto de modo a comunicá-la. Por exem­
plo, os profetas castigaram a nação por meio de um
oráculo de julgamento. Essa forma literária (o orá­
culo de julgamento) limita o número de métodos
pelos quais a obra literária pode ser interpretada.
A interpretação é definida como o encontro
do universo do leitor com o do texto, de um modo
que 0 significado do texto se apodere do leitor. Esse
significado pode ou não ser o significado original
do texto — isso vai depender do fato de o intérprete
ter ou não usado abordagens históricas ou literárias.
Segtmdo a nova crítica literária, com exceção da
escolha da forma e de todos os relacionamentos
internos intrínsecos a ela, o universo do qual se ori­
ginou o texto não precisa desempenhar nenhum
papel na interpretação. Entretanto — e este é um
ponto muito importante — , a Bíblia é um gênero
de literatura único. E a palavra de Deus inspirada.
Nenhum fiel nega que seja reveladora, mas seu
caráter revelador depende, de algum modo, do sig­
nificado original? Em outras palavras, o significa­
do original é normativo? E, em caso afirmativo, de
que modo é normativo? Este estudo afirma que o
significado original é verdadeiramente normativo
e explica essa qualidade normativa como se segue.
Assim como, durante a criação e o desenvol­
vimento, a tradição contribuiu para a formação de
uma comunidade de fiéis, ela não cessa de realizar a
mesma maravilha através dos séculos. Isto é, dá
testemunho da identidade da comunidade e conti-

nuamente desperta a comunidade para esse propó­
sito. Aconteceu no processo para transformar a tra­
dição conforme essa tradição fora transmitida à
comunidade. A interpretação ou o entendimento
da tradição que a comunidade recebeu talvez não
fosse idêntica ao significado original da tradição
(pode ser que a fidelidade à aliança exigisse respos­
tas diferentes em circunstâncias diferentes). Entre­
tanto, 0 significado recebido era aquele que fora
preservado para ela e a ela transmitido; e era o sig­
nificado que a comunidade considerava expressão
correta de seu entendimento da própria identidade.
Parece que em todo o processo de formação da tra­
dição a comunidade de fiéis exerceu bastante liber­
dade criativa. Entretanto, essa liberdade sofria res­
trição do conceito de identidade própria que herdou
da geração anterior. Embora gerações diferentes
possam ter entendido e expresso essa identidade
de diversas maneiras, elas preservaram sua essência.
Cada geração tinha de entender essa essência e de­
pois reafirmá-la de uma forma que expressasse sua
época. A partir desse ponto de vista, o significado
INTRODUÇÃO AOS PROFETAS PÓS-EXÍLICOS
Mary Margaret Pazdan, OP
Há uma variedade de pontos de partida dispo­
níveis para estudar um texto da Bíblia. O processo
de seleção é semelhante ao modo como as pessoas
vêem fotos num álbum. Um indivíduo concentra-
se em uma única imagem, enquanto outro admira
os arranjos ou as qualidades de composição. Uma
terceira pessoa aprecia a seqüência e a configura­
ção de diversas páginas, enquanto uma quarta exa­
mina o álbum todo, em busca de contornos imagi­
nários. Se O álbum ou as fotos prendem a atenção
de alguém, dão oportunidade a outras variações por
meio de exame repetido.
As experiências de quem examina o álbum tam­
bém influenciam o que é percebido. Um membro
da família, parente ou amigo sente grande prazer
ao encontrar lembranças repentinamente revitali­
zadas por fotografias significativas que celebram a
vida (por exemplo aniversários, férias de verão).
Entretanto, justapostas a essas fotografias estão ou­
tras que trazem à lembrança circunstâncias que mo­
dificaram o momento captado no filme (por exem­
plo distância, envelhecimento, morte). Quem não
está familiarizado com elas talvez precise de expli­
cações dos outros para que as fotografias façam
sentido.
PROFETAS PÓS-EX(LICOS
original pode ser entendido como normativo, em­
bora significados subseqüentes também possam ser
considerados válidos.
Um ponto que precisa ser lembrado é o papel
desempenhado pela comunidade de fiéis para deter­
minar a validade ou a pertinência de significados
diversos. A comunidade é o mensageiro da tradição.
A comunidade é o agente da reinterpretação criativa.
Assim, embora qualquer critico possa fazer a inter­
pretação da Bíblia como literatura, somente a comu­
nidade de fiéis pode interpretá-la como Escritura
reveladora, porque a remodelação da tradição acon­
tece em uma comunidade de fiéis.
A interpretação tem sido definida como o en­
contro do universo do leitor com o universo do texto.
O leitor traz ao texto uma perspectiva ou um enten­
dimento pessoal da vida; o texto expressa a tradi­
ção recebida pela comunidade. O significado des­
sa tradição é moldado pela perspectiva do leitor e,
por sua vez, apodera-se desse leitor. Assim, a tradi­
ção dá testemunho da identidade da comunidade e,
no processo, é, ela mesma, remodelada.
As experiências do fotógrafo dirigem a escolha
do assunto. Muitas vezes a fotografia representa paia
os que a vêem mais possibilidades do que o fotógrafo
viu ao enquadrar o assunto. O entendimento da fo­
tografia aumenta quando quem a vê e o fotógrafo
discutem sua importância. A realidade da fotografia
raramente se esgota, porque cada pessoa que a vê
enxerga-a com percepção limitada.
Como 0 fotógrafo e o que vê a fotografia alguns
biblistas começaram a dialogar com pessoas de ou­
tras disciplinas acadêmicas. Não mais confinados ao
método histórico-critico do século XDC, os comenta­
ristas aplicaram cautelosamente os métodos caracte­
rísticos da nova crítica literária, canônica e socioló­
gica para ampliar as possibihdades de interpretar a
profecia, inclusive os cinco livros tratados neste co­
mentário. O método interdisciplinar indicado em ar­
tigos eruditos e populares por mais de uma década
proporcionou vislumbres do significado da profecia
pós-exílica que fora generalizada e subestimada.
Por que a profecia a partir de seu desenvolvi­
mento (cerca de 1000 a.C.) até o período do exílio
(586-538 a.C.) recebe mais atenção em estudos do
Antigo Testamento?
a) Os livros que relatam o crescimento da pro­
fecia formam uma literatura maravilhosa. Natan, o 37
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
profeta da corte, acusa o rei David (100-967 a.C.)
por meio da parábola da ovelhinha do pobre (2Sm
12,1-15). Um ciclo de narrações sobre o Israel do
norte (869-815 a.C.) relata as aventuras de Elias e
Eliseu; uma disputa no monte Carmelo com os
profetas de Báal, o encontro com Izébel, milagres,
experiências de Deus, envolvimento com chefes
políticos e religiosos (veja IRs 17-21; 2Rs 1-9).
Os livros proféticos designados pelo nome de
indivíduos seguem as narrações sobre profetas.
Apresentam pormenores biográficos, gestos dra­
máticos e oráculos proféticos destemidos para co­
municar a palavra de Deus. Isaías, Jeremias e
Ezequiel surgem como figuras heróicas nas lutas
de Judá (782-586 a.C.). Os profetas estimulam o
interesse e a imaginação dos biblistas. Ao mesmo
tempo, apelam a crianças e adultos em contextos
catequéticos e de sermões e também por sua asso­
ciação com literatura, música e arte.
b) Muitos acontecimentos descritos pelos tex­
tos são comprovados pela literatura paralela do
antigo Oriente Próximo. Dados arqueológicos con­
firmam as perspectivas históricas e literárias da
profecia pré-exílica e exílica. Análise e compara­
ção com materiais extrabiblicos geram estudo e
descoberta adicionais.
c) Os livros indicam dimensões político-religio-
sas comuns de realeza e templo. A fidelidade do
rei e da comunidade ao Templo de Jerusalém é o
padrão pelo qual o Israel do norte e Judá são julga­
dos (veja IRs 12-2Rs 25). Os profetas exortam o
povo a ser fiel aos preceitos da aliança formada
primeiro com Deus no monte Sinai por intermédio
de Moisés. Eles criam as dimensões éticas da Torá,
imagens de Deus e de libertação futura, muitas
vezes evocando imagens do Êxodo.
d) Os autores neotestamentários referem-se
com frequência a pessoas e passagens da profecia
pré-exílica e exílica para descrever Jesus, os judeus
e comunidades primitivas de fiéis.
Quando biblistas mais antigos comparavam a
profecia pós-exílica com as características da profe­
cia pré-exílica e exílica mencionadas acima, a primei­
ra parecia sem importância e secundária na biblio­
grafia profética. As narrações são limitadas, sem por­
menores pessoais e raramente assunto da arte ou da
literatura. Os dados históricos e literários são escassos;
quase sempre a reconstrução é contraditória. As con­
dições políticas, sociais e religiosas posteriores ao exí­
lio não se comparam favoravelmente com a unidade
simbólica de realeza e templo. Os textos são pouco
citados pelos autores neotestamentários.
Já os biblistas contemporâneos não julgam a
profecia pós-exílica pela profecia mais primitiva. As
formas e o conteúdo proféticos alinhados com rei e
templo já não são necessariamente normativos nem
importantes. O que, então, é apropriado para a inter­
pretação dos escritos pós-exílicos? Neste comentá-
38 rio, o foco central é a contribuição de cada livro
como testemunha da restauração depois da experiên­
cia do exílio. As informações sobre determinado
autor, datação e composição são dadas antes do
comentário de cada livro, juntamente com um esboço
do livro. Considerações comuns a Joel, Abdias, Ageu,
Zacarias e Malaquias são descritas abaixo.
Localização no Antigo Testamento
O cânon hebraico e o cânon alexandrino incluem
os livros de Joel, Abdias, Ageu, Zacarias e Malaquias
entre os 12 profetas menores. Que significa essa
divisão? A designação “menores” tem sido inter­
pretada como significando “inferiores” ou “menos
importantes”, porque os 12 profetas menores se­
guem-se aos profetas posteriores (Isaías, Jeremias,
Ezequiel) no cânon hebraico e aos profetas (Isaías,
Jeremias, Baruc, Lamentações, Ezequiel, Daniel) no
cânon alexandrino. A palavra “menor” refere-se pro­
vavelmente à extensão dos textos comparada à dos
livros proféticos que os precedem.
Ao contrário dos profetas maiores, os fatores
históricos para ordenar e compilar os 12 profetas
menores permanecem obscuros. Os biblistas exa­
minam os cânones e livros em busca de inferências
de como o processo ocorreu. Ao comparar os câno­
nes, percebemos que coincidem quanto ao primeiro
livro e os livros do sétimo ao décimo segundo (Oséias,
Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Mala­
quias), enquanto os livros do segundo ao sexto estão
em ordem diferente: cânon hebraico — Joel, Amós,
Abdias, Jonas, Miquéias; cânon alexandrino —
Amós, Miquéias, Joel, Abdias, Jonas.
Qual das listas é a mais antiga? O que justifica
a mudança de ordem? Há três sugestões para a or­
dem dos livros em cada cânon: a) cronologia; b)
repetição de palavras e frases entre livros, por exem­
plo, Am 1,2 e J1 4,16; c) considerações mecânicas,
por exemplo, a extensão de um rolo. Hoje, as per­
guntas e as sugestões continuam sem resposta.
Como 12 livros proféticos independentes se
tornaram uma coletânea que foi considerada um
livro único é um enigma. Com frequência, o fato de
os 12 poderem ser escritos em um só rolo é dado
como solução. Historicamente, o processo de com­
pilação foi completado por volta de 300 a.C. Escre­
vendo um século mais tarde, Sirac reconhece os
profetas em seu louvor aos heróis de Israel:
Quanto aos ossos dos 12 profetas,
que refloresçam de seus túmulos!
Pois encorajaram Jacó
e o libertaram pela fidelidade da esperança.
(Sr 49.10).
Ao traduzir o texto hebraico para o grego de­
pois de 132 a.C., o neto de Sirac inclui a divisão
de profetas em seu prefácio: “Muitas coisas impor­
tantes nos foram transmitidas pela Lei, os profetas
e os que os seguiram; por causa deles, convém
exaltar Israel por sua instrução e sua sabedoria”.

Os profetas menores também eram importantes
para a comunidade de Qumran, pois os rolos dessa
comunidade incluem um comentário sobre Miquéias
e também oito cópias dos 12 profetas menores. Na
tradição cristã, o título “Profetas Menores” vem por
conta de Agostinho (De civitate Dei, XVI 11.29). Os
críticos canônicos observam que o processo de or­
denar e compilar os 12 profetas menores é menos
importante do que os fatores envolvidos no ato de
moldar os livros e a maneira como a forma final do
livro atuou em determinada comunidade de fé.
Cenário histórico
O ministério e a tradição textual de Joel,
Abdias, Ageu, Zacarias e Malaquias estenderam-se
por dois séculos de judaísmo pós-exílico. Embora
0 período esteja mal documentado, alguns teste­
munhos bíblicos e dados arqueológicos estão dis­
poníveis para reconstruir o contexto histórico dos
profetas e seus registros literários.
2Rs 23,36-25,30; 2Cr 36,9-21; Jr 32-34; 37-39;
52 interpretam os últimos dias de Judá e a depor­
tação para a Babilônia. Em 599 a.C., o rei Joaquim
recusou-se a pagar tributo a Nabucodonosor, sobe­
rano do império neobabilônico. Embora sejam obs­
curos a respeito do destino de Joaquim, os textos
bíblicos indicam que seu filho loiakin reinara ape­
nas três meses, quando Nabucodonosor forçou-o
a entregar Jerusalém na primavera de 597 a.C.,
loiakin, a família real, artesãos, chefes militares e
cidadãos proeminentes foram enviados ao cativeiro.
Os utensílios sagrados do Templo também foram
transportados para a Babilônia.
Para reduzir a possibilidade de outra rebelião,
Nabucodonosor designou Sedecias, tio de loiakin, para
reinar em Judá. Durante onze anos, ele vacilou entre
0 apoio do partido pró-egípcio e a proteção de Jere­
mias. Tendo escolhido a resistência, como fizera seu
irmão, Sedecias também foi forçado a se render a
Nabucodonosor, que ordenou a destruição do palácio,
do Templo e da cidade; o soberano e os habitantes
foram deportados para a Babilônia em 586 a.C.
Para as poucas pessoas que permaneceram nas
proximidades de Jerusalém, Nabucodonosor nomeou
Godolias governador de Judá. Depois que ele foi
assassinado por um rebelde, a política babilônica de
deportação e divisão da terra continuou em Judá e
outras partes do império. Os edomitas, antigos ini­
migos de Israel, tomaram parte do território de Judá.
O Livro de Abdias volta-se contra a traição deles. O
Livro das Lamentações reflete a angústia e a tragé­
dia desse período para os judeus.
Depois da morte de Nabucodonosor, em 562
a.C., o império enfraqueceu-se gradativamente e
Ciro, o Persa, aproveitou a oportunidade para vin­
te anos de conquista. Seu sucesso culminou na
rendição da Babilônia em 539 a.C. A atitude libe­
ral de Ciro para com os povos vassalos levou à au­
torização para seu retomo e ao financiamento da
PROFETAS POS-EXILICOS
restauração de templos e cultos. O Cilindro de Ciro,
inscrição em argila que fala do triunfo babilônico
de Ciro e de sua norma de devolver os cativos à
terra natal, indica suas intenções: “Que todos os
deuses que coloquei em seus santuários façam uma
prece cotidiana por mim... que meus dias sejam
longos”.
Ciro também publicou um edito aos judeus da
Babilônia. Sob a liderança de Sheshbasar, príncipe
de Judá, um pequeno grupo retornou, trazendo
doações dos vizinhos e os utensílios confiscados
do Templo (Esd 1,2-2,70). Enquanto isso, um gran­
de número permaneceu na Babilônia, preferindo
seus lares, estruturas de vida comunitária e a leal­
dade para com o governo tolerante a um futuro
incerto no Judá devastado (compare Jr 29,1-9).
Os que voltaram encontraram uma terra dizi­
mada, proprietários de terras inóspitos, casamen­
tos mistos e culto sincretista. Nomeado governa­
dor, Sheshbasar deu início a tentativas de restaurar
o altar sacrifical e os alicerces do Templo. A crono­
logia confusa e os pormenores narrativos de Esdras,
único registro bíblico do período, não indicam o
que aconteceu a Sheshbasar. Depois da morte de
Ciro, seu filho Cambises reinou até 522 a.C. Por
ocasião de sua morte, ocorreu uma rebelião genera­
lizada em muitas regiões do império. Dario, oficial
do exército de Cambises, estabilizou o império de­
pois de dois anos de violentos combates. Nesse
tempo, outro grupo de judeus babilônicos voltou a
Jerusalém, inclusive Zorobabel, nomeado governa­
dor, e Josué, o sumo sacerdote. Durante essa dupla
chefia, houve esforços renovados para reconstruir
0 Templo.
Entretanto, obstáculos continuaram a dificultar o
progresso. Dentro da comunidade, continuou o antago­
nismo sobre a propriedade de terras. As secas e o solo
pouco produtivo aumentaram o peso das impiedosas
condições de vida. Vozes contrárias à restauração
vieram de áreas vizinhas sob o controle persa e tam­
bém dos samaritanos, ao norte. Dario interveio para
decidir a controvertida autorização para a reconstru­
ção do Templo. Também Ageu e Ziacarias encoraja­
ram os residentes a perseverar em seus esforços.
Na primavera de 515, quase 25 anos depois do
edito de Ciro, a comunidade ofereceu sacrifícios a
Deus e dedicou o Templo (Esd 3-6). Não há ne­
nhuma avaliação da liderança de Zorobabel. Como
Sheshbasar, ele desapareceu misteriosamente da
narração de Esdras. E de presumir que Josué e a
classe sacerdotal associada ao Templo tenham se
tomado a fonte de autoridade política e religiosa
para a comunidade.
Há um hiato de 50 anos no relato bíblico, em­
bora o texto sem data de Malaquias ofereça uma
avaliação da vida comunitária antes da chegada de
Esdras. O autor condena a irresponsabilidade dos
sacerdotes em questões cultuais, casamentos mistos
com não-judeus e injustiça social. 39
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
Encarregado por Artaxerxes I, Esdras iniciou
uma reforma religiosa em 458 a.C., condenando o
casamento misto, nomeando magistrados e juizes
honestos e reunindo o povo para a leitura da Lei
(Esd 7,1-10,16; Ne 8,1-9,37). Neemias, copeiro de
Artaxerxes I, foi governador de Judá de 445 a 433
a.C. Protegeu Jerusalém dos inimigos, supervisio­
nando a reconstmção dos muros da cidade. Depois
de breve ausência, Neemias voltou como governa­
dor (430-418 a.C.), para fazer cumprir as leis religio­
sas a respeito do sustento dos funcionários do Tem­
plo, do casamento e da observância do sábado (Ne
l,l-7 ,5 ; 11,1-13,31).
O Livro de Joel, sem data, é considerado teste­
munha da situação da comunidade depois das refor­
mas de Esdras e Neemias. O autor exorta o povo à
oração pública e à penitência para afastar o julga­
mento divino. É uma preparação para “o dia do
S enhor” , o julgamento final entre Israel e as nações.
Há um hiato de quase um século no relato bí­
blico, durante o qual o império persa enfraqueceu­
-se e o império grego desenvolveu-se sob a lideran­
ça de Alexandre Magno (336-323 a.C.). O Dêutero-
Zacarias (caps. 9-14) é dirigido à comunidade
judaica durante esse aparecimento de um novo im­
pério mundial. Os oráculos descrevem um combate
cósmico, 0 Messias e o novo reino de Deus.
Atitudes e perspectivas acerca da reconstrução
Os judeus babilônicos que voltaram a Jerusa­
lém em duas etapas participaram das múltiplas
tarefas de reconstrução. Que desafios enfrentaram
juntamente com o grupo já estabelecido em Judá
durante o exílio? Além dos obstáculos menciona­
dos acima, os dois grupos tiveram de encarar a
questão complexa de identidade.
Judá era uma entre diversas províncias incluí­
das na satrapía “Além-Eufrates” (veja Esd 4,17.20;
5,6). É provável que seu administrador, o sátrapa,
residisse em Damasco. Judá gozava do tipo de inde­
pendência concedida a membros das quase duas
dezenas de satrapias do vasto império persa, inclu­
sive liberdade paia atividades cultuais. Tendo Jerusa­
lém como centro, Judá identifica-se como comuni­
dade do Templo semelhante a outras restauradas e
subvencionadas pelo governo central. Jerusalém exer­
cia o papel de centro religioso e teimbém administra­
tivo da província.
Os funcionários nomeados pelo governo central
mediavam sua autoridade como governadores— por
exemplo Sheshbasar, Zorobabel, Neemias. Nos afa­
zeres cotidianos, entretanto, os sacerdotes tinham
autoridade. Decidiam sobre a posição de indivíduos
segundo sua participação e ajuda ao culto. A legisla­
ção sobre os padrões da pureza necessária para os
participantes do culto incluía a condenação dos com­
prometidos com 0 culto sincretista, dos que se casa­
vam com estrangeiras residentes e dos que faziam
40 negócios com nâo-judeus.
Tanto os residentes como os que retomaram fo­
ram afetados por esses critérios. A tensão entre os
dois grupos acirrou-se, inclusive na ciasse sacerdotal.
O conflito entre os funcionários sacerdotais resultou
em uma divisão de responsabilidade. Os sacerdotes
filhos de Sadoq (que retomaram da Babilônia) assu­
miram a posição principal para o culto e a adminis­
tração; os levitas ficaram relegados a posições secun­
dárias com pouca autoridade.
Alguns biblistas afirmam que dessa situação siff-
giram duas correntes principais de autoridade religio­
sa e que isso explica o declínio da profecia. O grupo
teocrático era associado aos sacerdotes filhos de
Sadoq, à reconstrução do Templo e à reconstituição
da vida religiosa segundo aTorá e a visão de Ezequiel
(Ez 40-48). O grupo apocalíptico era associado aos
levitas e a uma futura transformação da situação atual
segundo a visão do Dêutero-Isaias (Is 40-55). Porém
essa avaliação é rígida demais. Não leva em conta a
pluralidade da experiência e da perspectiva religiosas.
A forma de restauração da comunidade e de
sua identidade relaciona-se com a interpretação da
revelação divina como um determinado profeta a
entende. Todo profeta era influenciado pelas ne­
cessidades de uma comunidade específica. Cada
um tinha uma proclamação provisional destinada a
incentivar aquela comunidade a ser fiel a Deus:
a) Abdias implorou a Deus que destruísse os
edomitas e defendesse Israel das falsidades deles.
b) Ageu e Zacarias acreditavam que a restau­
ração do Templo apressaria o advento de Deus com
o propósito de habitar para sempre em Jerusalém.
Zacarias também levou em consideração o relacio­
namento de Deus com outras nações. Os dois pro­
fetas enfrentaram a resistência dos habitantes de
Jerusalém, devido aos sonhos destruídos e às duras
condições de vida, que cerceavam o entusiasmo e
a perseverança para a reconstrução. Nenhum dos
dois profetas estava seguro sobre o papel dos go­
vernadores e da classe sacerdotal. Mesmo depois
da conclusão do Templo, o passado não podia ser
modelo apropriado para o presente.
O ministério desses profetas foi eficiente por­
que eles inspiraram uma identidade comum entre os
residentes, isto é, uma comunidade do Templo e o
local restaurado para a atividade cultuai. Depois de
suas mortes, o dilema de profecia não cumprida e
de relacionamentos não resolvidos entre seus vizi­
nhos continuou. Incerteza, confusão e instabilidade
caracterizaram o período.
c) Malaquias voltou-se para os abusos na prá­
tica cultuai. Joel admoestou a comunidade sobre
seu relacionamento com Deus e sua expressão sim­
bólica no culto. Os dois profetas desejavam uma
renovação de vida religiosa dedicada para as pes­
soas que aceitassem sua mensagem.
d) Os escritos do Dêutem-Zacarias despertaram
a esperança latente e dissiparam a apatia da comuni­
dade por intermédio de visões da luta culminante

seguida pelo dia do Senhor, d ia em que um reino de
paz e bênçãos seria assegurado para sempre.
Estes cinco profetas podem ser lembrados pela
atividade durante um período triste da história de
Israel. Com seu relato literário, cada profeta dá
testemunho de uma determinada situação um tanto
influenciada pelas normas imperiais persas e gregas,
contudo transcendendo-as com uma visão religiosa
relacionada à experiência da comunidade a quem é
dirigida a mensagem. Convencidos da fidelidade
de Deus, transmitiram uma mensagem que chamava
a comunidade a responder de maneira apropriada.
Exortaram a comunidade a ser fiel a Deus, à reali­
dade constante de sua história passada e à sua expe­
riência presente.
Ao julgar os profetas pós-exílicos desta série,
não podemos considerar se sua mensagem foi ou não
cumprida na história posterior. O mistério do Deus
fiel e a maneira pela qual o indivíduo e a comuni­
dade respondem são as perspectivas criadas por
esses livros. Além disso, o fato de comunidades de
fiéis preservarem e compilarem estas proclamações
e considerarem-nas a autêntica revelação de Deus
indica sua importância para o desenvolvimento da
fé nas comunidades pós-exílicas.
Formas literárias
Os livros de Joel, Abdias, Ageu, Zacarias e
Malaquias contêm poesia e prosa. São visões e orá­
culos atribuídos aos profetas cujos nomes são os tí­
tulos dos livros e também inserções editoriais para
consolidar o material e proporcionar a interpreta­
ção para comunidades mais tardias. Os livros refe­
rem-se às Escrituras mais primitivas (Torá e Profe­
tas), por meio de alusões e repetição de aconteci­
mentos e idéias. Ocasionalmente, há citações diretas
de profetas mais primitivos.
A estrutura literária de cada livro origina-se do
contexto particular no qual a mensagem foi procla­
mada pela primeira vez. Fórmulas proféticas comuns
a livros pré-exílicos e exílicos são às vezes localizadas
nas composições pós-exílicas; de vez em quando, com­
binam-se com novos padrões. Em especial, com ífe-
qüência os biblistas consideram partes desses livros
indicativas de nova forma literária, ponto de vista e
conteúdo conhecidos como “apocalípticos”. Como a
estrutura literária de determinado texto é indicador
primordial de seu sentido religioso, é importante en­
tender a estrutura, a fim de interpretar o alcance reli­
gioso do texto. Abaixo são apresentadas algumas con­
siderações literárias para c a ^ livro, de acordo com a
ordem cronológica já sugerida.
Abdias, o livro mais curto do Antigo Testamento,
consiste em dois conjuntos de oráculos recebidos
em uma visão segundo a tradição dos profetas de
Jerusalém. O primeiro conjunto de oráculos descre­
ve a destmição de Edom (vv. 2-9) em linguagem
semelhante à de Jr 49,7-22. Este vizinho de Israel é
condenado por ter traído Jerusalém para a Babilônia
PROFETAS PÓS-EXÍLICOS
(w. 10-14). O segundo conjunto foi acrescentado
mais tarde para incluir o dia do S enhor como julga­
mento para todas as nações (w. 15-16). O aconteci­
mento culmina com a restauração de Israel e o esta­
belecimento do reino universal de Deus (vv. 17-21).
Alguns biblistas afirmam que a estrutura dos orácu­
los (vv. 2-17) indica uma comunidade que cultua
proclamando a soberania de Deus pela proclameição
de oráculos contra seus inimigos.
Os dois capítulos de Ageu também contêm
oráculos entremeados de estruturas editoriais para
interpretá-los. As estruturas incluem: a) a cronologia
do ministério de Ageu para os residentes de Jerusa­
lém (1,1.15; 2,1.10.20); b) inserções de fórmulas
proféticas tradicionais para apresentar um oráculo,
tais como “a palavra do S enhor veio por intermé­
dio de Ageu, o profeta...” (1,1.3; 2,1.10.20; compare
1,12.13); c) um relato sobre o resultado da prega­
ção de Ageu à comunidade (1,12.14). Embora pala­
vras de conforto estejam incluídas nos oráculos,
sugerindo o julgamento de salvação característico
da profecia clássica (1,13; 2,4.5), os oráculos acres­
centam uma nova revelação — o debate. Algumas
indicações desse padrão são perguntas retóricas
(1,4; 2,3,16) e o formato de pergunta e resposta
(1,9-11).
Oráculos não atuam como a principal forma
literária de revelação no Primeiro Zacarias (caps.
1-8); são, isso sim, um padrão secundário que ocor­
re em uma coletânea (caps. 7-8), ligado a visões, o
padrão principal da revelação (1 ,7 ^,8 ). As visões
constituem alguns dos textos mais difíceis de inter­
pretar na literatura bíblica. Alguns biblistas afirmam
que a importância das visões da “noite” consiste em
proporcionar uma alternativa aos oráculos e visões
de Ezequiel (caps. 40-48) e de Ageu sobre a recons­
trução do Templo. Zacarias compôs uma perspec­
tiva teológica para a fidelidade a Deus na nova si­
tuação de “intermediação”.
No Livro de Malaquias, o formato de pergunta
e resposta que apareceu em Ageu (e no Primeiro
Zacarias) toma-se a estmtura básica dos oráculos.
Esse padrão catequético era apropriado para exortar
a comunidade e os encarregados do culto a ser res­
ponsáveis por seus relacionamentos com Deus. Eram
exortados a revitalizar práticas cultuais moderadas e
a observar as leis de casamento e as proibições contra
o divórcio (1,2-3,21). Os dois apêndices (3,22-24)
terminam com uma instmção para ser fiel à Lei e
uma descrição de Elias, mensageiro divino que re­
conciliará OS membros da família.
O Livro de Joel é uma coletânea de oráculos
com dois temas correlates: devastação e salvação.
Na primeira parte (1,1-2,17), o profeta atua como
figura de culto. Chama o povo ao arrependimento
em uma liturgia de lamentação comunitária destina­
da a evitar um desastre muito pior do que a praga
dos gafanhotos. Depois de apresentar o conceito do
“dia do S enhor” , Joel adverte o povo sobre suas 41
 INTRODUÇÃO À BlBLIA
expectativas. Na segunda parte (2,18-4,21), o profeta
descreve o dia do S enhor com mais pormenores.
Em todos os oráculos há alusão ffeqüente ou citações
diretas de declarações encontradas em outras cole­
tâneas proféticas; por exemplo. Is 13,6 e Ez 30,2-3
(J1 1,15); Sf 1,14-15 (J1 2,1-2); Ab 17 (J1 3,5).
O Dêutero-Zacarias (caps. 9-14) está separado
do Primeiro Zacarias por quase dois séculos de histó­
ria política e religiosa Os capítulos estão divididos
em duas partes. Cada parte tem sua introdução (caps.
9-11 e 12-14). Ao contrário do Primeiro Zacarias,
a estrutura oracular é proeminente. Dentro dos orácu­
los não há nenhuma revelação original; em vez disso,
a função dos oráculos é reunir as expectativas de
profetas mais primitivos e indicar como podem ser
realizadas; por exemplo, Sf 3,14ss (Zc 9,9); Is 5,26
(Zc 10,8); J1 4 (Zc 14). Outra diferença importante
é a ausência de qualquer menção aos construtores e
funcionários do Templo. Além disso, não há indica­
ções cronológicas, nem nenhuma estrutura “históri­
ca” coerente. Finalmente, os capítulos do Dêutero-
Zacarias foram avaliados pela linguagem e pelo ponto
de vista apocalípticos.
Relacionam ento com escrito s apocalípticos
Tem havido renovado interesse na origem, na lin­
guagem, no conteúdo e na interpretação dos escritos
apocalípticos judaicos. A profecia pós-exílica tem sido
considerada uma fonte possível dos escritos apoca­
lípticos, já que o fenômeno não corresponde à estru­
tura e ao conteúdo da profecia clássica. Alguns bi-
blistas elaboraram uma polaridade entre os “tradicio­
nalistas” e os “visionários” existentes na comunidade
do Templo. Seu conflito de interesses resultou na
formação de dois grupos distintos. Os “tradicionalis­
tas” reafirmaram a posição de apoiar o Templo e seus
funcionários. Os “visionários” expressaram suas es­
INTRODUÇÃO A LITERATURA SAPIENCIAL
Lawrence E. Boadt, CSP
A natureza do livro sapiencial
Depois da guerra da independência dos Estados
Unidos, quando os delegados das treze colônias
americanas estavam redigindo a Constituição, che­
gou um momento em que todos contestavam algu­
ma parte do novo documento e parecia que ele nun­
ca conseguiría ser aprovado. Durante a discussão,
Benjamin Franklin, o estadista mais velho do grupo,
observou que, embora também não concordasse com
todos os dispositivos, já vivera o bastante para saber
42 que muitas vezes mudara de opinião e provavelmente
peranças radicais de uma nova identidade pela trans­
formação da situação presente. Hoje a análise interdis-
ciplinar com as ciências sociais, em especial a antro­
pologia cultural, parece apoiar esta interpretação.
O conflito intragrupo e circunstâncias osci­
lantes podem ser catalisadores para a formação de
grupos apocalípticos. A pergunta mais difícil não é
por que surgiram um ponto de vista e uma literatu­
ra apocalípticos, mas por que surgiu essa determina­
da forma. A diversidade religiosa aparente nas co­
munidades pós-exílicas sugere que o desenvolvi­
mento apocalíptico não foi o resultado inevitável
de determinadas circunstâncias sociais.
A maior parte da cultura deste século tem con­
siderado a questão relacionada das origens da lin­
guagem apocalíptica. Surgiu da profecia? E uma
adaptação do dualismo persa? A literatura sapien-
cial é a sua formadora? A busca de fontes parece
estar mal orientada, pois todo texto apocalíptico
combina alusões de uma ampla série de fontes. O
sentido de qualquer texto depende das fontes e tam­
bém da maneira como elas são combinadas no pro­
cesso editorial.
As investigações atuais da estrutura e do con­
teúdo de escritos apocalípticos judaicos têm indi­
cado que algumas partes dos livros proféticos pós-
exílicos podem ser classificadas como proto-apo-
calípticas, por exemplo, o Dêutero-Zacarias; J1 3 ^ ;
Ml 3—4. Entretanto, o fato de partilharem seme­
lhanças e aspectos de conteúdo não indica que al­
guns textos pós-exílicos possam ser interpretados
segundo visões apocalípticas do mundo. A decisão
de investigar a afinidade lingüística e o paralelo
estrutural da profecia pós-exílica com a literatura
apocalíptica salienta a relutância de alguns biblis-
tas em analisar estes textos proféticos por suas
contribuições.
mudaria de novo. Achava que aquele não era o me­
lhor documento, mas estava longe de ser o pior e
votaria a favor dele. A Constituição logo foi aprovada
por maioria esmagadora. Seu bom senso, sua prudên­
cia e seu julgamento sensato deram-lhe o direito de
ser chamado “Pai da Sabedoria Americana”.
Esse mesmo espírito que distinguia Franklin tam­
bém caracteriza os livros sapienciais do Antigo Testa­
mento. Eles formam uma parte da Bíblia com ffe-
qüência negligenciada, mas refletem importante dis­
cernimento do ideal religioso de Israel, o que não é
exatamente o mesmo que fidelidade à Lei mosaica

ou obediência aos profetas. O livro de Daniel des­
creve bem esta outra dimensão do ideal, quando o rei
babilônio quer que alguns dos jovens judeus captu­
rados sejam trazidos a sua corte para estudar sabe­
doria: “moços em quem não houvesse nenhum de­
feito, belos de se ver, instruídos em toda sabedoria,
peritos de saber, compreendendo a ciência e cheios
de vigor, para que permanecessem no palácio do rei”
(Dn 1,4). Encontram-se outras descrições do sábio
em Gn 39,1-6; 41,8-32 (José), IRs 5,9-14 (Salomão)
e 2Sm 16,15—17,14 (Ahitôfel e Hushai).
Os livros sapienciais não são todos iguais; dife­
rem uns dos outros em estilo e conteúdo. Mas certas
características separam-nos de outros livros bíblicos;
eles demonstram:
1) muito pouco interesse pelas principais tra­
dições do Pentateuco, tais como a Lei do Sinai, a
aliança, o culto, a vocação especial de Israel;
2) pouca ou nenhuma preocupação pela história
de Israel como povo;
3) a busca do sentido da vida e o dominio da vida
como ela é conhecida pela experiência e não apenas
pela fé;
4) a ânsia de analisar o desconhecido e os difí­
ceis problemas de doença, sofrimento, morte, a desi­
gualdade entre ricos e pobres, a aparente arbitrarie­
dade da bênção divina sobre as pessoas;
5) curiosidade sobre o mundo como um todo e
a experiência universal de todos os povos e nações;
6) dedicação à descoberta do comportamento
moral apropriado, o modo certo de viver.
Essas preocupações levaram os sábios a questio­
nar a vida e, ao mesmo tempo, analisar e ordenar a
experiência comum em regras para viver. A sabe­
doria incentivava a disciplina do pensamento, o racio­
cínio cuidadoso e o controle das emoções. “Não te
deixes arrastar por teus desejos, e refreia tuas concu-
piscências. Se concederes a satisfação dos teus de­
sejos, isto fará de ti o escárnio de teus inimigos”,
diz Sirac (Sr 18,30-31). Ao mesmo tempo, os sábios
eram extremamente tolerantes sobre adotar costumes
de outros povos. Estavam, em suma, interessados em
todas as dimensões da vida, da perspectiva de “Como
posso tirar disso o melhor proveito para mim e para
a sociedade em geral?”.
Freqüentemente, essa abordagem faz com que
os escritos sapienciais pareçam ter um ponto de vista
muito secular. Muitos provérbios não têm qualquer
relação com a Lei divina. Até um infiel concorda
sinceramente com a advertência “Não te metas com
os beberrões nem com os que se empanturram de
carne. Pois bêbados e comilões caem na miséria e
a sonolência se cobre de farrapos!” (Pr 23,20-21).
Os rabinos dos primeiros séculos depois de Cristo
discutiam com veemência se o Eclesiastes foi ou
não ateu, antes de decidirem que o livro tinha de ser
canônico porque o nome de Salomão estava ligado
a ele. Quer otimista a respeito do mundo, como Pro­
vérbios, quer pessimista, como Jó e Eclesiastes, a
LITERATURA SAPIENCIAL
sabedoria vê o mundo de um ponto de vista bastan­
te profano. O exemplo mais importante disso é José
no Livro do Gênesis, que age com discernimento e
prudência e faz a vontaide divina sem jamais receber
uma revelação de Deus.
Embora tais qualidades sejam apreciadas em
quase toda a parte no Antigo Testamento, só alguns
livros podem ser chamados especificamente “livros
sapienciais”, porque do princípio ao fim se concen­
tram na reflexão intelectual sobre o mundo, de um
ponto de vista humanista. São eles: Provérbios, Jó,
Eclesiastes (ou, em hebraico, Coélet), Sirácida (ou
Eclesiástico) e Sabedoria (outrora chamado A Sabe­
doria de Salomão). O Cântico dos Cânticos está es­
treitamente relacionado com eles. Embora o Cântico
seja poesia de amor, é também afirmação confiante
de criação e da capacidade humana para a felicidade.
Há salmos que podem ser relacionados como escritos
sapienciais; 1; 32; 34; 37; 49; 73; 111-112; 128 e
talvez alguns outros (19,8-15; 119; 127). Os biblis-
tas também chamam a atenção para influências sa­
pienciais nos profetas, em especial Isaías e Amós,
que salientam o fato de conhecerem a sabedoria ou
os desígnios divinos e, com frequência, empregam
expressões sapienciais. Alguns ecos do pensamento
sapiencial estão presentes alhures, como na narra­
ção do jardim de Éden (Gn 2-3), na vida de Salomão
(IRs 3-11), na história de José (Gn 37-49) e no
Livro de Daniel (caps. 1-6).
As observações sobre a vida não se restringiam
a Israel. Declarações proverbiais são quase universais.
No passado, muitas vezes os biblistas trataram o ma­
terial sapiencial quase inteiramente em relação a ou­
tros livros da Bíblia; mas, nos últimos anos, aumen­
taram bastante as descobertas de escritos sapienciais
por egípcios, sumérios e babilônios, e agora a evidên­
cia mostra claramente o quanto Israel deve a essas
nações por sua tradição sapiencial, o que não nos
surpreende. É natural que o enfoque sapiencial nas
questões comuns aos seres humanos em toda a parte
levassem os israelitas a estudar obras famosas de
outras nações.
O Egito, em particular, foi fonte de estudos.
Produziu muitas coletâneas de provérbios que datam
de 2400 a.C. a 500 a.C., com freqüência na forma
de preceitos de um pai a seu filho, o que pode muito
bem ter sido um jeito formal de falar sobre mestre
e aluno. A coletânea mais primitiva. Instruções do
v tir Ptah-hotep, reunia conselhos sobre como subir
na vida e se parece com os provérbios mais antigos
do Livro de Provérbios. Compare: “Se estiveres à
mesa de alguém mais importante que tu, aceita o
que ele te der quando for colocado à tua frente”, de
Ptah-hotep, com Pr 23,1, “Se estás à mesa com um
poderoso, presta atenção àquele que está na tua fren­
te”. A obra muito mais tardia Ensinamentos de
Amenêmope, escrita entre 1000 e 600 a.C., tem 30
instruções que correspondem estreitamente à cole­
tânea em Pr 22,17-24,22. Um exemplo é Pr 23,10; 43
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
“Não removas um velho marco, nem invadas o cam­
po dos órfãos”. Compare com a instrução de Ame-
nêmope: “Não leve embora o marco dos limites da
terra cultivável, nem mude a posição do cordel de
medir”. O sábio israelita modificou um pouco o adá-
gio para aplicá-lo ao costume de deixar as respigas
para os pobres (Dt 24,19; Rt 2,1-7). Para mais deta­
lhes sobre a relação de Amenêmope com Provérbios,
veja o comentário sobre Pr 22,17—24,22.
As escolas sapienciais egípcias também produ­
ziram textos didáticos em louvor de escribas (veja
Sr 39,1-11), listas de nomes e classificações de todo
tipo de coisas (veja a lista dos assuntos de Salomão
em IRs 5,13), reflexões pessimistas sobre a vida
(veja Jó e Eclesiastes) e até uma história de honesti­
dade e retidão ameaçadas pela luxúria (a História
de Dois Irmãos), que se tomou o modelo para a ten­
tação de José pela mulher de Potifar em Gn 30,1-20.
Na Suméria e na Babilônia, a tradição sapiencial
estava tão desenvolvida quanto no Egito. As coletâ­
neas proverbiais sumérias são anteriores a 2000 a.C.
e muitos de seus provérbios parecem ter equivalentes
em Israel. “Mal teus olhos pousam sobre ela [a rique­
za] e já terá sumido. Pois ela sabe tomar asas! Voará
qual águia para o céu” (Pr 23,5) tem mensagem pa­
recida com a do adágio sumério: “As propriedades
são pardais em fuga que não encontram lugar para
pousar”. É curioso que os compiladores sumérios
tenham reunido os provérbios por assunto, enquanto
é muito difícil encontrar ordem nas coletâneas de
Israel. Além disso, os sumérios preferiam imagens da
natureza e apresentavam um mínimo de julgamento
moral. Nesse ponto, eram diferentes de Israel.
A Babilônia produziu grande número de obras
que tratavam de questões da vida humana. O poe­
ma ionvareí o S enhor da Sabedoria (em babilônio,
o Ludlul bel nemeqí) trata do motivo pelo qual os
deuses permitiam o sofrimento imerecido. É, às
vezes, chamado “o Jó babilônio”. Outras obras exa­
minam a questão da insignificância e há até um
Diálogo de Pessimismo entre um homem e seu es­
cravo, que termina com uma insinuação de suicí­
dio. Uma obra conhecida popularmente como o
“Eclesiastes babilônico” também examina os pro­
blemas de teodicéia (o tratamento dado por Deus
ao sofredor inocente).
Enquanto os provérbios sumérios tinham um lado
impiedoso — as forças da natureza podem ser cruéis
e indiscriminadas e o mesmo acontece com os deuses
— , a sabedoria bábilônica procurava lutar com as
incertezas da vida e reconciliar as contradições da
experiência. Salientava a necessidade de entender o
universo em termos de leis morais que orientariam o
comportamento humano. Assim, produzia muitos
provérbios de reflexão que não são diferentes dos
preferidos pelos sábios no Livro dos Provérbios. “O
que os teus olhos viram, não te apresses a depor em
processo, pois o que farias, afinal, se teu adversário
44 te confundisse? (Pr 25,8) não é diferente das adver­
tências contidas na obra babilônica Conselhos de
Sabedoria: “Não freqüentes o tribunal... pois na con­
tenda serás chamado a testemunhar e moverão um
processo contra ti que não poderás sustentar'’.
Em geral, as sabedorias egípcia, mesopotâmica
e israelita concordavam que a sabedoria tradicional,
transmitida havia muito tempo, tinha um valor espe­
cial que nenhum indivíduo podia igualar em apenas
uma vida de experiência. Quase todas as obras co­
nhecidas salientavam a importância de se sentar aos
pés de um pai ou mestre e aprender com o passado.
A introdução à Sabedoria de Shuruppak, uma obra
suméria, é característica:
(Shuruppak) transmitiu ensinamentos a seu
filho...
Oh!, meu filho, ofereço-te ensinamentos,
aceita minha instrução...
Não te descuides de minha instrução, não
transgrida minha palavra falada.
Como os escritos de ambas, a sabedoria meso­
potâmica e a egípcia, estavam bem estabelecidos e
altamente desenvolvidos muito antes que Israel exis­
tisse como nação, devemos concluir que sua influên­
cia sobre o pensamento israelita mais tardio foi
bastante profunda.
O s dois cam inhos da sabedoria
O filósofo grego Protágoras disse que “o homem
é a medida de todas as coisas”. Os antigos mestres da
sabedoria do Oriente teriam concordado que esse é o
ponto de partida para a análise da exp)eriência. Em­
bora não fossem filósofos no sentido moderno de
buscar uma explicação sistemática dos primeiros prin­
cípios de realidade, os sábios eram argutos observa­
dores do mundo em que viviam e tentavam encontrar
padrões e eventos previsíveis que ajudassem os ho­
mens a lidar com esse mundo. Devemos lembrar que
eles pouco sabiam sobre as causas de doenças e en­
fermidades, sobre as causas das condições atmosfé­
ricas e sobre a extensão da civilização, com exceção
do que estava próximo. Isso significava que nada po­
diam fazer para evitar doenças deformantes ou curá-
las, impedir enchentes e prever secas, e entender os
modos estranhos de povos distantes. O mundo físico
em que viviam era muito mais incerto e, portanto, mais
ameaçador do que o nosso. Mas era tão interessante
quanto o nosso e a curiosidade dos mestres de sabedo­
ria sempre procurava ligações entre as coisas. Apesar
das incertezas, estavam convencidos de que o mundo
era bem organizado e podia ser entendido o bastante
para permitir a formação de normas para o comporta­
mento moral.
Os sábios observavam, classificavam, refletiam,
faziam comparações e analogias e, por fim, tiravam
conclusões para o comportamento cotidiano. A sabe­
doria orientava seus discípulos para a boa ordem do
universo, quer ela se chamasse maat no Egito, quer
se chamasse ME na Babilônia ou sedeqá em Israel.
A observação comum em geral apoiava um mundo

de ordem — o sol se levanta e se põe todos os dias,
as estações são previsíveis, mas a certeza humana
também estava ligada à fé na ordem divina da cria­
ção. A causa dessa certeza estava na bondade dos
deuses e seu plano para o universo. Somente os
deuses entendiam esse plano em sua plenitude, mas
os homens podiam conhecê-lo de forma limitada e
agir de acordo. Assim, em um nível a sabedoria an­
tiga era extremamente confiante e positiva sobre a
vida e a capacidade humana de levar uma vida bem-
-sucedida segundo a ordem divina. O uso de provér­
bios — ditos curtos que captam a essência do com­
portamento correto — reflete essa atitude.
Por outro lado, criou-se tensão entre o que se
deduzia como boa ordem e se transmitia como verda­
de e a experiência cotidiana de fracasso e incerteza
que as pessoas tinham. Em contraste com a sabedoria
confiante de Provérbios e Sirácida, desenvolveu-se
uma segunda corrente de reflexão incrédula e ques-
tionadora — que lutava contra a dor e o sofrimento
humanos — , surgida do desconhecimento das razões
pelas quais a vida com freqüência era inconsistente
com as crenças baseadas na boa ordem divina. Os
livros de Jó e do Eclesiastes são às vezes veementes
em seus desafios da sabedoria tradicional. Questio­
nam totahnente nossa capacidade de conhecer e en­
tender por que a natureza age como age e o que Deus
pretende que façamos. Ambos propõem soluções que
se baseiam mais em um relacionamento pessoal com
Deus do que em um entendimento da realidade. Na­
turalmente, tanto Jó como o Eclesiastes também co­
meçam com a experiência e usam a regularidade
descoberta para apresentar seus casos; somente ne­
gam sua capacidade última de explicar o propósito
com 0 qual Deus age.
Os mestres de sabedoria de Israel tentaram
resolver a tensão, afirmando cada vez mais que há
limites àquilo que os homens podem saber. Sr 3,21
adverte; “O que está acima de tuas forças, não o
investigues”; e 3,22 acrescenta: “não necessitas das
coisas escondidas”. Deus sempre nos deixa saber o
bastante para dirigir nossas vidas, mas o sentido
último de cada vida está oculto no silêncio do pro­
pósito divino. Nisso, a sabedoria une-se às procla­
mações de fé da Lei e dos Profetas.
(
O horizonte cósm ico
A experiência é tanto altamente pessoal como
muitas vezes impessoal. Quando a boa ou má sorte
acontece apenas para mim, volto-me para a intimi­
dade da oração para louvar a Deus ou lhe pedir
ajuda; mas muitos acontecimentos, tais como guer­
ras, desastres naturais, a singularidade de animais
estranhos e a regularidade das estações, nada têm
a ver com minha pessoa e levantam questões maio­
res sobre o universo como um todo. Não é, em
absoluto, surpreendente que a sabedoria desse muita
atenção às origens cósmicas e à maravilha da pró­
pria criação.
LITERATURA SAPIENCIAL
Embora a fé mosaica de Israel salientasse para
o povo a salvação pessoal pelo S enhor, seus círculos
de sabedoria baseavam suas descobertas na ordem a
ser encontrada no próprio plano de criação. Hinos
em louvor da divina bondade e da majestade de
Deus revelada na criação enchem a tradição sapien-
cial. Jó 28, Pr 8, Sr 16 e 43 e Sb 7 identificam a sa­
bedoria com a vasta e incompreensível grandeza da
própria criação. Passagens em outras partes do An­
tigo Testamento (Gn 1; Ez 28; Is 40; SI 8) também
louvam a criação como sinal da grandeza divina,
mas em nenhum lugar ela desempenha um papel
tão central em nossa aproximação de Deus como na
tradição sapiencial. Quase todas essas passagens
podem ter sido influenciadas pela sabedoria. Mes­
mo nos breves adágios dos Provérbios, o Criador
desempenha papel central (Pr 14,31; 17,5; Ecl 12,1).
Essa ênfase na criação coloca a sabedoria na
corrente das religiões do antigo Oriente Próximo,
em especial a mesopotâmica, na qual a prática
cultuai se concentrava na volta à ordem certa e à
perfeita bondade da primeira criação pelos deuses.
Os povos pagãos tentaram apagar o intervalo entre
esse tempo e o presente — o pecado e o fracasso
— e restaurar a integridade e a vitalidade daquele
primeiro momento. Até certo ponto, a religião babi-
lônica era uma fuga do presente para um mundo
ideal intemporal, por meio do culto.
Nesse ponto, a atitude de Israel era profúnda-
mente diferente. Ele estava convencido de que o tem­
po caminhava para a frente e não se podia jamais
voltar ao que fora perdido. Mas Deus sempre agiria
novamente para curar, reconstruir ou tomar a aben­
çoar 0 mundo, e era possível ter total confiança em
Deus porque ele age infalivelmente por bondade ina­
ta. Em Gn 1-3 essa convicção se expressa pela bên­
ção divina aos primeiros seres humanos, a rejeição da
bênção por eles e a nova bênção divina sem restau­
rar por completo o que tinham perdido. Essa atitude
está expressa nas proclamações de fé da aliança,
onde a fidelidade divina à promessa perdura apesar
da infidelidade de Israel. E se expressa em sabedo­
ria, apelando ao ato divino de criação como fonte
para entender a bondade do mundo. A beleza da or­
dem e da harmonia divinas revela-se à nossa inteli­
gência refletindo-se na criação e, embora não possa­
mos entender plenamente seu significado, ela nos
mostra as opções básicas diante de nós; o caminho do
bem ou o do mal, o caminho do sábio ou o do tolo;
as atitudes da humildade ou da arrogância humanas.
Esses temas são tratados de maneira mais completa
nos comentários sobre o Livro dos Provérbios.
A sabedoria tardia, refletida no Sirácida e no
Livro da Sabedoria, une mais as reflexões sobre a
fé e a criação, afirmando que, como Criador, Deus
só é conhecido em plenitude pela obediência à Lei
(veja em espeeial Sr 24 e Sb 18-19).
Onde a sabedoria encontra seu lugar?
Os biblistas argiunentam a favor de diversas
fontes diferentes para a tradição sapiencial. U m a 45
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
que aparece freqüentemente por trás dos adágios
proverbiais é a família. Muitos provérbios são di­
rigidos de maneira explicita de pai para filho (Pr
1,8; 2,1; 10,1) ou de mãe para filho (Pr 31,1-2).
Mas, mais do que isso, um número significativo de
máximas é dirigido a questões de relações entre
pais e filhos, educação moral dos jovens e costu­
mes familiares. Pr 19,26 adverte; “Maltrata o pai e
expulsa a mãe o filho que envergonha e desonra”;
e Pr 20,11; “Um jovem é logo conhecido por seus
atos: percebe-se se puro e justo é seu agir”.
Embora todos concordem que alguma educação
tinha de acontecer no lar, nem todos acreditam que os
israelitas freqüentavam escolas formais. Mas as muitas
referências a mestres como “pais” nos Provérbios e a
existência difundida de escolas no Egito e na Mesopo-
tâmia sugerem que também Israel tinha programas de
educação que pelo menos alguns meninos freqüenta­
vam durante muitos anos. Esses programas incluíam
o aprendizado do alfabeto, seguido da escrita e do do­
mínio de provérbios curtos e, por fim, do estudo de
obras literárias mais longas. O prólogo do Sirácida,
escrito por volta de 132 a.C. traz um relato: “... meu
avô Jesus [Ben Sirac], que se tinha entregue acima de
tudo à leitura da Lei, dos Profetas e dos outros livros
de nossos pais, e que alcançara grande domínio sobre
eles, foi levado também a escrever sobre a instrução
e a sabedoria...” Essa educação formal objetivava criar
uma classe profissional de escribas e burocratas que
exerceriam fimções administrativas no Templo, no gover­
no régio e nas casas de negócio. Há muitos exemplos
de ensaios sumérios e egípcios em louvor da profis­
são de escriba como a mais elevada da terra. Passagem
semelhante encontra-se na Bíblia em Sr 38,24-39,11,
e em outras passagens há muitas alusões á importân­
cia do escriba (ICr 27,32-33; Is 8,16; Jr 26,1-21).
No antigo Oriente Próximo, a sabedoria estava,
acima de tudo, associada aos reis e á administra­
ção régia. David é chamado de sábio em 2Sm 14,20
e a sabedoria de Salomão é descrita em pormenores
em IRs 3-11. Pr 25,2 declara: “A glória de Deus
é agir em mistério e a glória dos reis, agir após
exame”. IRs 5,9-14 declara sobre ele:
Deus concedeu a Salomão sabedoria e inteli­
gência em profiisão, bem como uma abertura de
espírito abundante como a areia à beira do mar.
A sabedoria de Salomão ultrapassou a de todos
os filhos do Oriente e a do Egito. Ele foi o mais
sábio dos homens; mais sábio do que Etan, o
ezrahita, e do que Heman, Kalkol e Dardá, filhos
de Mahol, e seu nome era conhecido em todas
as nações vizinhas. Pronunciou três mil provér­
bios, e seus cânticos são em número de mil e
cinco. Falou das árvores; tanto do cedro do
Líbano como do hissopo, que brota nos mu­
ros; falou dos quadrúpedes, das aves, dos rép­
teis e dos peixes. De todos os povos e da parte
de todos os reis da terra que ouviram falar da
sabedoria do rei Salomão vieram pessoas ou-
46 vir as palavras de sua sabedoria.
Essa tradição atribui ao rei conhecimento en­
ciclopédico e também a capacidade de governar
com sucesso e fazer bom julgamento (IRs 3). Mas
os reis reuniam em tomo de si conselheiros habi­
lidosos para assegurar que se sairíam o melhor
possível (veja 2Sm 16,15-17,23; ICr 27,32-33; IRs
12,6-7; Jr 8,8-9; Is 31,1-3). Os livros de Daniel e
Ester descrevem as cortes reais dos babilônios e
persas repletas de sábios conselheiros dos reis.
Ainda outras passagens da Bíblia referem-se à fama
dos sábios nas cortes dos reis de Edom e da Assíria
(veja Ez 28,3-4; Jr 49,7).
Quando David criou seu império, transformou
Israel de organização tribal local em potência mun­
dial da noite para o dia. Ele precisava com urgência
de diplomatas, administradores e escribas, o que tor­
nou necessário tomar emprestadas as técnicas de
reinos vizinhos, em especial o Egito. Sob seu filho
Salomão, esse treinamento foi bem estabelecido e
houve uma explosão de atividade literária, inclusive
a primeira redação das tradições religiosas de Israel
pelo javista, os relatos históricos da elevação de
David ao poder e o desenvolvimento da sabedoria
como arte. Até os títulos dos funcionários adminis­
trativos de Salomão — “os chefes que estavam a
seu serviço”, os secretários e o chanceler (IRs 4,1-
6) — são tomados por empréstimo das altas funções
no Egito e correspondem a vizir, escriba real e arauto
real. Nessa situação, teriam florescido as escolas para
os bem-dotados. O jovem israelita escolhido para es­
tudar teria apoiado o grito entusiástico de um escriba
egípcio, Duauf: “O escriba — todos os cargos da cor­
te estão à sua disposição!”
Não há, no Antigo Testamento, nenhuma decla­
ração que realmente afirme que alguém se manteve
como mestre de sabedoria, mas é bastante provável.
Jeremias menciona o sábio na mesma situação que
o sacerdote e o profeta: “Eles dizem: ‘Vamos armar
um plano contra Jeremias; sempre será possível
achar instrução divina junto aos sacerdotes, conse­
lho junto aos sábios, a palavra, junto aos profetas’”
(Jr 18,18).
Embora seja difícil mostrar um perfil completo
do sábio profissional atuando fora de um papel po­
lítico no palácio, há nas Escrituras sinais suficien­
tes para formar um esboço razoável. A filosofia de
vida encontrada no Livro dos Provérbios com ffe-
qüência reflete as preocupações dos ricos e daque­
les que tinham tempo livre para estudar. A ênfase
no modo de falar correto, nas habilidades para es­
crever, nos bons modos e no empréstimo de dinhei­
ro descreve uma elite governante, não a classe agri­
cultora ou trabalhadora. A inclinação conservadora
da sabedoria proverbial é, às vezes, atribuída aos
ricos que valorizam acima de tudo a estabilidade
política. Assim, o mestre de sabedoria dava aulas
para os jovens da classe alta. Um provérbio parece
subentender que as famílias ricas pagavam direta­
mente ao mestre: “De que vale o dinheiro na mão

do insensato? Para ganhar sabedoria? Falta-lhe
juízo!” (Pr 17,16).
O s m étodos do sábio
Parte da tarefa de educação era memorizar os
valiosos ensinamentos do passado; outra parte eia
aprender a raciocinar e fazer associações. Para al­
cançar essas metas, os sábios aperfeiçoaram muitas
formas literárias distintas, sendo as principais o pro­
vérbio e a comparação. Como a maior parte da edu­
cação era oral, podemos imaginar o mestre fazendo
perguntas aos estudantes e estes respondendo de acor­
do com chaves estabelecidas que ajudavam sua me­
mória. Em vista disso, é surpreendente como são
poucos os enigmas e as fábulas encontrados na litera­
tura hebraica. Os ensinamentos sapienciais da Meso-
potâmia preferiam ambos como instrumentos didá­
ticos, mas apenas uma ou duas fábulas estão presen­
tes no Antigo Testamento (Jz 9,8-15; Ez 19,10-14)
e um único enigma completo (Jz 14,12-18). A peque­
na coletânea de provérbios numéricos em Pr 30,15-33
pode originalmente ter sido composta de enigmas, mas
agora aparecem no texto como observações prover­
biais sobre a vida.
O pmvérbio era elemento importante na sabedo­
ria israelita porque concentrava as lições do passado de
maneira prática e engenhosa, com um toque do ser­
mão e em uma forma fácil de lembrar. A popularida­
de do provérbio em Israel devia-se a sua capacidade
de captar tanto o discernimento mais comum da vida
cotidiana como o problema mais difícil da exp>eriência
de maneiras novas e interessantes. Da mesma forma,
a comparação forçava o ouvinte a fazer analogias
entre o que era observado no mundo animal ou vege­
tal e o comportamento humano. Nem o provérbio nem
a comparação esperavam explicar plenamente a reali­
dade, mas pela justaposição de diversas intuições
alcançava-se uma imagem mais rica e mais variada.
Essa busca das múltiplas faces da vida também
ajuda a explicar os outros gêneros literários preferi­
dos pelas escolas de sabedoria. São, em sua maior
parte, não-dogmáticos, mas mesmo assim educativos.
O caminho da sabedoria era a persuasão, não o man­
do e, assim, os gêneros mais importantes incluem a
alegoria (Pr 5,15-23; Ecl 12,1-6); os provérbios nu­
méricos (Pr 6,16-19; 30,15-33; Sr 25,7-11); ono­
másticos (isto é, listas de nomes: Ez 27,12-25; Sr
24,13-17); hinos (Pr 8,22-31; Jó 28; Sr 24); diálo­
gos (Jó); bem-aventuranças (“Feliz quem...”: Pr 3,13;
8,32ss.; 14,21; 16,20; Ecl 10,17; Sr 14,1-2); forma­
tos de pergunta e resposta, em especial perguntas
retóricas (Sirácida); confissões de louvor (Sr 33,16-
18; 51,13-22); enigmas parciais (Sr 39,3; Sb 8,8);
citações usadas como ponto de partida para refle­
xões (Eel 4,8; 10,18; 11,1; 7,3-4; 10,2) e reflexões
filosóficas (Livro da Sabedoria). Quando não usavam
uma das formas literárias mais engenhosas, os auto­
res sapienciais recorriam à instrução direta, forma
tomada emprestada dos egípcios (Pr 1-9).
LITERATURA SAPIENCIAL
Como as escolas de sabedoria desenvolveram
esses métodos eficientes para educar as pessoas,
os profetas muitas vezes apropriaram-se de suas
técnicas. A pergunta retórica era preferida dos pro­
fetas maiores, em especial de Isaías, assim como o
diálogo entre Deus e profeta (veja as chamadas
confissões de Jeremias em Jr 12; 15; 17; 18; 20).
Alguns profetas, principalmente Ezequiel, aprecia­
vam a parábola e a metáfora como meios de dizer
o que queriam (veja Ez 16; 17; 19; 23; 29; 30; 31;
32). Amós usou o provérbio numérico como instru­
mento dramático (Am 1,3-2,6). Porém, enquanto a
sabedoria empregava esses meios para abrir as men­
tes jovens para o mundo à sua volta, os profetas os
usaram para contestar o entendimento que as pes­
soas tinham da aliança. A introdução ao Livro dos
Provérbios (cf vol. II) discute muitos desses pon­
tos pormenorizadamente.
Síntese dos livros sapienciais
A fama da sabedoria de Salomão era tão grande
em Israel que se acreditava ter sido ele o autor dos
livros dos Provérbios e do Eclesiastes, do Cântico
dos Cânticos e da Sabedoria. Divertida lenda no
Talmud conta como o grande rei escreveu o Cântico
dos Cânticos no vigor da juventude, os Provérbios
na idade madura e o Eclesiastes na incredulidade
da velhice!
— P rovérbios. Este livro é analisado em sua
totalidade no comentário (vol. II), mas um breve
resumo dos outros importantes livros sapienciais a
esta altura ajudará a entender suas relações mútuas.
— Jó. O Livro de Jó usa um antigo conto folcló­
rico sobre um homem perfeitamente justo que se man­
tém fiel sob grandes provações (caps. 1-2; 42) como
estrutura para um grande diálogo sobre a questão do
sofnmento humano e do problema da busca humana
do conhecimento pessoal do Deus transcendente (caps.
3 ^ 1 ). Tem muitos elementos de drama, com o des­
fecho incerto até o fim. O Jó dos diálogos não é nem
0 sofredor paciente da tradição, nem o homem piedo­
so que aceita sua sina encontrado no conto folclórico.
Em vez disso, o autor (século VII ou VI a.C.) teve a
coragem de transcender a simples aceitação da vontade
divina para fazer duras perguntas à sabedoria tradicio­
nal e, às vezes, excessivamente confiante, apresenta­
da por provérbios e instruções. Se Deus sempre cuida
do justo, por que os maus parecem prosperar? Por
que os inocentes sofrem? Que esperança a retidão
oferece?
O livro também examina a questão mais pro­
funda de como podemos conhecer Deus. Muitas
das queixas de Jó tratam do silêncio de Deus diante
da busca humana por justiça e fidelidade. A resposta
divina, quando vem, nega-nos qualquer reivindi­
cação de relacionamento com Deus baseado em
nossa justiça, mas exige o conhecimento pessoal
por meio da obediência e do culto reverente. Como 47
 INTRODUÇÃO À BÍBLIA
Jó finalmente admite: “Só por ouvir dizer, te conhe­
cia; mas agora viram-te meus olhos” (Jó 42,5). As
perguntas de Jó são também bem conhecidas na
literatura sapiencial babilônica, mas o autor de Jó
situa a resposta dentro do compromisso de Israel
com a auto-revelação pessoal do Senhor a eles. Em
muitos aspectos, Jó se assemelha aos salmos de la­
mentação com sua estrutura tripla: 1) grito de dor e
lamento; 2) clamor a Deus por ajuda; 3) promessa
de louvar a Deus para sempre. Jó nos ensina que,
em última análise, a verdade brota da dúvida e do
questionamento.
— E clesiastes. o autor deste livro é o mais in­
crédulo da Bíblia. Como Jó, ele contesta as certezas
tradicionais da sabedoria, examinando o mesmo
mundo da experiência. “Vaidade das vaidades, tudo
é vaidade”, ele começa e termina sem outra convic­
ção. Não nos cabe entender o sentido da vida nem
imaginar o propósito divino por trás dos aconteci­
mentos, em especial o sucesso e o fiacasso, a recom­
pensa e o castigo do comportamento moral, ou final­
mente a própria morte. Em vez disso, o autor enaltece
a transcendência de Deus, a necessidade de reco­
nhecer que existem limites para a sabedoria humana
e a capacidade de aceitar a vida como ela é, supor­
tando seus sofrimentos e gozando seus prazeres com
moderação (Ecl 5,17). Tudo tem seu tempo (Ecl 3,2),
mas só Deus conhece esse tempo em plenitude. O
conselho do Eclesiastes para gozar a vida conforme
ela é concedida pode não parecer muito religioso,
mas ele o ameniza com exortações para “temer a
Deus” (Ecl 5,6). As perspectivas são muito mais pes­
simistas do que as do otimista Livro dos Provérbios,
mas 0 Eclesiastes faz claramente parte da tradição
de perguntas minuciosas dirigidas a toda a criação
sobre os problemas de Justiça humana, sobre a exis­
tência do mal, sobre a vida e a morte.
— SiRÁciDA. Escrita no início do século II a.C.,
a Sabedoria de Jesus Ben Sirac lembra muito o ponto
de vista positivo dos Provérbios.^ Reúne conselhos
sobre todos os assuntos tradicionais da sabedoria,
por assunto, e os expõe como guia para jovens estu­
dantes que desejem obter sabedoria. Embora possa
ser alcançada pelo estudo, a finalidade da sabedoria
é servir de diretriz para a conduta humana, não de
especulação. Sirac insiste em identificar conselhos
sábios às práticas religiosas do judaísmo, ligando a
sabedoria em especial à Lei de Moisés (cap. 24). A
sabedoria é, assim, uma dádiva divina a Israel, de
forma singular. Mais ainda que para os Provérbios,
o “temor do Senhor” é o caminho da sabedoria. As
realizações dos mestres só são corretamente aprecia­
das à luz da revelação divina. Devido a sua data
tardia, o Sirácida nunca foi aceito no cânon hebraico,
mas tomou-se parte muito popular das escrituras
cristãs — daí o nome mais tardio. Eclesiástico, “livro
da Igreja”.
— S abedoria. Pode ter sido o último livro no
48 Antigo Testamento e reflete a reação à filosofia grega
em Alexandria e suas objeções à fé judaica durante
o século I a.C. Por causa da data e de ter sido escrita
na língua grega, nunca entrou no cânon hebraico. O
principal propósito do livro é reafirmar à comunida­
de judaica do Egito que vale a pena manter a fé
apesar dos reveses encontrados em uma cultura pagã.
Para alcançar esse objetivo, o livro apropria-se da
linguagem da filosofia Mas também se destaca dos
livros sapienciais mais primitivos por sua intensa
preocupação com 1) a história da salvação como
lição dirigida aos sábios e 2) a imortalidade como ex­
plicação do cuidado divino pelo sofrimento dos jus­
tos. Embora se classifique na tradição otimista dos
Provérbios e do Sirácida, muitas vezes toma a sabe­
doria tão abstrata que obscurece qualquer valor práti­
co para viver (veja 7,22-25); manifesta porém a capa­
cidade da sabedoria judaica de enfrentar com criati­
vidade 0 desafio do pensamento helenístico.
— C ântico dos C ânticos. É difícil saber onde
colocar o Cântico dos Cânticos entre os livros bíbli­
cos. Com freqüência, ele é incluído entre os escritos
sapienciais porque sua mensagem é interpretada co­
mo alegoria do relacionamento extremoso de Israel
com o S enhor. Embora muitos biblistas de hoje
admitam que começou como coletânea de cantos de
amor realistas compostos para festas de casamento,
teve ele uma longa história de desenvolvimento antes
de adquirir sua forma atual. Pode ter havido uma
etapa de adaptação a casamentos da realeza (veja o
Salmo 45), o que teria dado aos cânticos um cenário
religioso. De qualquer modo, o livro tem sido sempre
um convite à reflexão sobre a maravilha e a beleza
da criação divina, o mistério do amor divino (e hu­
mano) e as ramificações de relacionamentos btisea-
dos na aliança. Emprega a forma de diálogos, uma
das técnicas preferidas pelos mestres de sabedoria
como meio de desafiar os estudantes para que pen­
sem. É provável que o Cântico dos Cânticos tenha
recebido sua revisão final depois do Exílio, em círcu­
los que conheciam bem as tradições sapienciais de
Jó, Eclesiastes e Provérbios.
— Salmos de iNSTRUçâo. Não há duas listas que
concordem quanto ao número de salmos pertencen­
tes a esta categoria. O problema está na decisão dos
critérios. Os critérios mais exatos são: 1) o contraste
reflexivo entre o justo e o mau, ou entre o sábio e
0 tolo — os Salmos 1; 34; 37; 49; 73; 112 se quali­
ficam neste campo; 2) o uso de expressões sapien­
ciais especiais, tais como “feliz o homem que...” ou
“temer o S enhor”, como nos Salmos 32; 111; 128.
Muitos outros salmos fazem uso de temas sapien­
ciais, mas dão ênfase a outros temas.
A conquista da sabedoria
Em geral, a teologia bíblica dá muito menos
atenção à sabedoria do que aos profetas, à história
da salvação e ao material legal. Contudo, a sabedo­
ria foi importante durante toda a história de Israel.
Antes de suigir a profecia, a sabedoria tinha uma

longa tradição atrás de si. Os próprios profetas mui­
tas vezes apropriaram-se de intuições e expressões
s^ienciais e, quando a profecia ftacassou, após o
Exílio, a sabedoria estava chegando ao auge. Seu ca­
ráter internacional permitiu-lhe trazer ao pensamento
de Israel o melhor de outras culturas e deu um con­
texto mais amplo à teologia especial da aliança, que
impediu uma idéia da vontade divina demasiado na­
cionalista e intolerante.
Algumas das principais contribuições do pensa­
mento sapiencial à religião de Israel foram:
1) Ênfase em causa e efeito. Atos têm conse-
qüências e decisões morais nunca podem ser toma­
das fora do conceito de responsabilidade social e
da experiência de outros que nos precederam. Com
freqüência, muita coisa que é inexplicável pode ser
parcialmente explicada por analogias com a expe­
riência comum.
2) Apreciação do tempo. Israel não lutou para
apagar o tempo e voltar às origens. O tempo pas­
sava e Deus sempre agia tendo em vista o presente
e o futuro, o que dava a Israel um verdadeiro senso
da história e a confiança de que Deus sempre agiria
de novo. Ao mesmo tempo, Israel não podia ter
esperança de controlar o ciclo do tempo por meio
de culto ou magia, como faziam os pagãos; só Deus
conhecia os tempos e controlava o futuro.
3) Confiança rui ordem. A sabedoria acredita­
va na busca empírica da ordem oculta do propósito
divino no mundo. Era possível estudar e refletir
sobre essa busca que proporcionava diretrizes para
a conduta. Embora, sendo assim, a sabedoria atri­
buísse grande valor à tradição, também proporcio­
nava à fé israelita confiança para fazer novas adap­
tações em situações diferentes através da história.
4) Deus revelado na criação. A Lei mosaica e
os profetas deram a Israel a compreensão de Deus
como salvador pessoal, mas a sabedoria revelou a
dimensão mais universal do S enhor como o Criador
e 0 único Deus, chamando a atenção para a ordem e
a beleza da criação e a vontade divina nela revelada.
Também realçou o papel positivo da compreensão
e da administração humanas do mundo.
5) Os homens como responsáveis. A sabedoria
é, com freqüência, acusada de ter uma teologia da
justiça divina, mas nenhuma da misericórdia divina
até os períodos mais tardios (Sirácida). Isso não é
verdade. Enquanto os profetas enalteciam a mise­
ricórdia depois do pecado, a sabedoria enaltecia
a continuidade da criação divina, de modo que, de­
pois da desgraça ou do fracasso, havia outra opor­
tunidade. Mais do que isso, os homens comparti­
lham o poder criador de Deus e precisam exercê-lo
com responsabilidade e prudência, de acordo com
a sabedoria.
6) Personificação da sabedoria. Diversas passa­
gens tratam a sabedoria como se ela fosse um ser
independente próximo a Deus (Pr 1,20-33; 8,22-31;
Sr 24,1-31; Sb 9,9-11). Isso é, primordialmente, um
LITERATURA SAPIENCIAL
estratagema literário para expressar como o Deus
transcendente toma-se presente de um modo pessoal
e imanente, comunicando-se com nossa inteligência,
compreensão e fé. Sem esse ^rfeiçoam ento, a teo­
logia cristã de Jesus como Filho de Deus e Verbo
feito carne não teria encontrado essa expressão.
7) A sabedoria como dádiva divina. Enquanto
dava alto valor ao raciocínio humano, a sabedoria
aprimorava cada vez mais sua compreensão dos
limites do conhecimento humano para dar maior
ênfase à iniciativa divina. Conhecer Deus e a reve­
lação divina trazia luz à compreensão humana, luz
inalcançável só pela experiência do mundo. A sabe­
doria tinha sempre orientação ética, mas desenvol­
veu uma postura na qual o conhecimento e a ética
religiosos atuavam unidos.
8) O significado do sofrimento. Com base na
experiência e na reflexão, a sabedoria enfrentou o
desafio do sofrimento e apresentou diversas respos­
tas que podiam guiar as decisões práticas dos sofre­
dores. Nenhuma resposta era muito adequada (o mal
como consequência do pecado, um teste da parte de
Deus, severa correção de nossas faltas), mas o mes­
mo acontece com a maioria das respostas atuais. A
sabedoria rejeitou as respostas pagãs de proteção
mágica ou desespero legítimo e colocou o mal firme­
mente no campo da ética. Seja qual for a razão de
determinado mal, os resultados estão sempre nas
mãos de um Deus justo e misericordioso que escuta.
9) Confiança como virtude fundamental. A
sabedoria reconhecia seus limites e enfatizava que
a confiança era a virtude fundamental dos sábios.
A experiência é quase sempre paradoxal e aparen­
temente contraditória; as questões fundamentais da
vida e da morte estão fora de nosso controle e não
podemos fazer com que Deus se adapte a nossas
expectativas. Assim, a sabedoria suprema pensa no
futuro com confiança e coloca esperanças razoá­
veis e decisões responsáveis em uma firme dedica­
ção ao S enhor, aceitando todas as conseqüências.
10) O valor da comunidade. Esta pode parecer
uma estranha contribuição para atribuir à sabedoria,
que com tanta freqüência realça a luta individual
pelo crescimento. Mas ela é merecida no sentido
em que a preocupação da sabedoria com o conjunto
do conhecimento humano universal levou-a a valo­
rizar outros povos e suas contribuições, o poder da
comunicação e do diálogo por meio de palavras,
ouvir e respeitar outras opiniões e a necessidade de
justiça, honestidade e integridade nos negócios hu­
manos. A visão que combinava a interdependência
social e o mérito individual está muito mais desen­
volvida nos escritos sapienciais do que em outras
partes da Escritura.
Portanto, a sabedoria não se opõe à doutrina
do Pentateuco nem aos Profetas, mas serve para unir
os ensinamentos da revelação e da obediência exi­
gida pela fé à experiência prática da realidade coti­
diana, a fim de enriquecê-los. 49
 INTRODUÇÃO ÀBfBLIA
A relevância da sabedoria hoje
No mundo moderno, a fé religiosa soffe crescen­
te pressão da expansão do conhecimento. Setores da
vida outrora considerados prerrogativa inviolável
somente da ação divina agora estão abertos à inves­
tigação e até ao controle humanos. As viagens espa­
ciais, o prolongamento da vida, a criação de em­
briões humanos em tubos de ensaio e a engenharia
genética entram em áreas que a sabedoria tradicio­
nal reservava ao mistério do propósito divino. Essas
atividades somam-se às vitórias humanas na com­
preensão dos fatores climáticos, das causas de doen­
ças e enfermidades e do movimento dos corpos
celestes que tanto frustraram os pensadores antigos
e levaram-nos a sugerir a oração onde o conheci­
mento humano fracassava. Em nossa cultura, muita
gente não mais imagina como Deus invade a vida
cotidiana de modo significativo; seu modo de ver
tomou-se, de facto, totalmente secularizado, mesmo
que ainda, supostamente, professem crer em Deus.
Seu mundo é um mundo de controle humano e
tudo que importa são as decisões humanas.
Muitos outros, sofrendo os horrores da guerra
moderna ou atravessando uma tragédia pessoal de
doença ou morte repentina na família, perguntam-
-se por que Deus fica em silêncio quando mais pre­
cisamos dele. Questionam o valor de credos e leis
INTRODUÇÃO AOS CINCO ROLOS
James A. Fischen CM
Este comentário contém uma explicação de
cinco livros do Antigo Testamento, chamados Me-
gilloí (“rolos”) pelos judeus. Estão reunidos por
conveniência, pois os judeus os liam em dias de
festa na sinagoga. Todavia, a tradição não é constan­
te e unânime e, com certeza, não é tão antiga quanto
os livros.
O Cântico dos Cânticos está em primeiro lugar
porque era lido durante a Páscoa. Há nele passagens
que falam do término do inverno, então o Cântico
é apropriado para a primavera. O Êxodo parece ser
sugerido pela referência às potrancas de Faraó (Ct
1,9). Acima de tudo, o Cântico fala de juventude e
amor e esse é, com certeza, o tema da Páscoa.
O Livro de Rute era lido na festa de Shawot,
antigo festival da colheita, ou o que os cristãos
chamam de Pentecostes. A história de Rute acon­
tece durante a estação da colheita. Uma antiga
tradição afirmava que o rei David nascera em
Shawot.
O livro das Lamentações era lido no dia nove
50 de ab, julho ou agosto. É a data tradicional da des­
bíblicas, do culto religioso esmerado e das teolo-
gias das Igrejas, quando Deus parece tão distante
dos negócios humanos e tão desnecessário para re­
solver nossos problemas mundanos.
E aqui que a sabedoria tem muito a nos dizer.
Por um lado, afirma que a ordem, a bondade e a be­
leza do universo que descobrimos e dominamos com
nossos poderes são, na verdade, revelação dos de­
sígnios de Deus. Os homens foram criados à ima­
gem de Deus e receberam o domínio sobre o universo
para govemá-lo com sabedoria pelos poderes do en­
tendimento, da prudência e das habilidades verbais
com as quais Deus os dotou. Por outro lado, à medida
que nossa compreensão do mundo se aprofunda, a
literatura sapiencial nos assegura que é lícito e natu­
ral questionar e duvidar ao longo do caminho. Jó e
Eclesiastes proclamam que questionar o Deus oculto
muitas vezes nos ajuda a entender melhor que, mes­
mo em silêncio. Deus está presente.
Acima de tudo, a sabedoria incentiva-nos a usar
nosso poder humano de reflexão e questionamento
e também nos adverte que hoje, tanto quanto no
período veterotestamentário, corremos o risco de
que o orgulho humano reivindique coisas demais
para si e, tolamente, com arrogância até, empur-
renos com violência para a destruição da boa cria­
ção divina.
truição do Templo pelo imperador romano Tito, em
70 d.C. — , portanto, um dia de luto.
O Eclesiastes era lido em Sukkot, a mais popular
das três festas principais. Sukkot era celebrada no
outono como festival dos lavradores para as colheitas
da uva e da azeitona O tema do envelhecimento, do
ano e das pessoas, enquadra-se na festa e também no
livro. Algumas tradições afirmavam que o Cântico dos
Cânticos lembrava Salomão na juventude e o Eclesias­
tes, Salomão na velhice, pois ambos referem-se a
Salomão. Entretanto, o uso do Eclesiastes para leitura
na sinagoga é a parte menos consistente da tradição
e um desenvolvimento um tanto tardio. Alguns gmpos
não o usam de forma alguma.
O Livro de Ester contém a história que é a base
para a celebração da festa dos Purim, espécie de
carnaval judaico. Essa tradição teve início na Pérsia
e só mais tarde estendeu-se ao judaísmo ocidental.
Aparentemente, era uma tentativa de neutralizar as
celebrações do Ano Novo pagão.
A tradução grega da Bíblia conhecida como
Septuaginta, concluída em 100 a.C., pelo menos.

tem uma ordem diferente para estes cinco livros. O
livro de Rute está colocado imediatamente depois
de Juizes.
Esse agrupamento interessante oferece a oportu­
nidade para uma palavra sobre o tipo de comentário
feito a respeito destes livros. Não há nenhum tema
ou abordagem comum nos livros em si. Rute e Ester
são narrativas, mas de tipos bem diferentes; o Cântico
dos Cânticos é poesia de amor e Lamentações é
poesia triste; Eclesiastes é um ensaio sobre a vida
humana. Por serem tão diferentes, não podem todos
ser interpretados da mesma maneira. As conclusões
dependem do método adotado para interpretá-los.
Se a principal preocupação for descobrir o que
dizia 0 texto hebraico original, então precisamos
estudar as alterações ocorridas quando da cópia dos
manuscritos e modos alternativos de entender o
texto. Isso se chama crítica textual e gramatical. O
comentário aludirá ocasionalmente a esses proble­
mas verbais. Se quisermos descobrir o que realmen­
te aconteceu, precisamos da crítica histórica, para,
tanto quanto possível, chegar aos “fatos”. Não há
problemas históricos graves em nossos livros. Se
INTRODUÇÃO AS NOVELAS BÍBLICAS
Irene Nowell, OSB
As histórias são para contar a nós mesmos as
verdades que não podemos explicar. Os autores bí­
blicos usaram muitos tipos de literatura para trans­
mitir a palavra de Deus. Além de relatos históricos,
parábolas, hinos e canções de amor, também usa­
ram histórias, contos fictícios produzidos para trans­
mitir verdades mais profundas do que a simples
enumeração de fatos cotidianos podería conter.
Os livros de Jonas, Tobit e Judite estão entre os
melhores exemplos dessa ficção em toda a narrativa
bíblica. Os autores desses três livros tomaram elemen­
tos essenciais da fé bíblica e usaram todas as técnicas
de sua habilidade literária para criar histórias que
exemplificam a eficiência das crenças tradicionais
na situação de seu público. Construíram enredos que
mostram a participação de Deus nas atividades e nos
acontecimentos humanos ordinários. Descreveram
personagens que, com obstinada resistência e corajo­
sa obediência, seriam testemunhas do relacionamento
constante entre Deus e os fiéis. Usaram ironia e humor
para atrair o público e fixar a mensagem em sua me­
mória. Em suma, os autores desses três livros eram
magistrais contadores de histórias. Sua mensagem
era vital para o público de seu tempo e continua
vital para nós; a palavra de Deus é viva, eficiente e
exigente em todas as épocas, inclusive a atual.
CINCO ROLOS/NOVELAS
quisermos saber como as unidades originais foram
compostas segundo padrões de redação, precisare­
mos da crítica das formas, da qual nos ocuparemos
com freqüência. Se quisermos saber como essas
unidades foram reunidas para formar um livro, usa­
remos a crítica da redação. Se perguntarmos qual
o papel desempenhado pelo livro dentro de todo o
conjunto da Escritura canônica, precisaremos da crí­
tica da recepção. Se perguntarmos de que maneira
essa narrativa, poesia ou ensaio atua como literatura
e que qualidade possui, precisaremos da critica lite­
rária ou retórica.
Todos esses métodos só mostram algum aspecto
do texto; nenhum deles é diretamente a chave para
a interpretação. Todos são importantes, mas não ave­
riguam o que o leitor comum da Bíblia deseja saber,
isto é, como este livro ajuda minha fé ou compreen­
são espiritual? Para chegar a um sentido espiritual
para nós, precisamos adaptar a leitura à nossa expe­
riência. O comentário a seguir (vol. II) foi escrito em
grande parte na ótica da critica retórica, na esperança
de que isso nos dê acesso à experiência da maneira
mais rápida e mais precisa.
Os autores desses três livrinhos não dão respos­
tas diretas às perguntas que lhes fazem; em vez
disso, contam histórias. A um público do século V,
inclinado a separar-se do resto do mundo, um autor
conta a história do profeta do século Vlll que fugiu
do chamado divino para que levasse a boa nova ao
resto do mundo (Jonas). A um público do século II,
que queria saber se Deus ainda agia em suas vidas,
outro autor conta a história de uma família do sécu­
lo VII que encontra o poder curador divino oculto na
obediência e na atenção de uns para com os outros
(Tobit). A um público de meados do século II, que
perdeu a esperança da libertação divina, um tercei­
ro autor conta a história da vitória divina pela mão
de uma mulher (Judite).. Cada autor usou o poder
e a beleza da habilidade literária para dar vida à pa­
lavra de Deus na tensão e na necessidade da situa­
ção contemporânea.
As verdades básicas sobre Deus e o povo que se
esforça para ser fiel a ele encontram-se em toda a
Bíblia. A aplicação dessas verdades ao público espe­
cifico de seu tempo era a missão e o serviço dos au­
tores dos livros de Jonas, Tobit e Judite. É nossa ta­
refa descobrir o que esses três livros têm a nos dizer
sobre a presença dinâmica e as insistentes exigências
de Deus em nosso tempo. 51
entateuco
 GENESIS
P a u lin e A. V ivian o
INTRODUÇÃO
Livro do Gênesis com frequência nos
parece uma obra literária antiquada que
contém narrativas de valor discutível
para nosso sofisticado mundo civili­
zado. E, contudo, porque faz parte da
Bíblia, achamos que deve nos dizer algo, alguma
coisa sobre Deus que transcende tempo e lugar.
Parte do problema para encontrar sentido no livro
do Gênesis está na vasta distância entre o mundo
que compôs o Gênesis — um mundo oriental pré-
-científico — e o nosso mundo, caracterizado por
uma abordagem ocidental e científica da realidade.
Para entender o Livro do Gênesis, precisamos entrar
em seu mundo, determinar o que ele significava em
seu tempo e, só então, ousar dizer o que significa
agora para o nosso mundo.
Neste comentário, interpretaremos o Livro do
Gênesis em contraste com seu ambiente histórico.
Para isso, recorreremos às descobertas da arqueolo­
gia e aos instrumentos críticos da análise literária.
Entretanto, antes de nos voltar para o texto bíblico
propriamente dito, queremos examinar como o Livro
do Gênesis veio a ser escrito e as formas em que foi
escrito.
A formação do livro do G ênesis
O Livro do Gênesis é a narrativa da pré-história
de Israel. Israel tomou-se nação apenas quando
passou a ocupar e governar a terra de Canaã. Essa
nação veio a se identificar como federação de tribos
em aliança com um Deus que tirara seus ancestrais
do Egito e os conduzira à terra prometida. O Êxodo
foi interpretado como o instante do nascimento dessa
nação. Mas, à medida que essas tribos consolida­
vam suas tradições que falavam das ações de Deus
em seu passado, começaram a perceber que, mesmo
antes do Êxodo, Deus estava em ação, conduzindo-
-os àquele momento. O Êxodo passou a ser visto
como 0 auge de um processo que se iniciou quando
Deus chamou Abraão pela primeira vez e prometeu
fazer dele uma grande nação.
Posteriormente, Israel começou a ver sua his­
tória no contexto da história universal e juntou à
narrativa de suas origens a narrativa dos primórdios
do universo e da história da humanidade no período
primitivo. É importante reconhecer que esse proces­
so levou séculos. As histórias eram contadas e re-
contadas, adaptadas e reinterpretadas. Receberam
novo contexto e adquiriram novo significado. Cres­
ceram e se desenvolveram além do relato original,
até entrarem na narrativa maior das relações de Israel
com Deus. O Livro do Gênesis dá testemunho desse
longo processo de crescimento.
Os biblistas começaram a dar rigorosa atenção
à formação do Pentateuco (os cinco primeiros li­
vros da Bíblia) quando reconheceram que no Livro
do Gênesis havia dois nomes hebraicos diferentes
atribuídos à Divindade, a saber, YHWH, o nome
próprio do Deus de Israel (O S enhor), e Elohim,
traduzido simplesmente por Deus. A presença des­
ses nomes diferentes em diversas narrativas coinci­
dia com diferenças de estilo e vocabulário nas nar­
rativas em que apareciam. As contradições dentro de
narrativas (por exemplo, compare Gn 6,19 com 7,2),
que havia muito tempo confiindiam os biblistas, fo­
ram solucionadas quando da divisão desses relatos,
com base no uso do nome divino, no que eram ori­
ginalmente duas tradições ou fontes independen­
tes. Outra confirmação da teoria sobre duas ou mais
tradições separadas está evidente na ocorrência de
duas, às vezes três versões da mesma história (Gn
12,10-20/Gn 20/Gn 26,1-11).
Pela análise cuidadosa dos dados, os biblistas
foram levados a concluir que pelo menos quatro
autores contribuíram para a formação do Pentateuco.
São identificados como autores javista (J), eloísta (E),
sacerdotal (priestly, P) e deuteronômico (D), também
citados como “fontes” ou “tradições”. Desses quatro
autores, somente o javista, o eloísta e o sacerdotal
encontram-se no Livro do Gênesis, por isso omitire­
mos de nosso exame a fonte deuteronômica.
A fonte JAVISTA é assim chamada porque usa o
nome YHWH (grafado Jahweh em alemão, daí a
abreviatura J) para a Divindade. A javista é a fonte
mais primitiva, originária do século X a.C., a era
de David e Salomão. As narrativas da tradição 55
 GÊNESIS
javista caracterizam-se por um vigoroso estilo de
conto popular e uma pitoresca descrição de perso­
nagens, destacando o javista como autor de grande
habilidade. O autor deixa que as ações dos perso­
nagens falem por si mesmas e raramente faz um
julgamento moral de seu comportamento. A apre­
sentação antropomórfica de Deus na tradição javista
dá um caráter muito pessoal à Divindade. Para o
javista. Deus envolve-se ativamente na história da
humanidade e, em especial, na de Israel. O javista
começa a narrativa com a criação (Gn 2,4b-31),
apresentando a história da humanidade como o pano
de fundo contra o qual o Senhor chama Abraão e
lhe faz uma promessa que só o Êxodo e a conquista
de Canaâ realizam plenamente. O tema de promessa
e concretização predomina na apresentação javista
da história patriarcal.
A fonte ELOÍSTA usa o nome Elohim para o Deus
de Israel até Ex 3,14, onde o nome YHWH é revela­
do a Moisés. Em geral se acredita que essa fonte
date do século IX a.C. e que tenha se originado no
reino do Norte. A fonte eloísta está tão entrelaçada
com a javista, que é difícil separar as duas fontes
em todas as situações. Como a fonte eloísta ficou
subordinada à javista, o que resta da narrativa eloísta
muitas vezes está incompleto. Onde encontramos
um relato completo, por exemplo, Gn 22, o eloísta
parece ter sido um autor habilidoso. Recorre a sonhos
e anjos, fazendo-os o meio de comunicação divina,
em vez de permitir o contato direto com a Divindade,
como faz a javista. O eloísta é mais notável por sua
sensibilidade moral, evidente em suas tentativas de
justificar, explicar ou atenuar as maldades dos an­
cestrais de Israel. Começa sua narrativa no período
patriarcal e pode ser encontrado pela primeira vez
em Gn 20, embora talvez em forma fragmentária já
se encontre em Gn 15.
O autor SACERDOTAL também prefere o nome
Elohim para a Divindade, até a época de Moisés
(Ex 6). Embora a obra sacerdotal deva ter sido es­
crita durante o período do Exílio na Babilônia (c.
550 a.C.), as fontes usadas por este autor vêm de um
período muito mais primitivo. O estilo sacerdotal
tende a ser repetitivo e seus relatos são construídos
com rigor, o que dá um tom bastante solene à obra.
O autor sacerdotal preserva o caráter transcendente
de Deus, evitando antropomorfismos em sua descri­
ção da Divindade. O Gênesis começa com o relato
sacerdotal da criação. Esse autor é responsável pelas
genealogias que formam a estrutura do Livro do
Gênesis. O formato cronológico imposto ao Penta-
teuco também tem origem no autor sacerdotal.
Em geral se afirma que o autor sacerdotal é
responsável pela redação final do livro do Gênesis.
Acredita-se que a tradição sacerdotal inclui as nar­
rativas javista e eloísta mais primitivas. Entretanto,
há alguma evidência de que um redator ou editor
mais tardio realmente combinou os escritos javista,
56 eloísta e sacerdotal. Este comentário aceita a pre­
sença dessas três fontes no Gênesis e vai se referir
com ffeqüência à forma ou contexto final de uma
história. Se essa forma ou contexto final vem do
autor sacerdotal ou de um redator mais tardio será
deixado aberto.
Formas literárias no G ênesis
Ao interpretar o livro do Gênesis, não podemos
ignorar as formas em que foi vazado. A interpreta­
ção baseia-se na forma. Se ouvimos uma narrativa
que começa; “Era uma vez...”, não temos dificulda­
de para reconhecer que o relato é um conto de fadas.
Jamais o confundiriamos com um relato histórico,
porque conhecemos sua forma. Mas as formas do
Livro do Gênesis já não são do conhecimento geral.
Neste último século, os biblistas delinearam e iden­
tificaram essas formas. Como este eomentário ba­
seia-se no seu trabalho, é importante “redescobrir”
as formas desse livro.
A narrativa é a principal classificação literária
que encontramos no Gênesis. Uma narrativa é sim­
plesmente uma história. Referir-se a sua forma como
narrativa não é desvalorizar o livro nem depreciar,
de modo algum, seu sentido teológico. Na verdade,
o modo mais característico de Israel falar sobre a
Divindade é narrar a história dos atos de Deus em
sua vida como nação.
A forma de narrativa que predomina no Gênesis
é a saga. As sagas são histórias fundamentadas em
fatos, mas que, ao ser transmitidas, são expandidas
e realçadas por elementos irreais. As sagas origi­
nam-se em nível oral e combinam tradição e imagi­
nação. Não é raro encontrarmos relatada em uma
saga a intervenção direta de Deus nos negócios hu­
manos. Na saga, o incrível simplesmente faz parte
dos acontecimentos. As sagas explicam por que uma
coisa é da maneira que é (sagas etiológicas), por
que algo ou alguém tem determinado nome (sagas
etimológicas), por que as tribos se relacionam da
maneira como o fazem (sagas etnológicas), por que
certos lugares ou atos são considerados santos
(sagas cultuais), ou por que determinado local tem
características singulares (sagas geológicas). Todos
esses tipos de sagas estão evidentes no Livro do
Gênesis.
Nas sagas patriarcais do Gênesis, o mundo é
visto em termos de famílias. Jacó não é mais Jacó,
é Israel; Esaú é o pai dos edomitas. A história do
relacionamento entre essas tribos toma-se a narra­
tiva do relacionamento entre esses irmãos. Os pa­
triarcas são figuras exageradas. Não mais represen­
tam pessoas históricas; passam a personificar as ca­
racterísticas de suas tribos.
Muitas sagas individuais foram reunidas para
formar a narrativa dos patriarcas. Essas narrativas
tomaram-se parte de um contexto maior e, assim,
seu significado original sofreu mudanças. A medida
que nos familiarizarmos com as narrativas, dare-

mos atenção especial aos níveis de sentido adqui­
ridos por uma narrativa ao se tomar parte do Livro
do Gênesis.
Os biblistas continuam a discutir sobre a pre­
sença do mito no Livro do Gênesis. O fato de en­
contrarem ou não o mito no Gênesis depende da
definição que dêem ao mito. A definição comum
de mito como narrativa sobre deuses e deusas o
exclui da Bíblia, porque Israel aceita apenas YHWH
como seu Deus. Mas não é preciso definir o mito
tão restritamente. O mito é uma forma de pensar
sobre a realidade. O que o distingue é o fato de fa­
lar sobre a realidade de maneira simbólica em ter­
mos da interação dos poderes divinos na era primi­
COMENTÁRIO
A HISTÓRIA PRIMEVA
Gn 1,1-11,27
Os onze primeiros capítulos do Gênesis cha­
mam-se “história primeva” porque tratam da história
da humanidade, não especificamente da de Israel.
A perspectiva universalista do autor javista é vista
na disposição da história de Israel dentro do contex­
to maior da história humana, que se inicia com a
criação. A narrativa javista é agora introduzida e
suplementada pelas tradições do autor sacerdotal,
mas o tema dominante ainda é o do javista; por
causa do pecado, a humanidade afasta-se cada vez
mais de seu Deus.
O RELATO SACERDOTAL DA CRIAÇÃO
Gn 1,1-2/4a
O Gênesis começa com um relato da criação,
pelo autor sacerdotal, altamente estruturado e seme­
lhante a um hino. Embora haja semelhanças entre
este e o relato babilônio da criação, o Enuma Elish,
0 autor sacerdotal reinterpretou e reescreveu o mito
antigo para que refletisse a teologia característica
de Israel. Em contraste com o Enuma Elish, a cria­
ção não resulta de conflito. Não há guerra entre os
deuses, nada que se oponha a Deus. Em vez disso,
somos informados, em uma seqüência cuidadosa
organizada, que Deus cria o mundo unicamente
pelo poder da palavra divina.
1,1-25 A criação do mundo. O v. inicial identi­
fica Deus como o ator principal e a criação como o
resultado da ação de Deus. O segundo v. nos diz que,
antes do ato criador de Deus, o mundo era massa
informe que existia como caos aquoso. Essa descri­
ção do mundo está de acordo com a mitologia do
antigo Oriente Próximo. Observe que a treva existe
— não é criada por Deus. A origem da treva, que
simbolizava o mal e o terror no mundo antigo, fica
envolta em mistério. O abismo era o oceano dos
GÊNESIS 1
tiva, Esses poderes continuam a afetar nosso mundo
por meio do culto.
A forma de expressão predominante entre os
vizinhos de Israel era o mito. Era inevitável que
Israel apreciasse os temas mitológicos do antigo
Oriente Próximo. Entretanto, Israel não absorveu
simplesmente a mitologia das nações que a cerca­
vam; essa mitologia foi mudada e adaptada para se
harmonizar à visão característica que Israel tinha
de Deus e do mundo. Encontraremos, principal­
mente em Gn 1-11, temas mitológicos dos quais
Israel se apropriou, mas que transformou. Há outras
formas no Livro do Gênesis, mas delas trataremos
no contexto do próprio comentário.
Primórdios, que precisava ser “aproveitado” para que
ocorresse a criação. Sobre esse caos aquoso, o so­
pro de Deus começa a agir. O texto hebraico traz
literahnente “sopro de Deus”, não “vento poderoso”,
como em diversas traduções (v. 2). Embora a tradu­
ção “vento poderoso” capte parte do sentido do ori­
ginal, não leva em conta o fato de Deus ser a fonte
desse vento.
O relato sacerdotal caracteriza-se pela repeti­
ção. Usando uma estrutura que permanece mais ou
menos constante para cada dia da criação, o autor
alcança um máximo de repetição, com suficiente
variação para manter o relato avançando em veloci­
dade rítmica. Esse ritmo dá ao relato seu aspecto de
hino. Um tom de solenidade impregna todo o relato
da criação. A estrutura repetida é como se segue:
1. Anúncio', “e Deus disse...”
2. Ordem'. “Que...”
3. Relato'. “E assim aconteceu...”
4. Avaliação'. “Deus viu que isso era bom...”
5. Estrutura temporal'. “Houve uma tarde, hou­
ve uma manhã...”
Além desse padrão estrutural, o autor correla­
ciona os atos de criação dos três últimos dias com
os dos três primeiros dias.
Primeiro dia Luz
Segundo dia Firmamento, separação das águas
superiores e inferiores
Terceiro dia Terra e vegetação
Quarto dia Luminares no firmamento do céu
Quinto dia Seres vivos do mar e pássaros
Sexto dia Animais terrestres e a humanidade
A criação da luz no primeiro dia correlaciona­
-se com a que produz luz no quarto dia. De modo
semelhante, o firmamento, que separa as águas su­
periores das águas inferiores, toma-se hábitat dos
pássaros, enquanto as águas inferiores enchem-se
de peixes. Os animais e a humanidade habitam a
terra e comem sua vegetação. Este quadro alta- 57
 GENESIS 1
mente esquematizado realça a ordem da criação.
Nada é deixado ao acaso ou ao capricho, tudo é bem
organizado e se encaminha como planejado pelo
Criador.
O primeiro ato da criação é a luz, embora o sol
e as estrelas, que dão luz, só sejam criados no quarto
dia. O autor não se preocupa com fatos científicos,
mas com um universo organizado, e a luz é neces­
sária para enxergar. O autor também pode ter sido
forçado a pôr a luz primeiro porque, no Eluma
Elish, ela é propriedade dos deuses e deles emana,
sendo mencionada em primeiro lugar nesse relato
da criação. Para nosso autor, a luz não é mais pro­
priedade dos deuses e sim elemento do mundo cria­
do. Deus chama à luz “dia” e à treva, “noite” (v. 5).
No antigo Israel, dar nome exprimia o poder sobre
0 que recebia o nome. Deus dá nome ao dia e à
noite porque tem autoridade sobre eles. Da mesma
forma. Deus dá nome ao firmamento, à terra e ao
mar. A luz é vista como boa, como o é todo o uni­
verso criado. Uma vigorosa afirmação da bondade
do mundo criado impregna este relato. O parágrafo
conclui com a estrutura temporal, em que a tarde
é mencionada primeiro, depois a manhã, o que re­
flete a maneira do antigo Israel marcar o tempo —
o dia começava ao pôr-do-sol.
Deus então cria o firmamento (vv. 6-8), que
separa as águas acima do céu das águas inferiores.
A cosmologia prefigurada pelo autor é a que ele
partilhava com o resto do mundo do antigo Oriente
Próximo. A água cercava o mundo todo e era conti­
da apenas em cima pelos céus e embaixo pela terra.
Ameaçava dominar a terra, em especial quando tem­
pestades e inundações cobriam a terra. O firmamen­
to era descrito como uma tigela virada para baixo,
para manter as águas superiores no lugar. Essa tigela
tinha janelas, que permitiam à chuva, à neve e ao
granizo alcançar a terra. As águas inferiores apare­
ciam na terra como riachos, lagos e fontes.
Deus impõe limites à expansão da água, para
que a terra possa aparecer. Da terra Deus faz sur­
gir a vegetação, que é capaz de se reproduzir (“con­
tendo em si a sua semente”, v. 11). A fecundida-
de não é algo que depende dos deuses da fertili­
dade; Deus pôs o poder da reprodução na própria
vegetação. Mais uma vez, aqui o autor mostra um
mundo que não está sob o controle de divindades
pagãs.
Em seguida Deus cria os luminares e os coloca
no céu. O autor toma o cuidado de evitar as pala­
vras “sol” e “lua”, usando, em vez delas, as expres­
sões “o grande luminar” e “o pequeno [luminar]”
(v. 16). No mundo pagão antigo, o sol e a lua eram
considerados divindades. Na verdade, ao evitar o
uso dessas palavras, o autor está dizendo: “Veja o
que outras nações consideram divindades! Não pas­
sam de um ‘grande luminar’ e um ‘pequeno lumi-
58 nar’ no céu”. O sol e a lua são apenas elementos
do universo criado, não deuses que mereçam ser
cultuados.
O céu que separa as águas superiores das águas
inferiores está cheio de pássaros, e as águas inferio­
res, cheias de peixes. No sexto dia, são criados os
animais e a humanidade para habitar a terra, que
foi criada no terceiro dia.
1,26-31 A criação da humanidade. O relato
todo da criação prepara o caminho para a criação da
humanidade. Foi criado um hábitat para a humani­
dade. O tempo foi criado como medida pela qual a
humanidade governará sua vida. E, por fim, quando
tudo está pronto, são criados o homem e a mulher.
Já que o autor sacerdotal descreve a criação da huma­
nidade com mais detalhes do que os atos criadores
anteriores, e já que este ato é o último na série, o
autor está indicando que a humanidade é o ponto
alto de toda a criação. O caráter especial dessa cria­
ção é salientado pelo fato dé só a humanidade ser
descrita como criada à “imagem” e segundo a “seme­
lhança” de Deus (v. 26).
Nesta parte, há três expressões problemáticas
que muitas vezes provocam confusão e má interpre­
tação. Quem são o “nós” em Gn 1,26? O que sig­
nifica ser criado à “imagem” de Deus? Que tipo de
criatura é este “homem”, criado macho e fêmea?
O “nós” em Gn 1,26 não é fácil de explicar.
Várias teorias têm sido apresentadas, mas nenhu­
ma é inteiramente satisfatória. Alguns biblistas argu­
mentam que 0 “nós” deve ser explicado como exem­
plo do “plural majestático”. Tal plural majestático
justifica o fato de, em hebraico, a palavra para
Deus {Elohim) estar no plural mas ser encontrada
com o verbo no singular, indicando que deve ser
considerada substantivo singular. Supõe-se que, co­
mo Deus é tão grande e poderoso, os antigos he-
breus falavam de sua Divindade no plural. Para
esses estudiosos, o “nós” em Gn 1,26 é exemplo
desse plural majestático.
Como não há outra língua antiga que use esse
tipo de plural, outros biblistas preferem considerar
0 uso de “nós” um resquício da mitologia pagã. Nos
mitos do antigo Oriente Próximo, o deus supremo
cria a humanidade em reunião com o conselho celes­
te. O conselho celeste compõe-se dos deuses meno­
res que cercam o deus supremo e agem como conse­
lheiros. Essa pode bem ser a origem da expressão,
mas, como o autor evitou outreis sugestões pagãs, é
de estranhar o fato de tomar menos cuidado aqui.
Mais recentemente, argumentaram que o “nós”
de Gn 1,26 deve ser entendido como artifício retó­
rico sem muita importância. É algo como alguém
dizer “Vamos fazer isso”, depois de debater consigo
mesmo sobre uma atitude a tomar. Talvez o proble­
ma do “nós” em Gn 1,26 nunca seja solucionado,
mas essas teorias são ao menos plausíveis, se não
inteiramente satisfatórias.
A fim de determinar que tipo de criatura é o
ser humano, é essencial entender o que significa a

palavra “imagem”. Com frequência, acredita-se que
isso signifique ser a humanidade dotada de alma e
que a alma existe à imagem de Deus. Isso não
podería estar mais longe da intenção do autor de
Gn 1. A percepção de que a pessoa humana com­
põe-se de corpo e alma é idéia nitidamente grega.
De fato, a língua hebraica nem sequer tem uma
palavra para “alma”. De que maneira, então, a
humanidade “imagina” Deus? No mundo antigo,
“imagem” era usada com referência a uma estátua
do rei enviada a partes remotas do reino, onde o
rei não podia estar presente em pessoa. A “ima­
gem” devia ser o representante do rei naquela re­
gião. Se aplicarmos isso ao Gênesis, ser criado à
imagem de Deus é ser representante de Deus na
terra, o que é salientado pela sentença seguinte do
v. 26, onde é concedido à humanidade o domínio
sobre a terra. Como Deus é soberano do reino
celeste, assim a humanidade, como representante
de Deus, é soberana do reino terrestre. E uma vi­
são bastante enaltecedora da humanidade.
O problema decisivo destes vv. surge mais das
limitações das línguas ocidentais do que do texto
hebraico original. Em hebraico, 'adam geralmente
significa “humanidade”. Para referir-se a um indi­
víduo do sexo masculino, o hebraico usava outra
palavra. Em Gn 1,26, a palavra é 'adam, assim, o
texto de 1,27 pode ser traduzido: “Deus criou a
humanidade à sua imagem... criou-os macho e
fêmea”. A humanidade não foi criada como um
tipo de ser andrógino; consiste, isso sim, do macho
e da fêmea. Juntos, homem e mulher constituem a
humanidade.
2,l-4a A santificação do sábado. O descanso
do sábado está associado ao descanso de Deus no
sétimo dia. Em seis dias, houve oito atos de cria­
ção distintos. O autor variou a estrutura mencio­
nada acima, colocando dois atos de criação no ter­
ceiro e no sexto dias e, assim, consegue manter a
estrutura de seis dias, apesar de haver oito atos de
criação. Isso é feito para realçar o significado do
sábado. O descanso no sábado ordenado nos man­
damentos do Livro do Êxodo (Ex 20,8) aqui está
ligado aos primórdios do mundo; está atado à or­
dem criada.
CONCLUSÃO
O relato sacerdotal da criação é reflexão teo­
lógica sobre o mundo que o autor conhece. É um
mundo no qual Deus é visto como Ser poderoso,
capaz de criar simplesmente pronunciando uma
palavra. Deus é visto como estando fora do uni­
verso que cria. A Divindade transcende a ordem
criada. A humanidade é vista como o ponto alto
da criação. O mundo em que a humanidade vive
foi organizado por Deus, mas, como representante
de Deus na terra, a humanidade deve ter domina­
ção sobre o mundo.
GENESIS 2
O RELATO JAVISTA DA CRIAÇÃO E DO
PECADO E A GEOLOGIA SACERDOTAL
DE ADÃO
Gn 2/4b-5,32
Embora esteja depois do relato sacerdotal, o
relato javista da criação é, na verdade, o mais antigo
dos dois relatos. Foi escrito no estilo de um conto
popular, sem a repetição nem a estrutura cuidado­
samente delineada que caracteriza o relato sacer­
dotal. A criação é formada pelo S enhor Deus, não
chamada a existir pelo poder da palavra divina. O
centro dessa narrativa não é a criação do mundo
como tal, mas o relacionamento do homem e da
mulher um com o outro e com o mundo.
2,4b-9 A criação do “Hum ano”. Nesse relato
da criação, o que existe antes não é um caos aquo-
so, como em Gn 1, mas um deserto. A terra é vista
como seca por duas razões: não há água e não há
ninguém para cultivar o solo. O pano de fundo
dessa narrativa da criação é claramente a experiên­
cia do agricultor, para quem a água e o cultivo do
solo são necessários a fim de fazer a terra produzir
vegetação. A água ajuda a criação, enquanto em
Gn 1 ela teve de ser confinada para que a criação
prosseguisse.
A primeira coisa formada pelo S enhor é “o Hu­
mano”, o que não deve ser entendido como um indi­
víduo chamado Adão; antes, “o Humano” é toda a
humanidade. O uso do artigo definido “o”, diante de
“humanidade” no texto hebraico deixa claro que o
autor vê esta criatura original como representante
da humanidade indiscriminada e não como indivíduo.
A criatura humana é feita do solo. Em hebraico,
“humano” e “solo” são palavras de som semelhan­
te {'adam, 'adamah) e, assim, têm um relaciona­
mento mútuo especial. Este trocadilho é caracterís­
tico do autor javista. Usando duas palavras de sons
semelhantes, o autor consegue focalizar a atenção
do leitor no relacionamento entre elas. Desse modo,
é salientado o relacionamento entre a humanidade
e o solo. A criatura humana vem do solo e por isso
depende dele para viver.
O S enhor Deus insufla o hálito da vida no
“Humano” e este se toma um “ser vivo” (v. 7). No
passado, isso foi interpretado como a criação da
alma, mas, como mencionamos acima, a língua
hebraica não tinha uma palavra para “alma”. “O
Humano” toraa-se um ser vivo. A humanidade vive
porque o hálito do S enhor Deus está nela; quando
0 S enhor Deus sai, ela morre. Todo hálito, de toda
pessoa, depende diretamente do S enhor Deus. Deve
ser notado que os animais também são seres vivos
(2,19). Os seres humanos e os animais são criaturas
vivas, que respiram. Distinguem-se uns dos outros
pelo fato de o S enhor Deus falar à criatura humana,
mas não aos animais. Além disso, a criatura huma­
na dá nome aos animais, o que indica o controle da
humanidade sobre o mundo animal. . 59
 GÊNESIS 2
Depois de formar a criatura humana, o S enhor
Deus passa a criar um lugar para a humanidade
habitar. Isso é diferente de Gn 1, onde o habitat foi
criado primeiro e só mais tarde as pessoas foram
criadas para viver nele. Aqui, o Senhor Deus cria
um jardim (v. 8) que se assemelha a um parque
com árvores, não a um jardim de plantas e flores.
Esses jardins semelhantes a parques eram cultiva­
dos por grandes reis do antigo Oriente Próximo.
Davam sombra, eram o tipo de lugar onde um rei
podia repousar. É o jardim do Senhor Deus, que o
o usa na fresca da tarde para “repousai” .
O autor menciona duas árvores que terão im­
portância em Gn 3, a árvore da vida e a árvore do
conhecimento do que seja bom ou mau. A árvore da
vida aparece de novo apenas no fim de Gn 3 e por
isso podemos dizer que desempenha papel secundá­
rio na narrativa. A árvore da vida era símbolo de
imortalidade na mitologia do antigo Oriente Próxi­
mo e, nessa narrativa, desempenha o mesmo papel.
Enquanto o primeiro casal fica no jardim e tem
acesso a essa árvore, sua vida não está ameaçada.
Depois que são expulsos do jardim, ficam sujeitos
à morte. Em contraste, a árvore do conhecimento do
que seja bom ou mau desempenha papel essencial
na narrativa seguinte, e consideraremos seu simbo­
lismo no contexto dessa narrativa.
2,10-14 Os quatro rios. Em geral, reconhece­
-se que estes vv. interrompem a narrativa do javista,
em nada contribuem para seu andamento. O v. 15
parece ser continuação do v. 9, não dos vv. 10-14.
Além disso, essa inserção contradiz o que foi dito
antes no texto, sobre a localização do Éden (v. 8).
Segundo essa passagem, o Éden situa-se ao norte
e os quatro grandes rios que cercam o mundo cor­
rem a partir dele. Somente dois rios são identificá­
veis — o Tigre e o Eufrates. O Pishon e o Guihon
não podem ser identificados com certeza, mas é
provável que se refiram a rios na mesma área geral
que o Tigre e o Eufrates. O propósito de tal inser­
ção parece ser ligar o jardim de Éden a uma área
geográfica específica, na tentativa de dar caráter
histórico à narrativa.
2,15-17 A ordem. A criatura humana é estabe­
lecida no jardim e recebe a tarefa de cultivá-lo e
guardá-lo, repercussão da mitologia do antigo Oriente
Próximo, na qual a hum ^idade é criada para fazer
0 trabalho dos deuses. É dada a ordem para não
comer da árvore do conhecimento do que seja bom
ou mau, sem qualquer explicação para essa proibi­
ção. É simplesmente declarado que o S enhor Deus
criou a humanidade e impôs alguns limites à ativi­
dade humana.
2,18-24 A criação da mulher. O motivo dado
pelo Senhor Deus para a criação da mulher é “Não
é bom para o homem ficar sozinho”. Embora muitas
vezes esse aspecto da narrativa tenha sido interpre­
tado como referência à natureza social da humani-
60 dade, o que o autor pretende realmente é justificar
o relacionamento conjugal, como indica o último
V. da narrativa (v. 24). Não podemos esquecer que,
ao descrever esse relacionamento, o autor escreve
da perspectiva do século X a.C. e apresenta a
mulher dessa perspectiva. A posição da mulher era
de apoio ao marido. Ela é, na tradução literal do
texto hebraico “um auxilio [ou ajuda] adequado”.
No Antigo Testamento, “auxílio” significa quem
dá apoio ou força, quem possibilita que os outros
realizem seu destino. Muitas vezes, no Antigo Tes­
tamento, Deus é chamado “auxílio” (Dt 33,7; SI
33,20; 70,6 etc.). Ninguém afirmaria que Deus é
subserviente a quem quer que seja. A narrativa não
é sobre a essência da mulher, mas sim sobre sua
dignidade na instituição do casamento. A mulher é
destinada a ser alguém em quem o homem encontra
apoio e força.
— Em contraste com o relato sacerdotal, a cria­
ção não aparece como processo gradual e organi­
zado. Em vez disso, é feita uma coisa, depois outra,
até Deus ficar satisfeito com os resultados. Como a
criatura humana, os animais são formados do solo
e se tomam “seres vivos” (2,19). A criatura humana
e os animais compartilham uma origem comum.
Diferenciam-se pelo fato de a criatura humana dar
nome aos animais, o que expressa autoridade sobre
eles. Além disso, como já afirmamos, o S enhor
Deus fala com a criatura humana, mas não se di­
rige aos animais.
Embora as criaturas humanas e os animais se­
jam seres vivos, os animais não se mostram “auxí­
lios” adequados. O S enhor Deus tenta mais uma
vez formar um auxílio adequado e, dessa vez, for­
ma a mulher de uma das costelas do “Humano”
que Deus faz “cair num torpor”, para que o ato de
criação não seja testemunhado. O ato de criação
permanece um mistério divino.
Um dos aspectos mais admiráveis dessa passa­
gem é 0 fato de o S enhor Deus formar a mulher
de uma costela (v. 22). Não temos paralelos na
mitologia do antigo Oriente Próximo e simples­
mente desconhecemos o que a costela simboliza
no texto. Sabemos que, na língua suméria, “coste­
la” e “vida” são a mesma palavra. A deusa da vida
é, ao mesmo tempo, a “ S enhoru da Costela”. É
interessante notar que na eonelusão do capítulo 3
0 homem chama a mulher de “Eva”, forma da
palavra hebraica para “vida”, e reconhece que ela
será “a mãe de todo vivente” (3,20). A ligação da
vida e da costela com a mulher talvez indique que
no fundo da narrativa está algo semelhante ao tro­
cadilho sumério.
Quando a mulher é levada ao homem (v. 23),
ele exclama em forma poétiea que, dessa vez, foi
eneontrado um auxílio adequado. Ele já não está
sozinho. Em hebraico, há um trocadilho com as
palavras “homem” e “mulher” { ’ish, 'ishshá) que
realça o relacionamento especial entre eles. A mu­
lher vem do homem e, por isso, depende dele. Isso

é consistente com a posição da mulher na socieda­
de do antigo Oriente Próximo, no século X a.C.
Essa passagem tem sido usada com freqüência para
fundamentar a opinião de que a mulher é inferior
ao homem e subserviente a ele. Com certeza, essa
não é a intenção do autor. Está claro que a mulher
não é inferior ao homem. Sua criação misteriosa
por Deus, de substância humana, acentua a nature­
za comum que ela compartilha com o homem e o
laço que os une. O fato de ser “ajuda” dele não
indica subserviência.
O V. 24 é, de maneira clara, a conclusão do ca­
pítulo 2 e mostra que nossa narrativa é uma etiologia,
uma narrativa sobre o passado que explica a realida­
de atual. Essa narrativa nos diz por que homens e
mulheres são atraídos uns aos outros sexualmente e
se casam. As palavras “deixar” e “ligar-se” são pala­
vras de aliança e sugerem que o casamento é visto
aqui como relacionamento de aliança.
CONCLUSÃO
O relato javista da criação tem alcance muito
mais local que o relato sacerdotal. Trata do relacio­
namento humano com o solo e do relacionamento
entre homem e mulher, não da criação de um uni­
verso. Obviamente originária do meio agrícola, a
narrativa apresenta a humanidade como originária
do solo e dependente do solo para viver. Na morte,
a humanidade voltará ao solo de onde veio. A mu­
lher é a única ajuda adequada ao homem, pois é
formada de carne humana. A atração dos sexos e
a instituição do casamento são descritas como o
destino natural do homem e da mulher, resultante
da maneira como foram criados. Por sua vez, o
S enhor Deus não está distante da criação, mas sim
diretamente envolvido no ato da criação e preocu­
pado com todas as criaturas.
2,25-3,7 O pecado de Adão e Eva. O último
V. do capitulo 2 é transicional e serve mais para
introduzir a narrativa seguinte do que para con­
cluir a anterior. Que o homem e a mulher estão
nus, sem contudo sentir vergonha, é mais do que a
mera observação de que não estão vestidos. Como
ficará óbvio mais tarde, a nudez simboliza seu rela­
cionamento com Deus. A essa altura da narrativa,
esse relacionamento com Deus ainda está intato;
assim, a nudez não provoca vergonha. Somente com
a ruptura desse relacionamento sua nudez se toma
motivo de constrangimento.
Um novo personagem é agora introduzido na
narrativa — a serpente. Essa criatura é caracteriza­
da como “astuta”, palavra que tem conotações de
esperteza e inteligência e contrasta com a ingenui­
dade da mulher. Em hebraico, “astuto” ( ‘arum)
forma trocadilho com “nu” ( 'arummim). Este troca­
dilho realça o fato de homem e mulher ficarem
conscientes de sua nudez por causa da astúcia da
serpente. É digno de nota que em nenhuma parte
GÊNESIS 2
deste texto a serpente é identificada como o diabo.
Essa identificação só acontece no século I a.C.(Sb
2,24; Hen 69,6).
O que, então, a serpente representa? Em Canaâ,
a serpente era associada aos cultos de fertilidade.
Sabemos que esses cultos eram fonte constante de
tentação para Israel, que sucumbiu muitas vezes a
ela, como indica o Antigo Testamento. A escolha de
uma serpente para representar o tentador da huma­
nidade é a maneira de o autor dizer: “Não se envol­
va com serpentes (isto é, os cultos de fertilidade);
eles só causarão problemas, como fizeram para o
primeiro homem e a primeira mulher”. E um jeito
de advertir Israel para que se mantenha afastado
dos cultos de fertilidade.
A narrativa de Gn 3 não diz nada sobre os
motivos da serpente para tentar o homem e a
mulher. Na verdade, a fonte do próprio mal perma­
nece um mistério em Gn 3. O que a narrativa nos
diz é que a presença do mal no mundo deve-se à
decisão da humanidade de se opor à ordem de Deus.
Muitos biblistas tentaram explicar por que a
serpente trava conversa com a mulher, não com o
homem. Suas respostas vão desde a interpretação
da mulher como portadora de fraqueza inerente,
curiosidade incurável, até a perspectiva de que é
muito mais forte que o homem. Se ela é levada a
pecar, o homem automaticamente a seguirá. O texto
não confirma nenhuma dessas opiniões. Está claro
que o autor descreve ambos, o homem e a mulher,
dando atenção à serpente. A mulher come o fruto
e o dá também ao homem “que estava com ela” (v.
6). O fato de a mulher ser apresentada primeiro
pode ser explicado simplesmente como estratage­
ma literário que mantém a narrativa em movimento.
A serpente é apresentada primeiro, em seguida a
mulher, depois o homem. Quando Deus vem ao
jardim, dirige-se primeiro ao homem, em seguida
à mulher, depois à serpente. Quando Deus os cas­
tiga, castiga primeiro a serpente, em seguida a
mulher, depois o homem. Esse movimento de ser-
pente-mulher-homem, homem-mulher-serpente,
serpente-mulher-homem mantém um fluxo cons­
tante na narrativa e não tem grande importância
além desse fato. Está claro que a mulher está in­
cluída na ordem de Deus, embora não seja o desti­
natário explícito dessa ordem (2,17). E é óbvio,
como mencionamos acima, que o homem está junto
da mulher durante toda a cena da tentação.
A cena da tentação tem todas as características
de uma descrição universal da tentação. É a ma­
neira como todo ser humano é tentado. A serpente,
com uma pergunta inicial, insinua que Deus tem
algum motivo oculto para dar essa ordem, que Deus
está escondendo algo da humanidade. A mulher
sai em defesa de Deus, mas a serpente consegue
atrair sua atenção e prossegue com três meias-ver-
dades: 1) “vossa morte não está marcada”; 2) “vos­
sos olhos se abrirão”; 3) “sereis como deuses, pos- 61
 GENESIS 3
suindo o conhecimento do que seja bom ou mau”
(vv. 4-5). E verdade que, quando o homem e a
mulher comem, não morrem, porém ficam sujeitos
à morte e, de fato, morrerão. É verdade que seus
olhos se abrem, mas não da maneira como previ­
ram. Agora estão conscientes, como nunca estive­
ram antes, de toda uma nova área de experiência
humana — a experiência de culpa e vergonha.
Sabem que estão nus. E, por fim, tomam-se como
Deus, conhecendo o bem e o mal, mas não como
esperavam. Para determinar o que significa ser
“como deuses, possuindo o conhecimento do que
seja bom ou mau” precisamos tentar explicar o
significado do símbolo da árvore do conhecimento
do que seja bom ou mau.
Há muitas teorias quanto ao significado da
árvore do conhecimento do que seja bom ou mau
em Gn 3. Embora algumas delas sejam atraentes, em
geral baseiam-se em posições filosóficas atuais que
têm pouca relação com o que na verdade está em
discussão no relato do Gênesis. A pergunta a que
nos devemos ater ao lidar com este símbolo é: O
que signifiea a expressão “conhecimento do que
seja bom ou mau” nesta narrativa? Que tipo de
conhecimento Deus proíbe?
E muito difícil determinar o significado desse
símbolo, pois não temos nenhum símbolo compa­
rável em outra literatura do antigo Oriente Próxi­
mo. Nem é o símbolo, como tal, tratado em outra
parte do Antigo Testamento. Entretanto, encontra­
mos a expressão “conhecer o bem e o mal” no
Antigo Testamento. Se descobrirmos o que signi­
fica era outros contextos e depois testarmos esse
significado no contexto do Gênesis, talvez seja
possível encontrar um significado plausível da ár­
vore do conhecimento do que seja bom ou mau.
Em Dt 1,39 e Is 7,15.16, a frase “distinguir o
bem do mal” refere-se a um tipo de conhecimento
que os filhos ainda não possuem. São muito jo­
vens para isso. Em 2Sm 19,36, Barzilai recusa a
oferta do rei para que volte com ele a Jerusalém,
dizendo; “Tenho hoje oitenta anos. Posso ainda dis­
tinguir o que serve do que não presta?” A inferência
é que, velho, Barzilai está começando a perder suas
faculdades e por isso não pode prestar serviços ao
rei. Em IRs 3,9 e 2Sm 14,17, a frase “o bem e o
mal” é usada (embora sem o verbo “conhecer”) no
contexto de julgamentos sábios feitos pelo rei em
benefício do povo. Em suma, podemos dizer que
conhecer o bem e o mal acarreta o tipo de conhe­
cimento necessário para tomar decisões adultas em
benefício próprio.
Essa definição faz sentido na narrativa do
Gênesis? Deus estabelece um limite para a huma­
nidade. A humanidade pode saber muitas coisas,
mas quem decide o que é melhor para ela — o
Deus que criou a humanidade ou a criatura que foi
criada? O capítulo 3 do Gênesis diz que Deus quis
62 reter o eonhecimento do que era melhor para a
criação humana. O problema é que a humanidade
ultrapassou o limite imposto por Deus e se apro­
priou desse conhecimento. Agora a humanidade
existe na posição de decidir por si mesma o que é
melhor. Define-se em rebelião contra seu Criador.
A humanidade torna-se realmente “como
Deus”, no sentido de que agora toma as próprias
decisões quanto ao que é melhor para si mesma,
mas as toma como criatura, sem a sabedoria e a
visão do Criador. Quem sabe o que é melhor para
a criatura — Aquele que a criou ou a própria cria­
tura? A humanidade toma as próprias decisões mas
elas não têm a amplitude e a profundeza da sabe­
doria divina.
A conseqüência mais imediata do pecado do
homem e da mulher é a consciência da nudez, que
procuram remediar costurando folhas de figueira e
delas fazendo tangas (v. 7). Quase imediatamente
vemos a futilidade desse gesto. No diálogo que se
segue entre o S enhor Deus e o homem, notamos
que este, em vez de responder à pergunta do Senhor
Deus “Onde estás?” dá a razão de ter-se escondido
— “porque estava nu”. A razão é apropriada, apesar
do fato de não parecer verdade. Ele não está nu,
está vestido com folhas de figueira. Entretanto, em
relação ao Senhor Deus, está nu, isto é, seu rela­
cionamento com Deus foi rompido e assim perma­
nece. A humanidade não pode “encobrir” sua cul­
pa e sua vergonha e restaurar seu relacionamento
com o S enhor Deus. O único que pode remover a
culpa e a -vergonha da humanidade é o S enhor
Deus, 0 que é simbolizado no fim da narrativa (v.
21), quando o S enhor Deus faz vestiduras para o
homem e a mulher.
3,8-24 As conseqüências. O propósito da in­
terrogação do homem e da mulher é levá-los à
admissão de seu pecado. É interessante notar a
resposta bastante humana que o homem dá, pondo
a culpa na mulher e indiretamente até em Deus
(“A mulher que puseste a meu lado”, v. 12). A
mulher, por sua vez, culpa a serpente.
Os castigos que se seguem são expressos em
forma poética e considerados mais antigos que a
narrativa em que se encontram agora. A narrativa é
vista, então, como uma etiologia que explica coi­
sas como as razões pelas quais as serpentes raste­
jam, por que filhos são gerados com dor e por que
a lavoura é tão difícil. Esses castigos originam-se
do mundo em que o autor vive. Refletem as con­
dições ambientais e sociais encontradas na antiga
Palestina.
A constante luta da humanidade para sobrevi­
ver aos ataques de serpentes venenosas é realçada
na primeira maldição (vv. 14-15). A dor sofrida
para dar à luz, incompatível com a grande alegria
que cerca a dádiva da vida, é atribuída à participa­
ção da mulher no pecado. Que o marido a domi­
nará reflete a posição da mulher na sociedade an­
tiga (v. 16). A maldição sob a qual o homem tra-

balha (vv. 17-19) é testemunho do solo palestino,
rochoso e semelhante ao deserto, que tanto dificul­
ta a lavoura na região. Mas a narrativa não termina
em tom negativo. A mulher recebe nome, Eva, e se
tornará de todo vivente. Apesar do pecado e suas
consequências, a vida continuará. O S enhor Deus
faz vestiduias para o homem e a mulher, dessa forma
“encobrindo” a culpa e a vergonha dos dois. O cui­
dado do S enhor Deus pela humanidade não cessa
por causa do pecado, mas continua apesar dele.
Por iniciativa do S enhor Deus, é restaurado o rela­
cionamento rompido pelo pecado.
No fim do capítulo 3, a árvore da vida assume
importância. Ainda não atuou como parte integrante
da narrativa, mas agora, por causa do pecado, a
humanidade tem negado o acesso a ela árvore e é
expulsa do jardim. A humanidade não consegue se
apoderar da prerrogativa divina de imortalidade.
Isso é assegurado pelos querubins postados à en­
trada. Atuam como guardiães da árvore da vida e
impedem a humanidade de voltar ao jardim. Esses
querubins devem ser identificados com os animais
alados que guardavam as entradas dos palácios e
templos da Assiria e da Babilônia. A espada fulmi­
nante representa o relâmpago, quase sempre sím­
bolo da ira divina.
4,1-16 O primeiro homicídio. A narrativa de
Caim e Abel segue-se à narrativa do pecado da
humanidade e representa outra afastamento do
S enhor por parte da humanidade. Os w . iniciais
são transicionais. Outrora formavam a introdução
à genealogia que começa no v. 17, mas agora ser­
vem para introduzir os principais personagens de
nossa história. O nome de Caim, primogênito de
Eva, significa “procriei”. Não é dada a etimologia
do nome de Abel, mas a raiz hebraica do nome
significa “vácuo” e talvez se refira à vida muito
breve de Abel. A desunião desses irmãos é demons­
trada apenas pela sentença sucinta que contrasta
suas profissões: Caim é agricultor; Abel, pastor.
A medida que a história se desenrola, move-se
depressa para o homicídio de Abel e o julgamento
de Caim pelo S enhor. Muitos detalhes que interes­
sariam ao leitor atual são simplesmente ignorados.
Não sabemos por que o sacrifício de Caim não era
aceitável, nem como Caim descobre que seu sacri­
fício não agradou a Deus. A narrativa concentra-se
na reação de Caim, no subseqüente homicídio de
seu irmão e no julgamento de Caim por Deus. O
V. 7 sugere que Caim podería ter controlado sua
cólera. O pecado é apresentado em sentido figura­
do como “agachado à porta” para tomar posse dele,
contudo Caim ainda podia superar o pecado “fa­
zendo 0 bem”. Ele não faz e, por isso, assume a
plena responsabilidade por seu pecado.
Ao ser interrogado pelo S enhor, Caim mente
e depois faz uma pergunta sarcástica (v. 9). Ele é
pior do que o primeiro pecador, que procurou ape­
nas transferir a culpa. O pecado de Caim não pode
GÊNESIS 4
ser ignorado. O sangue de seu irmão assassinado
clama ao S enhor. N o antigo Israel, acreditava-se
que o sangue e a vida estavam ligados de maneira
inextricável. Como a vida pertence a Deus, o mes­
mo acontece com o sangue.
.O castigo de Caim é mais severo que o dos
primeiros pais. Ele é banido do solo, amaldiçoado
para ser errante. Como no capítulo 3, o castigo do
pecador não é a última palavra. Quando Caim cla­
ma contra a severidade de seu castigo, e confessa
seu medo de que outros procurem vingar-se dele,
o S enhor põe nele um sinal para protegê-lo. Em­
bora se afaste da presença do S enhor (v. 16), Caim
está misteriosamente sob a proteção de Deus.
A narrativa de Caim e Abel está ligada apenas
de maneira indefinida à narrativa precedente da
queda, no capítulo 3. Essa narrativa pressupõe a
existência de outras pessoas (v. 14) e de uma socie­
dade organizada, em que há profissões distintas e
na qual se desenvolveu um culto sacrifical. A his­
tória tem todos os sinais de ter sido reduzida ao
mínimo necessário. A preocupação da passagem
está inteiramente no pecado de Caim e em seu cas­
tigo subseqüente, deixando muitas perguntas sem
resposta. Parece provável estarmos lidando com
uma narrativa outrora de existência independente,
mas adaptada pelo autor javista para servir a seus
propósitos.
Foi sugerido que a preocupação da narrativa
original era a animosidade entre povos de formação
e vocação diferentes, especificamente agricultores e
pastores. Na história, o modo de vida pastoril vence
o do agricultor, como é evidenciado pela aceitação
do sacrifício de Abel pelo S enhor. Se essa era a
preocupação da história original, não é mais o inte­
resse principal da narrativa do Gênesis. Outra manei­
ra de justificar a origem da história é vê-la como um
relato da origem (etiologia) dos qenitas. Os qenitas
formavam uma tribo que cultuava o S enhor e con­
tudo nunca se tomou membro de Israel. Eram ferrei­
ros e metalurgistas, e continuaram a viver como tribo
nômade por um longo período depois que muitas
tribos nômades tinham se fixado. Acredita-se que
os membros dessa tribo usavam um sinal ou uma
tatuagem na fronte, o que a distinguia de outras tri­
bos. Essa narrativa sugere que Caim é seu fundador
e a história é contada para justificar as característi­
cas diferenciadas da tribo qenita.
Embora alguns elementos da narrativa nos aju­
dem a determinar sua intenção original, eles não
mais explicam plenamente o uso que o autor javista
faz dela. Este é o nível mais importante da história
para o leitor. Para o autor javista, a história ilustra
a inclinação da humanidade para o pecado. Desde
o primeiro pecado no jardim, a humanidade conti­
nua a se afastar do Senhor, tomando-se tão endure­
cida no pecado que o S enhor se arrepende de ter
criado a raça humana (6,6). Segundo o autor javista,
é contra a tela de fundo da crescente pecaminosi- 63
 GÊNESIS 4
dade do gênero humano que por fim é escolhido
um povo por intermédio do qual toda a humanida­
de se reconciliará com Deus (12,lss.). Tendo per­
missão para agir como bem entender, a humanida­
de se encaminha para o pecado. A esperança se en­
contra na misericórdia sempre presente do S enhor
e em seu desejo de salvar.
4,17-26 Genealogia de Caim. Embora a maio­
ria das genealogias do Gênesis sejam atribuídas ao
autor sacerdotal, esta genealogia de Caim é obra
do javista. Que este fragmento é uma tradição à
parte, originalmente não ligada à história de Caim
e Abel, fica evidente com o aparecimento surpre­
endente da mulher de Caim. Como não são men­
cionados outros povos, de onde veio a mulher? Na
história anterior, Caim é amaldiçoado: será errante
(vv. 12.16); mas nessa genealogia é construtor de
uma cidade (v. 17) e pai de uma civilização. De
modo semelhante, enquanto Abel foi descrito como
pastor (v. 2), nessa genealogia labal é o pai dos
pastores (v. 20). Ela é introduzida a fim de justi­
ficar a origem de cidades e o desenvolvimento da
civilização com as profissões resultantes. Sua inclu­
são preenche a lacuna entre o relato da criação e
0 do dilúvio.
Há pontos de contato entre essa genealogia e a
genealogia sacerdotal em Gn 5. Alguns dos nomes
são repetidos (Henoc, Lémek) e outros são simples­
mente variações de nomes que aparecem na genea­
logia javista (Mehuiael/Mahalalel; Metushael/
Metushálah). Parece que as duas genealogias vêm
de uma fonte comum que passou por um longo pe­
ríodo de transmissão, o que justificaria as diferenças
na grafia e na sequência dos nomes. Por trás de
ambas está a tradição de uma lista antediluviana
dos reis da Mesopotâmia. Os pontos de contato
entre essas tradições e as genealogias do Gênesis
serão mencionados no comentário sobre Gn 5.
Inserido na genealogia de Caim está um “cân­
tico de jactância” de Lémek (vv. 23-24). É diferen­
te dar genealogia na forma e no conteúdo. Prova­
velmente foi incluído por mencionar Caim no últi­
mo versículo. O cântico reflete o orgulho e a arro­
gância da vingança desenfreada e é usado pelo ja­
vista como outro exemplo da pecaminosidade do
gênero humano. A desobediência dos primeiros pais
levou a uma sempre crescente rebelião da humani­
dade contra Deus — primeiro o homicídio e agora
a vingança injustificada. À medida que a civiliza­
ção progride, o mesmo acontece com a rebelião da
humanidade.
Um fragmento de Shet está anexado à genealo­
gia de Caim. O v. 25 é semelhante ao v. 17, e com
ele voltamos a Adão. Como é característico do autor
javista, há um trocadilho: a palavra para “suscitou”
soa como “Shet”. Em contraste com a genealogia
de Caim, que terminou com a rebelião da huma­
nidade contra Deus, esse fragmento afirma que agora
64 a humanidade começou a invocar o nome do Senhor.
Consistente com a teologia javista, o parágrafo ter­
mina em tom positivo.
Muitos debates eruditos têm se concentrado
no fato de Gn 4,26 afirmar que a humanidade co­
meçou a invocar o nome do Senhor a partir da
época de Shet, enquanto a tradição sacerdotal e a
eloísta só introduzem o nome no tempo de Moisés
(Ex 6,2; 3,14). Como somos incapazes de recons­
truir com certeza a pré-história das tradições de
Israel, é impossível conciliar essas duas tradições.
Pode ser que o nome do Senhor fosse conhecido
por um pequeno grupo ou tribo e só mais tarde ti­
vesse se tomado conhecido de todo o povo, mas isso
é altamente especulativo.
5,1-32 A genealogia de Adão. Os primeiros
dois vv. deste capítulo lembram a criação da huma­
nidade no relato sacerdotal (l,26ss.) e servem de
transição para a genealogia de Adão baseada naque­
la fonte. A relação dessa genealogia com a de Caim
foi mencionada acima e pode ser vista claramente
na comparação a seguir. A ordem dos nomes na
genealogia javista foi mudada para realçar a seme­
lhança entre as duas listas. Os números à esquerda
indicam a ordem em que os nomes aparecem no
texto.
Gn 4,17-26 (J) Gn 5,1-32 (P)
1. Adão 1. Adão
8. [Shet] 2. Shet
9. [Enosh] 3. Enosh
2. Caim 4. Qenan
5. Mehuiael 5. Mahalalel
4. Irad 6. léred
3. Henoc 7. Henoc
6. Metushael 8. Metushálah
7. Lémek 9. Lémek
10. [Noé] 10. Noé
Em essência, são genealogias iguais. A refe­
rência do autor javista a Noé encontra-se em Gn
5,29. A mudança na ordem dos nomes revela a na­
tureza fluida das tradições genealógicas; podiam
ser reagrupadas para se adaptar aos propósitos do
autor. Não há dúvida de que a genealogia do capí­
tulo 5 tem relação com a lista antediluviana dos
reis da Mesopotâmia. Em ambas as listas a sétima
posição tem significado especial. Na lista mesopo-
tâmica, o nome do sétimo rei, Enmeduranna, é o
mesmo da capital que servia como centro do culto
do deus sol. Talvez isso explique por que Henoc,
o sétimo na lista sacerdotal, viveu precisamente
365 anos, mesmo número de dias do ano solar.
Acreditava-se que o sétimo rei era levado para a
companhia dos deuses. Isso talvez explique a refe­
rência um tanto enigmática ao destino de Henoc
(v. 24). Como Noé, última pessoa mencionada na
genealogia sacerdotal, o último rei da lista mesopo-
tâmica tem papel importante na história do Dilú­
vio. Não há nenhuma relação direta entre quaisquer
dos nomes nas duas listas, nem os números são os
mesmos. Na verdade, em contraste com a extensão

do reinado na lista mesopotâmica (18.600-64.800
anos), o tempo de vida dos patriarcas bíblicos é
extraordinariamente curto. Contudo, há semelhan­
ças notáveis.
Em Gn 5, a genealogia é introduzida pela fra­
se “Eis a lista da família...” (em tradução literal:
“Este é 0 livro das gerações...”). Como as genea­
logias sacerdotais subsequentes começam com uma
fórmula semelhante, em geral se acredita que o
autor sacerdotal tirou as listas de uma coleção de
quadros genealógicos que os biblistas chamam de
“Livro das Gerações”.
Consistente com o estilo sacerdotal visto em
Gn 1,1—2,4a, a genealogia segue um padrão rigo­
roso. Compõe-se dos seguintes elementos: 1) a
idade de X quando nasce seu primeiro filho; 2) o
número de anos que X viveu depois desse nasci­
mento; 3) a afirmação que X teve outros filhos e
filhas; 4) a idade com a qual X morreu.
Como acontece com a genealogia javista, o pro­
pósito dessa genealogia é preencher a lacuna entre
os relatos da criação e o do Dilúvio. Mas, além disso,
são evidentes algumas preocupações caracteristica-
mente sacerdotais. A bênção e a ordem para se multi­
plicar dadas por Deus em 1,28 agora são cumpridas.
A imagem de Deus segundo a qual o primeiro casal
foi criado passa de geração a geração, de modo que
toda a humanidade é criada à imagem de Deus (5,3).
A amizade de Henoc com Deus (v. 24) salva-o do
dilúvio. O nome Noé significa literalmente “descan­
so”, mas, no v. 29, sugere conforto ou alívio, anteci­
pando o futuro papel de Noé.
A NARRATIVA DO DILÚVIO
Gn 6,1-9,29
A história do Dilúvio no Gênesis tem notável
semelhança com os relatos mesopotâmicos do di­
lúvio, em especial a versão babilônica da epopéia
de Guilgamesh. Guilgamesh, o herói dessa epo­
péia, inicia uma busca da imortalidade que o leva
a um ancestral antigo chamado Utnapishtim, que é
imortal. Quando Utnapishtim relata como se tor­
nou imortal, imediatamente reconhecemos parale­
los com a narrativa do Dilúvio contida no Gênesis.
Eis a narrativa babilônica: o conselho de deuses
decide destruir a humanidade. Ea, o deus da sabe­
doria, aparece a Umapishtim em um sonho e avisa-
-o do desastre iminente. Instrui Utnapishtim para
que construa um barco e salve a si e a sua familia.
Utnapishtim traz a bordo do barco sua família,
animais selvagens e domesticados e artesãos. Os
deuses desencadeiam uma tempestade que não
demora a ficar fora de controle e os próprios deu­
ses encolhem-se de medo nas esferas superiores do
céu. Quando a tempestade acaba, o barco pousa
em um monte e Utnapishtim envia pássaros do
barco para determinar até onde as águas retrocede­
ram. Ao sair do barco, os sobreviventes da tempes­
GENESIS 6
tade oferecem um sacrifício agradável aos deuses,
que, por sua vez, abençoam Utnapishtim e sua fa­
mília com a imortalidade.
É evidente que a versão do Gênesis é, em
essência, a mesma história, mas há algumas dife­
renças significativas. No relato do Gênesis não há
nenhuma insinuação de politeísmo. Deus, e só
Deus, está no comando, o tempo todo; a tempes­
tade jamais fica fora de controle. O Dilúvio não
resulta de um capricho; é enviado como castigo
pelo pecado. Noé não ganha a imortalidade, mas
faz uma aliança com Deus.
Ao contrário de Gn 1—5, onde as tradições javista
e sacerdotal estão quase sempre separadas, em Gn
6-9, as duas versões estão amplamente entrelaçadas.
Isso é evidente nas duplicações e contradições na
forma atual da narrativa. As duplicações são estas:
Deus nota a pecaminosidade do gênero humano (6,5/
6,12); Deus decide destruir a humanidade (6,7/6,13);
Deus anuncia o Dilúvio (7,4/6,17); Noé recebe
ordens para entrar na arca (7,1-3/6,18-20); Noé obe­
dece (7,5/6,22); Noé entra na arca (7,l-3/7,18ss.);
todas as criaturas vivas da terra morrem (7,22/7,21);
as águas se acalmam (8,l/8,3a); Deus promete nun­
ca mais destrair a criação por meio do Dilúvio (8,21/
9,11). Eis as contradições do texto: o número de
animais levados à arca (7,2/6,19-20; 7,15-16); a causa
do Dilúvio (7,4.12; 8,2b/7,ll; 8,2); a duração do
Dilúvio (7,24; 8,2a.3b; 8,13/7,4.10.12; 8,8-12). As
diferenças nas duas versões ficarão claras no comen­
tário a seguir.
6,1-4 (J) O c a s a m e n to d o d iv in o c o m o hu­
m a n o . Esta é, sem dúvida, uma das histórias mais
estranhas do Antigo Testamento. Parece ser um mito
abreviado, assumido pelo autor javista e reescrito
para servir de introdução ao relato do dilúvio. Os
“filhos de Deus” são certamente deuses, não anjos
como muitas vezes se presume. Na mitologia an­
tiga, os filhos de Deus eram considerados mem­
bros do conselho celeste, divindades menores que
prestavam serviços ao deus supremo.
O que parece estar em debate aqui não é o com­
portamento licencioso, mas o casamento entre deu­
ses e seres humanos. Se eliminássemos o v. 3, a nar­
rativa parecería simplesmente uma etiologia para
explicar uma raça de gigantes ou heróis sobre-hu­
manos de antigamente. O v. 3 leva-nos a interpretar
a ação descrita no v. 2 como um grande pecado. O
javista usa o mito para ilustrar a extensão do pecado;
até transgride os limites entre os reinos celeste e
terreno. E interessante que o castigo seja dirigido
à humanidade, cuja vida é abreviada, e não aos deu­
ses que iniciaram a ação. Isso se explica se reco­
nhecemos que 0 javista usa a história para introduzir
sua versão do dilúvio, o meio pelo qual o gênero hu­
mano é punido por sua maldade.
6,5-8 (J) A decisão d o S enhor d e d e s tr u ir to ­
d a s as c ria tu r a s vivas. N este parágrafo, o javista
cham a ainda m ais a atenção para a am plitude do 65
 GÊNESIS 6
pecado. É universal. Tudo que é concebido no cora­
ção humano é mau. Na antropologia hebraica, o co­
ração não é, em princípio, o centro das emoções,
mas a fonte do intelecto e da vontade. Todos os pen­
samentos e atos humanos são maus. A aflição do
Senhor pela criação dá um toque bastante humano à
descrição javista de Deus. A resolução do Senhor de
destruir o que foi criado é reação ao comportamento
da humanidade e, como tal, não é decisão arbitrária.
O Dilúvio é o julgamento da humanidade pelo S e­
nhor, mas este Julgamento é contrabalançado pelo
desejo do Senhor de salvar, que se expressa na pre­
servação de Noé e sua família. A escolha de Noé
pelo S enhor permanece um mistério na versão javista
da narrativa do Dilúvio.
6,9-22 (P) Decisão divina de enviar o Dilú­
vio e instruções para construir a arca. A fórmu­
la “Eis a família de...” indica que voltamos ao autor
sacerdotal. Nota-se imediatamente a justiça de Noé;
por causa dela, ele é preservado, como acontece na
narrativa javista. Não é apenas a humanidade que
está corrompida, mas a própria terra. Como no
relato javista, o desejo que Deus tem de destruir é
em reação ao pecado. Como é característico do
autor sacerdotal, vemos que é dada grande atenção
aos detalhes, tais como a construção da arca e a
datação do Dilúvio. Noé deve levar para a arca sua
família e os machos e fêmeas de cada espécie de
animais, além de comida suficiente para alimentá-
-los durante toda a duração do Dilúvio.
7,1-5.7-10.12.16b. 17b.22-23 (J) Instruções a
Noé e a chegada do Dilúvio. A ordem para cons­
truir a arca foi omitida da versão javista, prova­
velmente para dar lugar à versão sacerdotal. Em
vista da afirmação em 7,1 de que só Noé foi consi­
derado justo, é possível que a construção da arca
sirva de teste para ele. Noé é instruído para levar
para a arca sete casais de todos os animais puros
e um casal de todos os animais impuros, em óbvia
discordância com Gn 6,19. Para o autor sacerdotal,
a distinção entre animais ritualmente aceitáveis e
inaceitáveis (puros e impuros) só poderá ser feita
depois que Moisés introduzir as leis rituais na nar­
rativa do Sinai. O javista não tem problema para
apresentar o culto sacrifical como parte da história
mais primitiva da humanidade (4,3-4; 8,20-22). O
estilo antropomórfico (que descreve Deus em ter­
mos humanos) do autor javista está evidente na des­
crição do Senhor fechando a porta da arca (7,16b).
Aqui o Dilúvio é o resultado de quarenta dias e
noites de chuva. O relato sacerdotal apresenta outra
explicação.
7,6.11.13-16a.l7a.l8-21.24 (P) Reversão ao
caos primevo. No relato sacerdotal, o Dilúvio não
é causado pela chuva, mas pelo encontro das águas
que estão acima do céu com as que estão abaixo
da terra. Em outras palavras, o mundo volta ao caos
aquoso que existia antes da criação (1,2). A exten-
66 são do Dilúvio é muito maior no relato sacerdotal.
pois provoca a destruição de todo o cosmos e a re­
versão ao caos primevo.
8,2b.3a.6.8-12.13b.20-22 (J) O retrocesso das
águas, o sacrifício de Noé, a promessa do Senhor.
As águas permanecem na terra um total de ses­
senta e um dias. Noé solta aves para determinar se
as águas haviam baixado o suficiente para ele poder
desembarcar. O uso de aves por marinheiros com
propósitos de navegação não era desconhecido no
mundo antigo. O javista, em bom estilo de conta­
dor de histórias, leva o tema de envio de aves ao
clímax, fazendo Noé soltar três aves, a última das
quais é bem-sucedida. Como no mito babilônico,
ao sair da arca Noé oferece um sacrifício agradá­
vel ao S enhor. Não podem ser esquecidas as su­
gestões mitológicas da frase “O S enhor aspirou o
perfume aplacador” (v. 21). A expressão tem origem
em uma noção primitiva de que os deuses comiam
realmente o alimento a eles oferecido. Essa idéia
foi mais tarde rejeitada por Israel. Em nossa histó­
ria, o detalhe serve para mostrar que o sacrifício foi
aceito pelo Senhor e, assim, efetuou-se a reconci­
liação com a humanidade. Assim como a narrativa
do javista começou com a reflexão do S enhor sobre
a humanidade (6,5-8), agora ela termina com refle­
xões comparáveis. A humanidade é a mesma “que
se inclina para o mal desde a sua juventude” (v. 21),
mas a maldade da humanidade nunca mais será a
base para o S enhor destruir a terra. A ordem
da criação é assegurada pelo S enhor.
8,l-2a.3b.4-S.7.13a.l5-19; 9,1-17.28-29 (P)
Deus se lem bra de Noé. No relato sacerdotal, o
dilúvio dura todo um ano mais dez dias, e a restau­
ração acarreta uma recriação. O “sopro de Deus”
que começa a se mover sobre as águas ecoa o “so­
pro de Deus” que atuou de modo semelhante em
Gn 1. O momento decisivo da narrativa será quando
Deus se lembrar de Noé. É a “lembrança” de Deus
que põe em movimento esse novo ato de criação.
O tema do envio das aves não está integrado na nar­
rativa sacerdotal com tanto sucesso quanto na ver­
são javista. N a verdade, é Deus que diz a Noé para
sair da arca. Noé não confia nas informações obti­
das por meio das aves.
As primeiras palavras de Deus a Noé e seus
filhos reiteram a bênção dada na criação: “Sede fe­
cundos e prolíficos”. No mundo pós-diluviano, a
bênção da procriação continua em vigor. O que se
altera é o relacionamento da humanidade com os
animais. Reconhecendo a natureza violenta da huma­
nidade, Deus permite que os animais sejam mortos
e comidos, mas o sangue, por causa de sua ligação
com a vida, que pertence só a Deus, não deve ser co­
mido. A proibição de tirar a vida humana continua
em vigor. É interessante notar que a razão dada para
isso é que a humanidade foi criada “à imagem de
Deus”. Se a lei de Deus contra o homicídio for trans­
gredida, será a humanidade, não Deus, quem terá a
responsabilidade de punir o crime. E provável que

a fórmula legal antiga em 9,6 se destinasse a a es-
tabeleeer limites para a vingança de sangue.
Na conclusão sacerdotal da narrativa, a pro­
messa divina de nunca mais destruir a terra pelo
dilúvio assume a forma de uma aliança. A aliança
era a maneira de regular as relações entre indiví­
duos e grupos na sociedade antiga. Essa aliança é
introduzida pelo autor sacerdotal como antecipação
da futura aliança entre Deus e Israel. A iniciação
da aliança e a responsabilidade de mantê-la depen­
dem inteiramente de Deus. O arco-íris é sinal dessa
aliança. É um lembrete a Deus da promessa de
preservar o mundo; é um lembrete à humanidade
da fidelidade e da misericórdia de Deus.
A narrativa conclui em 9,28-29. Estes vv. reve­
lam a preocupação do autor sacerdotal com a cro­
nologia. O V . 29 recorda a genealogia do capitulo
5, interrompida pela história do Dilúvio, e, por sua
vez, proporciona uma transição para o quadro dos
povos do capítulo 10.
9,18-27 (J) A maldição de Canaã. Mais uma
vez vemos o autor javista adaptar uma narrativa que
originalmente serviu a outro propósito. A história
original atuou como etiologia para explicar a ori­
gem da vinicultura e a descoberta dos efeitos ine-
briantes do vinho. Como tal, não há nenhum julga­
mento moral da condição de Noé. Simplesmente é
constatado que ele se embriagou. O interesse do
javista não está na bebedeira de Noé, mas na mal­
dição de Canaã e nas bênçãos de Shem e léfet, que
resultaram do comportamento deles em relação ao
pai durante o entorpecimento deste devido à bebida.
Não está clara, exatamente o que Ham fez a Noé,
mas com certeza envolveu mais do que apenas olhar
para a nudez do pai (veja 9,24). Nem fica claro por
que Canaã é amaldiçoado quando, segundo a nar­
rativa, Ham é o culpado. A fiase “Ham é o pai de
Canaã” (v. 18) certamente tem o propósito de pôr a
maldição em harmonia com a história, mas não eli­
mina a dificuldade.
A maldição de Canaã e as bênçãos de Shem e
léfet procuram justificar as relações entre os povos
que descendiam desses ancestrais. Os canaanitas
tomaram-se realmente servos dos israelitas (descen­
dentes de Shem). A identificação dos descendentes
de léfet não é certa. Talvez sejam os filisteus, que
“habitavam entre as tendas de Shem”, ou os hititas,
que desapareceram da terra logo depois da chegada
de Israel. Em todo caso, são apresentados como par­
ticipantes do domínio de Israel na terra de Canaã.
A S NAÇÕES DO MUNDO
Gn 10,1-11,27
10,1-32 O quadro dos povos. A genealogia de
Gn 10 é, na verdade uma extensa classificação das
nações do antigo Oriente Próximo. É, basicamente,
obra do autor sacerdotal, como indica a fórmula das
gerações, mas agora contém alguns fragmentos tira­
GÊNESIS 11
dos do autor javista. O princípio de divisão entre as
nações não é a raça nem a língua, mas os limites
geográficos e as afiliações políticas. A ordem em
que os filhos de Noé são relacionados — Shem,
Ham, léfet — é revertida para apresentar os ances­
trais dos israelitas em uma posição final ascendente.
Os descendentes de léfet habitam a região norte
do crescente fértil até a região costeira a oeste da
Palestina. Muitos dos povos mencionados são indo-
-europeus, mas não é possível identificar todos com
certeza. Entre os que têm identificação certa estão
os seguintes: Madai são os medos, lavan são os gre­
gos, Kitim é o povo da ilha de Rodes.
Os descendentes de Ham incluem tribos africa­
nas e árabes que habitavam a região que rodeava o
mar Vermelho, o nordeste da África e a terra de Canaã.
A Etiópia (Kush), a Líbia (Put) e o Egito são bem
conhecidos entre as nações mencionadas. É surpreen­
dente encontrar os canaanitas, que eram semitas, iden­
tificados como descendentes de Ham, mas é pro­
vável que isso reflita o fato de que o Egito controla­
va a região antes da reivindicação da terra por Israel.
Os habitantes do lado asiático do mar Vermelho
também estão relacionados. Muitos desses nomes
são conhecidos como povos desalojados pela con­
quista de Canaã por Israel.
Os descendentes de Shem são os povos que
ocupam a região do crescente fértil e da península
Arábica. As nações conhecidas incluem Elâm, Assur
e Arâm.
Um redator mais tardio inseriu materiais javistas
nesta genealogia sacerdotal (w. lb.8-19.21.24-30).
Essas inserções estão claramente separadas em
forma e conteúdo do material que as cerca. A inser­
ção de Nimrod (vv. 8-12) assume a forma de narra­
tiva em vez da de genealogia. A identificação de
Nimrod com um herói conhecido do passado é difí­
cil. A ele é creditada a fundação de diversas gran­
des cidades, o que levou alguns biblistas a identifi­
car Nimrod com Tukulti-Ninurta 1 (século Xlll
a.C.), o rei assírio que conquistou a Babilônia. O
javista pretendeu que, em sua maioria, os nomes
nos vv. 21 e 24-30 fossem de indivíduos, ao contrá­
rio dos nomes do autor sacerdotal que representam
povos. Eber é o ancestral epônimo dos hebreus,
isto é, aquele de quem tiraram o nome. A origem
e o significado do trocadilho com o nome Péleg (v.
25) perderam-se.
Embora haja muita incerteza sobre esse quadro
dos povos, seu significado teológico é claro. Mostra
0 cumprimento da ordem divina para crescer e se
multiplicar encontrada em Gn 1,28 e reiterada a
Noé em Gn 9,1. Também nos mostra que Israel é
uma entre muitas nações. A escolha de Israel pelo
Senhor não se baseia em nenhuma façanha ou qua­
lidade de Israel, mas apenas na misericordiosa
intervenção divina em sua história.
11,1-9 A torre de Babel. O autor javista conta
em forma de narrativa o que o sacerdotal apresen- 67
 GÊNESIS 11
tou em forma genealógica no capítulo 10. Talvez a
história fosse outrora uma etiologia para explicar a
diversidade de línguas e nações. O javista, entretan­
to, usa-a não só como exemplo do constante pecado
da humanidade, mas também como contraponto à
vocação de Abraão em Gn 12,lss. O cenário da his­
tória é babilônico. Shinear é nome antigo para a
Babilônia (Babel). O método de fabricar tijolos é
característico da Mesopotâmia, não da Palestina, que
usava pedra nas construções. Apesar do ambiente
babilônico da narrativa, ainda não encontramos um
paralelo real dessa história em nenhuma mitologia
do antigo Oriente Próximo.
A narrativa divide-se em três partes: w . 1-4,
vv. 5-8, V. 9. A primeira parte é um relato no qual
os humanos são os atores; a segunda é um discurso
no qual o S enhor é o ator principal. O último v. é
um suplemento explanatório que inclui uma etimo­
logia popular do nome Babel e conclui a história.
Leva-nos de volta ao início por reversão: as pes­
soas eram unidas e sua lingua era uma só, agora
não são.
Os homens constroem uma cidade com uma
torre e o S enhor os castiga. Não está claro por que
exatamente são punidos. O que fizeram para for­
çar a mão do S enhor? O pecado pode ser deduzido
do motivo dado para construir a cidade; t‘Conquis-
temos para nós um nome, a fim de não ser dispersa­
dos”. Há uma dupla motivação. Por um lado, dese­
jam conquistar um nome para eles mesmos por ini­
ciativa própria, em óbvia independência do Senhor.
Por outro lado, buscam evitar ser “dispersados”, o
que foi ordenado por Deus quando lhes disse “en­
chei a terra” (1,28; 9,1). Nessa história, as pessoas
fazem justamente o contrário; juntam-se em um só
lugar, uma cidade.
Com fieqüência, os comentaristas concentram­
-se na “torre cujo cume atinja o céu” (v. 4) como
sinal do pecado de orgulho e rebeldia contra Deus,
mas não há razão para separar a torre da cidade.
Muitas cidades antigas eram construídas com torres
de vigia; " ... cujo cume atinja o céu” significa ape­
nas que era uma torre muito alta. Não há necessi­
dade de identificar a torre como templo babilônico
(zigurate), como se costuma fazer. Mesmo se a torre
fosse em alguma ocasião associada a um desses
antigos locais de culto, em nossa história não é dado
nenhum significado religioso à torre.
Como é característico das narrativas javistas,
esta apresenta o Senhor de maneira bastante antro-
pomórfica e contém trocadilhos. O S enhor “des­
ce” para ver o que os homens estão fazendo,
parecendo quase ciumento ou temeroso das cres­
centes habilidades das pessoas. Presume-se que o
“nós” a quem o S enhor se dirige (v. 7) sejam
membros do conselho celeste (compare Gn 1,26;
6,2). Há trocadilhos entre as palavras hebraicas para
63 “Babel” e “confusão”, para “nome” e “lugaf’. As
pessoas buscavam conquistar um “nome”, mas
“ali”, em “Babel”, o S enhor “confundiu” a língua
de toda a terra.
Contra o pano de fundo da história de Babel,
o javista apresenta a vocação de Abraão. O povo
procurava conquistar um nome, mas é o Senhor que
tomará grande o nome de Abraão (12,2). Os ho­
mens foram dispersados pela face da terrà;^^o Senhor
escolherá uma única nação e por intermMio dela
todas as nações da terra serão abençoadas. Àp pro­
ceder como bem entendem, buscam o pecado.\Ago-
ra 0 S enhor intervirá, não com o castigo como no
dilúvio, mas com amor salvífico, usando Israel pára
chamá-los de volta.
11,10-2731-32 A genealogia de Abraão. Esta
genealogia do autor sacerdotal baseia-se na encontra­
da no capítulo 5, mas os tempos de vida concedidos
são consideravelmente menores. Há uma inserção
da tradição javista nos w. 28-30. Esses vv. realmente
introduzem as narrativas de Abraão e assim serão
tratados com a vocação de Abraão (12,lss.). Alguns
dos nomes mencionados são, na verdade, cidades
do noroeste da Mesopotâmia (Serug, Nahor, Térah,
Haran), mas no antigo Oriente Próximo não era raro
emprestar o nome de um lugar.
Tanto na tradição sacerdotal (v. 31) como na
javista (v. 28), o lugar de nascimento de Térah, pai
de Abraão, é Ur dos caldeus. A identificação de Ur
como a cidade dos caldeus é anacrônica — os cal­
deus entraram na região mesopotâmica somente de­
pois que a cidade alcançara o auge e, conseqüente-
mente, ela não podería estar ligada aos caldeus no
tempo da migração de Abraão. A migração de Abraão
começa em Haran (11,31; 12,5), e a base cultural
adotada nas narrativas patriarcais é a da região
mesopotâmica noroeste, não do vale meridional do
Tigre-Eufrates, onde se localizava Ur. Ambas as
cidades, Ur e Haran, cultuavam o deus da lua, Sin,
e havia tráfego regular entre essas duas cidades. É
provável que as inserções de Ur no texto reflitam as
antigas associtições entre as duas cidades.
CONCLUSÃO
A história primeva em Gn 1-11 é uma mistura
de tradições que relaciona a história de pecado que
prejudicou a bondade da criação divina. A superio­
ridade do gênero humano sobre o resto da criação
é indicada pela afirmação de que homem e mulher
são criados “à imagem de Deus” e pela ordem de
Deus para que dominem a terra. Mas, por causa de
sua contínua desobediência contra Deus, a huma­
nidade está ligada à própria terra da qual foi for­
mada. Deixada para proceder como bem entende,
toma-se ainda mais profundamente presa ao peca­
do. A indulgência de Deus é demonstrada quando
todo castigo divino é abrandado por cuidado, pro­
teção e restauração. Os onze primeiros capítulos
do Gênesis são o pano de fundo contra o qual a

história da salvação progride com o chamado de
Abraão por Deus.
AS NARRATIVAS PATRIARCAIS
Gn 11,28-36/43
Da história que terminou com tod^ a humani­
dade dispersa pela terra, a narrativa javista agora
estreita o enfoque para um indivíduo e seus descen­
dentes. Neste conjunto de sagas, o elolde ligação
é 0 tema da promessa e seu cumprimento. A forma
mais primitiva da promessa pode ter siqo apenas a
promessa de um filho, mas, à medida que a tradição
se desenvolveu, expandiu-se para incluir muitos des­
cendentes, terra, grandeza como nação e bênçãos.
A preocupação por um descendente ocupa a maior
parte do ciclo de Abraão.
É legítimo fazer perguntas históricas a respeito
das narrativas patriarcais, mas somos advertidos
contra uma reconstrução excessivamente simplifi­
cada das vidas e do período histórico dos patriar­
cas pela natureza das narrativas como saga. Con­
tudo, o campo da arqueologia tem contribuído para
nosso conhecimento do antigo Oriente Próximo e
há concordância geral que, em vista do estilo de
vida e dos costumes refletidos nas narrativas patriar­
cais, devemos situar os patriarcas na região do Cres­
cente Fértil no segundo milênio a.C.
O CICLO DE ABRAÃO
Gn 11,28-25,18
11,28-29; 12,1-9 A vocação e a resposta de
Abrão. Não há preparação para a vocação de Abrâo.
(Abrão e Abraão são variações do mesmo nome,
assim como Sarai e Sara. As mudanças em seus
nomes ocorrem em 17,5.15 para indicar seu novo
relacionamento com Deus em conseqüência da
aliança.) É feita apenas uma brevíssima menção
das migrações de Térah e sua família. E interes­
sante que o pai de Milká é lembrado, mas não o da
mais importante Sarai. A esterilidade de Sarai é
mencionada em antecipação de narrativas posterio­
res e toma mais paradoxal a promessa do S enhor
de muitos descendentes, em 12,2.
A promessa a Abrão representa nova fase na
narrativa javista. Antes, movíamo-nos na esfera da
história primeva, a história de toda a humanidade.
Agora nos centralizamos em um indivíduo que logo
se tornará uma família e, por fim, uma nação. A
escolha de Abrão permanece um mistério na narra­
tiva javista e se baseia unicamente na iniciativa di­
vina. A promessa é dominada pelas palavras “bên­
ção” e “abençoar” (cinco vezes). O que o S enhor
oferece a Abrão será sinal do favor divino e fonte de
felieidade para o próprio Abrão. Para ser uma gran­
de nação, Abrão precisará de descendentes e terra.
Ambos esses aspectos da bênção são explicados com
GENESIS 12
mais detalhes nas narrativas seguintes. A fama de
Abrão surgirá em resultado de sua confiança nas
ações do Senhor, não, como no caso da história de
Babel, pela conquista de um nome para si mesmo.
O elemento final na promessa divina, a promessa de
que todas as comunidades da terra serão abençoa­
das em Abrão, provavelmente significava que Abrão
seria considerado modelo de bênção divina (Gn
48,20). Por fim, veio a ser entendido que Israel seria,
na verdade, mediador ou agente da bênção de Deus
para o mundo (Sr 44,21).
O autor javista não nos dá nenhuma informa­
ção sobre a reação de Abrão à promessa do S e­
nhor, nem nenhuma indicação dos motivos de
Abrão para obedecer à ordem divina. Simplesmen­
te afirma que “Abrão partiu, como o S enhor lhe
havia dito” (12,4). Os patriarcas Abraão e Jacó são
com frequência apresentados estabelecendo altares
e cultuando a Deus em cidades canaanitas antigas,
em resposta a alguma experiência do que é santo
nessEis cidades. É um meio de explicar por que
essas cidades, originalmente pagãs, se transforma­
ram em centros de culto em Israel. O carvalho de
Moré (12,6) era árvore sagrada, indicando que já
existia um culto antigo em Siquém antes da visita
de Abrão. Com freqüência, eventos veterotestamen-
tários de grande importância acontecem perto de
árvores sagradas, que se acreditava serem lugares
especiais para receber a comunicação divina. É aqui
que o S enhor promete dar a Abrão a terra de Canaã.
Além de ser uma afirmação de fato, a frase “Os
canaanitas estavam então na terra” (12,6) indica o
caráter incomum da promessa feita a Abrão. A terra
será possuída e a promessa cumprida por seus
descendentes, não durante a vida de Abrão.
Ao continuar a viajar para o sul, Abrão pára
entre Betei e Ai, outra cidade canaanita antiga que
se toma importante em Israel. Mais uma vez, er­
gue um altar ao S enhor, embora não seja dito por
quê. As viagens de Abrão levam-no à região do
Négueb, a ele ligada de maneira especial.
12,10-20 A ancestral em perigo. Logo depois
da promessa de terra (12,7), vemos Abrão viajando
ao Egito por causa de uma fome. Não era raro os
povos semíticos irem ao Egito em busca de comi­
da, como evidenciam os registros egípcios do pe­
ríodo. Mas, em vista da promessa de terra, isso
não deixa Abrão em situação das mais favoráveis.
Ainda mais espantoso nessa narrativa é que, a fim
de garantir a própria segurança, o patriarca inten­
cionalmente compromete a honra da mulher. Re­
ceia que a beleza de sua mulher chame a atenção
de Faraó e que este o mate a fim de levar Sarai
para o harém real. Persuade Sarai a mentir, dizen­
do-se sua irmã, para que a vida dele não corra
perigo. Como Abrão previra, a beleza de Sarai cha­
ma a atenção dos egípcios e Faraó, supondo que
Abrão é irmão dela, dá presentes a Abrão e leva
Sarai para seu harém. O S enhor intervém infligindo 69
 G Ê N E S IS 1 3
grandes males a Faraó, mas não castiga Abrão.
Faraó censura Abrão e manda-o embora sob escolta
militar.
O tema esposa-irmâ dessa narrativa talvez re­
flita uma prática hurrita da Mesopotâmia seten­
trional, pela qual o marido adotava a esposa como
irmã, 0 que dava a ele maior controle sobre a espo­
sa, mas também dava a ela proteção e privilégios
além dos concedidos à esposa comum. Essa prática
acabou por desaparecer e o narrador da história
não parece estar ciente disso.
Em essência, a mesma história também se en­
contra em Gn 20,1-18 (E) e Gn 26,6-11 (J), mas
com algumas variações quanto a personagens e in­
cidentes. As alterações nas versões subseqüentes
indicam maior sensibilidade às implicações morais
da história. Abraão não mente mais, pois é afirma­
do que Sara é sua meia-irmã e Deus intervém antes
que a honra dela seja comprometida. O narrador
de Gn 12 não procura desculpar o comportamento de
Abrão, antes parece divertir-se com sua esperteza.
A história também mostra que, apesar do que fazem
Abrão e Sarai, estão sob a proteção de Deus, que
intervirá para assegurar o futuro cumprimento da
promessa quando ela estiver em perigo.
A história e o contexto em que se encontra apre­
sentam algumas dificuldades. Como Faraó sabe que
os grandes males são infligidos por causa de Sarai?
Como fica sabendo que Sarai é mulher de Abrão?
Essas perguntas nunca são respondidas. A menção de
camelos no v. 16 é, com certeza, anacrônica, pois os
camelos só foram domesticados no século XIII a.C.
Devemos supor que Sarai tem, realmente, sessenta e
cinco anos de idade na história (veja Gn 12,4b; 17,17)?
Essas inconsistências não tinham importância para o
narrador, embora incomodem os leitores contempo­
râneos. O interesse do narrador está na intervenção
divina que redime a situação.
13,1-18 Separação de Lot e Abrão. A viagem
de Abrão, primeiro ao Négueb, seguindo depois, por
etapas, para o norte, em direção a Betei, era caracte­
rística dos nômades em busca de pastos para os re­
banhos. Seus movimentos eram governados pela
necessidade de pastagens e, muitas vezes, andavam
perto de cidades. Abrão e Lot tinham grandes reba­
nhos e concordam em se separar para prevenir futu­
ras discussões entre eles por causa do direito a pas­
tagens. Seus pastores já haviam começado a brigar.
Embora mais velho e, por direito, o que podia esco­
lher primeiro, Abrão é magnânimo e cede a vez a
Lot. Lot escolhe a terra que parecia viçosa e fértil,
0 distrito do Jordão, e se instala perto de Sodoma.
A escolha de Lot é irônica, pois esse é um território
que será destruído pelo S e n h o r . O narrador prevê
aqui os acontecimentos de Gn 19.
Talvez os vv. 14-17 não fizessem parte da his­
tória original, mas agora servem de clímax. A pro­
messa de terra é paralela à promessa feita em Gn
70 12,2-3.7; a promessa de descendência incontável é
acrescentada. O fato de Abrão andar por toda a
terra é um ato simbólico indicativo de que está to­
mando posse legal dela, embora não seja sua (13,7).
Por fim, Abrão se instala perto do carvalho de
Mamrê.
14,1-24 A brão e Malki-Sédeq. Todos concor­
dam que Gn 14 é um dos capítulos mais difíceis
do livro do Gênesis. É muito diferente do resto das
narrativas patriarcais. Começa como o relato de uma
crônica antiga e está repleto de detalhes históricos
e geográficos. Abrão é descrito não como nômade
pacífico, mas como comandante de forças envolvi­
das em guerra. O capítulo 14 interrompe a seqüên-
cia de eventos que flui do capítulo 13 para o capítu­
lo 15. E impossível determinar sua fonte. Conse­
quentemente, os biblistas consideram-no uma inser­
ção nas narrativas patriarcais, independente de todas
as fontes (J, E, P).
Há considerável debate sobre a confiabilidade
histórica do capítulo. As cidades e reis mencionados
são evidência da antiguidade e confiabilidade histó­
rica da passagem ou o autor dessa inserção está
apenas imitando o estilo histórico? É possível iden­
tificar com certeza os reis e cidades mencionados
no capítulo 14? As respostas a essas perguntas são
muito complexas e, embora de interesse, estão além
do objetivo deste comentário. Nossa preocupação
com o capítulo 14 se concentrará principalmente
em Abrão e seu encontro com Malki-Sédeq.
O capítulo 14 compõe-se de duas partes dis­
tintas: os vv. 1-16.21-24 e os vv. 17-21. Parece que
Abrão foi introduzido na primeira parte do capítu­
lo precisamente por causa de seu encontro com
Malki-Sédeq, que serve de conclusão e clímax do
capítulo. O nome Malki-Sédeq significa “Sédeq
[um deus] é meu rei”. A cidade de Shalêm deve
ser identificada com a cidade de Jerusalém (SI
76,3). O fato de Malki-Sédeq ser rei e também
sacerdote não é incomum — isso acontecia com
ffeqüência no antigo Oriente Próximo. O Deus que
ele cultua, “o Deus Altíssimo que cria céu e terra”
(v. 19), era o chefe do panteão canaanita e supre­
mo sobre os outros deuses e o mundo. Malki-Sédeq
oferece a Abrão pão e vinho, que pode ter sido
apenas um reffigério, mas que talvez tivesse algum
significado ritual; também abençoa Abrão. Por sua
vez, Abrão identifica o S e n h o r com o Deus Altís­
simo (v. 22) e aceita a bênção de Malki-Sédeq. Há
alguma dúvida a respeito de quem paga o dízimo a
quem (v. 20). O sujeito da sentença no texto he­
braico é simplesmente “ele” , não Abrão, como está
em nosso texto. O contexto parece indicar que é
Malki-Sédeq que não só abençoa Abrão, mas tam­
bém lhe paga o dízimo.
Muitos biblistas vêem nessa passagem um argu­
mento em apoio da dinastia davídica e sua assimi­
lação de deveres sacerdotais. E verdade que Malki-
Sédeq era visto como protótipo do rei davidico
ideal (Sl 110,4), mas dizer que a aceitação da bên-

ção de Malki-Sédeq por Abrão sugere que os des­
cendentes de Abrão aceitarão a dinastia davídica
vai além do texto. É provável que a inclusão da
passagem reflita o interesse do autor em ligar Abrão
com Jerusalém e seu rei-sacerdote e na identificação
do Senhor com o Deus em nome de quem Abrão
é abençoado.
15,1-21 A aliança com Abrão. Uma análise
das fontes do capítulo 15 é difícil. Alguns biblistas
argumentam em favor da presença da fonte eloísta
em 15,1-6, mas o consenso é que o capítulo todo
foi composto pelo autor javista, apesar de diversas
inconsistências que indicam uma combinação de
fontes. É provável que o autor javista esteja recor­
rendo a diversas tradições e as harmonize com
sucesso apenas parcial.
Os problemas do texto são óbvios. A cerimônia
da aliança acontece ao pôr-do-sol nos vv. 12 e 17,
contudo no v. 5 já é noite. No v. 8, Abrão expressa
dúvidas, enquanto sua fé é enfatizada no v. 6. O
nome do Senhor é revelado no v. 7, mas já é conhe­
cido de Abrão no v. 2. Essas inconsistências serão
eliminadas se separarmos os vv. 1-6 e 13-16, que se
referem à questão de descendentes, dos vv. 7-12 e
17-21, que se concentram em um ritual de aliança
que cerca a promessa da terra. Assim, temos pelo
menos duas tradições separadas que formam este
capítulo, embora estejam inter-relacionadas em uma
passagem cuidadosamente elaborada.
Os seis primeiros w. mostram elementos tira­
dos das tradições proféticas e também da esfera
cultuai. A frase “a palavra do S enhor foi dirigida a
Abrão” é reconhecida como fórmula profética (com­
pare Is 1,1; Ez 1,1; Am 1,1) e sugere que o autor vê
no chamado de Deus a Abrão um chamado seme­
lhante ao de um profeta. A base cultuai da passa­
gem é clara, pois sua estrutura imita o formato de
celebrações cultuais: a automanifestação divina (v.
1) é seguida por um oráculo da salvação (vv. 4 e 5)
e uma declaração de justiça (v. 6). A admoestação
do Senhor contra o medo não é incomum, pois no
mundo antigo um encontro com a Divindade era
entendido como acontecimento aterrorizante. “Não
temas” encontra-se com freqüência no Antigo Tes­
tamento acompanhando uma manifestação de Deus
(veja Jz 6,23; Is 41,10). O título “escudo” é ffe-
qüentemente usado para Deus como protetor e li­
bertador (veja SI 3,4; 18,3; 28,7 etc.). É um titulo
tirado do culto e essa é sua única ocorrência nas
narrativas patriarcais. A recompensa que o Senhor
promete a Abrão deve, com certeza, ser interpretada
em contraste com o capítulo 14, onde Abrão voltou
para casa sem nenhuma recompensa.
Dificuldades no texto hebraico original tomam
incerta a tradução do v. 2. Entretanto, o v. 3 é claro
e corresponde ao conteúdo do v. 2; Abrão preocupa-
-se porque um servo nascido em sua casa será seu
herdeiro. A prática de um escravo tomar-se herdeiro
de um casal sem filhos está de acordo com os cos­
GÊNESIS 16
tumes da Mesopotâmia no século XV a.C., o que
foi confirmado pela descoberta de textos legais de
Nuzi. A resposta do S enhor a Abrão não é simples
reiteração da promessa de inumeráveis descenden­
tes. Assegura a Abrão, de maneira clara, que seu
filho será seu herdeiro. A resposta de Abrão é a fé
no Senhor. Confia completamente no Senhor e aban­
dona suas dúvidas e ansiedades. Sua justiça é afir­
mada com base nessa resposta. A total confiança no
S enhor põe-no em relacionamento direto com ele.
O V. 7 começa com uma segunda auto-apre-
sentação da Divindade em linguagem e forma tira­
das do culto. Agora a promessa concentra-se na
terra, não em descendentes. A confirmação da pro­
messa de terra que o S enhor faz é assegurada na
cerimônia da aliança descrita nos vv. 9-11 e 17-20.
Este ritual primitivo e sua importância estão men­
cionados em Jr 34,18, e descobertas no século pas­
sado mostraram que essa maneira de fazer alianças
era comum no antigo Oriente Próximo. Repartir o
animal ao meio e caminhar entre as partes separa­
das ligava as partes em aliança. Se deixavam de
cumprir os termos da aliança eram amaldiçoadas
para terem o mesmo destino do animal partido. As
aves de rapina que se atiraram sobre as carcaças
devem, provavelmente, ser interpretadas como pres­
ságio do mal, mas o significado exato desse pressá­
gio não está claro. Um torpor toma conta de Abrão,
um estado de atividade suspensa, durante a qual
pode receber uma revelação divina. A cerimônia
da aliança termina quando um braseiro fumegante
e uma tocha passam entre os pedaços do animal
(v. 17). O fogo é, com freqüência, sinal da presen­
ça de Deus, e é isso, certamente, o que ele repre­
senta nesta passagem. O S enhor firma a aliança e
se compromete a mantê-la. Os últimos vv. (vv. 18-
21) especificam a extensão da terra prometida, que
corresponde à extensão do império davídico sob
Salomão.
Os vv. 13-16 interrompem a descrição da ce­
rimônia da aliança. Explicam por que não é o pró­
prio Abrão e sim seus descendentes que possuirão
a terra. Ao S enhor não falta poder; os emoritas
têm um pouco de tempo antes de serem julgados
por Deus. Estes vv. mostram uma teologia da his­
tória em que o S enhor governa a história e efetua
nela o cumprimento da promessa divina.
O capítulo 15 confirma a aliança de Deus com
Abrão: este terá um filho, terá muitos descendentes,
e um dia eles possuirão a terra.
16,1-16 O nascimento de Ismael. A narrativa
do nascimento de Ismael é, em princípio, obra do
autor javista. Somente nos w . 3 e 15-16 encontra­
mos inserções do autor sacerdotal. As inserções
sacerdotais trazem os elementos essenciais da his­
tória, mas não têm o caráter intenso e dramático da
narrativa javista. Pelos olhos do autor javista, vis­
lumbramos a frustração e o ciúme de Sarai, a arro­
gância de Hagar e a passividade de Abrão. 71
 GÊNESIS 17
Na verdade, os elementos que compõem a
história não são tão escandalosos como podem
parecer ao leitor moderno. A proposta de Sarai
para que Abrão engravide sua serva, Hagar (v. 2),
estava em conformidade com os costumes legais
da Mesopotâmia. A esposa estéril podia dar sua
serva ao marido para que houvesse filhos. Os fi­
lhos da concubina eram considerados filhos legais
da esposa, exatamente como Sarai afirma: “talvez
através dela eu tenha um filho” (v. 2). É, com
certeza, compreensível que a serva que agora com­
partilha o leito do senhor se considere igual ou
mesmo superior à esposa estéril. Entretanto, a lei
previa o caso de servas que “esqueciam seu lugar”,
especificando que voltariam à condição anterior
de servas. É o que acontece na história (vv. 4-6).
Ao devolver Hagar ao controle de Sarai, Abrão
está seguindo a lei. Contudo, a severidade de Sarai
com Hagar excede a lei e não realça seu caráter.
A egípcia Hagar foge para o sul por ter sido
maltratada por Sarai. Aparentemente, está voltan­
do para o Egito quando o mensageiro do S enhor a
encontra (v. 7). Não há uma distinção clara entre o
S enhor e o anjo do S enhor ( v. 13); é apenas um
meio de indicar que a mensagem vem do Senhor
e, ao mesmo tempo, preserva a transcendência do
Senhor sobre o mundo criado. As palavras de com­
promisso do mensageiro repercutem a promessa
dada a Abrão: Hagar será a mãe de muitos descen­
dentes (v. 10). A etimologia popular explica o sig­
nificado do nome Ismael como “Deus ouve”. O
S enhor ouviu o clamor de Hagar e veio em seu
auxílio. A descrição de Ismael que se segue (v. 12)
é de caráter etiológico. Ismael, filho de mãe orgu­
lhosa e rebelde, toma-se ancestral das tribos do
deserto, conhecidas por seu espírito selvagem e
livre e por sua natureza belicosa. Israel não se es­
quece que tem um estreito parentesco com esses
povos; são filhos do mesmo pai.
Os últimos vv. (vv. 13-16) não são inteiramen­
te claros, mas ptirece que é esboçada uma ligação
entre o nome dado a um poço, “o poço de Lahai
que me vê” (?), e aquele dado ao S enhor por Hagar,
“Tu és Deus, que me vê”. Nos tempos antigos tal­
vez houvesse um santuário a esse Deus naquele
lugar. “Tu és Deus, que me vê” era o nome de uma
divindade cultuada em Canaâ.
O interesse do javista não se concentra nas
etiologias da história; em maior extensão, o episó­
dio tem a intenção de mostrar que o cumprimento
da promessa divina depende somente de Deus, não
do espírito inventivo humano. Ao Situar este inci­
dente entre a promessa e seu cumprimento, a narra­
tiva retarda o cumprimento da promessa e, assim,
aumenta a expectativa. O leitor é atraído para a
história: quando o S enhor cumprirá a promessa?
17,1-14 A aliança com Abrão. A aliança com
Abrão, relatada pelo autor javista no capítulo 15, é
72 contada aqui pelo sacerdotal. O relato consiste, em
princípio, em um discurso do S enhor e não tem a
qualidade de interesse humano tão característica
do javista. Seu tom é mais teológico, dizendo-nos
muito pouco sobre as reações pessoais de Abrão.
Os detalhes cronológicos, a orientação teológica e
a preocupação com a circuncisão são característi­
cas do autor sacerdotal.
Como a versão javista, a passagem se inicia
com a auto-apresentação de Deus. O nome “Deus
Poderoso” (Shadai) tem alcance especial para o
autor sacerdotal, que limita o uso desse nome para
Deus às narrativas patriarcais; assim, ele se toma
o nome característico de Deus associado a esse
período (Gn 28,3; 35,11; 48,3). Na história primeva
Deus era chamado Elohim; no futuro. Deus será
conhecido por Israel como o Senhor (E x 6,3 s .). O
significado do nome Shadai é incerto, mas há al­
guma evidência que apóia o significado “deus das
montanhas”.
A descrição da aliança não faz dela um jura­
mento feito por Deus, como na versão javista, mas
um contrato. Deus dará muitos descendentes a
Abrão, que, por sua vez, recebe ordens para andar
na presença de Deus, ser íntegro e praticar a circun­
cisão como sinal da aliança entre eles. A mudança
no nome de Abrão (v. 5) assinala seu novo relacio­
namento com Deus e a nova vida concedida pela
aliança. Afirma-se que o novo nome, Abraão, signi­
fica “pai de uma multidão de nações”, mas, na
verdade, o nome é apenas uma variação do nome
Abrão, que si^ ific a “meu pai [o deus] é elevado”.
Devemos notar alguns novos elementos intro­
duzidos no relato sacerdotal. A aliança não é feita
apenas com Abraão, mas também com seus descen­
dentes, e será uma aliança perene (v. 7). Além disso,
um novo relacionamento com Deus faz parte dela:
esse Deus que faz aliança com Abraão será seu
Deus e o Deus de seus descendentes, o que ante­
cipa 0 relacionamento entre o S enhor e Israel que
será estabelecido no Sinai.
A circuncisão só se tomou sinal importante da
aliança durante o Exílio babilônico (586-538 a.C.).
É discutível que sempre tivesse essa importância
para Israel. A circuncisão era praticada no antigo
Egito e pelos povos semíticos que viviam em Canaã.
Não era praticada na Mesopotâmia, nem pelos filis-
teus, a quem Israel se referia como os “incircunci-
sos” (2Sm 1,20). Não está claro por que se desen­
volveu a prática da circuncisão dos bebês, pois em
outras culturas era associada a ritos de puberdade.
Talvez originalmente ela tivesse algum significado
religioso agora perdido para nós, ou fosse pratica­
da apenas por razões higiênicas. Os exilados que
viviam na Babilônias consideravam a circuncisão
sinal de sua identidade religiosa, distinguindo-os
dos babilônios, que não praticavam o ritual. Para o
autor sacerdotal, cujos escritos se originaram na
comunidade do Exílio, a circuncisão é o sinal de in­
clusão na comunidade que cultua o S e n h o r . Para

essa fonte, a circuncisão é tão importante que os
in c irc u n c id a d o s n ã o s ã o c o n s id e ra d o s m e m b ro s d o
povo da aliança (v. 14).
17,15-27 Nascimento de Isaac. O anúncio do
nascimento de Isaac interrompe o relato da ordem
para circuncidar e sua decretação final relatada nos
w . 23-27. Em todas as três fontes — javista, eloísta
e sacerdotal —, Isaac é o filho da promessa e o
inesperEido de seu nascimento indica o grande poder
divino de fazer do impossível realidade. Assim
como o nome de Abrão muda para sinalizar seu
novo papel, também o novo papel de Sarai como
mãe é acompanhado pela mudança de seu nome (v.
15), embora Sara seja, na verdade, apenas uma
variante dialética do nome Sarai.
A reação de Abraão ao anúncio do nascimento
de Isaac a Sara, que já ultrapassou em muito a
idade de dar à luz Õem noventa anos) é uma com­
preensível mistura de respeito e descrença. Ele
demonstra reverência a Deus, prestando homena­
gem, mas não pode deixar de rir. O tema do riso
também se encontra nas tradições javista e eloísta.
Explica o nome de Isaac, que, em hebraico, signi­
fica “riso”. Abraão pensa na idade avançada de
Sara e chama a atenção de Deus para Ismael. Pa­
rece que Deus esqueceu a idade de Sara e Abraão
oferece a Deus uma saída, mas Deus não se deixa
distrair. A promessa será cumprida nos descenden­
tes de Sara, não nos de Hagar. Ismael não será
esquecido. Também será uma grande nação, mas a
aliança deve ser com os descendentes de Isaac.
18,1-15 Anúncio do nascimento de Isaac. Esta
é uma das narrativas mais encantadoras do autor
javista, que se baseia em um tema comum de contos
populares — uma história na qual estranhos que
foram tratados com hospitalidade vêm a ser hóspe­
des divinos. Eles, por sua vez, recompensam os que
lhes foram bondosos. Com esse tema, desenvolvido
contra o pano de fundo do costume da hospitalidade
do deserto, o autor javista mistura o anúncio do
nascimento de Isaac e a narrativa dá mais um passo
em direção ao cumprimento da promessa.
O único problema real na narrativa é o relacio­
namento entre o Senhor e os três estranhos. O
texto afirma que o S enhor apareceu a Abraão e,
então, de repente, este vê três estranhos. A mudan­
ça de um lado para o outro entre o S enhor e os três
estranhos continua em toda a narrativa. E difícil
determinar o que o autor quer dizer. É o S enhor
um dos três, ou os três representam o S enhor?
Talvez o autor se baseie em uma tradição original­
mente politeista e se sinta constrangido por não a
modificar. O javista pode ter deixado a ambigüida-
de na narrativa para sugerir o mistério que cerca a
presença de Deus no mundo.
Do princípio ao fim dessa história, deve ser
lembrado que Abraão é velho e Sara também. Em­
bora as idades exatas de noventa e nove anos para
Abraão e noventa anos para Sara venham da fonte
GÊNESIS 18
sacerdotal posterior, até o javista considera ambos,
Abraão e Sara, avançados em anos (v. 12). O cená­
rio da história são os carvalhos de Mamrê, lugar
sagrado, bem apropriado a essa visitação divina.
Abraão está sentado à entrada da tenda em pleno
calor do dia, o único lugar para ficar no meio da
tarde, em especial quando se é um homem muito
velho. Os três visitantes aparecem de repente, nessa
hora insólita. Quem estaria caminhando no calor?
Igualmente estranho é o detalhe de que esse velho
corre e se prostra em terra. Todos os atos de Abraão
são excessivos, o que sugere que ele pressente o
caráter divino dos visitantes e espera que, ao de­
monstrar sua grande hospitalidade, talvez obtenha
deles um favor.
Abraão fica extremamente loquaz, em contraste
com seu comportamento posterior (v. 9). Sua ofer­
ta de um pedaço de pão e um pouco d’água é uma
atenuação da verdade, pois ele faz Sara amassar
quase três medidas de farinha para fazer bolos,
manda preparar um vitelo bem tenro e, além disso,
serve coalhada e leite na refeição. Isso não é um
pouco d’água e um pedaço de pão, mas sim um ban­
quete adequado a um rei. Como bom anfitrião,
Abraão serve os hóspedes e, como era costume. Sara
não está presente, pois as mulheres não comiam
com os homens. Entretanto, ela está perto da tenda,
como fica evidente mais tarde.
Depois da refeição, os estranhos fazem uma
pergunta que só poderia ter causado grande choque
no público do narrador (v. 9). De acordo com a
hospitalidade do deserto, era concedido ao hóspede
tudo o que pedisse, o que incluía usufruir a mulher
do anfitrião. Naturahnente, era indelicado solicitar a
mulher do anfitrião, mas nada podia ser recusado ao
hóspede. A rudeza da resposta de Abraão indica seu
sobressalto com a pergunta. Sara, que está ouvindo
perto da entrada da tenda, acha a conversa muito
engraçada. Ela pode ter sido uma beldade no passa­
do (12,10ss.), mas agora está velha.
Todavia, a pergunta chocante não é o que pa­
recia a principio, mas serve para apresentar o anún­
cio do tão esperado descendente de Abraão. O fato
de os hóspedes estarem cientes do riso e dos pen­
samentos de Sara deve tê-la amedrontado, pois ela
se apressa a negar que riu. Mas os hóspedes não
aceitam sua negativa e a última palavra da narra­
tiva, “riste”, faria uma platéia hebraica lembrar-se
do nome do filho prometido, Isaac, que significa
“riso”.
18,16-33 Intercessão de A braão por Sodoma.
É evidente que essa parte não se originou das tra­
dições antigas, mas é uma criação livre do javista.
Nela encontramos uma teologia bastante desenvol­
vida, apresentada em duas conversas breves. Na
primeira (w . 17-18), em termos que lembram a
promessa (12,2-3), o S enhor decide contar a Abraão
o julgamento feito contra Sodoma. A intenção e as
ações divinas, antes ocultas, são agora reveladas 73
 GENESIS19
ao escolhido, Abraão, para que ele possa ensinar a
seus descendentes a justiça de Deus. Assim, a des­
truição de Sodoma assume significado admonitório
especial para as gerações futuras.
A segunda conversa é entre Abraão e o S enhor.
É um exemplo bastante divertido da melhor forma
' de regateio oriental, mas suas preocupações funda­
mentais são muito sérias. A questão de justiça está
em jogo: é justo destruir inocentes, mesmo que sejam
poucos, junto com a grande maioria dos culpados?
Os inocentes são importantes o bastante para impe­
dir o castigo dos maus? A tensão no encontro é
criada por Abraão, que, embora respeitoso com o
S enhor, ousa discutir e continua a pressionar o
Senhor a cada passo da conversa, tentando corajo­
samente reduzir ao minimo o número de inocentes
necessário para salvar a cidade. No diálogo, não só
se revela a paciência do S enhor, como também sua
grande disposição de revogar o castigo em conside­
ração aos poucos inocentes.
19,1-29 Destruição de Sodoma. Embora ou-
trora fosse uma saga independente, a história da
destruição de Sodoma está agora bem integrada no
ciclo de Abraão. Os dois mensageiros, que se se­
pararam do S enhor em 18,22, chegam a Sodoma.
O propósito da visita é determinar se o clamor
contra Sodoma é justificado. Lot estava sentado à
porta da cidade, lugar costumeiro de encontro dos
habitantes. Ao contrário do capítulo 13, onde foi
descrito como pastor e nômade, agora Lot mora na
cidade. Persuade os estranhos a passar a noite em
sua casa. À noite, os outros habitantes da cidade
vêm exigir que Lot faça sair os hóspedes para
abusarem deles. Está claro que, para o javista, a
falta de hospitalidade, tão grave em uma sociedade
nômade, e a perversão social, contra a qual há forte
preconceito veterotestamentário, são os pecados
pelos quais a cidade é condenada.
Ficamos chocados com a tentativa de Lot de
aplacar a gente da cidade oferecendo-lhe suas duas
filhas virgens, mas é improvável que uma platéia
antiga ficasse tão horrorizada. Teriam visto na oferta
de Lot uma tentativa nobre, embora extrema, de
satisfazer as exigências da hospitalidade. Lot fra­
cassa e ele próprio é salvo pelos dois hóspedes que
infligiram a cegueira à gente da cidade. A maldade
de Sodoma se confirma e sua destruição é iminen­
te. Lot e sua familia precisam fugir para se salvar
da destruição. O caráter fraco e vacilante de Lot se
revela em sua hesitação para sair. Precisa ser con­
duzido para fora da cidade (v. 16).
Há temas etiológicos ligados à história. Lot se
recusa a fugir para a montanha e quer fugir para
uma cidade “pequena”, Sôar (v. 20). O nome Sôar
significa “pequeno” ou “insignificante”. Esse favor
lhe é concedido e Sôar é poupada do julgamento. A
mulher de Lot se toma uma coluna de sal, quando
se volta para olhar a destruição, pois tinham recebi-
74 do ordens de não olhar para trás. Há muitas forma­
ções de sal em tomo do extremo meridional do mar
Morto; a narrativa explica essa presença e mostra as
conseqüências da desobediência.
Talvez a destruição de Sodoma se baseie em
um violento desastre natural que realmente aconte­
ceu no passado distante, mas é impossível verificar
isso. A preocupação do javista é explicar a destrui­
ção da região como julgamento divino do pecado.
O último V. (v. 29) é um resumo da narrativa, atri­
buído ao autor sacerdotal.
19^0-38 A ascendência dos moabitas e amoni-
tas. Esta narrativa trata da ascendência dos vizinhos
dos israelitas, que reconheciam ter com eles certo
parentesco, mas que, mesmo assim, eram seus inimi­
gos e impedidos de se tomar membros da comuni­
dade da aliança (Dt 23,4). É provável que original­
mente a história fosse contada em louvor dos ances­
trais que tomam providências extremas para assegu­
rar a continuação da linhagem familiar. Com certeza,
eles não se envergonham de seus atos, pois seus fi­
lhos ostentam orgulhosamente nomes que falam de
seus feitos: Moab (“De meu pai”) e Amon (“Filho
de minha consangüinidade”). O javista inclui a his­
tória a fim de depreciar a ascendência dos inimigos
tradicionais de Israel.
20,1-18 A ancestral corre perigo um a segun­
da vez. Esta narrativa é imediatamente reconheci­
da como duplicata da história javista em 12,10-20.
Todos concordam que deve ser identificada como
obra do autor eloísta. Além do uso do hebraico
Elohim (Deus) para o nome divino, a autoria eloísta
é indicada pelo emprego de sonhos como meio de
comunicação divina. As preocupações característi­
cas do autor eloísta são ainda mais aparentes quan­
do comparadas à versão mais primitiva. Enquanto
0 autor javista descreveu com certa minúcia os
motivos de Abraão para fazer Sara passar por sua
irmã e explicou como ela foi parar no harém de
Faraó, essas preocupações são, em grande parte,
ignoradas pelo eloísta, que, em vez disso, se concen­
tra na culpa e na libertação de Abimélek. Apesar
de ter agido por ignorância e, portanto, não ter
pretendido fazer mal, Abimélek é considerado cul­
pado. Pecou, levando a mulher de outro homem para
seu harém, embora agisse inocentemente, e esse
ato não pode ficar sem alguma forma de castigo.
Nesse caso, Abraão, cuja culpa é esquecida, interce­
derá em favor de Abimélek. Abraão, que tem acesso
especial a Deus em virtude de sua vocação, é descri­
to no papel de mediador e profeta.
Há outras diferenças entre os dois relatos. Na
versão javista não fica claro se Faraó teve realmente
relações com Sara, mas o autor eloísta não deixa dú­
vida de que Deus interveio antes de Abimélek tocá­
-la. Aqui, os presentes de Abimélek a Abraão são
testemunho da respeitabilidade de Abraão e Sara.
Na versão javista, os presentes são dados quando
Sara é levada ao harém de Faraó. A tentativa de
justificar a atitude de Abraão, afirmando que, na

verdade, Sara era sua meia-irmã, indica a sensi­
bilidade moral do eloísta. Enquanto o javista deixa
que o comportamento do patriarca fale por si mes­
mo, 0 eloísta explica os atos de Abraão, a fim de
apresentar uma imagem mais respeitável de seu
ancestral.
21,1-21 O nascimento de Isaac e a expulsão
de H agar e Ismael. Todas as três fontes encontram­
-se nesse relato do nascimento de Isaac. A versão ja­
vista (21,1 .6b-7) apresenta simplesmente o nascimen­
to de Isaac na velhice de Sara como o cumprimento
da promessa do Senhor (18,10). O riso é ligado ao
nome de Isaac porque é a reação que Sara espera
dos vizinhos quando souberem que ela deu à luz na
velhice. A versão sacerdotal (21,2-5) também diz
que 0 nascimento de Isaac é a realização da promessa
divina (17,21), mas esse autor acrescenta que Abraão
pôs nome no filho e o circuncidou conforme Deus
ordenara (17,19.12). Na versão eloísta (21,6a), so­
mente é mantido o motivo do riso associado ao nome
Isaac. O menino é chamado Isaac por causa da ale­
gria (riso) de Sara quando ele nasceu.
A narrativa eloísta do nascimento de Isaac (vv.
8-21) é duplicata da história da expulsão de Hagar
e Ismael que se encontra na versão javista do capí­
tulo 16. Mas, como seria de esperar, nessa versão há
diferenças significativas. É o ciúme de Sara, não a
arrogância de Hagar, que a leva a exigir que Abraão
expulse os dois. Ela teme que a herança futura de
Isaac esteja ameaçada pela presença de Ismael na
casa. Aqui Abraão reage com mais firmeza à exi­
gência de Sara do que na versão javista, na qual ele
permaneceu passivo. Ele só cede ãs exigências dela
quando Deus lhe diz para fazê-lo e lhe assegura que
Ismael será pai de uma grande nação.
O eloísta pinta um quadro bastante entemece-
dor da partida de Hagar e seu desespero subseqüen-
te quando a falta d’água ameaça sua vida e a do
filho. Deus intervém por meio de um mensageiro
que lhe infunde confiança sobre o futuro de Ismael.
Com a ajuda de Deus, ela encontra água. Ismael se
torna pai de nômades com camelos (ismaelitas) que
viviam no deserto entre a Palestina e o Egito. Vi­
viam da caça e de pilhagens, como indica a frase
“Era um atirador de arco” (v. 20).
A narrativa eloísta suprime os interesses etioló-
gicos da versão javista. Enobreee a figura de Abraão
e até Hagar é apresentada sob uma luz melhor do
que no capítulo 16. Deus dirige a ação assegurando
o futuro de ambos, do filho da promessa e do filho
de Hagar.
21,22-34 A braão eAbim élek em Beer-Sheba.
Esta passagem contém dois pactos independentes
entre Abraão e Abimélek e, assim, surge a questão
de fontes distintas. Alguns biblistas tentam encon­
trar nessa passagem evidência tanto do autor javista
como do eloísta. Outros supõem que um único au­
tor, 0 eloísta, baseou-se em duas tradições distintas
na composição da passagem.
GENESIS 22
O primeiro pacto (vv. 22-24.27.31.32b.34) é
iniciado por Abimélek e pressupõe os aconteci­
mentos do capítulo 20. Abimélek quer ter certeza
da amizade de Abraão e sugere uma aliança como
garantia da lealdade de Abraão, que concorda. O
juramento da aliança é feito em Beer-Sheba, nome
que significa “Poço-do-juramento”.
A natureza do segundo pacto (vv. 25-26.28-
30.32a.33) é bem diferente. Abraão toma a inicia­
tiva, em reação à disputa acerca de um poço. As
sete ovelhas aceitas por Abimélek indicam que ele
reconhece o direito de Abraão ao poço. O lugar foi
chamado Beer-Sheba, “Poço-dos-sete”, por causa
do presente de Abraão. Seu sentido cultuai é suge­
rido no V. 33. Em Beer-Sheba, Abraão invoca o
“Deus eterno” (El Olam), nome divino usado pelos
canaanitas e posteriormente dado ao Senhor por
Israel (veja SI 102,25.28).
22,1-19 O sacrifício de Isaac. A história do
sacrifício de Isaac, em geral atribuída ao eloísta, é
uma das grandes obras-primas da arte narrativa na
Bíblia. Somos atraídos à ação da história desde o
início e mantidos na expectativa até o clímax. Como
leitores, sabemos que o que é relatado é um teste
para Abraão; assim, concentramo-nos na resposta
de Abraão, não no horror da ordem divina. Cabe­
-nos imaginar o que Abraão pensa, enquanto o nar­
rador nos relata apenas o que ele faz. Seguimos
Abraão em todos os passos do caminho, enquanto
ele cumpre a ordem divina. Sentimos o silêncio
enquanto pai e filho caminham juntos, a cada pas­
so se aproximando mais do momento de decisão
definitiva. Sorrimos à pergunta inocente de Isaac e
compartilhamos os sentimentos de Abraão ao dar
sua resposta tema mas evasiva. Acompanhamos o
desenrolar de cada detalhe daquele momento final,
desde a constmção do altar até a mão estendida
para apanhar o cutelo, pronto para tirar a vida do
filho. Aguardamos esperançosamente até que o anjo
intervém e, por fim, alegramo-nos com a mudança
dos acontecimentos. Abraão passou no teste e Isaac
ainda vive.
É óbvio que a narrativa ocupa-se da grande fé
de Abraão, que se expressa na disposição de sacri­
ficar seu filho, o filho da promessa, em obediência
à ordem divina. Com freqüência é feita uma liga­
ção entre essa história e o sacrifício humano. A
prática do sacrifício humano era comum entre os
vizinhos de Israel e, em algumas ocasiões, embora
proibida, foi realizada até mesmo em Israel (veja
IRs 16,34; 2Rs 3,27; 23,10). Pode ser que original­
mente a história se centralizasse no repúdio à prá­
tica do sacrifício humano. Entretanto, qualquer sig­
nificado mais primitivo agora está suplantado pelo
tema da fé de Abraão posta à prova.
A conclusão original da história era o v. 14, mas
foi acrescentado um suplemento (vv. 15-19) para
ligar a história ao tema da promessa, dominante nas
narrativas patriarcais. 75
 GÊNESIS 23
22^0-23 Genealogia de Nahor. Esta genealo­
gia é atribuída ao javista. Relaciona os doze filhos
de Nahor, parentes semíticos (arameus) de Israel. O
propósito dessa inclusão é preparar o caminho para
o surgimento de Rebeca (24,23).
23.1- 19 A com pra de M akpelá por Abraão.
Com freqüência afirmam que o autor sacerdotal é
responsável por essa narrativa, embora a expressi­
vidade da apresentação nos lembre o javista. A pas­
sagem conta como Abraão comprou um pedaço de
terra em Canaã para enterrar sua esposa. Ao fazer
isso, nos dá outro vislumbre encantador da arte de
regateio oriental.
Abraão é migrante na terra e, como tal, tem
apenas direitos limitados. Não pode ser legalmente
dono de propriedades. Para que ele adquira uma
propriedade, a questão deve ser decidida pelos an­
ciãos da cidade. Os filhos de Het com quem Abraão
negocia não são os hititas anatolianos que foram
poderosos nos séculos XVI/XV a.C., mas um dos
muitos grupos que viviam na Canaã pré-israelita.
Durante a conversa, cada parte tenta sobrepujar a
outra em cortesia. Os filhos de Het hesitam em
vender terra para um migrante, mas permitem que
Abraão enterre Sara em qualquer de seus túmulos.
Não é isso que Abraão quer e ele deliberadamente
ignora a sugestão e indica o local exato que deseja
comprar. Num gesto magnânimo, Efron, o proprie­
tário da terra, oferece-se para “dar” a Abraão não só
a caverna que ele quer, mas também o campo onde
ela se encontra. Abraão cortesmente recusa-se a acei­
tar a terra de presente e insiste em pagâr por ela.
Toda essa conversa está dentro dos limites da
convenção do regateio. Embora Abraão pudesse ter
regateado por um preço menor, ele aceita a primei­
ra oferta de Efron. É difícil determinar se o preço
de quatrocentos sidos de prata pago por Abraão
era considerado exorbitante, porque o valor do sido
variava. O fato de ser a primeira oferta de Efron,
que certamente esperava uma contra-oferta de
Abraão, sugere ser o preço elevado. Em compara­
ção, Davi paga apenas cinqüenta sidos por uma
eira e bois (2Sm 24,24). Nos w . 16-20 encontramos
um contrato de venda formal. Abraão alcança seu
objetivo — agora é dono de propriedade em Canaã
para o enterro de Sara.
Embora reflita de maneira correta os costumes
legais e sociais do antigo Oriente Próximo, o propó­
sito desse capítulo não é apenas registrar um acon­
tecimento da vida de Abraão. Mais exatamente, a
posse de um pedaço da terra por Abraão representa
o penhor da posse futura de toda a terra.
24.1- 67 Escolha de um a m ulher para Isaac. Isaac ir a sua terra natal, pois provavelmente isso
Essa encantadora história é outro exemplo da arte
narrativa superior do javista. Há alguma evidência
de compilação, mas isso não afeta a unidade da his­
tória. A repetição, que o leitor moderno acha cansa­
tiva, é característica da narrativa bíblica e, na verda-
76 de, não deprecia a história. O tem a da promessa
permanece em segundo plano. Em primeiro plano
está a orientação divina, porém dirigida por inter­
médio do coração. Deus não intervém diretamente.
Segundo o costume, Abraão precisa arrumar
casamento para o fdho. Como está velho e perto da
morte, confia a tarefa de encontrar mulher para Isaac
a um servo que age mais como um administrador de
confiança do que como servo. Abraão obriga o servo
por juramento a cumprir essa missão, salientando
sua suprema importância. A “coxa” do v. 2 é eufe­
mismo para os órgãos genitais, vistos como sagra­
dos porque eram considerados a fonte da vida. O
servo não deve deixar Isaac desposar uma canaanita.
Essa proibição tem o objetivo de excluir a possibi­
lidade de misturar religiões. Não reflete um precon­
ceito racial como tal. Em nenhuma circunstância
Isaac deve ser reconduzido à terra de Abraão (v. 6).
Evidentemente, essa viagem era vista como um re­
trocesso na promessa divina de terra. É assegurado
que Deus guiará todo o empreendimento e o levará
a uma conclusão bem-sucedida.
A narrativa menciona ligeiramente a longa via­
gem do servo a Arâm-dos-Dois-Rios, mas logo pas­
sa à busca de uma esposa adequada. Perto de um
poço fora da cidade, o servo põe o sucesso de sua
missão nas mãos de Deus e sugere um sinal pelo
qual reconhecerá a escolha divina. O sinal de tirar
água, não só para o servo, mas também para dez
camelos sedentos, destina-se a revelar o caráter da
mulher; somente uma mulher generosa e diligente
estaria disposta a tirar do poço os muitos cântaros
de água necessários. Rebeca chega (v. 15) e, inocen­
temente, satisfaz os requisitos do sinal. Por isso, é
cumulada de presentes, que, com toda a probabili­
dade, fazem parte do preço da noiva. O servo fica
ainda mais seguro da orientação divina quando des­
cobre que Rebeca é sobrinha-neta de Abraão e ela
o convida para ir à casa de sua mãe. Por essa refe­
rência à casa de sua mãe e pelo fato de que todas
as negociações subseqüentes são feitas com seu
irmão, Laban, parece claro que o pai de Rebeca já
morreu.
A pressa em convidar esse rico estranho para
ir a sua casa, depois de ver os presentes caros que
Rebeca recebeu, revela o caráter de Laban. Sua
ganância ficará ainda mais aparente nas narrativas
de Jacó e Laban que vêm a seguir. O servo é tra­
tado com toda a cortesia devida, mas a urgência de
sua missão obriga-o a relatar sua história antes de
comer. Essa parte repete o discurso de Abraão na
cena inicial, com uma única omissão significativa;
o servo não alude à recusa de Abraão a deixar
ofendería a família de Rebeca. Laban admite que
Deus orientou o servo e concorda com o casamen­
to. De maneira apropriada, mais presentes são dados
para selar o acordo (v. 53).
O costume exigia um período de celebração, mas
0 servo quer ir embora e sugere partir imediatamente

com Rebeca. A objeção da família é compreensível,
mas 0 servo lembra a Laban que o S enhor orientava
a missão e, por isso, não havia necessidade de prote­
lação. Os sentimentos de Rebeca a respeito do assun­
to são solicitados, de acordo com costumes antigos
que consideravam o consentimento da mulher neces­
sário quando o irmão contratava seu casamento ou
quando o casamento significava que ela precisaria
sair da terra natal. Neste caso, ambas as estipulações
estão em vigor. Rebeca concorda e recebe uma bên­
ção antiga que promete fertilidade e poder sobre os
inimigos no futuro (v. 60).
A cena final muda para o Négueb, quando a
caravana está chegando de volta. O texto é intradu-
zível, por isso só podemos supor o que Isaac esta­
va fazendo quando viu sua futura noiva se aproxi­
mar. Rebeca cobre-se com o véu, como era costu­
me — 0 noivo só podia ver a noiva depois do ma­
trimônio. A passagem termina com o casamento e
o subseqüente amor dos dois. A ordem de primeiro
o casamento e depois o amor reflete o que era
comum nos casamentos arranjados.
25,1-18 A morte de Abraão. Essa parte combi­
na genealogias das fontes javista (w. 1-6.1 Ib) e sa­
cerdotal (vv. 12-18) com um relato da morte de
Abraão (vv. 7-1 la, P). E difícil ajustar os w . ini­
ciais, que falam do casamento de Abraão, à narra­
tiva precedente, na qual Abraão é velho e, com cer­
teza, morre antes de Rebeca desposar Isaac (veja
24,65: Isaac é agora amo do servo). É provável que
essa discrepância se explique pela justaposição de
narrativas javista e sacerdotal que não seguem as
mesmas cronologias. Qeturá, a segunda mulher de
Abraão, toma-se mãe das tribos árabes que habita­
vam o sul da Palestina e o noroeste da Arábia. As
doações que Abraão faz a esses filhos testemunham
sua generosidade, mas também salvaguardam a he­
rança para Isaac.
Abraão morre depois de uma vida plena. Não
nos surpreende encontrar Ismael presente no fune­
ral do pai (v. 9), pois o autor sacerdotal não relata
a expulsão de Hagar. Abraão é enterrado no túmulo
da família (cap. 23). A narrativa conclui com a
genealogia sacerdotal de Ismael, que se toma o pai
de doze tribos que ocupam o noroeste do deserto
árabe. A promessa dada a Abraão sobre Ismael
(21,13, E) é considerada cumprida.
O CICLO DE JACÓ
Gn 25,19-36/43
O ciclo de narrativas de Jacó difere do ciclo de
Abraão em sua coerência interna. Somente o fio
da promessa unia o ciclo de Abraão; cada seg­
mento permanecia uma unidade independente. No
de Jacó, além do tema de promessa, ainda que pre­
sente nessas narrativas, encontramos o tema da briga
entre irmãos, que integra essas histórias em um
nível mais profundo. Até o ciclo de narrativas de
GÊNESIS 25
Laban, que talvez outrora tenha circulado à parte
das histórias de Esaú e Jacó, agora também se rela­
ciona com esse tema.
25,19-26 O nascimento de Esaú e Jacó. Com
a genealogia sacerdotal (vv. 19-20) que introduz
essa passagem, passamos a uma nova fase na his­
tória patriarcal — o período de Isaac e Jacó. O que
se inicia como genealogia de Isaac é interrompido
pelo relato do nascimento de Jacó e Esaú, em geral
atribuído ao javista (vv. 21-26a). A história pode
parecer deslocada em vista do que a precede e do
que a segue, mas está claramente pressuposta no
capítulo 27.
A esterilidade de Rebeca repete a de Sara, mas
sua solução é quase imediata e o assunto não se
toma tema importante das tradições de Isaac e
Rebeca, como aconteceu nas tradições de Abraão
e Sara. Como aconteceu com Sara, Deus intervém
e Rebeca engravida. Apenas um resquício da base
cultuai da passagem conserva-se pelo uso das pa­
lavras “implorou”, “teve compaixão”, “foi consul­
tar” e “respondeu”. A alegria de Rebeca por estar
grávida logo se transforma em desespero por cau­
sa da luta que se travava em seu seio. O oráculo (v.
23), que, com certeza é o centro de toda a passa­
gem, é tanto uma certeza, como motivo de preocu­
pação. Que Rebeca será mãe de duas nações é, na
verdade, uma bênção; que uma ultrapassará a outra
não é incomum. O que causa apreensão é que serão
divididas e que, bem diferente do curso normal dos
acontecimentos, o mais velho servirá o mais novo,
o que significa uma luta dolorosa entre os dois.
Este oráculo se toma programático à medida que
prossegue a história de Jacó e Esaú.
Por uma série de trocadilhos subentendidos e
explícitos, o narrador destaca características de Jacó
e Esaú que fazem parte do comportamento e do
relacionamento futuros desses dois irmãos. Esaú é
“ruivo” ( 'admoni) e “peludo” {se ’ar); mais tarde ele
se toma pai dos edomitas, que vivem na região de
Seir. A afirmação de que Jacó sai com a mão agar­
rada ao “calcanhar” de Esaú funciona como troca­
dilho com 0 nome de Jacó e também como sinal
indicativo de sua natureza gananciosa e do fato de
que suplantará o irmão. O nome Jacó é, na verdade,
forma abreviada de um nome semelhante a Jacobel,
que significa “Que Deus proteja”.
25,27-34 Esaú vende seu direito de primoge-
nitura. A tensão entre os dois irmãos é exemplifi­
cada por suas vocações diferentes. Esaú é caçador,
homem do campo e, por dedução, selvagem e rude.
Jacó é pastor, habitante de tendas e, portanto, mais
civilizado. A diferença entre os dois irmãos é mais
acentuada pelo amor preferencial de Isaac por Esaú
e de Rebeca por Jacó.
O desenrolar da história mostra Esaú tão preo­
cupado com a satisfação imediata que perde todo o
senso de proporção. Pôr um simples caldeirão de
uma “coisa ruiva” (v. 30), vende seu direito de pro- 77
 G Ê N E S IS 2 6
genitura, que correspondia a uma porção dupla da
herança familiar. No final, o narrador comenta que
“Esaú menosprezou seu direito de primogenitura”
(v. 34), 0 que suas ações demonstram, com certeza.
Não há nenhuma crítica explícita da rematada ma­
nipulação de seu irmão por Jacó. Este claramente se
aproveita do irmão, forçando-o não só a vender seu
direito de progenitura por um prato de lentilhas, mas
também a fazer um juramento, para tomar o trato
irrevogável.
O caráter de Jacó é um dos desenvolvidos com
mais cuidado nas narrativas patriarcais. Embora o
narrador se abstenha de julgamentos morais explí­
citos, ele mostra que as ações de Jacó o afastarão de
casa, sem dinheiro e à mercê de Laban. A escolha
de Jacó por Deus permanece um mistério, mas des­
de o momento em que Deus aparece a Jacó (28,
lOss.) seu caráter começa a melhorar.
26,1-35 Fragmentos sobre Isaac. Há pouca
coisa para unificar esse capítulo, exceto a presença
de Isaac. Na verdade, este é o único capítulo dedi­
cado a ele, mas quase só contém duplicatas ou ecos
de histórias sobre Abraão. Com exceção dos vv.
34-35, que são da fonte sacerdotal, o capítulo é
obra do javista.
A narrativa encontrada nos vv. 1-11 é outra
versão da história da ancestral em perigo (12,10ss.;
20). Essa narrativa é a menos ofensiva e a menos
fascinante das versões. Pela segunda vez, a fome é
dada como razão da mudança para um novo terri­
tório, mas esta fome é claramente distinta da fome
do tempo de Abraão. Não há nenhuma ameaça real
para Isaac ou para Rebeca. Pelas outras versões,
pode-se supor que ela foi levada ao harém de
Abimélek, mas isso não é mencionado nessa ver­
são. Surpreendentemente, Deus está ausente.
Abimélek vê que Isaac “se divertia” com Rebeca
(v. 8) e percebe que o relacionamento deles não é
de irmão e irmã. Mais uma vez, o nome de Isaac
é a base para um trocadilho, pois “divertir-se” e
“riso” derivam da mesma raiz hebraica. Não são
dados presentes na conclusão do episódio, mas Isaac
e Rebeca têm proteção garantida.
Isaac recebe duas vezes uma aparição divina
(vv. 2-5.24) em que a promessa feita a Abraão é
reiterada quase com as mesmas palavras. O v. 5 é,
certamente, inserção de um período mais tardio,
pois fala da obediência de Abraão em linguagem
deuteronômica. Como Abraão, Isaac levantou um
altar no local da aparição divina (v. 25).
A bênção de Deus sobre Isaac é imediatamen­
te percebida na abundância da colheita e em sua
crescente riqueza. A disputa por poços (w . 15-25)
já se encontrava nas histórias de Abraão e parece
ser uma tradição variante do mesmo evento, assim
como a aliança entre Abimélek e Isaac (w . 26-33)
é uma variante da história de Abraão (21,22ss.)
Aqui encontramos mais uma etimologia do nome
78 Beer-Sheba (v. 33).
A adição sacerdotal (vv. 34-35) prepara para
os acontecimentos de 27,46-28,9. Curiosamente, o
conflito entre Esaú e Jacó está ausente da tradição
sacerdotal. O motivo de discórdia são as mulheres
estrangeiras de Esaú.
27,1-46 A bênção. A história da trapaça de Jacó,
por meio da qual ele recebe a bênção destinada a
Esaú, é mistura magistral das fontes javista e eloísta,
mas é impossível separar as fontes nesta história
dramática cuidadosamente estruturada. A cena come­
ça com Isaac e seu filho predileto, Esaú, depois
muda para Rebeca e seu predileto, Jacó. Depois da
trapaça de Jacó, Isaac está outra vez com Esaú e
Rebeca com Jacó. Somente na cena central, cena
importante em que a bênção é transferida, os pais
não estão cada um com seu filho predileto.
Na cena inicial, Isaac, velho e cego, deseja aben­
çoar Esaú antes de morrer. No mundo antigo, acredi­
tava-se que as bênçãos dadas no leito de morte ti­
nham eficácia especial e a refeição preparada e con­
sumida antes da bênção tinha caráter sacro. Rebeca
escuta as palavras de Isaac a Esaú e urde um plano
para fazer com que Jacó receba a bênção destinada
a Esaú. Parece impossível que o plano de Rebeca dê
certo, 0 que apenas aumenta a expectativa na cena
seguinte. O único receio de Jacó é com o que aconte­
cerá se for pego na trapaça. Rebeca atrai para si
mesma qualquer maldição que possa ser dirigida
contra Jacó e ele não faz outras objeções. Na cena
central do capítulo, a expectativa aumenta a cada
declaração de Isaac: “Quem és tu, meu filho?”;
“Como achaste depressa...!”; “Vem mais perto, meu
filho, para eu te apalpar. És realmente meu filho
Esaú ou não?” Somente quando finalmente respira
o odor das roupas do filho, Isaac convence-se da
mentira e o abençoa.
Mal Jacó sai, entra Esaú (v. 30). A revelação
da trapaça abala muito tanto Isaac como Esaú, que
reagem com sobressalto e amargura. No mundo
antigo, acreditava-se que uma bênção ou maldição,
depois de pronunciada, tinha vida própria e não
podia ser anulada. A bênção dada a Jacó é irrevo­
gável; não há nada que Isaac possa fazer para can­
celá-la. Esaú reconhece como o nome de Jacó está
certo, pois ele o “suplantou” (outro trocadilho com
o nome de Jacó) duas vezes — a primeira ao barga­
nhar o direito de progenitura e agora ao conseguir
a bênção. Esaú implora por alguma bênção e, embo­
ra Isaac tente ceder, suas palavras soam mais como
maldição. É compreensível que Esaú nutra um ran­
cor assassino contra Jacó, o que força Rebeca a
afastar Jacó para a segurança dele. Nem ela nem
ele percebem que nunca mais se verão.
A bênção dada a Jacó assegura-lhe a futura
fertilidade da terra e o domínio sobre os irmãos. A
“bênção” de Esaú é o contrário, mas sua sujeição
ao irmão será apenas temporária. Esses dois orácu­
los refletem-se nos irmãos como representantes de
suas nações respectivas, Israel e Edom. Edom tor-

nou-se nação antes de Israel, mas foi mais tarde
conquistada por David e tomou-se vassala de Israel.
Os edomitas rebelaram-se muitas vezes eontra
Israel e, por fim, reconquistaram a independência.
É interessante notar que o narrador evita fazer
um julgamento moral direto sobre a trapaça de
Rebeca e Jacó. O narrador não pode condenar Jacó,
pois sabe que ele é o herdeiro da promessa. O orá­
culo falou: 0 grande servirá ao pequeno (25,23).
Rebeca deve ser condenada por ajudar no cumpri­
mento da palavra divina? Isaac não contraria a pa­
lavra de Deus ao querer assegurar a bênção para o
filho mais velho? O narrador deixa essas perguntas
sem resposta: apenas conta a história. Contudo, no
jeito de contá-la, o narrador dirige nossa compaixão
a Esaú como vítima inocente e magoada. Dá-nos,
com certeza, um sinal de desaprovação ao descrever
os efeitos esmagadores dessa trapaça. A família se
separa por causa dela. Vinte anos se passarão antes
que Jacó volte para casa. Ele não só agarrou o cal­
canhar do irmão como também o substituiu, a um
custo altíssimo.
27,46-28,9 Jacó sai para procurar um a es­
posa. Essa passagem do autor sacerdotal continua
a narrativa da insatisfação de Rebeca com os casa­
mentos de Esaú, tema que se iniciou em 26,34-35.
Nessa tradição, o motivo da partida de Jacó é muito
diferente do da história anterior. Jacó não está fu­
gindo da ira de Esaú; mais exatamente, parte com
a bênção paterna, em busca de uma esposa ade­
quada. A inimizade entre Esaú e Jacó desapareceu.
Na verdade, Esaú procura imitar o bom exemplo
de Jacó e consegue uma esposa da família do pai.
A questão do casamento entre judeus e não-judeus
foi especialmente crucial durante o período da
restauração (depois de 538 a.C.), quando Israel
estava preocupado com a integridade de suas prá­
ticas religiosas e a pureza de raça.
28,10-22 Sonho de Jacó em Betei. A história
da origem de Betei como santuário serve de elo
entre a vida anterior de Jacó na terra de Canaã e
sua vida futura em Harran. É combinação das fon­
tes javista e eloísta e continua a narrativa de 27,42­
45. Nas duas versões da história, Jacó tem uma
profunda experiência religiosa em Betei, o que
testifica a santidade do lugar.
A versão eloísta (vv. 11-12.17-18.20-22) do­
mina a passagem. Depois de fugir da ira de Saul,
Jacó se vê em um santuário, onde passa a noite,
usando uma pedra como travesseiro. Como é ca­
racterístico na tradição eloista, a revelação divina
vem em um sonho. Jacó vê uma escada que vai da
terra ao céu e a identifica como “a porta do céu”
(v. 17). No mundo antigo acreditava-se que havia
alguns lugares na terra onde os reinos divino e
terreno se encontravam. Um desses lugares era
Betei. Jacó reconhece a santidade do lugar; chama
a própria pedra de Betei, isto é “casa de Deus” (v.
22). Jacó consagra a pedra e a erige em esteia.
GÊNESIS 29
Essas esteias eram símbolos cultuais cananeus da
fertilidade e foram encontradas em importantes
centros cultuais. Quando Israel conquistou a terra,
herdou locais cultuais cananeus com essas pedras,
mas associou-os a acontecimentos da vida dos pa­
triarcas, desse modo eliminando o significado reli­
gioso pagão das pedras e usando-as simplesmente
como esteias.
A versão javista (vv. 10.13-16.19) usa a aparição
do Senhor como oportunidade para estender a pro­
messa de Abraão a Jacó (12,1-3). O Senhor é identi­
ficado como o Deus de Abraão e Isaac e assegura a
Jacó a presença e a proteção divinas em seu caminho.
O Senhor é revelado como Deus dos ancestrais, isto
é, comprometido com uma família ou um clã, não
preso a um lugar ou a uma terra específicos.
A ligação de Abraão (12,8; 13,3-4) e Jacó a
Betei mostra a preocupação de Israel com essa cida­
de. Betei se transformou em centro cultuai extrema­
mente importante no antigo Israel (veja Am 5,5-6;
7,10-13; Os 10,15). Dominou a vida cultuai de Is­
rael no norte, desde a época do reino dividido (IRs
12,28-29) até ser destruído durante o período da
reforma deuteronômica (2Rs 23,15).
29,1-14 Chegada de Jacó a Harran. A fonte
javista predomina nessa história da chegada de Jacó
a Harran. Ele chega a um poço, presumivelmente o
mesmo em que o servo de Abraão encontrou uma
esposa para Isaac. Jacó, que antes pouco contribuira
nas conversas, toma-se bastante loquaz nessa passa­
gem. O autor descreve vivamente um jovem Jacó ani­
mado, tentando puxar conversa com os pastores locais,
um tanto taciturnos. O diálogo concentra-se na ina­
tividade dos pastores, que se explica pelo fato de
estarem esperando para dar de beber aos rebanhos
e não poderem fazer isso enquanto a grande pedra
que fechava a abertura do poço não fosse removida.
Obviamente, a pedra tinha a finalidade de garantir
a igualdade de acesso ao limitado suprimento de
água no poço: só podia ser removida quando todos
os pastores estavam reunidos.
A conversa inclui perguntas de Jacó sobre o tio
(vv. 5-6). Em resposta, os pastores apontam para
Raquel, filha de Laban, que se aproxima. Quando
Raquel chega, Jacó retira a pedra do poço e faz as
ovelhas de Laban beberem. É o reverso do capítulo
24, quando Rebeca deu de beber aos camelos do
servo. Ao remover a pedra, Jacó revela sua grande
força, 0 que impressiona Laban quando fica saben­
do. Jacó se enche de alegria ao encontrar Raquel.
Depois que Raquel informa a chegada de Jacó,
Laban sai para saudá-lo. As palavras de Laban, “Tu
és com certeza meus ossos e minha came” (v. 14),
são ambiguas. Talvez expressem seu prazer ao en­
contrar Jacó, mas também poderíam trair seu desa­
pontamento ao encontrar esse parente pobre. Jacó
vem até ele, não com a riqueza que acompanhou o
servo de Abraão, mas sem vintém. O que Laban po­
de fazer além de oferecer-lhe sua casa? Afinal de 79
 GÊNESIS 29
contas, ele é da família. Em vista do tratamento
posterior que Laban dispensa a Jacó, é mais prová­
vel que a expressão indique seu desapontamento.
29,15-30 Os casamentos. Nos vv. 15-30 são
introduzidos temas que se tomam dominantes nas
narrativas seguintes. Eles desenvolvem-se em tomo
das palavras “serviço” e “salário” — o serviço de
Jacó e 0 salário pago por Laban.
A pergunta “Por acaso servirás gratuitamente
por seres meu irmão? (v. 15) inicia os negócios
astutos e trapaceiros que caracterizarão o relaciona­
mento entre Laban e Jacó. Parece que Laban está
sendo magnânimo ao se oferecer para pagar a Jacó
um salário por seus serviços, mas, de fato, está
declarando nulo o laço de parentesco (tio-sobrinho).
Jacó sugere sete anos de trabalho pela mão de
Raquel em casamento; seu trabalho serviría de
preço pela noiva. Esse costume de pagar um preço
pela noiva reconhecia a utilidade da mulher e tinha
a finalidade de compensar a família pela perda
do trabalho dela com o casamento. A resposta de
Laban a Jacó é ambígua. Não diz que dará Raquel
a Jacó em casamento e sim que “prefere dá-la” a
Jacó do que a outro (v. 19). A razão para essa fal­
ta de clareza toma-se óbvia com o desenrolar da
história.
Para Jacó, apaixonado por Raquel, os sete anos
passam depressa. Quando chega a hora do paga­
mento, Laban dá a Jacó a fiUia mais velha, Leá.
Muitas vezes o leitor moderno fica admirado com
a aparente “cegueira” de Jacó ao deixar de notar
que a noiva não é Raquel, mas isso era possível em
vista dos costumes matrimoniais da época. A noiva
era coberta de pesados véus e durante a festa das
bodas era acompanhada na escuridão da noite até
a casa do marido. Só podemos presumir que a es­
curidão, o véu e, provavelmente, um embotamento
dos sentidos provocado pela comemoração impe­
dem Jacó de perceber que a mulher com quem se
casou não é Raquel. Jacó, que enganara um cego
(cap. 27), é, ele próprio, tratado por Laban como
se fosse cego. Fica parecendo ainda mais tolo que
Isaac, pois tem visão e, conAxdo, foi facilmente en­
ganado por Laban.
Laban nega-se a levar em consideração a indig­
nação de Jacó ao descobrir a trapaça do tio. Laban
diz que não era costume entre eles “dar a caçula
antes da mais velha” (v. 26, em tradução literal).
Isso tem de ser considerado afronta direta a Jacó,
que, embora mais jovem, usurpara a posição do pri­
mogênito ao adquirir o direito de prímogenitura e a
bênção que caberíam ao irmão. Sem dar tempo a
Jacó para responder, Laban sugere que quando ter­
minar a semana das bodas, Jacó pode se casar com
Raquel, sob a condição de continuar a trabalhar para
Laban outros sete anos. Destinado a ser chefe
(27,29), Jacó permanece servo na casa do tio outros
sete anos. Laban uso o amor de Jacó por Raquel
80 contra ele, sem pensar na posição em que colocou
Leá. Além de ser a esposa não amada, é lembrete
constante a Jacó da trapaça do tio.
29,31-30,24 Nascimento e nomes dos filhos de
Jacó. Algumas unidades menores das fontes javista e
eloísta são reunidas para formar um relato integrado
do nascimento e do recebimento de nomes dos filhos
de Jacó. A etimologia popular é usada livremente
para explicar a relação entre os nomes dos filhos e a
luta rancorosa entre Leá e Raquel por amor e reco­
nhecimento no lar, Laban criou uma situação em que
Jacó se vê casado com duas mulheres, amando ape­
nas uma delas. Por fim. Deus controla o curso dos
acontecimentos, fazendo Leá fértil e Raquel estéril,
mas no nível humano a história gira em tomo dos
ciúmes de Leá e Raquel. O papel de Jacó na história
limita-se em grande parte a gerar filhos.
O paradoxo da narrativa centraliza-se na posi­
ção das duas mulheres. Leá, como primogênita,
primeira esposa e primeira mãe, devería ter o amor
e o reconhecimento do marido, mas Jacó ama Ra­
quel, a mais jovem. Raquel, embora amada, é estéril
e teme a perda do amor de Jacó por causa de sua
incapacidade de lhe dar filhos. A cada filho que Leá
tem, Raquel se toma mais desesperada, a ponto de
exigir filhos de Jacó. Ele a faz lembrar-se de que é
Deus quem dá filhos. Conseqüentemente, a luta de
Raquel é não só por amor, mas também pelo favor
de Deus. Como Sara antes dela (cap. 16), Raquel
finalmente se toma mãe por intermédio de sua ser­
va. Da mesma forma, Leá dá sua serva a Jacó quan­
do cessa de engravidar durante algum tempo, o que
estava de acordo com o costume (veja cap. 16).
A história das maçãs de amor (mandrágoras)
(30,14) revela como a situação doméstica se dege­
nerou. Uma Raquel ciumenta nega a Leá o acesso
ao marido. Leá barganha por seus direitos e “con­
trata” o marido por aquela noite. Jacó, que se toma­
ra “servo” de Laban por “salários”, agora é “servo”
de Leá por “salários” pagos a Raquel. Os salários
são maçãs de amor, ervas que se acreditava terem
poderes mágicos e que eram usadas como afrodisíaco
e auxílio à fertilidade. Nessa narrativa, entretanto,
Raquel engravida graças à intervenção divina. É inte­
ressante notar que Deus só se lembra de Raquel
depois que ela dá a Leá acesso ao leito de Jacó.
Das filhas de Jacó só é mencionada Diná, mas
não é feita nenhuma associação etimológica com
seu nome, como acontece com o nome dos filhos.
A referência a Diná talvez seja uma inserção des­
tinada a antecipar sua história no capitulo 34. O
nascimento de Benjamin não está incluído aqui,
sendo adiado até 35,17ss., talvez porque Raquel
morre no parto e sua morte ficaria fora de contexto
no capitulo 30.
30,25-43 Jacó adquire grande fortuna. Em­
bora haja nele evidência de múltiplas fontes, esse
texto é, em princípio, obra do javista. Os temas de
“serviço” e salários”, antes predominante, desta­
cam-se mais uma vez. No capítulo 29, Laban en-

ganou Jacó e conseguiu quatorze anos de “servi­
ço”, em troca de esposas, seus “salários”. Mas Jacó
aprendeu bem a lição e agora tenta superar em
astúcia 0 velho e ardiloso Laban.
A conversa entre os dois é outro exemplo da
arte oriental de regateio. Lembrando a Laban seus
anos de serviço, Jacó pede permissão para partir.
Laban, que deseja que Jacó continue a trabalhar para
ele, ignora o pedido de Jacó. Mas admite que se
beneficiou com os serviços de Jacó e pergunta-lhe
que salário deseja. Jacó, por sua vez, ignora a per­
gunta de Laban e afirma a intenção de prover para
sua família. Diz até que Laban não precisa pagar, o
que é certamente hiperbólico, pois na mesma hora
estabelece o salário para a continuação de seu ser­
viço. Laban é iludido pelo modesto pedido de Jacó.
Como pagamento, Jacó pegará todo cordeiro ma­
lhado e as cabras manchadas, o que seria muito
poucos animais, pois em geral as ovelhas eram bran­
cas e as cabras pretas. Laban concorda, mas procura
cortar qualquer perda, retirando do rebanho todos
os animais de cores anormais e pastoreando-os à
distância de três dias de marcha do rebanho que
estava aos cuidados de Jacó. A distância funciona
contra Laban, pois dá a Jacó a oportunidade de le­
var a cabo seu plano sem ser observado.
As práticas de criação de animais de Jacó ba­
seiam-se na crença antiga de que o que a mãe sente
durante a gravidez é transmitido ao feto. Jacó arru­
ma três varas que corta a fim de deixar a nu a ca­
mada de albumo. As cabras pretas olham para essas
varas enquanto se acasalam, e o branco da camada
de albumo se transfere para suas crias, que saem
malhadas. Jacó faz as ovelhas brancas olharem para
as cabras negras a fim de obter os mesmos resul­
tados. Usa propositalmente apenas os melhores
animais do rebanho para seu acasalamento seleti­
vo, deixando Laban com um rebanho de animais
fracos e inferiores.
Em todo o relato das práticas de acasalamento
de Jacó há uma série de trocadilhos. O “álamo”, as
“faixas brancas” e a “camada de albumo” são pala­
vras que em hebraico têm som parecido e se rela­
cionam com o nome Laban e seu significado, “bran­
co”. Em certo sentido, Jacó está usando o conheci­
mento que tem da natureza de Laban (branco) contra
ele. Jacó, o que foi enganado (cap. 29), toma-se uma
vez mais, o trapaceiro.
31,1-16 Jacó prepara-se para deixar Laban.
As diferenças mais importantes entre a versão eloís-
ta do capítulo 31 e a javista do capítulo anterior
dizem respeito ao papel de Deus e de Jacó. Nessa
versão é o S enhor que inicia a ação e não o pró­
prio Jacó (vv. 12-13). Deus protegeu Jacó da fal­
sidade de Laban, fez Jacó ser bem-sucedido na
obtenção de riqueza e agora ordena-lhe que volte
para casa. O encontro de Jacó com suas mulheres
permite-lhe justificar-se e ver se elas estão de acor­
do. Em toda a narrativa está subentendido que Jacó
GENESIS 31
não é livre para se separar do sogro com suas mu­
lheres e filhos, mas a razão disso não está clara.
Talvez indique que o casamento de Jacó era um
casamento-adoçâo, costume do antigo Oriente Pró­
ximo. Se assim fosse, Jacó seria considerado filho
adotivo de Laban e suas mulheres e seus filhos se­
riam propriedade de Laban. A fuga de Jacó com as
mulheres e os filhos teria sido ilegal.
As inserções javistas no texto (w. 1.3) indicam
que a atitude dos filhos de Laban fizeram Jacó se de­
cidir a partir. A contribuição do autor sacerdotal à
história é mínima. Na verdade, há só a nota breve in­
formando que Jacó partiu para voltar para casa (v. 18).
31,17-35 Fuga de Jacó. A versão eloísta con­
tinua a dominar a narrativa, embora a mão do javista
apareça de vez em quando. A fuga de Jacó aconte­
ce quando Laban está ocupado com a tosquia anual.
Jacó consegue “ludibriar” (“enganou a vigilância”,
V. 20) Laban. A tradução literal do texto hebraico
é: “Jacó roubou o coração de Laban”. (Na antropo­
logia hebraica, o coração não era a sede das emo­
ções, mas do intelecto.) A ação de Jacó é equipara­
da ao roubo de Raquel, no v. 19: “Raquel roubou
os ídolos que pertenciam a seu pai”. Os motivos de
Raquel não estão claros. Pelo menos nos documen­
tos de Nuzi, os ídolos domésticos representavam
as credenciais do verdadeiro herdeiro. Raquel podia
estar tentando assegurar uma futura reivindicação
da herança ou simplesmente desejando conseguir
deles prosperidade e bênçãos.
Antes de Laban alcançar Jacó, Deus lhe apa­
rece em uirusonho e avisa-o para não prejudicar
Jacó (v. 24). Isso deixa Laban em posição bastante
desconfortável. Chegou pronto a lutar, mas só pode
se exasperar. Nada pode fazer a respeito da partida
de Jacó, mas o roubo dos ídolos domésticos não
pode ser ignorado. Jacó nega qualquer conheci­
mento do roubo e, sem querer, pronuncia a senten­
ça de morte de sua amada Raquel. A expectativa
que se forma durante a busca de Laban dissipa-se
no momento em que o leitor descobre que a Ra­
quel menstruada está sentada sobre os ídolos (v.
34) Há algo irônico sobre os “deuses” reverencia­
dos como sagrados sendo protegidos pelo tabu
antigo de “impuro” associado a sangue. Fosse qual
fosse a importância original desses deuses, não há
dúvida de que o autor, para quem os ídolos não pas­
sam de madeira e pedra, ridiculariza a crença pagã
e o culto dos ídolos.
31,36-32,3 Aliança de Jacó com Laban. Jacó
obtém uma vantagem quando Laban não encontra
os ídolos. Passa a descrever seus serviços leais e a
compará-los com o tratamento mesquinho de Laban.
Este não parece impressionado com o discurso de
Jacó, pois continua a afirmar ser o dono das mulhe­
res, dos filhos e dos rebanhos de Jacó, mas não
pode fazer nada, por causa do aviso de Deus.
A forma atual do acordo a que chegam Laban
e Jacó é combinação de duas alianças independen- 81
 G Ê N E S IS 3 2
tes, uma da fonte javista e outra da eloísta. A alian­
ça da versão javista é um pacto de não-agressão
entre Arâm e Israel. O sinal da aliança é um monte
de pedras e ela é selada com uma refeição. A ver­
são eloísta é tirada de um acordo de fronteiras entre
Arâm e Israel. A aliança é marcada por uma esteia
e ratificada por um sacrifício e uma refeição. Nas
duas alianças há trocadilhos ligados ao nome do
lugar onde a aliança foi ratificada. Na história
javista, Galeed é um trocadilho da palavra hebraica
para “monte de pedras”; na versão eloísta, Mispá
é assim chamado porque soa como o hebraico para
“esteia”.
O episódio conclui com a volta de Laban para
casa e o prosseguimento da viagem de Jacó (32,1­
2). Imediatamente Jacó encontra os mensageiros
de Deus. Essa experiência proporciona o nome do
lugar, Mahanáim (“dois acampamentos”). O moti­
vo da inclusão desse fragmento certamente deve
ultrapassar o significado da palavra, mas o propó­
sito não está claro. O encontro com os mensagei­
ros de Deus dá a Jacó a idéia de enviar “mensagei­
ros” a Esaú? De dividir sua família em dois acam­
pamentos? Prepara para o ser misterioso que Jacó
encontra em 32,23-33?
32,4-21 Jacó se prepara para encontrar Esaú.
Continuamos a encontrar uma mistura das fontes
javista e eloísta, à medida que a narrativa segue em
direção ao eneontro de Jacó com seu irmão Esaú.
Na história javista (vv. 4-14a), Jacó envia mensagei­
ros a Esaú, na esperança de obter suas boas graças.
Quando os mensageiros comunicam que Esaú está
a caminho com quatrocentos homens, Jacó fica com-
preensivelmente assustado e divide o acampamento
a fim de evitar o desastre total. Depois de tomar
medidas práticas, Jacó volta-se para Deus. Sua ora­
ção revela seu estado de ansiedade ao pedir a ajuda
divina, lembrando a Deus a promessa.
No relato eloísta (vv. 14b-22), Jacó procura
apaziguar o irmão com muitos presentes. As pala­
vras hebraicas para “presentes” e “acampamentos”
lembram o trocadilho anterior do v. 3 (Mahanáim);
o uso freqüente da palavra “face” antecipa o epi­
sódio de Peniel (“Face-de-Deus”, v. 31) que se
segue.
32,22-33 Jacó luta com Deus. Essa história,
que atrasa o encontro de Jacó com Esaú, é geral­
mente atribuída ao javista. Sozinho, depois de enviar
suas mulheres, seus filhos e seus bens para o outro
lado do rio, Jacó é atacado por um “homem”, com
quem luta até o amanhecer. Exatamente quem ven­
ce permanece ambíguo. O “homem” não tinha
condições de vencê-lo (v. 26) e usa o recurso de
ferir Jacó por meio de mágica, contudo, no v 27,
0 “homem” pede para ser solto, como se não pu­
desse vencer Jacó. Jacó pede para ser abençoado,
mas recebe um novo nome. Quando pergunta o
nome do misterioso contendor, seu pedido é posto
82 de lado. O v. 29 sugere que Jacó venceu, mas no
v. 31 Jacó se admira de ter visto Deus e continuar
vivo. Talvez a ambigüidade seja mantida para evi­
tar a afirmação explícita de que Jacó venceu, pois
nessa história o atacante noturno é, posteriormente,
identificado como Deus (v. 31).
A história incorpora elementos tirados de fontes
muito antigas. O tema — para atravessar um rio a
pessoa deve aplacar um deus-rio — é encontrado
com freqüência no folclore antigo. Há também a
idéia originária do folclore antigo de que o poder de
certos seres sobrenaturais limita-se ao período notur­
no; ao raiar do dia, devem partir ou ser subjugados.
Esses elementos antigos explicam apenas um nível
da história. Deixam sem resposta questões sobre a
relação dela com o ciclo maior de Jacó.
Não há dúvida de que, além de preservar ele­
mentos folclóricos antigos, a história recebeu um
tratamento distintamente israelita. A luta de Jacó é
lembrada por intermédio de seu novo nome, Israel,
explicado pela etimologia popular como “o que
luta com Deus”. A cidade de Peniel também recebe
seu nome depois da luta de Jacó e, mais uma vez,
a etimologia popular é o veículo da explicação (v.
31). Finalmente, a história justifica a regra dietética
que proibia os israelitas de comer o músculo da
coxa, em memória da coxa ferida de Jacó, mas essa
lei não está registrada em nenhuma outra passa­
gem do Antigo Testamento e Israel não a observava.
O interesse do javista na história ultrapassa
quaisquer das preocupações mencionadas até aqui.
O javista mostra que Jacó, o contendor com Esaú
e Laban, é levado a lutar com o próprio Deus e, por
isso, nunca mais será o mesmo. Essa experiência
altera profundamente o caráter de Jacó. A partir
desse momento até sua morte, ele é uma pessoa de
honra e integridade. Além disso, Jacó (agora Israel)
revela em sua vida a luta de Israel com Deus ao
viver como o povo da aliança.
33,1-20 O encontro de Jacó e Esaú. Em geral
se supõe que a fonte javista é responsável por essa
cena final da narrativa da volta de Jacó a Canaã,
embora ainda possam ser percebidos traços da fonte
eloísta. O encontro real dos irmãos acaba por ser
um tanto anticlimático. Os amplos preparativos e
os gestos subservientes de Jacó mostram-se efica­
zes. Esaú não mais deseja matá-lo e até expressa
grande alegria com a volta de Jacó (v. 4). Por seu
lado, Jacó compara seu encontro com Esaú ao que
tivera com Deus (v. 10).
Entretanto, a conversa subsequente de Jacó com
Esaú sugere que, na verdade, nenhum confia verda­
deiramente no outro. Jacó não aceita a companhia
de Esaú, nem dos homens de Esaú, e persuade o
irmão a prosseguir sem ele. Então, em vez de seguir
Esaú, Jacó volta-se para outra direção e prossegue
para Sukot. Posteriormente, Jacó continua até
Siquém. Segundo a inserção eloísta nos vv. 19-20,
Jacó compra terra em Siquém e ergue um altar a
El, Deus de Israel. Siquém era uma cidade muito

antiga, importante desde os primeiros dias da ocu­
pação da terra por Israel.
34.1- 31 O estupro de Diná. Essa história terioso
basicamente do autor javista, mas foi suplementada
por fragmentos eloístas. Diná é violada por Siquém,
que porém passa a amà-la e quer se casar com ela.
Hamor, pai de Siquém, falando em nome do filho,
recomenda a Jacó e a seus filhos a expansão de
casamentos e do comércio entre os siquemitas e os
israelitas. Os filhos de Jacó concordam, sob a con­
dição de que os siquemitas fossem circuncidados.
Hamor expõe o assunto aos siquemitas, convencen­
do-os de que teriam benefícios econômicos ligando­
-se aos israelitas por meio de casamentos. Os sique­
mitas concordam em se submeter à circuncisão e,
enquanto se recuperam da operação, Simeão e Levi
atacam Siquém e matam todos os homens da cidade.
Jacó censura os filhos, mas é levado mais pelo medo
da represália dos habitantes vizinhos do que por al­
guma objeção moral ao método de vingança dos
filhos. Simeão e Levi não demonstram remorso, mas
justificam seu comportamento como vingança da
injustiça sofrida por Diná.
Talvez a narrativa preserve em forma de histó­
ria um ataque real à cidade de Siquém pelas tribos
de Simeão e Levi. Além disso, a história pode servir
para explicar o declínio posterior das tribos de Si­
meão e Levi.
35.1- 29 Fim do ciclo de Jacó. Esse capítulo
inclui duas narrativas do eloísta: a história do cum­
primento de Jacó de seu voto de erigir um altar em
Betei (vv. 1-8) e a história do nascimento de Benja-
min (w. 16-20). O resumo da vida de Jacó (w. 9-15),
a lista dos filhos de Jacó e a morte de Isaac vêm
da fonte sacerdotal. A única contribuição da fonte
javista é a breve noticia sobre Rúben no v. 22a.
Segundo o eloísta, Jacó volta a Betei por causa
de uma ordem direta de Deus para que cumpra o
voto que fez na primeira visita àquela cidade
(28,10ss.). Os preparativos para a viagem indicam
que a viagem de Jacó deve ser uma peregrinação
e refletir as práticas reais mais tarde associadas a
peregrinações em Israel. A purificação ritual antes
de partir para uma peregrinação inclui a renúncia
formal a deuses estrangeiros e a qualquer coisa
associada ao culto pagão, tal como brincos, que
eram símbolos cultuais, e amuletos. Trocar de rou­
pa é símbolo religioso comum de renovação. O
“terror” que Deus semeou (v. 5) para proteger a
família de Jacó é uma espécie de paralisia ou pâ­
nico inexplicável que toma o inimigo incapaz de
atacar (ISm 14,15; Ex 23,27; Js 10,10 etc.). Ao
chegar a Luz, Jacó ergue o altar em cumprimento
de seu voto e muda o nome do lugar para Betei.
O nascimento de Benjamin (v. 17) é a resposta
à oração de Raquel quando José nasceu (30,24).
Ela queria chamá-lo de “Filho-do-luto” (Ben-Oni),
por causa da dor que sentiu para tê-lo, mas Jacó o
GÊNESIS 36
chama de “Filho-da-direita” (Benjamin). No mun­
do antigo julgava-se haver um relacionamento mis­
é entre o nome e seu portador; o nome deter­
minava o destino do portador. Em vez de marcar a
vida do menino com a tristeza que cercou seu nas­
cimento, Jacó sabiamente dá-lhe um nome que su­
gere futuro honroso e bem-sucedido. O nome Ben­
jamin significa “sulistas” e é provável que se refira
à localização geográfica original da tribo. O local
do túmulo de Raquel é desconhecido. Segundo ISm
10,2 e Jr 31,15, localiza-se no território de Benja­
min, ao norte de Jerusalém. Assim, Efrata não pode
ser Bet-Lehem (v. 19), que está no território da tribo
de Judá e ao sul de Jerusalém.
A contribuição do autor sacerdotal às tradi­
ções que cercam o patriarca Jacó são limitadas.
Consistem em pouco mais que resumos das tradi­
ções mais primitivas encontradas nas narrativas do
javista e do eloísta. O autor sacerdotal menciona
apenas o que é considerado de importância teoló­
gica, tomando nota da mudança do nome de Jacó
para Israel (v. 10) e reiterando a promessa feita a
Abraão (vv. 11-12). A lista de nomes dos filhos de
Jacó fornecida pelo autor sacerdotal (vv. 22b-26) é
semelhante à encontrada alhures no Antigo Testa­
mento (Gn 49,lss.; Dt 27,12ss.; 33,2ss. etc.), mas
está em desacordo com a história do nascimento
de Benjamin nos vv. 16-20. Para este autor, o nasci­
mento de Benjamin acontece não em Canaã, mas
na Mesopotâmia, enquanto Jacó ainda mora com
Laban. O autor sacerdotal, que registrou a morte e
o sepultamento de Abraão, agora relata a morte e o
sepultamento de Isaac. Ambos, Jacó e Esaú, estão
presentes no enterro do pai (como estavam Isaac e
Ismael no de Abraão), pois no relato sacerdotal não
houve nenhum rompimento de relações entre Jacó
e Esaú.
A referência ao incesto de Rúben (v. 22) é
apenas fragmento de um relato que deve ter incluí­
do a reação de Jacó ao comportamento ofensivo de
Rúben. É citado novamente em 49,4, mas sem ou­
tros pormenores que poderíam nos dar um quadro
mais completo do acontecimento.
36,1-43 A genealogia de Esaú. Na conclusão
do ciclo de histórias de Jacó, está inserida uma ge­
nealogia de Esaú. Na verdade, ela é composta de
seis listas distintas; 1) vv. 1-8; 2) vv. 9-14; 3) vv.
15-19; 4) w. 20-30; 5) vv. 31-39; 6) vv. 40-43. A
primeira e a segunda listas são paralelas e diferem
apenas no início e no fim. A segunda lista inclui
netos, que têm os nomes repetidos na terceira lista.
A quarta lista cita os descendentes dos clãs originais
que se estabeleceram no território de Seir, mais
tarde habitado pelos edomitas. Esses habitantes são
chamados horitas, designação bíblica para os hur-
ritas. Mas não há nenhuma evidência arqueológica
de que os hurritas ocuparam território edomita e os
nom es da lista são claramente semíticos; assim, é
difícil determ inar a identidade desses ancestrais. A 83
 GÊNESIS 37
quinta lista contém os nomes dos reis de Edom
que reinaram antes do estabelecimento da monar­
quia em Israel. A sexta lista, os clãs de Esaú, duplica
alguns dos nomes da segunda lista.
É difícil determinar a confiabilidade histórica
de qualquer dessas listas. Os edomitas vieram para
o leste no século XIII a.C., com os amonitas e os
moabitas. Tomaram-se nação antes de Israel, mas
foram conquistados por David e se tornaram
vassalos de Israel no século X a.C.
As sagas patriarcais começam com um chama­
do à aventura em terra estranha com nada mais
que uma promessa. Israel viu nas viagens de Abraão
sua vocação para prosseguir acreditando em Deus,
viu na história da fé de Abraão um testemunho de
sua fé. Até mesmo no comportamento questionável
de Jacó, Israel viu sua história. Mas, mais importan­
te, Israel reconheceu nessas histórias a atividade di­
vina. Viu um Deus misericordioso que decidiu in­
tervir em nosso mundo por intermédio de um povo
chamado a ser um povo especial. Esse Deus não
escolheu um povo perfeito, mas um que, apesar de
todas as suas faltas, estava disposto a ouvir e seguir,
aberto à intervenção da Divindade em sua vida.
A HISTÓRIA DE JOSÉ
Gn 37,1-50,26
A história de José destaca-se das outras narra­
tivas do livro do Gênesis por sua forma literária
caracteristica. Muitas vezes é citada como “novela”,
ou “romance curto”, porque a narrativa é um todo
orgânico unificado. Do começo ao fim, cada segmen­
to da história integra-se a toda a narrativa. Tem seu
tema característico — paz na família — , mas tam­
bém é integrada ao conjunto mais amplo de histó­
rias. Precisamos estar atentos a seu caráter singular,
mas, também vê-la no contexto de todo o livro do
Gênesis.
Todos concordam que a história de José foi
influenciada pela tradição sapiencial de Israel. Uma
das preocupações dessa tradição era o sucesso do
indivíduo na vida. O sucesso era alcançado pela
diligência e pela autodisciplina. Era importante
aprender o eomportamento apropriado, o auto-con-
trole e o decoro na linguagem. Em Israel, o temor
de Deus também era fator necessário para alcançar
a sabedoria. José personifica todas essas caracte­
rísticas e, assim, é apresentado, em toda a narrati­
va, como modelo de sabedoria
37,1-36 José é vendido como escravo p ara o
Egito. A contribuição do autor sacerdotal a esse
capítulo (vv. 1-2), como em toda a história de José,
é mínima. O v. 1 é a conclusão do autor sacerdotal
à história de Jacó e o v. 2 dá início à história de
José. As histórias de Jacó eram encabeçadas; “Eis
a família de Isaac...”. Da mesma forma, a história
84 de José começa com uma referência à família de
Jacó. As fontes javista e eloísta, a princípio sepa­
radas (w. 3-4, J; vv. 5-11, E), combinam-se para
formar o clímax do capítulo (w . 12-36, JE).
Cada uma das três fontes dá sua razão para a
hostilidade dos irmãos contra José. Na tradição
sacerdotal (vv. 1-2), José relata a Jacó as conversas
“mal-intencionadas” dos irmãos. O conteúdo dos
relatos não é especificado, mas a afirmação revela
a tensão existente entre José e os irmãos. A predi­
leção de Jacó por José é a causa da desavença na
tradição javista (w . 3-4). A “túnica principesca”
dada a José é sinal do favoritismo de Jacó e atiça
ainda mais o ciúme dos irmãos de José. Essa veste
era um manto especial diferenciado pelo compri­
mento das mangas, não pela cor. A tradução mais
antiga “manto de muitas cores” baseava-se no tex­
to grego do Antigo Testamento, não no hebraico.
O autor eloísta (vv. 5-11) introduz na história
de José o tema de um sonho, encontrado novamen­
te nos capítulos 40 e 41. Nos sonhos não há dis­
curso direto; o próprio sonho comunica sua men­
sagem ao ser interpretado. A ciência de interpreta­
ção dos sonhos desenvolveu-se para ajudar a
deciffá-los. Os antigos afirmavam que, em alguns
sonhos, havia um prenúncio do futuro e esse é o
sentido em que se deve entender esses sonhos. A
conseqüência óbvia dos sonhos — que José gover­
naria seus irmãos — afasta-os ainda mais de José.
Depois que os personagens foram apresentados
e a situação delineada, a história se inicia quando
Jacó envia José para saber notícias dos irmãos que
estão apascentando o rebanho a alguma distância
de onde Jacó habitava. As contradições do episódio
remontam à presença das duas fontes diferentes, a
javista e a eloísta. Na tradição javista, os irmãos
planejam matar José, mas Judá intercede e os ir­
mãos decidem vender José aos ismaelitas (v. 27).
Na narrativa eloísta é Rúben quem persuade os
irmãos a não matar José e sim colocá-lo em uma
cisterna (w. 21-22). Rúben tem esperança de voltar
mais tarde para salvar José, mas comerciantes mi-
dianitas encontram José e o levam para o Egito.
E irônico que os irmãos transmitam a notícia
da morte de José usando sua túnica, agora suja de
sangue. Antes ela marcava a posição privilegiada
de José; agora anuncia sua morte. O grande sofri­
mento de Jacó é descrito vividamente, mas, em vez
de terminar com essa nota trágica, a cena muda para
o Egito e a venda de José a Potifar, despenseiro-
-mor da corte de Faraó.
38,1-30 Ju d á e Tamar. Devido à importância
da tribo de Judá na história de Israel, não é sur­
preendente encontrarmos uma narrativa especifi­
camente sobre seu fundador. O problema com a his­
tória é sua localização atual, pois interrompe a histó­
ria de José. Mas, como veremos, há algumas liga­
ções entre essa narrativa e o eontexto em que agora
se encontra.

A narrativa é atribuída ao javista que condensa
toda uma geração em alguns w . Judá separa-se dos
irmãos, casa-se com uma canaanita e tem três filhos
que alcançam a idade do casamento um tanto de­
pressa. O filho mais velho, Er, casa-se com uma
canaanita, Tamar. Por alguma razão não especificada,
Er desagrada ao S enhor e morre. No mundo antigo,
acreditava-se que a morte inesperada na plenitude
da vida era causada pelo pecado. Segundo a lei do
levirato (Dt 25,5-10), o irmão de Er deve desposar
sua viúva porque Er morreu sem ter filhos. O primei­
ro filho dessa união seria legalmente reconhecido
como herdeiro do irmão morto. Assim, Judá dá seu
segundo filho, Onan, a Tamar. Mas Onan não queria
dar um filho ao irmão e.não completa o ato sexual.
Onan morre porque recusou-se a cumprir a obriga­
ção para com o irmão; não há nenhum julgamento
moral de seu comportamento sexual (vv. 9-10).
Depois de perder dois filhos, Judá reluta em dar o
terceiro filho a Tamar. A falha de Judá em cumprir
seu dever prepara a cena seguinte, na qual Tamar tem
0 papel principal.
Depois da morte de sua mulher, Judá viaja a
Timná para tosquiar o rebanho (v. 12). Tamar apro­
veita-se da situação, disfarça-se de prostituta e seduz
Judá. Insiste em ficar com seu sinete, seu cordão
e seu bastão como penhor de pagamento. O sinete
funcionava como antigo meio de identificação. Era
gravado com o desenho especial do dono e usado
em volta do pescoço, atado a um cordão. Quando
Judá envia seu servo com o pagamento, Tamar não
é encontrada. Para não se complicar mais, procu­
rando a mulher, Judá deixa as coisas como estão.
- Como seria de esperar, Tamar engravida de
Judá (v. 18). Sua gravidez é comunicada a Judá,
que tem jurisdição no caso, porque Tamar está noiva
de seu terceiro filho. Judá a sentencia à morte, o
castigo do adultério, mas no momento critico ela
apresenta o sinete, o cordão e o bastão que o iden­
tificam como pai da criança. Judá absolve Tamar e
admite sua culpa por não ter cumprido a lei do
levirato.
A luta no ventre de Tamar (v. 29), como no de
Rebeca (25,21-26), antecipa o ftituro conflito entre
tribos, enquanto um bebê tenta dominar o outro. O
nome de cada criança é associado à maneira de seu
nascimento. Péres “abre uma brecha” para tirar o
irmão do caminho, a fim de nascer primeiro; Zérah
recebe esse nome graças ao fio “escarlate” que a
parteira amarrou-lhe na mão. Pelo ato corajoso de
Tamar, a linhagem de Judá é salva da extinção; dessa
linhagem sairá o maior dos reis de Israel, David.
Poucos biblistas vêem uma ligação entre a his­
tória de Judá e Tamar e a de José. Parece ser uma
intromissão em uma narrativa que, de outra forma,
trata de José e seu destino. Contudo, há pontos de
contato a ser notados. A mesma fórmula (“Verifi-
ca/Reconhece... reconheceu”) usada pelos filhos de
Jacó para esconder sua culpa (37,32-33) é usada
GÊNESIS 40
por Tamar para revelar a culpa de Judá (38,25-26).
O pagamento de um cabrito (38,20) pelo Judá enga­
nado lembra o bode em cujo sangue a túnica de
José foi ensopada (37,31) para enganar seu pai,
Jacó. Finalmente, o desmascaramento de Judá resul­
ta de sua incontinência sexual, enquanto a castidade
de José no capítulo 39 o conduz da derrota aparente
ao triunfo final. A história permite ao narrador com­
parar as vidas de Judá e José; e também dá tempo
para que José viaje ao Egito.
39.1- 23 Ascensão e queda de José. A narrativa
javista da história de José continua, levando o leitor
de volta ao momento em que José foi vendido aos
ismaelitas (37,26-27.28b). Ao chegar ao Egito, José
é vendido como escravo a um egípcio (identificado
como Potifar na tradição eloísta). José logo alcança
posição de confiança e o egípcio é abençoado com
prosperidade por causa dele. Na visão do javista, o
sucesso de José deve-se inteiramente ao Senhor. Em
toda a história de José, sente-se a presença do Se­
nhor nos bastidores, o que lhe dá seu caráter teoló­
gico distinto.
Os vv. 1-6 preparam a cena para a tentativa de
sedução de José pela mulher de Potifar. José recusa
seu assédio sexual, pois o ato de adultério seria um
pecado contra a confiança que seu senhor depositara
nele e contra Deus. A mulher persiste em suas exi­
gências, tanto que certo dia agarra José e ele só se
livra dela deixando-lhe sua veste na mão (v. 12). A
veste é usada como evidência contra ele quando ela
o acusa falsamente de tentar seduzi-la. O castigo
para o adultério é a morte. José está na mesma
posição que estava no capítulo 37 — enfrentando
uma situação de vida ou morte. No capítulo 37, em
vez de ser morto, foi vendido como escravo; no ca­
pítulo 39, em vez de ser morto é colocado na prisão.
Da mesma forma que se tomara escravo de con­
fiança, na prisão José também alcança proeminên-
cia e ocupa uma posição de confiança. Como antes,
o progresso é atribuído à presença do S enhor em
sua vida.
O tema dominante neste capítulo, o de uma
mulher imprudente que incrimina o homem que
recusa seu assédio, é comum na literatura universal.
É interessante notar que um dos paralelos mais
próximos dessa história é uma versão egípcia intitu­
lada “Conto dos Dois Irmãos” que, exceto pelo fim,
é semelhante à do Gênesis. Entretanto, isso não su­
gere que haja uma relação direta entre as duas.
Sugere antes que ambas têm origem em um folclore
amplamente difundido.
40.1- 23 José interpreta os sonhos dos prisio­
neiros. A volta à tradição eloísta é assinalada pela
diferença na posição de José na prisão e a presença,
mais uma vez, de sonhos. No capítulo 39, José foi
encarregado de todos os prisioneiros, mas, no capí­
tulo 40, é descrito como escravo de dois nobres
prisioneiros, o copeiro-mor e o padeiro do rei. O co-
peiro-mor era o guardião e provador oficial do vi- 85
 GENESIS 41
nho de Faraó, posição importante ocupada pelo fun­
cionário mais leal e de confiança. Da mesma for­
ma, o padeiro do rei ocupava posição proeminente
na corte de Faraó.
Enquanto José serve aos dois funcionários,
observa sua tristeza e descobre que ela se deve ao
fato de não conseguirem ninguém para interpretar-
lhes os sonhos (v. 8). No Egito, a interpretação dos
sonhos era feita por profissionais. Na prisão, esses
dois funcionários não têm acesso a interpretadores
de sonhos. José encerra o problema deles, afirman­
do que a interpretação de sonhos cabe a Deus.
Depois de ouvir os sonhos, José passa a inter-pretá-
los. Ambos o copeiro-mor e o padeiro-mor, terão a
cabeça “levantada” (vv. 13.19); para o copeiro-mor
isso significa o restabelecimento na corte de Faraó,
mas, para o padeiro, significa a morte. Dentro de
três dias os sonhos se tomam realidade. Embora
José pedisse ao copeiro para falar de seu caso a
Faraó, o copeiro se esquece de José até que o pró­
prio Faraó sonha. Assim, José fica na prisão por
mais dois anos.
41,1-57 José interpreta os sonhos de Faraó.
A fonte eloísta continua nesse capítulo até José
subir ao poder no Egito, quando a versão javista se
entrelaça a ela. José é trazido a Faraó para inter­
pretar seus sonhos depois que “todos os sacerdotes
e todos os sábios do Egito” (v. 8) falharam. Faraó
conta seus sonhos a José, não apenas repetindo
textualmente o relato encontrado nos vv. 1-7, mas
realçando-o com mais detalhes (vv. 17-24). Por sua
vez, José repete que é Deus quem interpreta os
sonhos e dá sua interpretação que se comprova ser
verdadeira no final do capítulo (vv. 53-57). O sim­
bolismo dos sonhos adapta-se bem ao pano de
fundo egípcio da história. Sete anos bons, repre­
sentados por vacas gordas e sete espigas boas, serão
seguidos por sete anos de fome descritos como
vacas raquíticas e feias e espigas ressequidas. José
junta a sua interpretação conselhos práticos que
Faraó imediatamente aceita.
Na tradição eloísta, José é nomeado mordomo,
o que o deixa encarregado das finanças do Egito.
Segundo o javista, José é nomeado vizir do Egito,
cargo ainda mais elevado. José é encarregado da
administração da terra. A cerimônia de investidura
reflete com autenticidade os costumes sociais e po­
líticos do Egito. O anel era o selo real mantido pelo
vizir, e o colar de ouro era, provavelmente, um em­
blema cerimonial do cargo (v. 42). As vestes de
linho fino e os carros indicam a posição nobre de
José, o mesmo acontecendo com os que proclamam
“Atenção” diante de seu carro.
José é completamente atraído à corte egípcia.
Recebe um nome egípcio, Safnat-Panêah (“Deus fala
e vive”), e uma esposa egípcia. Seu novo nome e o
fato de se casar com a filha de um sacerdote egípcio
aparentemente não causam problemas para o autor
86 javista, que apenas relata-os como parte da nova
posição de José no Egito. Durante a época de pros­
peridade, José tem dois filhos que recebem nomes
relacionados a sua nova vida. Seu sofrimento ante­
rior é “esquecido”, assim o primeiro filho recebe o
nome de Manassés. Seu estado atual de prosperida­
de é lembrado no nome do segundo filho, Eftaim,
“Deus me tomou fecundo” (w. 51-52).
A única contribuição do autor sacerdotal (v. 46a)
fala da idade de José. Treze anos se passaram desde
a chegada de José ao Egito e sua subida ao poder.
42.1- 38 José testa seus irmãos. Esse capítulo
é dominado pela fonte eloísta, mas recebe o suple­
mento de alguns fragmentos do javista (p. ex., vv.
27-28). A narrativa volta ao tema do relacionamento
entre José e seus irmãos, depois de descrever sua
elevação ao poder no Egito. A fome espalhou-se até
a Palestina, fazendo Jacó enviar os filhos ao Egito,
pois ouviu dizer que ali há comida disponível. Não
enviou Benjamin, o outro filho de Raquel, que, é
de presumir, substituiu José no afeto do pai.
Os sonhos de José (37,5-10) realizam-se quan­
do seus irmãos se prostram diante dele (v. 6). José
os reconhece, mas eles não o reconhecem. Ele co­
meça a fazer um jogo com eles, cuja importância
só se tom a clara quando a história continua. José
acusa os irmãos de serem espiões. Na ânsia de se
defender, revelam a José o que ele deseja saber so­
bre a família. Insiste em que tragam Benjamin até
ele para provar a alegação de que não são espiões.
Por esse meio, José pode concluir se os irmãos
mudaram ou não. Sentem por Benjamin o mesmo
ódio que outrora sentiam por ele? Haviam subme­
tido José a um destino desconhecido; agora ele faz
o mesmo com eles.
A princípio José insiste que todos os irmãos
devem ficar na prisão, enquanto um deles volta
para buscar Benjamin, mas, no fim, mantém apenas
Simeão na prisão como garantia de que os outros
irmãos voltarão (v. 24). Ele devolve o dinheiro a
seus sacos; só o descobrirão mais tarde. A fusão de
fontes revela-se pela contradição entre os vv. 27 e
35. Segundo o javista (v. 27), o dinheiro é encon­
trado no primeiro dia da viagem para casa, mas no
V. 35 ele é encontrado apenas quando os irmãos
chegam a seu destino. O capítulo termina no mesmo
tom que o capítulo 37, o lamento de Jacó pelo filho
predileto.
43.1- 34 Os irmãos voltam ao Egito. A tensão
que se iniciou no capítulo 42 intensifica-se nos ca­
pítulos 43—44 até ser resolvida no capítulo 45. Na
narrativa dos capítulos 43-44, voltamos ã fonte
javista, 0 que justifica algumas das irregularidades
da história à medida que ela continua. Na cena ini­
cial, Simeão, aprisionado no Egito, parece ter sido
completamente esquecido. Também parece que só
agora Jacó é inteirado das condições da volta deles
ao Egito. Somente a desesperança de sua situação,
junto com a promessa de Judá de garantir a segurança
de Benjamin, convence Jacó a deixar Benjamin

acompanhar os outros irmãos ao Egito. Jacó envia
presentes com eles, na esperança de aplacar o fun­
cionário egípcio que tão falsamente acusou seus
filhos.
Quando os irmãos chegam ao Egito (v. 16), tudo
parece correr bem para eles. Simeão é solto. Aos
poucos superam a hesitação. A tentativa de devolver
0 dinheiro encontrado nos sacos é repelida. O dinhei­
ro é citado misteriosamente como dádiva de Deus (v.
23). Embora iniciem o banquete com certa precau­
ção, ela desaparece quando vêem como José trata
Benjamin. Por fim, começam a se sentir à vontade e
a aproveitar as festividades. Ao ver Benjamin, José é
tomado de emoção e precisa sair da sala para recu­
perar o controle, mas ainda não se revela aos irmãos.
44,1-34 José testa seus irmãos pela última vez.
A seriedade do jogo de José é demonstrada no últi­
mo teste de seus irmãos. José instrui o mordomo para
devolver o dinheiro dos irmãos e colocar sua taça de
prata no saco de Benjamin. Causa-nos estranheza a
devolução do dinheiro, pois ele não é mais mencio­
nado na história; só a taça serve de prova incrimina-
tória. Essa taça era um objeto sagrado usado para
adivinhação. Não se tem certeza de como era usada.
Um meio possível era derrubar objetos dentro da
taça cheia de liquido e decifrar a resultante agitação
desse liquido. Outra possibilidade era misturar óleo
e água na taça e examinar as figuras que assim se
formavam, para encontrar o significado. O fato de
José usar essa taça parece não ter preocupado o nar­
rador, mas as práticas de adivinhação eram proibidas
em Israel (Lv 19,31; Dt 18,10-11).
Os irmãos caminham apenas uma curta distância
quando são alcançados pelo mordomo de José (v. 6).
Ficam genuinamente chocados ao serem acusados de
roubo. Proclamam inocência e fazem juramento de
morte ao ladrão e de escravidão para o resto deles, se
a taça for encontrada era poder deles. Esses castigos
extremos são rejeitados pelo mordomo e mais tarde
pelo próprio José. O castigo será escravidão, não
morte, para o ladrão e os outros partirão em liberda­
de. Ao isolar Benjamin dos irmãos, José quer ver se
eles deixarão Benjamin se tomar escravo e aprovei­
tarão a oportunidade para partir em liberdade.
Como seria de esperar, a taça é encontrada no
saco de Benjamin e os irmãos voltam ao Egito.
Depois de severa reprimenda de José, Judá faz um
discurso apaixonado. Talvez nos surpreendamos que
admita a culpa (v. 16) logo depois de alegar inocên­
cia, mas Judá vê na situação atual o julgamento de
Deus sobre eles por causa do que fizeram a José.
Na verdade, são culpados, mas até agora não foram
descobertos nem punidos. A ênfase de Judá na tris­
teza do pai com a perda de José e o grande medo
que sentia de que Benjamin não voltasse para casa
tomam-se a base de seu pedido para ocupar o lugar
de Benjamin. Pelo discurso de Judá, José percebe
que os irmãos mudaram. O ódio mortal que os fi­
zera livrar-se dele foi substituído por uma preocu­
GÊNESIS 46
pação abnegada por Benjamin. Os irmãos, antes
indiferentes à tristeza do pai, demonstram grande
solicitude e farão o que puderem para poupar-lhe
mais tristeza.
45,1-28 José se revela aos irmãos. Nesse ca­
pítulo, mais uma vez a fonte eloísta está entrelaçada
à narrativa javista, o que dá origem a duplicatas
(w. 3a/4b) e discrepâncias (45,16ss./46,3 Iss.). Mas,
em vez de desorganizar o capítulo, a mistura de fon­
tes, na verdade, acrescenta ao capítulo uma credi­
bilidade interior.
Com o discurso de Judá, o jogo foi até onde
podería ir. O clímax foi alcançado — José precisa
agir. Ao ouvir o apelo de Judá, é tomado pela emo­
ção e decide finalmente revelar sua identidade. O
espanto dos irmãos abre caminho para a segunda
revelação de José: “Não vos aflijais ... foi Deus quem
me enviou antes de vós (v. 5). A teologia fundamen­
tal da história de José toma-se explícita. Deus diri­
giu e orientou os acontecimentos. O que os irmãos
pretenderam como mal. Deus redimiu. Foi Deus
quem enviou José ao Egito para constituir reservas
e possibilitar que a família de Jacó escapasse. “Reser­
vas (resto)” e “escapar” (v. 7) tomam-se importantes
palavras veterotestamentárias para expressar a con­
vicção de Israel de que Deus intervém em sua história
e preserva-o da destruição total.
José liberta os irmãos e eles se reconciliam (w.
14-15). Os irmãos “conversaram com ele” (v. 15), o
que mostra como a situação do capítulo 37 foi inver­
tida (veja 37,4). A tensão que vinha aumentando
desde o capítulo 42 é, fínalmente, resolvida. O desfe­
cho inclui dar a Jacó a notícia de que José vive, a
mudança de Jacó para o Egito e o encontro entre José
e seu pai.
Quando os irmãos revelam ao pai que José
vive e ocupa um cargo importante no Egito, é
compreensível que Jacó fique aturdido. Mas, aos
poucos, ele se convence da verdade do que afir­
mam e decide ir para o Egito. Não é feita nenhuma
menção ao ato criminoso dos irmãos, pois ele foi
suplantado pela intervenção divina salvadora.
46,1^7,12.27-28 Jacó viaja ao Egito e lá se
instala ali. A fonte javista domina nas cenas finais
da história de José, mas os autores eloísta e sacer­
dotal também contribuem para sua conclusão. Se­
gundo 0 javista, Jacó decide ir ao Egito (45,28;
46,1a), mas para o eloísta a viagem é realizada em
resposta à ordem divina (46,2-4). Essa inserção
eloísta tem forma e estilo diferentes da história de
José. Muda o centro da história de José, do relacio­
namento entre irmãos para a descida de Jacó ao
Egito e incorpora a história de José à imagem maior
da história de Israel como preparação para o Êxodo.
Com certeza a inserção genealógica do autor
sacerdotal (46,6-27) existia independentemente de
seu contexto atual. Benjamin, na história de José é
uma criança, agora tem dez filhos! A lista parece
ser um resumo da genealogia encontrada em Nm 26. 87
 GÊNESIS 47
Chega-se ao número “setenta” para os descenden­
tes de Jacó (v. 27) apenas incluídos o próprio Jacó
e Diná entre os descendentes de Jacó. Não é pos­
sível determinar o propósito original dessa genea­
logia, nem está clara sua finalidade nesse con­
texto. A conclusão sacerdotal a essa genealogia
(47,27-28) foi deslocada pela conclusão da história
de José.
Gn 46,28 retoma a história interrompida pela
genealogia sacerdotal. O encontro tão esperado en­
tre José e seu pai apresenta um quadro comovente.
A alegria de Jacó é completa ao se reunir com o
filho que julgava morto (46,30).
A cena final da história de José trata da con­
sideração prática de em que lugar do Egito Jacó e
sua família devem se instalar. As habilidades di­
plomáticas de José transparecem em suas instruções
ao pai e aos irmãos como preparação para o en­
contro com Faraó (46,33-34). O território de Gôshen
oferecia terra adequada ao pastoreio, mas concor­
daria Faraó em instalar esses estrangeiros em uma
província fronteiriça não supervisionada? A insis­
tência de José para que a família se apresente como
pastores tem o propósito de assegurar a Faraó que
suas intenções são paeíficas e também de indicar
que Gôshen seria uma pastagem adequada, longe
da cidade. Não há apoio extrabíblico para a afirma­
ção de que “o egípcio abomina todo pastor” (46,34),
mas a atitude de desconfiança entre povos sedentá­
rios e nômades está bem eomprovada.
O encontro entre Faraó e a família de José corre
melhor que o previsto. Não só Faraó lhes dá Gôshen
como lugar para se instalar, como também sugere
que sejam designados “meeiros” para os rebanhos
reais (47,5a).
A cena final, com Jacó diante de Faraó (47,5b-
11), vem da fonte sacerdotal. Em uma troca polida
entre os dois, o patriarca descreve seus 130 anos
de vida como “tempo breve e mau” (v. 9) em com­
paração aos 175 anos da vida de Abraão e aos 180
da vida de Isaac. Refere-se a sua vida como “mi­
grações”. A palavra é usada com freqüência nas
narrativas patriarcais (17,8; 28,4; 36,7; 37,1) para
descrever o estilo de vida dos patriarcas, para quem
a posse da terra é dada apenas em promessa, uma
promessa não cumprida durante gerações.
47,13-16 A política agrária de José. Não há
ligação lógica entre os w. 13-26 (do javista) e a
parte anterior; a localização dessa passagem seria
mais apropriada depois do relato da elevação de
José ao poder, no cjqrítulo 41. A passagem relata
como a política econômica de José durante o perío­
do de fome permitiu aos egípcios sobreviverem ape­
nas vendendo a terra a Faraó e se tomando servos.
Somente as terras dos sacerdotes ficaram isentas. A
situação apresentada descreve com precisão o
declínio da classe dos camponeses livres no Egito.
Entretanto, a história não é lembrada por seu inte-
88 resse histórico, mas pela imagem de José que apre­
senta. É um administrador sábio e competente, ca­
paz de tratar com eficiência cada nova crise.
47,29-48,22 A bênção de Efraim e Manassés.
A tradição dos últimos dias de Jacó encontra-se em
todas as três fontes. Na versão javista (47,29-31),
o pedido de Jacó moribundo é ser enterrado com
seus ancestrais em Canaã. A insistência de Jacó
para que José faça um juramento (compare 24,2)
de que fará como seu pai lhe pede indica a impor­
tância do pedido. O sepultamento no túmulo da fa­
mília era não apenas um fim adequado para a vida
da pessoa, mas significava um elo com os ances­
trais. Além disso, para Jacó, o enterro em Canaã
representa o direito à terra e antecipa o dia da volta
de seus descendentes do Egito.
Na tradição eloísta (48,1-2.7), José é chamado
ao leito do pai, repetindo-se, em essência, a cena
encontrada em 47,29. A referência ao túmulo de
Raquel, em 48,7, está certamente incompleta. Tal­
vez na tradição eloísta Jacó peça para ser enterra­
do com Raquel, ao contrário da tradição sacerdo­
tal, na qual Jacó é enterrado na caverna de Makpelá.
Em 48,3-6, o autor sacerdotal descreve a ado­
ção por Jacó dos filhos de José, Effaim e Manassés,
em palavras que lembram a promessa feita a Jacó
em Betei (35,6.9-12). No início de sua história (Jz
5; Nm 26,5-51), a tribo de José dividiu-se em duas,
as tribos de Efraim e Manassés. Instalaram-se nos
montes samaritanos e se tomaram tribos poderosas
do reino do norte. A cena de adoção tem o propósito
de mostrar como Efraim e Manassés se tomaram
chefes tribais, embora não fossem filhos naturais
de Jacó. Pela adoção, Jacó faz de seus netos mem­
bros plenos da família (Israel) e iguais às outras
tribos.
Uma segunda versão da bênção e da adoção
de Manassés e Efraim é atribuída ao javista (vv. 8­
12). Manassés e Efraim não só são adotados como
filhos, mas ainda a posição futura das duas tribos
é indicada pela maneira como Jacó os abençoa.
José procura colocar o mais velho sob a mão direita
de Jacó, o lugar de honra, mas Jacó cruza as mãos,
de modo que o mais jovem recebe a precedência
sobre o mais velho. E um tema comum encontrado
no javista (Abel sobre Caim, cap. 4; Isaac sobre
Ismael, 17,19-21; o próprio Jacó sobre Esaú, cap.
27; Péres sobre Zérah, 38,27-30) e reflete o destino
futuro das duas tribos, pois a tribo de Efraim logo
suplanta a de Manassés e se toma a mais poderosa
do reino do norte.
A própria bênção encontra-se em duas formas:
nos w. 15-16 e no V. 20. Ambas são fórmulas de
bênçãos tradicionais. Nos w . 15-16, Jacó invoca
Deus como o Deus de Abraão e Isaac, desse modo
estabelecendo um elo entre o Deus cultuado por seus
ancestrais e o Deus que ele próprio cultua. Diri­
ge-se a Deus como “pastof’, título freqüente no
Antigo Testamento, que sugere a preocupação de
Deus com o povo. O terceiro título, “anjo”, refere-

se à experiência de Jacó da Divindade como liber­
tadora. A bênção assegura numerosos descendentes
e um futuro glorioso para as tribos representadas
pelos filhos de José. A bênção do v. 20 lembra a
promessa a Abraão (12,3b).
O último V. do capítulo 48 não é claro. Parece que
Jacó dá a José uma parte da terra de Canaâ. A palavra
traduzida como “Siquém”, referindo-se à cidade, tam­
bém significa “espádua” ou “encostas de montanha”.
Não está claro o que Jacó quer dizer, mas a própria
cidade mais tarde é associada às tribos de Efiaim e
Manassés. Se ele quer referir-se à cidade, a frase final
^resenta um problema pois, segundo o capitulo 34,
Jacó condenou a violência de Simeão e Levi em
Siquém. Talvez uma tradição variante da conquista de
Siquém forme a base deste versículo.
49,1-27 A bênção de Jacó. No capítulo 49, sob
a alegoria da bênção dada por Jacó a seus filhos no
leito de morte, encontramos uma coleção um tanto
fortuita de ditos sobre as características e o destino
futuro das doze tribos. Alguns deles são com certeza
antigos, mas o poema em si não pode anteceder o
século X a.C., pois fala da soberania da tribo de Judá,
que ocorreu nessa época. O texto está deturpado e
partes do poema são intraduzíveis, o que aumenta os
problemas de interpretação.
A tribo de Rúben logo desapareceu como tribo
independente. O dito dos w . 3-4 explica sua queda
da proeminência como castigo pelo crime de incesto
de Rúben (35,22). Por trás das maldições de Simeão
e Levi (w. 5-7) estão os acontecimentos registrados
no capítulo 34; a violência de sua vingança contra
Siquém pelo estupro de Diná é condenada. O texto
sobre Judá (w. 8-12) é, em parte, obscuro. O que
está claro é a alusão à futura soberania de Israel por
intermédio da tribo de Judá (v. 10). Da tribo de
Zabulon é dito apenas que habitava na beira dos
mares (v. 13). A tribo de Issacar é ridicularizada por
se deixar fascinar pela planície fértil, só para se
tomar escrava dos canaanitas (w. 14-15). Por meio
de um trocadilho (Dan vem de uma raiz hebraica
que significa “julgar”), a tribo de Dan é louvada por
estabelecer justiça em seu território (v. 16). A imagem
da serpente no v. 17 não tem o propósito de ser pe­
jorativa, mas lembra as vitórias das tribos pequenas
sobre inimigos poderosos. A tribo de Gad é carac­
terizada por seus êxitos na defesa contra assaltos de
bandos de nômades (v. 19). A tribo de Aser ocupou
a região fértil ao norte do monte Carmelo, conhecida
por seus ricos produtos (v. 20). O dito sobre Neftali
é obscuro (v. 21). A bênção para José (w. 22-27)
fica à parte do resto do poema por causa de sua
forma diferenciada. É a única bênção propriamente
dita e parece se originar de uma bênção de fertili­
dade muito antiga. Nos w. 25b-26a há paralelos
diretos com bênçãos canaanitas. A tribo de Benjamin
é louvada por seu poder (v. 28).
GÊNESIS 50
49,28-50,14 M orte e funerais de Jacó. É reto­
mado agora o relato sacerdotal da cena do leito de
morte de Jacó (49,1a), interrompido pela “bênção”
do capítulo 49. E paralelo ã versão javista do pedido
de Jacó para ser enterrado com seus ancestrais (47,
29-31). A conclusão do autor sacerdotal (50,12-13)
mostra os filhos de Jacó realizando seu último pe­
dido. Segundo essa tradição, Jacó foi enterrado na
caverna do campo de Makpelá, lugar do sepulta-
mento de Abraão e Sara.
A morte e os funerais de Jacó da fonte javista
encontram-se em 50,1-11.14. O embalsamamento
do corpo de Jacó não parece ter significado religioso,
mas é feito apenas para preservar o corpo durante
a longa viagem até Canaâ. O longo período de luto
(v. 3b) e a presença de importantes funcionários de
Faraó na procissão dos funerais (vv 7-9) sugerem
que Jacó recebeu um funeral real. Segundo o javista,
Jacó foi enterrado na Transjordânia (50,10-11).
50,15-21 José infunde confiança nos irmãos.
Os irmãos de José temem que ele se vingue deles,
agora que seu pai está morto. A cena dá ao eloísta
a oportunidade de reiterar a teologia que fundamen­
ta a história de José, antes de encerrar sua narra­
tiva. O que eles pretenderam como mal. Deus trans­
formou em bem. José insiste que o que fizeram foi
ofuscado e redimido pela vontade divina salvadora.
Eles foram apenas instrumentos no plano de Deus
para a salvação de Israel.
50,22-26 M orte de José. No epílogo, os últi­
mos dias de José são examinados pelo eloísta. A
adoção dos filhos de Makir por José dá uma base
para mais tarde essa tribo participar da confedera­
ção israelita (Nm 32,39-40; Jz 5,14). As últimas
palavras de José sobre a terra da promessa são sig­
nificativas. Indicam que, embora essa história termi­
ne em terra estrangeira, a promessa feita por Deus
a Abraão, Isaac e Jacó será cumprida. O fim do Gê­
nesis indica o destino de Israel: serão o povo liber­
tado do S enhor.
CONCLUSÃO
No Livro do Gênesis, passamos do momento
da criação por uma história de pecado à vocação
de Abraão, de Isaac, de Jacó e, por fim, a José e
as tribos no Egito. Nestas histórias, aprendemos
sobre o relacionamento de Deus com o mundo e
com Israel. Aprendemos sobre Deus como criador,
como juiz, como redentor. Encontramos um Deus
que aceita a fraqueza da humanidade e continua a
amar, um Deus que guia e orienta, um Deus capaz
de do mal tirar o bem. O Gênesis é só o começo
da história, o início dos atos de Deus. A história
continua, não só ao longo do Antigo e do Novo Tes­
tamentos, mas também em nossas vidas e em nosso
mundo.
89
 EXODO
John F Craghan
INTRODUÇÃO
o sentido do Exodo
Êxodo ou saída do Egito está no pró­
prio centro da experiência de fé de Is­
rael. O Deus que agiu em prol de Israel
não era uma divindade insignificante do
antigo Oriente Próximo isolada da realidade e relega­
da ao reino do tempo mítico. Ao contrário, o Deus
de Israel entrou dramaticamente no palco do tempo
real e das pessoas reais, como expressa a introdução
do decálogo: “Eu sou o S enhor, teu Deus, que te fiz
sair da terra do Egito, da casa da servidão” (Ex 20,2).
Mencionar o nome YHWH significa evocar a ima­
gem de uma divindade totalmente engajada. Pronun­
ciar esse nome é estabelecer uma identidade. O
S enhor sem o Êxodo não é S enhor nenhum!
O Êxodo identifica não só o S enhor, mas tam­
bém Israel. É precisamente no Êxodo que Israel
surge como o povo de Deus. Esse acontecimento
sugere que os ex-escravos egípcios eram diferentes
de todos os seus contemporâneos. Com a Aliança
do Sinai, o Êxodo os diferencia como o povo do
S enhor. Portanto, a saída foi um processo de sele­
ção. O autor de Ex 6,7 expressa de maneira sucinta
esse processo nestas palavras: “Tomar-vos-ei como
meu povo, e para vós eu serei Deus”.
O livro biblico que preserva essa dupla identi­
dade é o Livro do Êxodo. É o documento bíblico
por excelência para revelar as raízes de Israel. Israel
percebeu que essas raízes estavam fora da Terra
Prometida. Entretanto, é a glória dos autores de
Israel que suas origens pudessem ser apresenta­
das dessa maneira poderosa, mas profunda. O Li­
vro do Êxodo não é apenas o registro dos itine­
rários de Israel. Ê seu documento de identidade,
0 registro de interação humana e graça divina, de
sucessos e fracassos humanos e de ajuda e perdão
divinos.
A experiência preservada no Livro do Êxodo
nunca foi sujeita a conflitos de gerações. Ao propor­
cionar identidade, esse livro singular não sufocou o
crescimento. Assim, Israel pôde aplicar a memória
da primeira saída a situações de sua história, dife­
rentes, mas arriscadas. No século VI a.C., o Segun­
do Isaías relatou a volta da Babilônia a Jerusalém
como um segundo Êxodo: “No deserto abri um
caminho para o Senhor, nivelai na estepe uma estra­
da para o nosso Deus” (Is 40,3). No século II a.C.,
o autor de Judite descreveu a derrota de outra amea­
ça à fé de Israel (o helenismo, na forma de Holo-
femes e suas tropas). Entre outras coisas, descreveu
apropriadamente a heroína como se fosse Israel no
mar dos Juncos: “Pois o Senhor é um Deus que
esmaga as guerras, que instala seus acampamentos
no meio do povo, ele arrancou-me à mão dos que
me perseguiam” (Jt 16,2). No século I a.C., o autor
do Livro da Sabedoria procurou resolver o problema
do julgamento dos justos e dos maus no Egito metro­
politano. Adaptou a experiência do Êxodo e con­
cluiu: “Assim, as mesmas realidades que tinham ser­
vido para castigar seus inimigos [os egípcios] toma­
ram-se para eles [os israelitas] um benefício em sua
aflição” (Sb 11,5).
Nenhum relato histórico
Os registros egípcios são tão silenciosos quanto
a Esfinge a respeito desse acontecimento funda­
mental na experiência de fé de Israel, o que não é
motivo de espanto. Os textos egípcios visam à maior
honra e glória do faraó. As negociações de Moisés
com o chefe do Egito, que estava em desvantagem
nas pragas, não contribuiríam para o impulso da
historiografia egípcia. Além disso, segundo um
ponto de vista amplamente aceito, os envolvidos no
Êxodo eram um fenômeno típico no antigo Oriente
Próximo.
Os registros egípcios falam de 'apiru, enquan­
to os escritos em acádico (língua semítica oriental)
referem-se a habiru. Estes ‘apini/habini eram mer­
cenários. Também sabemos que esses beduínos for­
mavam uma força de trabalho para as campanhas
egípcias de construção.
A palavra “hebreu” deriva de habiru. Entretan­
to, não podemos esquecer que habiru é original­
mente uma palavra sociológica, não étnica. É sig­
nificativo que “hebreu” ocorra no livro do Êxodo,
em especial quando se trata da estada no Egito e 91
 EXODO
da opressão egípcia (veja 2,11). É provável que
tenha havido um processo de assimilação: os ances­
trais dos israelitas que foram livremente para o Egito
mais tarde assimilaram-se a outros ‘apirti/habini.
Como esses ancestrais eram pastores seminômades,
seria natural que se ressentissem da mudança em
seu estilo de vida peja qual foram reduzidos a uma
força de trabalho escravo.
Com o passar dos séculos, houve não só diver­
sas chegadas ao Egito, como também diversas par­
tidas. O texto em si reflete uma percepção de várias
rotas diferentes. Entretanto, na ótica privilegiada
da experiência de fé de Israel, há apenas o Êxodo,
a saída guiada por Moisés que também incluiu a
teofania no Sinai. É provável que esse grupo fosse
relativamente pequeno. Como o evento era recitado
com devoção e estudado pelos teólogos de Israel,
aos poucos assumiu proporções épicas. O pequeno
grupo cresceu em tamanho e importância. Ao mes­
mo tempo não era apenas questão de aumento ari-
mético. Era também questão de percepção de fé.
Todo o Israel via-se representado no grupo pe­
queno mas crescente que conseguira libertar-se das
olarias de Faraó.
Cenário do Êxodo
Embora o relato bíblico não dê nenhum infor­
me histórico no sentido moderno do termo, há algu­
mas indicações do cenário. Em sua maioria, os
estudiosos fixam o Êxodo no século XIII a.C. Se­
gundo essas autoridades, o faraó que oprimiu os
israelitas foi Ramsés II, o grande construtor do
Império Novo, que reinou de 1290 a 1224 a.C.
Uma das razões para essa opinião é o testemunho
de Ex 1,11 que se refere à cidade-entreposto de
Ramsés. Sabemos que Ramsés II estabeleceu a
capital no extremo nordeste do delta do Nilo e que
a expressão “cidade de Ramsés” não foi usada
depois de 1100 a.C.
Embora haja quem distinga Ramsés II, o opres­
sor dos israelitas, de seu sucessor, o faraó do Êxodo,
com base em Ex 2,23, autores fidedignos ainda
identificam Ramsés II como o opressor e também
0 faraó do Êxodo. Segundo esse ponto de vista, o
Êxodo teria ocorrido por volta de 1250 a.C., na
região a nordeste do Cairo atual e a oeste do canal
de Suez. Ao mesmo tempo, precisamos não nos
esquecer de mencionar os estudos em andamento
do Êxodo e da data da Conquista. Um deles por
exemplo, sugere que situemos esses acontecimentos
no século XV a.C.
O tipo de literatura
O livro do Êxodo é literatura popular. Como
mencionamos acima, não é um sóbrio tratado histó­
rico científico. Aliás, é a mistura de diferentes tipos
literários para corresponder às percepções e atitudes
básicas de Israel. N as pragas há evidências claras
92 de embelezamento lendário. N a travessia do mar
dos Juncos, há toda a dramatização de um relato
épico. Nos preceitos para a Páscoa, os efeitos da li­
turgia são óbvios. No Código da Aliança (20, 22-23,
19) e na legislação sacerdotal (25-31; 35-40), está
em ação a mão legal. Em 15,lb-18, está presente
o cancionista. A variedade de tipos literários nessa
literatura popular dá testemunho dos muitos esfor­
ços humanos para enfatizar uma experiência fun­
damental. Israel fez isso à sua maneira e o leitor
deve estar disposto a aceitar esse fato e, assim, se
beneficiar.
Por causa da centralidade do Êxodo para a fé
israelita, não devemos nos surpreender ao encontrar
teólogos em ação. Em geral, os exegetas mencionam
pelo menos três teólogos na composição dessa obra.
O primeiro é o javista (J), que escreve no século X
a.C., no auge do reino davídico-salomônico. O se­
gundo é o eloísta (E), que reflete um período de
tumulto e sincretismo religiosos no século VIII ou
IX a.C. O terceiro é o autor sacerdotal (P), que luta
para apresentar uma imagem de esperança durante
a catástrofe do Exílio no século VI a.C. Seria errado
para o leitor tentar harmonizar essas opiniões às
vezes conflitantes. Ao contrário, o leitor deve deixar
a esses teólogos a liberdade necessária a suas in­
terpretações. Tal atitude reconhece que esses auto­
res julgaram o passado à luz do seu presente e com
vistas às necessidades futuras de Israel. Como o co­
mentário mostrará, esses autores tinham seus pre­
conceitos — a inspiração não neutraliza a tendên­
cia humana a impor a própria opinião. Em última
instância, precisamos ser tão abertos quanto a Bíblia,
que canonizou não apenas uma, mas, na verdade,
diversas linhas partidárias.
Novos êxodos — novas libertações
A história do Êxodo continua a exercer impac­
to hoje, em especial na América Latina, berço da
teologia da libertação. Pata os teólogos da liberta­
ção, a tarefa principal é reler o texto sob uma nova
luz, isto é, tomando por pano de fundo a exploração
que caracterizou tão grande parte da história latino­
-americana. Em sua visão, a história antiga da ser­
vidão e da subseqüente libertação de Israel é mais
oportuna do que nunca. Mostra que a libertação é
um processo, não um resultado adquirido. É preocu­
pação humana constante para revelar a manipulação
de nossos iguais e apresentar os meios para a genuí­
na transformação humana.
A história do Êxodo também salienta a neces­
sidade do surgimento de novos profetas à maneira
de Moisés. Enfatiza a tarefa de tais profetas para
fazer as pessoas se conscientizarem do verdadeiro
mal de que sofrem. Tais profetas, portanto, precisam
expressar a ausência da genuína liberdade que a
sociedade moderna incentiva com tanto entusiasmo.
Há novos faraós cujas pretensões a divindade pre­
cisam ser desmascaradas. Ao mesmo tempo, esses
profetas devem anunciar uma palavra de esperança.

São chamados não só a conduzir seu povo para fora
das olarias, mas também a fortalecê-lo para a possi­
bilidade radical de uma existência genuína na qual
a miséria seja reconhecida como mal e a esperança
COA^NTARIO
PARTE I: O ÊXODO DO EGITO
Ex 1,1-15,21
A primeira parte do Êxodo apresenta tanto os
antecedentes da partida como o verdadeiro início
da saída. O redator final do livro (que escreveu
talvez por volta de 400 a.C.) trabalhou em harmo­
nia com a obra de suas principais fontes (JEP) e
também com algumas tradições independentes. No
intuito de manter a fidelidade a essas fontes e tra­
dições, este redator final preferiu não uniformizar
diversas repetições e ineonsistências. Contudo, al­
cançou certa unidade, de modo que, apesar dessas
variações, a narrativa se apresenta fluente.
Nessa primeira parte de sua obra, o redator final
procura responder às seguintes perguntas; O que pro­
vocou 0 sofrimento pelo qual passaram os israelitas
no Egito? Quais são as credenciais do líder? Como
esse líder respondeu ao chamado divino? De que
maneiras o líder tentou lidar com Faraó? Qual foi o
catalisador final que provocou a saída? Como Israel
deve continuar a celebrar essa saída? O que aconteceu
quando Israel saiu rumo ao mar dos Juncos? Como
Deus interveio no mar dos Juncos?
1,1-7 O crescimento de Israel. Os anteceden­
tes dessa introdução estão em Gn 46,1-4, passagem
que resume o passado, referindo-se aos patriarcas
(Isaac e Jacó/Israel). Também prevê o futuro: a
saber, Israel se tomará uma grande nação no Egito
e o próprio Deus os conduzirá para fora. Ao mes­
mo tempo, essa passagem cria tensão e levanta um
problema. O que acontecerá ao povo de Deus quan­
do sair do Egito? Mas, de maneira mais fundamen­
tal, como um gmpo tão pequeno pode se tomar uma
grande nação?
P é o autor de 1,1-7. Genealogias e listas são um
expediente favorito desse autor (veja Gn 5,1; 6,9).
Além disso, a linguagem do v. 7 reflete o vocabu­
lário de P (“frutificaram”, “aumentaram”, “multipli­
caram”). É a realização da ordem em Gn 1,28; “Sede
fecundos e prolíficos, enchei a terra...”. Pensando
no Exílio, P pretende que essa passagem ofereça
esperança e encorajamento ao desesperançado povo
de Deus que está tentado a desdenhar a Terra Pro­
metida e não voltar do Exílio (veja Nm 14,1-3.5-
10.26-38). Na posição atual, essa passagem explica
como 0 pequeno grapo se desenvolveu em número
tão significativo.
1,8-14 A opressão do povo de Deus. Essa pas­
sagem consiste em J (vv. 8-11) e P (vv. 13-14). P
ÊXODO 1
reconhecida como alcançável. Assim, Moisés trans­
cende as limitações do século XIII a.C., fazendo
com que a Palavra de Deus tenha um impacto sem­
pre novo.
constata sem desvios o resultado da fertilidade de
Israel: seu rebaixamento ao trabalho escravo na
constmção. Embora essa fosse uma política lógica
para o estado autocrático egípcio (compare Gn
47,13-26), era totalmente contrária à tradição de
liberdade de Israel. Entretanto, J não se contenta em
registrar a atitude usual do Egito. Salienta a ameaça
que Israel representava e os resultados opostos da
opressão egípcia.
J menciona a nova política do governo egípcio.
Com o surgimento de um novo rei (que a tradição
prefere deixar sem nome), há uma nova maneira de
lidar com os prolíficos israelitas. Assim, a opressão
relaciona-se diretamente com a ameaça política que
esses números subentendem. Temos razão em per­
guntar se a imposição do trabalho escravo é real­
mente calculada para conseguir a redução da popu­
lação israelita. Entretanto, com certa ironia, J obser­
va que o plano egípcio foi contraprodutivo. Em vez
de limitar a população, essa política apenas conse­
guiu incentivar seu crescimento.
1,15-22 Â extinção do povo de Deus. Em ge­
ral, E é considerado o autor dessa duplicata, isto é,
a repetição de substancialmente o mesmo relato de
maneira um pouco diferente. (Aqui o autor prefere
“Deus” ['elohiml a “o S enhor” ÍYHWH) de J; ele
também designa o soberano político de “o rei do
Egito”, enquanto J opta por “Faraó”). Aqui a manei­
ra de derrotar o povo de Deus não é pela opressão
— o trabalho escravo da construção — , mas pela
extinção — a morte de todos os bebês do sexo mas­
culino. Embora a extinção parecesse ser mais apta
do que a opressão para os propósitos de controle
populacional, vai contra a conveniência política.
Não é provável que os soberanos esgotem sua for­
ça de trabalho e, assim, comprometam os programas
de construção, exterminando o suprimento de tra­
balhadores. Entretanto, nessa literatura popular, isso
proporciona um maravilhoso cenário para solucio­
nar a horrível situação. O redator final liga o relato
de E com o nascimento do herói descrito por J no
capítulo seguinte.
Há outras indicações dessa literatura popular.
Embora a taxa de natalidade seja alta, são neces­
sárias apenas duas parteiras para ajudar os partos.
Embora os egípcios julgassem que o rei era divino
e portanto permanecesse separado das massas do
povo, aqui duas parteiras hebréias têm acesso direto
ao divino Faraó. Além disso, a explicação enganosa
que dão para a crescente população (v. 19) e, por- 93
 ÊXODO 3
tanto, sua capacidade para superar o sagaz monarca
egípcio estão também em harmonia com o caráter
da literatura popular.
O episódio reflete o que muitos críticos consi­
deram um tema do autor E, o temor de Deus (veja
Gn 20,11; Ex 20,20). É essa ênfase no temor de
Deus (v. 17) que leva à desobediência civil. Mas a
desobediência civil numa causa tão justa não fica
sem recompensa. Não só a nação continua a au­
mentar e se multiplicar (v. 20) como o mesmo acon­
tece com a descendência das duas parteiras (v. 21).
Contudo, o capítulo se encerra com uma nota si­
nistra que prepara o cenário para o nascimento do
herói.
2,1-10 O nascimento do herói. Há uma pro­
pensão natural para saber algo sobre o nascimento
e a juventude do herói (compare as narrativas da
infância de Jesus de orientação teológica em Mt 1-2
e Lc 1-2). Os humanos buscam encontrar sinais
extraordinários que marquem a pessoa como sobre­
-humana desde o momento do nascimento. Por exem­
plo, Hércules estrangula uma cobra no berço. Aqui,
J adere às necessidades de seu público.
O antigo Oriente Próximo fornece alguns ele­
mentos análogos. Uma lenda descreve Sargon, o
grande rei semítico que reinou no século XXIV
a.C., desta maneira: Sua mãe colocou-o em uma
cesta de juncos calafetada com piche e lançou-o ao
rio, onde ele flutuou até ser retirado. Há também
um relato de adoção em que um menino é encontra­
do e entregue a uma pajem paga para cuidar dele
durante três anos, findos os quais o menino é ado­
tado e educado como escriba. Não é improvável
que o relato de J também seja inspirado por essa
narrativa de adoção.
O redator final sabiamente decidiu ligar essa
passagem ao relato de E sobre a extinção e, assim,
preparar a lenda de Moisés. Esse arranjo faz com
que o vilão. Faraó, seja apanhado na própria arma­
dilha. Não é um qualquer que liberta o menino —
é a filha de Faraó!
Moisés é nome egípcio que significa “nasceu”.
Em harmonia com as sensibilidades israelitas, é
omitido o nome do deus egípcio. (Compare Tutmés,
que significa “o deus Tut nasceu”.) Essa forma de
nome egípcio era dada a crianças nascidas no ani­
versário do deus. Há outras evidências da forma­
ção egípcia de Moisés nos nomes egípcios de
membros de sua família (veja Merari, em 6,16 e
Pinhás, em 6,25). É também digno de nota que, em
2,19, as filhas de Reuel refiram-se ao herói como
“um egípcio”. Entretanto, além dessas notas, não
há outras informações sobre os antecedentes de
Moisés. Aliás, o interesse do público israelita esta­
va em outra parte.
2,11-22 A fuga para Midian. J, o autor respon­
sável por esse episódio, esforça-se para mostrar
Moisés como alguém interessado em seu povo. Tra-
94 ta de prenunciar ou antecipar um problema que
aparecerá mais tarde. O problema é a pergunta feita
pelo hebreu no v. 14: “Quem te estabeleceu como
chefe e juiz sobre nós?” É precisamente essa ques­
tão de credenciais que em breve Moisés terá de en­
frentar. A fuga de Moisés para Midian também
prenuncia ou antecipa outros acontecimentos. Assim
como Moisés precisa fugir para o deserto, também
o povo de Israel se dirigirá ao deserto. Assim como
Moisés encontra Deus na montanha (3,1), também
o povo de Israel experimentará Deus no monte
(19,18).
A terra de Midian, lar temporário de Moisés, é
uma região deserta na península do Sinai. Em tra­
dições mais tardias (veja Nm 25,6-9; Jz 6,1-7,25)
esses midianitas habitantes do deserto se tornarão
inimigos implacáveis de Israel. Entretanto, nessa tra­
dição, os midianitas e os que estão ligados a Moisés
são tribos aparentadas (Reuel é nome tribal, não
pessoal.) O capítulo 18 mosúará como Moisés apren­
deu muitas coisas práticas com estes midianitas.
J apresenta Moisés como homem que teve uma
formação cheia de altos e baixos. Embora goste de
histórias de poços, por exemplo Rebeca (Gn 24,1 ss.)
e Raquel (Gn 29,1 ss.), J precisa apresentar esta
jovem-do-poço, Siporá, como não-israelita. Assim,
Moisés é um israelita da tribo de Levi (2,1), criado
como egípcio, mas que foge de seu lar egípcio só
para encontrar não-israelitas, entre os quais encon­
tra uma esposa. Dificilmente essas são as melhores
credenciais. Por isso, permanece a pergunta: com
tais credenciais, Moisés conseguirá acabar com a
opressâo/extinção no Egito?
2,23-25 O Êxodo como liturgia de lamentação.
Esta descrição não é apenas uma nota passageira na
narrativa como um todo. O redator final combinou o
longo período (v. 23a — provavelmente de E) com
o estado miserável do povo (vv. 23b-25 — uma
passagem P). Este estado é apresentado em lingua­
gem de lamentação (“gemeram... e clamaram”).
(Observe a repetição dessa linguagem em 3,7.9; 6,5.)
O verbo “clamar” é a expressão típica dos pobres e
desprivilegiados; é um grito que Deus não pode igno­
rar. O lamento é ligado à Aliança (v. 25). Na teolo­
gia da Aliança, o problema do povo toma-se neces­
sariamente problema de Deus; a frustração do povo
toma-se necessariamente frustração de Deus. A liber­
tação sempre começa pelo reconhecimento da situa­
ção difícil dos pobres.
3,1-6 A sarça ardente. Essa passagem é uma
combinação de J e E, embora seja mais J. (E está
presente em partes do v. 1, por exemplo, “à monta­
nha de Deus, ao Horeb”, e no v. 4b.) Essa combi­
nação de fontes ficará bem evidente no restante do
capítulo 3.) Também devemos notar que aqui (v. 1)
o sogro de Moisés é litrô, enquanto em 2,18 é Reuel.
Ao contrário de Reuel, litrô é nome pessoal. (Para
outras dificuldades, veja Jz 1,16; 4,11.)
É provável que J tenha escolhido a palavra
“sarça” (em hebraico s^neh) a fim de ligar essa

passagem com a montanha do Senhor (em hebraico
sinai). A sarça ardente é, assim, associada ao fogo
da teofania do Sinai (veja 19,18). Portanto, desde
0 início, há estreita associação entre o Êxodo e o
Sinai. Para J, o que emerge dessa passagem é a
dupla dimensão de reverência e continuidade his­
tórica. A reverência se expressa no gesto de Moisés
tirar as sandálias por causa da santidade intrínseca
do encontro com o S enhor — a presença do Senhor
santifica o solo. Por conseguinte, Moisés cobre o
rosto. A continuidade histórica é articulada no v. 6.
O Deus que fala a Moisés tem estado atuante atra­
vés dos séculos em sua preocupação por este povo.
O Deus de Moisés é também o Deus dos patriarcas
(veja também 3,16).
3,7-15 A missão de Moisés. Essa passagem
está intimamente ligada à revelação divina na sar­
ça ardente. A experiência de Deus é, assim, relacio­
nada com a missão de Moisés em Israel. Os teólo­
gos de Israel.refletiam a tradição que considerava
Moisés um profeta. Ele era, portanto, alguém que
falava ao povo de Israel em nome de Deus — era
0 porta-voz de Deus (veja Dt 18,15-20). Fiéis à
percepção da missão profética de Moisés, J e E
empregam o gênero literário de narrativa vocacio­
nal. (Veja Jz 6,11-21; Is 6,1-13.) Este não se des­
tina a ser um relato minucioso do que aconteceu
em Midian. Em vez disso, tenta comunicar a um
público determinado o sentido da escolha divina,
sem excluir um tipo de experiência original. A nar­
rativa da vocação baseia-se na necessidade humana
de sinais e reafirmação.
J e E oferecem versões um tanto diferentes da
vocação de Moisés. Entretanto, a estrutura básica
é a mesma: a) resposta divina a oração que pres­
supõe determinada dificuldade: 3,7 (J), 3,9 (E); b)
promessa divina de salvar: 3,8 (J), 3,10 (E); c) a
missão: 3,16-17 (J), 3,9 (E); d) objeção de Moisés:
4,1 (J), 3,11 (E); e) a objeção é superada por um
sinal: 4,1-9 (J), 3,12 (E); f) segunda objeção: 4,10
(J), 3,13 (E); g) resposta divina final ou aparente­
mente final : 4,13-16 (J), 3,14-15 (E), 4,7 (E?).
Ambos, J (3,7) e E (3,9), começam pela men­
ção da situação difícil do povo em linguagem de
lamentação ("clamar, clamor”). Ao desenvolver a
promessa divina de salvar, J e E salientam dimen­
sões diferentes da missão de Moisés. Em 3,8 (J), é
0 S enhor que pretende libertar os israelitas, en­
quanto em ^ 1 6 (J) Moisés é encarregado de falar
com o povo. Em 3,10 (E) Moisés é enviado espe­
cificamente para tirar os israelitas do Egito. Embora
0 verbo “enviar” (vv. 10.12.13) designe o profeta
como enviado (veja Jr 1,7; 26,12.15), E parece
atribuir a Moisés um papel muito mais importante.
J enfatiza não só a libertação de Israel dos
egípcios, mas também o objetivo dessa intervenção:
a entrada na Terra Prometida. Essa terra mana leite
e mel (v. 8) — expressão emprestada da mitologia
para descrever a terra como verdadeiro paraíso ter­
EX0D0 3
restre. A referência aos canaanitas, hetitas e outros
(w . 8.17) concerne aos habitantes pré-israelitas da
terra (para uma enumeração de sete povos, veja Gn
15,20-21; Dt 7,1). O Êxodo, portanto, não é apenas
uma saída — é também uma subida, a saber, à terra
antes habitada por essas nações.
As provas exigidas por Moisés na tradição E
são significativas. No v. 12, o sinal para fornecer a
Moisés credenciais perante Faraó e Israel é que o
povo mais tarde se reunirá para cultuar a Deus nessa
mesma montanha. Isso é uma irregularidade na narra­
tiva vocacional, pois sinais ocorrem imediatamente,
não em algum momento futuro. Talvez a concisão
da tradição E seja a razão dessa anomalia.
Moisés ainda precisa de outra prova para falar
aos israelitas (v. 13). Na tradição E, essa prova é a
revelação do nome divino (vv. 14-15). Deve ser
mencionado que, para J, essa revelação do nome
YFIWH não exigiu cenário especial. Desde o início
de sua narrativa (Gn 2,4b), J usa o nome pessoal
YHWH e a partir de Gn 4,26 presume que esse
nome é conhecido dos homens. Até esta passagem
no capítulo 3, E simplesmente usou a palavra geral
“Deus” ( 'elohim em hebraico — por isso a distin­
ção dos nomes divinos logo tomou-se critério fun­
damental para separar as fontes J e E). Como po­
deriamos imaginar, essa passagem tem importân­
cia teológica fundamental no sistema de E. (Para o
uso dos nomes divinos por P, veja 6,2.)
Para Israel e também para o antigo Oriente Pró­
ximo, os nomes indicavam existência real. Uma coisa
era realidade quando seu nome era conhecido. O nome ,
subentendia uma dimensão de intimidade. Saber o
nome de alguém era estar em termos pessoais com
ele. Entretanto, quando chegamos ao nome pessoal
do Deus de Israel, há duas questões distintas.
A primeira questão é a etimologia de S enhor
(na verdade, o texto hebraico fornece apenas qua­
tro consoantes [YHWH] e o acréscimo das vogais
a e e já é uma tentativa de interpretação). As solu­
ções para esse problema etimológico são em grande
número e nenhuma solução predomina. Uma con­
cepção popular é que o nome divino é, na verdade,
forma causativa do verbo “ser”. A segunda questão
é o sentido que o autor (E) pretendeu dar à passa­
gem. Aqui pisamos em terreno mais firme, o pró­
prio contexto.
O v. 15 (“O S enhor... enviou...”) é a verdadeira
resposta ao v. 13, pois dá o nome que Moisés pediu.
O V. 14a (“Eu sou aquele que serei”) explica o nome
em termos de existência: a existência do S enhor
significa participação e envolvimento. Segundo o v.
10, 0 nome significa conduzir o povo para fora do
Egito; segundo o v. 12, significa ajudar Moisés. O
v. 14b (“Eu sou me enviou a vós”) liga o v. 13 (“o
Deus de vossos pais me enviou a vós”) ao v. 15 (“O
Senhor... enviou-me a vós”). O S enhor comprome­
te-se a agir em benefício do povo. 95
 ÊXODO 3
3,16-22 Expansão da missão. Nessa passa­
gem de J, Moisés é primeiro enearregado de reunir
os anciãos (v. 16) e, em seguida, de comunicar o
descontentamento divino com a opressão dos israe­
litas. Essa missão é, então, expandida nos w . 18-
22. Não só Moisés, mas também os anciãos devem
abordar Faraó (v. 18). Essa expansão não é um pro­
longamento desnecessário. O autor está preparando
o leitor para um duplo êxodo: um êxodo-fuga e um
êxodo-expulsão. No v. 19, Faraó não permitirá que
0 povo parta, a não ser que seja obrigado; por isso o
povo será forçado a fugir. Nos vv. 21-22, o S enhor
fará os israelitas conquistarem o favor dos egípcios.
Na verdade, as mulheres israelitas até receberão
como presentes jóias e vestidos. O Senhor arran­
jará as coisas para que os israelitas sejam, final­
mente, expulsos (veja 12,35-36).
4,1-9 Objeção de Moisés e sinais subseqiien-
tes. Como E em 3,11-12, J tem sua tradição de
objeção (v. 1) e sinais (w. 2-9). Para que Moisés
possa ter credibilidade diante de seu povo e, assim,
comprovar suas alegações, há necessidade de sinais.
Os sinais proporcionados são um bastão ou um
tipo de varinha de condão (w . 2-4) e um estrata­
gema para a mão ficar com lepra (vv. 6-8). É inte­
ressante notar que, mais tarde, P usará em um con­
texto diferente a tradição do bastão transformado
em serpente (7,9-12). De qualquer modo, os sinais
mencionados aqui são posteriormente bem-suce­
didos (4,31) e estabelecem o direito de Moisés falar
em nome do S enhor.
4,10-17 Mais objeções, respostas e sinais. J
realça a enormidade da tarefa dada a Moisés, for­
mulando uma segunda objeção. Moisés agora afir­
ma não possuir os meios para relações públicas
porque não tem eloqüência (v. 10). A resposta do
Senhor eoncentra-se na onipotência divina (v. 11).
O Senhor promete proporcionar duas coisas: a)
ajuda na expressão oral e b) assistência no conteúdo
(v. 12). Apesar dessas concessões, a narrativa vo­
cacional de J continua com um último esforço da
parte de Moisés para fugir a sua vocação e um
compromisso final por parte dq Senhor, para apoiar
0 candidato vacilante. Aqui há certa audácia, mas
uma audácia em harmonia com a propensão huma­
na de escapar à responsabilidade e passá-la a outrem
(v. 13). A reação do Senhor é a cólera, mas, de ma­
neira surpreendente, é logo reprimida, de modo que
Aarão se toma profeta de Moisés (w. 14-15). Assim,
Moisés atuará à maneira do S enhor e Aarão será o
porta-voz divino (v. 16; veja Dt 18,18; Jr 1,9).
A respeito do bastão (v. 17), inclinamo-nos
naturalmente a pensar na tradição J nos vv. 2-4,
onde 0 bastão é um sinal dado a Moisés para le­
gitimar sua missão e fazer o povo se dispor a acei­
tá-lo. Aqui, entretanto, o bastão está ligado a sinais.
Talvez originalmente fizesse parte da tradição E,
96 na qual faltam sinais imediatos (veja 3,12).
4,18-23 A volta de Moisés ao Egito. Com
exceção dos vv. 18 e 20b, esta passagem é de J.
Segundo E, Moisés fez sozinho a viagem de volta
ao Egito (v. 18; veja 18,5), mas segundo J, Moisés
fez essa viagem em companhia da mulher e dos
filhos (v. 20a). (A presença da mulher e dos filhos
de Moisés será importante para o rito da eircunci-
são nos w . 24-27.) Devido à relutância de Faraó
em deixar o povo ir (a tradição êxodo-fuga), J faz
Moisés exercer a missão de profeta nos vv. 22-23;
a) missão (“Então dirás a Faraó”); b) fórmula do
mensageiro (“Assim diz o S enhor”); c) mensagem
(“Meu filho primogênito é Israel”). A recusa de
Faraó em prestar atenção à palavra profética ante­
cipa a morte dos primogênitos na décima praga
(veja 11,5).
4,24-26 A circuncisão. A passagem J, na qual
o S enhor tenta matar Moisés, parece ligada à nar­
rativa de J em Gn 32,24-32, luta de Jacó luta com
o S enhor. Em ambos os casos, o S enhor aparece
de repente durante a noite como um poder diabólico
ameaçador. Jacó está a caminho da terra da promes­
sa, mas deve primeiro confrontar seu hostil irmão
Esaú. Também Moisés recebeu uma promessa, mas
precisa primeiro enfrentar o hostil Faraó.
Os egípcios não praticavam a circuncisão, en­
quanto, aparentemente, os hebreus a praticavam.
Embora alguns vejam essa passagem como um ato
apotropaico por ocasião de um casamento — isto
é, destinado a afastar todos os perigos nessa oca­
sião — , é ao menos concebível que a falta de cir­
cuncisão de Moisés tenha provocado uma infec­
ção. A ação de Siporá teria então salvo sua vida e
dado origem à expressão “esposo-de-sangue”. De
toda maneira, J faz Siporá circuncidar o marido por­
que, considerando-se a prática israelita, não ficava
bem o grande líder ser incircunciso.
4,27-31 E ncontro en tre Moisés e A arão.
Aarão é um personagem um tanto enigmático, mas
essa tradição primitiva (J) parece constrangida a
associá-lo com Moisés. No v. 30, é Aarão que rea­
liza os sinais, mas segundo a tradição J em 4,2-9
é Moisés quem deve realizá-los. Contudo, o resul­
tado é positivo. No V . 31, o povo acredita e, alegre,
ajoelha-se e prostema-se. Entretanto, J sente-se
compelido a expressar a inconstância ou falta de
verdadeira fé desse povo, pois, na passagem se­
guinte, ele murmura. Para J, o povo acredita ver­
dadeiramente no S enhor e em seu servo Moisés
apenas em resultado do evento do mar dos Juncos
(veja 14,31).
5,1-6,1 Prim eira audiência com Faraó. Ago­
ra que os israelitas ouviram e aceitaram a mensa­
gem do S enhor apresentada por Moisés e Aarão,
está na hora de fazer os chefes se encontrarem
com Faraó, para negociar a saída deles do Egito.
Esta narrativa bem construída consiste em seis
cenas, cinco das quais se iniciam com um verbo de
ação.

A primeira cena (5,1-5) começa contando que
“Moisés e Aarãoforam". O v. 2 apresenta uma ques­
tão que o resto da narrativa desenvolverá: Quem é
o Senhor? A viagem de três dias no deserto está
provavelmente ligada à tradição do êxodo-fuga. Se­
gundo a tradição preservada nos capítulos 15-19,
há apenas três dias ou acampamentos entre o Egito
e o Sinai (15,27; 16,1; 17,1; 19,2), Esta passagem
apresenta uma atitude realista em relação àquilo
que é uma força de trabalho: não deixar ir embora
os escravos, mas mantê-los no trabalho. (Segundo
E, em 1,15-22, pelo contrário. Faraó projeta a extin­
ção do povo.)
A segunda cena (5,6-9) mostra Faraó falando
aos chefes de corvéia e aos escribas do povo. (Essa
distribuição de trabalho estrangeiro, segundo a qual
os chefes de corvéia são egípcios e os escribas,
membros do povo escravizado, está historicamente
correta.) Ao contrário das outras passagens, aqui
não há verbo de ação, pois não podemos supor que
0 divino Faraó vá até seus subalternos. Os tijolos
em questão são de adobe — tijolos não queimados,
secados ao sol.
A terceira cena (5,10-14) começa com um verbo
de ação (“Os chefes da corvéia e os escribas do povo
saíram " ) e junta os chefes da corvéia, os escribas
do povo e o povo. O povo é obrigado a procurar pa­
lha, enquanto os escribas são espancados porque o
povo não produz.
A quarta cena (5,15-19) mostra os escribas he-
breus diante de Faraó. A literatura popular permite,
e na verdade às vezes exige, a interação do divino
Faraó com tais subalternos, nesse caso os deprimi­
dos escribas do povo. Mais uma vez, a passagem
se inicia com um verbo de ação (“Os escribas dos
filhos de Israel foram ") . Entretanto, o resultado do
encontro não é o que os escribas esperavam. A
quantidade de tijolos permanece a mesma, mas ain­
da sem o fornecimento da palha!
A quinta cena (5,20-21) concentra-se nos escri­
bas e em Moisés e Aarão. Mais uma vez há um ver­
bo de ação a indicar o encontro dos escribas com os
dois chefes {“precipitaram-se sobre..i'). O encontro
não acidental não é de bom augúrio para os dois
chefes, que recebem uma maldição: “Que o S enhor
constate e que ele julgue”. O início do plano gran­
dioso de Moisés tem pouca possibilidade de ser oti­
mista e o futuro parece realmente sombrio.
A sexta cena (5,22-6,1) traz Moisés apelando ao
Senhor. O verbo de ação no v. 22 é “Moisés voltou -
s e ". A passagem descreve um Moisés desanima­
do, na verdade um Moisés típico, que não cessa de
apoquentar o S enhor com suas queixas. Não nos
surpreende, portanto, que hesitasse em aceitar sua
missão. Em todo caso, Moisés fica sabendo que o
Senhor interviiá de forma dramática. É natural que
O leitor esteja preparado para a primeira praga. En­
tretanto, P prefere considerar novamente a vocação
de Moisés.
ÊXODO 6
6,2-13 A missão de Moisés segundo P. Em­
bora conhecendo as tradições J e E sobre a voca­
ção de Moisés nos capítulos 3—4, P opta por dar sua
versão dessa vocação. Em resposta ao lamento do
povo em 2,23b-25 e à luz dos reveses em 5,1-6,1,
a vocação do profeta é a garantia de apoio ao esco­
lhido de Deus e, ao mesmo tempo, o triunfo sobre
a opressão/depressão do povo escolhido de Deus.
Para P é questão tanto de continuidade como de
descontinuidade. O Deus que fala a Moisés é o
mesmo que apareceu aos patriarcas. Entretanto, há
uma diferença: Deus não lhes revelou seu nome
pessoal, o S enhor. Em vez dele, usou “El Shadai”
(traduzido por “Deus Poderoso”, “Deus da monta­
nha”, “Deus da estepe” ou “Deus dos seios”). Ao
eontiário de 3,14-15, essa passagem (veja w . 6-8)
não transmite a Moisés uma honra pessoal que forne­
ça eredeneiais. E uma comunicação especial que trata
de aliviar o sofrimento de Israel. Para P, há uma só
aliança em questão, aquela feita com Abraão em Gn
17. Assim, a presente cena cria uma tensão entre a
promessa antiga e a falta de realização atual. Essa
falta será tratada agora.
Para a missão a Moisés, P adota a mesma narra­
tiva vocacional básica que J e E: a) resposta divina
à oração (v. 5); b) promessa divina de salvar (w.
6-8); c) a missão (vv. 9-11) (há apenas alusão à
missão para o povo); d) objeção de Moisés (v. 12,
repetido no v. 30; e) a objeção é superada (7,1-5).
Os vv. 6-8 são um oráculo de salvação, gênero
literário empregado principalmente na literatura pro­
fética do século VI a.C. Visto sobre o pano de fundo
de P, o Exílio, este oráculo traz esperança e lança
um novo fundamento para a fé de Israel. Mostra que
0 Deus que julga é também o Deus que liberta. E, o
que é mais importante, essa dádiva de graça não está
ligada ao sucesso de instituições no passado. De
maneira paradoxal, o insucesso de Israel não der­
rota Deus.
A expressão “Eu sou o Senhor” é caracterís­
tica de P. É estilo régio, como o usado no início de
inscrições régias. Foi usada repetidamente eomo
auto-introdução na liturgia (veja 20,2). Sugere: “Eu
estou aqui, presente e atuante”. É fórmula que exige
atitude compreensiva por parte de Israel. (Veja a
Lei da Santidade em Lv 17-26, por exemplo, 19,4.)
Para P e também para a “escola sacerdotal”, as in­
tervenções divinas a favor de Israel são indicações
claras da identidade desse Deus (veja Ez 20).
6,14-30 Genealogia de Moisés e Aarão. P in­
terrompe 0 relato da missão de Moisés para inserir
esta genealogia. (O último v. antes da inserção é
repetido depois [veja w . 13 e 26-27].) Embora haja
quem ache as genealogias um tanto enfadonhas e,
por isso, passe-as por alto, devemos observar sua
utilidade. Representam uma forma de sobrevivên­
cia — a tribo, por exemplo, cuida de' todos os seus
membros. Fornecem identidade — dizem à pessoa 97
 ÊXODO 7
quem ela é. Indicam status — por exemplo, infor­
mam ao rei sua linhagem. Estruturam a história —
são os parâmetros da atividade humana e/ou divina.
Aqui fica claro que P está realmente interessa­
do na tribo de Levi. Passa apressado por Rúben e
Simeão para chegar a Levi (vv. 14-15 — os três
eram tribos de Leá [veja Gn 29,31-34]). Moisés e
Aarão são filhos de Amrâm (v. 20) e, em última
análise, descendentes de Levi. Embora P mostre
Miriâm como irmã de ambos, Aarão e Moisés (Nm
26,59), Ex 15,20 afirma que ela é irmã apenas de
Aarão. (Observe também a oposição de Aarão e
Miriâm a Moisés, em Ex 32 e Nm 12.)
Originalmente, “levita” era nome leigo, signifi­
cando “membro da tribo de Levi”. Somente no fim
de um longo processo passou a ser designação de
uma pessoa um tanto subalterna que desempenha­
va tarefas cultuais servis (veja 28,1-43). Ao realçar
Aarão, P pretende estabelecer o direito à legitimi­
dade do grupo de sacerdotes que basicamente con­
trolava o Templo de Jerusalém. (P menciona apenas
de passagem outras famílias sacerdotais antigas,
tais como os filhos de Mushi, citados no v. 19.)
Para P, portanto, essa genealogia serve para dar
identidade e fortalecer o status dos descendentes
de Aarão.
7,1-7 Reafirm ação e obediência. Em respos­
ta à objeção de Moisés sobre sua falta de eloqüência
(6,13.30), P mostra o S enhor garantindo a Moisés
que ele terá uma função quase divina (o hebraico
'elohim pode significar alguém que não seja Deus
— veja SI 45,7 face a face com o profeta Aarão).
Em resultado da intervenção divina, o S enhor real­
mente fará Israel sair do Egito (vv. 4-5). Entretanto,
essa intervenção também provocará o reconheci­
mento pelo Egito da identidade real do S enhor:
“conhecerão que eu sou o S enhor...” (v. 5).
A tradução literal do início do v. 3 é: “endu­
recerei o coração de Faraó”. Para os autores bíbli­
cos, o coração era o órgão da raciocínio e da von­
tade (veja Is 6,10; 29,13) que se concentrava na
pessoa como o sujeito racional e desejoso. Deve­
mos mencionar que Livro do Êxodo emprega três
maneiras diferentes para expressar o endurecimento
do coração de Faraó; a) o coração de Faraó ficou
endurecido (7,13.14.22; 8,15; 9,7.35); b) Faraó en­
dureceu o (próprio) coração (8,11.28); c) O S enhor
endureceu o coração de Faraó (7,3; 9,12; 10,1.20.27).
O Livro do Êxodo, portanto, admite tanto a liber­
dade humana como a onipotência divina. Como o
resto da Bíblia, não tenta dar nenhuma explicação
dessa admissão.
Além de notar a obediência de Moisés e Aarão
no V. 6 , P continua, para registrar a idade dos dois
líderes. Isso se adapta a seus interesses cronoló­
gicos gerais. Depois da caminhada de quarenta
anos, P mais tarde menciona que Moisés morreu
98 aos cento e vinte anos (veja Dt 34,7).
7,8-13 Introdução às pragas. Nesta passagem,
P menciona a primeira demonstração do poder do
S enhor diante de Faraó, pois para ele esse é o primei­
ro encontro entre Faraó e os emissários do S enhor
(para J veja 5,1-6,1). Como já mencionamos, P mu­
dou 0 bastão de Moisés, de um instrumento compro-
vador diante do povo (veja J em 4,2-4), num instru­
mento para obter permissão diante de Faraó. Não nos
surpreende que Aarão tenha um papel importante a
desempenhar. Como o Senhor previu (veja 7,4),
Faraó recusa-se a ceder, apesar do bastão engolidor
de serpentes de Aarão.
Essa passagem introdutória deve servir como
uma espécie de guia para abordar as pragas. Um
bastão que se transforma em serpente e um rio con­
vertido em sangue são indicações do mundo do fol­
clore, não de explicações científicas. Contudo, os
intérpretes procuraram uma explicação supostamen­
te natural dos fenômenos. De acordo com a explica­
ção cósmica, um cometa fez contato com a terra,
trazendo consigo poeira vermelha, pequenos meteo­
ritos, terremotos etc. De acordo com a explicação
geológica, a violenta erupção de um vulcão no sé­
culo XV a.C. provocou uma onda gigantesca cujos
efeitos secundários provocaram as pragas. De acor­
do com uma terceira opinião, houve uma sucessão
natural de catástrofes, começando com uma en­
chente excepcionalmente grande do Nilo em julho
e agosto e culminando com um siroco em março
ou abril que matou as primícias restantes, não os
primogênitos.
Entretanto, em última análise, os autores bíbli­
cos tinham apenas um conhecimento imperfeito dos
assuntos egípcios. Por exemplo, os gafanhotos (a
oitava praga) são conhecidos tanto no Egito como
em Israel. Entretanto, o Nilo de sangue (a primeira
praga) e as rãs (a segunda praga) são conhecidos
apenas no Egito, enquanto o granizo (a sétima pra­
ga) é excepcional no Egito, mas não em Israel.
O próprio relato bíblico contém duplicatas e in­
consistências. Uma explicação científica é impos­
sível. A narrativa deve ser abordada como litera­
tura popular. A quarta praga, então (os insetos), é
duplicata da terceira praga (os mosquitos). Da mes­
ma forma, a sexta praga (os furúnculos, epidemia
que afeta animais e humanos), é duplicata da quin­
ta praga (a peste do gado). Com respeito à con­
sistência, podemos levantar algumas questões. Se
todos os animais foram mortos na quinta praga
(9,6), como poderíam ter sido afetados pelos furún­
culos na sexta praga (9,10), pelo granizo na sétima
(9,25) e pela morte dos primogênitos na décima
praga (12,29)? Se as rãs já cobriam a terra do Egito
(8.2) , como os magos poderiam repetir a proeza
(8.3) ?
Antes de passar à questão do arranjo literário
das pragas, precisamos mencionar que a presença
de E é duvidosa nesses relatos. Por isso, falamos

com mais cautela de JE, combinação das mais an­
tigas fontes escritas do Pentateuco, em vez de dis-
tingui-las mais pormenorizadamente como J ou E.
Quanto à distribuição, o redator final tomou cin­
co pragas só de JE (quarta, quinta, sétima, oitava
e nona), duas só de P (terceira e sexta) e três de
uma combinação de JE e P (primeira, segunda e
décima).
As diferenças entre JE e P referem-se a vários
pontos. Quanto aos papéis, JE faz Moisés aparecer
simplesmente como profeta, enquanto P faz Aarão
desempenhar o papel principal, de modo que
Moisés fica em segundo plano. A respeito de fórmu­
las, JE faz Moisés empregar a fórmula do mensa­
geiro, enquanto P faz o Senhor falar com Moisés,
que depois fala com Aarão. Finalmente, em termos
de caráter, para JE as pragas são atribulações para
castigar Faraó por se recusar a deixar o povo sair.
Para P, entretanto, são sinais e prodígios que legiti­
mam Moisés e Aarão como representantes do Se­
nhor, não flagelos como tais. (Compare a praga
dos mosquitos [8,12-15 — P] com a dos insetos
[8,16-28 — JE].)
A presença das diferentes tradições bíblicas
levanta outras questões: Como o redator final reu­
niu tudo? Esperava encontrar algo concreto? Em
caso afirmativo, quais são as indicações disso?
Ao procurar responder a essas perguntas, pre­
cisamos considerar dois pontos. Primeiro, o relato
das pragas começa realmente em 7,8-13, porque
esta passagem contém a mesma perspectiva e o
mesmo vocabulário que as pragas em si. Segundo,
a décima praga (a morte dos primogênitos) é excluí­
da aqui, pois sua composição e suas características
são diferentes. O resultado é haver dez episódios: a
introdução em 7,8-13 e as nove pragas (7,14-10,29).
Além disso, esses episódios estão organizados de
forma concêntrica, de modo que a introdução, a pri­
meira praga etc. têm duplicatas de aproximadamen­
te a mesma extensão e com a mesma fórmula na
nona praga, na oitava praga etc. (Compare 8,12-15
com 9,8-12.) Este arranjo concêntrico não é fortuito.
Foi intencionalmente planejado para indicar o pro­
gresso definido à medida que lemos o restante da
história.
O relato das pragas não é tanto uma série de
devastações quanto uma série de contendas entre
Faraó e Moisés, ligadas à pergunta em 5,2; “Quem
é 0 S enhor para que eu escute a sua voz e deixe par­
tir Israel?” O fracasso de Moisés e Aarão nes­
sas negociações com Faraó não é decisivo, pois a
história continua no relato do mar dos Juncos. Essas
pragas apontam para um prodígio ainda maior,
no mar.
7,14-25 Prim eira praga: a água convertida
em sangue. O redator final combinou JE (vv. 14-
18.20b-21a.23-25) e P (vv. 19-20.2 lb-22). Segun­
do JE, é o Nilo, o Rio, que será afetado. Além disso.
EX0D0 9
JE faz referência à morte dos peixes e à poluição
subsequente. Segundo P, entretanto, as águas de
todo o Egito são afetadas (v. 19), não apenas as do
Nilo.
Em termos de progresso, precisamos notar que
os magos egípcios são capazes de igualar a proeza
realizada pelos emissários divinos (v. 22). A respeito
de Faraó, o reconhecimento dele exigido é relati­
vamente simples: “Nisto conhecerás que eu sou o
S enhor” (v. 17). À medida que prossegue a narrativa
das pragas, há diferenças significativas em ambos
os relatos.
7,26-8,11 Segunda praga: as rãs. As fontes
JE (7,26-29; 8,4-9a) e P (8,1-3.1 Ib) estão presentes
de maneira inconfundível neste relato. Como acon­
tece com a primeira praga, o presente episódio reve­
la que os magos egípcios ainda conseguem igualar
as proezas realizadas por Moisés e Aarão (8,3). Em
outros aspectos há diferenças. Faraó procura agora
ativamente a intercessão de Moisés (8,4), embora
no fim continue inflexível (8,11). Além disso, o re­
conhecimento exigido agora de Faraó é mais abran­
gente do que 7,17: “para que saibas que ninguém é
como o S enhor, nosso Deus” (8,6).
8,12-15 Terceira praga: os mosquitos. Neste
relato, exclusivo de P, há uma clara evidência de
progresso. Ao contrário das duas primeiras pragas,
esta os magos não conseguem reproduzir. No relato
dos magos a Faraó, há esta observação; “É o dedo
d e Deus” (v. 1 5 ). Entretanto, como previu o S e n h o r ,
Faraó decide não deixar Israel sair.
8,16-28 Q u arta praga: os insetos. Esta pas­
sagem de JE parece pressupor que os egípcios não
estão muito afastados dos israelitas, pois os primei­
ros poderíam ver os sacrifícios oferecidos pelos últi­
mos (v. 22). Essa nota é um tanto surpreendente,
pois o autor alega uma distinção para os israelitas,
a saber, que a praga não afetará a terra de Gôshen
(v. 18). Portanto, os egípcios e os israelitas não
vivem lado a lado. De qualquer modo, os sacrifí­
cios de animais dos israelitas deviam perturbar as
sensibilidades religiosas dos egípcios. Talvez isso
acontecesse porque os animais tinham um lugar
proeminente na religião egípcia ou porque o sacri­
fício de animais inteiros não era prática comum
entre eles. Aqui é significativo, antes de mais nada,
o reconhecimento por Faraó de “que eu, o S enhor,
estou no meio da terra” (v. 18). Assim, Faraó deve
admitir que o S enhor está presente no Egito. Se­
gundo, a permissão para a viagem de três dias é
para um lugar no deserto não muito distante (v.
24). Mais uma vez,.Moisés deve orar pelo podero­
so soberano do Egito. Há um claro progresso no
caráter de Faraó.
9,1-7 Q uinta praga: a peste do gado. Neste
relato JE, precisamos notar que não há negociação
entre Faraó e Moisés depois do início da praga,
como em 8,21. Entretanto, em harmonia com a
praga precedente, há a distinção entre egípcios e 99
 ÊXODO 9
israelitas. A peste atacará o gado egípcio, não o de
Israel. Vemos que neste relato Faraó se dá ao traba­
lho de verificar que realmente existe essa distinção
(veja vv. 6b-7a).
9,8-12 Sexta praga: os furúnculos. Neste
relato P, causa certa estranheza o fato de Aarão de­
sempenhar um papel relativamente sem importân­
cia, o de assistente de Moisés. Em termos de desen­
volvimento, o que surge é a espiral descendente
dos magos. Embora conseguissem enfrentar as duas
primeiras pragas, fracassaram na terceira e foram
forçados a admitir que a praga era obra de Deus.
Aqui o redator final arrumou as coisas de modo que
os magos não fossem exceção. Eles também sofrem
da doença de pele e não podem permanecer na pre­
sença de Moisés (v. 11).
9,13-35 Sétima praga: o granizo. Neste relato
JE é dada uma explicação para o fracasso das pra­
gas anteriores em induzir Faraó a ceder. O Senhor
agiu dessa forma para mostrar sua força e fazer seu
nome ser publicado em toda a terra (v. 16). Quase
esperamos o ato decisivo do Senhor imediatamente.
Embora nem mesmo èsta praga faça Faraó conceder
a permissão necessária para sair, ela contribui para
revelar o caráter do divino soberano do Egito.
No V. 14 há o aviso que Faraó e também seus
súditos devem confessar que ninguém na terra é co­
mo 0 S enhor, o que é seguido no v. 27 pelo mea cul­
pa de Faraó: “Desta vez eu pequei. É o S enhor que
é o justo. Eu e meu povo somos os culpados”. É
uma confissão verdadeiramente notável. Por fim,
há a afirmação de que a praga de granizo induzirá
uma confissão ainda maior, a saber, que a terra
pertence ao S enhor (v. 29). O Deus de Israel recebe
do poderoso deus egípcio, o Faraó em pessoa, um
reconhecimento mais digno.
10,1-20 Oitava praga: os gafanhotos. Este
relato JE inicia-se com uma explicação da dureza
de coração de Faraó e seus servos. Essa obstinação
é planejada para demonstrar a força do Senhor e
fornecer uma tradição crescente das explorações na
comunidade israelita (vv. 1-2). O autor faz menção
especial da ida de Moisés até Faraó e alonga-se na
irritação do S enhor: “Até quando recusarás humi­
lhar-te diante de mim?” (v. 3b). Pela primeira vez
ficamos sabendo que os servos de Faraó estão exas-
pierados a ponto de instar com o rei para ser pruden­
te e razoável (v. 7). O resultado dessa intervenção
é que Moisés e Aarão são reconduzidos à corte de
Faraó (v. 8). Nesta passagem, o autor chama a aten­
ção para a suspeita de Faraó de que uma espécie
de conspiração esteja em andamento, já que Moisés
pede que toda a comunidade israelita tome parte no
culto no deserto (w. 10-11).
O progresso na descrição da mudança de cará­
ter de Faraó encontra-se nos w . 16-17. Depois da
pronta convocação segue a clara afirmação de peca-
100 do: “Pequei contra o S enhor, vosso Deus, e contra
vós”. Assim, desde a primeira praga. Faraó progre­
diu em sua compreensão da presença e da força do
S enhor. Depois do costumeiro pedido de perdão e
do resultado positivo desse pedido, há, contudo, a
observação final de que Faraó continua obstinado
e, por isso, o povo permanece no Egito.
10,21-29 Nona praga: as trevas. Muitos ligam
essas trevas a um fenômeno típico do Oriente Próxi­
mo, o khamsin, um vento quente que sopra do de­
serto em março e abril, trazendo consigo trevas e
uma atmosfera muito opressiva. No relato bíblico,
essas trevas assumem um caráter mais agourento,
pois sugerem os poderes maus do caos. Esse cará­
ter combina com o impulso do relato JE. Há exas­
peração, que leva à interrupção de quaisquer outras
negociações (v. 28). Faraó agora está disposto a
deixar todo o Israel sair com propósitos de culto
(compare 10,11), mas não os rebanhos (v. 24).
Moisés reage a tal permissão com ironia. Afirma
que sacrifícios de animais fazem parte do culto e
por isso os rebanhos são necessários. Entretanto,
como os animais sacrificais são determinados ape­
nas na chegada ao lugar do culto, é preciso levar
todo o rebanho. A resposta de Faraó ao irônico pe­
dido de Moisés é a suspensão de todas as nego­
ciações. Chegaram a um impasse que resultará na
morte de Moisés se ele se atrever a voltar à pre­
sença de Faraó. Com certeza, é preciso encontrar
um novo meio para forçar a mão de Faraó.
11,1-10 Décima praga: a m orte dos prim o­
gênitos. Devido ao aparentemente último compare-
cimento de Moisés diante de Faraó, o leitor espera
uma rápida investida para o mar e depois a jornada
no deserto. Em outras palavras, até este ponto, os
autores criaram uma expectativa e é natural que o
leitor espere o alívio da tensão e o desenlace. Ao
contrário, há outra (e última) praga, totalmente em
desacordo com as nove anteriores. (Na verdcide, a
cena no mar não pressupõe a décima praga.) Agora
0 leitor fica atolado não em um mar de Juncos, mas
em um turbilhão de preceitos. Há a ordem repen­
tina para a preparação da liturgia, não para a espe­
rada fuga para a liberdade. Presumimos que os au­
tores bíblicos tivessem uma razão para o desapare­
cimento temporário da narrativa e a exaltação da
liturgia.
A morte dos primogênitos não é surpresa total.
Em 4 ,2 3 ,0 S enhor, por intermédio de Moisés, diri­
giu-se a Faraó nestes termos: “Deixa partir meu
filho (Israel, primogênito do S enhor) para que me
sirva. E tu, no entanto, te recusas a deixá-lo partir!
Pois eu vou matar teu filho primogênito”. Nem é
completa surpresa a pilhagem dos egípcios. Em
3,21-22, os israelitas são assegurados de que não
deixarão o Egito de mãos vazias. Entretanto 11,1-3
(J OU E), que pertence à tradição do êxodo-expul-
são, presume que essa décima praga é, na verdade,
a única. De que outra maneira os israelitas pode­
ríam obter dos egípcios ornamentos de prata e ouro

e vestidos? De que outra maneira podemos expli­
car o prestigio de Moisés com os servos de Faraó
e com 0 Egito como um todo?
O arranjo literário dos w . 4-8 (de J; w. 9-10,
de P) sugere que esta praga não está ligada às nove
anteriores. Em geral, J informa o leitor que Moisés
deve falar ao Faraó, mas no v. 4 não está claro a
quem Moisés transmite a mensagem divina. Até o v. 6,
0 destinatário parece ser Israel, mas nos vv. 7-8 é
Faraó. No fim do v. 8 Moisés sai cheio de cólera da
presença de Faraó. Mas, segundo 10,29 (E), nunca
mais deveria se apresentar diante de Faraó. Embora
haja quem pressuponha um elo histórico — uma
epidemia que atacou os egípcios e, assim, facilitou
a partida dos israelitas — , não é desarrazoado con­
cluir que a décima praga foi planejada para fazer
ligação com a festa da Páscoa.
12,1-20 O ritual da Páscoa. Nesta composição
litúrgica, P fornece detalhes de uma festa então já
antiga entre os pastores seminômades do antigo
Oriente Próximo. Era uma oferenda desses pasto­
res pela prosperidade de seus rebanhos, quando a
tribo partia em busca de novas pastagens. Isso acon­
tecia na primavera e, na verdade, em uma ocasião
bastante decisiva na vida do rebanho. Era a época
em que nasciam as crias das ovelhas e das cabras.
As indicações da antiguidade da festa são as seguin­
tes: nenhum sacerdote, nenhum santuário, nenhum
altar.
Outros detalhes se encaixam nesse ambiente
pastoril. O animal é assado, não cozido (v. 9), pois
existem pouquíssimos utensílios de cozinha. Tal­
vez isso explique por que os ossos não são que­
brados (w. 9.46). A hora é o anoitecer da primeira
lua cheia da primavera (v. 6), o que coincide com
a volta dos pastores ao acampamento na noite
mais clara do mês. Os pães sem fermento (v. 8)
são os pães comuns consumidos por esses pasto­
res, e as ervas amargas (v. 8) são as plantas do
deserto usadas por eles como condimentos. As
vestes e os trajes combinam com esse ambiente:
“o cinto à cintura, as sandálias aos pés e o bastão
na mão....” (v. 11). O rito de sangue (v. 7) tem
propósito apotropaico, isto é, passar o sangue nos
umbrais e na verga da porta das casas tem o propó­
sito de afastar todo o perigo para os membros da
tribo, em especial para os que estavam prestes a
nascer. Esse perigo é personificado pelo “Destrui­
dor” (v. 23). O sangue, portanto, impede-o de atacar
humanos e animais.
É o rito de sangue que estabelece o elo entre
a décima praga e a Páscoa. “O Destruidor” está
agora sujeito a uma nova interpretação, originada
na história de Israel. O Senhor atravessará a terra
do Egito, matando os primogênitos de homens e
animais (v. 12). Mas, quando o S enhor vir o sangue
nas casas, não permitirá que “o Destruidor” ataque.
Em vez disso, o Senhor “passará sobre” os israelitas
(V . 13).
EX 0D 012
Embora a etimologia de “Páscoa” não seja co­
nhecida, o sentido da palavra para Israel está claro.
“Passar sobre” significa “poupar, proteger, liber­
tar”. O que Israel fez, portanto, foi interpretar a
antiga festa de pastores seminômades em termos
de seu relacionamento com o Senhor. Não era mais
a busca de lun pasto temporário, mas da pastagem
definitiva, da própria Terra Prometida. A antiga
festa, com seu enfoque na mudança, servia admi­
ravelmente para interpretar a mudança no destino
de Israel. Os pastores eram agora um povo em
fuga (v. 11). (Para os pães sem fermento nos vv.
14-20, cf. 13,3-10.)
12,21-28 Promulgação da Páscoa. Nesta pas­
sagem J (com exceção de P no v. 28), Moisés cha­
ma os anciãos, os chefes responsáveis pelo cum­
primento da ordem do Senhor. Aqui a ênfase está,
em princípio, no rito de sangue. Aliada à aplicação
do sangue está proibição de sair de casa até o ama­
nhecer (v. 22) por causa da devastação noturna.
Os preceitos nos vv. 24-27a são significativos
para a aversão de Israel a toda e qualquer forma de
conflito de gerações. Os que tomam parte no êxodo
original e todas as comunidades israelitas subse­
quentes estão unidas nessa experiência essencial.
A pergunta feita pelos filhos no v. 26 não tem inte­
resse apenas histórico, é planejada para a interpretar
o passado em vista do presente. Seguramente, o
S enhor poupou os israelitas e esmagou os egípcios.
Mas os acontecimentos do século XIII a.C. afetam
a comunidade atual: “quando [o Senhor] golpeou o
Egito e libertou nossas casas” (v. 27a). Celebrar a
Páscoa significa transpor gerações e aliar-se em uma
experiência que explica e unifica todo o povo.
12,29-39 M orte dos primogênitos e partida.
J, o autor destes vv., segue a tradição do êxodo-
expulsâo de 11,1-3. A morte dos primogênitos é
tão grave que Faraó convoca Moisés e Aarão à noite
(v. 31). Não há mais dúvida se o gado pode ir junto
(v. 32; cf. 10,24). Na verdade, a devastação foi tão
cruel que os egípcios incentivam os israelitas a
partir antes da hora. A pressa da partida reflete-se
na condição dos pães. Os israelitas estavam tão
apressados que a massa ainda não estava fermentada
(v. 34) e, conseqüentemente, tiveram de se conten­
tar com pães ázimos (v. 39). (No v. 15, P não disse
por que razão o povo comeria tais pães durante sete
dias.) Por fim, em harmonia com a tradição do êxo-
do-expulsão, os israelitas pediram aos egípcios
objetos de prata e ouro e também vestes. Entretanto,
o despojamento foi muito além. Os israelitas aca­
baram por pedir aos egípcios tudo o que queriam
(V . 36).
J menciona o primeiro destino e o número de
pessoas envolvidas. Sukot está quarenta e oito qui­
lômetros a sudeste de Ramsés e no meio do istmo
entre o mar Mediterrâneo e o golfo de Suez. J esta­
belece o número como “aproximadamente seis- 101
 EXODO 12
centos mil homens a pé — os varões, sem contar
as crianças” (v. 37). Isso indicaria uma população
de cerca de três milhões de homens, mulheres e
crianças. Embora seja provável que a palavra he­
braica para “mil” originalmente significasse a sub­
divisão de uma tribo, o que daria um número total
de cinco ou seis mil, a natureza épica dessa litera­
tura popular enfatiza o número maior. “Numerosa
mescla de gente” (v. 38) sugere que elementos nâo-
israelitas da força de trabalho escravo também par­
tiram do Egito na companhia de Moisés.
12,40-51 Cronologia e outros preceitos da
Páscoa. Nos vv. 40-41, P revela seu pendor para a
cronologia. Calcula a permanência dos israelitas
no Egito como um período de 430 anos (veja Gn
15,13). Entretanto, a complexidade dos dados bíbli­
cos exige maior precisão. A permanência no deserto
não foi necessariamente contínua, vivida pelo mes­
mo grupo e abrangendo todo o povo.
De um ponto de vista teológico, P revela um
Deus absorto na vida real de seu povo. O Senhor
agiu em um momento preciso. Consequentemente, a
vigília mantida pelo S enhor naquele momento de­
ve-se refletir na vigília mantida por Israel nessa oca­
sião todos os anos.
P também fornece preceitos adicionais para a
Páscoa, relativos principalmente à admissão à cele­
bração da Páscoa. (Tais preceitos pressupõem uma
situação em que Israel já está levando uma existên­
cia agrícola na Terra Prometida.) Estrangeiros (v.
43) e assalariados (v. 45) estão excluídos; sua exis­
tência na terra não estava enraizada com tanta fir­
meza. Migrantes residentes (v. 48) e servos adquiri­
dos por dinheiro (v. 44) podem tomar parte na cele­
bração, desde que tenham sido circuncidados (veja
Gn 17,13). A celebração é descrita como celebração
doméstica (v. 46) a ser realizada por “toda a comu­
nidade de Israel” (v. 47). Essa é uma expressão fa­
vorita de P, que realça a organização de Israel, em
especial no deserto e salienta os responsáveis dentro
dessa organização.
13,3-10 Festa dos Pães sem fermento. Já se
julgou que 13,1-16 reflete a linguagem do livro do
Deuteronômio. Entretanto, sua linguagem é mais
proto-deuteronômica, isto é, um estilo incipiente que
culminaria na linguagem mais desenvolvida encon­
trada no Deuteronômio. Em seu contexto atual, esta
tradição lida com dois assuntos: a) a redenção dos
primogênitos (vv 1-2.11-16); b) a festa dos Pães
sem fermento (vv. 3-10).
Ao contrário da Páscoa, que não exigia santuá­
rio e era celebrada em casa, a festa dos Pães sem
fermento era uma peregrinação que exigia a pre­
sença do homem adulto no santuário (veja 23,15).
Enquanto a Páscoa era a festa de pastores seminô-
mades, a dos Pães sem fermento era a dos lavrado­
res. A festa expressava frescor, registrando o início
da colheita da cevada (a primeira colheita a ser feita).
102 Nos sete primeiros dias desta colheita eram comidos
pães feitos com o cereal novo. Esses pães eram
ázimos ou sem fermento, porque não eontinham
nada da colheita anterior. Como esta festa pressu­
põe um ambiente agrícola, supõe-se que foi adotada
pelos israelitas (possivelmente proveniente dos ca-
naanitas) somente depois da caminhada no deserto.
Só mais tarde as festas da Páscoa e dos Pães
sem fermento foram reunidas, o que provavelmen­
te aconteceu por volta do tempo do rei Josias (se­
gunda metade do século VII a.C. — 2Cr 35,17).
Como as duas festas ocorriam na mesma época do
ano e ambas faziam uso do pão sem fermento (mas
por razões diferentes — veja 12,8), acabaram por
ser reunidas.
Enquanto em 12,34 J liga os pães sem fermen­
to à pressa do Êxodo, o autor de 13,8 atribui uma
nota pessoal: “Foi por isso que o S enhor agiu em
meu favor quando de minha saída do Egito”, que
provém do conceito de lembrança expresso no v. 3.
Lembrar significa reviver, tomar verdadeiro/signi-
ficativo agora. Por isso, a festa não é uma recorda­
ção estática do passado, mas o ato de reviver o pas­
sado de forma dinâmica por causa de suas reper­
cussões no presente.
13,1-2.11-16 Redenção dos primogênitos. É
interessante observar que esta tradição não está li­
gada ao relato da Páscoa em si, mas sim às mortes
dos primogênitos dos egípcios. Da mesma forma,
outros textos (por exemplo, 22,28-29) não ligam a
redenção dos primogênitos à experiência do Exodo
(V. 15).
A prática de “resgatar” o primogênito revela a
preocupação de Israel com a vida humana e o trata­
mento especial que dá ao primogênito. Embora
Israel tivesse conhecimento do sacrifício dos primo­
gênitos entre seus vizinhos canaanitas, revoltou-se
contra essa prática (veja Gn 22,1-19). Israel via o
primogênito dos homens e dos animais como pro­
priedade exclusiva de Deus. Consequentemente,
tinham de ser resgatados (veja Lc 2,23).
Depois de ouvir que o israelita precisa resgatar
seu primogênito, tendemos a pensar que o ato divino
de redenção é apenas isso — um resgate. Em resul­
tado, somos propensos a ver na ação divina reden­
tora em Jesus apenas outro caso de tal resgate. En­
tretanto, esta passagem (como várias outras do Êxodo)
dá exemplos da profundeza e da variedade do pensa­
mento bíblico.
Segundo o v. 3, Israel “saiu”. Esse verbo é
termo legal que os contadores de história de Israel
tomaram emprestado (veja 21,2) para interpretar a
experiência do Êxodo. Nos vv. 3 e 8, é uma saida
do Egito, e o V. 3 acrescenta: “da casa da servidão”.
Assim, para os israelitas, a redenção é a conquista
da liberdade, algo de importância especial para um
seminômade.
Outro termo é “dispensar, deixar ir embora”.
Em sentido legal significa “libertar” (verbo favorito

de J). Por exemplo, em 21,26-27, o senhor que mal­
trata o escravo deve deixá-lo em liberdade. O autor
da presente passagem usa esse verbo no v. 15 (“res­
gato”) e, assim, subentende que Faraó é um dono de
escravos que se recusa a emancipá-los. Para os israe­
litas, a redenção significa ser afastado dos caprichos
de Faraó e dessa forma reconquistar a integridade.
Outro exemplo é o verbo “fazer sair”. Como
Faraó recusou-se a libertar os israelitas, o Senhor
decide fazê-los sair. Neste contexto, o verbo é usado
quatro vezes (vv. 3.9.14.15), três vezes com a ex­
pressão: “com mão forte”. Isso transmite a pode­
rosa maneira milagrosa pela qual o S enhor liberta
seu povo. (Com toda a probabilidade, a frase origi­
nou-se da forma pitoresca como o Senhor libertou
Israel no mar dos Juncos.) Redenção não significa
apenas um ato jurídico, mas uma intervenção dra­
mática que resulta em vitória para os oprimidos e
derrota para os opressores.
Outro termo é “fazer subir”. Essa expressão não
diz respeito a escravidão nem a libertação, mas trata
do futuro (cf. 3,8). Significa subir à terra de Canaã
e, assim, é o oposto exato de descer ao Egito (cf Gn
46,3-4). Embora os que tomaram parte no Êxodo o
considerassem uma saída, as gerações posteriores
viram-no em termos de entrar em uma nova terra,
uma “subida”. Redenção significa que o israelita tem
um lar, um futuro.
Outro termo é o verbo “salvar”. (Em geral tra­
duzido como “salvação”, o substantivo é encontra­
do em 14,13; 15,2.) A palavra é tirada da lingua­
gem da sala do tribunal, onde o salvador está sem­
pre do lado da justiça, como advogado ou testemu­
nha da defesa. No Segundo Isaías, que celebra um
segundo Êxodo, o S enhor é um salvador, pois re­
toma sua propriedade de direito, Israel (cf Is 43,3).
Redenção também significa que o Senhor assume
a causa dos que são tratados com injustiça.
Uma última expressão é “ser resgatador” (cf.
15,13). Resgatador é o membro responsável pela
integridade da família. Por exemplo, se a proprie­
dade familiar está em perigo de ir para um estra­
nho, 0 resgatador providencia para que ela perma­
neça na família (cf. Rt 4; Jr 32). Assim, o resgatador
intervém em momentos cruciais da vida familiar.
Redenção também significa que Deus é identifica­
do como membro da família interessado em outros
membros dessa família. Redenção é muito mais do
que apenas resgatar.
13,17-22 Israel a caminho. Esta passagem, E
nos vv. 17-19, J nos vv. 20-22, traz à baila o proble­
ma da rota do Êxodo. Embora a questão deva per­
manecer aberta, é possível apresentar uma hipótese,
fazer um esforço para explicar alguns dos dados
contidos nas tradições bíblicas. Essa hipótese leva
em conta duas rotas diferentes seguidas por dois
grupos diferentes.
Embora muitas traduções falem no mar Verme­
lho, a tradução provável é mar dos Juncos, como
EXODO 14
traz a TEB. O junco em questão é uma planta de
papiro que cresce nos pântanos ao norte do delta
(não no golfo de Suez, nem no golfo de Áqaba).
Embora o nome sugira uma porção de água relati­
vamente pequena, sua localização é duvidosa e não
muito significativa para o problema da rota do Êxo­
do. (A expressão “mar Vermelho” deriva dos tradu­
tores gregos das Escrituras hebraicas. Entretanto,
pode incluir até o golfo Pérsico.)
A primeira rota é a setentrional. De acordo
com este itinerário, quando os israelitas saíram do
Egito, teriam ido diretamente para leste, isto é, atra­
vessando de parte da península do Sinai para
Qadesh-Bamea. Entretanto, a tradição E observa,
no V . 17, que os israelitas não tomaram a estrada
da terra dos filisteus, isto é, a que corre ao longo
do mar Mediterrâneo, ligada à rota setentrional.
Mesmo assim, as menções de Ramsés (1,11), Sukot
(12,37), Etâm (13,20) e Pi-Hahirot, em conexão
com Migdol e Báal-Sefon (14,2.9 — todas de J, com
exceção das duas últimas) tendem a apoiar essa
rota setentrional.
A segunda rota é a meridional. De acordo com
ela, ao partir do Egito, os israelitas teriam se diri­
gido para sul ou sudeste, para a parte inferior da
península do Sinai, onde teria sido feita a aliança
do Sinai. Seria o caminho do deserto mencionado
por E em 13,18.
É provável que essas duas tradições recordem
duas experiências de êxodo diferentes. Elementos
das tribos de Rúben, Simeão, Levi e Judá (as tribos
de Leá) foram possivelmente os primeiros a sair
do Egito, tomando a rota setentrional. Também é
provável que sejam o grupo ligado à tradição do
êxodo-expulsão que invadiu a terra de Canaã vin­
do do sul (cf a tradição J em Nm 13,22-23; 14,24).
É possível que elementos das tribos de Benjamin,
Efraim e Manassés (as tribos de Raquel) tenham
deixado o Egito mais tarde sob a liderança de Moisés,
por meio da rota meridional. Esse grupo teria vaga­
do no deserto, conhecido o Senhor no Sinai e inva­
dido a terra de Canaã vindo do leste (o rio Jordão).
Além disso, estaria ligado à tradição do êxodo-
fuga. Quando combinadas as diferentes entradas
em Canaã na narrativa definitiva, as diferentes
experiências de êxodo também teriam sido unidas.
Nos vv. 21-22, J distingue uma coluna de nu­
vem durante o dia e uma coluna de fogo à noite.
Entretanto, em 14,24, J tem uma única coluna de
fogo e de nuvem. Apesar dessa variação, o que fica
claro é a experiência da presença divina. O fogo/
nuvem é a percepção de Israel da participação de
seu Deus nos acontecimentos principais do Êxodo
e da caminhada no deserto. Essa manifestação fogo/
nuvem não é diferente da presença “angélica” do
Senhor (compare 3,2 com 3,4a).
14,1-10 Perseguição de Israel pelo Egito. A
ligação litúrgica da Páscoa (e da festa dos Pães 103
 ÊXODO 14
sem fermento) com o Êxodo, por meio da décima
praga, e a sutura litúrgica entre a redenção dos
primogênitos e a décima praga chegaram ao fim.
A narrativa retoma a ação das nove pragas dos
capítulos 7-10 e, depois do interlúdio do êxodo-
expulsão (cf. 11,1-3; 12,33-36), retoma a tradição
do êxodo-fuga (v. 5). Agora a ação muda para o
milagre no mar, empreendimento militar que não
pressupõe a morte dos primogênitos.
Esta passagem contém as tradições P (w . 1-4.
8-10) e J ou JE (vv. 5-7). Por exemplo, de acordo
com P, Israel está encurralado no deserto, mas,
mais exatamente, é Faraó que é enganado para
pensar assim. A razão dada por P é que a determi­
nação categórica de Faraó de perseguir Israel re­
sultará no definitivo recebimento de glória pelo
S enhor por intermédio de Faraó e seu exército. Na
tradição JE, Faraó muda de idéia ao entender per-
feitamente a perda dessa valiosa força de trabalho.
O que é comum a ambas as tradições é o fato
de terem interpretado a travessia do mar em ter­
mos de uma guerra santa. A guerra santa não era
apenas o encontro entre duas forças opostas, mas
um empreendimento religioso. Para os israelitas
isso significava que o Senhor lutava por Israel,
não Israel pelo Senhor. (Este mode de ver subsistiu
até a época do exército “secular” de Davi no século
X a.C.) A guerra santa tem cinco elementos; a)
sacrifícios e oráculos para consultar o S enhor (em
razão da coluna de fogo/nuvem, o S enhor já mar­
chava com Israel); b) confiança absoluta no Senhor
(cf 14,31); c) purificações rituais (cf 19,14-15);
d) pânico desencadeado pelo S enhor no meio dos
inimigos (cf 14,24-25); e) total destruição do inimi­
go (cf 14,28.30). O que os autores de Israel enten­
deram claramente foi que seu comandante-em-chefe
era ninguém menos que, o próprio S enhor.
14,11-18 A superação do medo. Nos w . 11-14,
J tem uma reação bem humana à perseguição dos
egípcios. É a realidade do medo que ameaça solapar
todo o propósito do Êxodo. As pessoas são tentadas
a preferir o recomeço da escravidão no Egito à morte
no deserto. O tema da murmuração reaparecerá na
experiência da caminhada no deserto por Israel. Ar­
gumentando com fé, Moisés responde que essas
alternativas são inválidas. Insistindo na teologia da
guerra santa, faz um pedido para um compromisso
renovado (v. 13), e conclui com a certeza da vitória.
“É o S enhor que combaterá por vós. De vossa parte,
não fareis nada!” (v. 14).
Nos vv. 15-18, P responde ao clamor de frus­
tração de Israel. A ação do S enhor consiste em dar
orientações que assegurem a passagem segura dos
israelitas pelo mar. Assim, Moisés deve erguer o
bastão, estender a mão e dividir o mar em favor de
Israel. Como previsto no v. 4, os obstinados egípcios
perseguem Israel até o mar. Seus cadáveres se tor-
104 nam testemunhas mudas, mas eloqüentes, do poder
do S enhor. O Divino Guerreiro é, assim, devida­
mente reconhecido.
14,19-31 Duas tradições p ara a travessia do
mar. As tradições bíblicas não apresentam um relato
minucioso daquilo que realmente aconteceu no mar
dos Juncos porque faltam as fontes necessárias. En­
tretanto, Israel preferiu interpretar esse aconteci­
mento insistindo na bravura militar do S enhor. A
teologia da guerra santa permite que as tradições
reunidas nesta seção revelem a imagem de um Deus
que pensa resolutamente a favor dos israelitas em
fuga. Libertação não significa ficar livre do aborre­
cimento das lamentações de Israel, mas sim estar
livre para o povo desnorteado e cercado.
Segundo J, o S enhor se manifesta de duas ma­
neiras: a) 0 anjo de Deus (v. 19a) e b) a coluna de
nuvem (v. 19b). Na forma de um mensageiro divino
e na de uma nuvem, o Senhor agora assume uma
posição entre os israelitas e os egípcios (v. 20). Esta
posição subentende proteção para Israel. Além dis­
so, durante a noite, o S enhor repele o mar com um
forte vento leste (v. 21b), possibilitando, assim, uma
passagem em terra seca. Pouco antes do amanhecer,
o S enhor, presente na coluna de fogo e nuvem, com
um olhar desencadeia o pânico entre os egípcios, o
que resulta na perda da disciplina militar (v. 24). O
olhar do S enhor que cria o pânico é agora seguido
pela travação das rodas dos carros dos egípcios,
gesto que leva ao toque de retirada (v. 25). Entre­
tanto, ao amanhecer o mar recupera a profundida­
de normal. Nessa conjuntura, o S enhor arremessa
os egípcios em retirada no meio do mar (v. 27b).
O resultado é que Israel reconhece a intervenção
do Senhor e acredita nele e em seu servo Moisés
(vv. 30-31).
Segundo P, Moisés estende a mão sobre o mar
(v. 21a). O resultado é um milagre muito especial.
Aparece terra seca para a passagem segura dos israe­
litas, enquanto as águas formam uma espécie de
muralha à direita e à esquerda deles (v. 22). A esta
altura, as forças egípcias perseguem os israelitas em
terra seca (v. 23). A uma ordem do S enhor, Moisés
mais uma vez estende a mão sobre o mar (vv. 26-
27a). As águas que voltam recobrem todo o exército
egípcio (v. 28). Por fim, P menciona, de forma muito
mais dramática que J, a passagem dos israelitas em
terra seca, com uma muralha d’água à direita e à
esquerda (v. 29). Em P, o gesto de Moisés substitui
o forte vento leste do Senhor.
15,1-21 Cântico do mar. A tradição mais antiga
sobre a travessia encontra-se nesta passagem (w. 1­
18.21), que, ao contrário das tradições J e P, está em
verso, não em prosa. Em geral, é considerada tradi­
ção independente, encaixada na posição atual por
meio dos w . 19-20. Com base em diversos critérios,
podemos datar o poema por volta de 1100 a.C.
Baseia-se ele em um poema canaanita mais
primitivo (c. 1400 a.C.), que descreve o combate

entre Báal, deus da fertilidade, e Yamm, deus do
mar. O resultado do combate é que Yamm é vencido
por Báal, que no episódio seguinte recebe seu tem-
plo/palácio. No relato bíblico, o Senhor vence os
egípcios, criando uma tempestade no mar que, su­
cessivamente, afunda seus barcos e os leva à morte
por afogamento (w. 8-10). (Aparentemente, o vento
leste de J [14,21b] foi adaptado da referência do
poema ao vento forte do S enhor no v. 10.) É inte­
ressante notar que o poema se concentra na des­
truição do inimigo, com apenas uma alusão à pas­
sagem dos israelitas. Entretanto, ele ultrapassa as
proezas no mar dos Juncos para mencionar os efei­
tos de tal poder destruidor sobre os vizinhos de Israel
(vv. 14-16). Finalmente, o poema conclui com uma
alusão à régia posse do S enhor sobre seu santuário
(v. 17). (Essa necessidade não se limita a Jerusalém.
É fórmula geral para descrever a morada do Senhor,
na esteira do combate bem-sucedido.)
Essa travessia do mar dos Juncos relaciona-se,
obviamente, à travessia ritual do Jordão em Js 3-4.
Talvez devido à influência da travessia do Jordão,
a travessia do mar dos Juncos mudou o enfoque das
proezas militares do S enhor contra os egípcios para
a marcha de seu povo em direção à Terra Prometi­
da (V. 13).
PARTE II: ISRAEL NO DESERTO
Ex 15,22-18,27
Estes capítulos apresentam um resumo da ex­
periência de Israel no deserto. Por exemplo, tratam
da proteção do S enhor, em termos de proporcionar
comida e bebida (15,22-17,7), a derrota dos ini­
migos de Israel (17,8-16), a organização do povo
(18,13-27). Ao mesmo tempo, prenunciam eventos
que 0 Livro dos Números vai explorar. Portanto, o
leitor não se surpreende quando toda a geração do
deserto, com exceção de Kaleb e Josué, fica proi­
bida de entrar na Terra Prometida e condenada a
vagar pelo deserto.
Estes capítulos também tratam do símbolo hu­
mano da caminhada, símbolo que reflete a vida
como busca de sentido no nível dos indivíduos e
da comunidade (cf. também Eneida, Moby Dick, A
divina comédia). Lembramo-nos do Jesus de Lucas,
que resolutamente decide tomar a estrada de Jeru­
salém (Lc 9,51) e, assim, representar o sentido de
sua vida e de sua comunidade, passando por paixão,
morte e ressurreição. Em seu cenário atual, esses
capítulos são 0 prelúdio à experiência de Israel ao
fazer a aliança do Sinai.
Na literatura profética, há duas tradições dife­
rentes desse período da história de Israel. Primeiro,
a da misericórdia divina e da resposta generosa de
Israel a ela: “Eu te lembro teu devotamento do
tempo de tua juventude, o teu amor de recém-ca-
ÊXODO 16
sada; tu me seguias no deserto, por uma terra não-
-cultivada” (Jr 2,2; veja também Os 2,17). Depois,
a tradição da rebelião de Israel contra o S enhor,
captada no tema da murmuração predominante
no confronto entre o Senhor e Israel: “Mas a casa
de Israel se revoltou contra mim no deserto; eles
não caminharam segundo minhas leis, rejeitaram
meus costumes, que fazem viver o homem que os
pratica” (Ez 20,13). No Êxodo e, geralmente, em
Números, a primeira tradição, a misericórdia divi­
na, é primordial, enquanto a segunda, a rebelião de
Israel, é secundária. Os teólogos de Israel estavam
livres para adaptar a experiência do deserto, a fim
de explicar crises teológicas mais tardias.
15,22-27 Queixas em M ará. Este episódio
consiste em três tradições: P (vv. 22a.27), J (vv.
23-25) e deuteronômista (D) (v. 26). P apresenta as
informações à maneira de um itinerário — partida
e chegada, de lugar de parada a lugar de parada.
Assim, Moisés conduz o povo do mar de Juncos,
pelo deserto de Shur, até Elim. O v. 26 aplica ao in­
cidente em Mará a teologia básica do Livro do Deu-
teronômio. A obediência à vontade do S enhor ex­
pressa em seus mandamentos e preceitos evitará
conseqüências desastrosas, tais como as doenças in­
fligidas pelo S enhor aos egípcios.
A tradição J enfatiza a generosidade divina ao
satisfazer as necessidades da comunidade do de­
serto. Depois de três dias de viagem, a comunidade
encontra água em Mará, no entanto amarga, não-
potável. A situação difícil do povo faz Moisés cla­
mar ao S enhor, que providencia então um remédio
para adoçar a água. Embora J fale do povo que mur­
mura contra Moisés (v. 24), não há nenhum sinal
de rebelião. Além disso, o conteúdo das queixas
do povo está longe de ser claro. Segundo o v. 25,
é o S enhor que põe Israel à prova, não o contrário
(como em 17,2). Assim, havendo necessidade con­
creta, 0 Senhor responde com generosidade.
Junto com 16,1-17,7, esta passagem destaca as
feições femininas do S enhor. N os conceitos sociais
daquele tempo, era tarefa da mãe e mulher provi­
denciar comida e bebida. A mãe S enhor, portanto,
percebe a necessidade de seus filhos em apuros e
dá os passos necessários para amenizar a situação.
O Divino Guerreiro que venceu os poderosos egíp­
cios no mar dos Juncos é também a mãe amorosa
que reage com presteza aos problemas familiares.
16,1-36 As codornizes e o m aná. Este relato
concentra-se em duas realidades da península do
Sinai. O maná é a secreção de dois insetos que
vivem na tamargueira. A substância cai no chão,
onde endurece um pouco com o ar noturno. Os
beduínos apreciam este manjar do centro do Sinai
por sua doçura. As codornizes migram para a
Europa na primavera e voltam no outono. Quando
pousam, exaustas, na costa noroeste da península
do Sinai, são apanhadas com facilidade. (Para as 105
 ÊXODO 17
codornizes como substitutas do maná, cf. Nm 11,5­
6.31-33.)
P, autor principal deste relato (J encontra-se, pro­
vavelmente, nos vv. 4-5.29-32), decide desenvolver
certas dimensões “espirituais”. Assim, nos w. 17-21,
o maná é suficiente, quer recolhessem muito ou
pouco. Além disso, qualquer quantidade guardada
para o dia seguinte se enche de vermes e estraga.
De modo semelhante, nos vv. 22-26, há o elo entre
0 maná e o sábado. Em consequência, no sexto dia
todos recolhem o dobro, a fim de observar o des­
canso completo requerido no sétimo. O que sobra
do sexto dia é usado no sétimo. Na verdade, os que
saem no sábado para recolher maná estão profanan­
do esse dia sagrado — além disso, nada encontram
(V . 27).
A tradição original deste episódio expressava
o misericordioso cuidado divino do povo no deserto.
Devido às murmurações nos vv. 2 e 7, seria de es­
perar que a repentina chegada da glória do S enhor
(v. 11) incluísse um castigo para os rebeldes. Em
vez disso, no v. 12, por intermédio de Moisés, o
S enhor assegura ao povo que suas necessidades de
alimento serão satisfeitas. Se o povo tivesse se rebe­
lado contra o S enhor, seria um tanto surpreendente
que este cedesse às exigências dos rebeldes. Portan­
to, a explicação mais simples é a invocação da tra­
dição de misericórdia: o povo estava faminto e o
S enhor atendeu às suas súplicas de pão e carne,
fornecendo o maná e as codornizes (cf Sl 105,40).
Em vista do Exílio e, conseqüentemente, do en­
tendimento do episódio como rebelião da geração
do deserto, P introduziu o tema da murmuração,
que se expressa em forma de desejo de morrer, no
V. 3: “Quem dera tivéssemos sido mortos pela mão
do Senhor na terra do Egito, quando estávamos
sentados junto à panela de carne e comíamos pão
à vontade”. Esse desejo de morrer, no entanto, con­
tém o elemento de rejeição do plano salvífico di­
vino. Ao optar pela morte prematura no Egito, os
israelitas rejeitam os eventos que conduziram ao
impasse atual, o Êxodo. Não o sofrimento da fome,
mas 0 desespero teológico ocupa o centro da cena
nesse nível de tradição. A resposta de Moisés e
Aarão no v. 6 apóia essa interpretação da rebelião.
É uma questão que envolve o Deus que os fez sair
do Egito. A tradição da misericórdia divina con­
verte-se na tradição de se recusar a reconhecer que
0 Deus de Israel pode, na verdade, realizar o que
se dispõe a fazer.
17,1-7 M urm urações em Massá e M eribá.
Esta é uma narrativa de J, introduzida pelo itine­
rário de P no v. la. Como a história de J em Mará,
a tradição primordial deste trecho expressava a
misericórdia do S enhor para com seu povo ne­
cessitado. Ao contrário da tradição de Mará, esse
episódio contém também a tradição secundária da
contenda de Israel com o S enhor sobre a questão
106 do Êxodo.
Se omitirmos a crítica do povo ao S enhor no
final do v. 2, o restante desse v. poderá ser enten­
dido simplesmente como uma briga com Moisés e
uma exigência para que ele satisfaça as necessida­
des do povo. O clamor de Moisés ao S enhor no v.
4 não é diferente de seu pedido em 14,15 (P), que
resulta em uma resposta positiva do S enhor. Aqui, a
resposta favorável encontra-se no v. 5, onde Moisés
recebe ordens para golpear o rochedo com o bastão.
(Compare com a interpretação diferente em Nm
20,11-13.) O resultado é que o S enhor mais uma
vez satisfaz as necessidades de seu povo — aqui a
necessidade de água. Devemos também observar
que no v. 5 não há indicação de nenhum castigo.
O V. 3 contém a tradição secundária de rebeldia
neste relato. Na verdade, não é a sede que é funda­
mental. Antes, ela serve de pano de fundo para
contestar o valor do Êxodo; “A troco de que... fi­
zeste-nos subir do Egito para cá?” Como no capí­
tulo 16, o Êxodo é 0 objeto de crítica por causa da
falta de água. Nesse nível da tradição, há a rejeição
do plano divino.
Uma perspectiva da origem do tema de murmu­
rações de J afirma ser ele uma polêmica contra o
reino do Norte, de Israel, de forma específica contra
0 culto de Jeroboão I (931-910 a.C.) em Dan e
Betei (cf IRs 12,26-33). Essa nova orientação da
experiência do deserto tem o propósito de explicar
como o reino do norte perdeu o direito à eleição
divina e por que o reino do sul o conservou (cf Sl
78,67-72). Pela rebelião da geração do deserto, o
norte perdeu o direito à eleição, enquanto o sul
preservou sua posição por meio do reino davídico
em Jerusalém.
17,8-16 Combate contra os amalequitas. É
aliviador deparar com uma narrativa que exalta uma
grande proeza humana, no meio da impressionante
exibição de poder divino. Essa narrativa de J é
uma lenda, uma narrativa com o propósito de edi-
ficar, nesse caso refletir sobre a estatura heróica de
Moisés. Embora a salvação sempre envolva a inte­
ração de graça divina e colaboração humana, é ani­
mador encontrar uma história em que o protago­
nista humano está em evidência.
Com exceção dos esclarecimentos nos vv. 14-15
sobre o ódio implacável que Israel sente por Amaleq
e a origem de um altar (tais explicações chamam-se
etiologias), todo o movimento concentra-se em Moisés,
não no S enhor. N o v. 9, Moisés encarrega Josué
de fazer os preparativos para o combate e acrescenta
que ele próprio assumirá sua posição em uma co­
lina próxima. Apesar de não serem fornecidos
detalhes do combate, há farta descrição da contri­
buição de Moisés para o resultado feliz. Sua tena­
cidade e sua firmeza levam Israel à vitória. A per­
severança demonstrada ao manter as mãos erguidas,
embora com a ajuda de Aarão e Hur (v. 12), é pre­
cisamente 0 que deveriamos esperar de tal gigante.
Essas dimensões heróicas são representadas pela

expressão “mãos... firmes”, no v. 12. A firmeza
descrita no relato é a fidelidade demonstrada ao
realizar uma tarefa oficial (cf. 2Rs 12,16; 22,7). É
a coragem desse homem que muda o curso do com­
bate. Apesar de todas as suas falhas, Moisés man­
tém a imagem de herói e super-homem (cf Dt
34,7.10-12).
Os amalequitas, que controlavam as rotas das ca­
ravanas entre o Egito e a Arábia, viviam no Négueb,
no extremo sul de Israel (cf. ISm 15,7). Já que se
ligam à tribo de Judá e, provavelmente, à tradição
do êxodo-expulsão, aqui a história está deslocada.
Entretanto, como descrição das qualidades lieróicas
de Moisés é, na verdade, muito oportuna em sua
posição atual.
18,1-27 O encontro de Moisés com litrô. Este
capítulo, obra de E, contém duas cenas: a) o encon­
tro de Moisés com o sogro, que culmina com um
banquete de aliança (vv. 1-12); b) a descentraliza­
ção da autoridade judicial em Israel, que resulta na
nomeação de juizes “menores” (vv. 13-27). O episó­
dio ocorre no deserto próximo à montanha de Deus
(v. 5). Ao contrário da montanha de Deus no capítu­
lo 19, essa montanha não é cenário de uma teofania,
mas de um encontro.
litrô não é novo na história. Em 2,11-22, J narrou
o casamento de Moisés com a filha dele. O surpre­
endente nesse relato é que E se concentra em litrô.
Embora este último traga mesmo a filha e os dois
netos para se encontrar com Moisés (em 2,22, Moisés
tem um só filho, mas veja 4,20), a mulher e os dois
filhos desempenham um papel insignificante. No
V. 7, Moisés praticamente os ignora. Moisés e litrô
são claramente as figuras centrais.
O encontro gira em tomo do que Moisés conta
sobre os feitos do S enhor ( v. 8), da reação cheia de
alegria de litrô à história (vv. 9-11) e de um banque­
te de aliança com litrô, por um lado, e com Aarão
e os anciãos, por outro (v. 12). Embora alguns con­
siderem a declaração de litrô sinal de sua conver­
são ao culto do S enhor ( v. 11; cf. 2Rs 5,15), tam­
bém é provável que litrô apenas tenha reconhecido
que 0 Deus de Moisés, o S enhor, era mais pode­
roso que todos os outros deuses (cf Js 2,9-11).
Embora litrô seja chamado de sacerdote (v. 1) e,
portanto, exercesse uma função cultuai, na verdade
não há nenhum fundamento indicando que fosse
um sacerdote do S enhor ou partilhasse sua fé nele
com Moisés. No v. 12, aliás, é digna de nota a au­
sência de Moisés. Aqui litrô participa das oferendas
sacrificais, indicando assim a aceitação de um re­
lacionamento mútuo com os israelitas. Levando em
conta a posterior inimizade entre midianitas e is­
raelitas, essa tradição reflete uma primitiva ligação
mais amigável entre os dois grupos.
Os vv. 13-27 pressupõem uma situação criada
depois da experiência no deserto, em uma época
em que a população era grande e sedentária. A dis­
Ê X O D 018
tinção entre os assuntos mais e menos importantes
(v. 22) indica a descentralização da autoridade
legal. Segundo alguns especialistas, talvez indi­
que as^tribuições judiciais durante o tempo do rei
Josafat (871-848 a.C. — c f 2Cr 19,5-11). De
qualquer modo, uma situação subseqüente foi trans­
portada para a experiência do deserto e, eissim, a
solução mais tardia foi atribuída a Moisés. Toda­
via, a história fornece, ao mesmo tempo, outra opor­
tunidade para E enfatizar seu tema do temor divi­
no (cf 1,17.21). Seu sogro aconselha Moisés a es­
colher homens tementes a Deus (v. 21). Esta orien­
tação básica do temor de Deus assegurará o bem
comum, em especial evitando o suborno (veja Dt
16,19).
PARTE III: A ALIANÇA
Ex 19,1-24,11
Alianças fazem parte da vida social humana.
Como os humanos são atraídos a relacionamentos
com outros humanos, os termos desse relaciona­
mento devem, antes de mais nada, ser esclarecidos
e depois aceitos. A aliança, portanto, é um relacio­
namento no qual o elo moral entre as partes envol­
vidas é definido e depois aceito. Por exemplo, em
Gn 31,43-32,3, Jacó e Laban fazem uma aliança.
Elemento significativo nesse relacionamento é o jura­
mento por ambas as partes de não atacar a outra
(Gn 31,52-53). Além disso, um monte de pedras
serve de testemunha da aliança (Gn 31,45-48). Por
fim, uma refeição ritual também é fundamental:
“Jacó ofereceu um sacrifício na montanha. Convi­
dou seus irmãos para a refeição” (Gn 31,54).
A posição do S enhor é diferença óbvia entre
a aliança de Jacó e Laban e a do Sinai. O S enhor
não é um parceiro igual na aliança. Ao contrário,
é 0 superior, e Israel, o inferior. Em conseqüência,
o S enhor comanda, enquanto se espera que Israel
obedeça. A palavra empenhada de Israel para agir
de acordo com os termos do relacionamento é, por­
tanto, fundamental para sua existência como povo
escolhido do S enhor. A vida da aliança é, por defi­
nição, 0 desafio constante à fidelidade contínua.
Já que a aliança do Sinai foi a experiência
pela qual esse povo passou a ser o povo de Deus,
é natural presumir que o cenário da montanha
seria o lugar de encontro lógico para uma varieda­
de de interpretações deste relacionamento. A varie­
dade de tradições reflete os esforços inexoráveis
de Israel para compreender sua posição única em
relação ao S enhor. Por isso, o Senhor e Israel podiam
ser percebidos de várias maneiras. Ao mesmo tempo,
OS presentes capítulos testemunham certo conserva­
dorismo. Israel não se contentava em empregar uma
tradição e depois descartá-la. Ao contrário, preferiu
conservar diversas tradições, porque cada uma delas
preservava um valor diferente. 107
 ÊXODO 19
Em meio às características das tradições da
aliança de Israel, há também certo esquema válido
para a maioria delas. Primeiro, há o encontro com
0 S enhor que intimida seu povo. Segundo, há a ex­
pressão da vontade do S enhor para seu povo. Aqui,
Moisés é 0 destinatário dos termos da existência
da aliança. Terceiro, Moisés comunica ao povo a
vontade do S enhor, como a recebeu. Esse esquema
básico é também testemunho da posição única de
Moisés como mediador da aliança.
19,1-2 O cenário. P continua seu itinerário (cf.
16,1; 17,1), dessa vez mencionando que os israelitas
chegaram ao Sinai. A tradição seguinte de P só virá
em 24,15b, por isso não há tradição do preparo da
aliança do Sinai, comparável a J e E. Para P há ape­
nas a aliança com Abraão, que ainda perdura (cf.
Gn 17,13). Contudo, o Sinai será o lugar ideal de P
para muitas das tradições cultuais de Israel.
A localização exata do Sinai não é conhecida.
Para os que seguem a rota meridional da tradição
do êxodo-fuga, a montanha em questão é muitas
vezes identificada como Gebel Musa (montanha
de Moisés). Seu tamanho (2.294 m) é considerado
imponente o bastante para a importância das tradi­
ções ligadas á narrativa bíblica. No sopé dessa
montanha no deserto do Sinai, ergue-se agora o
mosteiro ortodoxo grego de santa Catarina.
19,3-8 A titude em relação à aliança. A tradi­
ção contida nos vv. 3b-8 é de caráter independente,
tirada da liturgia agora introduzida pelo v. 3a. Seu
propósito é promover a atitude apropriada que deve
guiar o povo de Deus. Embora seja obviamente
uma proclamação, não fornece regras de conduta
exatas. Ao contrário, enfatiza a noção de palavra
(v. 5; “se ouvirdes a minha voz”). Israel recebe
ordens para ouvir e, assim, agir de acordo com a
palavra do S enhor. O uso do discurso direto (“eu”
e “vós”) acrescenta solenidade e força. Na verdade,
Israel deve aprender por meio dos poderosos fei­
tos divinos contra os egípcios (v. 4) a natureza do
Senhor e a grande responsabilidade de prestar aten­
ção a sua palavra.
Há também outras dimensões, como a ênfase
na intimidade. O S enhor conduz o povo, não
apenas a determinado destino no deserto, mas até
ele (v. 4). A aliança é especificamente do S enhor
(v. 5: “minha aliança”) e o povo é unicamente seu.
A palavra hebraica traduzida por “parte pessoal”
(v. 5) evoca a idéia de propriedade particular pes­
soal de um rei (cf. Dt 7,6; 14,2; 26,18). Há tam­
bém ênfase na santidade de Israel (v. 6), caracterís­
tica pela qual a nação é afastada do domínio dos
profanos. A expressão “reino de sacerdotes” não
supõe que todo israelita seja sacerdote. É provável
que o propósito seja indicar a totalidade de Israel:
uma realeza de sacerdotes e uma nação santa. Final­
mente, há ênfase na liberdade. Israel não é coagido
a aceitar o relacionamento (v. 5: “Agora, pois, se
108 ouvirdes a minha voz”). Em Israel, o S enhor nunca
é um titereiro que puxa os cordões por capricho
para controlar o comportamento humano. Somente
a resposta livre é resposta adequada.
Essa tradição litúrgica sugere uma abordagem
pela qual o Senhor pode ser considerado o suserano e
Israel, o vassalo. Aqui há traços dessa concepção, que
se completarão no Livro do Deuteronômio, em que o
modelo de aliança é o de um tratado no qual o Senhor
é 0 suserano e Israel é o vassalo. Israel podia, assim,
usar modelos políticos com grande vantagem.
19,9-20 Duas tradições de teofania. Esta passa­
gem contém as tradições J e E da teofania do Sinai
— a manifestação divina sobre a montanha. (O v. 9
é uma glosa que reúne a tradição anterior a J e E.)
Para J (w. 10-1 la.I2-13a.l4-16a.l8.20), a teofania é
a de uma erupção vulcânica. E uma descrição literária,
que não exige a busca de um vulcão agora extinto
em alguma parte da Arábia. Para E (vv. 1Ib.l3b.l6b-
17.19), a teofania é a de uma tempestade que provoca
o medo.
No relato de J, é o S enhor que escolhe Moisés
para ouvir a revelação e, então, partilhá-la com o
povo (v. 10). Moisés deve preparar o povo para
uma cerimônia no terceiro dia (vv. 11 a. 15a — veja
também Os 6,1-3 e ICor 15,4 para o uso do tercei­
ro dia em um ambiente de aliança). A cerimônia
envolve lavar as vestes e a continência (vv. 14b. 15b).
Embora a menção de prontidão (vv. 1 la.l5a) tam­
bém faça parte dos preparativos para a guerra santa,
a ênfase está mais na santidade e menos na guerra
(cf. 7,14; 38,7). O que se espera do povo é que res­
peite os limites da montanha (v. 12), pois o S enhor
a ocupará (v. 20). O poder e a majestade desse
Deus estão evidentes no fogo, na fumaça e no tre­
mor da montanha. E sua presença que produz a
aliança. (As estipulações exatas deste relaciona­
mento encontram-se agora no capítulo 34.)
No relato de E, o povo escolhe Moisés para
ser seu porta-voz (20,19). O medo causado pela
tempestade (19,16b) leva a essa decisão. Também
esse medo deixa-os dispostos a receber a vontade
do Deus da tempestade. Ao contrário do relato de
J, a tradição E faz Moisés organizar uma procis­
são litúrgica, mas que coloca o povo no sopé da
montanha (19,13b. 17b). A tradição também alude
ao encontro com esse Deus no cenário de uma
guerra santa. O acampamento do v. 17 não precisa
se limitar a um acampamento nômade; é igual­
mente militar. Embora seja um instrumento litúr-
gico (SI 47,6), a trompa é também instrumento mi­
litar usado com propósitos de guerra (c f Jz 7,20;
igualmente Js 6: o chifre de carneiro mencionado
no V. 13b é litúrgico e também militar). O verbo he­
braico usado em Ex 19,17 (“ficaram parados”)
também significa alinhar-se em formação militar
(cf Jz 20,2). Assim, no Sinai, Israel é a milícia
divina, pronta para obedecer à vontade deste coman­
dante cuja presença é marcada pela nuvem sobre a
montanha.

19,21-25 A santidade da m ontanha. Nesta
passagem, J dá seqüência ao tema da santidade da
montanha mencionado nos w . 12-13a. Ao notar que
o povo será tentado a ver o S enhor, J faz Moisés
exortá-lo a manter distância reverente. Não só o
povo em geral deve se santificar (v. 10), mas tam­
bém os sacerdotes (v. 22). Embora Aarão tenha
permissão para acompanhar Moisés na subida até
o Senhor, os sacerdotes e o povo são expressamente
proibidos (v. 24). O campo do Senhor deve ser
respeitado.
20,1-17 Os dez mandamentos. Embora o es­
quema básico exija a expressão da vontade divina
depois do encontro com o Senhor, a forma atual do
texto bíblico é um tanto desconcertante. No texto
J de 19,25, Moisés desce a montanha para falar
com o povo. Em seguida, em 20,1, Deus comunica
os dez mandamentos de maneira um tanto brusca,
0 que, por sua vez, é seguido pela observação no
texto E de 20,19 de que a fala direta de Deus a eles
resultará em morte. Finalmente, em 20,22, o Senhor
fala diretamente a Moisés.
Tanto os Dez Mandamentos como o Código
da Aliança (20,22-23,19) têm sido associados à tra­
dição E. Com toda a probabilidade não são obra
pessoal de E, mas tradições independentes inseridas
por E nesse ponto. Em uma primeira etapa, o temor
experimentado pelo povo (cf. E em 20,18) foi resul­
tado direto da teofania da tempestade no capítulo
19. Em conseqüência disso, Moisés foi encarregado
de ouvir a revelação toda. Devido à importância
dos dez mandamentos, em uma segunda etapa, o
povo ouviu essa lei fundamental. Esse ato de ouvir
os levou ao temor, que, por sua vez, levou ao rece­
bimento por Moisés do resto da legislação (o Có­
digo da Aliança). Essa segunda etapa realçou cla­
ramente a estatura dos Dez Mandamentos, pois, ao
contrário do Código da Aliança, Deus os comunicou
diretamente ao povo.
A forma dos Dez Mandamentos é significativa.
É uma série de leis apodícticas, isto é, que impõem
uma ordem diretamente a alguém, obrigando essa
pessoa a desempenhar (ou abster-se de desempe­
nhar) uma ação que o legislador julgue desejável
(ou prejudicial). As leis apodícticas admitem duas
formulações: a) terceira pessoa, como em Dt 17,6
(“Não haverá condenação à morte com base no
depoimento de uma só testemunha”); b) segunda
pessoa, como em Lv 18,8 (“Não descobrirás a nu­
dez de uma mulher de teu pai”). Embora essas leis
apodícticas só se encontrem excepcionalmente no
antigo Oriente Próximo, são características de Israel.
Além disso, na medida em que expressam a orien­
tação religiosa de todo um povo, as formulações na
segunda pessoa são exclusivas de Israel. Há, portan­
to, uma dimensão de intimidade, em esp>ecial nessas
formulações na segunda pessoa do singular, pois o
Senhor Éila diretamente ao indivíduo israelita. Essas
leis baseiam-se em uma pessoa, não em um siste­
ÊXODO 20
ma legislativo impessoal (cf. Gn 2,17). Embora o
homicídio e o adultério já fossem proibidos no anti­
go Oriente Próximo, o quinto e o sexto (resp. sexto e
sétimo) mandamentos são leis novas.
Com exceção dos três (resp. quatro) primeiros,
os dez mandamentos são originalmente uma forma
de sabedoria tribal. Antes de serem unidos na forma
atual, circularam em diferentes séries de ordens que
os jovens de uma tribo deviam aprender com os an­
ciãos (cf. Lv 18; Tb 4; Jr 35). Os anciãos das tribos
procuravam prover o bem comum e sua posição dava
autoridade ao que diziam.
Como deixa claro o v. 1, o S enhor é a pessoa
por trás dessa legislação. Entretanto, ele é mais que
um ancião tribal. Identifica-se como alguém que
agiu em benefício da comunidade. Usando a fórmu­
la introdutória litúrgica (“Eu sou”), o texto insiste
na centralidade do papel do Senhor no Êxodo. Israel
está ligado a esses mandamentos, não só porque
são para o bem comum, mas também porque esse
Deus interveio de forma decisiva em sua vida. (Cf.
como Dt 5,15 usa a tradição do Êxodo como moti­
vação para a observância do sábado, em vez da
tradição da criação usada aqui nos w. 9-11.)
20,18-21 Designação de Moisés como media­
dor. O temor originalmente atribuído à teofania
(19,16b) agora relaciona-se à proclamação divina
nos dez mandamentos. (O monte envolto em fumaça
do V . 18 harmoniza as tradições de J e E.) Neste
texto E, Moisés é encarregado de ouvir o restante
da revelação (v. 19). Não é surpreendente que E en­
fatize o tema do temor de Deus no v. 20; esse temor
ajudará a evitar o pecado. Aqui, E conclui com a
menção da subida de Moisés, no v. 21, subida que
se expandirá em 24,12-15a.
20,22-26 Introdução ao Código da Aliança.
A legislação que Moisés agora ouve sozinho come­
ça em 20,22 e termina em 23,19. Chama-se Código,
ou Livro, da Aliança, porque, em 24,3, o povo con­
corda em aceitar a vontade divina, depois especifi­
camente chamada em 24,7 “livro da aliança”. Como
aconteceu com os Dez Mandamentos, E toma em­
prestado uma ou algumas coleções independentes
que insere neste ponto da teofania do Sinai. Embora
esta passagem do Êxodo possa parecer a alguns lei­
tores excessivamente legal e talvez legalista, portan­
to árida, mesmo assim precisamos procurar os valo­
res que Israel percebia aqui. Um deles é a conside­
ração de Israel pela pessoa humana, valor que se
destaca quando comparado a outros códigos legais
do antigo Oriente Próximo. Essa atitude tem origem
nas convicções religiosas de Israel.
Estes w . iniciais dão prosseguimento à forma
apodíctica dos Dez Mandamentos (todavia, o v. 23
está no plural e o v. 25 é uma forma mista). Ao
contrário das tradições J e E, que associam a presen­
ça de Deus de uma ou outra forma à montanha,
essa tradição independente faz Deus falar do céu 109
 EXODO 21
(v. 24). A proibição de imagens origina-se do fato
de que o S enhor não podia ser visto e, por isso,
não podia ser representado. A lei do altar (w. 24-26)
pressupõe a primeira fase da vida de Israel na ter­
ra. É permitido erigir mais de ura santuário — de
fato tantos quantos fossem os lugares onde a pre­
sença de Deus era reconhecida. É proibido um altar
elevado, pois pode envolver imodéstia da parte
do sacrificante (cf. as precauções tomadas em
28,40-42).
21,1-11 A lei sobre os escravos. O v. 2 intro­
duz a parte casuística ou de jurisprudência do Có­
digo da Aliança. (Essa parte continua até 22,16.)
Essa era a forma de lei típica do antigo Oriente
Próximo. Por natureza, a lei casuística é pragmáti­
ca; não depende diretamehte de nenhum princípio
ético. O sujeito é apenas lembrado das conseqüên-
cias desagradáveis que advirão da transgressão da
lei. Em termos de obrigação, a lei casuística obriga
o juiz ou juizes que atuam para o legislador. O pró­
prio centro destas leis é a solução: se ocorreu isto
ou aquilo, então o resultado é este ou aquele. Embora
tenham um tom personalista por causa da ambien-
tação no Sinai, afora essa nota importante, são leis
humanas leigas e práticas, escritas, na maior parte,
na terceira pessoa. (Para um exemplo de lei casuísti­
ca na segunda pessoa, veja 21,2.) Seu ambiente indi­
ca um tempo em Israel logo depois da ocupação da
terra
A parte que trata dos escravos distingue de
modo claro escravos e donos e formula determina­
das limitações nos direitos dos donos. A palavra
“hebreu” no v. 2 significava originalmente habini
— pessoas apátridas e rebeldes que assolavam o
antigo Oriente Próximo. Entretanto, em seu uso
atual, a palavra significa “israelita”. A situação des­
crita no V. 4 indica que as mulheres pertencem ao
dono. O ideal (cf Jr 34,8-22) é que a escravidão
de israelitas seja apenas temporária; seis anos para
os homens israelitas (v. 2). (Dt 21,10-14 aplica a
mesma regra às mulheres israelitas.) Os vv. 8-11
contêm legislação especial para o caso de dar a
escrava em casamento. Nesse caso, ela goza de
certos direitos como esposa.
21,12-17 Ofensas puníveis com a morte. Em­
bora esta passagem contenha uma mistura de for­
mas legais, o que a toma uma unidade é o assunto;
ofensas à vida humana que envolvem a pena de mor­
te. Embora o v. 12 estabeleça um princípio geral, os
vv. 13 e 14 fazem distinções. No caso de homicídio
não premeditado ou morte acidental (“ato de Deus”),
é dado asilo em um santuário. No caso de homicídio
premeditado, nem mesmo o santuário valerá. Com
0 respeito devido aos pais (vv. 15.17), a legislação
israelita é mais exigente que a do antigo Oriente
Próximo e Médio em geral.
21,18-31 Leis a respeito de lesões corporais.
110 Os donos não podem dispor dos escravos confor­
me seus caprichos. Os casos mencionados nos vv.
20-21 e 26-27 indicam limitações em seus direitos.
Os vv. 23-25 enunciam a lei do talião, que tem o
propósito de reprimir a vingança desenfreada, insis­
tindo na compensação proporcional. Entretanto, os
escravos não gozam desse direito, porque recebem
apenas a liberdade em compensação pela lesão so­
frida (vv. 26-27). O V. 32 é outro indício da situa­
ção do escravo. Na morte de um escravo por chi­
fradas, 0 dono negligente do animal é obrigado a
pagar ao senhor do escravo morto o preço atual de
um escravo.
21,33-22,14 Leis sobre danos à propriedade.
Israel nunca estabeleceu a pena de morte por crimes
contra a propriedade, restrição que os Estados oci­
dentais mais progressistas só reconheceram no iní­
cio do século passado. O princípio geral exempli­
ficado nesta passagem é que o indivíduo que foi
prejudicado em sua propriedade deve ser compensa­
do. A compensação tem caráter penal e, em geral, é
maior do que o prejuízo causado. Assim, o homem
que rouba um boi ou uma ovelha e depois mata-o
ou vende-o deve pagar cinco vezes pelo boi e quatro
vezes pela ovelha (21,37). O ladrão que não pode
fazer restituição plena por seu crime deve ser ven­
dido como escravo (22,2).
Os vv. 6-10 têm a ver com a sentença divina.
Segundo os vv. 7 e 8, a justiça é administrada diante
de Deus, isto é, em lugar santo ou santuário. Nas
disputas legais expressas nestes vv., o modo da
sentença é melhor explicado pelo v. 10. A parte ou
as partes envolvidas precisam jurar em nome do
S enhor. Esse procedimento reflete a santidade do
nome divino; menosprezar o nome é menosprezar
a pessoa.
22,15-23,9 Leis sociais. (Embora os vv. 15-16
pertençam à parte casuística do Código da Aliança,
estão aqui agrupados por causa do conteúdo.)
22,17—23,19 constitui a parte apodíctica do Código
da Aliança. Digna de nota aqui é a sensibilidade
ética às exigências da caridade para com o compa­
triota israelita. Insistindo com tanta freqüência na
obrigação do amor, transcende os Dez Mandamen­
tos, que dizem respeito apenas às exigências de
justiça.
A sedução de uma virgem não prometida em
casamento resulta em graves problemas financeiros
para o pai, porque seria difícil para ela encontrar
um pretendente. (Para a preocupação do pai com a
filha, cf. Sr 42,9-14.) Em 22,15, a lei estabelece
que o sedutor deve desposá-la ou, ho caso de o pai
se recusar a dá-la, pagar o preço costumeiro do
dote das virgens. Em Israel existe um critério moral
duplo. É a situação da mulher que determina o adul­
tério, não a do homem. Se a mulher é prometida ou
casada e, portanto, propriedade de outro homem, é
adultério. Se a mulher não é nem prometida nem
casada, não é adultério, mesmo que o homem em
questão seja casado.

A feitiçaria (22,17) e a bestialidade (22,18) acar­
retam a pena de morte. Embora ofensa capital, o
sacrifício a falsos deuses (22,19) é tratado de maneira
diferente. Essa pessoa deve ser votada ao interdito
— totalmente destruída. Alguns acham que essa in­
terdição aplica-se também a seus pertences.
Em 22,20-23 e 23,9, as leis tratam dos que são
legalmente incapazes. Os migrantes (cf. 12,48) são
estrangeiros que vivem entre os israelitas e gozam
de certos direitos. Como não gozam de direitos ci­
vis plenos em igualdade de condições com os israe­
litas, muitas vezes são vítimas de opressão. O v. 20
mostra uma peculiaridade da jurisprudência israeli­
ta, a exortação. Israel não só declara a lei, como
também muitas vezes dá razões para sua observân­
cia. Neste caso, Israel deve se lembrar de sua exis­
tência precária no Egito e, por isso, trata o migran­
te de maneira apropriada. Como a economia depen­
de dos homens da casa, as viúvas e os sem-pai (sig­
nificado de “órfão” nesse contexto sociológico) estão
expostos aos maiores perigos. Para neutralizá-los,
a legislação dos vv. 22-23 insiste no envolvimento
divino. O S enhor ouvirá os clamores e punirá os
culpados. A convicção de Israel é que uma socieda­
de verdadeiramente forte cuida de seus membros
mais fracos.
A exortação também é proeminente nos vv.
24-26. O manto tomado em penhor deve ser devol­
vido ao pôr-do-sol, porque também serve de cober­
tor. O clamor de um israelita sem manto merece
pronta ação do Senhor.
A matéria de 23,1-3.6-8 trata de procedimen­
tos legais. Os que formam os tribunais populares
de Israel são exortados a não dar falso testemunho
(v. 1), nem seguir a maioria em detrimento da jus­
tiça (v. 2), e a não aceitar propinas (v. 8). Positi­
vamente, devem absolver os inocentes e condenar
os culpados (v. 8). Como é improvável que alguém
se incline a favorecer os pobres em um processo,
alguns emendam o v. 3 para; “Não favorecerás o
rico em sua ação judicial”. Em qualquer caso, o
V. 6 claramente defende os necessitados nos lití­
gios. Infelizmente, os profetas de Israel tiveram
de censurar a manipulação dos pobres na admi­
nistração da justiça (c f Is 1,23; 10,2; Ez 22,29;
Am 5,10).
As provisões de 23,4-5 concentram-se no ini­
migo pessoal de alguém (há quem identifique esse
inimigo em termos de uma disputa legal real ou
iminente). A obediência ao S enhor da aliança tem
precedência sobre os antagonismos pessoais. Ou
melhor, tal obediência exige ver nossos inimigos
de uma nova perspectiva. Em todo caso, bois ou
jumentos perdidos devem ser devolvidos ao dono,
e um jumento sobrecarregado deve ser ajudado para
ajeitar a carga.
23,10-19 Leis religiosas. Os vv. 10-12 refe­
rem-se ao ano sabático e ao próprio sábado. Segun­
do os vv. 10-11, os campos, as vinhas e os olivais
EXODO 23
devem deixar de ser cultivados a cada sete anos.
Os pobres são vistos como os principais beneficiá­
rios dessa instituição (cf também Lv 25,2-7; Dt
15,1-3). A menção do sábado no v. 12 sugere que
0 ano sabático deve acontecer em uma data fixa.
Entretanto, não há evidência positiva para docu­
mentar sua observância real. A respeito do sábado,
a lei no V 12 declara que escravos, migrantes e até
animais devem se beneficiar do dia de descanso.
(A palavra “sábado” em hebraico sugere “fazer alto,
parar”. E um dia marcado pelo descanso, quando
cessam todas as atividades cotidianas.)
Depois de mencionar o culto exclusivo do nome
(e, portanto, da pessoa) de Deus no v. 13, o Código
da Aliança considera as peregrinações a ser obser­
vadas em Israel, isto é, festas que exigem a presença
dos homens nos santuários locais. A Festa dos Azi-
mos ou Pães sem fermento celebra o início da colhei­
ta da cevada (cf 13,3-10). Aqui é ligada a quando
Israel saiu do Egito (v. 15). A Festa da Ceifa ou das
Semanas (Pentecostes), que ocorre cerca de cinquenta
dias depois da dos Pães sem fermento marca o fim
da colheita. Finalmente, a festa no fim do ano, tam­
bém chamada da Colheita ou das Tendas, celebra a
colheita de toda a produção do campo. Como essas
três festas de peregrinação são agrícolas, eram cele­
bradas somente depois da experiência do deserto.
O Código da Aliança termina com diversas in-
junções sacrificais. Como o pão fermentado envol­
ve alteração, talvez fosse considerado inadequado
para o uso em sacrifícios (v. 18a). A gordura do
animal é considerada a parte mais saborosa (cf. Lv
3,17), mas sua conservação de um dia para o outro
resultaria em estrago (v. 18b). Por ser o Deus de
Israel, o S enhor é digno de receber as primícias
dos frutos do solo no santuário local (v. I9a). Não se
sabe explicar a proibição de cozinhar um cabrito no
leite da mãe (v. 19b) (outrora se pensava que fos­
se uma prática cultuai entre os canaanitas). Parece ser
uma prática pagã da qual ainda não conhecemos os
detalhes.
23,20-33 Comportamento na Terra Prometida.
Alguns vêem esta passagem à maneira de Lv 26 e
Dt 28 — uma lista de bênçãos que fluem da obe­
diência aos termos do código. Outros consideram-
na um discurso de despedida vagamente ligado ao
código. Como essas bênçãos não têm ligação estrei­
ta com os preceitos que as antecedem, a segunda
opinião é a preferida. (Entretanto, a fonte da tradi­
ção não está clara.)
O trecho é um discurso de despedida que visa
a encorajar o povo durante a monarquia primitiva
no século X a.C. (cf as fronteiras do reino davídi-
co-salomônico no v, 3 1). Nessa época, Israel é amea­
çado por costumes canaanitas, pois agora povo úni­
co de Israel vive lado a lado com canaanitas. Deus
está presente por intermédio de seu mensageiro
(vv. 20.23). Essa presença significa proteção, mes­
mo contra esmagadora superioridade numérica. En- 1 11
 ÊXODO 24
tretanto, a ação militar divina será apenas gradual
(vv. 30-31). Durante todo esse tempo, a obediência
ao Senhor e sua aliança deve ser predominante
(vv. 21-22.24.32-33). Embora devam viver com os
canaanitas, não devem adotar seus costumes. É obe­
diência desse quilate que produzirá as bênçãos de
abundância de comida e bebida, saúde, fertilidade
e vida longa (vv. 25-26).
24,1-2.9-11 Conclusão da aliança e o banquete
cerimoniai. Seguindo as tradições J e E da teofa-
nia e da legislação subseqüente nos capítulos 20-23,
agora vêm duas outras tradições da conclusão da
aliança: a) vv. 1-2.9-11 e b) vv. 3-8. Em forma de
ações rituais, proporcionam ainda duas outras vi­
sões de resposta à iniciativa divina. Embora 24,1
esteja acrescentado um tanto desajeitadamente às
tradições J e E, e embora 24,3 interrompa a tradi­
ção inicial, mesmo assim preservam grandes valores
em termos de conclusão de alianças, valores que
Israel esforçou-se bastante para preservar.
Em 24,1-2.9-11, há a celebração de uma refei­
ção na presença divina. Essa cena muito simples,
mas profunda, é uma tradição bastante antiga prove­
niente da percepção que Israel tem do S enhor como
chefe tribal. Por meio da refeição, o S enhor aceita
em sua família toda a comunidade, representada
pelos anciãos dos clãs. A refeição é a garantia e o
apoio dados pelo superior, o S enhor, ao inferior,
Israel. E digno de nota que os anciãos não precisam
acatar estipulações determinadas. O que precisam aca­
tar é a proteção a eles concedida pelo chefe tribal.
A resposta específica de Israel a esse gesto será
desenvolvida em tradições subsequentes.
243-8 A conclusão da aliança e o rito de san­
gue. Sacrifícios (aqui sacrifícios de paz) efetuam a
aliança. Em resposta à disposição do povo de acei­
tar a vontade do S enhor ( v . 3; cf. também v. 7),
Moisés escreve as estipulações (v. 4). Depois de ler
“o livro da aliança”, ele asperge o povo com me­
tade do sangue dos animais abatidos. Para Israel,
sangue é vida. O sangue aspírgido une-os ao san­
gue borrifado sobre o altar, que simboliza Deus.
Esse relacionamento de sangue criou uma união.
Entretanto, os termos para preservar esse relacio­
namento também são explicados em detalhe. Viven­
do segundo esses termos, Israel recebe a garantia
de sua constante união com o S enhor. A o contrá­
rio do antigo banquete cerimonial, esta forma de
conclusão de aliança dá maior destaque às exigên­
cias do Deus da aliança.
PARTE IV: INSTRUÇÕES PARA A
CONSTRUÇÃO DO SANTUÁRIO
Ex 24,12-31^
Depois das tradições finais da conclusão da
aliança (24,1-11), Moisés sobe com Josué à mon-
112 tanha para receber as tábuas. Essa partida prepara
o cenário para a narrativa do bezerro de ouro no
capítulo 32. Encaixado entre esses dois textos está o
relato de P sobre as instruções recebidas por Moisés
para a construção do santuário do deserto. Embora
P rejeite claramente qualquer aliança no Sinai, ele
acha esse cenário o lugar ideal para desenvolver
seus interesses cultuais. Por isso, esta passagem e
os capítulos 3 5 ^ 0 podem bem ser chamados de
documento político de P.
Ao lembrar a infidelidade de Israel que provo­
cou 0 saque de Jerusalém e o exílio subseqüente
em 585 a.C., P deseja salientar a natureza da comu­
nidade restaurada, um povo santo. De maneira con­
creta, a santidade acarreta instituições como sacer­
dócio, sacrifícios etc. Mas as instituições destinam­
-se a alcançar um propósito — a presença divina.
Embora para P não seja o lugar de conclusão da
aliança, o Sinai é o lugar por excelência para a ma­
nifestação do S enhor.
Embora P apresenta o santuário do deserto como
réplica perfeita do templo de Jerusalém, é errado
considerar todas essas elaborações cultuais uma re-
troprojeção daquele templo na experiência do deser­
to. Aliás, P também emprega tradições mais primi­
tivas, muitas delas ambientadas na religião canaa-
nita antiga. Embora se aproprie dessas instituições
canaanitas, P também as confronta, impondo-lhes
uma teologia da presença divina consonante com a
fé israelita.
24,12-15a A subida de Moisés. Esta passa­
gem E expande a declaração um tanto lacônica da
subida de Moisés em 20,21. Embora agora introdu-
za 0 material P, originalmente servia para posicio­
nar Moisés na montanha a fim de receber a revela­
ção divina (cf. 20,18-20). Essa revelação está liga­
da às tábuas que o S enhor escreverá. (Em P, as
tábuas são escritas pelo dedo de Deus [31,18], en­
quanto em J Moisés as escreve [34,28].) É interes­
sante notar que, no antigo Oriente Próximo, só
Israel representava seu Deus escrevendo ou ditando
legislação. Para E, a nuvem também é significante
por marcar a presença divina (cf. 19,16b; 20,21).
Finalmente, a noção de juizes adicionais no v. 14
está em harmonia com os juizes “menores” de E,
em 18,21-26.
24,15b-18 Teofania de P. Para P, essa breve
passagem não é apenas uma introdução aos capí­
tulos 25-31; é também uma profunda declaração
teológica da importância do Sinai. Aqui, ele liga a
manifestação divina no Sinai à construção do san­
tuário (40,17.33b) e à execução do primeiro sacri­
fício (Lv 9,1.23-24). Assim como a nuvem cobre a
montanha e a glória do S enhor permanece ali (vv.
15b-16a), também a nuvem cobre a tenda do Encon­
tro e a glória do Senhor enche o santuário (40,34).
No v. 16b, 0 S enhor chama Moisés no sétimo dia,
e em Lv 9,1 Moisés convoca Aarão, seus filhos e
os anciãos de Israel no oitavo dia. Segundo o v. 17,

a glória do S enhor é vista como um fogo devorador,
e segundo Lv 9,24a o fogo vem da presença do
Senhor e consome o sacrifício. Há, assim, claro pa­
ralelismo entre a manifestação no Sinai e o primeiro
ato de culto depois da manifestação. Portanto, o
Sinai se toma o modelo para o culto.
25,1-9 Coleta de m ateriais. O conceito de P
da morada terrena do S enhor retoma, mas reinter-
preta, tradições canaanitas antigas. Nessa religião,
El, 0 chefe do panteão, tinha uma tenda no alto de
uma montanha, onde divulgava decretos ou orácu­
los (cf. 33,7-11). No V. 9, Moisés recebe instruções
para fazer uma cópia da tenda na montanha. Há,
assim, semelhança de forma entre a morada terrena
da divindade e seu modelo celeste. P emprega dois
nomes para o lugar do S enhor ; a) o mais tradicio­
nal, “tenda do Encontro” (por exemplo, 40,32) e b)
0 nome especial “a Morada” (na TEB sempre com
inicial maiúscula). Usando a primeira expressão, P
entende o Deus transcendente de Israel que encon­
trará esse povo (cf. 29,42-43; 30,36). Para P, o
S enhor ocupará uma morada permanente no meio
de seu povo (c f 33,7-11).
Ao contrário de J e E, P dá orientações para
erigir o santuário e mobiliá-lo (c f também 36,8-
38). Apesar das elaborações de P, apresentadas
segundo o modelo do templo de Jerusalém, a rea­
lidade básica é a de um santuário portátil, uma tenda
semelhante às de Israel durante a caminhada no
deserto. Prática semelhante à das antigas tribos de
beduínos, que carregavam uma pequena tenda sa­
grada feita de couro vermelho. Durante suas via­
gens, essas tribos sentiam a presença de seus deuses
devido aos idolos de pedra contidos na tenda. Na
experiência humana, a presença do deus das pessoas
é considerada imperiosa.
25,10-22 Projeto da arca. Seguindo a prática
mencionada acima, Israel encontra seu Deus por
causa da arca que, com toda a probabilidade, fica­
va guardada na tenda. A arca é um estojo retangu­
lar de madeira, de dois côvados e meio de compri­
mento, um côvado e meio de largura e um côvado
e meio de altura, que contém as tábuas de pedra
dadas a Moisés pelo S enhor ( vv. 16.21) — daí o
nome “arca da aliança”, ou “arca do testemunho”.
(No antigo Oriente Próximo era prática comum
colocar tratados em um lugar sagrado, com a inten­
ção de lê-los em ocasiões estipuladas.)
Embora J e E não associem a arca à tenda, P
acrescenta que a arca tem um propiciatório ladeado
por dois querubins. O propiciatório é a tampa de
ouro da arca, associada ao perdão divino. Acima
do propiciatório, o S enhor fala a Moisés e, assim,
aos israelitas. (Para o papel do propiciatório no Dia
do Grande Perdão, cf. Lv 16,15-16; também Rm
3,25.) É provável que esse propiciatório fosse um
substituto para a arca, isto é, a sede da presença ou
misericórdia divina depois da destruição da arca
ÊXODO 27
(cf Jr 3,16). Com certeza, a arca original funcionava
como suporte ou pedestal para o Deus invisível de
Israel (cf. Nm 10,35-36). Depois que chegou à Terra
Prometida, a arca servia de trono ou escabelo do
S enhor (veja ISm 4,4). Os dois querubins de ouro,
divindades menores emprestadas dos vizinhos de
Israel, davam proteção ao trono e, assim, sugeriam
a presença do Deus de Israel.
25,23-40 A mesa e o candelabro. A mesa con­
tém o pão de oferenda (v. 30), que consiste em doze
pães sem fermento (cf. Lv 24,5-9), reabastecidos
todo sábado e reservados para os sacerdotes. Este
pão serve de lembrete da aliança divina com as doze
tribos de Israel. O candelabro ou menorá, embora
descrito minuciosamente, deixa os estudiosos descon­
certados. De qualquer modo, é um candelabro para
sete lâmpadas. Hoje a palavra menorá é usada para
um dos símbolos mais conhecidos do judaísmo, o
candelabro de sete braços. (Para os dez candelabros
do templo de Salomão, c f IRs 7,49.)
26.1- 37 Instruções para fazer o santuário do
deserto. Na concepção de P, o santuário do deserto é
um templo desmontável com exatamente a metade do
tamanho do templo de Salomão (veja IRs 6,2.16-17).
Primeiro, molduras de madeira formam uma constru­
ção retangular com q>roximadamente dez côvados de
comprimento, um côvado e meio de largura, um cô­
vado e meio de altura e aberto no lado leste (w. 15,29).
Segundo, tapeçarias de linho são costuradas para fa­
zer duas grandes peças unidas por meio de laçadas e
ganchos e com os querubins bordados sobre elas (w.
1-6). Terceiro, tapeçarias de pêlo de cabra são esticadas
para formar uma tenda por cima do santuário. Essas
tapeçarias são um pouco maiores que as dos w. 1-6
e caem em ambos os lados (w. 7,13). Finalmente,
peles de carneiro tingidas de vermelho cobrem toda
a construção e peles de tahash (couro curtido leve)
cobrem as peles de carneiro (v. 14).
Esta passagem também menciona dois véus. Há
uma cortina sobre a entrada do santuário (vv. 36-37)
e um véu entre o lugar santo e o lugar santíssimo
(w. 31-32). O véu é mais suntuoso que a cortina.
Por trás do véu, no lugar santíssimo (a área mais
santa ou mais sagrada), fica a arca com o propicia­
tório (w. 33-34). E o lugar reservado ao S enhor. N o
lugar santo ficam o candelabro e a mesa do pão de
oferenda (v. 35).
27.1- 8 O altar dos holocaustos. Basicamente
uma caixa de madeira oca, esse altar tem cerca de
cinco côvados de comprimento, cinco côvados de
largura e três côvados de altura, com revestimento
de bronze. É difícil entender como operava, pois o
calor das oferendas totalmente queimadas destruiría
0 altar. Para resolver esse problema, há quem sugi­
ra que eram colocadas pedras sobre o altar para
queimar (c f 29,18). Nos quatro ângulos do altar,
há chifres, importantes para quem procura asilo no
templo (c f 1Rs 1,50; 2,28). 113
 ÊXODO 27
27,9-19 O átrio do santuário. P agora descre­
ve o átrio bastante primoroso para o santuário do de­
serto, com aproximadamente cem côvados de com­
primento, cinqüenta de largura e cinco de altura (v.
18). Uma bárreira de colunas e varetas de prata (que
seguram cortinados de linho) separa o pátio de todas
as outras áreas. Lembramo-nos naturalmente da
visão de Ezequiel, que imaginou o templo cercado
por um muro para “separar o sagrado do profano”
(Ez 42,20).
27,20-21 O óleo para o candelabro. O óleo
de oliveira puro deve vir do povo, mas ser mani­
pulado pelos sacerdotes. A luz do santuário tem a
finalidade óbvia de ser um lembrete perpétuo da
presença do S enhor no santuário do deserto (cf.
Lv 24,2-4).
28,1-43 As vestes sacerdotais. Algum conhe­
cimento da história do sacerdócio em Israel é útil,
ou até necessário, para apreciar o documento po­
lítico de P. O sacerdócio propriamente dito só apa­
receu depois de haver considerável desenvolvimento
da constituição social da comunidade. (C f a ausên­
cia de sacerdotes para a Páscoa em 12,1-20.) Com
0 surgimento da monarquia, dois fenômenos ocorre­
ram: a) santuários rivais e b) centralização cres­
cente no templo de Jerusalém (cf ISm 2,27-36;
2Sm 15,24-29). Com a doutrina do Deuteronômio
acerca do santuário único em Jerusalém, os sacer­
dotes que serviam nos outros santuários perderam
suas funções (cf Dt 12,4-14). Esses sacerdotes
rurais, muitos descendentes de Levi, tomaram-se
cidadãos de segunda classe no templo de Jerusa­
lém e, muitas vezes, eram objeto de caridade, como
as viúvas, os órfãos de pai e os migrantes (cf Dt
26,12). Os únicos sacerdotes legítimos eram os sa-
doquitas de Jerusalém — os descendentes de Sadoq
(cf IRs 2,26-27; 4,2), que não descendiam de Levi.
A fim de realizar o ideal deuteronômico de que
todos os sacerdotes, independente da linhagem,
devem ser descendentes de Levi (cf Dt 17,9), os
sadoquitas de origem não-levítica alegavam ser um
grupo especial de levitas, a saber, os aaronitas, ou
descendentes de Aarão. O resultado foi que agora
os levitas eram sinônimo de empregados cultuais
inferiores, subordinados aos filhos de Sadoq (cf
Ez 44,10-31). No Êxodo, P reflete a reivindicação
dos sadoquitas de serem aaronitas.
Este capítulo endossa as reivindicações dos sa­
doquitas (v. 1). Concentra-se em Aarão, reservando
aos filhos de Aarão apenas os vv. 41-43. Convém
lembrar que no Antigo Testamento não havia orde­
nação de sacerdotes como tais. A palavra traduzida
por “conferir a investidura”, no v. 41, literalmente
significa “encher as mãos”, frase cujo sentido origi­
nal não está evidente. Em todo caso, os sacerdotes
eram santos ou sagrados em razão de suas funções.
Entre as vestes aqui mencionadas, as mais inte­
ressantes são 0 efod e o peitoral. Originalmente, o
114 efod era uma veste usada pelos sacerdotes e ligada
ao peitoral para o julgamento (v. 15). O peitoral,
do mesmo material que o efod, era uma bolsa que
continha as sortes sagradas conhecidas como Urim
e Tumim (v. 30). Essas sortes respondem “sim” ou
“não” para os que buscam oráculos dos sacerdotes
(veja ISm 14,36-37; 28,6). Com a ascendência do
profetismo, os sacerdotes não eram mais procura­
dos para dar oráculos. Em harmonia com essa evo­
lução, 0 Urim e o Tumim, ao contrário dos outros
objetos sacerdotais, são apenas mencionados, não
elaborados. Na descrição de P, esses instrumentos
originalmente oraculares agora contêm pedras gra­
vadas com os nomes das doze tribos (vv. 12.29)
29,1-9 Investidura dos sacerdotes. Esta Consa­
gração envolve três passos; o banho de purificação,
a vestição e a unção (cf. também Lv 8,1-38). Em
resultado da purificação ou banho, o sacerdote pode
entrar no recinto do santo (cf 30,17-21). É provável
que o rito de ungir o sumo sacerdote (v. 7) só tenha
surgido depois do Exílio, quando ele assumiu uma
posição política e, consequentemente, recebeu o sinal
da realeza. (Segundo 28,41 e outros textos, todos os
sacerdotes são ungidos.) Esta passagem conclui afir­
mando de maneira inequívoca as reivindicações
aaronitas dos sacerdotes sadoquitas de Jemsalém (cf.
também o v. 44).
29,10-37 Os sacrifícios da consagração sacer­
dotal. Há três tipos diferentes de sacrifício nesta
descrição pormenorizada. Primeiro, o sacrifício pelo
pecado, o novilho (vv. 10,14). Como a oferenda é
pelos pecados dos sacerdotes, eles não comparti­
lham a vítima. Segundo, o holocausto: o primeiro
carneiro (vv. 15-18). Terceiro, o sacrifício de paz:
o segundo carneiro (vv. 19-26.31-37). No v. 20,
Moisés consagra os sacerdotes, esfregando o sangue
do animal nas extremidades do corpo de Aarão e
seus filhos. Nos vv. 24-25, Moisés deposita partes
das vítimas nas mãos deles, fá-los oferecê-las com
o gesto de apresentação diante do S enhor e as re­
cebe de volta. Em resultado desse gesto ritual,
Aarão e seus filhos são investidos no poder sacerdo­
tal. (Os w. 27-30 interrompem a cerimônia. Deter­
minam 0 tributo devido as sacerdotes e fazem provi­
são para transferir as vestes sacerdotais.) Em segui­
da, os sacerdotes cozinham a carne do segundo car­
neiro e a compartilham em uma refeição sagrada.
Como essa refeição é sagrada por estar ligada à
consagração sacerdotal, os profanos não podem
acompanhá-los (vv. 31-35). Esta passagem conclui
mencionando a extensão da cerimônia. A excepcio­
nal santidade do altar (lugar de encontro do S enhor
— c f os vv. 43-44) é salientada no preceito do sa­
crifício cotidiano de um novilho durante o período
de sete dias (vv. 35-37).
29,38-46 Sacrifícios cotidianos. O sacrifício
cotidiano de dois cordeiros de um ano de idade (vv.
38-42) leva a uma profunda declaração teológica
por P (vv. 43-46). A consagração do altar, do san­
tuário e dos sacerdotes espera a presença constante

de Deus no meio de Israel. De maneira específica,
esse Deus que habita entre eles é justamente o Senhor
que fez os israelitas sair do Egito. As instituições
cultuais de Israel estão, assim, enraizadas no Êxodo
e no Sinai.
30.1- 38 Outros rituais de culto. O altar dos per­cução de uma ordem dada direta ou indiretamente
fumes (chamado altar de ouro em IRs 7,48) é talvez
uma inserção sacerdotal mais tardia, pois pela lógi­
ca devia ser mencionado em 26,33-37 e não está in­
cluído nos episódios relacionados com incenso no
deserto (cf. Nm 16,6-7.17-18; 17,11-12). Todas as
manhãs e todas as tardes (vv. 7-8) um sacerdote
retira com uma pá pedaços de carvão do altar dos
holocaustos, asperge pó nos carvões e os coloca no
altar dos perfumes (cf. Lc 1,8-9). Os vv. 34-38 for­
necem a mistura para esse perfume plenamente sa­
grado. No dia do Grande Perdão (v. 10), o sumo
sacerdote leva esta proteção de fumaça salvadora
ao lugar santíssimo e esfrega o sangue do animal
sacrifical nos chifres do próprio altar dos perfumes
(cf Lv 16,12-13.18).
O recenseamento é interpretado como tarefa
perigosa (cf 32,30-35; 2Sm 24). Todos com vinte
anos ou mais que procuram ser registrados e dese­
jam evitar a praga do recenseamento devem fazer
a contribuição de meio sido para o santuário (vv.
11-16; c f Ne 10,33-35). Essa precaução religiosa
é oferenda adequada para a manutenção da morada
do S enhor.
Os vv. 17-33 decretam outras exigências para a
equipe e os objetos do culto. Segundo os w. 17-21,
os sacerdotes devem empregar a bacia (cf 2Cr 4,6)
para lavar as mãos e os pés antes de entrar no san­
tuário e ao oficiar no altar (todos os muçulmanos
observam esse rito antes da oração na mesquita).
Como não há menção da bacia em 38,20-31 e como
logicamente faz parte do altar dos holocaustos em
27,1-7, ela é, com toda a probabilidade, uma in­
serção sacerdotal mais tardia. Além de lavados, os
sacerdotes (v. 30) e todos os acessórios sagrados
(vv. 26-28) devem ser ungidos com um óleo santo
muito especial (vv. 23-25). Estes preceitos indicam
o caráter único da equipe e dos objetos cultuais.
Devem ficar afastados de tudo que tenha laivos do
profano (vv. 32-33). Para P, entretanto, a santidade
do santuário com sua equipe destina-se a ter um
efeito santificador sobre todo o povo do S enhor.
31.1- 11 Escolha de artesãos. A construção dotradições destes capítulos continue a ser de difícil
templo de um deus não é uma decisão casual. Na
antiga literatura canaanita, a construção do templo
de Báal compete a um deus artesão especial. Contra
esse pano de fundo, P faz o S enhor escolher Besalel
e, como seu assistente, Oholiab. P salienta que o ta­
lento de Besalel resulta de um espírito divino (v. 3;
cf. também 35,31). Esse detalhe é fundamental para
o plano de P da presença divina, no qual estão inter-
-relacionadas a criação do mundo, a construção do
santuário do deserto e a edificação do santuário.
ÊXODO 32
Assim, o sopro de Deus em Gn 1,2 está ligado ao
arquiteto cheio de espírito da construção do deserto
(v. 3), por sua vez ligado ao chefe inspirado das
forças de ocupação, Josué (cf Nm 27,18; Dt 34,9).
Um elemento estrutural basilar em P é a exe­
por Deus (cf 7,6; 12,28). Como mencionado em
25,1-9, é muito importante haver exata correspon­
dência entre o plano de Deus e sua execução. Assim,
a ordem divina comunicada por intermédio de
Moisés aos artesãos (vv. 6.11) será totalmente cum­
prida. No capítulo 39, essa execução será mencio­
nada em um contexto que também liga a construção
do santuário à criação do mundo.
31,12-18 A im portância do sábado. Embora
antes ligasse a observância do sábado ao maná
(16,23-30), agora P desenvolve o significado dessa
instituição para Israel. Como nas outras tradições
do sábado no Êxodo, é mencionada a cessação do
trabalho (c f 20,9; 23,12; 34,21) e o elo com acria-
ção (cf. 20,11). Nessa passagem, entretanto, P sa­
lienta o valor do sinal (vv. 13.17) e o objetivo da
aliança (v. 16) do sábado. Como o S enhor santi­
ficou o sábado (Gn 2,3) e descansou (Gn 2,2)
depois da criação (aqui, no v. 17o S enhor retoma
alento), por sua observância Israel reconhece o
Santo em seu meio e, assim, entra no ritmo total
da criação, celebrando mais uma vez seu laço com
o Deus criador e o mundo criado. Israel é santifi­
cado pelo S enhor e a ele pertence (v. 13), assim
como 0 sábado é sagrado e pertence ao S enhor
(vv. 14.15). Mais tarde (39,43), P ligará a bênção
do S enhor no sétimo dia à bênção dos artesãos por
Moisés.
PARTE V:
A APOSTASIA DE ISRAEL
E A RENOVAÇÃO DA ALIANÇA
Ex 32,1-34,35
Esta parte do Êxodo está cercada de enormes di­
ficuldades. A divisão por fontes dos capítulos 32-33
está longe de ser clara. O acontecimento original por
trás da narrativa do bezerro de ouro não é evidente.
Contudo, a perplexidade não deve inibir a interpre­
tação geral do texto final. Embora a história das
compreensão, o que emerge com clareza é Israel
compreender definitivamente a si próprio como po­
vo da aliança. A multiplicidade de tradições, além
disso, indica a centralidade desse episódio para seu
auto-entendimento.
Muitos biblistas estão convencidos de que um
acontecimento real está por trás da história do bezer­
ro de ouro, ocorrido durante a caminhada no deser­
to. Talvez houvesse um grupo que se opunha a
Moisés e seu símbolo da arca da aliança. Tal gru- 115
 ÊXODO 32
po, sob a liderança de Aarão, pode ter rompido
o compromisso de fidelidade a Moisés e insistido
na figura de um touro como símbolo da presença
divina. Entretanto, ser mais específico é ir além da
evidência.
Devemos notar que o bezerro de ouro não trans-
gride 0 preceito dos Dez Mandamentos a respeito
de imagens falsas (20,4-5). Essa proibição diz res­
peito à pessoa do S enhor, enquanto o bezerro de
ouro (na verdade um touro jovem) se refere a uma
qualidade do Senhor — a força. Tais touros serviam
de apoio para o trono do S enhor (c f os querubins
em 25,10-22). Entretanto, a história de Israel mos­
tra que nem sempre o povo distinguia entre a divin­
dade e os atributos dela e, assim, identificava o
jovem touro com o S enhor (cf. Os 13,2).
Jeroboão I (931-910 a.C.), primeiro rei do reino
do Norte, estabeleceu tal imagem de um bezerro
de ouro em Dan e Betei (cf. IRs 12,26-32), como
gesto cultuai contra o templo de Salomão. O uso
dessas imagens por Jeroboão sugere que já eram
tradição antiga. Por isso, Ex 32 não precisa ser
analisado como condenação direta dessas mudanças
cultuais régias. Entretanto, é provável que esse capí­
tulo seja uma condenação indireta das reformas
cultuais de Jeroboão.
Em sua colocação atual, os capítulos 32-34
refletem uma teologia de renovação de aliança. Os
elementos nessa construção teológica são: a) peca­
do, geralmente a apostasia; b) castigo; c) arrepen­
dimento; d) restauração (cf. Nm 13-14; Jz 3,7-11).
Esse padrão é teologicamente significativo. Suben­
tende que o S enhor decide revelar-se, não só por
intermédio de um povo (o que, na verdade, é uma
vantagem), mas também por intermédio de um povo
pecador. A esse respeito, Israel considera-se refúgio
de pecadores.
32,1-6 Confecção do bezerro de ouro. Nesse
padrão de renovação da aliança, o pecado é o dese­
jo que 0 povo tem de se livrar de Moisés e, assim,
conseguir um novo chefe (w . 1.4). Com certeza,
essa tradição não é sacerdotal. Nessas tradições,
Aarão nunca é identificado como sacerdote nem
ancestral de sacerdotes; na verdade, como aqui, ele
até se opõe ao chefe escolhido pelo S enhor (cf.
Nm 12,1-8). Aarão concorda prontamente com os
desejos do povo, faz a imagem do bezerro e convoca
uma celebração que inclui holocaustos e sacrifícios
de paz (vv. 2-5). Não está claro que a diversão no
V. 6 seja uma forma de deboche. O pecado de apos­
tasia de Israel consiste em rejeitar Moisés como
chefe e, portanto, rejeitar o S enhor.
32,7-14 A cólera do S enhor e a intercessão de
Moisés. Moisés aparece como mediador da alian­
ça, alguém que intercede pelo povo, aqui no con­
texto do pedido de perdão que, em última análise,
leva à renovação da aliança. Israel, então, previu
uma.função especial de intercessão, orHaciona-
116 mento do povo com o S enhor estando ligado ao re­
lacionamento com o S enhor de certos indivíduos
privilegiados. É também digno de nota que Moisés
consegue se opor ao Deus de Israel e, mesmo assim,
não ser considerado desleal.
A violenta reação do S enhor é precisamente
0 contrário da prevista pelos devotos do bezerro.
O Senhor planeja eliminar esse povo e começar de
novo (w . 7-10). Moisés enceta seu papel de inter-
cessor com o argumento da continuidade na histó­
ria. Fazer o povo morrer no deserto só provocaria
escárnio dos inimigos do Senhor no Egito. A ação
iniciada no Egito deve ser concluída. Abandonar
Israel agora seria renegar as promessas feitas ao
patriarcas (vv. 11-13). No fim, o S enhor permite
que o persuasivo Moisés vença a discussão (v. 14).
32,15-24 Dupla destruição. As tábuas desem­
penham papel significativo nesta história. Nos vv.
15-16, as tábuas são únicas. Embora o costume fos­
se ter tais inscrições em apenas um lado, aqui elas
estão em ambos os lados. Percebe-se a tradição de
E. (A presença de Josué no v. 17 já foi explicada
por E em 24,12.) A revelação divina que Moisés
devia comunicar ao povo agora é remodelada para
fazer o relato da infidelidade de Israel e, assim,
forçar a volta de Moisés à montanha, onde receberá
novas tábuas. Embora J faça Moisés escrever sobre
as tábuas (34,28), essa tradição insiste que o pró­
prio Deus fez a gravação (cf. também P em 31,18).
A tradição, portanto, ultrapassou a compreensão
que o antigo Oriente Próximo tinha da escrita di­
vina, pela qual uma divindade não produzia o do­
cumento fisicamente. Em conseqüência, a escrita
do S enhor salienta seu valor e autoridade. Por outro
lado, a quebra das tábuas é a quebra do relaciona­
mento da aliança entre o Senhor e Israel. A atitude
do povo ao fazer a imagem do bezerro resulta na
destruição do laço da aliança.
A destruição das tábuas é seguida pelo relato
da confecção e subseqüente destruição do bezerro
de ouro. Representando uma fiaca tentativa de absol­
ver o papel de Aarão nos w . 2-5, os vv. 21-24 são
interessantes do ponto de vista da confecção de
objetos cultuais. Na literatura canaanita antiga, por
exemplo, os objetos cultuais adquiriam sozinhos a
forma desejada. O palácio de Báal é concluído de­
pois de um incêndio moldar a prata e o ouro por seis
dias. A resposta de Aarão no v. 24, dizendo que a
imagem surgiu por si mesma, é prontamente inteli­
gível. A destruição é ainda mais interessante. Segun­
do 0 V. 20, Moisés emprega atos mutuamente ex­
clusivos para destruir a imagem: queimar e reduzir
a pó. Na literatura canaanita antiga, Mot, deus da
morte, é destruído da mesma maneira. Anat, con­
sorte de Báal, queima, reduz a pó e espalha Mot.
O ato final de fazer os israelitas beberem a água
poluída pela imagem (veja também Dt 9,21) é seme­
lhante ao ato de Anat de espalhar os restos de Mot
nos campos, onde as aves os consomem. Em Êxodo,

0 bezerro de ouro, como Mot, é completamente des­
truído, ficando irrecuperável.
32,25-29 O zelo dos levitas. Há duas tradi­
ções para o castigo do povo. Segundo o v. 35, o
S enhor fere o povo por seu ato pecaminoso. Segun­
do os w . 25-29, membros da tribo de Levi atendem
ao chamado de Moisés para cingir a espada e execu­
tam os israelitas que sacrificaram ao bezerro de
ouro, inclusive seus parentes. A lealdade obtém
para eles as prerrogativas sacerdotais (vejaDt 33,9).
Essa tradição não condena Aarão como ancestral
dos aaronitas. Expressa a reação dos levitas dedica­
dos à aliança, que rejeitaram o culto estabelecido
por Jeroboão 1 em Betei, uma das cidades nas quais
esse rei erigiu a imagem de um bezerro. Esse epi­
sódio também condena a atitude do rei ao fazer sa­
cerdotes de pessoas tomadas do meio do povo, que
não eram levitas (veja IRs 12,31).
32,30-35 A expiação. Esta tradição enfatiza a
identidade de Moisés com o povo. Se o S enhor é
implacável, então o intercessor deseja compartilhar
o destino do povo. O conceito do livro de Deus era
conhecido no antigo Oriente Próximo e está em
consonância com a noção de recrutamento militar
onde as vidas dos registrados no livro eram cheias
de perigo. Nesta passagem, Israel adapta a tradição
— um Israel que se considera exército divino. Por
ocasião de um recenseamento (cf. 30,11-16) havia
um rito de reparação (cf “absolvição” no v. 30) e
os nomes dos israelitas eram escritos em tábuas.
Os inscritos dessa forma gozavam os direitos de
membros da milícia divina, por exemplo posse da
terra e culto no santuário. Quem fosse retirado das
tábuas era colocado entre os mortos, isto é, sepa­
rado da comunidade.
33,1-6 O rdens para a partida. Esta passa­
gem segue a tendência de 32,33-34, a continuação
da caminhada para a Terra Prometida com a ajuda
de um anjo. Entretanto, em 32,34, o anjo apenas
confirmou o papel de liderança de Moisés. Aqui a
questão fundamental é a presença do S enhor junto
a Moisés e aos israelitas (vv. 2-3). Um anjo não é
o mesmo que o Senhor . Esta má notícia é reiterada
nos vv. 4-6 e marcada por um sinal do arrependi­
mento de Israel, a retirada de todos os trajes festi­
vos. O povo agora está sob julgamento divino. É
natural que façamos conjeturas sobre a eficácia da
intercessão de Moisés.
33,7-11 Moisés e a tenda do Encontro. Esta
tradição, em geral atribuída a E, levanta a questão
da presença divina já mencionada nos vv. 1-6. En­
tretanto, o próprio texto não é uma unidade. Segun­
do o V. 7, todos os israelitas podem visitar a tenda.
Entretanto, segundo o v. 8, somente Moisés visita
a tenda, enquanto o povo permanece em suas ten­
das em grande respeito. Segundo o v. 1Ib, um auxi­
liar reside permanentemente na tenda. Contudo, o
V. 1 la presume que o diálogo íntimo entre Deus e
Moisés exclui a presença de uma terceira pessoa.
ÊXODO 34
Os w . 8 e 10 presumem que a tenda está colocada
no meio do acampamento (cf P em 25,1-9). Mas o
V. 7 afirma que a tenda está fora do acampamento,
na verdade a certa distância dele.
Parece que E introduziu mudanças em uma
tradição mais primitiva relativa à tenda da caminha­
da de Israel no deserto, a fim de demonstrar que
a teofania da tenda é reprodução em miniatura da
revelação do Sinai. Tanto a montanha como a tenda
estão fora do acampamento (v. 7; 19,17). Em ambos
os casos, o povo permanece a distância (v. 8; 20,18).
(Em hebraico, o mesmo verbo é usado para as pes­
soas se posicionarem [v. 8; 19,17].) Em ambos os
casos, uma nuvem indica a presença divina (w. 9-10;
16ab). Em ambos os casos, Josué auxilia Moisés
(v. 1Ib; 24,13). Por fim, em ambos os casos Moisés
aparece como íntimo de Deus. O relacionamento
de Israel com o S enhor depende bastante deste in­
tercessor singular.
33,12-17 Intercessão de Moisés. Esta passa­
gem liga-se à posição de Moisés face a face com o
Senhor ( v. 1la) e sua ordem para conduzir o povo
(v. la). Segundo o v. 12, a dedução é que um anjo
não é adequado. Apelando a sua posição de amigo
íntimo de Deus, Moisés argumenta em nome do
povo (v. 13). Se a posição de líder é genuína, a con­
clusão divina deve ser a favor do povo. O v. 14 mos­
tra que o apelo é bem-sucedido. Entretanto, é dirigi­
do apenas a Moisés. Ainda não satisfeito, Moisés
insiste, demonstrando que a graça divina só é real se
incluir o povo (w. 15-16). Finalmente, o argumento
em favor da comunidade obtém a aprovação divina
(v. 17). A importância dessa discussão não deve ser
esquecida. Significa que o bem-estar do povo da
aliança (aqui sua renovação como povo de Deus)
baseia-se no amor e na confiança entre o Deus da
aliança e o intercessor dela.
33,18-23 Preparações p ara a teofania. Com
não pouca audácia, Moisés busca mais segurança
para seu povo, pois pronunciar o nome divino é a
garantia da presença e, portanto, da compaixão (pa­
ra essa compaixão c f 34,6-7). O nome divino segue
junto com a aliança. Por causa dos perigos ligados
à demonstração direta da glória divina, Moisés deve
ser colocado na fenda de uma rocha e coberto pela
mão de Deus (vv. 21-22). A visão das costas de
Deus (mas não de sua face) é o limite e a prova da
intimidade de Moisés, relacionada com o bem-estar
do povo. (Para a teofania semelhante de Elias, c f
IRs 19,9.11-13.)
34,1-9 A teofania. A maior parte desta passa­
gem é de J (w. la.2-4.6a.8). Na verdade, junto com
a maioria do material restante no capítulo 34, esta
passagem é a sequência natural da subida de Moisés
à montanha em 19,20 (J). Em harmonia com o es­
quema básico do processo da aliança, é esperada no
relato de J uma expressão da vontade divina. Essa
expressão foi retirada de seu lugar natural — depois
de 19,20 — por causa da infidelidade de Israel no 117
 ÊXODO 34
incidente do bezerro de ouro. Em outras palavras,
a expressão da vontade divina no encontro inicial
na montanha em J toma-se a expressão da vontade
divina no segundo encontro da renovação da aliança.
Segundo o padrão de renovação da aliança, a res­
tauração é agora oportuna. A confecção de novas
tábuas simboliza uma nova aliança. (Referências
no V . Ib às primeiras tábuas quebradas e à nuvem
no V. 5 são retoques redacionais para fazer o relato
J se adaptar ao novo cenário.)
A teofania de J traz primeiro Moisés talhando
as pedras e subindo a montanha sozinho (vv. la.2-
4). Em seguida, o S enhor passa diante de Moisés
(v. 6a). Finalmente, em deferência à presença divi­
na, Moisés se inclina em adoração (v. 8).
Os vv. 6-7 e 9 são a conclusão do papel inter-
cessor de Moisés iniciado em 33,12-23. A teofania
anunciada em 33,19 ocorre agora. Na sua posição
atual, o dito cultuai nos w. 6-7 (cf também 20,5-6)
é uma declaração sobre o perdão e o castigo divinos.
A palavra traduzida por “misericordioso” no v. 6
(também o verbo “fazer misericórdia” em 33,19)
deriva da palavra hebraica para “ventre”. Assim, a
mãe YHWH demonstra por Israel aquela compai­
xão que se espera que a mãe demonstre pelo filho
de seu ventre. Ao mesmo tempo, o S enhor não dei­
xa que os culpados escapem (v. 7). Em última ins­
tância, 0 pedido de perdão (v. 9) baseia-se mais uma
vez no relacionamento de Moisés com o S enhor.
Agora a renovação da aliança pode prosseguir, por­
que Moisés se identificou com Israel.
34,10-26 O dodecálogo. Não há menção da
resposta explícita de Israel às propostas iniciais do
Senhor nesta renovação da aliança. A intercessão de
Moisés e o arrependimento do povo parecem ade­
quados (cf também ISm 12,16-25). Os vv. iniciais
(vv. 10-11) transcendem o cenário imediato con­
centrando-se nos perigos que confrontarão Israel na
Terra Prometida (cf. também 23,20-33). O Sinai apa­
rece, portanto, como o lugar apropriado para anteci­
par esses perigos em razão dos laços da aliança que
distinguirâo Israel das nações vizinhas.
Embora o v. 28 fale em dez palavras, essa série
de leis é na verdade um dodecálogo, doze manda­
mentos. (A expressão “dez palavras” do v. 28 é um
desenvolvimento mais tardio.) O dodecálogo é muitas
vezes classificado como cultuai ou ritual em contra­
posição ao decálogo ético (cf a injunçâo para as
festas de peregrinação no v. 23 e a lei da redenção
nos vv. 19-20). Entretanto, as proibições de imagens
(v. 17) e de casamentos mistos com os canaanitas (v.
16) são manifestamente éticos. Além disso, em sua
maioria, tais mandamentos são formulações na se­
gunda pessoa do singular (c f 20,1-17). Para J, essa
coleção cria saudável tensão em sua abordagem teo­
lógica. Segundo Gn 12,1-3, Israel deve ser o media­
dor de bênçãos para as nações conquistadas. Mas
118 um ambiente pagão pode apresentar problemas para
mediar essas bênçãos. O dodecálogo, portanto, é a
forma de insistência de J na fidelidade ao Deus da
aliança em um ambiente pagão (vv. 12-15). É com
razão chamado por alguns de “lei do privilégio do
Senhor” — declaração das prerrogativas do S enhor
baseadas em seu caráter como um Deus ciumento
(v. 15). A singularidade de Israel flui da singularidade
de seu Deus.
34,27-35 O impacto da teofania. J menciona a
ordem divina para registrar os termos da aliança e
a subseqüente execução dessa ordem na montanha,
por um período de quarenta dias e quarenta noites
(w. 27-28; Dt 9,9.18; Mt 4,2). J então narra a reunião
que Moisés faz do povo para lhes comunicar tudo
que o Senhor ordenou na montanha (vv. 31-32).
A tradição contida nos vv. 29-30.33-35 trata
do rosto irradiante de Moisés, ligado a sua posição
intercessora já mencionada nos capítulos 33 e 34.
Segundo a tradição, Moisés precisa cobrir o rosto
quando não está desempenhando seus deveres ofi­
ciais (w. 33-34). Sejam quais forem os antecedentes
do véu em si, o que é fundamental no relato bíblico
é o rosto irradiante de Moisés, na medida em que
deriva de Deus e é o símbolo de sua autoridade pe­
rante Deus. O homem que foi rejeitado pelo povo
(32,1.4) é o homem que o restaurou à aliança e
que agora apropriadamente usa o símbolo de sua
função divina. (C f o emprego paulino dessa tradi­
ção em 2Cor 3,7-A,6.)
PARTE VI:
A EXECUÇÃO DAS INSTRUÇÕES PARA
A CONSTRUÇÃO DO SANTUÁRIO
Ex 35,1-40,38
Agora P relata a execução das instruções dadas
a Moisés nos capítulos 25-31. E tentador analisar
os capítulos 35-40 junto com o capítulo 34, como
um tipo de restauração. Os capítulos 25-31 são então
uma criação e os capítulos 32-33 uma queda. De
qualquer modo, P utiliza o cenário do Sinai para
desenvolver sua teologia da presença divina.
35,1-36,7 O início da construção e a genero­
sidade de Israel. A estrutura básica de P, aqui, é
a execução de ordens dadas direta ou indiretamente
por Deus. Assim, há ordens divinas para: a) a obser­
vância do sábado (35,2, inclusive a proibição de
acender fogo, no v. 3); b) a arrecadação de mate­
riais (35,4); c) a convocação de artesãos (35,10);
d) o início do trabalho no projeto (36,1). P mencio­
na que os israelitas respondem generosamente à
ordem do Senhor (35,20-29). De fato, são bastante
solícitos. Moisés precisa fazer um apelo especial pa­
ra interromper o fluxo de contribuições (36,2-6). O
resultado é, contudo, uma abundância de materiais
para completar a obra (36,7). Besalel e Oholiab,
infundidos de sabedoria (cf 31,1-11), e também os
outros artesãos respondem à ordem divina para exe-

cutar toda a obra. É interessante comparar essa res­
posta entusiástica no relato visionário de P à relu­
tância para reconstruir o templo depois do Exílio
(cf. os profetas Ageu e Zacarias). O relato bíblico
não hesita em registrar o visionário e o real.
36,8-39,31 Execução das instruções divinas.
Com exceção de 38,21-31, essa passagem especifica
como as instruções divinas comunicadas a Moisés
nos capítulos 25-31 foram, de fato, cumpridas. Há,
entretanto, uma diferença na seqüência. Enquanto
a arca, a mesa e o candelabro (25,10-39) encabeçam
a lista de instruções por causa de sua maior impor­
tância, a tenda (26,1-37) é a primeira na ordem de
execução. Dessa maneira, há progresso de fora para
dentro. Em geral, essa passagem basicamente repro­
duz os capítulos 25-31, insistindo no ponto que o
produto final corresponde às orientações iniciais.
Para a tapeçaria, a cobertura, as estruturas de ma­
deira e os véus (36,8-38), cf. 26,1-29.31-37. Para
a arca com o propiciatório, a mesa e o candelabro
(37,1-24), compare 25,10-39. Para o altar dos per­
fumes (37,25-28) e também para o óleo da unção
e o perfume puro (37,29), cf. 30,1-6.23-25.34-36.
Para o altar dos holocaustos e o átrio (38,1-7.9-20),
cf. 27,1-19. Para as vestes sacerdotais e outras (39,1­
31) cf. 28,1-43.
Em 38,8, P observa que a bacia de bronze (30,
18-21) foi feita com os espelhos das mulheres que
cumpriam seu serviço à entrada da tenda do Encontro.
Elas reaparecem em uma glosa de ISm 2,22. Não
está claro que função exerciam exatamente. Nenhuma
evidência sugere que fosse no culto público.
A passagem que trata da quantidade de metal
usado (38,21-31) é inserção mais tardia. O imposto
do santuário no v. 26, que recorre ao primeiro recen-
seamento de Israel (a ser mencionado mais tarde
em Nm 1,45-46), obviamente ignora a tradição de
35,21 e 36,3, segundo a qual Israel contribui gene­
rosamente, em base voluntária. O v. 21 menciona
a posição de Itamar, filho de Aarão, como chefe dos
levitas. Entretanto, os levitas (cf 28,1-43) só foram
instituídos em Nm 3,5-10 e Itamar assume seu papel
de chefe apenas em Nm 4,33.
39,32-43 Apresentação da obra a Moisés.
Além de enumerar os materiais cultuais concluídos
que são apresentados a Moisés, esta passagem tem
significado especial para a teologia de P sobre a
presença constante de Deus. Pelo uso sutil das es­
truturas, P interliga a criação do mundo, a constru-
ção/edificação do santuário do deserto e o estabe­
lecimento desse santuário na Terra Prometida (para
este último ponto, cf. 40,1-33). Apesar da infideli­
dade de Israel, o plano de Deus não será frustrado.
O Deus que criou no início continuará a criar na
história contínua de Israel. O culto, portanto, é o
meio principal pelo qual a presença criadora se
manifestará entre os israelitas.
P não só reintroduz sua estrutura de execução
de ordens (cf. 35,1-36,7), como aqui também a
ÊXODO 40
embeleza com uma formulação mais solene. O v.
32 pode ser traduzido literalmente: “Os filhos de
Israel fizeram tudo segundo o Senhor tinha orde­
nado a Moisés: assim o fizeram”. Da mesma forma,
o V. 42: “Tudo segundo o Senhor ordenara a Moisés,
assim fizeram os filhos de Israel toda obra”. P
também apresenta uma segunda estrutura, a conclu­
são bem-sucedida do trabalho (v. 32a). Além disso,
P faz Moisés emitir um julgamento sobre o trabalho
do povo. Eis o V. 43a traduzido literalmente: “Viu,
pois, Moisés toda a obra, e eis que a tinham feito
segundo o S enhor havia ordenado”. Logo depois
desse julgamento, P faz Moisés abençoar o povo
(v, 43b).
Os paralelos com o relato da criação de P são
evidentes. Em Gn 1,31, Deus vê tudo que tinha feito
e classifica-o como muito bom. Gn 2,1 observa que
o céu, a terra e todos os seus elementos foram termi­
nados. Depois de concluir os seis dias de criação.
Deus abençoa o sétimo dia (Gn 2,3). Como Deus
não pode dar uma ordem a Deus, o relato da criação
não leva em conta a estrutura de execução de ordens.
Como foi mencionado anteriormente (31,1-11), o
sopro atuante na criação (Gn 1,2) também age em
Besalel, o chefe da construção do santuário.
40,1-33 A edificação do santuário. Aqui P
relata minuciosamente como Moisés executa as ins­
truções do Senhor para erigir o santuário do deser­
to. Além de indicar com precisão o tempo (vv. 2.17)
e salientar os privilégios dos aaronitas (w. 13-15),
P esforça-se para realçar a importância do evento
por meio de suas estruturas. A estrutura de execução
de ordens é mencionada nada menos que oito vezes
(w. 16.19.21.23.25.27.29.32). Na verdade, o v. 16
tem a forma mais solene da estrutura, que pode ser
traduzida literalmente: “E tudo fez Moisés segundo
0 S enhor lhe havia ordenado: assim o fez”. A es­
trutura da bem-sucedida conclusão da obra está tam­
bém em evidência. Segundo o v. 33, Moisés conclui
todos os trabalhos.
P liga não só a criação e a edificação do santuá­
rio, mas também o estabelecimento desse santuário
na Terra Prometida partilhada. Em Nm 27,18 e Dt
34,9, P descreve Josué como inspirado chefe e cria­
dor do plano de ocupação de Israel. Em Js 14,5, ao
narrar a divisão da terra, P emprega a forma mais
solene da estrutura de execução de ordens. Pode
ser traduzida literalmente: “Os filhos de Israel fize­
ram assim como o S enhor ordenara a Moisés e re­
partiram a terra”. No mesmo livro, P também usa a
estrutura de execução bem-sucedida de ordens ao
narrar a última prescrição: (literalmente): “Eles con­
cluíram repartindo a terra” (Js 19,51b). Além disso,
este ato final acontece na porta da tenda em Shilô,
Em harmonia com a ordem divina de dominar a terra
(Gn 1,28), em Js 18,1, P afirma que a terra estava
submissa aos filhos de Israel. No mesmo texto,
observa que a comunidade de Israel reuniu-se em
tomo da tenda que foi instalada em Shilô. Portan- 119
 ÊXODO 40
to, para P o evento em Shilô relembra o Sinai, que,
por sua vez, relembra a primeira criação. A pre­
sença permanente de Deus na terra é o sacramento
da esperança para os exilados desesperados de P.
Em última análise, os preceitos enfadonhos são
impregnados de vida.
40,34-38 A presença permanente. Para P, o
Sinai é o modelo de culto. Segundo 24,15b-16a, a
nuvem cobre o monte e ali se estabelece. Também
aqui a nuvem cobre a tenda do Encontro e a glória
do Senhor enche a Morada (v. 34). Assim, para P,
0 santuário do deserto capta a experiência do Sinai
e a imortaliza.
Esta tradição da nuvem cobrir e se instalar é
também o selo de aprovação e a legitimação de tudo
que Moisés e os israelitas fizeram. Aqui o S enhor
toma posse de seu santuário. É também a expe­
riência de Israel, quando a glória do S enhor enche
o templo de Salomão e os sacerdotes não conse­
guem ficar ali para seu serviço por causa da nuvem
120
(cf. IRs 8,10-11). A teofania da nuvem de P tam­
bém antecipa a contínua jornada de Israel pelo de­
serto. A nuvem de P, que agora desempenha as
funções da tradição da coluna de nuvem e da colu­
na de fogo (cf. 13,21-22; 14,19-20), também serve
de sinal. Indica quando e por quanto tempo Israel
deve montar acampamento e quando deve levantá­
-lo (cf. Nm 9,15-23).
Nestes capítulos finais, P mostra-se um teólogo
verdadeiramente pastoral. Para um povo que sentiu
a ausência de Deus na queda de Jerusalém e no
exílio subseqüente, P agora proclama a boa nova da
presença divina Consciente de que Israel está priva­
do do culto no templo porque habita em terra estran­
geira, P anuncia que Israel será restaurado na terra e,
na verdade, que a terra será santificada pela presen­
ça divina no santuário. (Para as condições da volta,
cf. Lv 26.) Voltamos assim ao evangelho de criação.
Com atenção cuidadosa e apropriada ao culto, o is­
raelita recebe a força para ir do caos ao cosmo.
 LEVITICO
Wayne A. Turner
INTRODUÇÃO
ste livro é sobre santidade. Conhecido
também como o terceiro livro de Moisés,
o Levítico é um dos cinco volumes da obra
chamada Pentateuco. A palavra Toiá, que
em geral significa lei, mas mais exata­
mente é ensino, instrução ou orientação, refere-se à
mensagem deste livro. Embora costumemos nos referir
ao Levítico como livro, é melhor chamá-lo de um ca­
pítulo da história completa da Torá, capítulo sobre um
Deus santo e um povo chamado a ser santo.
1. Santidade significa integridade
Para entender este capítulo da história da Torá,
precisamos considerar “integridade” como um dos
significados de santidade (wholeness/holiness). Isso
é mais do que um jogo de palavras e é necessário
para entender o livro do Levítico. Em certo sentido,
“integridade” descreve a vida de Deus. Mais precisa­
mente, a integridade descreve nossas vidas quando
refletem a vida de Deus.
O sentido bíblico de santidade inclui não só o
mistério de Deus, mas também a resposta da cria­
tura a ele. “Sede santos, pois eu sou santo, eu, o
Senhor, vosso Deus” (11,44-45; 19,2; 20,7.26). A
raiz da palavra santo significa “isolar, separar”, refe­
rência a separar o santo do profano (ímpio). “Santo”
refere-se a pessoas, lugares ou coisas abordadas
ou tocadas apenas sob certas condições de pureza
ritual.
“Integridade” descreve principalmente a reação
do povo à ordem: “Sede santos, pois eu, o S enhor,
sou santo”. Pois, enquanto certa integridade tende à
idéia de unidade, só Deus habita em unicidade abso­
luta. Também se estende certa unicidade sobre a in­
tegridade, refletindo o que o Gênesis chama de “ima­
gem e semelhança de Deus” (Gn 1,26).
Ao contrário da unicidade, a integridade tem
partes ou componentes. É na ordenação apropriada
das partes da vida que a integridade acontece e
serve à causa da santidade. Por exemplo, um que­
bra-cabeça precisa ser montado na ordem apropria­
da. Se uma única peça for deixada de lado, o que­
bra-cabeça carecerá de integridade e unidade.
Ao ler o Levítico, precisamos ter em mente que
tudo se ajusta na ordem apropriada, o que serve à
integridade que reflete a unicidade de Deus que
chamou o povo para ser santo. A simples ordem de
obediência, pureza ritual e santidade é tão válida
hoje quanto na ocasião em que foi apresentada pelos
autores sacerdotais. A verdadeira obediência planta
a semente de um ritual autêntico que purifiea e pre­
para para a vida de seintidade. Assim que essa lição
simples foi reconhecida, o materiai levítico se con­
cretizou. Então este livro atuou como peça princi­
pal para o Pentateuco e se tomou o terceiro livro de
Moisés. Os cinco livros formaram um relato com­
pleto de relacionamento divino-humano, com o Le­
vítico bem no centro da Torá.
2. O s títulos contam a história
Os títulos hebraicos dos cinco livros de Moisés
explicam detalhadamente um tema que se repete
com freqüência na Bíblia e na própria vida — Deus
cria, identifica e chama as pessoas do deserto desta
vida para a vida (santa) una e completa que é de
Deus. Esses livros fazem as vezes de “entrada” para
a Bíblia toda.
Na Bíblia hebraica, a primeira palavra significa­
tiva de cada livro é seu título. No Pentateuco, os tí­
tulos hebraicos fazem um relatório lógico da experiên­
cia divina-humana. Quando Deus iniciou (Gênesis) a
criação; estes são os nomes (Êxodo); o Senhor cha­
mou (Levítico) Moisés no deserto (Números); eis as
palavras (Deuteronômio) que Moisés dirigiu a todo
Israel). Note o lugar do Levítico; os nomes (Êxodo)
dos que foram tirados da escravidão precisavam de
orientação para seguir sua vocação como “um reino
de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,6) em espe­
cial no deserto (Números).
Ao ler o Levítico, tenha-se presente o “caráter
orientador” deste capítulo na história única consti­
tuída pelo Pentateuco.
3 . O título
Em hebraico, o título é uma só palavra que signi­
fica “e ele chamou”. Hoje, o título comum é o nome 121
 LEVÍTICO
grego latinizado Leviticus, que descreve atividades
dos levitas (sacerdotes) da tribo de Levi. O título he­
braico alude a urna vocação-chamado na instrução da
Torá. Assim, ao usar o Levítico, é bom lembrar-se
da conotação hebraica de “chamado” ou “vocação”.
O tema central de chamado à santidade encon­
tra-se na Lei de Santidade (17-26). É possível que
formasse um “manual de santidade” original, em
tomo do qual os redatores finais do livro reuniram
outro material sacerdotal (levítico).
4. Três códisos de lei (instrução) no Pentateuco
Três desses códigos de lei foram identificados
no Pentateuco: o Código do Sinai ou da Aliança,
que é 0 mais antigo e se encontra no Livro do Êxo­
do (19-24); a Lei levítica da Santidade (Lv 17-26);
e uma atualização da Torá nas leis deuteronômicas
(Dt 12-26). Embora esses três sejam considerados
os códigos da Lei, muitas outras passagens do Pen­
tateuco falam de preceitos legais. De fato, os precei­
tos levíticos não estão só no livro do Levítico, mas
também no segundo e no quarto livros de Moisés,
Êxodo e Números. Na verdade, há mais referências
aos levitas em outras partes do Pentateuco do que no
livro do Levítico. Aqui nos concentramos no “cha­
mado à santidade”.
5. Levítico — coração da Torá
O Levítico não apenas ensina santidade; o livro
em si é exemplo de santidade. A disposição ordenada
é nossa primeira evidência da presença da santidade.
Uma disposição clara do material é testemunha im­
portante da santidade. Note que o ritual dos sacrifí­
cios (caps. 1-7) leva naturalmente ao tema dos que o
oferecem (caps. 8-10) com suas disposições de
pureza legal (caps. 11-16) e de santidade (caps. 17­
27) — um arranjo tão simples e, contudo, imponente
e autoritativo, chamando o povo para seguir a Torá.
O livro é algo como a presença simples mas
decisiva do coração no organismo humano. Mesmo
quando sua presença e a precisão de seu funciona­
mento não são reconhecidas, ele continua a bater
para o bem de todo o organismo. O material atribuí­
do ao Levítico parece ter relação semelhante a essa
com toda a Torá. O Levítico é o coração da Torá
e 0 batimento deste coração chama-se Lei da San­
tidade (caps. 17-26).
A profundidade e o refinamento da disposição
clara do Levitico revela-se primeiro no ritmo palpi­
tante da expressão repetida: “O S enhor falou a
Moisés”. Depois do chamado vocacional de Moisés
no capítulo 1, quase todos os capítulos começam
com esse mesmo refrão. A repetição lembra também
a forma de um documento legal com sua repetição
de frases, detalhes e instruções formais. De fato, cor­
respondendo grosso modo às quatro áreas de orga­
nização acima citadas, alguns comentadores de men­
talidade jurídica apontam arranjos pormenorizados
122 subjacentes. Alguns encontram sete conjuntos de
decálogos em cada seção. Dizem que seguem o decá-
logo (os Dez Mandamentos) dado no monte Sinai.
Assim, como coração da Torá, o Levítico reflete o
belo modelo de um coração e a simplicidade de um
de seus simples batimentos vivificantes.
Os mandamentos deviam agora tomar-se vivos
nas vidas do povo recentemente formado. O coração
da nova nação sacerdotal deve agora bater e pôr em
prática a instrução para ser santo (19,2). Essa santi­
dade age na Torá e em toda a Bíblia. “Santo” e “sa­
grado” e outras formas relacionadas são usadas mais
de mil vezes, com quase um quarto dessas referên­
cias no Levítico.
Em uma carta ao clérigo Paulino, são Jerônimo
afirma a santidade do livro: “No livro do Levítico é
fácil ver que todo sacrifício, sim, quase todas as sí­
labas, e tanto as vestes de Aarão como a ordem
completa do Levitico, respiram mistérios celestes”.
Muitos anos antes, Pedro incentivara o chamado vo­
cacional do Levítico: “Por isso, com o espírito aler­
ta para os discernimentos necessários, ponde toda a
vossa esperança na graça que vos deve ser concedi­
da por ocasião da revelação de Jesus Cristo. Como
filhos obedientes, não vos conformeis com os dese­
jos pecaminosos de outrora, do tempo da vossa igno­
rância; ao contrário, assim como é santo aquele que
vos chamou, também vós tomai-vos santos em toda
a vossa conduta, porque está escrito: ‘Sede santos,
porque eu sou santo’” (IPd 1,13-16, cit. Lv 19,2).
Essa mesma pulsação de santidade persiste hoje no
chamado vocacional de todos.
6. A forma do Levítico — data e autoria
Nossa idéia costumeira de livros é que possuem
um ou dois autores e foram escritos em pouco
tempo, no máximo alguns anos. Entretanto, a Bíblia
é a história do povo de Deus escrita por muitos auto­
res e editores durante dois mil anos. Assim como
podemos esperar muitas mudanças na história de
um povo, também podemos prever mudanças nos
documentos que registram essa história. Às vezes,
os estudiosos falam de determinada família de ma­
nuscritos, ao se referirem a manuscritos diversos.
Reconhecemos agora que alguns redatores fi­
nais eram não apenas compiladores, mas verdadei­
ros autores. Eles também transformaram ou acres­
centaram materiais. No Levítico, a forma do mate­
rial é histórica e legal, trata da vocação para a san­
tidade. Grande parte do material, em especial nos
primeiros capítulos, é “litúrgica”, foi escrita e redi­
gida por levitas ou sacerdotes e recebeu o nome de
“sacerdotal” (Prieslly, P).
O livro do Levítico tem formato singular e se
encaixa numa unidade maior do Pentateuco. Essa
unidade maior estende-se de Ex 25, passando pelo
Levítico, até Nm 10. Todos os livros do Pentateuco
têm algumas seções escritas por P. A ênfase dada
por esses autores e redatores finais concentra-se na
necessidade fundamental de ser santo.

Ficamos com a impressão de que o Levítico,
embora revisto, foi substancialmente preservado em
vez de resumido, para formar uma síntese de pre­
ceitos de culto. Isso talvez explique por que o leitor toda a Torá.
bíblico muitas vezes salta o Levítico com a alega­
ção de que é apenas um punhado de leis e preceitos.
Isso é válido como primeira impressão, mas os re­
datores usaram esse material para satisfazer a neces­ Encontra-se no plano da lição de obediência, pureza
sidade de instrução e integridade. Os editores finais e santidade. A ordem é importante. Começamos com
deram intencionalmente um cenário de deserto ao
Exodo, ao Levítico e aos Números. O que podería
ser mais necessário no deserto do que um livro sobre
a lei (instrução) e a ordem?
Assim como reconhecemos escolas de escrito­
res, também encontramos hoje escolas de biblistas
que apresentam respostas diversas para questões de
data, texto e autoria. Para alguns, o autor é Moisés, Deus é santo (Lv 22,32). Também o povo deve ser
enquanto outros afirmam que o livro é pós-exílico
(fim do século V a.C.). Contudo, outro grupo defen­
de uma posição intermediária e dá uma data por
volta do século VIII a.C. Além disso, talvez a forma
final não fosse decidida em nenhuma dessas épo­
cas. Tais teorias devem ajudar o leitor a entender a
forma final de um livro bíblico.
É na redação final que a mensagem completa
é transmitida. A forma do livro, quando ele entra
na vida sagrada da Bíblia, é a ocasião em que sua
divina fonte de vida (isto é, a inspiração divina) se
afirma. Todas as tradições orais e escritas, o desen­
volvimento do pensamento e da prática, a redação,
a edição e a reedição, juntam-se na Bíblia para
servir ao Deus uno e santo. O Levítico testemunha
essa presença de Deus.
Considerando o cenário de deserto do livro do
Levítico, em alguma parte o preconceito contra o
culto no templo podería ter influenciado a formação
do material. Esse preconceito deve ter ocorrido mais
de uma vez. Além disso, a dispersão da população e
a distância do percurso afetam a prática ritual. Tam­
bém é possível a existência dos que estavam conven­
cidos de que o S enhor devia ser um Deus peregrino,
sem morada fixa neste mundo, exceto no santo dos
santos do tabernáculo, morada que podia viajar com
eles onde quer que fossem, até no exílio.
O presente comentário busca ratificar o livro
do Levítico como ele está no Pentateuco, pois esse
é 0 resultado da redação final. Os redatores antigos
apresentaram uma coerência específica para a coleta
de todos os materiais e tradições. Às vezes, aquela
parte antiga do Levítico, a Lei da Santidade (17-26),
é atribuída a um autor chamado H (de Holiness),
anterior a todos os autores sacerdotais.
7. Temas levíticos
A. Leia as instruções. Um preceito da vida minha bondade”. O hebraico põe a ênfase no devido
cotidiana diz simplesmente: “Leia as instruções”.
Às vezes se diz, com um toque de ironia: “Se todo
o resto falhar, leia as instruções!” Ler as instruções
é, sem dúvida, a primeira coisa a fazer ao iniciar
LEVITICO
um novo projeto. Esse conselho pode ser sugerido
à meditação para a leitura do Levítico. De certo
modo, o Levítico serve de bula de instruções para
O Levítico dá uma instrução simples para a vida.
A instrução é tão importante e duradoura quanto o
batimento e a pulsação do coração são para o corpo.
uma obediência que ocasiona a purificação. Essa
combinação, por sua vez, nos condiciona para a vida
de santidade. Assim, a instrução para levar uma vida
santa está no Levítico, centralizada em tomo da
simples orientação do capítulo 19: “Sede santos, pois
eu sou santo, eu, o S enhor, vosso Deus”.
O Santo de Israel (Is 1,4) é Deus e o nome de
santo. Este é o preceito da vida: “Santificai-vos,
portanto, para serdes santos... Observai as minhas
leis e ponde-as em prática. Eu sou o S enhor, que
vos santifico” (20,7-8; cf. também 22,31-33).
B. Responsabilidade de Israel para com os vizi­
nhos. Para entender o Levítico, precisamos respeitar
a região em que Israel vivia e se movimentava Agi­
mos com cautela a partir do que conhecemos para
buscar o desconhecido. Às vezes esperamos maior
responsabilidade (capacidade de responder) por parte
de Israel do que devemos. Com ffeqüência isso é feito
pela inclusão de todas as pessoas do mundo então
conhecido no círculo da resposta de Israel à vida. Tal
abordagem tende a se tomar uma experiência asfixi-
ante em vez de informativa. Precisamos saber mais
sobre o povo daquela época, antes de transferir a
narrativa bíblica para experiências da vida real e jul­
gar acontecimentos históricos.
O relacionamento de Israel com os canaanitas
e outros povos em cuja terra passou algum tempo
ou se deslocou tem importância fundamental. As
descobertas em Ras Shamra (às margens do Me­
diterrâneo, que datam de 1400 a.C.) e Ebla (110
km a noroeste, que datam de 2300 a.C.) lançaram
alguma luz sobre os vizinhos do povo da Bíblia
(c f, por exemplo, Ex 23). Entretanto, muito mate­
rial ainda está na etapa de análise e publicação crí­
ticas. As traduções levam muitos anos. Ras Shamra
(Ugarit) foi escavado pela primeira vez em 1929 e
foram reconhecidos alguns paralelos com a lingua­
gem e a literatura de Israel, ali e em Ebla (1968­
1974).
C. Meu santo nome. Uma tradução mais exata
de “meu santo nome” é “o nome de minha santida­
de”. Em hebraico, “santidade” refere-se a uma rea­
lidade concreta que se pretende enfatizar. Outro
exemplo, “meu bom dia”, é, na verdade, “o dia de
lugar.
Outra diferença importante é usar o superlativo
para preservar certa identidade majestosa. Para “san­
tíssimo”, 0 hebreu diz “o santo dos santos”. 123
 LEVITICO
Uma tereeira diferença a ser observada quando
lemos a Bíblia é o fato de, no pensamento hebraico,
certas realidades não serem consideradas entidades
separadas, como em nosso pensamento ocidental.
Idéias como corpo e alma, sangue e vida, pensa­
mento e ação, são quase sempre consideradas a mes­
ma realidade. Por exemplo, no pensamento hebraico,
não há palavra para corpo. A palavra usada é “car­
ne”. Assim, “toda carne” é reahnente toda coisa viva
criada e equivale a “toda alma viva”. Como o sangue
e a vida estão intimamente associados, é o sangue de
Abel que clama a Deus do solo (Gn 4,10). Nem estão
o entendimento e o bem separados da própria vida:
“Dá-me discernimento e viverei” (SI 119,144). A ex­
pressão “Adão conheceu Eva e ela concebeu Caim”
significa que tiveram relações sexuais (já que não
há separação de corpo e alma, o ato pode ser chama­
do de conhecimento). É partilhar a vida com outra
pessoa na ação que verdadeiramente (conscientemen­
te) expressa a unicidade de Deus refletida na criação
homem-mulher.
O pensamento biblico não contém realmente o
que estamos acostumados a considerar código de
ética. Assim, ao falar da Torá, devemos evitar a pa­
lavra ocidental “lei”. A Torá não é um sistema de
leis. A Torá vem de Deus, para ensinar, regular, ins­
truir e distinguir. Em nosso pensamento ocidental,
“lei” transforma-a em mero código de ética. A
Bíblia diz: “Quanto amo a tua Lei, todos os dias eu
a medito” (SI 119,97).
D. Uma linguagem comum de atividade cultuai
no antigo Oriente Próximo. Através dos séculos,
muitas razões têm sido dadas para preceitos rituais
e alimentares. O historiador Fílon e o filósofo Mai-
mônides acreditavam que Deus deu alguns dos pre­
ceitos e das ordens a fim de servirem como auto-
disciplina dos apetites. Fílon diz que Moisés proibiu
a carne de porco porque essa é a mais deliciosa de
todas as carnes e que a abnegação refrearia a satis­
fação excessiva dos próprios apetites. Proibiu ani­
mais e pássaros carnívoros a fim de ensinar as pes­
soas a serem tolerantes e bondosas. Às vezes eram
feitas analogias entre o físico e o espiritual. Assim,
os animais ruminantes eram permitidos, pois aju­
dam as pessoas a ser sábias (ruminando muitas ve­
zes o que aprenderam). E os animais de casco fendi­
do, por terem o casco assim, ajudam as pessoas a
decidir entre idéias diferentes.
Quanto às proibições a respeito de alimento,
achamos que a maioria dos povos antigos usavam o
método de tentativcis baseado no sabor. O que tinha
gosto bom e não deixava as pessoas doentes era
puro ou bom. O que chamamos de tabu era prova­
velmente uma tática de susto para evitar que as pes­
124
soas fossem envenenadas. O “bom sinal” incenti­
vava as pessoas a comer de maneira apropriada. As
considerações práticas para um povo tomaram-se
diretrizes baseadas em crenças religiosas para outro
e foram transmitidas como tradições para sucessivas
gerações. Grande parte do que chamamos mito an­
tigo eram apenas atividades dos humanos em busca
da fonte de vida e de como sobreviver. Era inevitável
que os modos de vida nômade, agrícola e, por fim,
urbano trouxessem mudança de perspectiva, costu­
mes e prática religiosa. Simplesmente a mudança
natural das estações e a luta por comida, às quais às
vezes nos referimos como atos da natureza, influen­
ciaram a formação do desejo, do entendimento, do
projeto e da celebração da vida.
Reconhecemos certo tipo de linguagem usada
em todo o Oriente Próximo a respeito da crença e
da prática religiosas. Israel também usava essa lin­
guagem, mas com sentido especial e ênfase volta­
da para o único S enhor santo.
Quando as pessoas começaram a se instalar na
terra com um estilo de vida agrário e com o alimen­
to garantido, a necessidade de preservar certa esta­
bilidade tomou-se predominante. Sacerdotes, pro­
fetas, reis e rainhas estabeleceram a ordem para so­
breviver, não só como indivíduos, tribos ou peque­
nos grupos familiais, mas como nações. Assim, a
Bíblia é o relato de dois mil anos de idade de um
povo que estabeleceu sua identidade em relação a
seu Deus e a seus vizinhos.
Na verdade, nao sabemos muito sobre o desen­
volvimento inicial do culto e da prática religiosa.
A exegese, que aplica à Escritura métodos de estu­
do críticos, com o auxílio de outras ciências, em
especial a arqueologia, ajuda nossa compreensão,
até certo ponto. Sabemos muito pouco sobre o exato
ritual do sacrifício e praticamente nada sobre as
orações ou o comentário que acompanhavam a ação
ritual e as leis alimentares. O Levítico é mais uma
lista de preceitos rituais do que uma descrição deta­
lhada do procedimento real. Não temos registros
do que se rezava, dizia ou cantava durante o cumpri­
mento dos preceitos.
É no serviço do Santo, então, que levamos nos­
sa vida de santidade, e nosso primeiro preceito é
restabelecer a ordem da criação divina em nós mes­
mos e na comunidade. “Sede santos” é o significa­
do principal de séder (“tudo na ordem apropriada”)
na celebração da Páscoa, que continua até hoje na
prática religiosa judeu-cristâ. O coração da Torá
ainda bate no livro do Levítico. O chamado repeti­
do de Moisés e do povo à santidade, na pulsação
da Lei de Santidade, é ouvido e respondido na re­
feição pascal.

COMENTÁRIO
PARTE I: RITUAL DE SACRIFÍCIOS
Lv 1-7
È oportuno começar a ler o Levítico na IV
Parte, Lei da Santidade (caps. 17—26).
Os sete primeiros capítulos do livro falam de
preceitos rituais para oferecer sacrifícios e parecem
supor que o leitor já tenha tomado conhecimento
das idéias básicas da santidade israelita. Os capítu­
los 1, 2 e 3 tratam das oferendas consumidas (holo-
caustos); os capítulos 4 e 5 falam geralmente de
sacrifícios pelo pecado, enquanto os capítulos 6 e 7
trazem prescrições especiais para os sacerdotes.
Agora que a presença de Deus encontra lugar
no meio do povo, na Morada construída por Moisés
(Ex 26-40), Moisés é chamado por Deus para dizer
ao povo como reconhecer a presença do santo. Se
lermos os três primeiros capítulos juntos, veremos
que a mesma ordem se estende por todos eles e a
ênfase está na obediência, início da santidade.
1,1 Moisés ainda é o intercessor. Os vv. 1 e 2ritual pode mudar. Sem obediência não há vida de
são elos de ligação com o segundo e o quarto livros
de Moisés (Êxodo e Números). Em todo o Êxodo,
0 S enhor diz a Moisés: “Fala aos filhos de Israel”.
Esta frase continua no Levítico e vai até Números.
Atua como introdução a diversos preceitos de culto
e como declaração de solidariedade israelita. O povo
disperso precisa reorganizar-se em tomo de seu único
líder e intercessor, Moisés, para celebrar sua uni­
dade e solidariedade.
O título hebraico deste livro, traduzido por “e
ele chamou”, é a primeira palavra do capítulo 1. O
“e” mantém-nos em contato com o chamado de
Moisés para construir a morada (Ex 25,8-9). Agora
que a morada está completa, Moisés deve atuar como
intercessor do ato cultuai (Ex 40,32; Lv 1,2). Deus
chama Moisés a fim de lhe dar as regras de culto
para o povo obedecer. Moisés é o único intercessor
e somos lembrados muitas vezes da instrução da
Torá para a unidade do povo sob Moisés.
13-9 Dar-se inteiram ente a Deus. À primeira
vista, parece que recebemos apenas muitos preceitos
rituais. Nosso primeiro impulso é pô-los de lado,
afastando-nos do sangue do abate, dos animais reta­
lhados e queimados. O fedor do abate, animais que
gritam e a fumaça sufocante de carcaças no holo­
causto são repugnantes a nossa atmosfera ocidental
de banquete litúrgico. Entretanto, precisamos levar
em conta que este é o relato do povo de Deus, povo
que nessa fase de sua história levava nos próprios
ossos a lembrança da escravidão. E, em vista do
primeiro preceito da aliança do Sinai, precisava ser
afastado dos outros deuses e aproximado do Deus
único, o S enhor.
O incidente da adoração do bezerro de ouro, junto cador é como dizer que o sacrifício o agradou. Essa
com o chamado à santidade por parte do intercessor
LEVITICO 1
Moisés, podia ter evocado parte da resposta ritual do
primeiro capitulo do Levítico. Rituais que acompa­
nhavam os sacrifícios de animais não eram novidade
em seu mundo. Sua tentativa, então, seria devolver
tudo ao Senhor. A primeira ordem para o povo é des­
pojar a comunidade de toda submissão estranha e
investir na vida do Deus santo e único. A resposta
natuiáT^seria usar as práticas rituais já desenvolvidas
até que uma aliança impusesse outra coisa.
A ação disciplinar por causa da infidelidade
também parece ter desempenhado um papel em
parte do comportamento ritual. Quaisquer que fos­
sem a história ou as razões iniciais para algumas
das práticas que nos parecem tão estranhas, o propó­
sito principal da inclusão desse material é dar uma
lição de obediência. O parceiro inferior de um re­
lacionamento de aliança precisa primeiro aprender
essa lição e testemunhar seu exercício dentro da
comunidade a fim de preservar a tradição. A ênfa­
se está na obediência permanente, pois a expressão
santidade para o povo.
Um dos significados de santidade é “integri­
dade”. Ficar livre da escravidão e voltar ao S enhor
é restaurar a integridade à vida. Todos os aspectos
da vida precisam ser continuamente examinados e
confirmados à luz do chamado à integridade. Quan­
do essa vocação é posta por escrito no modo de pen­
sar hebraico, não admira que o cântico de Israel
chegue a nossos ouvidos de forma bem concreta,
em termos de carne e sangue (Ex 3,9; Lv 23; Dt
12,7). Assim como foi o sangue de Abel que do solo
clamou a Deus, agora o coração e a carne deste
povo gritam ao Deus vivo (SI 84,3). Até mesmo os
órgãos internos do animal sacrifical são preparados
de maneira especial e devolvidos em oferenda ao
Senhor da criação (Lv 1,8-9.13).
1,10-17 O sacrifício que sobe ao S enhor. Os
três sacrifícios do gado (v. 5), do rebanho (cordeiros
ou cabritos; v. 10) ou de ave (v. 14) são descritos
como holocaustos (oferendas consumidas). O verbo
hebraico correspondente significa simplesmente
“subir”; assim, o sentido primordial de tais oferen­
das é confirmar o S enhor como autor do dom da
vida. O sacrifício consome-se por completo para o
Senhor. A o “subir” e encobrir o cheiro do abate, a
fumaça da combustão, misturada à do incenso sa­
grado, apresenta ao S enhor uma oferenda de perfu­
me aplacador (Ex 30; Lv 1-8).
1,9.13.17 Uma oferenda de perfum e aplaca­
dor. Em Gn 8,21, o S enhor aspirou o perfume
aplacador da oferenda de Noé e prometeu nunca
mais amaldiçoar a terra. O Pentateuco fala de Deus
em termos humanos, e ele aspirar o perfume apla­
idéia do “perfume aplacador” repete-se com fre- 125
 LEVlTICOa

qüência no Pentateuco; em Ex 29, os carneiros, os dias do Êxodo). Devemos também notar que carre­
alimentos sem fermento e o novilho tomam-se obla- gar pão sem fermento é, com certeza, um meio se­
ções de odor aplacador (cf. também Lv 1-8; 23; guro de conservar trigo, centeio e aveia durante uma
26; Nm 15; 18; 28; 29). Também na narrativa do viagem. Afirma-se também que precisaram sair do
dilúvio da Mesopotâmia “os deuses sentem o odor Egito às pressas e não tiveram tempo de fermentar
dos sacrifícios”. Essa demonstração de aprovação a massa (Ex 12,33-34). Comer pão sem fermento
era provavelmente usada no culto canaanita e foi seria um lembrete da partida apressada. Este cos­
adotada pelos israelitas na época em que se acredi­ tume foi mantido na Festa dos Pães sem fermento
tava que os deuses nutriam-se cheirando ou aspiran­ (Ex 12,17).
do o alimento que era queimado. Até os relatos de Esta última festa foi reunida à Festa da Páseoa,
oferendas vegetais e de sacrifícios de paz concluem­ na qual um cordeiro foi sacrificado e o sangue pas­
-se assim; “uma oferenda consumida para o S enhor” sado nos umbrais e na verga das portas como sinal
(Lv 2; 3). para que o S enhor as pulasse. As pessoas que vi­
Quando a oferenda era completamente queima­ ajam precisam levar algo para comer. Assim, as
da pelo sacerdote, certa totalidade, uma santidade duas festas se juntaram muito naturalmente. Hoje,
da volta da criação para o S bshor , era expressa e entretanto, permanece apenas a celebração do pão.
experimentada. Significava a mesma elevação ou Para o judeu, a vítima pascal é lembrada apenas na
entrega da pessoa a Deus como oferenda de perfu­ perna do cordeiro e na ordem (sêder) da celebração.
me aplacador (1,4). Agora o povo encontrara um Ambos os memoriais fundem-se em um, chamado
jeito de se envolver por completo. Séder da Páscoa (Lv 23). Dentro da Lei de Santi­
Observe que, em geral, o ofertante realizava o dade do livro do Levítico, essas festas peregrinas
abate. A aspersão, o derramamento ou borrifo do ganham ênfase especial.
sangue sobre o altar era reservado aos sacerdotes. Prevenimos para que não se leia no texto mais
O povo trazia o animal sacrific^ para a entrada da do que se vê atualmente. Não devemos, entretanto,
tenda do Encontro, onde toda a comunidade in­ esquecer um chamado à santidade transmitido pelo
cluía-se no ato sacrifical. Ali eles deviam se aco­ autor sagrado. Errar a respeito de uma dessas ques­
modar e santificar os costumes do povo canaanita tões seria uma injustiça para com a Palavra viva de
com quem viviam. Deus. Assim, no modo de pensar hebraico, tudo
A Lei dada no monte Sinai exigia completa obe­ tinha de ser levado ao S enhor. Todo abate, toda
diência sobre o uso do gado, do rebanho e do cereal morte para a obtenção de comida, precisavam ser
(1—3). Todas as criaturas incluem-se em “quando um santos. De algum modo, deviam ser interpretados
dentre vós”. Até os pobres, que de outro modo talvez como sacrifício, ato de santificação, pois o sangue
não pudessem participar, podem pegar as rolas ou derramado tinha de voltar à fonte de vida, o Criador.
pombas abundantes na região. Assim, Ex 19,6: “e A vida está no sangue (17,14; 19,26). Para o povo
vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma de Deus e para aqueles com quem vivia ou viviam
nação santa”, se tomaria realidade. Obedecendo fiel­ com ele, todo sinal de vida tinha de cair dentro do
mente a esses decretos, identificar-se-iam com as círculo do santo (Ex 23).
oferendas e encontrariam favor como sacrifícios de Esse povo esforçou-se para responder ao cha­
perfume aplacador para o S enhor. mado à santidade (integridade). Esse esforço é o
Em Êxodo, Levítico e Números, a morada do impulso e 0 desejo da própria vida com a qual se
S enhor está na tenda do Encontro. É de onde vem relaciona o desejo de sobreviver. O dever agora era
0 chamado e é o local do sacrifício. Na oferenda, o cooperar em uma aliança com o Santo presente em
povo e os sacerdotes santificam-se, entrando em seu meio (Ex 19) e ocasionar certa perfeição para
contato com a presença do S enhor. O modo de sua vida e sua linguagem (Ex 23). Uma aliança in­
pensar real e concreto da mente hebréia fala do clui necessariamente a condição de obediência para
S enhor chamando da tenda do Encontro e do povo uma das partes e para a outra o eleneo das bênçãos
vindo para a entrada da tenda em obediência (Lv e maldições que se seguirão à obediência ou deso­
1,1-4). Tal ação prepara o contato com á santidade bediência à aliança (Lv 26).
e o sacrifício não fica completo (santo), se essa 2,13 O sal da aliança. O sal era símbolo da
condição não for satisfeita (1,3; 3,8; 4,4). aliança duradoura, pois impedia que os alimentos
2,11 Fermento e mel não devem ser queima­
se estragassem. Nos tempos antigos, compartilhar o
dos. As oferendas a ser queimadas já estavam mor­ sal era sinal de amizade e aliança. Talvez haja tam­
tas, mas a ação do fermento e a fermentação do bém um trocadilho hebraico; a palavra para sal se
xarope das frutas (incluído na palavra mel) sugere relaciona com a palavra para rei. É a Deus e só a
algo que ainda está vivo e, como tal, não podia ser ele que pertence a primeira obediência, e este é o
queimado no altar (2,11). Na tradição pascal (23), sentido da obediência à aliança.
o fermento era proibido (Ex 12,15) e o povo devia 33.16 “Toda gordura cabe ao S enhor ” . Para
comer pão sem fermento {maízah) durante sete dias os israelitas, as referências a comida para o S enhor
126 (segundo alguns, em memória dos primeiros sete podem ser tentativas sinceras de reunir as práticas

de seus vizinhos e de tudo devolver ao S enhor
único e santo, inclusive a saúde, a propriedade e o
bem -estar geral de toda a com unidade.
O pão era compartilhado (2,10; 3,9-11.14-16)
e, assim, o costume de comer com os deuses agora
está incluído na expressão do relacionamento entre
o Deus único e o povo, iniciada pela obediência à
aliança. Até hoje, consolidamos relacionamentos
com o convite para partilhar uma refeição. Eis uma
expressão exterior no ato de obediência. Na crença
e na prática hebraicas, a presença de um vizinho
confirmava a presença de Deus em seu meio.
Pode ser que queimar a gordura no altar de­
sempenhasse um papel para preceituar que a parte
gordurosa pertencia ao S enhor. No fogo forte a
banha inflama-se e produz uma nuvem de fumaça,
que talvez lembre a coluna de fogo durante a noite
e a coluna de nuvem durante o dia (Ex 13). Os he-
breus podem ter considerado esse lembrete gráfico
como indicação divina de que esta parte da vítima
pertencia ao S enhor.
Assim, a parte gordurosa sobre o altar provoca­
va grande comoção. Na nuvem (Ex 13,21; 16,10;
19,9; 24,16; 40,34; Lv 16,2.13; Nm 12,5) e na co­
luna de fogo (Ex 13,21.22; 40,38), o S enhor reve­
lava a presença divina. Deus vinha falar com Moisés
e, por intermédio dele, com o povo. (C f Mt 17,5;
At 1,9; 2Pd 1,17; Ap 14,14 — nestas referências
neotestamentárias e nas referências veterotestamen-
tárias citadas acima, as palavras hebraicas e também
as gregas para nuvem e esplendor estão associadas
à idéia de aparição-revelação.)
Um último comentário sobre os capítulos 1,2 e 3.
A disposição sistemática do material nestes três pri­
meiros capitulos talvez tenha servido de ajuda mne-
mônica, com algumas palavras-chave: holocausto,
vegetal e paz. A ordem tem certa santidade (perfeição)
ao apresentar o relato dos sacrifícios.
Os capítulos 4 e 5 expõem uma ordem que gira
não tanto em tomo do objeto do sacrifício quanto ao
redor da disposição do ofertante. O pecado e a culpa
são 0 assunto, junto com a expiação pelo pecado
cometido por ignorância (4,1-35), omissão (5,1-13)
ou perpetração (5,14-26). Essas situações parecem
abranger as disposições possíveis do pecador e as
oferendas necessárias para reparar as situações no
relacionamento da aliança.
Capítulos 4 e S, sacrifícios pelo pecado e de
reparação. Nos capítulos 1, 2 e 3, os sacrifícios
eram trazidos por obediência (por causa da aliança),
mas voluntariamente. Nos capitulos 4 e 5, são trata­
das oferendas de obrigação para aqueles culpados
de pecados por inadvertência (4,1-31) ou intencio­
nais (5,1.21-26). Nessa relação de aliança, como to­
da ação está em um relacionamento com Deus, toda
ação também se relaciona com todos os outros en­
volvidos na mesma aliança. Deus é a fonte de vida
e a aliança é, em certo sentido, a volta à vida (Gn
2,7; 6,17-18). (O material também está resumido
LEVfTICO5
em Nm 15,22-31.) A primeira pessoa considerada
aqui é o sacerdote que peca. Desse modo, o povo
também se toma culpado (Lv 4,3). Assim como o
sacerdote oferece em beneficio do povo e junto com
ele, a comunidade é afetada por outros atos da vida
do sacerdote.
4,2 Pecado por inadvertência. Incluem-se aqui
todos os casos de impureza ritual inevitáveis (por
exemplo, enterrar os mortos). Em Lv 4,1-12, no
rito de purificação para um sacerdote, a vítima toda
é levada para fora do acampamento. Nem mesmo
a pele é guardada para ser dada ao sacerdote, como
é usual (7,8). Agora, até o santuário é impuro, pois
aquele que em geral recebe a impureza do povo está,
ele próprio, impuro. Há outros casos de peeado por
inadvertência que afetam toda a comunidade (cf
Nm 15,26.27).
4,5-7 O rito do sangiíe. O anjo da morte pulou
as casas em cujos umbrais das portas fora aplicado
o sangue do cordeiro pascal (Ex 12,23). Aqui e em
Lv 14,7, 0 sangue é aspetgido sete vezes diante do
S enhor. Parte do sangue é aplicada nos chifres do
altar (Ex 29,12; Lv 8,15; 9,9). A aspersão é um lem­
brete do sangue da aliança e sua renovação (Ex 24,8).
A aplicação nos chifres era para que as pessoas se
lembrassem de todas as aplicações de sangue: na
estaca da tenda no acampamento, nas ombreiras das
portas na cidade e no altar no sopé do monte Sinai.
A idéia básica era afastar a morte e ligar-se à fonte
de vida. Nesse caso, a intenção é libertar-se da es­
cravidão de impureza que divide os participantes da
aliança e ser restaurado como parceiro pleno da co­
munidade humana-divina. A vida que está no sangue
é devolvida ao S enhor pelo contato real com o altar.
Com essa volta da vida à sua fonte, o indivíduo, e com
ele a comunidade, recupera a pureza e a liberdade
para voltar a viver.
A comunidade toda é afetada pela impureza,
embora tenha sido cometida por um indivíduo. A
referência à inadvertência é a tentativa de abranger
todas as situações possíveis.
4,6 O sangue é aspergido sete vezes. Aqui e
alhures (4,17; 14,7.16.27; 16,19; Nm 19,4), o sangue
é aspergido sete vezes. Nos tempos antigos, o número
sete era sinal de integridade e perfeição (santidade).
O sete comporta o agrupamento de um, ladeado por
dois grupos de três. Observe-se o desenho do cande­
labro ou menorah: um único ramo central, com dois
grupos de três ramos ladeando-o. A “menorá” é o
símbolo da vida perfeita (santa). Poderiam ser citados
muitos outros exemplos do uso do sete como número
sagrado. Exemplo primordial é a obra santa da cria­
ção. Deus criou o mundo em seis dias e depois aben­
çoou o sétimo dia e o consagrou (Gn 2,3). Em Ex
31,15, 0 sétimo dia é de descanso completo, consa­
grado ao S enhor.
5,1-26 Exemplos concretos. Aqui percebemos
a insistência dos redatores para incluir todas as situa­
ções de culpa e castigo possíveis, com referência 127
 LEViTICO 8
não só aos chamados para testemunhar sobre um
caso especifico, mas até aos que sabem alguma
coisa sobre o pecado (impureza) de outrem, mas se
recusam a testemunhar. Também eles têm uma res­
ponsabilidade comunitária para confessar. Note que
a palavra hebraica para culpa contém não só o as­
pecto consciente de culpa por desobedecer à Lei
(Torá), ou a omissão de determinado preceito, mas
também a auto-acusação e a aceitação do castigo.
6,1-7,38 Prescrições rituais complementares.
Os capitulos 6 e 7 trazem preceitos que parecem
ter-se desenvolvido de perguntas surgidas enquanto
era realizado o ritual básico descrito nos cinco pri­
meiros capitulos. Por exemplo; Onde isto deve ser
feito? O que o sacerdote deve usar? Que fim deve
ser dado às cinzas? E se o animal fosse selvagem
e/ou morto por um animal selvagem? A medida
que essas perguntas eram respondidas, formavam-
se outros preceitos, por fim acrescentados ao Le-
vitico. Preceitos adicionais não parecem de modo
algum perturbar a ordem simples dos primeiros ca­
pítulos. Observe-se, entretanto, a ordem aqui preser­
vada. O capítulo 6 trata do material dos capítulos
1, 2 e 3, enquanto o capítulo 7 traz alguns acrés­
cimos aos capítulos 4 e 5. Mas precisamos reiterar
que tudo e todos precisam ser incluídos na aliança.
Nada pode ser omitido nem mesmo na coleta dos
preceitos rituais mais insignificantes; toda situação
de vida possível deve ser ordenada como material
de construção para a pureza e a vida de santidade
definitiva.
No capitulo 7, encontramos primeiro o castigo
de ser “cortado de sua parentela” (7,20.21.25.27;
17,4.9.10.14; 18,29; 19,8; 20,3.5.17.18, continuando
até Números). Lv 17,10 e 20,6 deixam claro que Deus,
não o sacerdote nem o povo, conferirá o castigo. Al­
guns comentadores interpretam esse castigo como a
morte prematura. Parece que o castigo é apenas uma
afirmação de fato daquilo que acontece quando uma
parte viola a aliança. A frase hebraica para fazer uma
aliança é “cortar uma aliança”. Assim, na violação da
aliança, a pessoa é cortada da outra. Além do troca­
dilho hebraico, há uma boa tática de susto na afirma­
ção de um fato. Ao consumo do sangue (17,10) e à
adoção dos modos licenciosos dos adivinhos (alguns
podem ter-se envolvido em ritos de sangue vizinhos,
c f 20,6), segue-se que o castigo viria de Deus, pois
a vida está no sangue e Deus é a fonte de vida. Deus
seria então a fonte imediata do castigo pela violação
direta da vida.
Evitar ser cortado, de qualquer modo que isso
acontecesse, era preocupação especial, pois ser exco­
mungado não refletiria a presença do Santo no meio
do povo. Mais adiante, no capítulo 20, vemos a ne­
cessidade de preservar a união da família e uma or­
dem apropriada ao conjunto de toda a vida da pessoa,
a fim de preservar a comunidade como um grupo.
Na comunidade reflete-se a unicidade de Deus.
128 Portanto, a pessoa deve evitar ser cortada. De fato,
tudo que diz respeito à vida da pessoa (e, assim, à
da comunidade) precisa, de algum modo, mover-se
em relação com o Santo. A crença é a prática.
A ordem de crença e prática é a obediência
(caps. 1-27), depois a purificação pelo ritual (caps.
11-27) e, por fim, a santificação (caps. 17-27). Pa­
rece tão simples quanto o exemplo de alguém que
segue uma prescrição, encontra a cura e depois goza
de boa saúde. O segredo está na “ordem” de santi­
ficar. E uma experiência não termina onde a outra
começa. A obediência está em atividade na pureza,
ambas estão em ação na santificação e as três estão
plenamente vivas na vida de santidade. Entretanto,
se nos concentramos em apenas uma ou tentamos
fugir de uma indo para outra, vemos nossa vida ser
apenas uma interminável solicitação de obediência.
Isso explicaria por que muitas vezes o livro do Le-
vítico é negligenciado ou evitado (c f também Intro­
dução, 5, p. 122).
A disposição geral no livro é muito simples,
mas é possível o leitor se emaranhar nos muitos
preceitos e tradições. Basta olhar para os interminá­
veis volumes de transações legais em nosso sistema
judiciário com suas decisões inconstantes e normas
instáveis! Acrescente-se a isso a facilidade que as
tradições orais têm de se desenvolver e mudar por
si mesmas. Então, pode transcorrer um tempo longo
antes que as tradições orais sejam postas por escrito.
Finalmente, precisamos considerar o lapso de tempo
para reunir o material e as inúmeras coisas que po­
dem acontecer entre a coleta e a redação. No Le-
vítico, a redação final parece indicar a progressão
muito simples para levar a vida de santidade —
obediência, pureza, santidade.
PARTE II: CERIMÔNIA DE ORDENAÇÃO
Lv 8-10
Os capitulos 8, 9 e 10 são o lugar adequado
para introduzir a dedicação da tenda do Encontro e
a investidura do sacerdote na disposição do material
para o Levítico. P, o autor sacerdotal, continuará
mais tarde com os preceitos de pureza (caps. 11-16)
e os preceitos para a santidade (caps. 17-27). Embora
a cerimônia de investidura e a dedicação da tenda
do Encontro já tenham sido explicadas em Ex 29,
são novamente apresentadas para manter a ordem
apropriada do tema da santidade.
Ao mesmo tempo, quase podemos ouvir a ca­
dência e repetição do fluxo de vida do povo; a che­
gada e a aliança no Sinai (Ex 19-24); a revelação de
Deus (Ex 19); a construção e a cerimônia da Morada
(Ex 25-28); a consagração dos sacerdotes e do altar
(Ex 29); a lei do sábado (Ex 31); o pecado (Ex 32);
Moisés, o intercessor (Ex 33); a renovação da aliança
(Ex 34) e a entrega da lei do sábado, com prescrições
para a construção da Morada (35—40); a cerimônia
(Lv 1-7); a investidura dos sacerdotes (Lv 8-10); a

purificação do santuário, dos sacerdotes e do povo
(Lv 11-16); uma nova vida de aliança (Lv 17-27);
e a revelação de Deus. Esta cadência não é apenas
uma repetição sem sentido. A cada vez a afirmação
da vida é dada na pulsação do povo.
São evidentes os sinais de vida, amadurecimento
e novas intuições. A colocação dos capítulos 1-7
indica a necessidade de obediência ao ritual de sacri­
fício. Esse ritual expressa o desejo de santidade e o
elemento condicionador para a purificação. Tudo isso
é antecedente da vida e da prática de santidade (caps.
17-26).
8.1- 36 A cerimônia de investidura. Moisés é oAssim, na celebração de sete dias, talvez Aarão e os
intercessor até do sacerdócio (w. 1-4). Uma descri­
ção mais detalhada das vestimentas e cerimônias já
foi dada em Ex 28-29. De conformidade com o tema
do Levítico, é confirmada a ordem a ser seguida na
cerimônia de investidura (vv. 5-33). É dada ênfase
à expiação para o altar e os que estão sendo inves­
tidos (vv. 15.34), identificando-os à vítima do sacri­
fício (vv. 22-31), em vez de enfatizar sua ordenação
por Deus por meio de Moisés (v. 35).
9.1- 7 O sacrifício do oitavo dia. O sacrifício faríamos bem em continuar nosso exame. O momen­
completa a consagração do sacerdote. Consiste na
combinação do sacrifício de um bezerro pelo peca­
do, no holocausto de um carneiro (por parte de um
sumo sacerdote) e no sacrifício de um bode pelo
pecado. Um bezerro e um cordeiro para um holo­
causto e um touro e um carneiro para um sacrifício
de paz, junto com uma oferenda vegetal amassada
com azeite, também são oferecidos no oitavo dia.
Que celebração extraordinária, que inclui pratica­
mente todos os sacrifícios dos quais mais tarde o
sacerdote participa! A celebração é magnífica, pois
nesse dia “a glória do S enhor apareceu a todo o
povo” (v. 23; cf. também os vv. 4.6).
O autor ou os autores parecem transmitir dois
sinais essenciais do sacerdócio. Primeiro, quanto ao
dever intercessor do sacerdote, todo sacrifício preci­
sava ser trazido para ficar diante do S enhor. O s
sacerdotes deviam interceder a respeito de decisões
já tomadas e daquelas para as quais era preciso enten­
dimento. Era de que tratava a santificação — estar
presente na presença do S enhor (9,5). O sacerdote
deve “manter contato” com o S enhor. A comunida­
de tinha de se apresentar na entrada da tenda e, então,
vir ao altar na pessoa do sacerdote (v. 7). O poder
divino podia então agir no meio do povo, por inter-
cessão do sacerdote em contato com a presença de
Deus. A segunda coisa essencial na qual os autores
parecem se concentrar era Moisés como intercessor.
Ele foi 0 profeta para Faraó. Agiu como rei ao condu­
zir o povo para fora do Egito. E agora o sumo sacer­
dote no sacrifício e na investidura dos que tomarão
parte no sacrifício.
10.1- 5 M orte de Nadab e Abihu. Houve quem
sugerisse que os filhos de Aarão, Nadab e Abihu,
haviam enchido seus incensórios com fogo que não
era santo, isto é, tirado de outro lugar, não do altar.
LEVÍTIC011
Outros dizem que o incenso deles não era a mistu­
ra pura que devia ser. Assim, foram punidos com a
morte pelo fogo, um fogo santo do altar. Um raio
podería tê-los morto. Como estavam no altar, o povo
certamente interpretaria qualquer acontecimento
como vindo do S enhor.
10,9-10 Capacidade de distinguir. Seja o que
for que tenha acontecido, o ponto principal é revela­
do nos vv. 9 e 10, onde Moisés diz que nenhum
vinho nem bebida inebriante deve ser tomado antes
do dever sacerdotal na tenda do Encontro. “É para
terdes condição de distinguir o sagrado do profano”.
filhos tenham bebido muito vinho. Embora Nadab
e Abihu pudessem ter sido atingidos por um raio, é
possível que pusessem a mistura errada no fogo, o
que resultou em uma explosão de chamas e na con-
seqüente asfixia (já que o v. 5 diz que foram enter­
rados vestidos com sua túnica).
Em vista de outras referências em Ex 24 e Nm
3 e à parte da injunção de Moisés para evitar a ingestão
de vinho ou outra bebida inebriante em serviço (10,9),
to é bastante sarado; “Por aqueles que se aproxi­
mam de mim eu quero ser santificado, e diante do
povo inteiro, eu quero ser glorificado” (10,3). Abihu
(“Ele é meu pai”).e Nadab (“Na é generoso”) pode­
ríam também representar um sacerdócio mais primi­
tivo, agora substituído pelo sacerdócio aarônico e
levítico. O incidente, então, é usado aqui para intro­
duzir, de forma literária, mas mesmo assim real, a
nova ordem (ou, pelo menos, a extinção da antiga).
Agora é por intermédio de Aarão e seus filhos que o
novo e o antigo são representados na cerimônia de
ordenação (10,3). Outros sacrifícios de fogo são proi­
bidos. Lembremos que no capítulo 9, depois da ceri­
mônia de investidura de sete dias, no oitavo dia o
povo viu surgir a glória do S enhor em forma de fogo
da presença do S enhor. Se ocorresse um raio, teria
dado ensejo a uma explicação.
10,11 Os sacerdotes devem ensinar a Torá.
Acresce outra responsabilidade interessante para o
sacerdote quanto à preparação e o amadurecimento
da santidade. Ele deve ser mestre da Torá, “todos os
decretos que o S enhor promulgou para eles por inter­
médio de Moisés” (v. 11 — mais uma vez, insistência
em Moisés como intercessor). A palavra hebraica
(de onde tõrãh) significa “ensinar” e “orientar”. O sa­
cerdote deve aprender a orientação apropriada (ordem)
e depois ensinar aos outros. Em português, o mesmo
sentido rico se esconde nos termos “discípulo” e
“disciplina” (do latim discere).
PARTE III:
LEIS A RESPEITO DA PUREZA LEGAL
Lv 11-16
A inserção aqui dos capítulos sobre o sacerdó­
cio é natural. Caso contrário, a obediência podería 129
 LEVlTlCOII
ser praticada por amor à própria obediência. A
obediência tomou-se agora uma resposta à relação
da aliança pela intercessão do sacerdócio e continua
viva na purificação-preparação (caps. 11-16) para
a santidade (caps. 17-27).
Agora a pureza legal (caps. 11-15) será expli­
cada e enfatizada como condição, aliado à obediên­
cia, para a santidade legal que vem mais tarde (caps.
17-27.)
Para lembrar o que foi dito sobre os padrões de
pensamento hebraicos, respeitamos esses preceitos
como vivos, não apenas como orientações para a
vida. Todos indicam e fazem parte da vida de santi­
dade ou integridade — estar plenamente vivo é res­
peitar 0 poder do criador da vida. Parece que os re­
datores finais prepararam um caminho muito simples
para a santidade. Perceberam que agora era o mo­
mento, em todo o texto da Torá, de mencionar este
preceito levítico. Sem ele, a Torá ficaria sem um
coração e seu batimento, que seria sinal evidente da
presença do Santo e a expressão da plenitude da vida,
a Lei de Santidade em 17-26 (o capítulo 27 é outro
capítulo-ponte). Como o Levítico é o coração da Torá,
referimo-nos à Lei de Santidade como o batimento
desse coração.
Para os que devem se tomar santos, o S enhor
diz: “Dize aos filhos de Israel: ‘Santificai-vos, por­
tanto, para serdes santos, pois eu sou o S enhor vosso
Deus’” (Lv 20,7; Ex 31,13; e Lv 11,44). A obediên­
cia vem primeiro (caps 1-7); depois o S enhor ma­
nifesta sua glória ao povo por intermédio do gmpo
de sacerdócio santo da comunidade (caps. 8-10).
Mas antes que a pessoa experimente a santidade deve
ser limpa (pura) (cqjs. 11-16). E, como “a limpeza
está próxima da santidade”, assim a pureza, resultado
da obediência à lei, está próxima da santidade. Esse
é o material tratado em seguida no caminho da santi­
dade. Obediência, pureza, e santidade não podem ser
separadas, da mesma forma que é impossível separar
corpo, sangue e alma. (No modo de pensar hebraico,
estes três últimos estão incluídos na palavra “ser”.)
E importante considerar este modo de pensar, para
podermos entender a forma como o material levítico
transmite o significado de santidade. A obediência
está incluída no entendimento e na experiência da
pureza. Agora os preceitos tomam-se mais rigoro­
sos. A pureza põe a pessoa em condições para a Lei
de Santidade.
Como a pureza só pode vir de Deus, a presença
de Deus deve ser no meio do povo, acima da arca
(16,2). É o lugar de expiação, onde estão contidos o
perdão e a reconciliação que resultam em pureza.
Os capítulos 11-16 narram como é estabelecida
a condição de pureza. Os materiais reunidos nes­
ses preceitos apresentam um receptáculo adequado
(puro), “para dar” santidade. Esta expressão contém
as idéias de perdão e a condição necessária para a
santidade. Uma coisa é ser perdoado, outra levar uma
130 vida de santidade. O estado de pureza resultante
do perdão de Deus é o receptáculo para a vida de
santidade; não é o estado de santidade. Por isso,
até hoje, uma vez por ano, é feita expiação por
todos os pecados, na festa de Yom Kippur, o dia do
Grande Perdão.
Isso explica o lugar da Lei de Santidade (caps.
17-27) no livro do Levítico; há uma progressão or­
denada para a plenitude da vida, a vida de santidade
(19,1-7). Também explica o lugar do capítulo-ponte
16 descrevendo o dia do Grande Perdão, a condição
permanente para a vida de santidade. Mais tarde
veremos como o capítulo 27 também se toma um
capítulo-ponte, seguindo-se a apresentação do mate­
rial sobre a santidade.
Os capítulos 11-16 tratam do puro e do impuro.
Os capítulos 11 e 12 consideram o que é tomado in-
temamente: alimento puro e impuro e a impureza
do parto que resulta na perda de sangue (a semente
foi recebida intemamente). O que aparece exteraa-
mente na pele ou nas vestes é o assunto dos capí­
tulos 13 e 14. O capítulo 15 trata daquilo que flui
de dentro da pessoa. O bem-conhecido capítulo 16,
que traz o relato do dia do Grande Perdão, é o impor­
tante capítulo-ponte que liga o puro e o santo.
11,1-23 Alimento puro e impuro: as leis ali­
mentares. Aqui estão relacionados os animais que
podem e os que não podem ser comidos: os terrestres
(vv. 1-8), os aquáticos (w. 9-12) as aves (vv. 13-19)
e, finalmente, os encontrados em todas as três áreas
— insetos e criaturas de enxame (w. 20-23).
Os cadáveres dos animais impuros não devem
ser tocados; quem os toca toma-se impuro (vv. 24­
32). A maior parte desses preceitos são repetidos
em Dt 14,3-20. No Levítico e também no Deutero-
nômio as pessoas são advertidas para se tomar e se
manterem santas simplesmente evitando certos ali­
mentos (Lv 11; Dt 14,3-21). Entretanto, a razão
direta pela qual certos alimentos causam impureza
ou contaminação não é conhecida. A simples obe­
diência parece ser uma boa razão, em vista de Gn
2,16, onde no princípio Deus disse: “Poderás co­
mer... mas não comerás...” . Até mesmo hoje há
certos alimentos permitidos pelo preceito alimen­
tar judaico, chamados kósher, “apropriado” para
comer.
As vezes, são feitas suposições a respeito do
relacionamento israelita com a prática cultuai dos
vizinhos. Embora tenham emergido algumas refe­
rências literárias, precisamos ser cautelosos e pes­
quisar para obter mais evidências de associações
com a vida real. Parece ter havido uma linguagem
cultuai comum usada no Oriente Próximo. Dessa
base, todas as tribos ou nações tomaram o que me­
lhor expressaria seu relacionamento com a presença
do Santo no conjunto da criação (cf. também In­
trodução, 7D, p. 124)
A força simples e clara deste material em Le-
vítico parece ser que tudo e todos precisam ser con­
duzidos à ordem e à soberania do Deus santo único.

A totalidade da criação já se unira à ordem e à so­
berania divinas nas narrativas da criação, no Gêne­
sis; agora a vida cultuai do povo dirige-se a esse
Deus. A Morada acabara de ser erigida (Ex 40) e
era chegado o momento de o “material levítico”
passar pelo lugar santo em preparação para entrar
no lugar santíssimo. A experiência do relacionamen­
to divino-humano podia ser vivida até no registro
escrito deste povo. Como observou são Jerônimo:
“No livro do Levítico, há um odor de santidade”.
H',36 Uma fonte ou cisterna permanece pura.
A pureza da água era necessária, não só porque a
água potável era escassa, mas também porque sua
fonte atual é o solo (manancial) ou o céu (a chuva
na cisterna).
12,1-8 Im pureza da mulher que deu à luz. A
razão para esta contaminação encontra-se no v. 7;
“... ela está purificada da sua perda de sangue”. É
o fluxo de sangue que contamina. (A vida está no
sangue e, como o corrimento é periódico, é impos­
sível manter o controle apropriado. Lv 15,32-33
menciona que homens e mulheres são tratados da
mesma maneira.) Só podiam chegar até a entrada
da tenda ou, em outra época, eram barrados do
outeiro do Templo.
Hoje ainda há muito mistério e sofrimento ligados
à menstruação e ao parto. Desenredamos parte do
mistério, mas o sofrimento permanece (Gn 3,16). Na­
quele tempo, 0 medo e o tabu também desempenha­
vam certo papel na experiência. As secundinas fa­
ziam com que se p>ensasse que uma espécie de cas­
tigo estava sendo imposta à pessoa. E, naturalmente,
havia as histórias e tabus das vizinhas. A taxa de
aborto devia ser alta, o que enfatizava a necessidade
de explicar a doença e exigia um preceito a respeito
da contaminação e da necessidade de purificação.
A oferenda só é feita quando o eorrimento pára
(Lv 15,13-14.28-29), por isso não há o problema
da prática de magia — ritual realizado a fim de
provocar alguma mudança.
12,2.5 A duplicação do tempo de purificação
quando a mulher dá à luz meninas. Deve ter algo
a ver com o fluxo menstruai. Lembre-se, a vida está
no sangue e devem ser tomadas todas as precauções
para reconhecer Deus como a fonte de vida.
13,4 Isolamento de sete dias. Provavelmente
precaução prática no caso de moléstia de pele.
Qualquer mudança na pele deve acontecer ao fim
desse tempo, para que o sacerdote possa decidir
sobre a pureza da pessoa. A espera é santificada
pela escolha de sete dias.
13,46 M orar fora do acampamento. Em al­
guns casos isso significa morar sozinho. Morar fora
do acampamento veio a ser descrito como “fora dos
muros da cidade” ou, às vezes, no caso de preceitos
do Templo, “fora do outeiro do Templo”, ou no de­
serto, “fora da comunidade do tabemáculo”. A pes­
soa só podia chegar até a entrada da tenda, como se
vê nos capítulos 12 e 15.
LEVÍTICO 14
Em vista do extenso tratamento da moléstia de
pele nos capítulos 13 e 14, parece que na época
pode ter havido uma epidemia de doenças de pele
desconhecidas. Sem dúvida conhecemos a impor­
tância do sangue que contém a vida de todas as
criaturas (17,11.14). Hoje, é bem conhecida a im­
portância de análise sanguínea como indicação da
saúde geral da pessoa. Da mesma forma, no Leví­
tico, a mais leve descoloração ou mancha precisa­
va ser analisada, para que se tomassem os cuida­
dos apropriados, a fim de confirmar o poder de
Deus em todos os fluxos de sangue.
Sabemos como é fácil levar o dedo à boca
quando o cortamos. A palavra hebraica na proibição
é “não comer” (Lv 7,26; 17,10). Embora talvez a
proibição se referisse a uma prática nos rituais de
outros povos, 0 respeito pela vida em reconheci­
mento a seu criador deve ser considerado seu sen­
tido primordial.
14.3 O sacerdote sai do acam pamento. O
impuro não faz parte da comunidade viva, mas o
sacerdote pode ir até essa pessoa. Entretanto, para
evitar a contaminação da comunidade, o sacerdote
deve sair do acampamento para fazer seu exame.
Aqui, “lepra” significa qualquer moléstia de pele.
14.4 O rito de purificação. A água doce é talvez
obtida de uma fonte ou cisterna, mergulhando um
recipiente de barro na água. A água doce era usada
porque a purificação era fora do acampamento e de
sua comunidade pura. O sangue da única ave dego­
lada cai na água doce e recebe o cuidado apropriado
pelo contato com a água. A água pode, então, ser
despejada no solo e o recipiente é purificado. A ma­
deira de cedro (do tipo usado na construção do telha­
do do Templo), púrpura carmesim (da cor do sangue)
e hissopo formam um regador. O hissopo é prova­
velmente amarrado à madeira de cedro com a púr­
pura. Tudo é molhado com o sangue da ave pura,
pois a vida está no sangue. Uma das aves representa
Israel (a pessoa doente), prestes a reentrar no relacio­
namento da aliança. A ave é mediadora da purifica­
ção, pois passa grande parte da vida voando entre o
céu e a terra.
14,7 Purificação pelas sete aspersões. Algu­
mas referências à aspersão do sangue encontram-se
em Ex 12,22; 24,8; 29,21; Lv 4,6; 5,9 e nos fazem
lembrar a aliança do Sinai. De fato, em Ex 24, o
sangue aspergido sobre o altar e o povo é chama­
do de “o sangue da aliança”. Assim, agora, na re­
novação da aliança, o sangue é aspergido. É tam­
bém lembrete do sangue da Páscoa que libertou o
povo da escravidão. A escravidão agora é a mo­
léstia de pele, que mantém a pessoa presa fora do
acampamento.
No mundo antigo, sete era um número sagra­
do, considerado número completo (santo). Havia
sete planetas (cinco, mais o sol e a lua) que tinham
movimento próprio entre as estrelas fixas. Sete é
um franqueado por dois grupos de três; três era 131
 LEVÍTICO 14
também um número perfeito, pois tem começo,
meio e fim (1-1-1). A aspersão voltada para o
S enhor deve ser perfeita, completa, santa; a asper­
são em expiação pelos doentes também deve ser
perfeita, completa (santa), pois a infecção da pele
dificilmente é em apenas um lugar, mas sim em
muitas áreas diferentes do corpo. A purificação deve
estender-se a todo o corpo do leproso; não tocar um
único local deixaria a pessoa impura e seria neces­
sária outra purificação.
14.7 A segunda ave é libertada. A ave é como
o bode expiatório, levando a lepra para um lugar
sem volta. Note a importante orientação ritual: o
sacerdote faz a ave voar para o campo aberto. Pri­
meiro, efetua a aspersão sobre o que se purifica.
Depois, quando se realiza a purificação, toma a
outra ave. O purificado solta a ave (expiatória).
Assim se completa a purificação. Podemos imagi­
nar a pessoa sentindo-se realmente purificada, rece­
bendo do sacerdote o pássaro restante e, então, dei­
xando sair a infecção junto com a ave (um verdadei­
ro pombo-correio!) em direção ao Deus que absol­
ve. São restauradas para o indivíduo a vida, a inte­
gridade da aliança com Deus e a comunidade. Não
existe magia, pois a pessoa já está curada quando
o rito de purificação é realizado (14,3). Um para­
lelo é o.atual rito de reconciliação, que trata da lepra
do pecado. O penitente aproxima-se do rito de re­
conciliação, embora o pecado seja perdoado por um
ato de contrição. O sacerdote é o mediador do ritual
sacramental (momento santo), que confirma o poder
de perdoar e curar de Deus presente na comunidade
e reconcilia a pessoa com o relacionamento comuni­
tário da aliança.
14.8 Aquele que se purifica permanece fora.
Está agora dentro do acampamento, mas fora da
tenda, o que poderia significar fora do santuário
ou Templo, pois só no oitavo dia a pessoa tinha
permissão para levar sacrifício ao Templo.
14.9 No sétimo dia, aquele que se purifica
torna a raspar os pêlos. As raízes cresceram e as
pontas da contaminação são eliminadas. O cabelo
é purificado e lavado mais uma vez. A razão talvez
seja mais prática que simbólica, pois então se pode
decidir melhor quanto à moléstia.
14.10 A oferenda do oitavo dia. O ritual acon­
tece no Templo. O efá é considerado equivalente a
desde 22 até 45 litros e um log contém pouco mais
de meio litro. O único tipo de oferenda não mencio­
nada é o sacrifício de paz, pois tais sacrifícios costu­
mavam ser voluntários. O sacrifício de reparação era
necessário (cf. 5,14-26). Além disso, a pessoa purifi­
cada talvez tivesse de trazer o sacrifício de reparação
para compensar a ausência do ritual do Templo durante
o tempo em que foi excluída.
14,12-13 O gesto de apresentação. Este ato
pode ser melhor descrito como “elevação” do que
como gesto de apresentação. Talvez seja a elevação
132 das mãos à maneira do sacerdote de hoje no ofer-
tório do pão e do vinho. Pode referir-se à oração
com as mãos erguidas. Em todo caso, a palavra he­
braica relaciona-se com “altura”. O v. 13 refere-se
ao sacrifício de reparação como “coisa santíssima”,
pois é confirmada a integridade de todos os mem­
bros da aliança.
14,14 Sangue aplicado no lóbulo da orelha di­
reita, no polegar da mão direita e no polegar do
pé direito daquele que se purifica. Os antigos acre­
ditavam que o acesso dos espíritos à vida de uma
pessoa realizava-se por essas extremidades — como
no caso do que está impuro (5,2) e do que está san­
tificado (6,11). O sangue era usado para purificar e
para afastar a impureza ou o mal. Mais adiante vere­
mos a unção de azeite sobre o sangue. Aparente­
mente, essa unção preparava para a purificação e a
entrada do espirito bom. Hoje, durante o batismo, o
lóbulo da orelha e a boca são tocados em preparação
para receber e falar a palavra de Deus.
No rito de investidura do sacerdote, o sangue do
carneiro da consagração é aspergido no altar (Ex
29,19-25; Lv 8-9). O sacerdote é consagrado ao
S enhor. Aqui não é mencionada a aspersão do altar,
pois é o sacrifício de reparação do sangue do cor­
deiro que é aspergido sete vezes diante do S enhor.
A modificação da direção do ato ritual, ou a omis­
são de determinado rito onde seria de esperar que
fosse repetido, pode indicar um significado desse
ritual. Assim, cada campo da vida pode ser abran­
gido por preceitos positivos. Entretanto, a precisão
do preceito levítico parece fazer com que alguns
leitores se afastem dessas instruções da ibrá. Mas,
para outros, essa exatidão presta-se a uma excitante
caça ao tesouro.
14,17 Azeite sobre o sangue do sacrifício de
reparação. Aplicar o azeite por cima do sangue
exprime a volta total à vida da aliança. O azeite
representa Deus que age no indivíduo e na vida co­
munitária do povo. Deus dá vida ao relacionamento
de sangue. Para o sacerdote necessitado de tal puri­
ficação, esse ritual atua como pequeno rito de re-
consagração (cf também 8,10). A aliança é reno­
vada e todos estão prontos para a vida de santidade
com suas permanentes e amadurecidas obediência,
purificação e conduta santa.
14,21 O sacrifício do leproso pobre. A exigên­
cia reduzida de rolinhas em vez de cordeiros faci­
lita 0 ritual de purificação para os pobres. A ênfase
está no reconhecimento da aliança, não na exigên­
cia da oferenda. Entretanto, parece que a exigência
do sacrifício de reparação permaneceu a mesma
para todos, pois está envolvida a confirmação de
Deus e do próximo. O mesmo requisito para todos
expressa abertamente esse envolvimento, embora
o lado culpado agisse com relutância ou inadverti-
damente (5,14-26).
1433-57 Purificação das casas. Assim como o
indivíduo tem necessidade de absolvição e purifica­
ção, 0 mesmo acontece com sua morada. Lembremos

que até a morada do Senhor precisava de purificação
de tempos em tempos. No dia do Grande Perdão,
havia purificação de toda contaminação que pudesse
ter ocorrido durante o ano anterior (16,16-19).
14,37 a mancha nas paredes...” Isso pare­
ce ser mofo e ferrugem, mas, em vista do v. 34 e na
opinião de alguns rabinos, era considerada uma
contaminação enviada como castigo pela falta de fé.
O mofo e a ferrugem garantiam que algum tipo de
vida devia estar presente. Portanto, um preceito tinha lecido. Deus e a nação estão prontos para obedecer
de assegurar o reconhecimento adequado da fonte
de vida e o respeito pela vida em si.
Alguns tipos de contaminação são inevitáveis
ou acidentais e há os que ocorrem no curso normal
dos acontecimentos (enfermidades e corriraentos pe­
riódicos). Alguns acontecem durante o desempenho
de atos louváveis (Lv 16,21-28; Nm 19,7.8.10). Os
rabinos os chamam de “contaminações do corpo”.
Os rabinos pensavam que o pecado ocorre
quando o impuro e o santo, ou o puro e o profano,
reúnem-se em um espírito de desobediência — por
exemplo, a entrada no lugar santo de alguém proi­
bido de fazê-lo, ou comer alimento puro enquanto
se está em estado impuro. A obediência ainda é a
chave em um relacionamento de aliança. Deus é o
único que pode dizer: “Eu sou o S enhor” .
A obediência é a chave para a purificação e a
santidade. Pode parecer que o livro do Levítico fala
apenas de obediência ritual, mas a Lei de Santida­
de menciona a necessidade de obediência na tota­
lidade da existência. Lv 1-7 tratam da obediência.
Os capítulos 11-15 expressam a purificação que
resulta da obediência. Então, e só então, a pessoa
começará a levar uma vida santa.
15,13 E preciso lavar-se em água de fonte. A0 outro recebe os pecados da comunidade e é man­
pureza contém uma idéia dupla: primeiro, ser curado
de uma doença ou purificado do pecado (cf 14,48.
49) e, segundo, lavado (em alguns casos, banhan­
do-se em uma fonte ou um lago de água doce, ou
seguindo o preceito exigido) para estabelecer a puri­
ficação. O processo é uma minilibertação do Egito,
que leva à Terra Prometida.
16,1-34 O dia do G rande Perdão. Esse capí­
tulo tem lugar especial no Levítico porque atua
como ponte para ligar o rito da purificação e a vida
de santidade (caps. 17—26). E o S enhor que inicia
a expiação. Faz isso exigindo a purificação do lugar
santíssimo, contaminado pelas mortes de Nadab e
Abihu.
Depois 0 rito de purificação do santuário é reu­
nido à confissão e à absolvição dos pecados dos
sacerdotes e do povo (16,33). Essa última purifica­
ção acontece no que é chamado de ritual do bode
expiatório. A celebração conjunta, com a mortifica­
ção do jejum (vv. 29-31), inicia a vida de santidade.
No dia do Grande Perdão, o santuário e a nação
celebram a festa da expiação.
16,1 Purificação depois da morte de Nadab e(16,4.23.24.32) preparam o caminho para a expiação
Abihu. Aqui é o lugar para nova referência ao ca­
LEVITIC016
pítulo 10, que prepara o terreno para a purificação
do santuário. Seus cadáveres deixaram o lugar san­
tíssimo impuro e necessitado de purificação. Talvez
tivessem chegado muito perto do propiciatório sobre
a arca. Havia alguns preceitos para fazer uma entra­
da apropriada no lugar santíssimo. Note como o pri­
meiro vão da ponte para a santidade é construído
com 0 material que sobrou dos capítulos 11-15 e
remonta ao capítulo 10. Esse primeiro vão é estabe­
à ordem de purificação.
16,2-5 O propiciatório sobre a arca. E o pro­
piciatório do Senhor, que deve ser o lugar de expia­
ção. Cobre a arca que contém os dez mandamentos.
Agora a absolvição do santuário com a purificação
conseqüente pode acontecer aqui. Em hebraico, a
própria palavra para cobrir relaciona-se a expiação.
Significa que a culpa está coberta ou que a expiação
é 0 pagamento para ser reintegrado.
163-21 O rito de purificação. As vestes doura­
das e brancas altemam-se, o que denota a presença
de Deus e do povo agindo juntos. Mutuamente, tomam
parte no ato de expiação que remove toda a conta­
minação do ano anterior, mesmo a que aconteceu
inadvertidamente. Juntos na vida de santidade, um
novo ano começa para Deus e o povo (caps. 17-27).
Assim, esse capítulo do Grande Perdão atua
como a ponte onde os dois parceiros da aliança
(Deus e o povo) juntam-se para celebrar a união
que será experimentada na Lei de Santidade.
16,20-28 O ritual do bode expiatório: meios
de expiação. Na verdade, há dois bodes e um carnei­
ro para o holocausto. Um dos bodes é oferecido co­
mo sacrifício pelo pecado. Pela imposição das mãos,
dado para levá-los a um lugar sem volta. Azazel
(talvez “poder de El”) parece ser um trocadilho sobre
a sujeição de um deus (demônio) estrangeiro.
Um dos bodes representa o ato de absolvição
para o santuário (v. 20). O outro representa a expia­
ção do povo no que veio a ser conhecido como ri­
tual do bode expiatório. O bode é conduzido para
uma terra estéril, o lugar sem volta e também o
lugar do “deserto justo”. Esse último trocadilho
sobre o deserto altera todo o sentido da palavra.
Com o vão adicional de remoção e castigo
completado, o capítulo-ponte incrementa sua cons­
trução para a renovação da aliança.
Durante o ritual, Aarão muda do dourado para o
branco, de volta para o dourado e mais uma vez para
o branco. Antes e depois de cada troca, ele lava o coppo
de acordo com o ritual. Deus e o povo estão represen­
tados nas vestes. O ritual ordena que o sacerdote se
vista com trajes diferentes para representar personagens
diferentes. O simples linho branco era também sinal
de humildade e sincera contrição fluindo entre os dois
parceiros da aliança. Ações como a troca de vestimentas
que está em andamento. 133
 LEVÍTIC017
Hoje o Yom Kippur ou dia do Grande Perdão é
celebrado com grande fé na união de Deus e do povo.
É um dia muito importante para o judeu que busca a
reconciliação com outros membros da comunidade e
depois recebe a absolvição de Deus (cf. também Mt
5,24). Uma das leituras da celebração da expiação
judaica é hoje Is 57,14-58,14, que fala de uma verda­
deira renovação moral interior pelo jejum (Lv 16,29-
31). O jejum toma-se genuíno na busca do outro, em
especial do pobre e do faminto e quando se concentra
em uma mudança de vida para todos (Is 58,6-9). No
Levítico, todos agora estão preparados para mudar
para uma vida de santídade.
PARTE IV: LEI DA SANTIDADE
Lv 17-26
Essa seção do Levítico enfatiza a vida mais do
que 0 ritual, mas a obediência à ordem divina ainda
está presente. O acordo da aliança ainda deve ser
preservado (17,2). Deus deve ser reconhecido primei­
ro (v. 4). Se isso não for cumprido, a pessoa será
cortada dos que desejam manter esse acordo de alian­
ça de vida (v. 4). É um modo de vida totalmente novo
(vv. 5-7). O que é apresentado na Lei da Santidade
(17-26) é para todos (17,8). Precisamos estar em
contato com preceitos que surtiram efeito antes, mas
não podemos esquecer a prática da obediência, e a
ponte (Lv 16) precisa ser mantida intacta (17,2. 4.9).
A obediência ainda está em vigor agora, com ênfase
em princípios e não em preceitos. É essa mudança
que parece incentivar mais a ler esta seção do Leviti-
co em vez dos capítulos 1-16, que enfatizam a obe­
diência ritual. A conformidade ritual, praticada ape­
nas por amor à obediência, toma-se, com o tempo,
um fardo muito pesado. Entretanto, junto com a pu­
rificação, a obediência é necessária a fim de se estar
plenamente vivo na vida de santidade. Agora trata-
-se de obediência a um estilo de vida concretizado
na Lei da Santidade.
Devemos notar a diferença entre “sacrifício” e
“santificação”. Sacrifício é “tomar-se santo” e santi­
ficação pode ser “viver santamente”. A vida de pu­
rificação da pessoa (caps. 11-16) pela obediência
(caps. 1-7) abre caminho para a santificação (caps.
17-27).
Chegamos agora ao próprio batimento do cora­
ção na Lei da Santidade (caps. 17-27). “Sede santos,
pois eu sou santo, eu, o S enhor, vosso Deus”. Até em
português a fluência da inflexão nesta citação do
tema central (19,2) tem um ritmo vibrante.
Estes capítulos apresentam orientações para
levar uma vida de santidade. Eram diretrizes para
0 povo antigo da mesma forma que o são para o
povo de hoje.
Aceitamos, então, a situação de vida real de nos­
sos ancestrais e nos rejubilamos com sua atividade
litúrgica, tenha a expressão que tiver. Imaginamos a
134 intimidade que tinham com a vida e a morte; sua
luta com os animais arrastados até a entrada da ten­
da do Encontro ou do Templo; a vergonha, a exibi­
ção, a inconveniência e a humilhação de ter de se
manter afastados quando a atenção e o apoio da
comunidade eram tão necessários e que eram
obrigados a gritar: “Impuro! Impuro!” (13,45). Que
variedade de procissões de ofertório para o Santo!
Então vinha o abate e o sangue, esguichado, asper-
gido e passado, o cheiro encoberto pelo incenso.
Como um grande final, a nuvem sugeria que os
sons de pecado e morte transformavam-se, então,
em coro de louvor pela presença de Deus no meio
do povo (26,11-13). Quase podemos ouvir o chifre
de carneiro (shofar) e o som suave da harpa, agora
silenciosos. Talvez haja a sensação de “longe de
casa” no coração de todos hoje, mas a mensagem
santa do Levítico está viva e vibrante, na expectati­
va e na emoção do Santo, o Messias-Redentor, que
estabelecerá a morada eterna (SI 43,3).
Aqui recebemos leis, diretrizes, princípios mo­
rais e disposição de espirito que batem e pulsam com
situações da vida real. Lv 26 dará os toques finais
no acordo da aliança, especificando as recompensas
da obediência e os castigos da desobediência —
especificações em geral incluídas em um tratado de
aliança. Eram incentivo e também tática de medo
para assegurar a soberania do rei sobre o súdito e
encorajar o súdito a seguir as ordens do rei.
Capítulo 17. Os biblistas têm discutido se este
capítulo faz parte ou não da Lei da Santidade. Al­
guns acham que ele atua como ponte para todo o
material gue precede a Lei da Santidade, já que faz
menção às oferendas de Lv 1-3 como introdução a
Lv 18,5. Ali Deus é reconhecido como a fonte da
ordem para estar plenamente vivo.
Foi ordenado ao povo que trouxesse para a
entrada da tenda do Encontro tudo que seria ofe­
recido ao S e n h o r (L v 1,3; 2,2; 3,2; e, correspon­
dendo a essas ordens, 17,4.5.6). O sacerdócio (caps.
8-10) e a purificação (caps. 11-16) também corres­
pondem ao capítulo 17. Por causa desses aspectos,
este capítulo parece assumir papel adequado como
introdução à Lei da Santidade. Ele pode até ter
sido uma adição ao pequeno “Manual de Santida­
de” original. Mas vemos mais razão para aceitá-lo
como o primeiro capítulo original do Manual de
Santidade. Todos os capítulos anteriores talvez se­
jam idéias, práticas e tradições desenvolvidas da Lei
da Santidade original.
Em Lv 1—7, a ênfase foi na obediência, simples­
mente porque Deus ordenou obediência. O capítulo
17 dá a razão pela qual a pessoa deve obedecer, e
a ordem para obedecer assume importância maior
no relacionamento da aliança.
17,3.8.13.15 A santificação do sangue. A to­
dos é ordenado que reconheçam a fonte de vida no
Deus único e santo. A expiação das vidas das pes­
soas realiza-se pelo respeito da vida que está no

sangue e pela concretização desse respeito por meio
do ritual do sangue sobre o altar (17,11). O texto diz cirúrgico), colocava-a em um pequeno escrínio e a
que o sangue, como sede da vida, faz a expiação. Isso
é interessante e compreensível, pois acreditava-se
que a presença do S enhor estava sobre o propicia-
tório que cobre a arca no lugar santíssimo. Deus, a
fonte de vida, está oculto no sangue, e o pecado do
povo está agora oculto ou coberto pela presença ex­
piatória de Deus (16,13).
A Lei da Santidade é divulgada no capítulo 18.
E convite ao enlace humano-divino (18,5) — para
participar do fruto da árvore da vida, comê-lo e viver dasse o povo a comer o sangue. Assim, a ordem
para sempre a vida de santidade. O último capítulo
do Levítico alude ao caráter eterno dessa vida.
Primeiro, temos um comentário final sobre o
respeito e o uso do sangue. Muitos preceitos sobre
0 sangue estavam contidos no destino do sangue do
animal sacrificado. Embora o pensamento ociden­
tal tenda a espiritualizar a vida e a realidade (no
sentido de construir um mundo ideal) e a falar da
morte como algo que perturba a ordem perfeita,
para o povo bíblico tudo era concreto. O sangue era
vida e o derramamento de sangue era morte, e a
morte agia como um ladrão que rouba a vida.
Para entender a Bíblia é imprescindível pensar
como os autores das Sagradas Escrituras. O povo
bíblico pensava e se expressava em termos concre­
tos. Já que Deus escolheu esse meio para fazer a
Palavra Divina entrar no mundo, precisamos estar
cônscios desse modo de pensar.
Para a mente hebraica, a Palavra de Deus era
real, pronunciada de maneira tão real quanto a sau­
dação entre vizinhos (“O S enhor falou a Moisés...
e da tenda do Encontro deu-lhe esta mensagem...”).
Os hebreus antigos viviam a vida na presença de
Deus. A linguagem da Escritura reflete um povo
que pensava, vivia e se movimentava em um mun­
do real, e seu Deus fazia parte do mundo real. Sua
expressão do que Deus tinha a dizer também era
real. Verdade, justiça e paz não eram idéias, mas
coisas vivas. Para os hebreus, “a Fidelidade e a Ver­
dade se encontraram, elas abraçaram a Paz e a
Justiça. A Verdade germina da terra e a Justiça se
inclina do céu” (SI 85,11-12).
Além disso, todo abate de animais, mesmo se
apenas para consumo, tinha de ser sacrifício (tornar
santo) ou santificação (viver santamente), pois a ví­
tima animal possibilitava que o ofertante continuas­
se a viver; Deus, a fonte de vida, tinha de ser reco­ parte atua também como ponte para todas as outras
nhecido de alguma maneira. Assim, quando o povo
não ficava mais próximo do altar, o primeiro precei­
to para pôr o sangue sobre o altar foi modificado
(Dt 12,24). Devia ser derramado no chão como água
e podia, então, voltar ao S e n h o r .
17,13 O sangue do animal puro. No caso dodesordem relaciona-se com o incesto e afeta a co­
animal puro morto durante uma caçada, o sangue
devia ser enterrado. Da mesma forma, o escriba que
errava ao copiar a Sagrada Escritura não amassava
a página e começava de novo. Extraía com cuidado
LEVITIC018
a parte errada do rolo (como em um procedimento
enterrava (como em um funeral). Como a vida está
no sangue (v. 14), assim o Espírito de Santidade
está na Palavra Santa.
Embora a aspersão do sangue sobre o altar fosse
mais tarde modificada, no Deuteronômio, e não seja
mais possível depois que os romanos destruíram o
templo em 70 d.C., a proibição de comer sangue
subsiste até hoje na prática judaica. O preceito só
podería ser mudado se Deus, a fonte de vida, convi­
seria: “Comei o meu sangue” que, no pensamento
hebraico, seria: “Uni-vos com minha vida”.
18,1-30 A santidade do sexo. Da afirmação da
fonte de vida segue-se que todo controle sobre essa
vida precisaria seguir a ordem (o mandado) da fonte
de vida. A relação da aliança a respeito da vida exi­
ge que a parte inferior (a criatura) receba orientação
(vida e ordem) da parte superior ou fonte (criador).
A santidade no controle da vida (sexo) encontra-se
na ordenação que está de acordo com o plano divino.
Não só o homem tem vida (18,5) como pode também
participar do controle da vida (18,3). Essa é a razão
para o lembrete constante de que Deus é a fonte de
vida: “Eu sou o S enhor” . O único plano de vida
autêntico (Lei de Santidade) é o plano do “Deus que
é” (o S enhor). Assim, o autor começa o capítulo 18
com o S enhor dizendo a Moisés: “Fala aos filhos
de Israel: Eu sou o S enhor vosso Deus” (v. 2). Po­
demos ouvir esse batimento do coração da Torá em
18,2-6.21.30; 19,2.4.10.11.13.15 e alhures. Encon­
tramos a vida, seguindo o plano de Deus (v. 5).
18,18 Versículo-ponte. Na linguagem dos pre­
ceitos, a palavra sexo representa o homem e tam­
bém a mulher, embora cada um tenha participação
singular no controle da vida única de Deus.
O V. 18 é um versículo-ponte. Liga uma lista de
proibições de incesto a uma lista de outras relações
sexuais “fora de ordem”. Lv 18,6-17 relaciona os
atos de incesto licenciosos; depois o v. 18 diz: “Não
tomarás por esposa a irmã de tua mulher, com o
risco de provocar rivalidades descobrindo a nudez
dela enquanto tua mulher estiver viva”. A segunda
parte do v. refere-se à desordem criada no plano de
Deus para a vida (no hebraico, El-Deus é mencio­
nado como ligado à própria vida da esposa). Esta
desordens ou relações imorais proibidas (vv. 19-23).
A desordem indicada na primeira parte do v. 18
resulta quando um homem já unido a uma mulher
transgride o acordo da aliança, casa-se com a irmã
da esposa e cria um relacionamento polígamo. Essa
munidade, na qual todos, inclusive a irmã, devem
levar a mesma vida santa. A primeira parte do v. liga­
-se como ponte às proibições de incesto; a “desgraça”
liga-se a outras desordens da comunidade. 135
 LEViTICO 19
Conviría observar que o incesto entre pai e filha
nem precisaria ser mencionado, mas está incluído
no V. 6 e recebe uma das frases vibrantes: “Eu sou
o S e n h o r ” . No v. 22, a desordem sexual é chamada
de abominação, o que, em hebraico, significa tentar
tomar santa uma união que não pode se completar
no sentido real do ato. É essa a razão pela qual cos­
tuma ser igualada a sacrificar a um deus estran­
geiro. A ordenação da fonte de vida e o plano orde­
nado de Deus dentro da aliança é interrompido.
Quando o convite de casamento, no capítulo 18,
é aceito por ambas as partes da aliança, a vida santa
assume a dimensão renovada de unicidade junto
com perfeição. Estar unido ao S e n h o r é a meta da
aliança divina-humana.
No capítulo 19, precisamos tomar cuidado para
não ler no texto nem mais nem menos do que o
autor ou os redatores pretendiam.
Nos capítulos 17—26, a Lei da Santidade (Holiness,
H), parte do material tem vocabulário e unidade
próprios e é reconhecido pelos biblistas como de
origem data bastante primitiva. Este material tam­
bém se concentra em tomo do chamado de Israel
para ser santo. Essa Lei pode ter sido o centro em
torno do qual os redatores finais reuniram outro
material sacerdotal. Por essas razões, esta seção é
freqüentemente citada pela letra H. Os preceitos
rituais estão ausentes e o texto começa a falar em
termos de princípio e conduta. O tom é mais ético
do que ritual. Nesta seção do Levítico, o leitor sen­
te-se mais à vontade. Aqui temos diretrizes para
levar uma vida santa. Nos preceitos da Lei da San­
tidade ouvem-se ecos do Gênesis e do Êxodo. Para
Adão e Eva em Gn 1,28, para Noé e a família de­
pois do dilúvio em Gn 8,17 e 9,7, e para todo o
povo em Ex 20, “comei e multiplicai-vos” é a diretriz,
“mas não vos tomeis impuros por tais ações. Eu sou
o S e n h o r , v o s s o Deus”.
19,1-37 Diversas regras de conduta. As duas
regras básicas do relacionamento divino-humano
encontram-se aqui — o amor de Deus e o amor do
próximo. O fato de essa dupla diretriz estar viva e
atuante hoje é testemunho suficiente de sua validade
permanente. Os vv. 2 e 18 dão as ordens; “Sede san­
tos, pois eu sou santo, eu, o S e n h o r , vosso Deus” e
“amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
Em 20,1-8 e 20,9-21, são estipulados os castigos
respectivos pela desobediência a essas ordens. Os vv.
restantes do capítulo 20 explicam em detalhes o que
acontecerá aos desobedientes. Em outras palavras,
do ponto de vista ético, e também ritual, o relaciona­
mento da aliança ainda se fundamenta na obediên­
cia. É princípio básico do acordo da aliança e indica
uma ordem perfeita. A obediência à ordem das rela­
ções de obediência é a base para aceitar as regras da
vida de santidade. A pergunta importante não é; “A
quem a vez?” (ordem de oportunidade), mas sim;
“Quem vem primeiro?” (ordem de precedência).
136 Muitas vezes pensamos que a santidade é alcançada
com a desistência de alguma parte da vida ou pela
privação de um membro. Entretanto, o sentido bási­
co de tal pacto de aliança é submeter-se ao parceiro
superior.
As diretrizes negativas do capítulo 18 foram
divulgadas porque em diversas ocasiões o povo segui­
ra um caminho contrário ao plano de santidade. Com
freqüência, ao avaliar a culpa, não é preciso conside­
rar 0 bem ou o mal da ação preciso considerar, mas
sim a ordem ou a maneira de seu desempenho. No
capítulo 18, há muitos exemplos. As relações sexuais
em si não são proibidas. Proibem-se são as situa­
ções desordenadas contrárias à Lei da Santidade e
ao poder vivificante do Criador.
O que parece ser dado como castigo ■— “para
que não vos vomite esta terra” — é apenas o resul­
tado declarado de conduta desordenada, semelhante
ao que acontece no caso de uma desordem estoma­
cal social. No capítulo 26, vemos que Deus, como
a fonte de vida, usa o próprio tempo para livrar a
ordem divina da desordem causada pelo parceiro
humano da aliança. E um aspecto da aliança perene
— Deus ainda nos dá tempo para viver e nos sus­
tenta na vida quando preferimos nos fazer de tolos
ou mesmo quando nos cortamos da aliança.
19,2 “Sede santos, pois eu sou santo, eu, o
S enhor , vosso Deus.” É a primeira regra de conduta
na vida de santidade — reconhecer Deus como a
fonte de vida. Se desejamos viver, precisamos guar­
dar a ordem divina. A santidade tem importância
primordial porque Deus é, antes de tudo, santo.
Em Deus, a santidade (integridade) e a unicidade
são a mesma coisa. Falamos do Deus santo, único.
O segredo de uma vida plena (santa) encontra-se
na Lei da Santidade. A ordem é tão simples que
somos inclinados a esquecer o significado de co­
mando.
Em Deus, a ordem é perfeita, pois Deus é um
só. A unicidade de Deus é um mistério, e na unici­
dade não há lugar para a desordem. Essa concepção
monoteista da vida e da fonte de vida no mundo e
na história do povo israelita remonta à revelação a
Moisés em Ex 3,14: “Eu sou aquele que serei” . O
destaque divino de um líder (Moisés) e de um povo
(Israel) reflete um novo modo de pensar monoteista.
Deus faz surgir do povo a vida de Deus presente em
seu meio, em sua própria vida. Quando o povo foi
mantido na escravidão, a vida de Deus no povo
foi mantida prisioneira. A ordem para ser santo comple­
ta 0 círeulo, fazendo surgir e devolvendo a vida à
fonte de vida. “Eu sou aquele que serei” é a maneira
de Deus dizer “Eu sou a fonte de vida”.
A ordem é a primeira lei do céu. A ordem per­
feita vem primeiro. O “Único” vem primeiro. Deus
é 0 Únieo que pode dizer “Eu sou aquele que serei” .
Assim, Deus vem primeiro e o livro do Levitico
relata a ordem perfeita. Ser santo porque Deus é
santo é aceitar Deus como a fonte de vida.

Em Lv 19,3, a ordem seguinte é o temor aos
pais, pois por eles entramos em contato de aliança
com Deus, a fonte de vida. Por isso, no texto, o
temor aos pais e a observância dos sábados estão
ligados. O temor filial reconhece os pais como
ponto de contato com a realidade da vida e o Cria­
dor de toda a vida.
Os pais e o sábado ligam-se por outra razão.
Deus descansou no sétimo dia e o consagrou (Gn
2,3). O sábado é, então, um dia santo para toda a
família. Em uma ordem perfeita, a celebração da
fonte primordial da vida incluirá a fonte secundá­
ria (os pais). A ordem não pode ser invertida. O
preceito do sábado é, em última análise, o preceito
do dízimo, que põe Deus em primeiro lugar. A
parte, um dia de cada sete (a unidade santa), é o
dízimo ordenado por Deus (Lv 27.30).
19,4 “Não vos volteis para os falsos deuses,
não fabriqueis para vós deuses em forma de es­
tátua.” Note que a fabricação de imagens não é
proibida; o que é proibido é voltar-se para deuses ou
imagens fundidos, usados como objetos de culto.
De fato, é o Espírito de Deus que continua a se mo­
ver hoje no talento criativo de artistas que tentam,
em uma ordenação de criação específica, expressar
a imagem e a semelhança de Deus como a fonte de
toda a vida. Na transcrição hebraica dessa regra de
conduta (v. 4), há um trocadilho com “El”, o nome
do deus de povos vizinhos (18,3). A mesma raiz é
usada para expressar “falsos deuses”.
19,5-8 Um sacrifício de paz aceitável. A paz é
a tranquilidade da ordem. Quando a ordem é mantida,
o resultado é a paz. O sacrifício de paz deve ser co­
mido no dia em que é oferecido ou no dia seguinte,
pois então toma-se deteriorado (impuro). Quem leva
a vida de santidade profana-se ao comer o sacrifício
de três dias. A razão óbvia, além da deterioração, é
que a ordem não é seguida. Foi ordenado que no
terceiro dia a parte restante fosse queimada, não
comida Lembremos que esses sacrifícios de paz
são melhor chamados de oferendas do bem-estar.
Assim, 0 reconhecimento da fonte de vida e a certe­
za do bem-estar do povo são realizados pelo segui­
mento da ordem. A própria razão para o sacrifício de
paz é reconhecer a presença constante do divino
como a fonte de vida para o bem-estar do povo.
Consumir comida impura profana a presença sagra­
da do Único, parte vital da comunidade.
19,9 P artilhar a colheita. Em seguida na or­
dem da vida estão as vidas ameaçadas pela falta de
alimento. Os que têm comida e podem reconhecer
a fonte de vida por meio do sacrifício de paz (ação
de graças pelo bem-estar) são, na verdade, incapa­
zes de dar autêntico testemunho de uma vida na
santidade (perfeição da comunidade) enquanto
existem nessa comunidade os que são pobres. O
preceito do v. 9 foi estabelecido para dar aos pobres
a oportunidade de viver. Isso permite que, como a
fonte de toda a vida. Deus atue em toda a comu­
LEVITIC019
nidade. A vida de santidade trata da perfeição e da
integridade.
A mesma regra se aplica a respeito das vinhas.
O povo recebe ordem para deixar as uvas que caí­
rem (v. 10). E a forma divina de dá-las ao pobre e
ao migrante. Mas não devem deixar nada para os
deuses da fertilidade em pagamento pela colheita,
como era o costume da terra. “Eu sou a fonte de
toda a vida. Eu sou o S e n h o r , v o s s o Deus”.
Esta última exclamação repete-se diversas vezes
nos capítulos 18 e 19. Parece que esses capítulos
formam uma unidade; talvez sejam a primeira reu­
nião dos materiais em um manual de santidade. A ex­
clamação; “Eu sou o S e n h o r , vosso Deus” é clara
referência ao primeiro mandamento da Lei da alian­
ça do Sinai e chama a atenção para o Deus único
como a fonte de vida. Esse reconhecimento vem em
primeiro lugar (Ex 20,2-6; Lv 26,45). A repetição da
exclamação pode ter sido usada como auxilio mne-
mônico para o manual original. Poderia também sig­
nificar que havia práticas inaceitáveis nas nações
vizinhas (Lv 18,3; 20,23), bem conhecidas por eles
na ocasião, e as pausas ffeqüentes no texto poderiam
ensejar uma resposta em forma de litania de breves
juramentos de fidelidade. A exclamação é o início
do primeiro mandamento. A comunidade continuaria,
então, a aclamar publicamente a Deus, o Santo, como
a fonte de vida.
19,16 “Não levantes uma acusação que faça
derram ar o sangue do teu próximo”. Este precei­
to está ligado à ordem para evitar a calúnia. Não é
de admirar, pois a expressão usada para calúnia
significa “diminuir alguém pela palavra falada”. É
possível atrapalhar, ficar indiferente ou levantar-se
para apoiar a vida em perigo no próximo. A asser­
ção de Deus como a fonte de vida é testemunho da
verdade. Em todas as circunstâncias somos obriga­
dos a pesar apropriadamente a vida de nosso próxi­
mo na balança da justiça. Portanto, se aceitamos a
vida de santidade, não podemos ficar indiferentes
quando a falsidade se exibe disfarçada de verdade,
acarretando a destruição da vida.
19,17.18 “Amarás a teu próximo como a ti
mesmo”. Esta passagem e a de 19,2, “Sede santos,
pois eu sou santo, eu, o S e n h o r , v o sso Deus”, são
os vv. mais citados do Levítico. Mais tarde, Jesus
reunirá as duas, ao responder à pergunta; “Qual é o
grande mandamento da Lei?” Sua resposta: “Ama­
rás o S e n h o r teu Deus de todo o teu coração, com
toda a tua alma e com todo o teu pensamento''’ (Mt
22,37, cit. Dt 6,5). “Um segundo é igualmente im­
portante; Amarás o teu próximo como a ti mesmo”
(Mt 22,39, cit. Lv 19,18). Se alguém está vivendo a
vida de santidade, descrita pelo uso de todo e toda,
então todos são o próximo dos outros nesta vida.
Entretanto, há uma sequência santa. O amor de Deus
vem primeiro e inclui o amor do próximo, mas o
amor do próximo não leva, necessariamente, ao amor
do Santo. 137
 LEV(TIC019
No V. 19, são proibidas certas misturas. Na
tentativa de refletir a unicidade de Deus na integri­
dade da vida comunitária, os autores sacerdotais
relacionam algumas combinações desordenadas: a
hibridação, a semeadura de duas sementes diferen­
tes (uma sobre a outra) e a tensão entre fibras in­
compatíveis. O resultado da hibridação pode ser
monstruoso; sementes diferentes disputam o mesmo
chão e a mesma umidade; perde-se a pureza do te­
cido e a unidade da tecelagem desaparece.
19,20-22 Reparação para relações sexuais com
uma escrava. A afirmação da única fonte de vida e
o reflexo dessa unicidade na comunidade tem impor­
' tância fundamental. Assim, a gravidade da desordem
no sexo ou no controle da vida (v. 20) é demonstra­
da pela exigência de um carneiro em sacrifício de
reparação. A importância de reconhecer e afirmar a
fonte de vida é mais profunda do que parece. Por
exemplo, a serva não tem vida própria, não é dona de
sua vida, pois não é livre. Supomos que ela fosse
morta, então conquistaria a liberdade (o relaciona­
mento da criatura com Deus ultrapassa a vida e a
morte), e seria feita a justiça do S e n h o r . A questão
em pauta não é apenas que a justiça seja feita, mas
também que a santidade da vida seja preservada. O
homem envolvido nessa relação sexual desordenada
é dono de sua própria vida. Assim, pelo sacrifício de
reparação, o pecado lhe é perdoado (v. 22). Ela, por
sua parte, mantém seu “não-status'’, não há pena de
morte, e o homem é purificado para a vida na san­
tidade. A ordem perfeita do reconhecimento de Deus
como a fonte de vida não é perturbada. O santuário
também é envolvido (v. 21), pois o texto fala de sexo
como o controle sagrado da vida. O suporte defini­
tivo do controle da vida (sexo) deve ser uma orien­
tação apropriada (ordem no culto) para Deus, a fonte
de vida.
O ato sexual dos humanos fora do casamento
não está em ordem. Há uma ordem para o uso do
sexo. A união de duas pessoas no ato sexual forma
um só corpo (Gn 2,24). São os dois que decidem
agir como um. Essa nova unicidade resulta na afir­
mação da vida existente e na criação da vida. Quan­
do Deus abençoa o homem e a mulher em Gn 1,28,
com a ordem: “Sede fecundos e prolíficos”, convi­
da-os a uma participação mais profunda na unici­
dade divina, uma participação no próprio poder da
única fonte de vida para criar nova vida. Essa di­
mensão de unicidade acrescentada deve ser afirma­
da antes que o casal realize a união sexual — uni­
cidade que, por sua vez, se toma fonte de vida aqui
na terra. Essa nova afirmação de Deus como a única
fonte de vida também afirma o verdadeiro papel do
casal no relacionamento da aliança. A aliança con­
jugal trata dessa afirmação.
No caso da serva, devemos lembrar que ela já
vive com um homem (Lv 19,20), o que talvez signi­
fique que a unicidade da Fonte de Vida já está reco-
138 nhecida e afirmada. O homem que agora tem união
sexual com ela está claramente agindo fora de ordem.
A união sexual entre humanos, então, tem a ver com
a ordenação ou o controle apropriado da vida. Pri­
meiro, é afirmada a unicidade de Deus como única
fonte de vida, depois segue-se a unicidade do casal
como fonte secundária de vida.
19,23-25 Fruto incircunciso. As árvores frutí­
feras levam tempo para crescer, e os primeiros frutos
não podem ser dados ao S en h o r antes do quarto ano.
Então, os fhitos podem ser dados ao S e n h o r pela co­
lheita do ano, como oferenda de ação de graças. Assim
como 0 rito da circuncisão levava o varão judeu a
um relacionamento vital com a aliança, da mesma
forma o fruto tinha de ser considerado incircunciso
(v. 23) até 0 quarto ano, quando era trazido à alian­
ça, e só podia ser comido no quinto ano.
19,32 Respeito pelo ancião. O v. afirma que le­
vantar-se diante dos idosos é maneira de demonstrar
respeito. A duração da vida é dom do S e n h o r ; o res­
peito pela duração da vida é reverência pelo Deus de
vida. Em outras palavras, não olhamos para a pessoa
como tal. O critério para o respeito não é a riqueza
que a pessoa acumulou nem a fama alcançada, mas
simplesmente a extensão dos anos. O tempo durante
o qual o poder de vida do Criador tem atuado no
mundo, no indivíduo e na comunidade deve ser res­
peitado na vida de santidade.
20,1-21 Dispositivos penais p ara diversos
pecados. Há dois grupos de castigo aqui, que cor­
respondem ao mandamento duplo de amor de Deus
e amor do próximo. Nos vv. 1-8, é tratada a trans­
gressão do santo nome (o nome de santidade). Nos
vv. 9-21, é considerado o amor do próximo, a come­
çar pelo dos pais. O castigo pela transgressão é, na­
turalmente, a morte real ou simbólica. Ser cortado
e ser morto parecem unir-se no significado e na ex­
tensão do castigo. A Lei põe o reconhecimento de
Deus como a fonte de vida no início da lista. Segue­
-se que quem age contrário ao reconhecimento é
cortado de toda a vida; é o significado da morte. Ser
santo significa estar plenamente vivo.
20,2 Castigo capital. Israel permitia o castigo
capital pelo apedrejamento, praticado por toda a
comunidade. Quem se recusava a reconhecer Deus
como a fonte de vida era cortado da comunidade e
morto por apedrejamento. Aqui há uma referência a
Môlek. A palavra tem afinidade com a palavra
hebraica para “rei” e talvez seja uma forma gráfica
de explicar que Deus vem primeiro. O santuário é
profanado quando o palácio se toma o lugar de culto.
Se o rei é posto em primeiro lugar, então toma-se
fonte de vida. As pessoas são cortadas da vida do
Santo e mortas para a vida na santidade. Se o rei é
invocado, o S e n h o r não é reconhecido como a fonte
de vida. Só Deus pode dizia: “Eu SOU a q u e le q u e
serei ” . Não admira que os judeus ficassem perturbados
quando Jesus falou: “Em verdade, em verdade, eu vos
digo, antes que Abrão fosse, eu Sou”, e que colhes­
sem pedras para atirá-las contra ele (Jo 8,58.59). O

santo nome é blasfemado em Lv 24,16 e o castigo
consequente é o apedrejamento pela comunidade
inteira. Esse indivíduo não tem mais permissão para
ser membro da comunidade de pessoas que levam a
vida de santidade.
20,9 Insultar os pais. Os castigos aqui mencio­
nados relacionam-se aos preceitos dos capítulos 17,
18 e 19. A santidade da relação com os pais encabe­
ça a lista. Os outros castigos dizem respeito à desor­
dem do controle da vida (sexualidade) e de relacio­
namentos familiares e com o próximo. Insultar é des­
denhar. O que condena a pessoa não é só recusar o
crédito apropriado, mas até desacreditar a ordem
apropriada. Quem insulta os pais perde o direito à
vida (v. 9). Isso, por sua vez, não deixa espaço para
O reconhecimento de Deus como a fonte direta de
vida. Tal estado resulta em morte. Não é possivel
cortar a fonte de vida sem experimentar a morte.
20,22-27 Propriedade de terra. A identidade
é estabelecida quando o povo tem um lugar que pode
chamar o seu. Deus separou a terra para o povo
“distinguido” entre os outros povos (w. 24.26). De­
vem reconhecer essa ordem e realmente realizá-la,
separando-se, os puros dos impuros (20,25). Assim,
afirmam a posição de comando do S enhor.
20,24 Terra que m ana leite e mel. Aqui é ci­
tado Ex 3,8. A vaca, a ovelha, a cabra e o camelo são
a fonte secundária do leite, mas Deus é a fonte pri­
mária do leite e do mel das abelhas (cf. Sr 39,26).
Por causa da escassez de água pura, o leite era a
bebida mais importante. A terra de Canaã é gorda
ou rica (um dos significados da palavra hebraica
para leite). E, na verdade, uma “terra que mana leite
e mel”. As abelhas eram abundantes e depositavam
0 mel nas fendas dos rochedos ou em árvores ocas,
até mesmo no deserto. No v. 24, Deus é confirmado
como a fonte desses alimentos revigorantes.
Nos vv. 1-21 são relacionados os castigos por
não reconhecer a ligação com Deus e o próximo.
Nos vv. 22-27, é identificada a ordem apropriada
de obediência. Pela obediência, Deus e o povo
mantêm uma identidade baseada na fé da aliança,
não na adivinhação (20,27).
Caps. 21-22 Intercessores, banquetes sacri­
ficais e vítimas sacrificais. Foram estabelecidas
as identidades de Deus e do povo. Para Deus, a
identidade está na ordenação. Para o povo, a iden­
tidade está na resposta obediente. É apropriado con­
siderar agora os intercessores dessas relações de
aliança; Moisés, que orienta o sacerdócio (21,1­
24), e as vítimas dos sacrifícios (22,17-33). As irre­
gularidades relativas ao sacerdote e à vítima encon­
tram certa apresentação equilibrada no texto. Mui­
tos preceitos exigidos para o estado de purificação
são reafirmados em relação ao sacerdote e à vítima.
Essas considerações atuam como introdução para
o que virá no capítulo 23. Moisés ainda é o inter-
cessor. Seu papel seria melhor descrito como o de
LEVÍTICO 23
sumo sacerdote-legislador. É ele que dirige e orienta
os filhos de Aarão, os sacerdotes (21,1).
As irregularidades de 21,2-22,33, em especial
as de 21,16ss., podem nos parecer estranhas, mas
devemos nos lembrar de que hoje sabemos bem
mais sobre muitas dessas doenças do que o povo
bíblico. Naquela época, algumas irregularidades
eram simplesmente consideradas castigo de Deus.
Os julgamentos de impureza e profanação basea­
vam-se com freqüência na incapacidade da pessoa
para realizar determinada ação, como no caso de
indivíduos cegos, aleijados e desfigurados.
O capítulo 23 tem uma beleza toda própria.
Descreve a vida de santidade em termos das festas
de Israel. A lista começa com o descanso do sábado
(23,3). Mantendo um dia de descanso completo.
Deus é reconhecido como a fonte da vida de san­
tidade (Gn 2,3). A lista continua com a menção da
Páscoa, de Pentecostes, do dia do Ano Novo, do
Dia do Grande Perdão e, por fim, da Festa das
Tendas. A ordem em que são apresentados é signifi­
cativa. O propósito do Levítico não é dar instruções
detalhadas para a observância das festas, mas sim
chamar a atenção para a necessidade dessas celebra­
ções, a fim de dar reconhecimento ao plano de vida
divino. “Eu sou o S e n h o r , v o s s o Deus” deve se
repetir no fím de cada sexto dia. O número santo
era o sete; assim, o sétimo dia tomou-se o dia do
S e n h o r . O sétimo dia representa o dízimo que per­
tence a Deus.
23,1-44 Dias santos. Em todo o Pentateuco há
calendários de dias santos (Ex 23,14-18; 34,18-25;
Lv 23; Dt 16,1-16). No Levítico, são mencionadas
as três Festas de peregrinos; Páscoa-Pães sem fer­
mento (23,4-14); a Festa das Semanas, ou Pentecos­
tes (23,15-22); e a Festa das Tendas (23,33-44).
Acrescentam-se o dia de Ano Novo (vv. 23-25) e
o Dia do Grande Perdão (vv. 26-32). O sábado
encabeça a lista (v. 3). Deus fez o sábado santo
(Gn 2,3; veja Ex 20,8-11 e Hb 4,4.9). A relação é
apenas um anúncio por parte de Moisés (Lv 23,44).
Desde que a pessoa seja membro da aliança, todo
dia é santo. Entretanto, certos dias são designados
por Deus, por intermédio de Moisés, para ser cele­
brados com uma reunião sagrada (23,1-3).
Nas narrativas antigas de outros povos, a reu­
nião sagrada acontecia entre os deuses. Com Israel,
o Santo inicia a reunião do povo (Lv 23,4; Ex
12,16). Reunindo as festas principais em um único
lugar (no material levítico do Pentateuco), os auto­
res sacerdotais afirmam a intercessão de Moisés nas
celebrações do povo.
A ordem em que a lista aparece dá ao leitor
um mosaico da vida de santidade no mundo -— o
Santo vivendo no meio do povo. A festa da Pás­
coa-Pães sem fermento celebra a libertação da es­
cravidão. Cinquenta dias mais tarde, o fim da co­
lheita e a oferenda das primícias, começam com a 139
 LEViTICO 24
celebração da festa das Semanas (Pentecostes). De­
pois, há uma última lembrança do deserto com a
Festa das Semanas, que comemora a cabana feita
de ramos e a morada nas tendas durante a caminha­
da no deserto. Era também chamada Festa dos Ta-
bemáculos e, como era celebrada no fim da colhei­
ta, recebeu o nome de Festa da Colheita. Em toda
essa descrição de vida, o início de cada ano é anun­
ciado em uma celebração, e todo ano a vida toda
rejubila-se no dia do Grande Perdão.
A Festa das Tendas é mencionada no fim da
lista. Seus muitos nomes e sua ênfase na habitação
mostram um desenvolvimento em seu significado.
Não admira que mais tarde Pedro peça permissão
para levantar três tendas, uma para Moisés, o legis­
lador, uma para Elias, o profeta, e uma para Jesus,
o que dá a vida.
Os capítulos 23-25 devem, provavelmente, ser
lidos como uma unidade, pois falam de dias santos,
lugares santos e terra santa. Os dias são santos (23,1-
-44) e a lâmpada do santuário (24,1-4) e os pães da
proposição (24,5-9) indicam o lugar santo de reu­
nião. O ano sabático (26,1-7) e o jubileu (25,8-22)
com 0 resgate da propriedade (25,23-55) tratam da
terra santa (25,1-22), dos direitos de propriedade
(25,23-38) e da liberdade (25,39-55). O capitulo 23
descreve a vida de santidade com ênfase na presen­
ça do Santo vivendo no meio do povo, enquanto as
celebrações do ano sabático e do jubileu do capítulo
25, com sua nota de perfeição no número sete santo,
parecem olhar além desta vida para a vida da san­
tidade perfeita em Deus (o lugar santíssimo etemo).
A cada sete anos a terra tem descanso total, como
um sábado para o S e n h o r (25,2-4). Então, na vida
de jubileu de perfeição (sete vezes sete semanas de
anos), todos retomam a sua propriedade (25,10.13).
Mas 0 S e n h o r não tem um papel no resgate da terra
como o santuário tinha um papel na purificação
(cap. 16), pois Deus é a fonte da vida e o proprie­
tário da terra (25,23). Lembremos que Deus real­
mente habitava apenas na nuvem sobre o propicia-
tório, em 16,2.
24,1-4 A lâm pada do santuário. Essa passa­
gem repete os preceitos de Ex 27,20.21. O Êxodo se
encerra com Moisés pondo o candelabro na tenda
do Encontro e arrumando os pães sobre a mesa da
proposição diante do S enhor (E x 40,22-40). Assim,
agora, no final do Levítico, a lâmpada e a mesa são
arrumadas na ordem levítica apropriada. Aqui, entre­
tanto, a ênfase não está no óleo puro como em Ex
27, mas na presença do Santo. (Isso se assemelha
ao simbolismo da luz do sacrário nas igrejas de
hoje.) Quando há luz na janela, há alguém em casa.
Assim, 0 Santo e o povo que deve ser santo estão
em casa na aliança única. Os pães da mesa da pro­
posição representam o povo (Lv 24,5-9), com seis
pães em cada uma das duas pilhas sobre a mesa
pura. As pilhas servem de memorial das doze tribos,
140 da mesma forma que as duas pedras de berilo com
os nomes das tribos fixadas nas vestes do sacerdote
(Ex 28,9-12). Assim, o Santo e o povo estão presentes
um para o outro por sinais reais de vida. O óleo é
reabastecido (Lv 24,2) e os pães são mantidos fres­
cos (24,8). Para uma vida de santidade é necessário
ter uma experiência perene da presença um do outro
— do Santo e do povo que deve ser santo.
24,10-23 Punição da blasfêmia e do homicídio.
O que é santo pode ser profanado (a luz é apagada
quando deveria ficar acesa) ou o povo pode ser con­
taminado (os pães tomam-se impuros, secos). Entre­
tanto, seiâo dados meios para afirmar o santo e o povo
ou redimi-los da profanação ou contaminação (cf o
cap. 25). Nesta vida de santidade não há expiação/re-
denção possivel para o blasfemador (24,16) nem para
0 homicida (Nm 35,31). O raciocínio é este: a pala­
vra hebraica para blasfêmia sugere uma perfuração,
de certo modo, do nome do Santo. A perfuração podia
provocar o derramamento do sangue vital da vítima,
como no caso de homicídio. A vida de Deus está no
Nome Santo e a vida do humano está no sangue,
assim, pela blasfêmia e pelo homicídio. Deus e o
humano são perfurados. O blasfemador e o homicida
devem ser mortos.
Há também um trocadilho no texto sobre o
nome Shelomit (24,11), semelhante ao de uma deu­
sa vizinha, considerada perfeita, santa. Essa substi­
tuição do Santo de Israel era uma blasfêmia. O cas­
tigo para essa transgressão seria o apedrejamento e
a conseqiiente eliminação desse ofensor da aliança
da vida de santidade.
É importante notar que o texto mantém o acor­
do da aliança (24,23). Perguntam a Moisés o que
fazer com o blasfemador, mas Deus é o Santo que
dá a ordem para o blasfemador ser eliminado da
vida de santidade (v. 14). Os que ouviram a blasfê­
mia devem se juntar, pois receberam a profanação
pelos ouvidos. São reunidos na vida do Santo. Pela
imposição das mãos, devolvem a blasfêmia ao ofen­
sor e, pelo apedrejamento, mandam-no para a
morte, lugar sem volta (24,14).
No capítulo 25, o enfoque é na expiaçâo, não
no sentido de perdão, mas no sentido de uma união
que resulta da plena aceitação da aliança. A arruma­
ção ordenada do material sacerdotal continua nes­
tes capítulos finais.
Podemos agora ver a expiaçâo (cap. 16) efetua­
da na vida de santidade e por ela refletida (caps.
17-26). A celebração dos dias santos (cap. 23) rea­
liza a expiaçâo para uma vida mais completa (cap.
25) com as recompensas e os castigos ligados à
obediência ou desobediência à Lei da Santidade (cap.
26) . Os dois parceiros da aliança são reidentificados
e reafirmados (cap. 24). O capitulo 27 toma-se outro
capítulo-ponte, mas, ao contrário do 16, essa ponte
está apenas parcialmente construída.
25,1-22 O ano sabático e o jubileu. Durante o
sétimo ano, a terra terá descanso completo (25,4),

será um sábado para o S en h o r . Até a terra é santa e,
como 0 S e n h o r separou o sétimo dia, assim a terra
é confirmada santa no sétimo ano. No sétimo mês do
quadragésimo nono ano e continuando no qüinqua-
gésimo, a celebração se chama jubileu, “o ano do
chifre do carneiro”. Pensamos em jubilação. Neste
dia do Grande Perdão, a trompa é tocada para convo­
car a reunião sagrada. A palavra para chifre (shofar)
também tem o significado de remover o véu para ver
a beleza da mulher ou ver o céu azul claro quando a
nuvem se vai. Diz 25,10; “Declarareis santo o qüin-
quagésimo ano e proclamareis na terra a libertação
para todos os habitantes; será para vós um jubileu”.
O povo está livre e volta para suas famílias
(25,10). Não há mais semeadura nem ceifa (v. 11).
Se obedecerem, habitarão com segurança (não mu­
dando de lugar, como no deserto, v. 18). A terra dará
seu fruto. Terão comida em abundância, a fim de
viver sem preocupações (v. 19). Haverá colheitas
por três anos e até no nono ano comerão da antiga
colheita, porque teve início a aliança eterna na vida
de santidade.
Em 24,17-21, vimos o aspecto legal da Lei da
Santidade naquilo que costuma ser citado como a
lei do talião ou da retribuição — olho por olho,
dente por dente, vida por vida etc. Três códigos da
Torá mencionam este equilíbrio humano de justiça
(Ex 21,24; Lv 24,17-21; Dt 19,21). À medida que
continuamos a ler a Lei, começamos a sentir a jus­
tiça de Deus em harmonia com o amor incondicio­
nal. Certa santidade começa a entrar em situações
da vida real, concedida incondicionalmente por
Deus. Certa estabilidade e integridade de todos os
relacionamentos de vida alcançam os que, em obe­
diência, reconhecem o Deus santo único como a
fonte de vida e vivem de acordo com a Lei.
Aqui não estamos lidando apenas com lembran­
ças ou esperanças vãs, mas com diretrizes morais
que dão pulsação e energia à vida real. São dinâ­
micas de apoio vital da celebração da integridade
(santidade) de vida. São as vértebras da aliança
divina-humana. Escravidão e exílio ainda são a con­
dição humana de membros infiéis da aliança, mas
a presença perseverante e amparadora do Santo está
atuante no meio do povo (Lv 26,44.45).
É até aqui que o livro do Levítico nos traz na
Torá do Santo.
Alguns comentaristas referem-se a essas seções
posteriores como retrato de uma vida ideal. Isso é
verdade, mas a vida de santidade nunca teve o propó­
sito de permanecer apenas como ideal. Quando foi
dada a Torá, com o Levítico em seu coração, o mun­
do recebeu o plano de levar uma vida santa.
A forma final da santidade começa a se concre­
tizar. As peças restantes logo serão colocadas no
lugar. Este capítulo da obra da Lei em cinco volumes
está prestes a completar sua mensagem.
Antes de considerar a ponte parcialmente cons­
truída (cap. 27), precisamos examinar uma nota
L E V ÍT IC O 2 5
final sobre o resgate de propriedade no capítulo 25
e o material do capítulo 26, que era a maneira co­
mum de encerrar um tratado de aliança.
25,23-55 Resgate de propriedade. O calen­
dário perfeito (santo) é apresentado na primeira
parte do capítulo 25, seguido pela atividade sagra­
da do ano santo do jubileu (w. 23-55). Os resulta­
dos pretendidos pela Lei deviam ser: o S e n h o r reco­
nhecido como rei (vv. 23.55); a riqueza redistribuída
a cada jubileu (vv. 6.7); famílias (v. 10), a terra
(vv. 2-4) e todos gozando de liberdade (vv. 10.54);
a terra dando fruto (v. 19) por si mesma (v. 11);
todas as dívidas canceladas (vv. 36.37); o pobre res­
gatado (vv. 25.35.39.47.48) — tudo e todos com­
pletos na vida de santidade. Observe que a terra
permanece propriedade do Santo. “A terra não será
vendida em caráter perpétuo, pois a terra é minha;
não passais de migrantes e moradores em minha
propriedade” . (Mais tarde, podeis tomar-vos meus
filhos, mas por ora sois meus locatários.) “Por isso,
em toda essa terra que tereis em posse, concedereis
0 direito de resgate sobre as terras” (vv. 23.24).
Isto é, se permanecem na vida de santidade, preci­
sam reconhecer o S enhor como o proprietário ori­
ginal, a fonte de vida.
O S e n h o r já ordenara e participara da limpeza
e da purificação do santuário, da tenda do encontro
e do altar, bem como dos sacerdotes e de todo o
povo da comunidade (16,20.23). Agora é dada outra
ordem. Ao contrário da ordem negativa de Gn 2,17
(cf. também Gn 3,22): “Mas não comerás da árvore
do conhecimento do que seja bom ou mau”, há a
ordem positiva para compartilhar a vida de santi­
dade; “Sede santos”.
Embora não possamos com certeza separar as
diversas tradições entrelaçadas no Levítico, pode­
mos reconhecer situações várias na narrativa e che­
gar a algumas conclusões quanto a sua mensagem
na época da redação final. Por exemplo, cidades
muradas e lugarejos ao ar livre recebem atenção
aqui, e em todo o Levítico é dada ênfase à Morada
itinerante. Tais referências sugerem diferentes épo­
cas cronológicas do desenvolvimento de Israel. Con­
tudo, por trás dessas observações e da estrutura or­
denada dos preceitos e diretrizes, vemos a verdade
de Lv 25,23; Deus é o dono da terra e da proprie­
dade; o povo compõe-se apenas de migrantes que
se tomaram moradores.
25,25 Resgate de propriedade. Depois de re­
conhecer que o S e n h o r é dono da terra e da proprie­
dade, os pobres vêm primeiro, para o bem da famí­
lia (vv. 23-28). Quando lemos os vv. 23-55, é como
se o proprietário estivesse se preparando para resga­
tar a morada no meio do povo no deserto. O capí­
tulo 27 vai expandir essa idéia do plano de resgate.
O capítulo 26 parece dizer; “Faça sua escolha, mas
só há uma escolha certa, se quiser viver a vida de
santidade. Se escolher obediência ou desobediência,
eis as respectivas consequências!” 141
 LEViTICO 26
263-13 “Vivei de acordo com meus preceitos”.
Se a pessoa obedecer a esses preceitos da vida de
santidade e aos mandamentos (na verdade, a Lei da
Santidade no capítulo 19 inclui os mandamentos da
aliança de Ex 20), então acontecerão todos os tipos
de experiências vivificantes (vv. 3-13). “Se obede­
cerdes, porei a minha morada no meio de vós; não
terei aversão a vós” (w . 11-13).
26,14-46 Castigo pela desobediência. Se os
membros da comunidade forem infiéis, acontecerão
coisas terríveis (w. 16.17). Se ainda desobedecerem,
coisas terríveis acontecerão ao mundo em que vivem
(w. 19.20). Se se tomarem desafiadores, as coisas
ficarão sete vezes piores (a cada vez, nos w. 18.21.
24.28, 0 castigo aumenta sete vezes), até serem for­
çados a comer os próprios filhos (v. 29). Essa situa­
ção calamitosa podia acontecer para a sobrevivência
ao cerco de cidades muradas. Em sua luta desafiado­
ra para sobreviver, eles próprios revogariam os resul­
tados (filhos) de sua aliança com a Fonte de Vida.
Ocorrería um colapso completo nas relações de Deus
e do povo, com a totalidade da vida sendo subvertida
na morte e no exílio (w. 30-33).
2634 A terra cum prirá seus sábados perdi­
dos. E o plano de castigo que Deus incorporou ali.
Enquanto o povo está no exílio, a terra descansa.
Tudo pára. Os sábados precisam ser guardados e os
preceitos, seguidos pelo povo, ainda que com relu­
tância. O cumprimento dos sábados é feito para Deus
e o povo nada pode fazer a respeito. O v. 36 volta
à ameaça do v. 17. Finalmente, um dia “o coração
incircunciso deles se humilhará e o castigo deles se
cumprirá” (v. 41). Deus recomeçará com o povo.
Deus é santo e se lembra da aliança feita com os
ancestrais deles (v. 42). O exílio, na verdade, dá à
terra e ao povo tempo para descansar (v. 43). A terra
contaminou-se quando o povo se contaminou por
sua desobediência. Agora ambos estão desolados, co­
mo descanso para a terra e castigo para o povo (v. 43),
até que se passe um tempo igual aos sábados conta­
minados. A terra é santa porque também pertence
ao S enhor (25,23). Sempre que a terra é contamina­
da (poluída), fica desolada.
O amor divino é incondicional, pois o Santo
não permite que a aliança seja invalidada, embora
Deus seja o único fiel que resta (vv. 44.45). Esse
amor incondicional está sob, atrás e em tomo da Lei
da Torá. O livro do Levítico tomou-se agora o co­
ração inserido na Torá e, com seu vivo batimento
da Lei da Santidade, o povo de Deus vê-se outra
vez convidado a compartilhar a vida do Santo.
Em toda a leitura do Levítico foi enfatizado este
simples esquema: obediência (caps. 1-27), purifi­
cação (caps. 8-27) e santidade-santificação (caps.
17—27). A obediência persiste como requisito. A
obediência da parte humana da aliança é exigidh e
possibilitada por Deus. A purificação do relaciona­
mento alcança seu anticlímax no capítulo sobre o
142 dia do Grande Perdão (Lv 16). Aqui os membros
da aliança se encontram e se preparam para o clímax
do relacionamento da aliança na vida de santidade
(Lv 27). O capítulo 27 descreve apenas o início da
vida perfeita e, por essa razão, é “um capítulo-
ponte aberto”. A vida de santidade perfeita começa
com a aceitação e a prática da Lei da Santidade.
PARTE V:
TARIFAÇÃO DAS PROMESSAS
Lv 27
Compreende-se por que muitos comentadores
tratam este último capítulo como apêndice ao Le­
vítico. Dá a impressão de uma reflexão tardia, acres­
centada mais tarde por causa de sua importância.
O significado de Lv 27 é tão simples que pode ser
facilmente esquecido: confirma Deus e o povo co­
mo membros fiéis da aliança. Seu caráter liberal
sugere que a aliança divina-humana ainda está na
etapa da promessa.
Alguns podem ser tentados a ler no texto como
razão do final aberto o fato de que o Messias-Reden-
tor ainda não viera. Isso seria uma suposição além
do que o Levítico contém. A concentração ainda é
em Deus como criador de vida e Moisés como inter-
cessor-legislador, que apresenta as regras de conduta
da aliança do Sinai. O Levítico reafirmou a aliança
do Sinai ao acrescentar a nova dimensão de santidade
no sentido de perfeição. O povo deve agora se tomar
plenamente vivo (santo).
O segredo para entender o capítulo 27 está no
significado do voto/promessa. Começa com a dedi­
cação de toda a criação a Deus: pessoas (vv. 2-8);
gado (vv. 9-13); casas (vv. 14.15); terra hereditária
(vv. 16-24). O capítulo termina com a devolução
de tudo a Deus, no dízimo (vv. 26-34).
No capítulo anterior, o parceiro divino da alian­
ça explicou as conseqüências, boas ou más, da obe­
diência ou desobediência do parceiro inferior. Aqui,
o Santo respeita o livre-arbitrio do parceiro humano
e indica o caminho de respeito pelo parceiro divino.
É muito antiga a prática de fazer um voto à
divindade, a fim de receber um favor ou cura. En­
tretanto, estamos lidando com uma idéia mais bási­
ca: a santidade de vida. O voto e seu resgate, junto
com a prática do dízimo, confirmam a vida santa.
Como oferenda espontânea, o voto confirma a vida
humana. O dízimo confirma a vida divina.
No capítulo 27, Deus confirma o livre-arbítrio
humano e dá condições pelas quais a oferenda votiva
pode ser resgatada. São considerados todos e tudo
na criação. O significado do voto chega à própria raiz
da vida. De certo modo, todo voto a Deus é promes­
sa de levar uma vida santa. Deus quer que a criatura
esteja plenamente viva, isto é, seja santa. Em Gn
1,26.27, a criatura é criada à imagem e semelhança
de Deus, capaz de assegurar a própria liberdade. O
resgate da vida em toda a criação precisa ser feito

de acordo com os termos divinos. O sacerdote esta­
belece o preço, mas os termos estão de acordo com
as regras do jubileu, a celebração vivificante de Deus
(vv. 17.18.21.23.24). Deus, então, permanece a fon­
te de vida e santidade.
Certas oferendas não podem ser resgatadas; o
(animal) primogênito e, na outra extremidade da vida,
os votados a morrer (w. 26-29). Confirmam Deus
como a fonte definitiva de vida. Aqui há um refina­
mento da dedicação de Ex 13. Entre os israelitas,
todo primogênito que abre o ventre de humanos e
também de animais, pertence ao S e n h o r . Não pode
ser objeto de voto (dependente do livre arbítrio hu­
mano). Ainda atua como lembrete da morte dos pri­
mogênitos dos egípcios que não quiseram reconhe­
cer o S e n h o r como a fonte de vida (Ex 13,14-16).
A morte ainda é a condição humana (Gn 3,19), mas
agora a ênfase está na dedicação e na redenção.
27,28-29 “Todo homem votado ao interdito”.
A palavra hebraica para “interdito” no v. 28 também
tem o sentido de “dedicado”, isto é, “separado para
o S e n h o r ” . S ó Deus tem controle sobre o ser huma­
no, o animal ou a terra que se tomou coisa santíssima
(dedicada). Em um paralelo dos dias atuais, as pes­
soas que estão no corredor da morte estão condena­
das a morrer, mas é possível fazer uma apelação à
autoridade superior. Outro significado da palavra é
“pessoas dedicadas a Deus por voto solene”. Na
ordem da santidade, estão no “corredor da vida”. E
vontade do parceiro divino da aliança que todos
vivam. A vida, não a morte, é a vontade de Deus. A
morte veio ao mundo por causa do membro humano
da aliança (Gn 3) e ainda está presente na comuni­
dade dos membros humanos da aliança. Entretanto,
0 parceiro divino pode desempenhar o papel de par­
ceiro inferior e depois restaurar a vida à condição
humana.
27,30-33 A santidade dos dízimos. A explica­
ção acima é apenas parcial. Em um capítulo-ponte
inacabado, esperamos apenas respostas parciais. Co­
mo em Gn 28, o voto e o dízimo são agora reuni­
L E V ÍT IC O 2 7
dos no capítulo 27 para confirmar e assegurar a
presença contínua de Deus. O dízimo toma-se o vão
da ponte que colocamos no lugar, embora construí­
da de material pertencente ao S e n h o r .
Precisamos repensar nossa definição de dízimo.
Não estamos falando de um décimo no sistema de­
cimal. Na criação do mundo, o dízimo era o séti­
mo dia. Cada um dos seis dias de criação é formado
das coisas criadas do dia anterior mais suas obras.
O sétimo dia foi consagrado (Gn 2,3). O sétimo dia
do plano da criação tomou-se um mundo em minia­
tura, santo e completo, uma expressão adequada
da dádiva do mundo pelo criador. O dia do S e n h o r
é um dia santo. E a forma original do dízimo. “Sé­
timo” e “descanso completo” vêm da mesma raiz
hebraica. O sétimo dia é o dia de perfeição.
Dt 14,22-29 dá o toque final no entendimento
do dízimo. “Todo ano, separarás o dízimo de todo...
Na presença do S e n h o r , teu Deus, no lugar que ele
houver escolhido para nele fazer habitar o seu no­
me, comerás o dízimo...; assim aprenderás a temer
o S e n h o r , teu Deus, todos os dias” (Dt 14,22-23).
Em 14,26, depois de fazer provisões para todos, o
Deuteronômio os orienta para que participem do dí­
zimo e se alegrem com suas famílias.
O Deuteronômio continua o preceito: “Cada
três anos, separarás todo o dízimo... daquele ano,
mas o deporás em tua cidade, então virão o levita...,
0 estrangeiro, o órfão e a viúva... e comerão à
vontade” (14,28-29). Que todos gozem plenamente
a vida de santidade.
O pagamento do dízimo está em partilhar a re­
feição (o Santo e os chamados a ser santos) com os
pobres para que todos possam ter vida plena. É a
vida de santidade, vida que está sendo vivida hoje
na Páscoa-Eucaristia, a celebração da redenção do
Primogênito. Reunidos com os autores do livro do
Levítico, na ponte parcialmente construída para a
Morada do Santo Nome, começamos a ouvir o cân­
tico de celebração; “Santo, Santo, Santo é o S e n h o r
dos exércitos! Toda a terra está cheia de sua glória!”
143
 NÚMEROS
Hel eno K e ni k M a in e l l i
INTRODUÇÃO
livro dos Números, quarto livro do Pen-
tateuco, tem esse nome porque contém
dois recenseamentos das tribos israe­
litas (1,20-46 e 26,5-51) e dos levitas
(3,14-51 e 26,57-62). Também inclui
listas de diversos tipos, algumas com números: dos
chefes de família que assistem no recenseamento
(1,5-15), de presentes trazidos para a dedicação do
altar (7,10-83); dos enviados para explorar a terra
(13,4-15); de oferendas a serem trazidas para os dias
de festa e festivais (28,1-29,38); e uma dos despe­
jos capturados dos midianitas (31,32-52). Embora o
nome “Números” seja adequado a parte do conteú­
do, não indica com exatidão a história narrada no
livro.
Em Números, a narrativa começa no deserto
do Sinai, logo depois do evento da aliança, e termi­
na quarenta anos mais tarde com o povo esperando
na planície de Moab para entrar na Terra Prometida.
É a história do povo de Deus enquanto caminha
pelo deserto por quase quarenta anos sob a liderança
de Moisés e Aarão.
A questão fundamental é a presença do S e n h o r
com o povo enquanto este caminha pelo deserto.
Deus caminha com eles e dirige suas vidas. De sua
parte, o povo com freqüência murmura e se rebela;
provoca o julgamento divino e busca o perdão.
O livro dos Números é a última parte da narra­
tiva que começa no Gênesis com a criação e conti­
nua no Êxodo com a libertação e a eleição do povo
de Deus. Enquanto o lermos, nos lembraremos con­
tinuamente que esta é apenas uma parte da narrati­
va contínua identificada como a história primitiva.
A organização da história primitiva
A história primitiva divide-se em eras: as idades
de Adão, Noé e os ancestrais de Israel (Gênesis); a
era do deslocamento de Israel do Egito para o Sinai
(Êxodo) e a era do deslocamento de Israel do Si­
nai para o limiar da Terra Prometida (do Êxodo a
Números).
O evento do Sinai está no centro. O que come­
ça no Êxodo com o Sinai continua no livro dos
Números. Todas as diretrizes de Nm 1-10, por
exemplo, são comunicadas a Moisés no Sinai.
Além disso, do Sinai há uma volta à criação.
A lei do sábado, dada no Sinai (Ex 31,12-17), liga-
-se ao evento da criação (Gn 2,2-3).
O s autores sacerdotais e suas platéias
A história primitiva recebeu a forma final no
século VI a.C. de sacerdotes preocupados com a
restauração do culto no Templo. Por isso a obra é
chamada Sacerdotal, ou P (Priestly). Os autores
eram da família de sacerdotes, filhos de Sadoq,
que obtiveram a liderança entre o povo deslocado
do Exílio (século VI a.C.) e motivaram esse povo
a centralizar sua vida no culto do S e n h o r . Escre­
veram a história especificamente para dar aos israe­
litas exilados esperança e consolo baseados na lem­
brança dos atos divinos. Incentivaram os exilados
a se lembrar dos acontecimentos antigos, em espe­
cial as maneiras pelas quais Deus estava presente
entre o povo, o conduziu e cuidou de sua subsistên­
cia em seus anos formativos.
Os sacerdotes escreveram a história de Deus
com Israel, para pessoas cujas identidade e fé, como
as nossas, eram questionadas em face de dramática
revolução política, cultural, social e religiosa. Des­
pertaram as pessoas a procurar por trás das institui­
ções falidas aquele tempo primitivo do relaciona­
mento amoroso de Deus na aliança, para redescobrir
os benefícios da dependência e da obediência. Os
sacerdotes especificaram os caminhos da presença
divina naquela época primitiva, para que o povo pu­
desse redescobrir Deus em seu meio de novas manei­
ras em uma nova era. Eles transmitiram uma palavra
de esperança e incentivo para todos nós em nossas
experiências do deserto, para sabermos que outros
caminharam antes de nós sob a proteção e a liderança
do S e n h o r .
Os sacerdotes transmitiram tradições do passa­
do de Israel. Não eram autores que inventaram his­
tórias, nem historiadores com a intenção de relatar
acontecimentos passados. Eram escritores que cole­
taram antigos documentos, listas, relatórios e nar- 145
 NÚMEROS
rativas, e os revisaram e organizaram em um relato
de Deus com o povo, que ao mesmo tempo narrava
a história do passado e tratava das necessidades das
gerações contemporâneas. Eram escritores que se
lembraram do passado e transmitiram fundamentos
de tradição para estabelecer a base da nova identi­
ficação do povo de Deus.
A teo lo sia sacerdotal
A seleção e a organização de material tradicio­
nal na narrativa foram determinados pela teologia
das alianças. Os sacerdotes pesquisaram as alianças
desde o início da história israelita e, ao fazê-lo, en­
fatizaram a perpetuidade do relacionamento entre
Deus e o povo. A aliança do S enhor é eterna. As
alianças com Noé (Gn 9,1-17) e Abraão (Gn 17,1­
27) prepararam o caminho para a auto-revelação
definitiva de Deus a Israel no Sinai, aliança que
perdurou até o Exílio e além dele.
No Sinai, a aliança deu origem a um beneficio —
a presença do S enhor no meio de Israel. A glória do
S enhor permaneceu sobre o monte Sinai e continuou
presente entre o povo em aliança (Ex 24,16; 25,8). O
autor sacerdotal escolheu as palavras com muito cui­
dado. Aqui o verbo traduzido por “permaneceu” signi­
fica literalmente “acampaf’ ou “perambular no meio
de”. Não era uma presença no sentido estático da
proximidade em um santuário. Os sacerdotes lembra­
ram-se dos dias era que o S enhor, presente na arca e
na tenda, movia-se com o povo. Ligando a idéia do
Senhor “acampando” ou “se movendo entre” a diver­
sas fórmulas de aliança, chegam ao ponto teológico
fundamental em toda a narrativa;
Morarei entre os filhos de Israel e, para eles, serei
Deus. Reconhecerão que eu, o S enho r , sou o seu
Deus, eu que os fiz sair da terra do Egito para
morar no meio deles (Ex 29,45-46; cf. Lv 26,11-13
e Jo 1,14).
Vocabulário específico usado na edição
sacerdotal
Glória do S enhor é a designação característica
para o Deus que se revelou em majestade e poder.
A fonte sacerdotal usa a expressão “glória do S enhor”
sempre que fala sobre Deus realmente presente e
manifesto (cf Nm 16,19; 17,7).
M orada é a palavra-chave da teologia sacerdo­
tal. Derivada do verbo “acampar” ou “andar no meio
de, como morador de tenda”, essa idéia indica mobi­
lidade e proximidade, além de santidade e transcen­
dência. Foi a palavra escolhida pelo autor sacerdotal
para indicar o lugar da presença de aliança do S enhor
e dá a idéia de que o S enhor está sempre presente
entre o povo (cf. Nm 1,50-53). Essa palavra espe­
cial abrange todas as outras designações para a pre­
sença do S enhor: tenda, arca, lugar santo etc.
T enda do encontro refere-se ao lugar tradicio­
nal do encontro do divino com o humano. É o lugar
146 onde o Senhor se encontra e fala com o povo por
intermédio de Moisés (Ex 29,42; Nm 1,1; 2,2; 3,7-8
etc.). A tradição sacerdotal às vezes usa “tenda do
Encontro” como metáfora para a Morada, o lugar
onde é revelada a glória do S e n h o r ( c f Nm 16,19).
Arca é identificada pelo autor sacerdotal como
“arca da aliança” (Nm 10,33), “arca do Documento”
(Nm 4,5) e “arca do testemunho” (7,89). Na tradição
primitiva, a arca era o lugar sobre o qual se acreditava
que o Senhor estava presente de forma invisível. Este
instrumento da presença do S enhor foi reinterpretada
pelos sacerdotes como o recipiente para guardar o do-
eumento da aliança. Na tradição sacerdotal, a alian­
ça é representada pelo Decálogo ou as tábuas da lei
(cf Ex 25,16.21.22).
Santuário é usado para falar sobre o lugar san­
tíssimo, local da arca e da tenda do Encontro, onde
0 S enhor habita entre o povo. É palavra geral para
“lugar santo” e usada altemadamente com “Morada”.
Comunidade refere-se ao povo da aliança e a
toda a família do povo de Deus. Os sacerdotes consi­
deram Israel uma congregação, no sentido de um
povo em adoração. Essa comunidade, que participa
do culto e da adoração, receberá as bênçãos inerentes
à eterna aliança (cf Nm 1,2.16.18; 3,7 etc.).
“Eu sou o S enhor” é fórmula de reconhecimen­
to que identifica Deus como o libertador do povo da
escravidão no Egito e, portanto, como o Deus que
escolheu Israel para um relacionamento especial:
Eu sou o Senhor .
Eu vos farei sair das corvéias do Egito....
Tomar-vos-ei como meu povo, e para vós eu serei
Deus (Ex 6,6a.7a).
O autor sacerdotal usa essa fórmula de reconhe­
cimento em toda a narrativa para levar o povo a re­
conhecer que 0 S enhor Deus que agiu no passado
continua a estar presente e ativo em benefício do
povo da aliança (cf Nm 3,13.45; 35,34).
A spectos estilístico s na edição sacerdotal
Os sacerdotes apresentam seu material em formas
padronizadas, úteis para o leitor reconhecer algumas
das peculiaridades literárias. Dividimos esse comentá­
rio em capítulos, por exemplo, com base no uso que
os autores sacerdotais fizeram da fórmula de viagem.
O conteúdo do livro está colocado nos diversos seg­
mentos do esquema de viagem.
Fórmula de viagem. A caminhada pelo deserto
começa no Sinai e termina em Moab, em uma se-
qüência de etapas. Em momentos precisos, o autor
sacerdotal insere a fórmula “Os filhos de Israel par­
tiram de... e acamparam em...” para indicar o movi­
mento de lugar para lugar. Depois dos acontecimen­
tos no deserto do Sinai (Nm 1,1-10,10), o povo ca­
minha do Sinai para o deserto de Paran (10,12); do
deserto de Paran para o deserto de Sin em Qadesh
(20.1) ; de Qadesh para Hor-a-Montanha (20,22); de
Hor-a-Montanha para o deserto em frente de Moab
(21,10-11) e, finalmente, para a planície de Moab
(22.1) , onde permanecem no fim do livro.

A viagem do Sinai para Moab acontece em
seis etapas. A viagem do Egito ao Sinai também.
A fórmula de viagem ocorre em Ex 12,37a; 13,20;
14,1-2; 15,22a; 16,1 e 17,1a. Essas doze etapas cor­
respondem a uma antiga tradição sobre a viagem,
que o autor sacerdotal preserva em Nm 33,5-49.
A p alavra de Deus falada e obedecida.
Moisés é apresentado no livro dos Números como
exemplo de líder que cumpre fielmente a palavra
de Deus. É útil notar a fórmula típica: “O S enhor
disse a Moisés: ‘Faça assim e assim’. Moisés fez co­
mo 0 Senhor lhe havia ordenado” (cf. Nm 1,1.18-19;
3,14-15.40-42 etc.).
Ciclo de rebelião, castigo, perdão. Uma das
intenções do autor sacerdotal é esclarecer a histó­
ria da infidelidade de Israel. Para fazer isso, em­
presta tradições de infidelidade e fixa os inciden­
tes em um padrão narrativo previsível. Cada narra­
tiva tem estes elementos; 1) o povo se queixa; 2)
COAAENTARIO
NO DESERTO DO SINAI: PREPARATIVOS
PARA A VIAGEM
Nm 1,1-10,10
Os capítulos iniciais do livro dos Números des­
crevem acontecimentos que acontecem enquanto o
povo está acampado no Sinai. Estão se aprontando
para a grande marcha à Terra Prometida. Primeiro,
é realizado um recenseamento (cap. 1) e o povo é
organizado em tomo da morada, com a presença
do S enhor entre eles (cap. 2). Em seguida há uma
contagem dos levitas que têm o dever principal de
cuidar da morada (cap. 3) e uma descrição de suas
funções (caps. 4 e 8). Segue-se uma série de pre­
ceitos que asseguram a santidade do acampamento
(caps. 5 e 6). Há então uma listagem das oferendas
pelos chefes/líderes para servir à morada no trans­
porte (cap. 7), com preparativos finais para sair do
acampamento: as luzes são acesas na morada (8,1-
4) e é dada orientação para a jornada pelo deserto
(9,15-23). A segunda Páscoa é celebrada para lem­
brar que um ano se passou desde a libertação do
Egito (cap. 9) e as trombetas de prata soam para dar
0 sinal da partida (10,10).
Estes capítulos foram escritos pelos sacerdotes
no período exílico, quando a comunidade precisava
de instruções relativas a sua circunstância atual. Ela
se via mais uma vez no deserto e se preparando para
a volta à terra natal. A visão de uma comunidade
organizada em tomo da morada abrange ao mesmo
tempo aquela primeira entrada na Terra Prometida e
esta nova época de espera para a volta à terra.
Estes dez primeiros capítulos contêm lembranças
da vida no deserto. São tradições antigas preser­
NÚMEROS 1
Deus se zanga e castiga; 3) o povo clama por aju­
da; 4) Moisés intercede a favor do povo; 5) o S e­
n h o r responde dando alívio do castigo. Este pa­
drão ocorre nas narrativas em Nm 11,1-3; 12,2.9-
16; 17,6-15; 21,4-9.
ESQUEA4A DO LIVRO
1, 1- 10,10
No deserto do Sinai: Preparativos para a viagem
10, 11- 22,1
Na viagem do Sinai a Moab
Acontecimentos no deserto de Paran
(10,11-19,22)
Ultimas paradas ao longo do caminho
(20, 1- 22, 1)
22,2-36,13
Na planície de Moab: Preparação para a vida na terra
vadas por membros da escola sacerdotal para cons­
truir de maneira ideal essa experiência primitiva.
Mais importante para os sacerdotes é a mensagem
de esperança contida na memória do passado. O re­
lato apresenta a comunidade exílica com um modelo
que tem o S e n h o r no centro e o povo como comu­
nidade em adoração, organizada em tomo da mora­
da. Os preceitos esclarecem responsabilidades para
os sacerdotes, os líderes e o povo para que pos-sam
ser santos dentro da organização da nova comunidade
de fé.
1,1-3 O recenseamento. O cenário é o deserto
no sopé do monte Sinai, onde o S enhor e Israel
celebraram o relacionamento de aliança singular.
Ali, segundo a ordem do S e n h o r , Moisés erigiu a
Morada e colocou a arca na tenda do Encontro no
primeiro dia do primeiro mês do segundo ano de­
pois que os israelitas saíram da terra do Egito (Ex
40,2.17-19; cf. 19,1).
O S e n h o r fala a Moisés nesta tenda do Encon­
tro, um mês mais tarde, no primeiro dia do segun­
do mês deste segundo ano depois do Êxodo (v. 1),
ordenando-lhe que faça um recenseamento do povo.
A ordem afirma de forma especifica que os filhos
de Israel devem ser registrados individualmente e
também de acordo com seus clãs na linha paterna
(v. 2). São contados somente os varões de vinte anos
para cima. Vinte anos é a idade na qual uma pessoa
do sexo masculino toma-se adulta e, portanto, su­
jeita a todos os deveres religiosos, inclusive a parti­
cipação no serviço militar (v. 3).
O recenseamento assinala a preparação inicial
para a grande peregrinação à terra prometida. O
S e n h o r indicou Moisés como líder da grande mar- 147
 NÚMEROS 1
cha. Deve ser ele o representante do povo diante de
Deus e aquele por intermédio de quem Deus fala ao
povo. A fórmula: “O S e n h o r falou a Moisés” (v. 1)
é repetida mais de oitenta vezes no livro. A impor­
tância de Moisés não pode ser enfatizada o bastante.
Em continuidade com a tradição do Êxodo (Ex 24;
32), Moisés será ajudado no papel de liderança por
seu irmão Aarão: “Tu e Aarão recenseai...”. O papel
dominante de Aarão se expandirá no decorrer do
livro.
l,4-19a Auxiliares de Moisés: doze chefes de
Israel. Para ajudar Moisés e Aarão com o recen-
seamento, um homem que ocupa posição de auto­
ridade em cada unidade tribal é designado para
realizar a contagem em seu clã (v. 4). Esses indi­
víduos têm autoridade que se estende a todas as
dimensões da vida. São “delegados” ou represen­
tantes da comunidade de culto, “chefes” dentro da
família e “chefes” das forças militares (v. 16). Como
representantes dentro da comunidade de culto, esses
líderes apresentam oferendas para a dedicação do
altar (7,10-88). Como chefes em suas respectivas
famílias, são responsáveis pela ordem no acampa­
Gn 35,22b-26
Filhos de Jacó e Leá: Rúben
Simeão
Levi
Judá
Issacar
Zabulon
Filhos de Jacó e Raquel: José
Benjamin
Filhos de Jacó e Bilá, serva de Raquel: Dan
Neftali
Filhos de Jacó e Zilpá, serva de Leá: Gad
Aser
Existe outro modelo para a listagem das tribos
que examinaremos quando comentarmos a distri­
buição das tribos no acampamento e na caminhada
(cf. 0 cap. 2).
No próprio dia em que o S en h o r instrui Moisés
e Aarão para fazer o recenseamento, isto é, no pri­
meiro dia do segundo mês (v. 18; c f v. 1), são nome­
ados os assistentes e começa o recenseamento. Cada
varão adulto é registrado conforme o S en h o r ordena­
ra (w. 18b-19; c f w. 2-3). Assim, acontece o recen­
seamento, com Moisés, Aarão e os chefes tribais obe­
decendo à palavra de Deus.
l,19b-46 Contagem das doze tribos. Estrutura
148 rígida e expressão preceitual caracterizam a narrati­
mento (2,3-31). Como chefes das forças militares,
conduzem o povo na viagem que partiu do deserto
do Sinai (11,13-28).
Não se sabe ao certo se os nomes dos chefes
das tribos sobreviveram de um tempo primitivo ou
se são nomes de chefes do período pós-exílico. Co­
mo alguns dos nomes aparecem em 1 e 2 Crônicas
(cf ICr 6,12; 7,26; 12,3.10; 15,24; 24,6; 2Cr 11,18;
17,8; 35,9 etc.), que vêm do tempo em que o Tem­
plo foi reconstruído, presumimos que esses homens
eram chefes verdadeiros, conhecidos dos sacerdotes,
não uma lembrança de chefes do tempo da estada
no deserto.
A lista das doze tribos encontrada nos vv. 5-15
é uma das importantes genealogias do povo e reflete
as regras de protocolo na hierarquia tribal. Ela segue
a seqüência de nomes registrada primeiro em Gn
35,22b-26 na narrativa do nascimento dos filhos
de Jacó, com variações que refletem as necessidades
do período posterior. Segundo o protocolo, os filhos
das mulheres legítimas sempre têm precedência
sobre os filhos das servas. As listas apresentam-se
assim:
Nm 1,5-15
Rúben Porque em Números a tribo de Levi
Simeão é relacionada separadamente (cf.
1,47-54), Levi foi omitido da lista.
Judá
Issacar
Zabulon
Efraim Para conservar a contagem de
Manassés doze, a tribo de José foi dividida nos
Benjamim dois filhos (cf. Gn 48,1).
Dan
Aser
Em todas as listas em que os filhos
Gad de José são relacionados separada-
Neftali mente, os nomes Neftali e Aser inver-
tem a posição, por razão desconhe-
cida (ef 13,4-15).
va sacerdotal. O registro da contagem do recensea­
mento é típico da linguagem padronizada. Cada uma
das doze tribos, com sua contagem de membros ho­
mens, é descrita em retórica estilística, primorosa-
mente captada na tradução. Observe que a narração
esquematizada tem uma introdução: “Moisés os re-
censeou” (v. 19b), e uma conclusão (vv. 44-45), que
reitera as fórmulas para indicar que a ordem divina
foi cumprida com exatidão. A apresentação estilizada
tem duas funções: 1) dá ênfase ao grupo incluído no
recenseamento — adultos varões aptos para o servi­
ço militar, registrados em suas tribos individuais na
linhagem paterna; 2) destaca os nomes dos indiví­
duos e 0 tamanho de cada grupo.

A ordem em que as tribos são apresentadas
segue o padrão que descrevemos acima. A única
variação da lista dada nos vv. 5-15 é a substituição
da tribo de Levi por Gad. A repetição do padrão
exato dá-nos uma idéia da confiança dos sacerdo­
tes nas informações tradicionais ao relatar a lem­
brança daquele tempo primitivo no deserto a fim
de manter a fé do povo em sua passagem atual de
um deserto exílico.
O total de 603.550 no v. 46 — bem como os
números dados para as tribos individuais — dificil­
mente pode ter precisão histórica. O que era lembra­
do daquele período idilico no deserto era o grande
número de ancestrais que povoaram a terra e o
orgulho da história nacional que teve início nas
experiências do deserto-Êxodo. Embora idealizada
e exagerada, a lembrança desse passado glorioso
nutre um povo para quem a esperança de um futu­
ro se constrói na lembrança do passado.
1,47-54 Os levitas. Por lhes ser designado o
cuidado do santuário, os levitas não estão incluídos
no recenseamento daqueles aptos para o serviço mi­
litar (v. 47). Seus deveres são carregar a Morada,
cuidar dela e acampar em tomo dela (v. 50). Só eles
podem desmontá-la e montá-la novamente enquanto
0 povo vai de um lugar para outro. A morte será o
castigo para todo profano que se aproximar da mo­
rada (v. 51). Quando as tribos estão acampadas em
tomo da Morada, os levitas formam uma espécie de
escudo para isolar o povo da presença divina (vv.
52-53).
A Morada é o lugar onde o S e n h o r está pre­
sente com o povo, presença enraizada na aliança.
A expressão “morada do Documento” (v. 50) indi-
ca-a como o lugar onde se localiza a arca com os
mandamentos. Aqui há uma fusão das diversas tra­
dições da presença divina, a fim de enfatizar o que
sempre foi verdade: Deus habita no meio do povo.
Entregue aos cuidados dos levitas, a morada simbo­
liza a presença do S e n h o r , não de forma concreta,
mas pelo relacionamento da aliança.
A tarefa designada para os levitas é o serviço
da Morada. No v. 53, a frase “desempenharão o
serviço” vem do verbo “servir”, usado mais comu-
mente em contextos de culto. Significa realizar um
serviço meritório, honrar e cuidar do que é sagrado.
A tarefa dos levitas é uma espécie de desempenho
contínuo de culto.
2,1-34 Acampamento em torno da tenda do
Encontro. Agora que o recenseamento foi comple­
tado, o foco muda para a distribuição das tribos em
tomo da tenda do Encontro. Segundo a tradição, a
tenda do Encontro era o lugar onde Deus se comu­
nicava com o povo por intermédio de Moisés (cf
Ex 33,7-11). A tenda do Encontro podia ser movi­
da junto com 0 povo. Para onde quer que ele fosse,
a voz do S e n h o r podia sempre vir até Moisés. No
discurso introdutório, o nome de Moisés precede o
de Aarão porque Moisés é tradicionalmente o inter-
NÚMEROS 2
cessor na tenda, bem como o chefe designado do
povo a caminho da terra.
A palavra do S e n h o r vem a Moisés e Aarão (v.
1) com a ordem para que o povo rodeie a tenda do
Encontro, guardando certa distância, e se agrupe
conforme as divisões de clã e família do recensea­
mento (v. 2). As tribos devem ser arrumadas em
formação precisa, três de eada lado, em tomo da
tenda do Encontro (cf. a página seguinte). Os levitas
situam-se no centro para separar os israelitas da
tenda da presença do S e n h o r ( v. 17a; cf. também
3,23.29.35.38).
O lado leste do acampamento é o mais proe­
minente, pois defronta-se com o sol nascente em
frente da tenda. Ao nos mover para a direita a partir
do leste, descobrimos a posição relativa das tribos.
É dada prioridade à tribo de Judá e a posição menos
importante é dada a três tribos que remontam seu
nascimento às servas das esposas de Jacó (cf. Gn
35,25-26).
A ordem das tribos difere ligeiramente das listas
do recenseamento em 1,5-15 e 20-43. Começa com
Judá, em vez de Rúben.
1,20-43 2,3-31
Rúben Judá
Simeão Issacar
Gad Zabulon
Judá Rúben
Issacar Simeão
Zabulon Gad
Efraim Efraim
Manassés Manassés
Benjamin Benjamin
Dan Dan
Aser Aser
Neftali Neftali
Reunindo as tribos em grupos de três, vemos
que o grupo de Judá posiciona-se na frente do grupo
de Rúben em ordem de statiis. A variação é impor­
tante porque a tradição da preeminência de Judá
na organização do acampamento persiste na ordem
do culto (7,12-83) e na da caminhada (10,14-28).
Com essa ordem, o autor sacerdotal reflete uma si­
tuação real de sua época Os exilados originavam-se
do território de Judá e voltam ali para restabelecer
Jerusalém como centro religioso para o povo. Assim,
a proeminência de Judá sugere a importância da re­
gião meridional como o lugar onde o povo se esta­
belecerá, bem como o novo Templo para a presen­
ça do S e n h o r .
Quando as tribos caminham, o fazem precisa­
mente na ordem designada (v. 17b) — primeiro a
tríade de Judá (v. 9), em segundo lugar a de Rúben
(v. 16), a de Efraim em terceiro (v. 24) e por último
a de Dan (v. 31). Cada grupo consiste nos varões que
foram contados (v. 32) e cada um caminha sob as
insígnias de sua tribo (v. 2). Tudo isso era feito “se­
gundo a ordem dada pelo S e n h o r a Moisés” (v. 34). 149
 NÚMEROS 3

N
O -|- L
S
Dan
Aser e Neftali
(vv. 25-31)

Efraim Judá
Manassés Issacar
Benjamin Zabulon
(vv. 18-24) (vv. 3-9)

Rúben
Simeão e Gad
(vv. 10-16) '

ORGANIZAÇÃO DAS TRIBOS EM TORNO

DA TENDA DO ENCONTRO

3,1-4 Sacerdotes distintos dos levitas. Esse
capítulo começa com uma fórmula genealógica di­
ferente do estilo do autor sacerdotal: “Eis os descen­
dentes de fulano e sicrano”. Este cabeçalho é usado
tipicamente pelo autor sacerdotal para separar perío­
dos importantes na história do povo de Deus. Da
criação aos ancestrais de Abraão, a fórmula ocorre
cinco vezes para indicar conjunturas importantes
(Gn 2,4a; 5,1; 6,9; 10,1; 11,10), e dos ancestrais de
Abraão a Jacó, mais cinco vezes (Gn 11,27; 25,12.
19; 36,1; 37,2). Depois do relato dos ancestrais de
Israel, a fórmula não é mais usada até essa passa­
gem de Números, onde encontramos a genealogia
dos filhos de Aarão, a quem os sacerdotes remon­
tam sua linhagem. Assim, há um elo consciente
dos sacerdotes de volta dos ancestrais e, antes deles,
à criação.
O nome de Aarão vem antes do de Moisés
(compare 2,1), porque aqui o autor sacerdotal está
falando especificamente dos descendentes de Aarão,
que exerce as funções do sacerdócio. A partir desse
ponto, em Números, é feita uma distinção entre os
150 sacerdotes que descendem de Aarão e os levitas
que se identificam com Moisés. A designação dos
filhos de Aarão para as funções do sacerdócio é
enfatizada em toda a parte (cf., em especial, 17;
25,10-13; 27,12-23).
Notamos que os acontecimentos relatados em
Números são sempre ligados ao evento do Sinai.
Assim, também, é a designação dos filhos de Aarão
ligada à “época em que o S e n h o r falou a Moisés no
monte Sinai” (v. Ib; c í Ex 24,1-2). Aarão tinha
quatro filhos; Nadab, Abihu, Eleazar e Itamar (v. 2;
cf. também Ex 6,23), que foram “ungidos” e “orde­
nados” para o sacerdócio (v. 3). Os sacerdotes eram
ungidos com óleo derramando sobre suas cabeças
(Ex 29,7), ato pelo qual eram dedicados a Deus (Lv
21,12). Ordenar significa literalmente “encher a mão
da pessoa”, isto é, colocar alguma tarefa ou respon­
sabilidade em confiança nas mãos de alguém. Os
sacerdotes são incumbidos do bem do povo que vem
à presença de Deus. Estão encarregados da liturgia,
dos sacrifícios e das festas, atividades pelas quais os
dons divinos de cura e vida fluem para o povo. Un­
gido e ordenado, o sacerdote é consagrado para cum­
prir essas responsabilidades (cf. Ex 28,41).

Dois dos quatro filhos de Aarão, Nadab e
Abihu, morreram tragicamente no deserto do Sinai,
sem deixar descendentes (v. 4a). Essa história pode
ser lida em Lv 10,1-5. A linhagem de Aarão foi
continuada por Eleazar e Itamar (v. 4b). Esses dois
ramos da familia podem ser seguidos até o tempo
de David: Sadoq de Eleazar e Ahimélek de Itamar
(cf. 2Sm 8,17; ICr 18,16; 24,1-4). Por fim, a linha­
gem de Sadoq alcançou uma posição de proeminên-
cia (Cf. 2 Sm 15,24-29; IRs 2,35; Ez 44,15-16). A
designação dos filhos de Aarão como grupo com
as funções especiais do sacerdócio reflete, portan­
to, a prática real a partir do século X. A distinção
entre os sacerdotes e os levitas persistiu até depois
da época em que o povo voltou do exílio (c f Esd
2,36.40; Ne 7,39.43)
3,5-13 Os filhos de Levi: a serviço dos sacer­
dotes. No restante deste capítulo, o S enhor fala só
com Moisés (vv. 5.11.14.40.44). Os levitas são
considerados distintos dos sacerdotes e, de modo
específico, auxiliares deles (v. 6).
Tradicionalmente, os levitas são identificados
como seguidores de Moisés (cf Ex 32,25-29), em­
bora a verdadeira descendência de Moisés seja obs­
cura. O que está claro é o status tradicional dos le­
vitas como ministros para os sacerdotes e a comuni­
dade. Somente os filhos de Aarão podem atuar como
sacerdotes (v. 10). Os levitas são doados aos sacerdo­
tes como indivíduos “separados” do povo de Israel;
são “doados” para o S enhor (v. 9; c f 8,16; 18,6).
Eles “estarão a serviço” de Aarão e de toda a comu­
nidade (v. 7) e “cuidarão” dos utensílios da tenda do
Encontro (v. 8). Em ambos os casos, o verbo é “ser­
vir”, que significa mais precisamente “honrar e zelar
por alguma coisa sagrada”. Os levitas, então, cuida­
riam para que os sacerdotes e a comunidade cultuas­
sem de maneira apropriada a presença divina (v. 7),
cuidando dos utensilios e supervisionando as funções
do povo no culto (v. 8).
Entende-se que os levitas são propriedade do
S enhor no lugar dos primogênitos de Israel (vv.
12-13). Para comemorar o direito do S enhor sobre
Israel, demonstrado com a morte dos primogênitos
dos egípcios (v. 13a; Ex 11,4-8), os de Israel pas­
saram, desde então, a pertencer ao Senhor (v. 13b;
Ex 13,2-16; 34,19-20). Como propriedade do S e­
nhor, os levitas atuam como substitutos do que é
verdadeiro direito do S enhor — os primogênitos
das outras tribos. O S enhor escolheu os levitas,
que a ele são doados em lugar dos primogênitos
(v. 12). A idéia de ser resgate pelos primogênitos é
discutida em nosso comentário sobre Nm 3,40-51
e 8,5-26.
3,14-39 Os filhos de Levi: recenseamento e
funções. Mais uma vez somos convidados a lembrar
que esses acontecimentos se passam no deserto do
Sinai, de acordo com a ordem do S enhor (v. 14). Os
filhos de Levi foram excluídos de ser contados entre
NÚMEROS 3
o povo de Israel no recenseamento (c f 1,47-48).
Como sinal de que são dedicados ao serviço, é feito
um recenseamento especial (v. 15). Em seu caso, não
são contados os varões de vinte anos ou mais, aptos
para o serviço militar, (compare 1,3.18.45), mas toda
a população masculina, a partir de um mês de idade
(v. 15b). Isso significa que os levitas são “doados”
ao Senhor desde o nascimento, ou seja, pertencem ao
Senhor desde o começo da existência. A indicação
de “um mês” significa que o bebê resistiu ao perío­
do crítico da infância e, portanto, tem potencial para
uma vida plena. Na verdade, os levitas desempenham
as funções a eles destinadas apenas entre as idades
de trinta e cinqüenta anos (cf 4,3). Como todos os
israelitas, são registrados por clãs na linhagem pa­
terna (vv. 15a e 20b).
A listagem dos nomes dos filhos de Levi tem
o propósito de corresponder à dos filhos de Aarão
em 3,2, embora aqui esteja ausente a fórmula genea­
lógica. Obviamente, o autor sacerdotal pretende que
a ênfase esteja nos sacerdotes, ligados pela introdu­
ção genealógica aos ancestrais e à criação. A posi­
ção dos levitas está subordinada à dos sacerdotes.
Há três filhos de Levi, cada um deles citado com
seus descendentes: Guershon, com seus descenden­
tes Libni e Shimeí; Qehat, com seus descendentes
Amrâm, lisehar, Sebron e Uziel, e Merari, com seus
descendentes Mahli e Mushi. A lista de nomes nos
vv. 17-20 corresponde aos dados fornecidos em
seções nos vv. 21.27.33. Embora sejam escassas as
informações sobre os descendentes, é provável que
se refiram a pessoas bem como a lugares. O que
fez o autor sacerdotal foi colocar o material tradi­
cional sobre os levitas em um padrão de relaciona­
mentos que tem correspondência com as outras tribos
israelitas.
As informações sobre os clãs em cada uma das
seções são apresentadas em seqüência padronizada.
Depois dos nomes nos vv. 21, 27 e 33, é dado o
total de cada clã: o número dos descendentes de
Guershon é 7.500 (v. 22); o dos de Qehat é 8.600
(v. 28) e o dos de Merari é 6.200 (v. 34). O total de
22.000 é dado no v. 39. Esses números têm apenas
0 propósito de esclarecer a disparidade numérica
entre os levitas e as outras tribos (1,20-23). Se nos
lembrarmos que todos os levitas a partir de um mês
de idade foram contados, em contraste com a con­
tagem apenas dos varões adultos das outras tribos,
a disparidade será ainda maior. Os sacerdotes que­
rem que o leitor tome consciência do número com­
parativamente pequeno de levitas.
Em seguida, em cada seção, os clãs levíticos
são designados para um dos pontos cardeais entre
0 santuário e as tribos de Israel. Acampam imedia­
tamente em tomo da morada e, assim, atuam para
proteger e expiar em capacidade mediadora (cf
8,19). Os guershonitas localizam-se a oeste (v. 23);
os qehatitas, ao sul (v. 29) e os meraritas ao norte 151
 NÚMEROS 3
(v. 35b). A designação para um ponto cardeal espe­
cífico parece ser arbitrária. Entretanto, o lado leste
preferido é reservado a Moisés, Aarão e aos filhos
de Aarão (v. 38a — c f a figura na p. 150).
Cada um dos grupos tem funções específicas
a respeito do lugar santo. Somente os filhos de
Aarão exercem o serviço do santuário (v. 38b). Os le-
vitas cuidam do equipamento do santuário. Segundo
os vv. 25-26, os guershonitas cuidam da tenda, de
suas cortinas, cortinados, cobertura e cordas. (Com­
pare a descrição do santuário do deserto, em Ex
26; 27,9-16; 36,8-19.35-38.) Segundo os vv. 28b.31,
os qehatitas são encarregados de cuidar do conteú­
do sagrado do santuário do deserto; a arca, a mesa,
o candelabro, os altares, os utensílios e o véu. (Esses
equipamentos são descritos em Ex 25; 27; 30,1-10;
37; 38.) Segundo os vv. 36-37, os meraritas cuidam
dos quadros, vigas e colunas, isto é, as partes que
mantêm a estrutura material. (Veja as descrições ela­
boradas desses aspectos físicos em Ex 26,15-37;
27,9-19; 36.20-34; 39,40.) Junto com essa divisão de
tarefas, devemos recordar a descrição das funções
dos levitas em 1,50-51, em especial seu papel quan­
do 0 acampamento é levantado e remontado quando
o povo muda de um lugar para outro no deserto.
Em cada seção há também o nome de um
“ehefe” de cada um dos clãs levíticos (w . 24.30.
35a) para corresponder à relação de líderes de cada
uma das tribos israelitas em l,5b-15. Como esses
indivíduos não são mencionados de novo, sua fun­
ção de liderança permanece obscura. Certa é a lide­
rança de Eleazar, filho de Aarão, identificado como
0 chefe supremo dos levitas (v. 32). É ao sacerdote
Eleazar, sucessor de Aarão, que os levitas respon­
dem pela execução de suas diversas funções (com­
pare 3,6.9a).
3,40-51 Primogênitos dos israelitas. Esta se­
ção retoma o assunto introduzido em 3,11-13 —
os levitas como substitutos dos primogênitos. Aqui
0 resgate é descrito em detalhes.
A apresentação herda o padrão da palavra do
S enhor ( w . 40.44), seguido pela execução dessa
palavra (w. 42.49-50). Moisés faz exatamente como
o S e n h o r lhe ordena. Faz um recenseamento dos
primogênitos de sexo masculino a partir de um mês,
um total de 22.273 (v. 43). Designa, então, os levi­
tas como resgate pelos primogênitos de Israel e os
animais dos levitas como substitutos dos primogê­
nitos dos rebanhos (w. 41.45).
O número de primogênitos do sexo masculino
de Israel equipara-se aos dos levitas, com uma difer­
ença de 273 (v. 46). O excedente pode ser resga­
tado por uma soma de dinheiro dada aos sacerdo­
tes (v. 48). O preço de cinco sidos, medidos pelo
valor do sido do santuário, em vez do sido comer­
cial, proporciona o resgate para os que restaram
entre os primogênitos (v. 49).
Tal atenção a detalhes indica a importância
152 dos primogênitos que foram poupados na noite em
que morreram os do Egito (cf Ex 12,29). O primo­
gênito de toda família israelita em todas as gera­
ções sueessivas lembra-se desse acontecimento e,
portanto, é ele próprio poupado. Por causa desse
evento, o primogênito pertence ao S e n h o r ( E x
13,2.12-25; 34,19-20).
O fundamento lógico para os levitas pertence­
rem ao S e n h o r está enraizado nessa tradição dos
primogênitos pertencerem ao S e n h o r . Pela lembrança
desse evento, as pessoas vêm a conhecer o S e n h o r ,
seu Deus. Aqui aparece a fórmula de reconheci­
mento “Eu sou o S e n h o r ” : “... os levitas me perten­
cem. Eu sou 0 S e n h o r ” ( v. 45b; c f 13b). A ligação
entre a libertação da escravidão egípcia e a dedica­
ção dos primogênitos leva à compreensão de que
Israel pertence ao S e n h o r e é chamado a um relacio­
namento singular que dura para sempre. A dedicação
dos levitas testemunha a natureza do Deus de Israel
como alguém que continua a agir em beneficio de
Israel e que também exige dedicação e serviço. (Para
um breve exame da fórmula de reconhecimento, veja
p. 146b.)
4,1-33 Definição das funções dos levitas. A
palavra do S e n h o r é mais uma vez dirigida a Moisés
e Aarão, nessa ordem (w. 1.17; veja também 34.46).
A ordem é para fazer um recenseamento dos sub­
grupos dos levitas (vv. 2.22.29), os de idade entre
trinta e cinquenta anos (vv. 3a.23a.30a).
As descrições das funções de cada um dos gru­
pos levíticos são postas dentro da estrutura da ordem
de recenseamento. Aos varões da idade indicada são
designadas tarefas específicas para o transporte da
tenda do Encontro. Em cada caso, a fórmula “cum­
prir serviço” (vv. 3b.23b.30b) introduz as responsa­
bilidades determinadas. Os verbos dessa fórmula
enfatizam serviço, no sentido de um exército prepa­
rado para empenhar-se em combate junto com a
idéia de serviço no culto. Em sua escolha de palavras,
o autor destaca a seriedade das funções dos levitas.
As tarefas específicas correspondem às designadas
para os grupos levíticos em 3,25-26.31.36-37. Aqui,
a ênfase está no desmonte e no transporte da tenda
e dos objetos sagrados (cf 1,50-51).
As funções dos qehatitas são fornecidas primeiro
porque lhes cabe cuidar dos objetos mais sagrados
(v. 4); presumivelmente, isso lhes dá siattis especial.
Entretanto, a sua é uma tarefa modesta, pois não
podem tocar os objetos sagrados, nem mesmo olhar
para eles (w. 15b. 18-20). Somente depois que os
sacerdotes cobriram os objetos da maneira apro­
priada (vv. 5-14), fixaram as barras (vv. 6b.8b.l4b)
e colocaram os objetos em andotes (vv. 10b. 12b), os
qehatitas têm permissão para transportá-los (v. 15).
Nesta seção, a atenção volta-se dos qehatitas
para os sacerdotes, os únicos que podem tocar os
objetos sagrados. Primeiro cobrem a “arca do Docu­
mento” com três camadas; o véu de separação, uma
capa de pele e um pano de púrpura roxa (vv. 5-6).

Só a arca, que contém o documento da aliança com
o S enhor, tem uma coberta externa colorida que lhe
dá destaque entre os objetos sendo transportados. Os
outros são cobertos com um pano de púrpura roxa
e uma capa de pele (w. 7-14). Sob pena de morte,
os qehatitas não podem tocar em nada a não ser nas
alças dos veículos de transporte. A santidade e a
transcendência de Deus estão sendo enfatizados nesse
tratamento reverente dos objetos que têm uso direto
no culto.
Os sacerdotes e os levitas tinham funções espe­
cíficas a respeito do santuário. A divisão de funções
predomina na mente do autor, que representa famí­
lias sacerdotais e escreve esse relato em uma época
em que os sacerdotes dominam o governo da vida
religiosa do povo. Só os filhos de Aarão são encarre­
gados do lugar santo, e Eleazar, em especial, é en­
carregado da morada (v. 16; c f 2,32; 3,1-4).
As funções dos guershonitas e meraritas corres­
pondem às que lhes foram atribuídas respectivamente
em 3,25-26 e 3,36-37. Aqui, uma vez mais, a ênfase
está no transporte do lugar santo na jornada prestes
a se iniciar. Os guershonitas carregam tapeçarias,
cobertas, peles, cordas etc., que fazem parte da es­
trutura material e seus adornos (vv. 25-26). Os me­
raritas carregam quadros, vigas, colunas etc., as
partes de madeira e de metal que dão forma ao lugar
ou são usadas para apoiá-lo (w. 3 lb-32a). Como no
caso dos qehatitas, esses gmpos levíticos ficam sob
as ordens dos sacerdotes (v. 27) e, especificamente,
sob a supervisão de Itamar, o outro filho de Aarão
(vv. 28.33; c f 3,1-4).
O leitor de hoje não pode deixar de perceber a
reverência dos israelitas pelo lugar sagrado e seus
utensílios. Somente os panos mais preciosos e as
peles mais raras serviam para cobrir os objetos sa­
grados (w. 5-14). E esse respeito pelo lugar de culto
e pela posição dos sacerdotes em relação ao lugar
santo que tem influenciado a prática religiosa atra­
vés da história. Sem menosprezar a palavra de Deus,
é importante lembrar que esse documento vem de
um certo período da história e reflete a prática an­
tiga. A verdade aqui contida sobre a presença de
Deus com o povo para todos os tempos e em todos
os lugares às vezes se perde na leitura dos preceitos
detalhados. Lembremos que as delimitações de fun­
ções e a distinção de papéis indicam a santidade da
Presença no meio do povo. Essa morada de Deus
no meio do povo não se limita a uma forma, nem
depende de determinadas instituições. A questão
toda desse relato dramático é que Deus está pre­
sente e constantemente revela a personalidade di­
vina de maneiras significativas em cada nova era
da história.
4,34-49 O recenseamento completado. Os re­
sultados do recenseamento ordenado acima (w . 2­
3.22-23.29-30) estão resumidos nessa última seção.
Composta dtis fórmulas repetitivas características
do autor sacerdotal, afirma que Moisés e Aarão re-
NÚMEROS 4
censearam todos os grupos levíticos (w . 34.38. 42),
como 0 S enhor ordenara (vv. 17.41.45).
Os varões, registrados por clãs na linhagem
paterna, eram os compreendidos dentro dos limites
de idade para o serviço obrigatório — trinta a cin­
quenta anos de idade. (Compare esse recenseamento
com 0 de todos os levitas em 3,15.40.) O número
total de levitas designados para o serviço no trans­
porte da tenda do Encontro é significativamente
menor do que o total de levitas registrados (v. 48;
c f 3,43).
Assim, os levitas, separados para o serviço es­
pecial, recebem tarefas relacionadas diretamente
com 0 santuário. Enquanto o povo se prepara para
iniciar a caminhada pelo deserto em direção à Terra
Prometida, os levitas têm a importante função de
desmontar e carregar a estrutura material da mora­
da. Toda essa cuidadosa preparação e a designação
de funções acentuam o fato da permanência da pre­
sença divina com o povo e, na verdade, acompa­
nha-os em sua caminhada.
Nesse ponto, há uma pausa nos preparativos,
enquanto a atenção concentra-se na vida dentro do
acampamento. Como Deus habita no meio do povo,
não há lugar para nada indigno do Deus santíssimo.
Portanto, nessa conjuntura, os israelitas recebem
uma série de leis pertinentes à pureza ritual e ética
(cap. 5) e leis relativas ao nazirado, que se dedicam
completamente ao S e n h o r (cap. 6).
5,1-4 Exclusão dos impuros. As leis aqui esta­
belecidas são para assegurar a pureza do lugar onde o
S e n h o r habita no meio do povo (v. 3b; c f Lv 15,31).
Eram leis que, na verdade, governavam a vida na
terra de Canaã, de importância especial para a vida
da comunidade devota pós-exílica, como se reflete na
organização e na ordem do acampamento no deserto.
O lugar da presença do S e n h o r é santo. Tudo que
for impuro precisa ser excluído; tais coisas são in­
compatíveis com o lugíU" santo enquanto permane­
cerem impuras (vv. 3-4).
Segundo o direito consuetudinàrio, eram impu­
ros os que tinham moléstia de pele, os acometidos
de corrimento dos órgãos genitais e os que tiveram
contato com um cadáver (v. 2). Essas leis minuciosas
governavam todo o povo, mas eram especialmente
rígidas a respeito dos sacerdotes (cf Lv 22,4).
A moléstia de pele, identificada como lepra,
podia ser qualquer variedade de problemas comuns
nos climas tropicais. O fator distintivo são feridas
abertas e supuradas. E a ejeção da ferida aberta que
toma a pessoa doente ritualmente impura. As leis
que governam tal moléstia encontram-se completas
em Lv 13-14. Ali aprendemos que vários períodos
de sete dias de quarentena, isto é, exclusão do acam­
pamento, podem ser necessários antes que a pessoa
seja declarada pura (cf Lv 13,4-6.26-27.31-34.50­
51; 14,8-9). Toda moléstia, na medida em que seja
visível, é uma contaminação e, portanto, exclui o 153
 NÚMEROS 5
indivíduo da com unidade cultuai onde habita o
Senhor ( v. 3b).
O corrimento refere-se a fluidos dos óigãos
sexuais de homens ( c í Lv 15,1-17; Dt 23,10-15) e
mulheres (cf. Lv 15,19-30), quer seja ele normal,
quer ligado a doença. Nas leis levíticas não há
nenhuma cláusula para a exclusão da comunidade;
apenas em Números tal exclusão é indicada, o que
não significa atitude negativa contra o sexo, é antes
a idéia de que todos os corrimentos físicos conta­
minam. São incompatíveis com a perfeição física
e, portanto, indignos da santidade de Deus que
habita no meio do povo (v. 3b). Os ritos purificado­
res prescritos para homens e mulheres eram exata­
mente os mesmos, como o era sacrifício exigido
(cf. Lv 15,5-10.19-24; 15,13-15.25-30). Principal­
mente nessa questão, os sacerdotes demonstram ter
consciência da igualdade da pessoa do homem e
da mulher (v. 3a; c f Lv 15,32-33).
Na Antiguidade era forte a ligação entre a morte
e o mal, como muitas vezes ainda o é hoje. Acre­
ditava-se que o mal emanava de um cadáver, toman­
do todo aquele que entrasse em contato com ele
impuro e, portanto, indigno da presença de Deus
(v. 3b). Segundo a lei, quem tocasse um cadáver
era banido pelo período estipulado de sete dias (cf.
Nm 19,11).
5,5-10 Reparação dos delitos. Essa passagem
estabelece uma situação de pecado em termos
bastante amplos. Especifica tanto o homem como
a mulher como possíveis ofensores (v. 6a) e descre­
ve a ofensa como toda transgressão de seres huma­
nos, isto é, afrontas feitas a outra pessoa (v. 6b). É
uma reafirmação da lei de reparação dada em Lv
5,20-26.
No ensinamento bíblico há uma ligação direta
entre as maldades feitas dentro da comunidade hu­
mana e o relacionamento com Deus (v. 6c). O amor
a Deus e o amor ao próximo estão inextricavel-
mente ligados. Basta ler o decálogo (Ex 20,1-17;
Dt 5,6-21), as normas estabelecidas para a conduta
dentro da comunidade (Lv 19,1-37), os discursos
proféticos (Os 4,1-3; Am 5,21-24; Is 1,12-16), ou
o Novo Testamento (IJo 4,20-21; Mt 5,23-24;
23,34-40; 25,31-46), para perceber que o respeito
pelo bem-estar da comunidade é expressão direta
de reverência por Deus.
Segundo a lei, o indivíduo que comete uma
transgressão contra outro não só confessará o peca­
do e compensará o mal feito ou o caráter difamado,
mas também fará restituição da quantia devida
acrescida de um quinto do valor (v. 7). A compen­
sação de um quinto a mais desse valor é a restitui-
ção-padrão exigida em todos os casos (cf. Lv
5,16.24; 22,14; 27,13.27.31). Tão sagrada é a pessoa
na comunidade que todo dano ao indivíduo causa
dano a toda a comunidade. E tão sagrada é a comu­
nidade que toda violação de seu bem-estar exige
154 reparação. A presença de Deus dentro dessa comu­
nidade exige que nada viole nem desintegre o bem
eomum e, quando tal ocorre, é necessário haver
restituição e reparação.
Se essa restituição não puder ser paga ao ofen­
dido, deverá ser paga ao parente mais próximo (v.
8a). Se não houver parente, a restituição pertence
aos sacerdotes, que a aceitam como dada ao S e n h o r
(v. 8b). Essa restituição soma-se á do carneiro expia­
tório pelo qual se fará o rito de absolvição do pe­
cado (v. 8c; veja Lv 5,14-26).
O lugar dado ao parente mais próximo nos diz
algo sobre a solidariedade da comunidade do povo
de Deus. O parente mais próximo é parente consan-
güineo do sexo masculino por parte de pai da famí­
lia. Ser 0 parente mais próximo envolve sérias res­
ponsabilidades para assegurar a vida da família pró­
xima e ampla. Se a mulher fica viúva e não tem fi­
lhos, o parente mais próximo tem de se casar com
ela para que a linhagem familiar floresça (Rt 4). Se
há ameaça de perda da propriedade que pertence à
família, o parente mais próximo deve comprá-la para
que permaneça na família (Lv 25,25). Se um membro
da família é escravizado, o parente mais próximo é
responsável para assegurar a liberdade dessa pessoa
(Lv 25,47-52). Assim como o parente mais próximo
provê quando a vida ou a propriedade é ameaçada,
também recebe bens quando a restituição não pode
ser feita a quem foi prejudicado. O que foi tirado de
determinada família é, desse modo, restituído e com­
pensado, e a comunidade fica unida dentro de si mes­
ma e com Deus.
Acrescentada a essa lei que governa a restitui­
ção está uma afirmação sobre as “coisas santas”
que pertencem aos sacerdotes (vv. 9-10). Essa con­
tribuição sagrada pode ser parte reservada da ofe­
renda que o sacerdote movimenta para cima e para
baixo em ato ritual, ou pode ser toda a oferenda que
um israelita apresenta ao S e n h o r , elevando-a. Em
ambos os casos, a contribuição sagrada é a que é
elevada e pertence ao sacerdote oficiante.
5,11-31. Ritual para o julgamento. Outra cir­
cunstância imprópria para o lugar da presença divina
é a desconfiança entre marido e mulher descrita como
ciúme (w. 14.30a). O caso apresenta um marido que
suspeita que a mulher cometeu adultério (w. 12-13.29)
e pode, portanto, dar-lhe um filho que não é dele, po­
rém, ele não tem nenhuma evidência concreta e, as­
sim, não pode instaurar processo legal normal, pelos
tribunais. Quando não há testemunhas nem outra
prova, o marido recorre a um ordálio.
Esse é 0 único caso na literatura bíblica em que
um ritual de ordálio é descrito em detalhe. O ordálio
parece ter sido usado quando a questão de culpa ou
inocência não podia ser averiguada pelos métodos
normais de fazer julgamento. A pessoa acusada sub­
mete-se a alguma prática, tal como tomar uma po­
ção ou andar sobre o fogo. Se ficar incólume, está
comprovada a inocência. O adultério era a ofensa
para a qual o ordálio era invocado mais vezes, como

sugere a descrição detalhada neste texto. Dt 17,8-
13, entretanto, afirm a que casos que envolvem ho­
micídio, disputas sobre direito de propriedade e
agressão pessoal podem ser resolvidas pelo ordálio.
O caso apresentado aqui é decididamente injus­
to, pois o homem acusa a mulher, que, então, supor­
ta 0 Ônus da acusação, enquanto o homem fica
isento de culpa, mesmo quando a acusação é infun­
dada (v. 31). A questão grave a ser decidida é a de
paternidade. O rito destina-se a determinar a legi­
timidade dos filhos do homem.
O marido traz a mulher perante o sacerdote com
uma oferenda de cevada sobre a qual não derrama
nem óleo nem incenso, “pois é uma oferenda de
ciúme” (v. 15). O grão seco significa que a oferenda
é um sacrifício pelo pecado (cf Lv 4,11-13). O óleo
e 0 incenso sobre o grão bruto produziría uma obla-
ção de perfume agradável, sugerindo alegria e gene­
rosidade (Lv 2,1-2; 6,8).
Segue-se o ritual para o julgamento. Em essên­
cia, a mulher comparece diante do S e n h o r ( vv .
16.30b), atitude que traz Deus ao processo de in­
vestigação legal. A cabeça dela está descoberta,
sinal de desgraça e impureza, e em suas nas mãos
está a oferenda de denúncia (v. 18). Enquanto isso,
o sacerdote prepara a água, colocando nela pó do
chão da morada (v. 17). Essa água é chamada “san­
ta”, porque é conservada no santuário. O acréscimo
do pó aumenta a santidade da bebida e seu perigo
para a mulher que a beberá. É o consumo dessa
água, chamada “da amargura”, que decide a inocên­
cia ou a culpa (v. 18c). Observe a referência feita
a essa água nos vv. 19.22.24.27.
O sacerdote, então, põe a mulher sob juramento
para falar a verdade (vv. 19a.21a). As palavras
pronunciadas pelo sacerdote fazem a água da amar­
gura ser eficaz para confirmar a inocência (v. 19b)
ou a culpa (vv. 20-22). A mulher responde: “Amém,
amém”, concordando assim com a eficácia do ordá­
lio. A maldição em si é um eufemismo para o aborto
ou talvez a esterilidade. “Seio” é usado com fre-
qüência para indicar os órgãos sexuais. É caracte­
rística dos relatos de julgamento o castigo ser a
anulação do pecado. Se a mulher pecou por rela­
ções sexuais ilícitas, seu castigo é o término da gra­
videz (v. 27) ou a incapacidade de ter filhos. A si­
tuação contrária, descrita no v. 28, seria a capaci­
dade de ter filhos.
Antes que a mulher beba, as palavras de maldi­
ção são escritas e depois dissolvidas na água (v, 23)
para que sejam eficazes (v. 24). Por último, o sacer­
dote queima um punhado da farinha da oblação sobre
0 altar; o restante do cereal pertence ao sacerdote
(cf Lv 2,2-3). Depois que a mulher bebe a água, há
dois resultados possíveis (vv. 27-28): ela é procla­
mada culpada e, portanto, impura, ou inocente e,
portanto, pura.
6,1-21 Dedicação dos nazires. No contexto de
preparação para a jornada em direção à terra, onde
NÚMEROS 6
haverá a comunidade ideal que tem Deus residindo
no meio do povo, notamos a ênfase na santidade e
na pureza exigidas da comunidade de fiéis. O autor
sacerdotal inclui a essa altura um texto sobre a con­
sagração de indivíduos, homens e mulheres (v. 2),
realçando a santidade e a nobreza da dedicação total
ao S e n h o r . Tal individuo é chamado “nazir”, palavra
derivada do verbo que significa “separar” ou “con­
sagrar”. O nazir faz um voto de dedicação ao S e n h o r
(v. 21) por determinado tempo (w. 4.5.6.8.12.13). A
tradição do nazirado era antiga entre o povo de Deus.
Julga-se que Sansão (Jz 13,5) e Samuel (ISm 1,11)
fossem consagrados para toda a vida. A prática
chegou até o tempo de João Batista (Lc 1,15) e do
apóstolo Paulo (At 18,18; 21,23-26).
Nosso texto consiste em três seções indepen­
dentes dentro da estmtura dos vv. 1-2.21. Os vv. 3-
8 descrevem as condições e as leis que governam
um indivíduo que decide fazer um voto por um
tempo determinado. Os vv. 9-12 descrevem a pu­
rificação exigida se a pessoa inadvertidamente se
tomar impura. Os vv. 13-21 introduzem as cerimô­
nias que devem ser realizadas ao término do tem­
po do voto.
Ao fazer o voto de dedicação, o nazir aceita
três restrições. As obrigações abrangem a questão
de bebida e comida (vv. 3-4), o corte do cabelo (v.
5) e o contato com os mortos (vv. 6-7).
O nazir é proibido de consumir uvas em qual­
quer forma — não pode beber vinho, vinagre ou
mesmo suco de uva (v. 3a), nem comer uvas ftescas
ou secas, nem sementes ou cascas de uva, ou qual­
quer parte da videira (w. 3b-4). A abstenção é da
uva, não da bebida alcoólica como tal. A videira re­
presenta a cultura urbana, a vida acomodada, o con­
forto e o modo intenso de viver — prazeres em opo­
sição à fidelidade ao S enhor (cf. Am 4,1b; 6,6).
Segundo, o nazir não porá a navalha no cabelo
da cabeça (v. 5). O crescimento do cabelo é sinal
visível de consagração. Símbolo de integridade e
dignidade, o cabelo longo distingue de maneira
dramática o indivíduo como alguém que serve a
Deus de modo especial (v. 7b).
Terceiro, o nazir nunca se aproxima dos mor­
tos, nem mesmo dos cadáveres de membros da
família (vv. 6-7a). (Sobre a impureza associada ao
contato com os mortos, c f o comentário de 5,1-3
e 9,11-22.) Esta lei é mais severa do que no caso
do sacerdote comum, que é isento no caso de famí­
lia (Lv 21,1-3); é, entretanto, comparável às restri­
ções impostas ao sumo sacerdote (Lv 21,11).
Essas práticas destacam o nazirado como lem­
brete continuo à comunidade daquilo que deve ser
a dedicação total ao S e n h o r . Aparentemente, no
tempo de Amós, o testemunho dos nazires era tão
perturbador que o povo tentava fazê-los quebrar o
voto (Am 2,11-12).
A segunda seção do texto trata da situação em
que o nazir pode acidentalmente tomar-se impuro 155
 NÚMEROS 6
pelo contato com um morto (w, 9-12). O cabelo,
sinal de consagração, toma-se, assim, contaminado e
precisa ser raspado (v. 9) e o período de dedicação,
agora inválido, precisa ser iniciado novamente (v. 12).
Segundo a lei, o período de purificação dura sete dias
(v. 9; cf. Nm 19,11.14.16). Em seguida o nazir traz
a oferenda de duas aves, que é a requerida dos pobres
(V. 10; cf. Lv5,7; 12,8; 14,22; 15,13-15). O sacerdote
oferece uma ave como sacrifício pelo pecado, para
restaurar o relacionamento com um Deus santo que
foi interrompido pelo contato com o que toma a pessoa
impura; a outra é oferecida como holocausto, o sacri­
fício exigido de todos que vêm diante do Senhor, e,
portanto, deve ser completamente consumida (v. 11).
Depois de oficiada a absolvição, a cabeça do nazir é
mais uma vez santificada (v. 1Ib) e é feito o sacri­
fício de reparação de um cordeiro de um ano de ida­
de, é uma espécie de multa punitiva paga a Deus pela
perda do que é devido. Com a anulação do voto, é
perdido algo que apropriadamente pertencia ao Se­
nhor com base nesse voto. (Cf. Dt 23,22-24 para as
leis que governam todos que decidem fazer um voto;
notem-se as restrições impostas às mulheres em Nm
30,4-16.)
A terceira seção prescreve o ritual a ser obser­
vado ao término do período de consagração (vv.
13-20). As instruções são dirigidas ao sacerdote
que realizará os detalhes da cerimônia. O indiví­
duo comparece à entrada da tenda do Encontro
com oferendas específicas (vv. 13-15). Depois que
0 sacerdote oferece o sacrifício, a cabeça do nazir
é raspada e o cabelo queimado no fogo do sacrifí­
cio de paz (vv. 16-18). O sacerdote toma sua parte
das oferendas sacrificais (vv. 19-20) e só então o
nazir pode beber vinho (v. 20c).
A série completa de sacrifícios indica a soleni­
dade da ocasião (vv. 14-15). O holocausto é ofere­
cido por todos que se aproximam do Senhor; o sa­
crifício pelo pecado é dado em expiação por todas
as violações cometidas, mesmo que involuntárias. O
sacrifício de paz é apresentado em ação de graças
junto com a oblação e a libação. Sugerem um ban­
quete e significam a comunhão entre Deus e o par­
ticipante (vv. 16-17). O cabelo que foi cortado é
queimado no fogo do sacrifício de paz, significando
a destruição daquilo que fora consagrado ao Se­
nhor, depois de servir a seu propósito (vv. 18-19a).
Ao realizar o sacrifício, o sacerdote põe uma
parte dele nas mãos do nazir, para que ela seja for­
malmente apresentada ao sacerdote (v. 19b) com o
gesto de apresentação (v. 20a). Esse movimento
parece representar o ato de devolver a Deus parte
do que Deus deu. Essa porção está incluída no pre­
sente especial apresentado ao sacerdote. A dádiva
costumeira devida ao sacerdote em todos os sacri­
fícios são o peito e a coxa (v. 20b; c f Lv 7,34 e
Nm 18,8-11). O nazir deve fazer as oferendas pres­
critas, mas também pode apresentar outras, de acor-
156 do com os meios do indivíduo (v. 21a).
Com a conclusão deste ritual, o nazir cumpre
0 período de voto e pode tomar vinho (v. 20c). O
indivíduo, então, retoma sua vida normal.
6,22-27 A bênção sacerdotal. Com uma espé­
cie de interlúdio, desligado do que o precede e do
que o segue, o autor sacerdotal insere uma fórmula
de bênção que é uma das mais antigas composi­
ções poéticas das Escrituras. Talvez esteja coloca­
da aqui para mostrar a bênção divina para o povo
que leva a vida santa de acordo com os preceitos
estabelecidos nos capítulos 5-6.
A oração em si (vv. 24-26) está posieionada
dentro de uma estrutura que começa com a frase
típica: “O S enhor falou a Moisés dizendo”. A bên­
ção dada ao povo pelos sacerdotes é vista como a
vontade do S enhor comunicada por intermédio de
Moisés (cf Dt 10,8; 21,5). A referência específica
ao sacerdócio aarônico (v. 23a) reflete a época pós-
exílica, quando a tarefa principal dos sacerdotes
no santuário era mediar a bênção, o manancial de
vida que deriva do Senhor, fonte de toda vida (cf
SI 115,12-15; 118,26; 129,8; 134,3). Na posse do
sacerdote, seu primeiro ato é erguer a mão para
abençoar (Lv 9,1-24, esp. vv. 22-24). Essa força
para a vida que é mediada pelos sacerdotes mantém
viva a promessa de que, por intermédio desse povo,
as bênçãos divinas fluem para o mundo.
Na bênção, o nome do Senhor é repetido três
vezes e é o sujeito subentendido mais três vezes.
Pronunciar esse nome é, por si só, bênção eficaz.
Assim, a conclusão afirma que os sacerdotes “po­
rão meu nome sobre os filhos de Israel” (v. 27a). A
apresentação hebraica é uma expressão incomum
que literalmente afirma que eles “porão o nome
sobre” o povo, em vez do esperado “invocar o nome”.
Essa expressão idiomática específica parecería su­
bentender estreito relacionamento, indicação de pro­
priedade e proteção divinas. Os israelitas são procla­
mados propriedade do Senhor, por intermédio da
colocação do nome do S enhor sobre eles pelos
sacerdotes. A afirmação final “e eu os abençoarei”
(v. 27b) significa então que, quando os sacerdotes
puserem o nome divino sobre os israelitas, na verdade
0 Senhor os abençoará.
A bênção em si é um das mais belas composi­
ções da poesia antiga. É escrita em três versos, ca­
da um com duas partes e em um padrão métrico
complexo que aumenta progressivamente em nú­
mero de palavras (três no primeiro verso, cinco no
segundo e sete no terceiro) e em contagem métrica
(dez, doze e catorze, respectivamente). A bênção é
dirigida a “ti”, no singular, que significa todo o
Israel como uma entidade coletiva e também como
cada indivíduo. Este “tu” (“te”) é expressado duas
vezes como objeto direto (vv. 24ab) e quatro vezes
como objeto indireto (vv. 25ab.26ab).
A primeira metade de cada verso invoca a ação
pessoal do S enhor sobre o povo: “abençoe” (v. 24a),
“faça resplandecer [sobre ti] seu olhar” (v. 25a) e
“volte [para ti] seu olhar” (v. 26a).

“Abençoar” significa derramar o contínuo e sus-
tentador poder de vida que se manifesta como cresci­
mento, aumento, sucesso, fertilidade e prosperidade
(cf Gn 24,34-36). A bênção deriva do ser divino
essencial do qual surgem as promessas: “Eu... te
abençoarei. Tomarei grande o teu nome” (Gn 12,2);
“eu estarei contigo e te abençoarei” (Gn 26,3).
Fazer “a face [do Senhor] resplandecer sobre”
significa olhar com prazer ou estima. Obviamente
um antropomorfismo usado de maneira metafórica,
a referência a “olhar” (literalmente “face”) suben­
tende a totalidade da bondade divina dirigida ao
destinatário da bênção (c f SI 67,2). Quando o S e­
nhor é indulgente para com o povo, este vê a face
do S enhor (SI 31,17; 80,4.8.20). Por outro lado,
para expressar descontentamento com o povo, o
Senhor declara: “ocultei meu rosto” (Ez 39,23; c f
Is 57,17).
“Voltar [para ti] seu olhar” sugere a concessão
do amor divino em gestos de indulgência e ajuda.
A atenção do S enhor volta-se para aquele que é
dependente e necessita de ajuda (cf. SI 33,18; 34,16;
IRs 8,29,52).
A cada um desses atos do S enhor segue-se
uma conseqüência da bênção invocada. O S enhor
“guardará” (v. 24b), “concederá sua graça” (v. 25b)
e “dará paz” (v, 26b).
“Guardar” significa que, em conseqüência da
bênção, o S enhor protegerá Israel dos reveses que
trazem o oposto da vida e da prosperidade, tal como
a infecundidade, o fracasso da colheita, a ameaça
dos inimigos. “Conceder sua graça” significa de­
monstrar benevolência imerecida. Em conseqüên­
cia do fato do olhar do S enhor resplandecer sobre
Israel, esse povo experimenta a benevolência que
deriva da natureza divina (cf. Ex 33,19; 34,6; Nm
14,18; Dt 5,9-10). Finalmente, o S enhor “dá a paz”
como conseqüência de voltar seu olhar. O conceito
de paz é o resumo do ato de abençoar: “o S enhor
abençoará seu povo com a prosperidade” (SI 29,11).
É uma expressão que significa muito mais do que
liberdade de guerra ou discórdia. A paz é o estado
de ser íntegro, de perfeição, de felicidade e harmo­
nia, fazendo com que a pessoa seja capaz de um
desenvolvimento de vida pleno e livre. Paz signifi­
ca a salvação que pertence àqueles cuja vida está
totalmente em harmonia com a vontade divina (cf.
SI 34,15; Is 32,17). O propósito da vida de Jesus
era trazer a paz (Jo 14,27; 16,33; 20.21.26).
7,1-88 Oferendas dos chefes. O capítulo 7
volta aos preparativos para a partida do Sinai de­
pois do interlúdio dos preceitos que governam a
vida no acampamento e na comunidade. Não hou­
ve passagem de tempo da data do recenseamento
(1,1.18), que ocorreu exatamente um mês depois
do término, edificação e consagração da morada
(v. 1; Ex 40,2.17; c f o comentário sobre 1,1-3). A
descrição minuciosa dos presentes cria um cenário
de dedicação ao S enhor, à medida que aumenta a
NÚMEROS 7
tensão nos últimos preparativos para a caminhada
(caps. 7-9).
O capítulo divide-se em duas seções desiguais.
Na primeira, w . 1-9, os chefes dão carros e bois. Na
segunda, vv. 10-88, há uma relação minuciosa dos
presentes trazidos por eles.
Os chefes, responsáveis pelas casas ancestrais,
são os mesmos líderes do povo que auxiliaram
Moisés com o recenseamento (v. 2; c f o comentário
sobre 1,4-19a). Esses homens contribuem com seis
carros e doze bois para uso no transporte do san­
tuário (v. 3). Os veículos e animais carregarão os
objetos sagrados na longa jornada pelo deserto.
No padrão estilístico da palavra do S e n h o r ,
falada e obedecida (vv. 4.6), a Moisés é ordenado
que receba os presentes e entregue os carros aos
levitas para que os usem segundo a necessidade do
ofício de cada um (v. 5). Moisés dá dois carros com
quatro bois aos guershonitas (v. 7), responsáveis
pela tenda e por todos os cortinados e cobertas de
pano (3,25-26; 4,24-26); e quatro carros com oito
bois aos meraritas (v. 8), que cuidam da estrutura
material do santuário (3,36-37; 4,31-32). Somente
os qehatitas, que cuidam dos objetos sagrados, in­
clusive da arca (3,28b.31; 4,4-15), têm de transpor­
tar nos ombros as cargas cuidadosamente cobertas
(v. 9).
O r e s ta n t e d o te x to ( w . 10-88) c o n s is te n a o r ­
d e m d o S e n h o r p a r a q u e a s o f e r e n d a s tr a z id a s p e lo s
c h e f e s p a r a a d e d ic a ç ã o s e ja m a p r e s e n ta d a s e m d ia s
s u c e s s iv o s (vv. 10-11); d á u m a d e s c r iç ã o r e p e titiv a
e d e ta lh a d a d o s p r e s e n te s o f e r e c id o s p e l o s líd e r e s
(v v . 12-83) e u m r e s u m o f i n a l , c o m a c o n t a g e m d o
(vv. 84-88).
n ú m e r o to ta l d e p r e s e n te s
Embora os lideres sejam os mesmos citados
como assistentes de Moisés em 1,5-15, a seqüência
corresponde à das tribos no acampamento em 2,1-34
e, mais uma vez, na ordem da caminhada em 10,14-28
(cf o comentário sobre 2,1-34). A posição privile­
giada do grupo de Judá reflete a importância dessa
tribo no restabelecimento do centro religioso para o
povo que volta do exílio.
Os presentes entregues por todos os chefes são
idênticos na ordem e na quantidade. São relatados
em fórmula precisa, exceto por ligeira variação gra­
matical no V 19. As únicas mudanças estão nos
nomes dos líderes e das tribos. Os chefes trazem
presentes para todas as oferendas regulares — holo­
causto, sacrifício pelo pecado e sacrifício de paz.
Também trazem bandejas de prata e bacias de prata
cheias de farinha amassada no azeite para a ofe­
renda e uma taça de ouro cheia de perfume. Essa
descrição exaustivamente repetitiva e detalhada das
oferendas enfatiza a generosidade dos chefes e tem
como intenção o exemplo e a exortação a respeito
das provisões para o lugar do culto e suas celebra­
ções cultuais. E intencional a não-especificação das
oferendas. O foco não é desviado da liberalidade
em dar. 157
 NÚMEROS 8
O texto conclui com uma espécie de relatório
contábil do número de presentes entregues por oca­
sião da dedicação do altar (v. 84a). Há uma relação
precisa dos numerosos presentes (v. 84b), do peso
dos metais preciosos (vv. 85-86) e do número de
cada espécie de animal oferecido (vv. 87-88) para
revelar a extensão da generosidade dos chefes ao
entregar tais presentes para o culto de Deus.
Essa exibição de presentes é conclusão apro­
priada para a preparação do santuário e do culto
dentro dele. A intenção do autor sacerdotal ao re­
criar esse cenário ideal no deserto é que seja segui­
do na comunidade pós-exílica, na qual o povo de
Israel, apropriadamente, se reúna em tomo da Pre­
sença no meio dele, na qual tudo que é impuro seja
purificado, onde a consagração total seja incenti­
vada, e na qual o povo tenda ao culto assíduo e
contribua com generosidade para o sustento do culto
e dos sacerdotes.
7,89 A voz. Acrescentado à descrição do povo
de Deus reunido em tomo da Morada, pronto para
0 culto, está um breve texto que por si só parece
incompleto, mas na realidade conclui mais que o
capítulo ao qual está ligado. O v. fala de Moisés
entrando na tenda do Encontro para falar com o
S e n h o r ( c f . Ex 33,7-11). Embora Moisés ouça “a
voz”, a mensagem se perde para o leitor. E provável
que o texto tenha o propósito de transmitir a idéia
de que a presença divina habita, na verdade, o lugar
santo e dali fala ao povo por intermédio de Moisés.
O propósito de toda a preparação da morada é ouvir
a voz do S e n h o r .
No Sinai, onde as instmções para a construção
da morada foram comunicadas a Moisés, o S en h o r
prometeu que quando o lugar santo estivesse comple­
to, “Lá eu te encontrarei e, do alto do propiciatório,
entre os dois querubins sobre a arca do Documento,
comunicar-te-ei todas as ordens que preciso dar-te
para os filhos de Israel” (Ex 25,22). Nosso texto é o
cumprimento direto da promessa do S en h o r .
O “propiciatório” é uma placa de ouro coloca­
da sobre a arca, onde está guardado o documento
da aliança (cf. Ex 26,34). Em ambas as extremi-
' dades do propiciatório há querubins de frente um
para o outro, com as asas estendidas em uma es­
pécie de pálio sobre a arca. É o lugar mais alto de
expiação, onde, no dia do Grande Perdão, o sacer­
dote queima incenso e asperge o sangue do sacri­
fício para purificar o povo de todos os pecados (Ex
25,17-22; 37,6-9). Neste lugar, o povo volta-se no­
vamente para a aliança e ouve a voz que o liga ao
S enhor.
8,1-4 O candelabro. Continuam as atividades
para aprontar o acampamento como o lugar onde o
S e n h o r está presente e é cultuado. De acordo com
a palavra d o S e n h o r ( vv . 1.3), Aarão acende as sete
lâmpadas. Esse acontecimento é o auge do que
fora ordenado no Sinai. Instruções para o material
158 e o desenho do candelabro foram apresentadas era
Ex 25,31-40. O V. 4 corresponde exatamente a essa
descrição. Ex 37,17-24 faz um relato detalhado da
construção do candelabro. Finalmente, o candelabro
é posto contra a cortina do lado sul da tenda do En­
contro, defronte à mesa no lado norte (Ex 40,22-25).
Em nosso texto, a ênfase está na direção da luz
“à frente do candelabro” (vv. 2-3; cf. Ex 25,37).
Essa posição dos pavios das lâmpadas de óleo é
necessária para focalizar luz em uma direção. Como
única fonte de luz na tenda do Encontro, os pavios
são colocados para lançar luz sobre a mesa onde é
colocado o pão de oferenda (Ex 40,23).
8,5-26 Purificação dos levitas. A contínua
ênfase na completa dedicação ao S e n h o r concen­
tra nossa atenção no ritual para a consagração dos
levitas. Primeiro, o texto descreve os ritos e também
os propósitos da dedicação dos levitas no modelo
da palavra divina dada (w. 5-19) e obedecida (vv.
20-22), depois determina a idade limite para o ser­
viço levítico (vv. 23-26).
Antes, nos capítulos 3 e 4, aprendemos sobre o
recenseamento e as funções dos levitas. Aqui a ênfase
está nos levitas como oferenda especial ao S e n h o r .
Eles “pertencem ao S e n h o r ” (vv. 14.16.18), são to­
mados “do meio dos filhos de Israel” (vv. 6.14.16.18)
e “doados” (w. 16.19) para o serviço, como contri­
buição especial (vv. 11.13.15.21; veja a argumenta­
ção abaixo sobre o gesto de apresentação).
Quando o levita alcança a idade de serviço,
submete-se a um rito de purificação (v. 7). E primei­
ro aspergido com a “água lustrai”, isto é, a água
que realiza o perdão dos pecado^. Depois passa a
navalha em todo o corpo, dessa forma removendo
toda imperfeição e fazendo com que o cabelo futuro
cresça puro e limpo. Por último, lava as vestes para
tomá-las puras, como os israelitas fizeram no Sinai
quando se prepararam para a presença divina (Ex
19,10.14).
Esses levitas distinguem-se claramente do sa­
cerdote que é consagrado com óleo (Ex 29,7; Lv
8.12) e adornados com vestes completamente no­
vas (Ex 28,40-43; 29,8-9; Lv 8,13). Os levitas são
homens tomados do meio do povo para representar
o povo. Para dramatizar essa representação, os levi­
tas vêm diante da comunidade reunida. O povo
“lhes impõe as mãos” (w . 9-10). A dedicação dos
levitas substitui a consagração dos primogênitos
de todas as famílias israelitas (vv. 16-18; cf. 3,11­
13.40-51). Desse modo, os levitas servem no lugar
e em nome da comunidade. Seu serviço no cuidado
do santuário é uma espécie de proteção para que
nenhum mal aconteça a quem quer que se aproxime
do santuário de maneira indigna (v. 19).
Para o sacrifício, os levitas trazem oferendas
para um holocausto e um sacrifício pelo pecado (vv.
8.12) . Os levitas põem as mãos sobre a cabeça dos
animais para demonstrar que se entregam totalmente
a Deus. Um novilho e a farinha, como um banquete.

simbolizam a união entre o S e n h o r e os levitas e,
assim, são totalmente consumidos. O outro novilho
é oferecido para o sacrifício pelo pecado.
O sacerdote participa, apresentando os levitas
como “oferenda apresentada” (vv. 11.13; também
vv. 15.21). Em outras ocasiões, o ritual seria para
0 sacerdote pôr parte do sacrifício nas mãos do
ofertante, que o devolvería ao sacerdote. O sacer­
dote recebería essa parte como a que lhe cabia.
Esse movimento de dar e receber de volta e dar ao
S enhor assemelha-se a um aceno. Nesse dia de de­
dicação, 0 sacerdote recebe o próprio levita que é
dado como a parte de todo o Israel para uso e ser­
viço do sacerdote (vv. 13-14; veja 3,5-10). O levita
entra no serviço do santuário subordinado aos sa­
cerdotes aaronitas (v. 19). Pertence ao S enhor e
toma conta do lugar onde o S enhor habita no meio
do povo.
O levita dedica-se ao serviço especial do san­
tuário apenas durante a flor da vida. Os limites de
idade estão entre vinte e cinco e cinqüenta anos
(vv. 24-25). Aparentemente, o tempo para iniciação
no serviço varia conforme a necessidade e o número
de homens disponíveis. No capítulo 4, a idade para
o início do serviço é trinta anos (vv. 35.39. 43.47);
em outros textos, a idade inicial é vinte (IC r 23,24;
2Cr 31,17; Esd 3,8). Não há variações para a idade
de aposentadoria do serviço. Quando o levita alcan­
ça cinqüenta anos, pode auxiliar no trabalho dos
levitas mais novos, mas não pode mais ser respon­
sável por funções determinadas (v. 26).
9,1-14 A segunda Páscoa. Um novo impulso
é criado com uma série de preparativos finais para
a partida do deserto do Sinai. E o tempo prescrito
para a celebração da Páscoa (vv. 1-5), celebrada
pela primeira vez na véspera da libertação da escra­
vidão no Egito (cf. Ex 12-13). A legislação para
celebrar a festa é imposta por Moisés no estilo das
ordens do S enhor (vv. 1-3), seguida pela execução
obediente da ordem (vv. 4-5). Moisés ordena ao
povo que celebre a festa na mesma data e ocasião,
isto é, no início do ano, no mês de Abib, ao entar­
decer do dia catorze (vv. 2-3.5; cf. Ex 12,2.6.18;
13,4; Lv 23,5).
O restante do texto apresenta situações da vida
real que interferem com a observância da Páscoa.
Encontramos aqui um exemplo de novas instruções
que se tornam o precedente para a prática posterior.
O povo consulta Moisés a respeito desses proble­
mas, e Moisés busca orientação do S enhor para
resolvê-los (v. 8; c f 15,34; 27,5; Lv 24,10-23 para
outros exemplos de busca de decisão do S enhor).
A primeira situação é a de impureza. O que
deve fazer quem se tomou ritualmente impuro pelo
contato com um cadáver (v. 6; c f 19,11-22), mas
que deseja participar da festa (v. 1)1 A instração
dada em resposta inclui outra situação — a da
pessoa que “estiver fazendo uma longa viagem” (v.
10). Embora o caso de impureza reflita a situação
NÚMEROS 9
do deserto, este último caso sugere um tempo poste­
rior, quando as pessoas viajavam ao exterior e pre­
valecia a prática de observar a festa no santuário
central (cf Dt 16,2; Esd 6,16-22).
A resposta a essas situações estipula que uma
segunda festa pode ser celebrada um mês mais tarde
na mesma hora e de acordo com todas as leis para
a festa (w. 11-12; c f Ex 12,8-10). Segundo esse
dispositivo, quem está impuro pode ser purificado e
quem está ausente em viagem pode observar a festa
nessa data posterior. Que essa legislação suplemen­
tar era realmente observada é evidente no caso de
Ezequias. O Cronista (2Cr 30,1-5) registra a ocasião
em que Ezequias convidou o povo das tribos seten­
trionais para que viessem a Jerusalém para a festa.
A fim de acomodar a situação, naquele ano a festa
da Páscoa foi observada durante o segundo mês.
Entretanto, esse dispositivo não deve ser inter­
pretado erradamente para isentar, por qualquer ra­
zão, as pessoas da observância da festa no dia espe­
cificado. Pelo tom do v. 13, deduzimos que só cir­
cunstâncias acidentais ou situações que fogem ao
controle são isenções legítimas. Quem se exime
dessa observância comunitária por razões de negli­
gência provoca a exclusão da comunidade para si
mesmo. O texto diz que “será cortado de sua paren-
tela” (v. 13).
A segunda situação diz respeito a migrantes
ou estrangeiros que desejem celebrar a festa. É uma
questão que deve ter surgido muitas vezes no decor­
rer da história israelita. O problema também é trata­
do em Ex 12,43-49, nos preceitos para a festa da
Páscoa. O que encontramos em Números correspon­
de exatamente. O migrante que aceitou a circunci­
são, “que mora entre vós” (v. 14), o que significa
alguém que aceitou o Deus dos israelitas, pode par­
ticipar da festa. Entretanto, para esses indivíduos
não há exceções das normas e dos preceitos. Obser­
varão a festa exatamente da mesma maneira que o
natural da terra.
9,15-23 A nuvem e a Presença. Chegou a hora
da partida do local do deserto. Nesse ponto, chega
ao fim o grande evento no Sinai. A Morada está
completa; está cheia da “glória do S enhor” e “a
nuvem cobriu a tenda do Encontro” (Ex 40,34-35).
A nuvem é o sinal visível da presença divina
na morada. Onde ela é visível, o S enhor está pre­
sente. Ela manifesta o S e n h o r “no meio deste povo”
(Nm 14,14). A nuvem guiou o povo na fuga do
Egito (Ex 13,21-22) e escondeu-o dos egípcios que
se aproximavam (Ex 14,19.24). Quando a nuvem
está visível sobre a tenda do Encontro, Moisés entra
na tenda para falar com o S e n h o r (Ex 33,9-10; Nm
12,5). Essa mesma nuvem determinará os movi­
mentos de Israel na longa caminhada pelo deserto
(Ex 40,36-38; Nm 10,12). Paira sobre a Morada
durante o dia e, à noite, assume a aparência de fogo
(vv. 15-16). 159
 NÚMEROS 10
Com o centro na presença do S enhor no meio
do povo sob o símbolo da nuvem, o autor salienta
dois pontos importantes para as gerações de fiéis
que lerão ou ouvirão a história repetidamente. O
primeiro é que a nuvem determina a duração da
permanência de Israel em determinado lugar (vv.
19-22). Às vezes a estada é longa; às vezes dura só
alguns dias; outras vezes é só do entardecer até de
manhã. As horas de partir e montar o acampamento
não são, de modo algum, autodeterminadas. Quan­
do o povo inicia a caminhada, cada fase do movi­
mento será em resposta à nuvem.
Segundo, a afirmação enfática é que o S enhor
fala por meio da nuvem. Duas frases enfatizam
que os israelitas obedecem a ordem do S enhor para
acampar e partir. Movem-se “segundo a ordem do
S enhor” ( vv. 18.20.23), expressão usada sete ve­
zes; “asseguravam o serviço ao Senhor” e “garan­
tiam o serviço do Senhor” ( v. 23). Israel adapta-se
totalmente à vontade de Deus em todos os passos
do caminho na longa viagem para a terra. A ima­
gem é de uma época ideal, quando o povo ouve a
voz de Deus e obedece voluntariamente às instru­
ções e ordens divinas.
10,1-10 Duas trombetas de prata. Nossa aten­
ção volta-se da nuvem como presença orientadora
do S enhor para as trombetas de prata, instrumen­
tos usados para reunir e movimentar a comunidade
(v. 2). Conhecida do período da comunidade pós-
-exílica, a associação das trombetas com a geração
do deserto reforça a percepção de que o autor sacer­
dotal pretende unir a comunidade ideal do deserto,
reunida em tomo do lugar santo, à comunidade
devota do período mais tardio, quando o povo está
sendo instruído nos ideais para viver apropriada­
mente na presença de um Deus santo.
Essas trombetas soam em um toque contínuo
para convocar a comunidade. O verbo específico
“soar” é usado nos vv. 3-4 e novamente nos vv. 7a.
8.10 para indicar o tipo de sinal. Quando ambas
soam, toda a comunidade está sendo chamada para
se reunir (v. 3); quando apenas uma soa, só os
chefes estão sendo chamados (v. 4).
O sinal para partir, quer em viagem, quer para
a guerra, é uma série de toques breves modulados.
As trombetas de prata são mencionadas aqui porque
o povo está prestes a iniciar a viagem. Os prepa­
rativos já descritos nos capítulos anteriores, agora
estão completos e o povo está pronto para avançar
sob a proteção orientadora do S enhor. Quando é
dado o primeiro sinal, parte o grupo de Judá no
lado leste do acampamento (v. 5). Ao segundo sinal,
segue-se o grupo de Rúben, estacionado ao sul; de­
pois 0 grupo de Efraim, do lado oeste do acampa­
mento e, por fim, o grupo de Dan, do lado norte
(V. 6 ; cf. à p. 150, a disposição das tribos em tomo da
Morada). As tribos são preparadas para partir de forma
160 ordeira e na ordem de precedência.
O restante do texto regula o uso das trombetas
depois que o povo estiver em sua “terra” (v. 9a). Soar
as trombetas é tarefa dos sacerdotes (v. 8). A práti­
ca é muitas vezes mencionada na literatura do pe­
ríodo pós-exílico (cf. ICr 15,24; 16,6.42; 2Cr 7,6;
Ne 12,35.41). As trombetas são usadas para assina­
lar a entrada em combate (v. 9; c f 2Cr 13,12). Soam
com mais freqüência para anunciar a observância
das diferentes festas, convocar o comunidade para o
culto e expressar ação de graças em ocasiões alegres
(V . 10; c f 2Cr 5,12-13; 29,26-28; Esd 3,10-11).
O texto nos diz que a razão de se soar a trom-
beta é fazer com que sua lembrança seja “evocada
diante do S enhor” e serem “salvos” (v. 9b; c f tam­
bém o V. 10b). O som da trombeta é um ato de
oração e dependência, um chamado para que Deus
esteja presente, em especial em situações de neces­
sidade e celebração.
Essa passagem e, na verdade, toda a seção nos
caps. 1-10, terminam com a fórmula de reconhe­
cimento “Eu sou o S enhor, vosso Deus” (v. 10c;
para uma explição, c f também p. 146). Foi o S e­
nhor quem convidou Israel para o relacionamento
único que resultou em tantas bênçãos. É o S enhor
que atua nesse momento para estar com o povo,
guiá-lo, protegê-lo e levá-lo com segurança para
sua terra.
NA VIAGEM DO SINAI PARA MOAB
Nm 10,11-22,1
Até aqui, 0 povo esteve acampado no deserto
do Sinai. Agora, inicia uma viagem que incluirá
algumas paradas no decorrer de muitos anos e ter­
minará na planície de Moab, localizada além do
rio Jordão, em frente à Terra Prometida. Esta seção
começa com a partida do Sinai (10,12) e termina
com a chegada em Moab (22,1). Do princípio ao
fim observamos a fórmula de viagem e a menção de
diversos locais que deixam o leitor ciente do movi­
mento de um lugar para outro (10,12.33; 11,35;
12,16; 20,la.22; 21,4.10-20; 22,1). O autor sacer­
dotal usa uma estrutura baseada na tradição da ca­
minhada no deserto para apoiar o relato de eventos
que acontecem pelo caminho.
Muitas histórias sobre a ameaça de perigo, a
falta de comida e de água, facções tribais e ciúmes
foram transmitidas dentro das famílias que fizeram
a caminhada. Essas narrativas tomaram-se a fonte
da qual nosso autor reuniu material para falar sobre
as provações da caminhada. As histórias encontram­
-se nos capítulos 11-14; 16-17; 20-21. Sua narração
é viva e bastante diferente da linguagem estilizada
dos capítulos anteriores. Dão ao leitor um vislumbre
das lutas bem reais do povo ao qual Deus favorece­
ra. Ensinam lições importantes sobre as conseqüên-
cias para indivíduos e grupos que deixam de seguir
a Deus e aos chefes designados. Voltada para a co-

munidade que está de passagem do deserto do Exí­
lio para sua terra e em processo de restabelecimento
e reorganização como comunidade de fé, as narra­
tivas dão lições de história para a vida futura.
Disseminados por toda a narração destes capí­
tulos, encontramos tesouros da poesia antiga (10,35-
36; 12,6-8; 21,14-15.17-18. 27b-30). Estes fragmen­
tos sobreviveram do tempo do tempo que celebram
e permitem ao leitor ouvir o que o próprio Israel
cantava, recitava e lembrava.
Como uma espécie de interrupção da ação dra­
mática desses capítulos, o autor insere alguns precei­
tos nos capítulos 15, 18 e 19. Não há nenhuma li­
gação aparente entre o conteúdo das narrativas e
esses preceitos cultuais. São dirigidos às gerações
futuras, fomecendo-lhes diretrizes para viver de modo
santo na presença de um Deus santo.
Acontecim entos no deserto de Paran
(10,11-19,22)
10,ll-28a Partida do Sinai. A partida do deser­
to é, mais uma vez, associada pela data à experiência
do Êxodo. Depois de quase um ano de atraso no
Sinai — desde o primeiro dia do terceiro mês (Ex
19,1) até o vigésimo dia do segundo mês, um ano
mais tarde (Nm 10,1 la) — e de preparativos finais
encurtados para apenas dezenove dias (cf. Nm 1,1)
é dado o sinal para o início da marcha.
A nuvem que cobria a morada sai do lugar para
indicar a partida do acampamento (v. 1l,b; cf. a dis­
cussão sobre a nuvem em 9,15-23). A nuvem guiará
os israelitas em movimento até acomodar-se sobre o
deserto de P^ran, primeiro local de acampamento
na caminhada contínua (v. 12). Embora a localização
não seja certa, é provável que essa primeira parada
fosse em Wadi Feiran, oásis na península seten­
trional do Sinai, ao sul do Négueb (cf. 13,17). O no­
me Paran sugere que o autor tem em mente o bem
conhecido oásis Feiran.
A ordem da marcha nos vv. 13-28 corresponde
à organização designada no acampamento e às
instruções para a partida em 2,1-31, incluindo mais
uma vez a menção aos chefes das tribos individuais.
O grupo de Judá do lado leste da morada ocupa o
primeiro lugar e lidera a marcha (vv. 14-16). Depois
deles, partem os levitas, que transportam os aces­
sórios da morada (v. 17; 2,17; veja as funções dos
guershonitas e meraritas em 4,21-33). Em seguida
vêm as três tribos chefiadas por Rúben (vv. 18-20)
e atrás delas os objetos sagrados da morada leva­
dos pelos qehatitas (v. 21; cf. 4,4-20). Os objetos
sagrados são separados da estrutura e das cober­
turas para que a tenda possa estar montada no novo
local em preparação para abrigar a arca, o altar, a
mesa e o candelabro no novo acampamento (v. 21b).
O grupo efraimita segue os objetos sagrados (vv.
22-24), atuando, sem dúvida, como retaguarda. Fi­
nalmente, “na retaguarda de todos os acampamen­
NÚMEROS 11
tos”, o grupo de Dan segue em último lugar (w .
25-27).
10,28b-32 O cunhado de Moisés como guia.
A necessidade bastante prática de sabedoria huma­
na na caminhada pelo deserto equilibra a história
que se concentrou exclusivamente na orientação
divina. Moisés pede ao cunhado, Hobab, o midianita
(v. 29a), para servir de “olhos” para o povo, porque
ele conhece “os lugares onde devemos acampar no
deserto” (v. 31). Os midianitas são nômades que
vivem no deserto e conhecem suas rotas e lugares
para acampar. Hobab é do clã de Siporá, mulher de
Moisés, que era, segundo uma tradição, filha de
Reuel (cf Ex 2,15-22). Em outras passagens, o pai
do sogro de Moisés é litrô (veja Ex 3,1; 4,18; 18). As
tradições concordam que o sogro era sacerdote de
Midian (Ex 2,16; 18,1).
Em seu pedido, Moisés promete a Hobab uma
participação na felicidade que o S e n h o r prometeu na
terra (w. 29b.32). A inferência é que os que se asso­
ciam ao povo do S e nhor participam dos benefícios
que resultam da promessa de aliança do S e n h o r .
A princípio, Hobab recusa o convite, porque
prefere voltar a seu povo (v. 30). Essa passagem não
relata a resposta final de Hobab. Supomos que sua
resposta foi afirmativa, pois os parentes de Moisés
estão relacionados entre os que entram na terra (cf
Jz 1,16; 4,11; ISm 15,6. Os qenitas mencionados
nesses textos fazem parte do grupo midianita).
10,33-36 A arca precede no deserto. Mais
uma vez, a atenção se volta para a presença contí­
nua do S e n h o r no meio do povo. No acampamento,
a nuvem se elevou sobre o santuário (v. 11) e, na
marcha, a nuvem se move com “a arca da aliança
do S e n h o r ” ( v . 33) para guiar o povo. Tradicional­
mente o trono portátil da presença invisível do S e ­
n h o r , a arca é mencionada de maneira especial para
mostrar que, na verdade, o S e n h o r caminha com o
povo e o lidera.
Inserido aqui está um antigo clamor ritual, re­
citado durante muitos anos sempre que o povo de
Israel entrava em combate (c f SI 68,2; 132,8). Um
hino é entoado quando a arca parte com as tropas
(v. 35), outro quando volta com elas ao acampa­
mento (v. 36). Os hinos sustentam a tradição de que
o S e n h o r , o Deus dos exércitos, marcha à frente
para derrotar os inimigos.
A linguagem do hino é clara. Quando a arca
se move, o S e n h o r se eleva e vai adiante do povo
para dispersar os inimigos. Quando a arca descan­
sa, o S e n h o r volta e se senta entronizado no meio
das tropas.
Segundo a tradição, a arca conduziu o povo
através do deserto e até aterra (cf Js 3,1-8), A arca
permanece com o povo no acampamento quando
ele se queixa e se mostra infiel.
11,1-3 Descontentamento emXabeerá. Assim
que 0 povo saiu do Sinai, fez o que fará muitas 161
 NÚMEROS 11
outras vezes — “se entregou a lamentações, e o
Senhor as ouviu com desagrado” (v. 1). Este pri­
meiro relato do descontentamento do povo funcio­
na como introdução resumida, pois estabelece um
padrão de comportamento que reaparecerá muitas
vezes nas histórias dos acontecimentos no deserto.
Há um ciclo previsível de ações: o povo se entrega
a lamentações (v. la); a cólera do S enhor provoca
0 castigo (v. Ib): 0 povo lança brados a Moisés
para obter alívio (v. 2c).
Na verdade, há dois temas separados que essas
narrativas realçam. Um é o da revolta e do castigo
como característica da relação de Israel com o
Senhor no deserto (cf. também Ex 14,11-22; 15,23-
25a; 16,2-15; 17,1-7, embora a narrativa de Núme­
ros seja altamente estilizada em comparação). O
outro tema é o de Moisés como intercessor a quem
0 S enhor responde com perdão e libertação. Este
último tema é especialmente importante. A posição
de liderança única de Moisés e sua autoridade são
questões de tal interesse que as controvérsias a res­
peito dele formam a base das narrativas nos capí­
tulos 11-12; 16-17.
O incidente em Tabeerá é narrado para introdu­
zir os dois temas principais. Não é explicada a razão
pela qual o povo se entrega a lamentações nem são
dados detalhes sobre o fogo enviado como castigo.
O ciclo de revolta e perdão move-se rapidamente
para a explicação do nome do lugar (v. 3). O nome
Tabeerá deriva do verbo “queimar” ou “consumir”.
Muitas vezes eram contadas histórias para explicar
0 nome de lugares. Este aspecto é, de fato, uma
característica das narrativas mais antigas (cf., por
exemplo, Gn 16,13-14; 19,20-23; 21,31; 28,19-22;
Ex 15,23; 17,7).
11,4-35 Reclamação em Qibrot-Taavá. Outro
incidente, mais complexo em sua estrutura, também
termina com a explicação do nome do lugar. Qibrot-
-Taavá significa “sepulcros da cobiça” (v. 34). A
história é sobre a reclamação do povo por não ter
carne suficiente para comer no deserto. Em resul­
tado, o povo é alimentado com codomizes (w. 4-
9.10.13.18-24a) e também é punido por sua cobiça
(w . 31-33).
Entrelaçada ao relato sobre o desejo de carne
está uma história sobre a participação na liderança
de Moisés (vv. ll-12.14-17.24b-30). Examinaremos
cada história separadamente e veremos como se
combinam.
O relato das codomizes contém os elementos
de uma típica história de lamentação. Dois gmpos
independentes de pessoas — o elemento estrangeiro
e os israelitas — lamentam a falta de came (v. 4).
Sentem saudades do tempo que passaram no Egito,
quando tinham abundância de peixe e vegetais (v. 5).
Estão insatisfeitos porque tudo que têm para comer
é o maná, com o qual diariamente fazem pães com
gosto de bolo amassado no azeite (w . 6-9; cf. Ex
162 16,13-14.31).
“A ira do S enhor se inflamou em viva cólera”
por causa da demonstração de cobiça dos israelitas
(v. 10). Moisés e o S enhor respondem às lamen­
tações. Em vez de responder com intercessão,
Moisés sente pena de si mesmo. Lamenta que sozi­
nho tenha de prover a grande multidão, dizendo:
“Onde encontrarei came para dar a todo este povo
que me segue em lágrimas...?” (v. 13). Moisés supõe
que é sua responsabilidade encontrar came, mas
expressa sua incapacidade de fazê-lo. Em vez de
buscar a ajuda do S enhor, demonstra ressentimento
pela posição em que se encontra.
O S enhor, entretanto, ignora a lamentação de
Moisés e lhe fala em sua capacidade como mediador
(w . 18a.24a). O Senhor responde, não à preocupação
expressa por Moisés, mas sim diretamente ao que o
povo dissera. Deixa claro que, na verdade, o povo
deseja voltar para o Egito (w. 18.20b), dessa forma
rejeitando a libertação divina. O Senhor instrui Moisés
a dizer ao povo para se “santificar” (v. 18), pois rece­
berão came em tal abundância que ela lhes provocará
fastio (vv 19-20). Moisés aparteia com uma dúvida
sobre a capacidade do Senhor para fornecer a quan­
tidade de carne necessária para satisfazer a tanta
gente (w. 21-23).
No cumprimento da palavra do S enhor (vv.
31-34), Moisés está conspicuamente ausente. O
S enhor envia codomizes do mar em grande abun­
dância. O povo as recolhe (vv. 31-32), mas, antes
de começarem a comê-la, o Senhor envia uma praga
para punir os cobiçosos por sua lamentação (v. 33).
Assim, o lugar foi chamado “sepulcros da cobiça”
porque ali foram sepultados os que se deixaram
levar pela cobiça (v. 34).
Comparando os elementos desta narrativa com
os descritos no incidente em Tabeerá (vv. 1-3), fica
claro que a resposta de Moisés à situação faz a
diferença. Quando Moisés intercede pelo povo, o
S enhor responde com o perdão (v. 2). No incidente
das codomizes, falta a intercessão de Moisés e o
resultado é a cólera do S enhor. A o colocar essas
histórias lado a lado, o autor está deliberadamente
dando destaque à eficácia da intercessão de Moisés.
O lamento de Moisés (vv. 11-15) fornece o elo
para a inclusão da segunda história a respeito da
participação na liderança de Moisés. A questão le­
vantada por esse lamento é que ele está sobrecar­
regado com a liderança de um povo que não é dele
(w . 12.14). Moisés vê isso como castigo (v. 11) e
sua mágoa é tão grande que a morte é preferível
(v. 15). Moisés não pede ajuda na liderança; pede
apenas o fim definitivo do jugo.
O Senhor ignora o desejo da morte de Moisés
e trata da questão de Moisés estar sozinho. Ordena
a Moisés que escolha setenta anciãos e os leve à
tenda do Encontro (v. 16; c f Ex 18,13-26 para a
tradição a respeito da escolha de juizes para ajudar
Moisés a cuidar do povo). O SEtfflOR to-mará “um
pouco do espírito que está em [Moisés]” e o porá

nos anciãos para que carreguem com Moisés “o
fardo do povo” (v. 17). Moisés faz exatamente como
0 S enhor ordenou (w . 24b-25a). Entretanto, nessa
execução é acrescentado um novo elemento. Na
participação do espírito de Moisés, nada é dito sobre
compartilhar o jugo da responsabilidade atribuída
a Moisés (v. 25b). Em vez disso, quando o espírito
pousa sobre os anciãos, eles profetizam (v. 25c).
Essa narrativa também apóia a singularidade da
posição de Moisés como líder. Outros podem profe­
tizar, mas não compartilham o fardo da responsa­
bilidade atribuída a Moisés — comunicar a pala­
vra do S enhor e levar o povo em segurança à Terra
Prometida (v. 12).
O tema de profecia ainda continua em outra his­
tória (w. 26-30). Eldad e Medad, embora não sejam
chamados de anciãos, estão entre os escolhidos por
Moisés. Em vez de ir à tenda do Encontro com os se­
tenta, permanecem no acampamento, onde o espírito
também pousou sobre eles, de modo que profetizam
(v. 26). Josué, jovem auxiliar de Moisés (cf Ex 33,11),
por alguma razão protesta contra isso e pede que
Moisés os proíba (w. 27-28). Em vez disso, Moisés
expressa o desejo de que “todo o povo do Senhor se
tomasse um povo de profetas, sobre o qual o Senhor
pusesse seu espírito” (v. 29). Não é o espirito de
Moisés, mas sim o espirito do Senhor que está sobre
eles. Moisés aprova a distribuição do espírito do Se­
nhor e não se preocupa com a perda do próprio pres­
tígio: “Estás ciumento por minha causa?” (v. 29). O
que parece ser uma diminuição da posição de Moisés
na participação do espírito leva, em vez disso, a outro
esboço da singularidade de Moisés no capítulo 12,
esboço que se concentra no papel profético.
Antes da história seguinte, há uma breve nota
sobre a caminhada do povo de Qibrot-Taavá a Haserot
(v. 35), local do próximo incidente de revolta.
12,1-16 Ciúme de Aarão e Miriâm. A oposi­
ção a Moisés vem dos que lhe são mais próximos.
A tradição afirma que Aarão e Miriâm acompanha­
ram Moisés desde a época do Êxodo (Ex 15,20-21;
cf. Ex 6,20). Miriâm e Aarão criticam Moisés por
duas razões: seu casamento com uma mulher kushita
(v. 1) e sua posição singular como porta-voz do
Senhor (v. 2). Temos aqui outra história contada no
padrão de revolta e perdão final pela intercessão de
Moisés (cf. a argumentação sobre 11,1-3).
A razão para a lamentação por Moisés ter se
casado com uma mulher kushita é obscura, pois só
há notícias de seu casamento com Siporá, que era
midianita (c f Ex 2,15-22; 4,24-26; 18,2-3). Se,
entretanto, a referência a Kushan é, na verdade,
um paralelo com Midian, como em Hab 3,7, então,
a critica é contra o casamento de Moisés com uma
estrangeira. Há, de fato, uma tradição registrada
em Nm 25,6-18 que polemiza o casamento com
midianitas, descritos como arquiinimigos de Israel.
Essa lamentação reflete um forte preconceito con­
tra Moisés, por causa de sua mulher estrangeira.
NÚMEROS 12
Na segunda lamentação, Miriâm e Aarão desa­
fiam Moisés com a alegação de que são tão profetas
quanto ele — “Porventura o S e n h o r ...não falou
também a nós?” (v. 2). Essa oposição revela ressen­
timento contra o papel exclusivo de Moisés como
mediador entre Deus e o povo, questão levantada na
narrativa anterior (11,26-30). Se todos podem ser
profetas, Moisés tem direito à exclusividade? A res­
posta e o castigo são tais que esclarecem (w. 6-8)
e confirmam (w. 13-14) a autoridade de Moisés.
Moisés não responde às lamentações. O texto
afirma que ele é “um homem muito humilde, mais
humilde que qualquer outro sobre a terra” (v. 3).
Essa afirmação tem sido interpretada como descri­
ção de alguém com honra pessoal e integridade de
caráter. Apesar da oposição, Moisés honradamente
cumpre sua responsabilidade como chefe, quando
lhe pedem para interceder por Miriâm (v. 13).
A resposta à lamentação vem diretamente do
S enhor, em forma de instrução (vv. 4-8) e castigo
(w . 9-15). Reprimindo a queixa, o Senhor convoca
Moisés, Aarão e Miriâm para a tenda do Encontro
(v. 4), chama Aarão e Miriâm de lado (v. 5) e os
instrui com um relato detalhado da diferença entre
Moisés e um profeta (vv. 6-8). As palavras do
Senhor expressam uma tradição sobre Moisés que
sobrevive em um fragmento de poesia antiga. O
poema afirma que o S enhor comunica-se com o
profeta em “visões” e “sonhos” (v. 6), mas, com
Moisés, o S enhor fala “de viva voz” e deixando-
se ver (v. 8). Assim, ele é colocado acima de todos
os outros como o mediador incomparável da pala­
vra do S enhor. Aarão e Miriâm são repelidos com
a última pergunta que defende a autoridade de
Moisés — “Como pois ousais criticar meu servo
Moisés?” (v. 8b).
Depois dessa repreensão, o S enhor se inflama
de cólera contra eles (v. 9). Miriâm fica “branca
como a neve” por causa da lepra (v. 10). Aarão
apela à ajuda de Moisés e se identifica com o
castigo em sua confissão de que ambos pecaram
(v. 11). Moisés clama pela cura de Miriâm e por
sua intercessão obtém o perdão do S enhor. A au­
toridade de Moisés é legitimada e confirmada com
a cura de Miriâm (vv. 14-16).
A lepra de Miriâm é descrita como sendo “bran­
ca como a neve” (v. 9) e comparada à aparência de
um natimorto (v. 12). Recupera-se plenamente de­
pois de passar sete dias fora do acampamento (vv.
14-15a). Para esclarecer a situação, verifiquemos a
lei que diz respeito ao leproso em Lv 13,9-17. Em
suma, a lei afirma que a pessoa leprosa é levada ao
sacerdote. Se a lepra cobre todo o corpo que se tor­
nou branco, o sacerdote declara puro o leproso. A
brancura de Miriâm e sua exclusão do acampamento
por sete dias não indicam uma lepra ativa, mas sim
extinta. Miriâm foi punida com uma condição pós-
lepra. Sua exclusão do acampamento é pelo período
necessário para verificar sua pureza. 163
 NÚMEROS 13
Durante o tempo da exclusão de Miriâm, o povo
permanece acampado em Haserot (v. 15b). Em se­
guida, parte e se instala no deserto de Paran (v. 16;
cf. o estudo sobre 10,11-28).
Os capítulos 13-14 apresentam o drama contí­
nuo da revolta do povo, mesmo quando avistam a
Terra Prometida. Estes capítulos desenvolvem-se a
partir de um número de tradições antigas que o
autor sacerdotal organiza em uma única explicação
para a longa caminhada de Israel no deserto. Em­
bora tenhamos uma única história, abordaremos o
conteúdo em seções para facilitar a leitura.
13,1-24 Os exploradores entram em Canaã.
Em obediência à palavra do S e n h o r ( v. 1), Moisés
envia uma delegação para explorar a Terra Prome­
tida (v. 2). Os israelitas estão acampados no deserto
de Paran (v. 3a), em Qadesh (cf. v. 26), oásis bem
conhecido, localizado a sudoeste do extremo meri­
dional do mar Morto. Estão diretamente ao sul da
Terra Prometida e próximos da entrada. Dali,
Moisés envia doze chefes, um de cada tribo, para
explorar a terra (vv. 3b-16).
Os nomes dos chefes estão em uma lista tribal
que é disposição um tanto livre da contida em 1,5­
15. Os chefes não são os mesmos que os que apa­
receram antes (cf também 7,12-83). Exceto por
Kaleb e Josué, que desempenham papel importan­
te nesta história (13,30; 14,6.24.30), os chefes não
são mais mencionados pelo nome. Há uma nota
especial: Moisés mudou o nome de Hoshea para
Josué (v. 16). Josué, que significa “O S e n h o r é
salvação”, relaciona-se com Hoshea, que significa
“salvação”. Josué recebe seu novo nome em prepa­
ração para seu futuro papel como sucessor de
Moisés (cf 27,12-23). E Josué quem fmalmente
conduzirá para a terra a geração seguinte de israe­
litas (14,30; c f Dt 31,7-8; Js 1,1-11).
Os exploradores são enviados ao Négueb, área
seca ao sul de Judá, para prosseguir até as terras
altas que se estendem pela parte central de Canaã
(v. 17). Chegam a Hebron, cidade localizada cerca
de 32 quilômetros ao sul de Jerusalém, onde vivem
três tribos (v. 22; c f Js 15,14; Jz 1,20). O território
em tomo de Hebron é conhecido por suas uvas, ro­
mãs e figos. Por isso o lugar se chama Wadi Eshkol,
“vale do Cacho” e é contada a história exagerada
sobre o cacho de uvas que exigiu dois homens para
ser transportado (vv. 23-24).
Uma tradição afirma que os homens explora­
ram desde o deserto de Sin até Lebô-Hamat (v.
21); isto é, foram da fronteira meridional ao limite
setentrional da terra. O deserto de Sin faz parte do
deserto de Paran perto de Qadesh (c f 20,1; 27,14;
33,36), e Lebô-Hamat, desfiladeiro perto do Orontes,
localiza-se no Líbano, na fronteira setentrional do
território de Israel (cf. 34,8; Js 13,5; Jz 3,3; 2Rs
14,25; Am 6,14).
Moisés instruiu os exploradores para que obti-
164 vessem informações sobre a terra e o povo (v. 18),
as cidades e as fortalezas (v. 19), o terreno e o solo.
Também lhes ordenou que trouxessem frutos da
terra (v. 20).
13,25-33 A volta dos exploradores. Depois
de quarenta dias, estada de duração significativa
para avaliar adequadamente a situação (v. 25), os
exploradores voltam a Qadesh, onde se apresentam
a Moisés, Aarão e toda a comunidade e lhes entre­
gam os frutos (v. 26). Relatam que a terra “mana
leite e mel” (v. 27), expressão que tradicionalmente
identifica a terra como a prometida pelo S e n h o r
(cf Ex 3,8.17; 13,5; 33,3 e muitas passagens do
Deuteronômio). Mas logo acrescentam que os ha­
bitantes são descendentes poderosos dos anaquitas
e que as cidades são bem fortificadas (vv. 28.31­
33). Prevalecia a tradição que os anaquitas eram um
povo numeroso, alto e forte (cf Dt 1,28; 2,21) que
precisava ser derrotado quando Israel entrasse na
terra (Js 11,21-22; 14,12.15). A afirmação de que
a população era misturada — amalequitas, hetitas,
iebusitas, emoritas e canaanitas (v. 29) — também
está de acordo com a tradição a respeito dos habi­
tantes antes da conquista. Os amalequitas encon­
travam-se perto do Sinai (Ex 17,8-16); os hetitas
eram primitivos habitantes de Hebron (Gn 23,13­
19); os iebusitas controlavam Jerusalém (2Sm 5,6­
9). Os emoritas eram primitivos habitantes de Canaã
mais tarde forçados a deixar as planícies costeiras
e se estabelecer nas terras altas. Faziam parte da po­
pulação canaanita nativa. Este último grupo esta­
belecera-se nos vales férteis e na região costeira.
Os exploradores descrevem um quadro ame-
drontador e recomendam que os israelitas desistam
da tentativa de entrar na terra porque nunca sobre­
viverão ao poder dos habitantes (vv. 31-33). Assim,
os exploradores desafiam a liderança do S e n h o r e
a promessa da terra a seu ancestral Abraão. De fato,
rejeitam a terra que o S enhor está prestes a lhes
dar. Somente Kaleb incentiva o povo a prosseguir
e expressa confiança no sucesso (v. 30). A exclama­
ção de Kaleb neste ponto prepara seu papel, ao lado
de Josué, como um dos chefes que confiam no Deus
de Israel (14,6-9). Segundo a tradição, os descenden­
tes de Kaleb controlavam o território abundante de
Hebron e seus arredores (Js 15,13-14; Jz 1,20). Esta
narrativa de Números explica a razão de Kaleb e seus
descendentes serem favorecidos com essa posse.
O relatório dos exploradores prepara o terreno
para a rebelião do povo. Nesse sentido, todo o capi­
tulo 13 funciona como introdução ao ciclo de revolta
e perdão que se segue no capítulo 14.
14,1-10 O protesto do povo. Toda a comuni­
dade murmura contra Moisés e Aarão por causa do
relatório dos exploradores (vv. l-2a). Quando deseja
nunca t e r saído do Egito, o povo rejeita o S e n h o r .
Temem o desastre que aguarda suas famílias e eles
próprios (w. 2b-3). Concluem que seria melhor vol­
tar para a segurança da escravidão no Egito e até
decidem nomear um chefe de sua escolha (w. 3b-4).

Moisés e Aarão respondem prostrando-se com
0 rosto por terra, sentindo-se impotentes (v. 5).
Kaleb e Josué, pesarosos, rasgam suas vestes (v.
6). Apelam à comunidade, lembrando que a terra
é boa (v. 7), que o S e n h o r prometeu a terra e os
levará a ela (v. 8). Exortam o povo a confiar no
S e n h o r que está com eles (cf. Ex 33). E lembram
ao povo que não precisa temer os habitantes, por­
que “a sombra de seus deuses afastou-se deles” (v.
9). A palavra “sombra” significa literalmente que
os habitantes estão expostos e são vulneráveis à
ferocidade do sol e, metaforicamente, que o S e n h o r
eliminou a proteção de seus deuses locais. Os habi­
tantes não têm nenhuma proteção e “nós os engoli­
remos de uma só vez”, isto é, serão destruídos com
facilidade.
As palavras de Kaleb e Josué não são bem re­
cebidas. O povo se rebela e ameaça apedrejá-los (v.
10a), e o teria conseguido se o S e n h o r não intervies-
se. “A glória do S e n h o r apareceu... sobre a tenda do
Encontro” (v. 10b). A frase “glória do S e n h o r ”
é sem-pre usada pelo autor sacerdotal para expres­
sar a revelação do S e n h o r em poder e majestade.
14,11-19 Castigo do povo e intercessão de
Moisés. O S e n h o r , manifesto a todo Israel, fala a
Moisés sobre o desprezo do povo e sua recusa em
acreditar, apesar de todos os sinais (v. 11). O S e ­
n h o r anuncia a extinção de todo o povo e promete
começar de novo, criando uma nação maior e mais
poderosa (v. 12).
A essa altura, Moisés intercede e persuade o
Senhor a abandonar esse julgamento severo (vv. 13-
19). Ele pede com coragem, usando como argumento
a fama do S enhor entre as outras nações (vv. 13-
16). Afirma que o Senhor é conhecido como um
Deus no meio do povo, um Deus que o acompanha
dia e noite. Se esse povo for aniquilado, as nações
terão motivo para dizer que o S enhor não teve o
poder de fazê-lo entrar na terra e, por isso, os massa­
crou no deserto. Moisés adverte que a honra e a po­
sição do S enhor entre os deuses está em jogo.
Citando uma fórmula confessional de Ex 34,6-
7, Moisés sugere que o poder do S enhor será me­
lhor demonstrado, não matando, mas com paciên­
cia, bondade, perdão e justo castigo do pecado (vv.
17-18). Moisés resume seu apelo pedindo que o
Senhor perdoe a iniqüidade do povo, como o pede
a grandeza do amor da aliança, exatamente como
0 S enhor perdoou-o muitas vezes desde o Egito
até aqui (v. 19). Moisés pede ao S enhor que pre­
serve 0 relacionamento da aliança que foi feita
quando o S enhor tirou o povo do Egito. Dessa for­
ma, ele apela à fidelidade do S enhor à aliança e,
ao mesmo tempo, reeonheee a completa liberdade
do S enhor para manter ou romper o relacionamento
com 0 povo. O perdão que Moisés pede é a preser­
vação do relacionamento entre o S enhor e o povo
e a decisão de não deserdar a comunidade atual
NÚMEROS 14
pela criação de uma nova nação a partir de Moisés
ou de qualquer outra pessoa. Como o único modo
de vida de Israel é o relacionamento com o S e n h o r ,
há lugar para castigo que não inclua a extinção da
aliança.
14,20-38 A sentença. O S e n h o r responde à ora­
ção de Moisés anunciando o perdão (v. 20), isto é,
a continuação do relacionamento fundamental da
aliança que é a base da existência de Israel. Mas
também há castigo. Na linguagem forte de um jura­
mento (v. 21; cf. também w . 28.35), o S e n h o r afir­
ma que aos que se rebelaram será negada a entrada
na terra por causa de sua infidelidade; “nenhum verá
a terra que prometi a seus pais” (v. 23). Somente
Kaleb, que confiou na promessa d o S e n h o r , entrará
na terra e seus descendentes a herdarão (v. 24; c f Js
14,6-15). Também Josué é poupado do castigo (vv.
30b.38; 32,12).
O S e n h o r continua com uma descrição precisa
dos membros aos quais será negada a entrada na
terra: todos os que não cessam de “protestar contra
mim” (v. 27) e os de mais de vinte anos de idade
que foram recenseados (v. 29). Somente os filhos, a
geração seguinte, entrarão na terra e dela usufruirão
(v. 31). Os israelitas são, assim, condenados a perma­
necer no deserto por quarenta anos, um ano para
cada dia da exploração (v. 34). Os filhos têm de
sofrer o pecado dos pais, extenuando-se com eles
no deserto até que o último da geração tenha morrido
(vv. 33.35). Embora a comunidade esteja sendo
punida, a aliança do S en h o r continua e perdura.
Há um julgamento mais imediato dos explora­
dores que instigaram os protestos com seu relató­
rio desencorajador. São atingidos por uma praga e
têm morte brutal (vv. 36-37).
Esta história de rebelião responde a duas per­
guntas. Primeiro, dá o motivo da estada prolongada
de Israel no deserto, de modo que toda a geração que
saiu do Egito ali pereceu. Como os israelitas rejei­
taram a terra são rejeitados para nela entrar. Segun­
do, explica porque Israel caminhou para o leste a
fim de entrar na terra pelaTransjordânia, em vez de
seguir o caminho mais direto a partir do sul. A ex­
plicação dada é que, como os amalequitas e canaani-
tas vivem nas planícies, Israel precisa voltar para o
sul e tomar o caminho que os levará ao redor do mar
dos Juncos (v. 25; cf. 20,14-22,1 para os detalhes da
viagem).
14,39-45 Invasão fracassada. Outra narrativa
de revolta surge da questão do caminho a ser to­
mado para entrar na terra. É um relato de fracasso
por causa da recusa em obedecer à palavra de Deus.
O povo se lamenta quando Moisés diz que é
preciso voltar e seguir para o sul longe dos ca-
naanitas e amalequitas (v. 39; c f vv. 25.43a.45).
Os israelitas admitem que estavam errados quando
ouviram o relato dos exploradores (13,27-33; 14,1-4)
e resolvem dirigir-se diretamente para o norte nos
contrafortes de Canaã (v. 40). Moisés adverte-os 165
 NÚMEROS 15
que estão sendo desobedientes. Avisa que o fracasso
é certo porque o S e n h o r não está em seu meio (w.
41-43). Este povo teimoso ousa partir sem a presen­
ça da arca e da liderança de Moisés e em oposição
à palavra do S e n h o r ( v. 44).
É uma narrativa de fiacasso. Demonstra as con-
seqüências de agir separadamente da palavra que é
a base para o relacionamento da aliança com o
S e n h o r . Israel enfrenta o inimigo por conta própria
e é perseguido até Hormá, cidade localizada na re­
gião de Beer-Sheba (v. 45; a derrota final de Hormá
está relatada em 21,1-3).
A longa seção nos capítulos 11-14 contém
cinco narrativas de rebelião: o incidente em Tabeerá,
a gula por came, o ciúme de Moisés, a rejeição da
terra e a invasão fracassada. Segue-se uma inser­
ção de cinco leis rituais que não têm ligação apa­
rente. Todas as instruções têm o propósito de guiar
a comunidade quando ela chegar à terra. Assim, as
leis voltam-se para o futuro. Refletem modifica­
ções que surgem da prática cotidiana.
15,1-16 Oferendas secundárias. Toda dimen­
são da vida pertence ao S e n h o r ; portanto, todas as
leis são diretamente atribuídas ao S e n h o r . Cada
uma das diretrizes é instrução explicita do S e n h o r
(v. 1). Todas concentram-se na ocasião em que Israel
tiver entrado na terra (v. 2).
A primeira lei descreve as quantidades de fari­
nha, azeite e vinho que devem acompanhar as “ofe­
rendas de agradável perfume” dadas para os diver­
sos sacrifícios (v. 3). A frase “de perfume agradá­
vel” significa que a oblação é agradável ao S e n h o r .
Baseia-se na idéia que Deus cheira e se deleita com
0 sacrifício apresentado em ocasiões de alegria.
Todo sacrifício, de um cordeiro (w. 4-5), de um
carneiro (vv. 6-7), de um novilho (vv. 8-10) ou de
uma cabra (v. 11), deve ser apresentado com um
peso proporcional de farinha, azeite e vinho. As
quantidades de farinha, azeite e vinho aumentam
conforme o tamanho do animal.
Não se sabe ao certo por que uma oferenda de
farinha e uma de vinho devem acompanhar todos
os sacrifícios. Talvez a idéia fosse oferecer uma re­
feição completa. Podia também ser a idéia de ofere­
cer os recursos naturais da terra (cf. Dt 7,13). Qual­
quer que seja o significado do sacrifício, o texto
diz respeito a dar a Deus uma oferenda completa
e aceitável.
Há uma nota adicional para reforçar que a ins­
trução aplica-se tanto aos israelitas como aos mi­
grantes (vv. 13-16). Afirma que o estrangeiro que
veio habitar entre os israelitas tem direitos iguais
e também as obrigações correspondentes. O deta­
lhe dessa nota sugere que a presença de “migrantes
residentes” é questão de importância considerável.
O princípio da lei — “Diante de Deus vós e o mi­
grante são iguais” (v. 15) — reflete uma atitude
básica de justiça que dá testemunho da autentici-
166 dade da fé israelita.
' 15,17-21 Tributo sobre o pão. A segunda
prescrição faz parte da categoria de primeiras coi­
sas que pertencem ao S e n h o r (cf. Ex 13,11-16; Dt
26,1-2; Nm 18,12-13). O texto concentra-se no
tempo futuro na terra (w . 18-19a) e aplica-se a
todas as gerações futuras (v. 21a).
O preceito identifica de modo especial o pão
feito do grão grosseiro tirado da eira (v. 20). Como
toda a colheita é dádiva divina, a primeira massa
feita com o cereal colhido pertence a Deus.
No período do Templo, o pão feito com a pri­
meira massa era apresentado ao sacerdote para que
O comesse. Essa oferenda simbolizava a devolução
a Deus de parte da abundância recebida e fazia
parte das provisões dos sacerdotes (cf. 18,13; Lv
23,10-11).
15,22-31 Sacrifícios pelo pecado. A terceira
instrução divide-se em duas seções: os sacrifícios
pelos pecados ou faltas “por inadvertência” ou invo­
luntárias (vv. 22-29) e o castigo pelo pecado preme­
ditado (vv. 30-31).
No caso das faltas involuntárias, é feita uma
prescrição separada para expiação quando a comu­
nidade estiver envolvida (vv. 22-26) e quando um
indivíduo estiver envolvido (vv. 27-29). Os sacrifí­
cios prescritos (w . 24.27) devem ser oferecidos
em expiação pelo sacerdote para que o pecado co­
metido por inadvertência possa ser perdoado (vv.
25.28). Mais uma vez há menção específica de
que o preceito se aplica igualmente ao israelita e
ao migrante (vv. 26.29).
Quando o caso é de pecado premeditado, uma
“injúria” contra o S e n h o r , nenhum sacrifício pode
absolver. De fato, o israelita ou migrante que ousa-
damente “desprezou a palavra do S e n h o r ” e “violou
os seus mandamentos” escolheu ser cortado da co­
munidade do povo de Deus. O castigo para ele é a
separação da comunidade.
15,32-36 O violador do sábado. O quarto
preceito é dado como solução para um comporta­
mento específico. O povo encontra um homem apa­
nhando lenha em dia de sábado (v. 32). O homem
“foi posto sob guarda porque não se havia determi­
nado qual a pena que lhe seria imposta” (v. 34). Q
caso em questão é exemplo da maneira como sur­
giam novos preceitos que seriam normativos para
situações futuras semelhantes (cf. o comentário so­
bre 9,6-13).
A lei do sábado afirma claramente que o traba­
lho é proibido (cf Ex 20,8-11) e a condenação à
morte é o castigo prescrito por desobedecer à lei do
sábado (cf Ex 31,14-15; 35,2-3). O que não está
claro é a forma de execução a ser usada no caso de
violação deliberada da lei.
A resposta é que toda a comunidade apedrejará
o homem fora do acampamento (v. 35). Essa pessoa
é, assim, excluída da comunidade de maneira sim­
bólica, ao ser levada para fora do acampamento, e
também de maneira física, pela sentença de morte

(v. 36). A estrita observância do sábado assumiu
importância maior depois do Exílio e continuou no
tempo de Jesus (cf. Jo 9,16).
15^7-41 As franjas das vestes. O quinto pre­
ceito faz da antiga prática de usar franjas nas bordas
da veste externa um requisito com significado espe­
cífico (cf. Dt 22,12). Essa prática sobreviveu até o
judaísmo (Mt 9,20; 14,36; 23,5; Mc 6,56; Lc 8,44).
As franjas são atadas com um fio de púrpura
(v. 38) e têm o propósito de atrair o olhar. Servem,
assim, de lembrete da presença e dos mandamen­
tos do S enhor ( v. 39). O ornamento externo tem o
propósito de lembrar o povo que um Deus santo
está no meio dele e que, para viver na presença de
um Deus santo, precisam observar os mandamen­
tos pelos quais a aliança é preservada. O cumpri­
mento dos mandamentos é o sinal de um povo
santo (v. 40).
A razão para observar a instrução é que o
S enhor está presente e continuará a estar com um
povo fiel. A fórmula “Eu sou o S enhor, vosso Deus
que vos tirou da terra do Egito para ser, para vós.
Deus" (v. 41) é um lembrete do próprio fundamen­
to da existência de Israel. Conclui a última instru­
ção e também a série de cinco instruções. O povo
é convidado a dar uma resposta obediente para
demonstrar lealdade à aliança. Se o relacionamen­
to da aliança é rompido, é porque Israel deixou de
observar a palavra que o S enhor deu para sua orien­
tação desde o Egito.
A seção 16,1—17,5 retoma o tema de revolta.
É uma narrativa contínua formada de duas histórias
de revolta independentes: Qôrah e seus compa­
nheiros contra Aarão (16,la.2-l 1.16-24.32b.35;
17,1-5) e os dois rubenitas, Datan e Abirâm, con­
tra Moisés (16,lb.l2-I5.25-32a.33-34). As duas nar­
rativas refletem antigas lutas pelo poder que irrom­
peram vezes sem conta no decurso da história. A
tradição sacerdotal é responsável por juntar os dois
incidentes em uma narrativa contínua de rebelião
simultânea.
16,1-11 Revolta de Qôrah. O relato começa
com a apresentação da genealogia de Qôrah, filho
de lisehar, filho de Qehat, filho de Levi (v. la; c f
Ex 6,17-25, esp. vv. 18.21.24). Em geral, quémto
mais longa a lista de nomes, mais importante o in­
divíduo. É digno de nota que Qôrah é levita e per­
tence à família dos qehatitas, a quem é designado
o cuidado dos objetos mais sagrados do santuário
(cf 3,27-32; 4,1-20). Todavia, na execução de seu
serviço estão sempre subordinados ao sacerdote
(4,15.20).
A revolta de Qôrah surge, sem dúvida, de uma
longa luta por maior autoridade. Os qehatitas podem
chegar perto dos vasos sagrados, mas, se os toca­
rem, morrerão. Transportam-nos, mas só depois que
foram cobertos pelos sacerdotes. Qôrah, chefe entre
os qehatitas, lidera a revolta contra a autoridade dos
sacerdotes. A tensão entre esses grupos alcança no­
NÚMEROS 16
vamente o primeiro plano no exato momento em que
0 documento está sendo escrito pelo autor sacerdotal.
Há uma luta dos sadoquitas, descendentes de Eleazar
para assegurar o sacerdócio (c f 3,1-4, esp. v. 4b;
ICr 24; Ez 44,10-31). A narrativa de Números reflete
a supremacia de Eleazar e dos sadoquitas (17,1-5).
Os qehatitas levíticos tinham de se contentar em ser
porteiros (lC r26,l) e cantores (SI 42-49.84.85.87.88).
A própria história de Qôrah reflete dois confli­
tos importantes. No primeiro, Qôrah e os duzentos
e cinqüenta conspiradores afirmam que a tribo de
Levi, que inclui Moisés, Aarão e seus descenden­
tes, não é mais sagrada que as outras tribos (vv. 2-
3). Argumentam que, como o S enhor está no meio
da comunidade, Moisés e Aarão não têm o direito
de reivindicar santidade para si mesmos acima do
resto. Todo membro da comunidade é santo por
causa da presença do S enhor . Um segundo confli­
to apresenta Qôrah e seus seguidores como levitas
que se opõem à autoridade de Aarão e tentam tomar
o poder do sacerdócio para si mesmos (vv. 8-11).
Os levitas não se contentam com a posição especial
a eles foi destinada no serviço do santuário, mas
desejam a plena autoridade do sacerdócio. Estas
duas lutas muito antigas e bastante reais — o reco­
nhecimento da santidade de cada pessoa e o conflito
sobre a posição privilegiada do saeerdócio — fun­
dem-se em uma única narrativa de revolta, à qual
Moisés responde.
Moisés prostra-se (v. 4); não intercede. Em vez
disso, deixa o S enhor decidir quem é o santo e quem
Deus escolhe para se aproximar (v. 5). Essa revolta
contra os líderes é reconhecida como revolta contra o
S enhor, a ser por ele resolvida (v. 11).
Moisés instrui Qôrah e seus seguidores para
preparar incensórios com fogo e incenso (vv. 6-7),
ação reservada ao sacerdote. Moisés está dizendo a
Qôrah para assumir o sacerdócio e depois ver quem
o S enhor escolhe.
16,12-15 Revolta de D atan e Abirâm. A ge­
nealogia de Datan e Abirâm aparece no início do
capítulo, na fusão das duas histórias independentes.
São descendentes do primogênito de Jacó, Rúben
(v. Ib; 26,5-8; Gn 35,23). A tradição de sua revolta
é antiga e contada em outras passagens (Sl 106,16-
18; Dt 11,6).
Datan e Abirâm representam a facção política
que se recusa a reconhecer a liderança de Moisés.
Quando dizem: “Não subiremos” (w. 12b. 14c), so­
mos tentados a pensar que talvez sejam chefes que
conspiraram com os exploradores na recusa de entrar
na terra (14,1-4). Suas preocupações os identificam.
Lamentam terem sido trazidos do Egito e temem
morrer no deserto (v. 13a). Queixam-se que Moisés
se estabeleceu como chefe (v. 13b; cf. Ex 2,14).
Queixam-se também que ele não cumpriu a promessa
de levá-los a uma terra onde teceberiam campos e
vinhas (v. 14a). Como insulto final, os rebeldes ale- 167
 NÚM EROS 16
gam que Moisés os está enganando, quando pergun­
tam: “Julgas que este povo é cego?...” (v. 14b). É uma
expressão idiomática para seduzir com falsas pro­
messas (cf ISm I I A Pr 30,17).
Moisés responde encolerizado. Não se defen­
de contra a acusações e sim confessa que não fez
mal a ninguém (v. 15). A afirmação; “Não tomei
deles um asno sequer” é usada para defender-se
contra a acusação de abuso de posição (cf. ISm
12,3; 8,16).
16,16-24.35 Castigo de Qôrah. A história de
Qôrah é resumida aqui, retomando o v. 11. Moisés
diz a Aarão e a Qôrah e seu grupo para cada um
preparar seu incensório e se colocar à entrada da
tenda do Encontro (vv. 16-17). A preparação dos
incensórios é descrita em detalhe para enfatizar o
ato de assumir o sacerdócio (v. 18), o que é feito em
antecipação do julgamento.
Neste momento, “a glória do Senhor” se mani­
festa em poder e majestade diante de toda a comu­
nidade (v. 19). Moisés e Aarão são instruídos para
se separar do grupo que vai ser castigado, porque
estão isentos do julgamento (vv. 20-21). Respondem
prostrando-se e implorando para que todo o povo de
Deus não pereça por causa do pecado de um único
grupo (v. 22). Dirigem-se ao S enhor, chamando-o
pelo título antigo, “El”, que significa simplesmente
Deus, 0 Criador da vida. Pedem que Deus não des­
trua a vida que foi dada (cf também 27,16). O Se­
nhor, assim, isenta a comunidade de julgamento. Ao
povo é dito para que se afaste do lugar (w. 23-24).
Assim que a comunidade obedece, um fogo irrompe
do S enhor e consome os rebeldes (v. 35). Há uma
nota em 26,11, afirmando que nem todos os descen­
dentes de Qôrah pereceram.
Essa narrativa resolve de uma vez por todas a
questão da autoridade sacerdotal. O objetivo da re­
volta de Qôrah eram o desejo e a amljição de ser
sacerdote, tomar o incensório, o fogo e o incenso
e ficar diante do S enhor. O s qehatitas haviam sido
avisados que não deviam tocar nenhum dos objetos
sagrados sob pena de morte (4,15.20). A morte pelo
fogo foi prenunciada na retirada do fogo do altar (cf
a narrativa em 3,1-4 e Lv 10,1-2).
A menção de Datan e Abirâm junto com Qôrah
nos vv. 24 e 35 reflete a intenção de fazer das duas
histórias uma só. O castigo de Qôrah ocorreu perto
da tenda do Encontro. A referência à morada nes­
tes vv. vem da história de Datan e Abirâm, que,
segundo o relato seguinte (vv. 25-34) são castiga­
dos perto de suas tendas.
16,25-34 Castigo de Datan e Abirâm. Esta é
a conclusão da história da revolta contra a liderança
de Moisés. E retomada diretamente do v. 15.
Moisés e os anciãos aproximam-se dos rebeldes
Datan e Abirâm (v. 25). Moisés fala diretamente às
pessoas da comunidade, avisando-as para que se
afastem dos rubenitas rebeldes, para não sofrerem
168 o castigo também (v. 26). Datan e Abirâm, suas mu­
lheres e seus filhos postam-se à entrada de suas
tendas, em expectativa (v. 27). Está montado o ce­
nário para um ato de julgamento.
A palavra de julgamento vem diretamente de
Moisés, para confirmar sua autoridade e refutar
qualquer suspeita de estar agindo por conta própria
(v. 2 8 ) . O julgamento será reconhecível pelo fato
de que a morte, “a sorte de todo mundo”, não será
por causas naturais (v. 2 9 ) . O S e n h o r fará “algo de
extraordinário”, isto é, um ato de criação, para que
morram de uma forma da qual jamais se ouviu
falar antes (v. 30a). A terra se abrirá literalmente e
os engolirá com todos os seus bens (v. 30b).
Assim que Moisés pronuncia a palavra de jul­
gamento, sua autoridade é comprovada à vista de
todos. A terra se abre e, por ironia, os que se recu­
saram a subir (vv. 12.14) enfrentam o destino de
descer à morada dos mortos com tudo que lhes
pertencia (vv. 31-33). Os que acusaram Moisés de
tirá-los do Egito “para fazê-[los] morrer no deser­
to” (v. 13) sofrem o cumprimento de sua acusação.
Datan e Abirâm desaparecem da face da terra e
não resta nenhuma evidência nem sinal deles. No
V. 32b é mencionado que a gente de Qôrah sofre o
mesmo destino, para unir os dois relatos.
De forma bastante compreensível, todos os israe­
litas fogem, com medo de que o mesmo lhes acon­
teça (v. 34). A história é contada para que Israel
conheça a singularidade de Moisés em sua vocação
de conduzir o povo do Egito à Terra Prometida.
17,1-5 Um sinal para os israelitas. Esta passa­
gem apresenta uma explicação para as chapas que
cobrem o altar e também prenuncia a sucessão de
Eleazar como sacerdote depois de Aarão (cf 20,22-
29). A Moisés vem a palavra (v. 1) que Eleazar deve
juntar os incensórios que foram consagrados e, de­
pois de espalhar o fogo, reduzi-los a lâminas para
recobrir o altar (vv. 2-3). Eleazar faz exatamente o
que o Senhor ordena (w. 4-5). Como os incensórios
foram consagrados à custa de tantas vidas, devem
ficar protegidos de qualquer abuso (cf Ex 29,37;
30,29). A cobertura feita dos incensórios consa­
grados seria um lembrete de que ninguém que não
seja um sacerdote verdadeiro, um descendente de
Aarão, se aproxime do altar. A cobertura funciona
como aviso das consequências de qualquer ação
imprópria.
17,6-15 O povo se revolta. Outra narrativa que
contém os elementos da típica história de revolta e
perdão (cf o comentário sobre 11,1-3) surge dos
acontecimentos da revolta de Qôrah. O povo protes­
ta e culpa Moisés e Aarão pela morte de tantos de
seus compatriotas (v. 6).
O S enhor aparece da maneira usual e resolve
aniquilar toda a comunidade. Somente Moisés e
Aarão serão poupados. Moisés instrui Aarão para
tomar seu incensório, pôr nele fogo do altar e fazer
o ato de absolvição para o povo (v. 11). A ação inter-
cessora de Aarão põe fim ao flagelo, mas não antes

que um número significativo de pessoas tenha
morrido (vv. 12-15). O sacerdote Aarão age assim
na capacidade de sumo sacerdote, mediando cura
e vida de Deus. Permanece “entre os mortos e os
vivos” (v. 13); sua intercessão impede efetivamente
mais destruição.
A narrativa confirma Aarão e seus descendentes
e esclarece ainda mais o papel do sacerdote, consa­
grado para o bem o povo. Por intermédio do sacer­
dote, as forças vivificantes fluem de Deus. Somen­
te o sacerdote é escolhido para essa tarefa de me­
diação. A escolha divina da família sacerdotal ba­
seia-se na lenda a seguir.
17,16-26 O bastão de Aarão. O florescimento
do bastão de Aarão é passagem literária encantado­
ra, criada a partir de um trocadilho. As palavras
hebraicas para “bastão” e “tribo” são exatamente as
mesmas. O bastão inanimado que floresce represen­
ta a tribo que Deus escolhe e abençoa para o serviço
do sacerdócio. A história é contada para silenciar de
uma vez por todas os “protestos” (vv. 20.25) contra
Aarão e seus filhos como os escolhidos de Deus.
A repetição de detalhes na palavra de Deus a
Moisés (vv. 16-20), cumprida de maneira precisa
(vv. 21-23), destaca a escolha divina do bastão/tri-
bo. De acordo com a orientação do Senhor , Moisés
ordena que cada chefe, representando uma das tri­
bos, traga um bastão no qual esteja escrito seu no­
me. O nome de Aarão é escrito no bastão da tribo
de Levi (v. 18). Os doze bastões são, então, postos
na tenda do Documento, diante do S enhor, que ex­
primirá a escolha da tribo por um milagre.
No dia seguinte, Moisés entra na tenda e vê
que o bastão de Aarão havia florescido e que nele
despontara um botão, uma flor havia desabrochado
e amêndoas haviam amadurecido (v. 23). Moisés
traz todos os bastões para fora, para que o povo os
veja, e devolve cada um a seu dono (v. 24). O bas­
tão de Aarão, entretanto, é levado de volta à tenda
do Encontro, onde permanecerá como sinal e para
que as gerações futuras saibam que os filhos de
Aarão foram escolhidos para ser os únicos sacer­
dotes legítimos (v. 25).
17,27-28 Objetos sagrados. Estes vv. estão
apropriadamente inseridos como transição entre a
série anterior de narrativas e o esclarecimento que
se segue de funções e recompensas sacerdotais. Os
vv. apresentam o povo clamando a Moisés, como
fazem tantas vezes ao enfrentar o castigo (v. 27).
Neste caso, clamam com medo de todos morrerem
com certeza se chegarem perto da morada (v. 28).
A preocupação expressa aqui reflete uma questão
real que provocava disputas entre as categorias de
sacerdotes. E também preocupação legítima do povo
que acampa em torno da morada e conhece o cas­
tigo que acontece a quem ultrapassa os limites do
santo. O desespero que repercute na escolha de
verbos — “morrer”, “perecer”, “destruir” — real­
ça a gravidade da questão. O esclarecimento das
NÚMEROS 18
funções dos sacerdotes e levitas que se segue res­
ponde à preocupação.
18,1-7 Funções dos sacerdotes e levitas. So­
mente nesta seção a palavra do S enhor é dirigida
diretamente a Aarão (v. 1; c f também os vv. 8.20),
o que é apropriado, pois a instrução distingue os
sacerdotes dos levitas e dá prioridade aos sacerdo­
tes. Fica claro o papel de cada um. Como legíti­
mos possuidores do sacerdócio, Aarão, seus filhos
e seus descendentes são os únicos responsáveis pelo
santuário (v. 1). Somente eles podem chegar perto
do altar, desempenhar as funções sacerdotais e tocar
0 que pertence ao altar (vv. 1.5.7).
A morte é o castigo para todo profano que se
aproximar do altar (vv. 4b.5b.7b). Os levitas, paren­
tes dos aaronitas, foram separados em lugar dos
primogênitos de Israel para o serviço do santuário,
pois “assim os filhos de Israel não serão mais feri­
dos por minha cólera, por se terem aproximado do
lugar santo” (cf o comentário sobre 8,19). São de­
dicados ao S enhor e doados aos sacerdotes (v. 6;
veja 3,5-4,49; 8,5-26). Os levitas devem ser auxilia­
res dos sacerdotes. Estarão a serviço dos sacerdotes
e do lugar santo, mas não podem tocar o altar nem
os objetos sagrados (vv. 2-4).
A prioridade evidente do sacerdócio aarônico
sobre os levitas é definida neste texto pela palavra
“doados” (v. 6). Os levitas são doados a Aarão e seus
filhos. A ascendência do sacerdócio aarônico foi mais
pronunciada no período do Exílio e depois dele.
18,8-20 Participação dos sacerdotes nos sa­
crifícios. Esta é uma cuidadosa descrição da remu­
neração devida aos sacerdotes e suas famílias por
seus serviços em benefício do povo. Os sacerdotes
não têm terras nem patrimônio; seu único bem é o
Deus a quem pertencem (v. 20; c f Js 13,14; 14,3-4).
Portanto, têm direito de ser sustentados pelo povo.
O que é oferecido em sacrifício a Deus pertence
aos sacerdotes como sua parte (v. 8).
Os sacerdotes têm participação em todas as
oferendas mais sagradas, sejam elas oblações, sacri­
fícios pelo pecado ou sacrifícios de reparação. A
única injunção é que sua parte seja tratada como
santíssima (vv. 9-10). Recebem o peito e a coxa
direita oferecidos por apresentação (vv. 11.18b).
Também o melhor do azeite novo, o melhor do vi­
nho novo e do trigo, apresentados como primicias,
pertencem aos sacerdotes e podem ser consumidos
pelos membros de suas famílias (vv. 12-13). Deles
é tudo que for “votado ao interdito”, isto é, o que
foi dedicado a Deus e não puder ser resgatado (v.
14). No antigo Israel, por exemplo, tudo o que
fosse tomado na guerra pertencia a Deus e tinha de
ser destruído. Em anos posteriores, o que pertence
a Deus é reivindicado pelos sacerdotes, inclusive
todos os primogênitos. Os filhos primogênitos e os
animais impuros devem ser resgatados e o dinheiro
entregue aos sacerdotes. Os primogênitos dos ani­
mais puros pertencem aos sacerdotes, exceto o san- 169
 NÚMEROS 18
gue que é derramado sobre o altar e a gordura quei­
mada no fogo (vv. 15-18á).
O S enhor promete tudo isso aos sacerdotes e
suas famílias, filhos e filhas, como “aliança con­
sagrada pelo sal, perene aos olhos do S enhor” .
Essa linguagem forte significa literalmente “alian­
ça de sal”. A frase ocorre novamente apenas em
2Cr 13,5, com referência à realeza davídica. Segun­
do os sacerdotes responsáveis por ambos os tèxtos,
somente o que se aplica aos sacerdotes e à família
de David é garantido para sempre.
18,21-24 Dízimos devidos aos levitas. Os le-
vitas que cuidam da propriedade do santuário prote­
gem o povo do perigo (vv. 22-23a). Não têm ne­
nhum patrimônio próprio (vv. 23b.24b) e, portan­
to, dependem do sustento do povo. O S enhor de­
termina que os dízimos dados como contribuição
ao S enhor sejam entregues aos levitas em retribui­
ção pelo seu serviço (vv. 21.24a). O dízimo con­
siste em um décimo do produto da terra, das árvo­
res e do rebanho (cf Lv 27,30-33). A prática de
apresentar o dízimo para o sustento dos levitas con­
tinuou, com algumas variações, dos tempos primi­
tivos até 0 período pós-exilico (cf. Dt 14,22-29;
12,17-19; 26,12; 2Cr 31,4-6).
18,25-32 Dízimos pagos pelos levitas. Os dí­
zimos entregues aos levitas para seu sustento devem
ser considerados dádivas divinas dadas a eles, vin­
das da terra e da vinha. Também os levitas devem
pagar o dízimo. O S enhor ordena que apresentem
um “dízimo dos dízimos” (v. 26) aos sacerdotes
como oferenda, como se fossem provenientes de
suas eiras e seus lagares (vv. 27.30). São exortados
a oferecer a melhor parte, para que devolvam a
Deus o melhor do que lhes foi dado (vv. 28-30.
32a). O que resta pode ser comido por eles e suas
famílitis — é sua remuneração pelo serviço. Esse
alimento é sagrado porque foi oferecido como con­
tribuição a Deus. Deve, portanto, ser consumido,
para que o levita não atraia sobre si o castigo por
abuso daquilo que foi consagrado (vv. 31-32).
Além de distinguir entre o sacerdote e o levita,
este capítulo estabelece a prática de dar sustento
aos dedicados a Deus que desempenham funções a
serviço do povo.
O capítulo 19 apresenta um ritual antigo sem
relação nenhuma com o contexto, salvo o fato de ser
realizado por um sacerdote. O ritual tem a ver com
a pureza cultuai, de modo específico a purificação
depois do contato com os mortos.
19,1-10 Cinzas da novilha vermelha. O ani­
mal a ser usado para o rito é uma novilha vermelha,
sem defeito no sentido cultuai, e que não foi utiliza­
da para nenhum outro propósito (v. 2). Deve ser en­
tregue a Eleazar, levada para fora do acampamento
e degolada em sua presença (v. 3). O sacerdote to­
mará com o dedo um pouco do sangue e com ele
fará sete vezes a aspersão em direção à tenda do
170 Encontro, presumivelmente para significar dedica­
ção total (v. 4). O animal é então queimado em sua
totalidade diante do sacerdote, que acrescenta ao
fogo madeira de cedro, hissopo e carmesim brilhan­
te (vv. 5-6). Acredita-se que esses artigos tenham
efeito purificador e são também usados para purifi­
car leprosos (cf Lv 14,6-7). Em seguida, o sacerdote
e aquele que tiver queimado a novilha lavam suas
vestes e se banham. Permanecem impuros até a tarde,
quando podem voltar ao acampamento (vv. 7-8).
Finalmente, um homem em estado de pureza
do ponto de vista cultuai recolhe as cinzas e as de­
posita em um lugar puro, fora do acampamento, a
fim de que estejam disponíveis para uso na água
lustrai (v. 9a). A afirmação de que a novilha é um
sacrifício pelo pecado (v. 9b) é estranha, pois o
animal não é sacrificado nem apresentado a Deus,
mas sim totalmente queimado e usado para produzir
cinzas para a água lustrai aspergida em ritos de pu­
rificação. O homem que recolhe as cinzas também
se torna impuro e deve lavar suas vestes e perma­
necer fora do acampamento até a tarde (v. 10). O
ritual aqui descrito não tem paralelo. Faz insinua­
ções mágicas que sugerem adaptação de uma prática
dos arredores estrangeiros.
19,11-22 Uso das cinzas. As cinzas são prepa­
radas especificamente para uso nos ritos de purifi­
cação dos que se tomaram impuros pelo contato
com cadáveres. Já vimos que o contato com os mor­
tos é um meio de contaminação (5,2). Os diversos
preceitos e rituais para eliminar essa impureza são
apresentados nesta passagem.
Segundo a lei, quem tocar um cadáver fica im­
puro por sete dias. Esse indivíduo precisa ser bani­
do do acampamento para que a comunidade não
seja contaminada. A pessoa contaminada é indigna
do lugar santo onde o Senhor habita. Para se puri­
ficar a pessoa precisa ser aspergida com água no
terceiro e no sétimo dias (vv. 11-13).
Segue-se uma lista de circunstâncias que pro­
vocam impureza (vv. 14-16). Quem entrar em uma
tenda onde há um cadáver, bem como quem já es­
tava ali por ocasião da morte, ficará impuro. Assim
também o que for exposto ao morto, como o con­
teúdo de um recipiente aberto. Não é preciso tocar
no corpo. Todavia, se alguém tocar em um cadáver
— mesmo que só em uma parte dele ou no túmulo
— , ficará impuro. Não importa se a morte foi por
causas naturais ou não.
Em seguida, são apresentadas instruções para
a purificação (vv. 17-18). Os indivíduos devem sub­
meter-se a um ritual de purificação no qual as cin­
zas da novilha vermelha, misturadas com água de
fonte, são aspergidas sobre eles, suas tendas e seus
bens. Isso é feito por alguém ritualmente puro, não
necessariamente um sacerdote, no terceiro e no
sétimo dias. Então os que estão sendo purificados
lavam suas vestes, banham-se e voltam ao acampa­
mento na tarde do dia da purificação. A pessoa que

asperge a água também se toma impura e precisa,
portanto, lavar suas vestes e ficar fora do acampa­
mento até a tarde.
A pessoa impura que não se submete ao rito
de purificação permanece impura. Tudo e todos
que entrarem em contato com essa pessoa tomam-
-se impuros. Esse indivíduo precisa ser excluído
da comunidade, sendo indigno do lugar onde o
S enhor habita (w . 20.22).
É provável que o lembrete sobre pureza ritual
seja acrescentado nesse ponto para novamente con­
centrar a atenção na comunidade que está prestes
a avançar em sua caminhada em direção à terra. E
um povo no meio do qual o S enhor habita. Quer
no deserto, quer na terra, somente um povo
ritualmente puro é digno da presença de um Deus
santo. A pureza ritual é, então, sinal da fidelidade 32-33). Entretanto, não está claro se a infidelidade
do povo ao S enhor.
Últimas paradas no cam inho
(20,1- 22,1)
20,1 M orte de M iriâm. Depois de um longochefes e também para dar a razão da necessidade
intervalo de lutas e revolta, o enfoque volta à co­
munidade acampada no deserto de Sin, em Qadesh
(v. 1a). Esse deserto faz parte do deserto maior de
Paran, de onde foram enviados os exploradores (cf
10,12; 13,3.21.26). Segue-se uma seqüência de
eventos para assinalar a passagem do tempo e o
movimento em direção à terra.
Há uma breve nota para dizer que Miriâm
morreu e foi enterrada em Qadesh (v. Ib); c f o
cap. 12 e Ex 15,20-21). É um lembrete que por
causa da revolta do povo toda uma geração morre­
rá antes de Israel entrar na Terra Prometida.
20,2-13 Moisés e Aarão são punidos. Em um
novo relato do incidente de Meribá (v. 13; c f Ex
17,2-7) é explicado por que é negada a entrada na
terra a Moisés e Aarão. O motivo parte da contenda
sobre água. (Meribá significa “contenda” ou “con­
trovérsia”.) O povo briga com Moisés e Aarão e os
acusa de ter trazido a comunidade do Egito, onde
havia bastante comida, para o deserto, onde não há
nem mesmo água para beber (vv. 2-5). Tudo que
Moisés e Aarão podem fazer é voltar-se para o
S enhor, que nesse momento lhes aparece na entrada
da tenda do Encontro e lhes fala (w . 6-7). O Senhor
instrui Moisés e Aarão para tomarem o bastão, reuni­
rem 0 povo e, na presença da comunidade, ordenar
ao rochedo que dê água para todos beberem (v. 8).
Há uma diferença significativa entre a história rota tão tortuosa.
mais antiga e o incidente como aqui relatado pelo
autor sacerdotal. Em Ex 17,5-6, Moisés recebe or­
dens para golpear o rochedo com o bastão. Aqui o
S enhor ordena a Moisés e Aarão que “falem” ao
rochedo, para que por uma ocorrência milagrosa na
presença de todos a santidade do S enhor possa se
manifestar (vv. 12-13; veja Is 29,23). As palavras
hebraicas para “santidade” e para “Qadesh”, o lugar
dessa controvérsia, derivam da mesma raiz (cf o v.
NÚMEROS 20
1). Para aludir a essa associação é salientada a ques­
tão da santidade do Senhor.
Entretanto, o bastão toma-se objeto de desobe­
diência. É identificado com o bastão de Aaiâo, que foi
colocado diante do Senhor no santuário (v. 9; 17,16-
26). Em vez de fazer exatamente como o S enhor or­
denara, Moisés faz à comunidade uma pergunta que
sugere dúvida e falta de fé; “Acaso poderemos nós
fazer jorrar água deste rochedo?” (v. 10). Usando o
bastão, Moisés em seguida bate no rochedo não uma,
mas duas vezes. O rochedo produz água em abun­
dância para todos beberem (v. 11), embora Moisés
não “falasse” ao rochedo, como o Senhor ordenara.
A tradição afirma que essa infidelidade provo­
cou a decisão do S enhor de que nem Moisés nem
Aarão entrariam na terra (v. 12; veja v. 24; SI 106,
é falta de fé ou ato de desobediência. Talvez a falta
de clareza seja intencional para que o povo se lem­
bre de ambas. Essa história é contada perto do fim
da caminhada para preparar a designação de novos
deles. (Compare com Dt 1,37; 3,26; 4,21-22 para
outra explicação do motivo da recusa da entrada de
Moisés na Terra Prometida.)
20,14-21 A recusa de Edom. A passagem mais
fácil de Qadesh pelo extremo sul do mar Morto seria
através de Edom e Moab. Para fazer isso e evitar
conflito, Moisés envia mensageiros ao rei de Edom,
pedindo permissão para atravessar sua terra (v. 14a).
Moisés ^ l a ao parentesco entre os dois povos (v. 14b),
pois Edom/Esaú e Israel/Jacó são ancestrais gêmeos
das nações (Gn 25,21-26; 32,4; 33,1-17). Moisés rela­
ta a história de como o Senhor conduziu o povo do
Egito àquele lugar no deserto perto dos limites do
território edomita (w. 15-16). Promete que o povo
não perturbará seus campos e vinhedos, nem beberá
sua água. Passarão pelo distrito no caminho real, sem
se desviar para a direita nem para a esquerda (vv.
17.19). O caminho real, ãs vezes chamado Estrada
do Rei, era uma rota de caravanas que atravessava
Edom, usada com frequência (cf. 21,22; Dt 2,27).
Edom recusa duas vezes o pedido de Moisés e
ameaça atacar se Israel tentar passar (vv. 18.20; c f
Am 1,11-12). Israel é, então, forçado a viajar para o
sul, até Elat, no golfo de Ácaba, para contornar o
território de Edom e entrar pelo deserto oriental.
Essa narrativa, enraizada na tradição da desavença
entre os irmãos, dá uma explicação para iniciar uma
20,22-29. M orte de A arão. Antes de começar
a caminhada para o sul, toda a comunidade vai para
Hor-a-Montanha, localizada perto de Qadesh, na fron­
teira de Edom (vv. 22-23).
A palavra do S enhor falada (vv. 23-26) e cum­
prida (w. 27-28a) mais uma vez indica a orientação
divina no curso dos acontecimentos. A palavra é
muito simples e clara. Aarão está prestes a morrer
(v. 24; c f 33,37-39), em cumprimento da palavra 171
 NÚMEROS 21
dada em 20,12. Deus ordena que Moisés estabeleça
Eleazar como sacerdote em sucessão a seu pai, trans­
ferindo as vestes de Aarão a seu filho (w. 25-26.
27a.28a; cf. Ex 39,1-31; Lv 8,7-9, para uma descri­
ção das vestes e da cerimônia de investidura). Quan­
do isso é feito, Aarão morre na montanha e a comu­
nidade chora durante trinta dias (v. 28b). Da primeira
geração, só resta Moisés para levar o povo à terra.
Mais tarde, Moisés morrerá em uma montanha e
será chorado por trinta dias (Dt 34,1.5-8).
21,1-3 Vitória contra Arad. Essa narrativa
explica o nome Hormá, relacionado a uma palavra
hebraica que significa “interdito” (v. 3b; c f Jz 1,17).
Em um relato mais primitivo, os israelitas haviam
tentado entrar em Canaâ pelo sul por iniciativa pró­
pria. Foram cercados pelos habitantes e enxotados
de volta a Hormá (c f 14,39-45; Dt 1,41-46). O
ataque bem-sucedido pelo rei canaanita é um deta­
lhe em continuação dessa história mais primitiva
(v. 1). Entretanto, há mudança nos acontecimentos,
quando os israelitas se voltam para o S enhor com
o voto de votar “suas cidades ao interdito” se o
S enhor entregar os canaanitas em suas mãos (v. 2).
Por causa desse voto, Israel destrói as cidades ca­
naanitas derrotadas e dá ao lugar o nome de Hormá,
o “interdito” (v. 3).
Esta narrativa parece deslocada, pois, para che­
gar a Hormá, os israelitas, que se dirigem para o
sul, têm de seguir para o norte. Em uma lista antiga,
há uma alusão ao acontecimento depois da morte
de Aarão (cf. 33,40). Como o autor sacerdotal usou
essa lista como base para esta narrativa, a história
de Hormá é contada aqui, sem levar em conta o pro­
blema geográfico criado.
21,4-9. A serpente de bronze. Esta é uma his­
tória muito antiga que explica por que havia uma
serpente de bronze no Templo de Jerusalém. Essa
imagem foi destruída no tempo de Ezequias por
causa do culto surgido em torno dela (cf 2Rs 18,4).
Por causa da capacidade de se regenerar, a serpente
simboliza a vida e era usada como símbolo de fer­
tilidade desde os tempos primitivos.
Da forma como temos a história, ela é contada
no padrão formalizado de revolta-castigo-interces-
são-perdão, já muitas vezes usado (cf 11,1-3; 12,2­
16; 17,6-15; 21,4-9). Nossa atenção volta-se mais
uma vez para um povo rebelde. Embora essa seja
uma nova geração e embora esteja quase entrando
na terra, o povo critica Deus e Moisés (v. 5a). Logo
que parte de Hor-a-Montanha em direção ao golfo
de Acaba, o povo perde a paciência (v. 4). Mais uma
vez, a critica concentra-se em comida e bebida e o
desejo de voltar ao Egito (v. 5b).
O S enhor responde imediatamente com o cas­
tigo, enviando serpentes que mordem o povo, resul­
tando em grande número de mortes (v. 6). O povo
pede ajuda a Moisés. Confessam que pecaram e
pedem a Moisés que peça ao Senhor para afastar
172 deles as serpentes (v. 7). Moisés intercede e recebe
instruções para pôr fim ao sofrimento. Moisés faz
exatamente o que o Senhor ordena: uma serpente
de bronze, que fixa numa haste. Quem olha para a
serpente se recupera (vv. 8-9). A cura das mordidas
está ligada à obediência e à fé. E, por ironia, a fonte
de cura é semelhante à do castigo.
Pela última vez no deserto, Israel se revolta e
é perdoado. A medida que os membros da nova
geração avançam em direção à terra, seguem as
pegadas de seus ancestrais que pereceram por ser
rebeldes.
21,10-20 Cam inhada em torno de Moab. Pas­
sagem notável, formada de uma série de topônimos
intercalados por fragmentos de poesia antiga, apres­
sa a caminhada em direção à planície de Moab,
onde terão lugar os acontecimentos seguintes. O
movimento parte da Arabá, a região ao sul do mar
Morto, pelo vale do Jordão. O povo alcança o Wadi
Zered, fronteira entre Edom e Moab (vv. 11-12).
Dali prosseguem para o Amon, rio que separa o
território de Moab do dos emoritas (v. 13). O reino
emorita está entre Moab e Amon. É esse território
que Israel terá de atravessar para chegar ao Jordão
(c f os vv. 21-32). Ao que se sabe, todos os lugares
citados nos vv. 16.18b. 19-20 estão no lado oriental
do mar Morto. Nahaliel é um vale próximo ao norte
do Amon e a Pisgá é um dos picos que se elevam
acima da planície onde o rio Jordão entra no mar
Morto.
Dentro do esquema de viagem, há dois fragmen­
tos de poesia (w. 14-15.17-18). O primeiro deles é
considerado como do “livro das Guerras do S enhor”
(v. 14). Embora o livro só seja conhecido por essa
citação, é provável que outrora existisse uma coleção
de cânticos celebrando vitórias dos primeiros dias do
assentamento. O poema foi incluído porque menciona
0 Amon e comprova que esse rio formava a fronteira
de Moab. O outro poema é um cântico tradicional
para celebrar o surgimento da água quando o poço
foi cavado. Foi acrescentado neste contexto por causa
do topônimo Beer, que significa “poço” e porque a
água de todos os lugares no deserto era celebrada
como dom de Deus (cf o v. 16).
21,21-32 Vitória sobre Sihon. O reino emorita,
com a capital em Heshbon, localizava-se entre
Moab e Amon. O soberano, Sihon, combatera con­
tra Moab e tomara todo o planalto de Moab desde
o rio Jaboc no norte até o rio Arnon, e desde o de­
serto a leste até o rio Jordão a oeste (v. 26; c f Jz
11,22). A posse deste território poria Israel próximo
da Terra Prometida. A derrota dos emoritas é, por­
tanto, a primeira das narrativas da conquista.
Segundo o texto, Moisés envia mensageiros
para pedir passagem pela terra, na estrada real. O
leitor atento reconhece imediatamente que o pedi­
do é paralelo exato do que foi feito ao rei de Edom
(w . 21-22; c f 20,14.17). Os biblistas acreditam
que a tradição de Heshbon é mais antiga e que o
texto de Edom seguiu seu modelo.

Sihon, rei dos emoritas, nega o pedido e dá com­
bate a Israel em lahas (lahsa). Israel derrota as for­
ças de Sihon e toma posse de toda a terra entre os
rios Jaboc e Amon até o território dos emonitas (vv.
24-26.31-32). Tão significativa é essa vitória que dá
a Israel a posse da terra canaanita que sua tradição
é relatada de novo em Dt 2,24-37; Jz 11,19-22.
Ligado a essa narrativa de vitória há também
um antigo poema nos w . 27-30, celebrando a vitória.
É interessante que o poema é composição não-israe-
lita de grande antiguidade. A referência a Kemosh
(v. 29a), deus dos moabitas, e a afirmação de que
Moab e o povo de Kemosh foram aprisionados pelo
rei emorita Sihon sugerem que este é o poema origi­
nalmente entoado para celebrar a vitória emorita
sobre Moab. Os israelitas apropriaram-se do poema
sem alterá-lo e o incluíram para lembrar que o con­
quistador é agora o conquistado. O poema é citado
outra vez em uma palavra profética contra Moab
(cf. Jr 48,45).
21,33-22,1 Vitória sobre Og. Como os nomes
dos reis Sihon e Og estão associados na tradição
(SI 135,11; 136,19-20), a narrativa da derrota de
Og segue imediatamente a da derrota de Sihon.
Bashan é o território emorita ao norte do rio
Jaboc. Há uma descrição mais completa do con­
fronto com Og, rei de Bashan, em Dt 3,1-11. Os
vv. 1-3 do discurso deuteronômico de Moisés for­
mam a substância da narrativa de Números. E con­
tada como história da vitória do Senhor (v. 34;
veja Dt 3,2-3a). Como sinal de total dedicação ao
S enhor, a população é destruída e a terra habitada
pelos israelitas (v. 35; compare Dt 3,3b-6). Com
essa vitória, Israel obtém o controle de toda a região
fora dos limites de Amon, Moab e Edom. Israel
está agora de posse de toda a terra canaanita da
Transjordânia, separada de Canaã propriamente dita
apenas pelo rio Jordão.
Uma fórmula de itinerário conclui a seção para
resumir a partida final para a planície de Moab
(22,1; c f a discussão sobre a fórmula de viagem na
p. 146). Todos os acontecimentos restantes do livro
desenrolam-se enquanto o povo está neste acampa­
mento. Aqui Moisés morrerá e será enterrado (Dt
34,1-8) e daqui Josué guiará o povo para a frente
(cf 27,12-23; Dt 34,9).
NA PLANÍCIE DE MOAB; PREPARATIVOS
PARA A VIDA NA TERRA
Nm 22,2-36,13
A longa caminhada a partir do Sinai abarcou
toda uma geração. Entende-se que a extensão da
estada no deserto e a recusa de entrada para Moisés
e Aarão são conseqüência da infidelidade à palavra
do S enhor. A s mortes de Miriâm e Aarão assina­
lam a passagem do tempo para uma nova geração
de adultos. Finalmente, sob a liderança de Moisés,
O povo que sobreviveu ao deserto chega à planície
NÚMEROS 22
de Moab. Toda a terceira parte do livro de Números
acontece em Moab e concentra-se na vida futura
na terra prometida.
O conteúdo da presente seção é uma mistura de
tradições coligidas pela escola sacerdotal de uma varie­
dade de fontes que abrangem a história da nação.
A história de Bileâm (caps. 22-24), o relato do
desastroso incidente em Shitim (cap. 25) e a polê­
mica midianita (cap. 31) são narrativas muito an­
tigas reunidas pelo autor sacerdotal. Esses relatos
conservam o forte estilo narrativo e poético e, por­
tanto, sobressaem à linguagem formalizada da legis­
lação (27,1-11; caps. 28-30; 32; 35; 36) e das listas
(caps. 26; 33).
O objetivo principal desse material é a prepa­
ração para o futuro, quando Israel se organizará
como comunidade devota de fé centralizada na pre­
sença do S enhor em seu meio. As questões sobre
posse territorial e os assuntos pertinentes à herança
de propriedade são resolvidos antes da entrada na
Terra Prometida para impedir brigas e divisões den­
tro da comunidade. As leis para a observância das
principais festas garantem uma vida religiosa orde­
nada. A ênfase na obediência à palavra do S enhor
lembra a Israel que só ele pode se afastar do rela­
cionamento de aliança. A observância da lei e do
culto possibilitam que o S enhor habite para sempre
no meio deste povo.
Ao reunir esse material, o autor sacerdotal reflete
sobre a história de Israel para a instrução de um povo
que mais uma vez está em um deserto de exílio, es­
perando 0 dia em que reentrará na Terra Prometida e
se reorganizará como comunidade de fé.
Os caps. 22-24 contêm um notável conjunto
narrativo, formado da lenda sobre um profeta es­
trangeiro e narrado como base para uma série de
oráculos que expressam a bênção do Senhor sobre
o povo de Deus. O cenário para a narrativa é a
chegada dos israelitas à planície de Moab. Ame­
drontado pela presença dos israelitas tão perto de
suas fronteiras, Balaq, rei de Moab, procura o pro­
feta Bileâm para que este lance uma maldição sobre
Israel. Bileâm, entretanto, apresenta-se como pro­
feta fala tão-somente a palavra do S enhor e, assim,
toma-se herói e modelo para todas as gerações de
israelitas.
A palavra do S enhor para Israel é de bênção.
Todos os oráculos apresentam Israel como povo de
eleição que foi extraordinariamente abençoado no
passado e que será vitorioso e próspero no futuro.
Os oráculos são narrados nessa conjuntura em vista
de seu conteúdo, que prenuncia o que Israel se tor­
nará na terra e dá o exemplo de um indivíduo verda­
deiramente obediente que depende de forma radi­
cal da palavra divina.
22,2-14 Bileâm é convocado. A narrativa co­
meça com a apresentação de um dos personagens,
Balaq, rei de Moab, que teme as forças israelitas
acampadas tão perto de suas fronteiras. É o exér- 173
 NÚMEROS 22
cito que derrotou os emoritas, o povo que antes
derrotara Moab (vv. 2-3; cf. 21-26). Os israelitas
são um povo numeroso “que cobre a face da terra”
e que tem demonstrado sua força (v. 5b).
Balaq envia mensageiros de Moab e de Midian
(vv. 4.7) a fim de contratar Bileâm para amaldi­
çoar este inimigo, tomando assim possível a vitória
sobre eles (v. 6a). O objetivo da maldição é criar
uma situação que possibilite a derrota dos israelitas,
isto é, remova a proteção do Deus deles. Amaldi­
çoar é colocar um deus contra outro e, desse modo,
desencadear as forças destruidoras do Deus inimigo
(Cf Jr 10,25; SI 35,4-8; 79,6-7; 2Sm 18,32).
O motivo pelo qual os midianitas, vizinhos do
deserto ao sul de Moab, estão envolvidos com Balaq
gera dúvidas. Talvez sejam citados aqui no interes­
se da continuidade dos incidentes de Peor e Midian
que se seguem, ambos ligados a Bileâm em 31,8.16.
Conforme a narrativa, Balaq envolve Midian
mencionando a devastação de que Israel é capaz,
usando a notável metáfora: “como um boi devora a
erva dos campos” (v. 4). Buscam um estrangeiro, um
profeta do vale do Eufiates na Mesopotâmia, para
pronunciar uma maldição (v. 6a). Esse profeta, de no­
me Bileâm, é conhecido por falar a palavra de Deus
com tal eficácia que Balaq tem certeza do poder de
sua palavra: “Pois eu sei que aquele a quem abençoas
abençoado está, e a quem amaldiçoas amaldiçoado
está” (v. 6b). Profetas como Bileâm eram conhecidos
em muitos dos países do mundo antigo desde tempos
bem primitivos. Ele pode ser comparado aos primei­
ros profetas de Israel, tais como Samuel e Elias, res­
peitados por sua poderosa palavra de Deus.
Em seguida à introdução, há uma série de pas­
sagens que apresentam o profeta. Na primeira passa­
gem, vv. 7-14, os mensageiros, com a retribuição
na mão, visitam Bileâm em seu território (v. 7). Da
perspectiva dos que convidam o profeta, Bileâm é
um dos adivinhos que transmitem mensagens me­
diante uma retribuição. Quando o adivinho é pago
por seus serviços, é mais provável, como seria de
esperar, que pronuncie as palavras que o cliente
quer ouvir.
Entretanto, a resposta que os mensageiros rece­
bem pela oferta mostra que Bileâm tem outra índo­
le. É um homem que fala apenas a palavra do Se­
nhor, independente das conseqüências e sem recom­
pensa. Os mensageiros e o leitor devem prestar
atenção, pois esse Bileâm, estrangeiro da Mesopo­
tâmia, cita o Senhor como fonte de sua palavra.
Logo no início, ele identifica-se como profeta obe­
diente ao Deus do povo sobre o qual Balaq deseja
uma maldição. O terreno está preparado para as
passagens que se seguem.
Bileâm convida os mensageiros a passar a noite
para poder perguntar ao Senhor o que fazer (v. 8).
O leitor é informado da conversa entre Deus è
Bileâm. Deus pede a Bileâm que identifique seus
174 visitantes (v. 9). Como é óbvio, são individuos des­
conhecidos do Deus de Israel. Bileâm responde
repetindo o pedido enviado por Balaq (vv. 10-11;
c f w . 5-6). Deus diz a Bileâm para não ir com os
mensageiros e não amaldiçoar o povo israelita, “pois
é bendito” (v. 12). Essa afirmação é o ponto crucial
da narrativa. Como o S enhor os “abençoou”, os is­
raelitas são abençoados; nenhuma palavra de mal­
dição virá sobre eles. A palavra “bendito” identifica
Israel como um povo ao qual foi dada uma identi­
dade singular. A repetição da frase “saído do Egito”
nesta seção (w. 5.11) indica o Êxodo como o funda­
mento da vida de Israel, o relacionamento de aliança
que une o S enhor e Israel. Por causa desse relacio­
namento singular, Israel é abençoado com grande­
za, prosperidade e a presença do S enhor em seu
meio (w . 3.5.11).
É digno de nota que Bileâm age segundo a orien­
tação divina. Sua resposta ao convite dos mensa­
geiros é que o S enhor recusou-se a deixá-lo ir (v.
13). Desse modo, apresenta-se como profeta fiel à
palavra dita a ele.
Quando os mensageiros voltam para junto de
Balaq, não mencionam que Bileâm buscou a orien­
tação do S enhor; dizem apenas que se recusou a
vir com eles (v. 14).
22,15-20 Segundo apelo a Bileâm. Mais uma
vez, Balaq envia mensageiros a Bileâm. Dessa vez
são mais numerosos e mais importantes (v. 15).
Seduzem Bileâm com a promessa de uma bela re­
compensa e tudo que desejar, se vier e amaldiçoar
os israelitas (vv. 16-17).
A resposta de Bileâm indica sua total depen­
dência da palavra de Deus em todos os casos. Ele
diz que, independente do que Balaq lhe der, “eu
não podería fazer uma coisa, pequena ou grande,
contrária à ordem do S enhor, meu Deus” (v. 18).
Dado esse aviso, Bileâm mais uma vez pergunta o
que 0 S enhor lhe ordena (v. 19). Nessa noite. Deus
vem a Bileâm, dá-lhe permissão para acompanhar
os mensageiros e o previne para fazer exatamente
o que ele disser (v. 20).
O centro da narrativa é a dependência de
Bileâm da palavra do S enhor a cada passo. Antes
Deus ordenara a Bileâm que não fosse; agora lhe
diz que pode ir. Antes o S enhor dissera a ele para
não amaldiçoar aquele povo; agora a palavra do
S enhor é apenas: “farás o que eu te disser” (v. 20).
22,21-35 A jum enta falante. Segue-se uma
fábula independente, desajeitadamente encaixada
na narrativa. Deus acabou de lhe dizer para ir, mas
quando Bileâm sai com os dignitários Deus se en­
che de cólera porque ele foi (vv. 21-22a). No fim.
Deus mais uma vez diz a Bileâm para ir e falar
apenas o que o S enhor lhe disser (v. 35). É uma
volta ao tema da narrativa. Dentro desses parâme­
tros literários, é inserida uma fábula outrora inde­
pendente sobre uma jumenta falante, para aumen­
tar a sensação da necessidade que o profeta tem de
ficar atento à orientação do Senhor.

Segundo a fábula, Bileâm viaja de sua casa para
um local não citado. Como sua viagem está em
oposição ao que Deus lhe disse, “o anjo do S enhor”
bloqueia seu caminho. Três vezes a jumenta vê o
anjo e reage de acordo; e três vezes Bileâm bate na
jumenta para forçá-la a continuar a viagem (vv.
23-27). Somente a jumenta vê o que o profeta não
vê; ela responde ao anjo enviado para impedir
Bileâm de continuar em um caminho contrário à
intenção divina.
Na passagem seguinte, o animal e Bileâm con­
versam como se isso fosse perfeitamente normal.
A jumenta pergunta por que Bileâm lhe bateu três
vezes e afirma que nunca tratou Bileâm assim antes
e não 0 faria agora se não houvesse uma razão para
isso (w . 28-30). A inferência parece ser que Bileâm
devia ter confiado mais na percepção do animal do
que na sua.
Então o profeta vê o que antes só o animal vira,
cai de joelhos e prostema-se diante do anjo de Deus
(v. 31). O anjo censura-o pelo modo como tratou o
do animal e lhe explica que o caminho está barrado
porque sua viagem é contrária aos desígnios do
Senhor (vv. 32-33; c f o uso disso em 2Pd 2,15-16).
Bileâm confessa que pecou e decide voltar para casa
(V . 34).
A fábula mostra um Bileâm que tenta agir de
modo contrário à palavra do S enhor. O Senhor, en­
tretanto, intervém para mudar a ação. Essa tradição
negativa sobre Bileâm era freqüentemente lembrada
e reafirmada para demonstrar a ação de Deus pelo
bem (Cf Dt 23,5b-6; Js 24,9-10; Mq 6,5; Ne 13,2).
2236-40 Bileâm chega. A terceira passagem
na narrativa relata o primeiro encontro direto entre
o rei Balaq e Bileâm. Quando Balaq fica sabendo
da vinda de Bileâm, vai ao Amon, o rio que separa
Moab dos israelitas, para encontrar o profeta (v. 36).
Sua saudação é mais uma eensura por Bileâm não
ter vindo assim que foi convocado. Ele lembra ao
profeta que as recompensas seriam grandes (v. 37).
Como desculpa por sua recusa inicial, Bileâm
explica que só pode dizer o que Deus põe em sua
boca (v. 38). A resposta de Bileâm retoma o tema
da lenda e esclarece mais a dependência do profeta
em relação ao Senhor. O rei ouve pessoalmente o
que Bileâm diz sobre a fonte de sua palavra, mas
não entende as conseqüências da confiança que
Bileâm tem no S enhor, o Deus dos israelitas.
Esta passagem conclui com o sacrifício de ani­
mais pelo rei, partes dos quais são enviadas a Bileâm
e aos que o acompanham. Cada um dos oráculos
prestes a ser transmitidos é comunicado em um
lugar diferente, onde animais são sacrificados. A
mudança da cena sacrifical separa um oráculo do
outro.
22,41-23,12 Primeiro oráculo. Balaq e Bileâm
vão para Bamot-Báal, os lugares altos de Báal, de
onde podem ver alguns dos clãs de Israel (22,41).
Ali, Bileâm ordena que Balaq prepare sete altares
NÚMEROS 23
e ofereça sacrifícios em todos eles (23,1-2), o jeito
costumeiro de suplicar a uma divindade. Entretan­
to, o profeta deixa Balaq ao lado do altar e vai em
busca do S enhor. Anuncia ao rei que se o S enhor
o encontrar relatará o que ele o fizer conhecer.
Deus 0 encontra, põe “na boca de Bileâm uma
palavra” e lhe diz para voltar para junto de Balaq
e lhe falar a palavra (vv. 3-6).
Na tradição profética, as palavras “conhecer” e
“ouvir” (23,3; 24,4.16) são com frequência alterna­
das para expressar o meio pelo qual a palavra do
Senhor é recebida (veja Is 1,1;2,1; 13,l;Am l,l;M q
1,1). Alguns dos profetas eram visionários que fala­
vam a palavra segundo as visões que tinham (cf Is
6,1-13; Am 7,l-3.4-6.7-9; 8,1-3; 9,1-6; Ez 1-3).
Bileâm volta ao altar, onde deixara Balaq e os
dignitários (v. 6), e profere o oráculo que o S enhor
pôs em sua boca (vv. 7-10). Embora o oráculo não
contenha uma palavra de bênção explícita, Bileâm
não amaldiçoa Israel: “Como amaldiçoarei aquele
a quem Deus não amaldiçoou?” (v. 8). O oráculo
realça que Israel é um povo que vive separado das
nações; os israelitas são um povo único porque
pertencem ao Senhor ( v . 9). São um povo tão nu­
meroso que não podem ser contados; são como
“pó” ou “areia” (v. 10a). Essa grandeza é sinal da
bênção prometida a Israel (cf Gn 13,16; 28,14).
Bileâm conclui o oráculo invocando uma bênção
para si. para que ele e seus descendentes tenham o
mesmo aumento que Israel recebeu sob a bênção
de Deus (v. 10b).
É compreensível que Balaq fique aflito por causa
do oráculo de Bileâm (v. 11). Bileâm retruca com o
lembrete de que só pode repetir o que o S enhor põe
em sua boca (v. 12). Assim, Bileâm é consistente ao
se apresentar como alguém que depende totalmente
do S et^hor para toda palavra que pronuncia.
23,13-26 Segundo oráculo. Balaq e Bileâm vão
a outro lugar, o cume da Pisgá (cf. 21,20), do qual
podem ser vistos alguns dos israelitas. Ali preparam
sete altares e oferecem sacrifício em antecipação da
maldição (w. 13-14), As circunstâncias desse en­
contro são relatadas no mesmo padrão da tentativa
anterior de conseguir uma maldição.
O profeta diz ao rei para ficar perto de seu
sacrifício, enquanto ele se separa para um encontro
(v. 15). O S enhor se encontra mais uma vez com
Bileâm, põe uma palavra em sua boca e o manda de
volta a Balaq para falar a palavra (v. 16). Ao voltar
a Balaq e aos dignitários de pé junto ao sacrifício,
é 0 rei que cita o S enhor como fonte da palavra do
profeta; “Que disse o Senhor?” ( v . 17). Em respos­
ta, Bileâm profere o oráculo de bênção sobre Israel.
Ao procurar oráculos, a prática era persistir até
uma palavra favorável ser recebida. Balaq faz isso
porque não aprecia o relacionamento do S enhor com
Israel. O rei moabita não percebe que o S enhor é
um Deus que nunca “fala para depois não agir” (v.
19). O S enhor abençoou Israel e a palavra dada 175
 NÚMEROS 23
para Bileâm falar sempre será uma palavra de bên­
ção (v. 20). Nenhum mal pode advir a Jacó/Israel
porque o S enhor-D ous, seu rei, está com ele (v. 21).
O Deus de Israel trouxe este povo do Egito e é
impossível imaginar as maravilhas que Deus ainda
fará em benefício de Israel (vv. 22-23).
Duas metáforas descrevem a nação da qual o
Senhor é aliado. Israel “possui a força do búfalo”
(v. 22b), animal com chifres capazes de ferir os ini­
migos mais poderosos (compare Dt 33,17). E Israel
tem a força da “leoa” e do “leão”, que não descansam
enquanto não devoram a presa (v. 24; c f Gn 49,9;
Mq 5,7). O oráculo é um aviso claro; Israel, apoiado
pelo poder do S enhor, pode facilmente derrotar
Moab ou qualquer outra nação.
Depois desse oráculo, o rei demonstra impaciên­
cia com Bileâm. Diz ao profeta que, se não pode
amaldiçoar Israel, pelo menos não deveria aben­
çoá-lo (v. 25). Em vez de diminuir a força de Israel
Bileâm aclamou a união entre Israel e o Senhor,
fonte de força e poder.
A explicação de Bileâm mostra, mais uma vez,
por que a história é contada: Bileâm é um homem
que precisa fazer “tudo o que o S enhor disser” (v.
26). Com isso o profeta exemplifica uma caracte­
rística desejável para todo o Israel.
23,27-24,13 Terceiro oráculo. Embora duas
tentativas para conseguir uma maldição tenham sido
infrutíferas, Balaq tenta mais uma vez. Os dois vão
ao cume do Peor e preparam um sacrifício em sete
altares, como antes (23,27-30). Desta vez, entretanto,
Bileâm não deixa o rei a fim de consultar o Senhor;
imediatamente vê o S enhor abençoando Israel (24,1).
Bileâm levanta os olhos e vê Israel acampado por
tribos e o espírito de Deus vem sobre ele (v. 2). Dizer
que o “espírito de Deus” vem sobre alguém é atribuir
ao destinatário a investidura do poder de Deus.
Bileâm é como outras grandes figuras por intermédio
das quais o Senhor agiu em benefício de Israel, tais
como os juizes (cf Jz 3,10; 6,34; 14,6.19); os profe­
tas (cf ISm 10,10; Mq 3,8); e os reis (cf ISm 10,6.10;
11,6; 2Sm 23,2).
O oráculo de Bileâm vem de alguém que vê a
verdade, porque o que o profeta vê e ouve é a pa­
lavra do S enhor dada a ele (vv. 3-4). O oráculo
enfatiza mais uma vez a força e a vitalidade dos
israelitas. Fala da plenitude da bênção de Israel e
do poder, da prosperidade e da vida que fluem des­
sa bênção. Tantas e tão grandes são as tendas dessa
nação que são comparadas à abundância dos jar­
dins bem regados e à força dos cedros vigorosos
(vv. 5-6). Não haverá fim para sua prosperidade;
seus poços transbordarão com água; possuirá as
terras até o mar e seu rei dominará todos os outros
(vv. 6-7). Israel é descrito em sua grandeza, resul­
tado da bênção prometida a Abraão (Gn 12,2-3) e
realizada quando se tomou uma nação (2Sm 7-8).
Por causa do relacionamento de aliança enrai-
176 zado na saída do Egito (v. 8a), Israel tem uma vita­
lidade comparável à do búfalo que devora as nações
adversas (v. 8; cf. 23,22) e à de um leão e uma leoa
cercando a presa (v. 9a; cf. 23,24). A mensagem aos
vizinhos de Israel é que este povo é abençoado por­
que é o povo do S enhor. Para as nações, confirmar
a bênção seria aceitar o Senhor como Deus e, por­
tanto, ficar sob a promessa de abençoar a si mes­
mas. Isso cumpriría a promessa “Bendito seja quem
te abençoar, e maldito quem te amaldiçoar!” (v. 9b;
cf. Gn 12,3a). Como o rei de Moab está decidido a
amaldiçoar Israel, a conseqüência para sua nação é
a derrota certa.
Balaq fica muito encolerizado porque Bileâm
abençoou Israel três vezes e dispensa-o sem recom­
pensa e com a observação de que o S enhor é respon­
sável por ele ser privado da recompensa (v. 11), como
se para ridiculizar Bileâm por ter obedientemente
falado a palavra de Deus sem tentar obter uma gran­
de recompensa e honra, manipulando a palavra. Até
0 fim, Bileâm fica firme em seu propósito. A remu­
neração não importa, como disse antes aos mensa­
geiros (v. 12; c f 22,18). Sua única motivação é fazer
0 que 0 Senhor ordena e dizer o que o Senhor põe
em sua boca (v. 13). Só uma coisa lhe interessa —
não agradar o anfitrião, não riqueza, nem honraria,
mas fazer e dizer o que o S enhor ordena.
24,14-25 Q uarto oráculo. Antes de seguir seu
caminho, Bileâm fala uma palavra espontânea que
anuncia a vitória definitiva de Israel sobre os po­
vos da região. E um oráculo magnífico pronuncia­
do sobre a palavra do S enhor (vv. 15-16), a culmi­
nância de uma série de oráculos. Promete a futura
ascensão da nação — uma “estrela” e um “cetro” de
Jacó/Israel (v. 17a). Esses símbolos para soberanos
e reis indicam a monarquia davídica (cf. Gn 49,10).
O império incluirá Moab e Edom, os povos que ne­
garam a Israel passagem por suas terras (vv. 17b-19;
20,14-21; 21,10-20; c f 2Sm 8,11-12). O oráculo
propriamente dito termina nesse ponto, com o anún­
cio da derrota das nações.
O oráculo se expande com uma série de ditos
que começam da mesma maneira: “Bileâm viu... e
proferiu seu encantamento nestes termos” (vv.
20a.21a.23a). Estes ditos atacam outras nações que
ameaçaram Israel em diversas épocas de sua histó­
ria. “Amaleq” (v. 20b) refere-se às tribos errantes
dos desertos do Sinai, tradicionalmente os mais
odiados inimigos de Israel. Os israelitas enfrenta­
ram os amalequitas logo que saíram do Egito (Ex
17,8-13; Dt 25,17-19) e outra vez quando procura­
vam entrar (Nm 14,43-45) e colonizar a terra (Jz
3,12-13; 6,3.33; 7,12; 10,12). Os amalequitas fo­
ram derrotados sob Saul (ISm 14,48; 15,2-9) e
novamente sob David (ISm 30,1-20; 2Sm 8,12).
A razão pela qual os qenitas são citados entre
as nações inimigas não é certa, pois, segundo a
tradição, os qenitas são ancestrais de Moisés (veja
Jz 1,16; 4,11). A tradição também afirma que os
qenitas habitaram entre os amalequitas (cf ISm

15,6; Jz 1,16). É provável que devido a sua associa­
ção com 0 pior dos inimigos de Israel enfrentem a
derrota descrita no oráculo (v. 22). O primeiro verso
do oráculo, v. 21b, embora de significado obscuro,
contém as palavras “morada” e “ninho”, ambas as
quais fazem jogo de palavras com o som de “qenita”
em hebraico. O valor poético tem mais importância
que o significado.
Finalmente, os ismaelitas, descendentes de
Abraão e da serva Hagar (Gn 16; 21), são eitados
entre os inimigos a ser derrotados (v. 24a; cf. Gn
16,12). Os ismaelitas que habitavam o deserto de
Paran (Gn 21,20-21), espalharam-se pela terra desde
o Egito até Ashur (Gn 25,18), entre os outros ini­
migos vizinhos (cf. SI 83,7-8).
Neste caso, os vitoriosos não serão os israelitas,
mas sim os Kitim, que também derrotarão Ashur
(os assírios e Êber), ancestral patronímico da região
que Abrão deixou pela Terra Prometida (cf. Gn
10,21-25). “Kitim” é o nome dado ao povo que
povoou a ilha de Chipre (Is 23,1.12; Jr 2,10; Ez
27,6). Sem dúvida, os Kitim eram os povos do mar,
os filisteus, que invadiram terras às margens do mar
Mediterrâneo, inclusive Canaâ e a terra de outros
inimigos de Israel. A referência aqui às vitórias dos
filisteus trata de seu futuro papel como provocado-
res no surgimento do império (cf. ISm 4—6; 2Sm
5,17-25) e sua derrota por Israel: “também ele corre
para a ruína” (v. 24b; Js 13,2-3; 2Sm 5,17-25; 8,12).
Todos os oráculos, mesmo os acrescentados,
são dirigidos à derrota dos inimigos de Israel e à
ascensão deste como grande nação. Os oráculos são
apropriadamente proferidos no momento da che­
gada de Israel à planície de Moab, para se projetar
deste lugar para a futura posse da terra. No restante
do livro, toda a ênfase está na vida futura de Israel
na terra. Até Bileâm, da forma como está inserido
nesta tradição, serve de modelo para uma vida fiel
à palavra de Deus. Como Bileâm obedeceu à pa­
lavra do S enhor, o resultado foi a bênção, e isso é
prometido a um Israel obediente.
O capítulo 25 contém duas narrativas, vv. 1-5
e 6-13, que têm como cenário um lugar próximo à
Terra Prometida. Ambas envolvem mulheres e falam
da infidelidade israelita e do castigo conseqüente.
Funcionam como prenuncio de como será a vida
quando Israel entrar na terra (c f Jz 2,10-23). Essas
narrativas seguem imediatamente os oráculos de
bênçãos para esclarecer que a bênção não é automá­
tica, mas dependente da fidelidade ao relaciona­
mento da aliança entre o S enhor e Israel.
25,1-5 Culto de Báal de Peor. Por ironia, o que
Balaq não conseguiu fazer a Israel por meio de mal­
dição, 0 povo mesmo faz. Balaq desejara que a maldi­
ção trouxesse vulnerabilidade e destruição, os resul­
tados da separação de Deus. Essa narrativa relata
como 0 povo se afasta de Deus e desencadeia sobre
si mesmo a cólera de Deus e o castigo da morte.
NÚMEROS 25
O incidente acontece em Shitim (v. la; 33,49),
lugar de onde mais tarde os israelitas partiríam
para atravessar o Jordão e chegar a Canaã (cf Js 2,1;
3,1). Eles têm relações com as mulheres moabitas,
sacrificam aos deuses delas e comem os sacrifícios
(vv. lb-2). Essa descrição sugere que o povo tomou
parte nos ritos de fertilidade da religião canaanita.
O deus da fertilidade, Báal, era aplacado por atos
sexuais e sacrifícios, na tentativa de garantir a pro­
dutividade do solo e a procriação. Essas práticas
mostraram-se bastante tentadoras a Israel na Terra
Prometida (cf. Os 2,10.15; 4,14) e expressavam a
rejeição do S enhor por Israel (cf Jz 2,13; 3,7; Dt
6,12-14; 7,5; 8,19 etc.). Por toda a terra havia lu­
gares altos para o culto de Báal. O nome Báal de
Peor refere-se simplesmente a um desses lugares
em Peor (v. 3a).
Voltar-se para outro deus é rejeitar o S enhor e
provocar sua cólera do Senhor, já que é um Deus
ciumento (cf Dt 4,24; 5,9; 6,15; Ex 20,5; 34,14-15).
Como 0 povo, na verdade, afastou-se do S enhor,
Moisés recebeu ordens para fazer os chefes execu­
tarem os culpados à vista de toda a comunidade
(vv. 4-5). O castigo costumeiro para a transgressão
da união da aliança é o enforcamento público com
a quebra dos ossos (cf 2Sm 21,6.9.13). A palavra
usada para esse castigo significa também alhear-se
um do outro (Jr 6,8; Ex 23,17-18). Assim, a conse-
qüência da separação entre parceiros de aliança é
a separação dos membros do corpo.
25,6-15 Zelo de Pinhás. A segunda narrativa
aborda o tema de infidelidade e castigo, mas seu
principal ponto de interesse é a legitimação do sa­
cerdócio sadoquita, que alega descendência de
Eleazar por intermédio de Pinhás (cf Ex 6,25; ICr
24,3a; 2Sm 8,17).
Nâo há nenhuma ligação com o que aconteceu
em Peor, e parece que estão faltando partes da his­
tória. O povo chora à entrada da tenda do Encontro
(v. 6b) e uma praga está matando israelitas (v. 8b).
Não há menção explícita da praga, o castigo costu­
meiro para o pecado, embora isso esteja certamente
subentendido. E a natureza do pecado não está clara.
O fragmento narrativo conta apenas que um israelita
trouxe uma midianita para o acampamento (v. 6a)
e que, quando Pinhás, neto de Aarão, vê isso, tras-
passa ambos com sua lança, desse modo aplacando
o furor divino (v. 11). Para destacar o feito de Pinhás,
os nomes do homem e da mulher aparecem no texto,
junto com sua ascendência. Ambos eram de origem
nobre (vv. 14-15).
A ação de Pinhás obtém para ele a fama de zelo
pela honra divina (v. 11; c f Sr 45,23-24) e a suces­
são ao sacerdócio. A palavra do Senhor a Moisés é
penhor de amizade com Pinhás e seus descendentes
que lhes concede direitos especiais (vv. 12-13; c f a
história dos levitas em Ex 32,25-29).
A presença da história de Pinhás em Números
reflete as lutas entre os grupos de sacerdotes por 177
 NÚMEROS 25
posição e poder depois do Exílio. Embora o sacer­
dócio sadoquita que descendia de Pinhás dominas­
se desde a época da primeira monarquia, sua posi­
ção precisa ser assegurada uma vez mais enquanto
a comunidade anseia por se reinstalar na terra.
25,16-18 Vingança contra os midianitas. Um
apêndice às narrativas serve para juntar os dois
incidentes anteriores, alegando que a midianita foi
responsável pela infidelidade em Peor e ligando
sua morte e a praga dos israelitas à infidelidade
em Peor (v. 18).
Esta passagem é obra do autor sacerdotal, que
tinha outro propósito em mente— explicar por que os
midianitas tomaram-se inimigos (v. 16), embora tra­
dicionalmente fossem amigos e até aparentados com
a mulher de Moisés (cf. 10,29). A continuação dessa
passagem e a execução da praga sobre os midianitas
seguem-se em 31,1-18.
26,1-51 Segundo recenseamento. O autor sa­
cerdotal liga o novo recenseamento à narrativa, re­
ferindo-se à praga (25,18b; 25,8-9), embora ele não
seja resultado desse castigo. Como toda uma gera­
ção de israelitas pereceu no deserto, de modo que
não restava nenhum dos citados no primeiro recen­
seamento, exceto Kaleb e Josué, o Senhor ordena a
Moisés e a Eleazar, que sucedera a Aarão (20,22­
29) que façam um levantamento dos que estavam
prestes a entrar na terra. Este recenseamento acon­
tece enquanto o povo está acampado às margens do
Jordão na planície de Moab, em antecipação da
entrada na terra (v. 2; cf. v. 63).
O cabeçalho da lista, os “que haviam saído da
terra do Egito” (v. 4b), pode ser desorientador. Tem
0 propósito de mostrar que o segundo recenseamento
equipara-se e substitui o primeiro, realizado no Sinai
(cf 1,1.19a).
Os critérios para os recenseados são os mesmos
do primeiro recenseamento. A contagem inclui ho­
mens de vinte anos pata cima que estejam aptos para
0 serviço militar, são relacionados pela linhaigem
paterna (w. 2.4; veja 1,2-3.18). A ordem das tribos é
a mesma do primeiro recenseamento (1,20^3), exceto
por Manassés, que está relacionado antes de Eftaim
(v. 28; c f 1,32-35). Nessa segunda lista, os clãs indi­
viduais também são citados para enfatizar a estrutma,
o tamanho e a genealogia tribais na época pós-exílica.
(Há outras listas de clãs em Gn 46,8-25 e ICr 2, com
variações que refletem flutuações na estrutura em
épocas históricas diferentes.)
O propósito da lista de recenseamento é deter­
minar o tamanho proporcional de cada grupo, em
preparação para a partilha da terra que se seguirá
(vv. 52-56). Uma comparação entre os números
nas duas listas revela que, enquanto os totais não
diferem muito — 601.730 em 26,51 e 603.550 em
1,46 —, há mudança marcante na força das tribos
individuais. Cinco tribos — Rúben, Simeão, Gad,
Effaim e Neftali — diminuíram de tamanho; e Si-
178 meão, que era a terceira maior no primeiro recen­
seamento (1,23), agora é a menor (v. 14). O maior
aumento é registrado por Manassés (v. 34; c f 1,35),
fato que justifica a transposição de ordem entre ela
e Eftaim (v. 28; c f 1,32.34). Judá mantém sua po­
sição como a maior das tribos em ambas as listas
(V. 22; c f 1,27).
A lista toma-se mais interessante graças ao
comentário nos vv. 9-11. Essa elaboração está colo­
cada aqui para justificar a perda de determinados
clãs. Datan e Abirâm (v. 9) pereceram por causa de
sua revolta, o mesmo acontecendo com os filhos
de Qôrah (cf o cap. 16). O lembrete de que nem
todos os filhos de Qôrah morreram (v. 11) reflete
um período posterior, quando os filhos de'Qôrah
estavam ativos como cantores (cf os cabeçalhos
de SI 42; 44-49; 84; 85; 87). A menção no v. 19 da
morte de Er e Onan, filhos de Judá, tem o mesmo
efeito. A perda desses clãs é lembrada porque deixa­
ram de obedecer à lei de Deus. A história é contada
em Gn 38,6-10.
Um problema oposto, a possibilidade da ex­
tinção de um clã, é a razão do comentário sobre
Selofhad no v. 33. É afirmado que este indivíduo,
chefe de um clã, tem cinco filhas, mas nenhum filho.
O problema que surge quando só há herdeiras é
tratado em 27,1-11 e no capítulo 36.
26,52-56 Partilha da terra. O recenseamento
é realizado em preparação para a distribuição da
terra. Dois principios nos quais a partilha se baseará
são expostos nessa legislação. A terra será repartida
de acordo com o tamanho da tribo (vv. 53-54) dis­
tribuída por sorteio (v. 55). Uma legislação sumá­
ria tenta harmonizar os dois principios, combinando
os dois métodos (v. 56; 33,54). O sumário combina
0 elemento humano do tamanho tribal e o elemento
divino do sorteio.
26,57-62 Recenseamento dos levitas. À parte,
é realizado um recenseamento dos levitas, exata­
mente como antes (3,17-39). Como no primeiro
recenseamento, o critério para sua contagem é a
época do nascimento (v. 62a; cf. o comentário so­
bre 3,14-39). Entretanto, no primeiro recenseamento
são contados separadamente por causa de sua consa­
gração ao serviço do santuário (1,47-54); aqui é
porque não recebem nenhuma terra como patrimô­
nio (v. 62b). Esse recenseamento é realizado em
preparação para a partilha de cidades e da terra
onde os levitas podem residir na terra dada às tribos
como patrimônio (cf 35,1-8).
Os grupos de levitas citados no v. 57 são os
três tradicionais: Guershon, Qehat e Merari. Estão
relacionados aqui como chefes de clãs, não sim­
plesmente como filhos de Levi (compare 3,17),
para enfatizar que seus descendentes é que viverão
nas cidades designadas. Os clãs citados no v. 58 são
apenas cinco dos que constavam da lista de 3,17-20.
Só podemos especular que esses cinco clãs levíticos
eram mais proeminentes na época em que isso foi
redigido.

A genealogia de Amrâm, descendente de Qehat,
é traçada em detalhe porque dessa linhagem vieram
Moisés, Aarão e Miriâm (vv. 59-60; cf. Ex 6,20)
Somente a família de Aarão (v. 60) recebe outra
menção. A lembrança da morte de Nadab e Abihu
atribui a perda dessas famílias a sua infidelidade
(v. 61; cf. 3,4; Lv 10,1-5) e indiretamente indica
Eleazar e Itamar como os únicos sucessores na li­
nhagem sacerdotal.
26,63-65 Conclusão do recenseamento. Uma
breve afirmação anuncia a conclusão do recensea­
mento na planície de Moab, como se quisesse fazer
O leitor voltar à percepção de que o povo está no
limiar da terra (v. 63). Os que estão registrados fa­
zem parte da nova geração que cresceu no deserto
enquanto esperava a morte dos pais. Junto com
Kaleb e Josué, foram poupados do julgamento (v.
65; cf. 14,28-35).
27,1-11 Patrimônio de filhas. Essa passagem
contém uma questão legal para a qual não há so­
lução na legislação vigente. O assunto, portanto,
precisa ser trazido diante dos chefes da comunida­
de (v. 2), que, por sua vez, buscam a orientação do
S enhor (v. 5). Encontramos outros casos semelhan­
tes em 9,6-14 e 15,32-36. Cada um dá exemplo de
novas instruções para uma situação específica, tor­
nando-se precedente para a prática subseqüente.
O caso em questão refere-se às cinco filhas de
Selofhad, da tribo de Manassés (v. 1; cf. 26,33),
únicas descendentes de seu pai. Em circunstâncias
normais, a terra da família passa para os filhos,
que têm o direito exclusivo de retê-la, bem como o
nome da família. As filhas argumentam que o nome
de seu pai desaparecerá da tribo, só porque ele não
tem filhos. Sem nenhum homem para herdar a terra,
não haverá propriedades na família e o nome da
família não mais existirá na comunidade. As filhas
pedem para herdar a terra e, assim, manter vivos o
nome e o patrimônio de seu pai (v. 4). Seu argu­
mento é persuasivo. Salientam que, embora seu pai
tivesse morrido no deserto, sua morte não se rela­
cionava com 0 julgamento de Qôrah (16,16-24.35).
Ele morreu “por causa do próprio pecado”, o que
significa que estava sujeito ao julgamento geral
sobre o Israel rebelde (cf. 14,26-35). Não há, por­
tanto, nenhuma razão para o nome do pai delas ser
eliminado.
A decisão de Moisés primeiro responde ao pe­
dido das filhas e depois dá uma nova legislação
geral pertinente ao patrimônio. O caso é decidido
a favor das filhas; recebem a herança do pai e um
lugar dentro da família, em virtude de sua herança
(v. 7). A legislação geral que se segue estabelece
que a herança familiar seja mantida dentro da fa­
mília, embora não haja filhos (vv. 8-1 la). A norma
legal estipula que a terra seja mantida na família
na linha paterna (v. 1 Ib) para assegurar que nenhu­
ma propriedade seja perdida para determinada tribo,
desse modo desequilibrando os bens tribais.
NÚMEROS 27
Esta legislação especial é significativa neste
ponto da narrativa porque a terra em questão per­
tence à metade da tribo de Manassés que se esta­
belecerá na Transjordânia (v. 1; cf. 32,39-42). A
questão da herança da terra pelas filhas de Selofhad
estabelece um direito territorial à terra que será
designada antes da travessia do Jordão.
27,12-22 Josué sucede a Moisés. O tempo da
liderança de Moisés está chegando ao fim. O mode­
lo é o mesmo que o da passagem da morte de Aarão
em 20,22-26. Moisés recebe ordens para subir à
montanha da cordilheira dos Abarim (v. 12), Nebô,
o lugar de sua morte, para contemplar a Terra Prome­
tida (cf. Dt 32,48-52; 33,47; 34,1-6). Antes da morte
de Moisés, o S enhor lembra-lhe que ele não chega­
rá à terra por causa de sua infidelidade no deserto
(v. 14a). A menção das “águas de Meribá de Qadesh”
(v. 14b) tem a finalidade de lembrar o incidente,
que envolveu uma “contenda” (Meribá) sobre água,
durante a qual Moisés foi instruído para manifestar
a “santidade” (Qadesh) do S enhor, ordenando que a
água jorrasse (cf 20,2-13).
A última preocupação de Moisés é a designação
de um sucessor capaz de chefiar o povo. Dirigin­
do-se ao S enhor como “o Deus que dispõe do sopro
de toda criatura”, título para o Criador (cf. também '
16,22), Moisés pede ao S enhor que preserve a vida
da nação, escolhendo para ela um novo chefe (v.
16). Um chefe que, literalmente, “saia e entre”,
“que os faça sair e os faça entrar”, como um pastor
conduz as ovelhas (v. 17). O papel do chefe será
novo, embora em sucessão a Moisés. Por isso pede
Moisés ao Criador uma coisa nova. As frases “saia
e entre”, “que os faça sair e os faça entrar” são
linguagem técnica para liderança politica e militar
(cf ISm 18,13.16; 29,6; Js 14,10b-ll; IRs 3,7),
como a referência ao pastor (IRs 22,17; Ez 34,5-6;
Zc 10,2-3; 11,8; 13,7). O sucessor de Moisés che­
fiará 0 povo nas batalhas da conquista e no assenta­
mento na terra.
O escolhido para essa tarefa é Josué, filho de
Nun, homem inspirado que já demonstrou ter uma
capacidade dada por Deus para a liderança (cf.
11,28; 14,6.30.38; também Dt 34,9)
A cerimônia de investidura tem o efeito de
distinguir o papel de sacerdote do de líder político.
Josué fica diante do sacerdote Eleazar e de toda a
comunidade (vv. 19.22), e Moisés lhe impõe as
mãos (v. 18), sinal de transferência de autoridade
ao sucessor (v. 20). Josué, entretanto, não é igual
a Moisés, que recebia instruções diretamente do
S enhor (c f 12,6-8). Ele buscará orientação por in­
termédio do sacerdote, que usará as sortes sagra­
das, o Urim e o Tumim, para obter a decisão do
S enhor (v. 21; veja Dt 33,8; Ex 28,30)
Nesta investidura, Josué recebe autoridade de
Moisés, para que o povo o obedeça (v. 20b); mas,
em todos os outros aspiectos, o papel de Josué é dife­
rente. A transição na liderança salienta a singulari- 179
 NÚMEROS 28
dade do papel de Moisés em toda a história israelita;
também remonta à distinção entre o poder sacerdotal
e o político à época de Josué. Este último era questão
de preocupação especial na época posterior ao Exílio
(cf. Zc 6,12-13; 4,14; Ez 45,17; 46,2).
Moisés realiza a investidura de Josué exatamente
como o S enhor lhe ordenou (w. 22-23). A designa­
ção de um sucessor está completa e a morte de Moisés
é esperada. Porém o relato da morte está separado na
estrutura do documento, para que Moisés possa com­
pletar a instrução do povo. Toda a legislação final é,
assim, atribuída a Moisés. O relato de sua morte
encontra-se em Dt 32,48-52; 34,1-9.
Os capítulos 28-29 contêm os preceitos para o
culto sacrifical público a ser realizado pela comu­
nidade na terra. A ênfase está no culto pela comuni­
dade como um todo e lida com observâncias coti­
dianas, semanais, mensais e anuais. São preceitos
que os sacerdotes reuniram neste lugar e atribuíram
a Moisés. Uma lista comparável, embora menos
detalhada, encontra-se em Lv 23.
28,1-2 Sacrifícios gerais. Essa introdução es­
tipula que, no tempo fixado, serão holocaustos apre­
sentados a Deus. Queimados sobre o altar, produ­
zem um odor agradável ao S enhor. A linguagem
fala em sentido figurado de Deus realmente se de­
leitando com o odor do alimento apresentado. “Ofe­
rendas queimadas de agradável odor” é metáfora
para um sacrifício aceitável.
28,3-8 Toda manhã e todo entardecer. Os ho­
locaustos de manhã e ao entardecer consistem em
dois cordeiros de um ano, um oferecido de manhã e
0 outro ao entardecer (vv. 3-4), junto com uma obla-
ção (v. 5) e uma libação (v. 7). O vinho é derramado
ao redor do altar e o alimento é completamente quei­
mado sobre o altar como sinal de dedicação plena
ao S enhor. Essa oblação é a oferenda comunal re­
gular exigida e o sacrifício básico ao qual são acres­
centadas todas as outras oferendas. Como tal foi
legislada no Sinai (cf Ex 29,38-42). A referência a
esta tradição sinaítica é feita no v. 6.
28,9-10 No sábado. Para separar o sábado dos
outros dias, são apresentados um holocausto, uma
oblação e uma libação, além das oblações normais.
Assim, a oferenda do sábado é o dobro da dos dias
de semana.
28,11-15 Na festa da lua nova. No calendário
antigo, o dia da lua nova marca um novo início e
é tratado como dia de festa. É necessário um sacri­
fício de quantidade maior. Além dos sacrifícios
normais para cada dia (v. 15b), o sacrifício para
essa ocasião festiva consiste em dois novilhos, um
carneiro e sete cordeiros (v. 11), com quantidades
proporcionais de cereal e vinho para cada um dos
animais (vv. 12-14; cf. o comentário sobre 5,1-16).
Além disso, é oferecido um bode em sacrifício
pelo pecado (v. 15). As oferendas aqui relaciona­
das são as oblações costumeiras para todas as oca-
180 siões solenes.
28,16-25 Na Páscoa. A festa da Páscoa é cele­
brada no décimo quarto dia do primeiro mês do ano
(v. 16; c f 9,1-5; Ex 12,2.18) e, o dia seguinte, chama­
do de festa dos Pães sem fermento, é o início do pe­
ríodo de sete dias durante o qual se comem apenas
pães sem fermento (v. 17). O primeiro e o sétimo
dia desta semana são ocasiões sagradas para reunião,
quando não se realiza nenhum trabalho (vv. 18.25).
Em cada um dos sete dias, é oferecida a oblação
apropriada para festas solenes (vv. 19-22; c f vv. 11­
15 acima). E um acréscimo ao holocausto exigido
para cada dia (vv. 23-24).
28,26-31 Em Pentecostes. Sete semanas depois
da festa da Páscoa, é celebrada a festa da colheita.
Presentes das primícias são trazidos ao Templo co­
mo oferenda (v. 26a; cf. Lv 23,9-22). Esse dia é uma
ocasião sagrada, quando não se pode fazer nenhum
trabalho (v. 26b). O sacrifício aceitável para essa
festa solene consiste nos holocaustos e no sacrifí­
cio pelo pecado prescritos para todas essas festas
(vv. 27-30; cf. os vv. 19-22.11-15). Essas oferen­
das são feitas em acréscimo às exigidas para cada
dia (v. 31).
29,1-6 No dia de Ano Novo. O primeiro dia
do sétimo mês, também ocasião da lua nova (veja
28,11-15), marca o início do Ano Novo. Essa festa
solene é, às vezes, chamada de festa das Trombe-
tas, porque nela se faz soar a trombeta (v. 1c; c f
o comentário sobre 10,1-10). Nessa ocasião sagra­
da não é permitido nenhum trabalho (v. Ib) e são
oferecidas as oblações prescritas para todas essas
festas, exceto que apenas um novilho é prescrito,
em vez dos dois de costume (vv. 2-5; c f 28,11-15).
O que justifica a mudança no número de animais
exigidos é o fato de as oferendas para a ocasião se­
rem acréscimo às oblações exigidas para a lua nova
mensal e para a oferenda cotidiana (v. 6).
29,7-11 No dia do G rande Perdão. O décimo
dia do mesmo mês que o dia de Ano Novo (v. 7a;
c f V. 1) é 0 dia do Grande Perdão, dia de jejum e
abnegação. Não se pode realizar nenhum trabalho
neste dia (v. 7b). A oferenda é a mesma do dia de
Ano Novo, com um animal a menos (v. 8; compare
V . 2) e a oblação (vv. 9-10 ) e os sacrifícios pelo pe­
cado costumeiros (v. 11a). As oferendas prescritas
para o dia são acréscimo à exigida para o sacrifício
pelo pecado do dia do Grande Perdão (v. 1 Ib; cf. Lv
16 para o ritual do bode expiatório).
29,12-39 Na festa das Tendas. Exatamente seis
meses depois da Páscoa e da peregrinação de sete
dias dos Pães sem fermento, Israel celebra outra festa
que dura oito dias (v. 12; compare 28,16-17). O pri­
meiro e o último dias são ocasiões sagradas nas quais
não é permitido nenhum trabalho (w. 12.35). É uma
alegre celebração da colheita, com peregrinação e
grandes sacrifícios. Neste dia, Israel recorda o tempo
passado no deserto (veja Lv 23,39^3).
Os holocaustos exigidos para cada dia da festa
são relacionados em detalhe. No primeiro dia, são

oferecidos treze novilhos, dois carneiros e catorze
cordeiros de um ano (v. 13). Em cada dia subse-
qüente, o número de novilhos diminui em um, en­
quanto 0 número de outros animais permanece o
mesmo (vv. 17.20.23.26.29.32). As oblações e
libações proporcionais acompanham o holocausto
de cada dia e o sacrifício pelo pecado é realizado
todos os dias, além das oferendas costumeiras exigi­
das para cada dia (v. 16). No oitavo dia (vv. 35-38),
0 sacrifício prescrito é o mesmo que o exigido
para as outras festas celebradas no sétimo mês —
a do Ano Novo (vv. 2-5) e a do dia do Grande
Perdão (vv. 8-10).
O comentário final no v. 39 conclui os capítulos
28-29. É um lembrete que a relação de oferendas é
0 sacrifício exigido para cada ocasião. Entretanto,
os indivíduos podem fazer outras oferendas além
dessas, de acordo com sua capacidade e seu desejo.
30,1-17 Validade e anulação de votos. A obe­
diência total de~Moisés é realçada com o comen­
tário no V. 1. Está colocado aqui como lembrete
que os preceitos anteriores e posteriores devem ser
obedecido pela comunidade devota fiel.
Esta seção trata apenas da questão de quando
votos ou compromissos feitos a Deus são obriga­
tórios. Esta legislação sobre votos esclarece a ques­
tão de autoridade e é, portanto, dirigida aos chefes
das tribos (v. 2).
O varão, como tem plena autoridade, é sempre
responsável por suas ações e deve, portanto, cumprir
o voto ou o compromisso que faz (v. 3). A mulher,
por outro lado, não tem autoridade; é dependente
do pai antes e do marido depois do casamento (cf.
V. 17). Somente a viúva ou a divorciada, ambas
contadas entre os desprivilegiados, são responsáveis
pelas próprias ações (v. 10). Todas as outras mu­
lheres estão sob a autoridade dos homens. Os pre­
ceitos deste capítulo asseguram que a mulher não
deve fazer nada que possa privar a família de pro­
priedade ou descendência, pois os membros ho­
mens retêm o direito a ambas. Por exemplo, a mu­
lher poderia dedicar um filho a Deus (cf 1Sm 1,11)
ou assumir um compromisso que resultaria na perda
de bens.
A legislação divide-se em três seções: leis que
govemam a mulher solteira que mora na casa do
pai (vv. 4-6); leis que govemam a mulher que fez
votos antes do casamento (vv. 7-9) e leis que go­
vemam a mulher casada (vv. 11-13). Em cada caso,
a situação para fazer o voto é a mesma. Se o pai
ou marido nada diz ao ficar sabendo do voto, este
é válido e a mulher deve cumpri-lo (vv. 5.8.11-12).
Se, por outro lado, o pai ou marido desaprova o
voto, este não obriga. A voz do marido invalida o
voto e desobriga a mulher de cumpri-lo perante o
S enhor ( vv. 6.9.13).
A seção final, vv. 14-16, tem o propósito de im­
pedir que o voto se tome caso de divisão no casamen­
to. A autoridade do marido deve ser exercida assim
NÚMEROS 31
que ficar sabendo do voto. A responsabilidade pela
falta de cumprimento do voto recai sobre o marido,
se ele tentar invalidá-lo mais tarde.
O capítulo 31 relata uma guerra santa contra
os midianitas como prelúdio à série de guerras em
que Israel se envolverá para tomar posse da terra.
Em todos os casos uma guerra santa termina com
uma vitória ideal, porque é uma guerra da qual o
S enhor participa.
O relato da guerra é seguido de descrições dos
ritos de purificação e disposição de despojos que têm
como seu interesse a pureza ritual e a lealdade a Deus
esperada de um povo que vive com Deus em seu
meio. As ações que se seguem à batalha estão de
acordo com os preceitos estabelecidos em Números
e dão testemunho da fé de Israel na presença de
aliança do S enhor. Este capítulo foi formado para
esclarecer o significado da fidelidade total e intran­
sigente ao S enhor e para encorajar os que voltavam
do Exílio à terra, se enfrentassem dificuldades na ten­
tativa de se reinstalar como comunidade de fé.
31,1-18 G u erra contra os midianitas. O nar­
rador escolhe como contexto para a guerra santa o
incidente da midianita (25,6-15). Anteriormente ele
foi ligado a Peor (25,16-18), e aqui ambas as narra­
tivas, de Peor e da midianita, estão ligadas ao pro­
feta Bileâm (vv. 8b. 16). Outros pontos de contato
são 0 sacerdote Pinhás, que chefia a batalha contra
os midianitas (v. 6) e que, no incidente da midianita,
demonstrou zelo pelo S enhor, traspassando o casal
com uma lança (25,7.11-13), e a menção de Sur,
um dos cinco reis midianitas mortos (v. 8a), que
era também o pai da midianita (25,15). A guerra
santa é combatida para cumprir a maldição sobre
Midian que se seguiu ao caso da midianita (cf
25,16-17).
A base pápa uma guerra santa é o entendimento
que o inimigo'de um povo é inimigo do deus desse
povo. Assim, 0 deus executaria a vingança (v. 3b).
Neste contexto, a palavra técnica “vingança” signi­
fica demonstração de poder ou uso de força pela
autoridade legítima contra o inimigo desse poder e
autoridade. Por uma razão não esclarecida na nar­
rativa antiga, os midianitas se mostram inimigos
de Israel e, assim, provocam uma exibição do poder
do S enhor . Os componentes de uma guerra santa
são os usuais: um número limitado de homens toma
parte na luta (vv. 4-5); cerram fileiras atrás do chefe,
que leva consigo as alfaias do santuário e as trom-
betas para os sinais (v. 6), e a vitória é completa
(vv. 7-8). Há outra descrição de uma batalha contra
os midianitas sob a liderança de Guideon, à qual este
relato corresponde em muitos pontos (cf Jz 6-8).
Para exprimir a posse completa pela divindade
vitoriosa, tudo que é tomado em combate pertence
ao S enhor. Por essa razão os israelitas matam todos
os homens (v. 7); queimam as cidades e os acampa­
mentos (v. 10) e apresentam as mulheres, as crian- 181
 NÚMEROS 31
ças, todos os rebanhos e objetos valiosos a Moisés,
ao sacerdote Eleazar e à comunidade (w. 9.11-12).
Mas, por causa das circunstâncias que tomaram ine­
vitável a guerra, Moisés irrita-se porque as vidas
das mulheres foram poupadas (vv. 13-16). Ordena a
morte de todas as crianças do sexo masculino e de
todas as mulheres, exceto as virgens (w. 17-18).
31,19-24 Purificação após o combate. Tudo
e todos que entram em contato com um cadáver
tomam-se impuros e devem submeter-se a um ritual
de purificação (cf. o cap. 19). Depois da guerra
contra os midianitas, os combatentes e tudo que está
com eles precisam passar pelo período de sete dias
de exclusão do acampamento e pelo ritual de asper-
são (v. 19). Objetos perecíveis, como tecidos, couro,
pêlo de cabra e madeira, são purificados com eles
(v. 20). Materiais que resistem ao fogo têm de ser
purificados no fogo e na água lustrai, enquanto os
materiais que não resistem ao fogo são purificados
apenas na água (vv. 22-23).
No sétimo dia, depois de lavar as vestes, os sol­
dados estão puros e podem voltar ao acampamento
(V. 2 4 ).
31,25-42 Partilha dos despojos. Resta a dispo­
sição final de tudo que for tomado em combate. Para
exprimir a dedicação ao S enhor, a distribuição na
comunidade é proporcional. Metade é dada aos que
tomaram parte na luta e metade ao resto da comuni­
dade, para que também eles participem da glória e
dos benefícios da vitória (v. 27). Uma parte da pro­
priedade distribuída é dada aos sacerdotes e levitas
como contribuição ao S enhor (cf. o cap. 18).
A parte destinada-aos sacerdotes vem dos des­
pojos dados aos combatentes. Dão ao sacerdote um
de cada quinhentos de pessoas e dos animais (w.
28-29). A parte destinada aos levitas vem da metade
dos despojos destinada à eomunidade. São tomados
um de cada cinqüenta pessoas e animais dados a
eles (v. 30). A enorme quantidade de despojos to­
mada na guerra — sinal de importância do combate
— é explicada detalhadamente no texto; a quantida­
de total de despojos tomados (w. 32-35); a quanti­
dade da metade dada aos combatentes, bem como a
taxa dos sacerdotes (w. 36-41) e a quantidade da
metade dada à comunidade, mencionando que um
em cada cinqüenta pertence aos levitas (vv. 42-47).
31,48-54 Presentes dos comandantes. Uma
última oferenda é apresentada pelos comandantes
da campanha, em ação de graças pela segurança de
todos os israelitas que tomaram parte no combate
(v. 49). Prometem que cada um contribuirá com um
objeto precioso que encontrou durante o combate
(v. 50). O ouro que os sacerdotes recebem dos co­
mandantes é de grande valor (w. 51-52). É colocado
na tenda do Encontro como parte livremente ofere­
cida a Deus (v. 54). O comentário no v. 53 — os
soldados têm permissão de guardar o que saqueiam
— indica a espontaneidade e generosidade dos co-
182 mandantes ao dar parte de seu tesouro. Colocado
no santuário, o ouro é memorial de que Deus pou­
pou a vida de todos os guerreiros (cf. 17,5), para que
Deus se lembre de Israel no futuro.
O capítulo 32 trata da partilha da terra daTrans-
jordânia, território que os israelitas tomaram de
Sihon (21,21-32) e Og (21,33-35) enquanto cami­
nhavam em direção à planície de Moab. As decisões
a respeito da terra são tomadas em diálogo com as
tribos requisitantes. Nota-se que a frase esperada:
“O S enhor falou a Moisés”, está ausente da narrati­
va. O fato de que o S enhor não fala e de que Deus
não dá a terra sugere que a divisão do povo nas
duas margens do Jordão continua uma questão não-
-resolvida. Tão importante é esse assunto que sua
conclusão é narrada por completo em Js 1,12-18;
4,12-13; 22,1-8.
32,1-5 Pedido de Gad e Rúben. As tribos de
Rúben e Gad solicitam a Moisés, Eleazar e os chefes
da comunidade que lhe dêem a terra a leste do Jordão
como herança. Argumentam que a região seria ideal
para seus rebanhos. E para tomar o pedido legítimo,
lembram aos chefes que esta é terra “que o S enhor
conquistou à frente da comunidade de Israel” (v. 4).
Referem-se à região que se estende para o sul, do
rio Jaboc até o Araon, terra que os israelitas haviam
tomado dos emoritas (cf. 21,24).
O problema causado pelo pedido é resumido
na declaração: “Não nos faças atravessar o Jordão”
(v. 5b). Desde o Sinai e através do deserto, o qua­
dro tem sido de um só povo caminhando para en­
trar em uma só terra. A concessão do pedido sig­
nificaria um povo dividido em uma terra dividida.
32,6-15 Resposta irada de Moisés. A respos­
ta de Moisés à idéia de divisão dentro da comuni­
dade é imediata e exaltada. Ele vê o pedido como
ameaça a todo Israel. As outras tribos se sentirão
desencorajadas para ir à terra que o S enhor lhes
deu (v. 7). Moisés acusa os gaditas e rubenitas de
serem uma “raça de pecadores”, responsáveis por
impedir os israelitas de entrar na terra e, assim,
provocando mais uma vez a cólera do S enhor con­
tra a nação (vv. 14-15).
Moisés invoca o incidente (relatado nos capí­
tulos 13-14) do fracasso dos israelitas para entrar
na terra pelo sul (vv. 8-13). Alega que o comporta­
mento das duas tribos é como o dos exploradores
que antes desencorajaram o povo. Assim como a
cólera do S enhor fez Israel vaguear durante qua­
renta anos até que toda uma geração morresse, o
S enhor castigará outra vez. O resultado será a perda
de todo 0 povo (v. 15b).
32,16-19. Compromisso. As tribos de Gad e
Rúben oferecem um acordo. Moisés não se opõe à
posse da terra da Transjordânia; sua preocupação e
sua cólera concentram-se na relutância desses gru­
pos em atravessar o Jordão. As tribos então prome­
tem acompanhar os israelitas à terra como van­
guarda, não voltar enquanto todos os israelitas não
tiverem tomado posse de sua herança e não exigir

uma herança para si na terra de Canaã (vv. 17a.
18.19a).
Entretanto, os gaditas e rubenitas asseguram seu
futuro, antes de ajudar o resto de Israel. Sua pro­
messa de ajuda depende de receberem uma herança
naTransjordânia (v. 19b) e de garantirem suas famí­
lias e animais antes da partida (w. 16.17b).
32,20-32 Acordo alcançado. Moisés aceita o
compromisso proposto pelos rubenitas e gaditas.
As negociações são acertadas em uma seqüência
de quatro discursos.
Em sua aceitação, Moisés propõe o oposto do
que foi sugerido pelas duas tribos (w . 20-24). Provê
primeiro a entrada e o assentamento dos israelitas
na terra de Canaã, e só depois o estabelecimento
das tribos no território da Transjordânia.
Os gaditas e rubenitas reafirmam seu compro­
misso (vv. 25-27). Respondem que, deixando suas
famílias e seu rebanho para trás, atravessarão o
Jordão para combater diante do S enhor, Ainda põem
seus interesses à frente dos do resto dos israelitas.
Moisés então instrui Josué, o sacerdote e os
chefes sobre o cumprimento do acordo (w. 28-30).
O assentamento depende da boa fé das duas tribos.
Se atravessarem o Jordão como combatentes e quan­
do a vitória for alcançada, Josué lhes dará a posse
de Guilead. Mas se não mantiverem a promessa de
acompanhar e lutar com os israelitas receberão uma
propriedade em Canaã, como todo o resto de Israel.
A instrução de Moisés indica uma solução futura da
situação. O pedido não será honrado se os gaditas e
rubenitas não cumprirem sua parte do acordo.
Os dois grupos prontamente respondem que
farão o que o S enhor ordena (vv. 31-32). Assim,
percebem que o S enhor concorda com suas ações.
Reafirmam que atravessarão o Jordão para a terra
de Canaã, como soldados diante do S enhor, e fica­
rão com a propriedade na Transjordânia. Sua res­
posta é entusiasta e tem motivação religiosa.
32,33-42 Moisés dá a terra. Parece que Moisés
responde à evidência de fé nas duas tribos, pois, ao
contrário de suas instruções nos vv. 28-30, dá a
terra aos gaditas e rubenitas e também à metade da
tribo de Manassés. A terra distribuída é a tirada de
Sihon, rei dos emoritas, e de Og, rei de Bashan
(vv. 33; c f 21,21-35). A terra não é designada por
sorteio, nem pelo tamanho da tribo, como a instru­
ção estipula claramente (veja 26,52-56). Neste sen­
tido, a terra está fora daquela legitimamente desig­
nada para os israelitas.
Os rubenitas e gaditas recebem o território de
Sihon, a região ao sul do rio Jaboc (vv. 34-38). A
meia-tribo de Manassés recebe a terra ao norte do
Jaboc, tomada de Og. Esta terra de Guilead foi
designada aos clãs de Makir e lair da tribo de Ma­
nassés, que a tinham invadido e nela se estabele­
cido (vv. 39-42; c f 21,33-35). Foi por causa desta
posse territorial antes da entrada na terra que o
caso da herança de terra por mulheres da linhagem
NÚMEROS 33
de Makir da família de Manassés tomou-se pro­
blema (27,1-11).
Com essa distribuição de terra, foi tomada a
providência para o assentamento de parte de Israel.
Outras questões pertinentes à designação de fron­
teiras também serão resolvidas por Moisés antes
de sua morte (caps. 34-36). A história desta época
é apresentada de tal maneira que o futuro é visto
como a realização da liderança de Moisés sob a
autoridade do S enhor.
33,1-49 Etapas da cam inhada. Para resumir
e concluir o relato da caminhada no deserto, o
autor sacerdotal acrescenta um relato muito antigo
que relaciona as etapas do Egito à planície de Moab
(vv. 5-49). É a mesma lista usada como estrutura
para a narrativa da caminhada no deserto.
As palavras introdutórias formais repercutem o
cabeçalho estilizado, característico do autor sacerdotal.
“Estas são as et^as... “ (v. la) segue o modelo do ca­
beçalho “Eis a lista da família... “ (cf Gn 5,1; 6,9; 10,1;
11,10; 11,27; 25,12.19; 36,1; 37,2). A introdução
confiante realça a importância da lista de etapas que
se segue. Seu alcance é também acentuado pelo fato
de o Senhor ordenar que Moisés os registre (v. 2).
A caminhada começou em Ramsés no Egito (Ex
1,11; 12,37), com a celebração da Páscoa (Ex 12-13),
na ocasião em que o S enhor feriu todos os primogê­
nitos da terra do Egito (Ex 12,29-30). A lembrança
da partida do Egito nos w. 3-4 vem de um cântico
composto para celebrar a ocasião.
A lista de etapas nos vv. 5-49 é muito mais
detalhada que a seqüência de paradas mencionadas
na narrativa. Sobre muitos dos lugares não foi
preservada nenhuma tradição, por isso o autor sa­
cerdotal emprega a lista apenas em linhas gerais.
O primeiro segmento vai de Ramsés [no Egito]
ao deserto do Sinai (vv. 5-15). É a parte da cami­
nhada relatada no livro do Êxodo, de 12,37 a 19,2.
A maioria dos lugares da lista ocorrem também
como cabeçalhos no Êxodo (cf Ex 12,37; 13,20;
14,1-2; 15,22-25a; 16,1; 17,1a; 19,2). O que acon­
teceu no Sinai é relatado pelo autor sacerdotal em
Nm 1,1-10,10.
O segundo segmento descreve a caminhada do
Sinai a Qadesh (w . 16-36). Este trecho da viagem
é relatado em Nm 10,11-19,22. Os limites da cami­
nhada são mencionados na fórmula de viagem em
10,12, embora neste texto Qadesh seja substituída
pelo deserto de Paran, nome da localidade que
inclui Qadesh (cf. Nm2,16; 13,3.26). Quibrot-Taavá
(vv. 16b-17a) aparece na narrativa em conexão com
a história das codomizes (1 l,34-35a), e Haserot (w.
17b-18a) é o lugar onde Aarão e Miriâm revolta­
ram-se contra Moisés (11,35; 12,16). Na narrativa,
o deserto de Paran deve incluir toda a série de lu­
gares da lista que não foram citados de forma ex­
plícita (vv. 18b-36).
O terceiro trecho da marcha vai de Qadesh à
montanha de Hor (vv. 36-40), lugares citados em 183
 NÚMEROS 33
fórmulas de viagem em Nm 20,la.22. Os aconte­
cimentos são narrados na seção relativamente breve
de 20,1-21,9. Nos vv. 38-39, a lista se expande com
a menção de dois incidentes específicos que fazem
parte da narrativa: a morte de Aarâo (vv. 38-39; cf.
20,23-29) e o confronto com o rei Arad (v. 40; c f
21.1-3; 14,39-45).
Finalmente, os israelitas caminharam da monta­
nha de Hor à planície de Moab (vv. 41-49). Esses
lugares são citados nas fórmulas de viagem em Nm
21,10-11; 22,1, cabeçalhos que abrangem o material
narrativo de 21,10 ao fim do livro. Na narrativa, a
localidade chamada de “deserto em frente de Moab,
do lado do sol nascente” (21,11) é citada para incluir
toda a série de lugares citados nos vv. 42-48a.
33,50-56 Instruções para a conquista e a divi­
são de Canaã. O efeito da lista de etapas é devolver
ao leitor a consciência de que o povo permanece
na fronteira da terra. Neste lugar, o S enhor dá a
Moisés mais instruções a respeito do futuro (v. 50).
A primeira trata da conquista e da distribuição da
terra na outra margem do Jordão (v. 51).
A tarefa para os israelitas é expulsar os habitan­
tes da terra e destruir todos os vestígios de sua reli­
gião ( w 52.55a; veja Dt 12,2-3). A conquista precisa
ser absoluta. Não deve permanecer nenhum não-is-
raelita, nem nada que não seja característico do Deus
de Israel. É uma terra que o S enhor deu a Israel
como patrimônio. É sinal do relacionamento da alian­
ça entre o S enhor e Israel (v. 53). Esse relaciona­
mento exige amor e fidelidade totais.
A ordem é seguida de um aviso expresso na
maldição condicional tipica (veja Dt 30,16-17). Se
for permitido que os habitantes da terra permane­
çam, eles serão fonte constante de irritação e proble­
mas (vv 55; cf. Js 23,13) e, em última instância, a
expulsão da terra planejada para os habitantes acon­
tecerá aos próprios israelitas (v. 56). Esta última
afirmação tem significado especial para o povo no
exílio, que foi tirado da terra. A questão é a fide­
lidade radical e intransigente. Como idéia teológica,
a terra do S enhor é o lugar para seus seguidores
fiéis e só para eles.
Encravada na instrução a respeito da ocupação
da terra está uma repetição do procedirnento para
a divisão da terra (v. 54; c f 26,52-56). É repetido
intencionalmente que a terra será atribuída “por
sorteio”, para que Israel saiba que o S enhor dará
a terra, sem seus habitantes, para a posse das famí­
lias de Israel.
34,1-49 As fronteiras. A instrução do S enhor
para o futuro na terra continua com uma descrição
das fronteiras do território que será dado a Israel
(vv. 1-2). Uma antiga lista de fronteiras é usada
para esta descrição territorial idealizada. A descrição
não corresponde às fronteiras reais durante qual­
quer período depois do século V a.C.; corresponde
aos limites da possessão do Egito em Canaã no
184 século XIll a.C., da maneira como esses limites
estão definidos no tratado de paz entre o Egito e
os hetitas. O autor sacerdotal empresta essa des­
crição específica da terra de Canaã porque inclui
apenas o território realmente possuído por Israel e
porque a fronteira oriental chega ao Jordão. Para o
propósito da narrativa, o autor não está interessado
na terra além do Jordão nessa época.
A descrição da fronteira leste (vv. 3-5) é muito
semelhante à da fronteira meridional de Judá apre­
sentada em Js 15,1-4.
A fronteira oeste no grande mar (v. 6) lembra
a descrição idealizada nas afirmações de promessa,
como Gn 15,18 e Ex 23,31.
A descrição da fronteira setentrional (vv. 7-9)
tem apenas ligeiras variações da descrição da terra
em Ez 47,15-17; 48,1.
A fronteira leste, entretanto, difere a extensão
da terra idealizada usual, que incluiría território em
ambos os lados do Jordão (cf Ez 47,18). A defini­
ção dos w. 10-12 segue o contorno do rio Jordão e,
assim, exclui a terra da Transjordânia.
A fronteira do Jordão é, naturalmente, intencio­
nal, para indicar que a terra em questão é a que vai
ser dada às “nove tribos e à meia-tribo” (v 13). As
outras duas tribos e a metade da tribo de Manassés
já receberam seu patrimônio na margem leste do
Jordão (vv 14-15; 32). A terra realçada é a que
será dividida no futuro.
Para realizar a distribuição da terra, Josué e
Eleazar devem ser auxiliados por chefes das tribos
individuais (vv. 17-18), de maneira semelhante à
em que Moisés e Aarão foram auxiliados no recen-
seamento (veja 1,4-16). Todos os nomes dos che­
fes nos w. 20-28 são novos. Apenas Kaleb (v. 19),
que sobreviveu ao período do deserto, tem lugar
na tradição (cf. 14,6.24.30.38).
A ordem das tribos difere de todas as outras, quer
paia o recenseamento, quer para a disposição no acam­
pamento. Aqui a listagem é orientada pela ordem
geográfica em que eada tribo recebe a terra em Ca­
naã, do sul para o norte (cf Js 14-19). As nove tri­
bos e a meia-tribo que vão ocupar Canaã estão agru­
padas nas quatro tribos meridionais (vv 19-22), na
tribo e na meia-tribo centrais da família de José (vv.
23-24) e nas quatro tribos setentrionais (vv. 25-28).
35,1-8 Cidades para os levitas. Como os le-
vitas não têm terra para seu patrimônio, recebem
cidades onde viver e uma extensão de terra em
tomo das cidades para seus pastos (vv. 2-5). As
cidades e a terra devem ser apropriadas das tribos
conforme seu tamanho (v. 8). Ao todo, quarenta e
oito cidades serão dadas aos levitas (v. 7).
Aqui temos apenas os preceitos para a designa­
ção de cidades e terras para os levitas. A partilha
que soma precisamente quarenta e oito cidades en­
contra-se em Js 21,4-8. A terra deve vir do território
de todas as tribos, inclusive as da Transjordânia.
35,9-15 Cidades de refúgio. As cidades de refú­
gio estão ligadas às cidades levíticas no v. 6. Este v.

afirma que das quarenta e oito cidades cedidas aos
levitas, seis devem ser instituídas como lugares onde
os homicidas involuntários encontrem refugio (tam­
bém V. 11). Três dessas cidades serão em Canaã e três
na Transjordânia (w. 13-14). Este preceito só especi­
fica que tais cidades precisam ser instituídas; seus
nomes são dados em Js 20,1-9, em especial nos w . 7­
8; e em Js 21,21.27.32.36.38.
As cidades são designadas como lugares onde
todas as pessoas, israelitas ou migrantes (v. 15a)
podem buscar refúgio contra a vingança antes de ter
a oportunidade de ser julgados (w. 12.15b), em casos
em que houve derramamento de sangue. A lei esti­
pula que quem comete homicídio merece a morte
(Ex 21,12.14). A sentença de morte é muitas vezes
executada pelo “vingador” (v. 12), o parente homem
mais próximo do morto, antes de haver uma prova
que a morte foi causada deliberadamente. A desig­
nação de cidades de refúgio representa um progres­
so na lei, baseado no respeito pela vida humana. A
legislação garante proteção legal para o acusado.
35,16-34 Homicídio e homicídio culposo. As
estipulações deixam claro quais indivíduos têm direi­
to ao refúgio. O homicida voluntário deve ser entre­
gue ao vingador, o parente mais próximo do morto,
responsável pela execução da sentença de morte (w.
19.21b). A intencionalidade evidencia-se pelo porte
de arma mortífera (vv. 16-18) ou quando há indica­
ção de ódio ou inimizade (vv. 20-21).
Por outro lado, se a morte foi causada acidental­
mente (w. 22-23), a comunidade deve salvar o acu­
sado da mão do vingador (w. 24-25a). Depois de
determinar que não houve intenção de matar, a co­
munidade mandará o acusado de volta para a cidade
de refúgio, onde ficará em segurança até a morte do
sumo sacerdote (v. 25b). A perda da vida é assunto
tão sério que, embora causada acidentalmente, a pes­
soa envolvida é privada da liberdade. De fato, o acu­
sado que sai da cidade de refúgio antes da época
especificada pode ser morto pelo vingador (w. 26­
28). Latente nesta ânsia por tirar vida por vida está
um agudo senso de manter o equilíbrio do poder nas
tribos individuais. A perda intencional da vida em
uma família exige a perda da vida na outra.
Outras regras governam a comunidade quando
ela toma decisões para que a justiça prevaleça e
ambos, acusado e comunidade, sejam protegidos
(v. 29). Primeiro, o acusado não pode ser condena­
do à morte exceto com o depoimento de várias tes­
temunhas (v. 30; cf. Dt 17,6; 19,15). Segundo, o
homicida condenado não pode substituir a perda
da vida por uma compensação em dinheiro (v. 31),
nem a pessoa relegada a uma cidade de refúgio
pode pagar para sair da cidade (v. 32).
As exigências parecem muito grandes. Israel é
uma sociedade na qual a vida é considerada uma
NÚMEROS 36
dádiva preciosa do S enhor. O derramamento de san­
gue profana a terra — a própria terra onde o S enhor
habita no meio de Israel, onde o S enhor está pre­
sente com 0 povo em aliança. A terra não deve ser
profanada, pela simples razão de que o Deus pre­
sente com Israel é o S enhor, o Deus que tirou Israel
do Egito a fim de habitar no meio dos filhos de
Israel (v. 34; c f Ex 29,45-46; Lv 26,11-13).
O capítulo termina com uma nota que resume
o enfoque teológico da obra sacerdotal. Todos os
preparativos para a entrada na terra e toda a legis­
lação para viver fielmente na terra têm uma única
motivação — tomar Israel um lugar santo digno de
um Deus santo que está presente em seu meio.
36,1-12 Propriedade de herdeiras. O caso
trazido para Moisés solucionar em 27,1-11 criou
um problema aqui apresentado para consideração.
O caso tem cenário imediato no clã de Makir, da
tribo de Manassés, que já recebeu território na
Transjordânia. Os chefes desse clã vêm agora diante
de Moisés e Eleazar (v. 1) com a preocupação de
que as filhas de Selofhad se casem em outra família
israelita e, dessa forma, façam com que a tribo de
seu pai perca a terra (vv. 2-3), pois quando a mulher
se casa todos os seus bens passam a ser proprieda­
de do marido. A questão é a diminuição da terra
atribuída à tribo sob a orientação divina. Os chefes
acrescentam que, quando chegar o ano do jubileu,
a terra se tornará parte permanente do patrimônio
da tribo do marido (v. 4; cf. Lv 25,8-34). As leis
que governam o ano do jubileu exigem que toda
terra que foi vendida seja devolvida ao possuidor
original a cada cinqüenta anos. Aparentemente, essa
lei não afeta a terra que passou a outra tribo em
resultado de casamento nessa tribo.
A primeira norma criou um problema que exige
modificação. A nova regra não anula a primeira
decisão, que dá às mulheres o direito de herança,
quando não houver membros do sexo masculino.
Moisés apresenta uma modificação: as filhas de
Selofhad só poderão se casar em um clã dentro de
sua família, para que esta não perca nenhuma terra
(vv. 5-7). A nova legislação, então, toma-se o prece­
dente para todos os casos de herança por mulheres,
de modo que cada tribo possa reter o patrimônio
antes a ela atribuído (vv. 8-9).
Uma nota final é acrescentada com o anúncio
de que as filhas de Selofhad se casaram dentro dos
clãs da família de seu pai (vv. 10-12).
36,13 Conclusão. O livro dos Números termi­
na com uma subscrição às ordens e regras reunidas
nos capítulos 27-36. Foram dadas enquanto os fi­
lhos de Israel permaneciam na planície de Moab
para que pudessem viver fielmente quando entras­
sem na terra que o S enhor lhes deu e, assim, possuir
a terra como patrimônio permanente.
185
 DEUTERONOMIO
L e s li e J. Ho pp e, O.FM.
INTRODUÇÃO
o Deuteronômio e a tradição bíblica
Deuteronômio é, com certeza, um dos
livros mais importantes e influentes das
Escrituras hebraicas. Proporcionou as
perspectivas teológicas que influencia­
ram os Profetas anteriores (Josué, Juizes, Samuel e
Reis), agora em geral conhecidos como a História
Deuteronomista de Israel. Influenciou a forma final
de vários livros proféticos, principalmente Oséias e
Jeremias. Exerceu influência indireta na História de
Israel pelo Cronista (Crônicas, Esdras e Neemias).
O Rolo do Templo da comunidade de Qumran era es­
sencialmente uma reinterpretação essênia do Deute­
ronômio. O Novo Testamento cita ou alude a textos
deuteronômicos quase duzentas vezes. A reinterpre­
tação deuteronômica de tópicos seletos da lei e da
história israelitas serviu de modelo para os rabinos
que compuseram a Mishná e o Talmud. Finalmente,
0 auto-entendimento do Deuteronômio como docu­
mento oficial escrito deu origem aos próprios con­
ceitos de Escritura e cânon.
O Deuteronômio ocupava um ponto essencial
na vida do antigo Israel. Suas páginas preservaram
tradições já antigas na época de sua criação. Algu­
mas das tradições legais transmitidas pelos deutero-
nomistas originaram-se na era pré-israelita do an­
tigo Oriente Próximo. Todavia, os deuteronomistas
não eram antiquários, nem mesmo historiadores. Ao
preservar, transmitir e reinterpretar a tradição antiga
seu propósito era proporcionar a Israel orientação
para seu futuro em uma época em que esse porvir
era muito duvidoso. Os deuteronomistas desempe­
nharam bem sua tarefa, pois o fenômeno que hoje
conhecemos como judaísmo primitivo foi, em gran­
de parte, concebido a partir do livro do Deuteronô­
mio. Esta obra, então, serviu de ponte entre a reli­
gião do antigo Israel e a fé do judaísmo primitivo.
O significado do Deuteronômio
Devido a sua importância óbvia, o livro do
Deuteronômio tem atraído muita atenção através
dos anos. Os intérpretes do livro descrevem-no co­
mo documento da aliança, exemplo de pregação
levítica, projeto para renovação religiosa, resposta
ao choque cultural da dominação estrangeira, tenta­
tiva de humanizar antigas leis, chamado à pureza
cultuai e a base para a centralização do culto. Tem
sido depreciado como moralmente simplista e exal­
tado por seu chamado a Israel para amar a Deus
(Dt 6,5). Os deuteronomistas foram considerados
mestres severos e insensiveis e também alguns dos
maiores teólogos de todos os tempos. A diversi­
dade desses comentários e as caracterizações do
Deuteronômio demonstram como é difícil encontrar
uma descrição simples para obra teológica tão com­
plexa e sofisticada.
Apesar das complicações apresentadas pelos in­
térpretes do Deuteronômio, o objetivo do livro era,
na verdade, bastante simples. Os deuteronomistas
queriam fazer a tradição antiga falar novamente em
uma época de grande crise para Israel, a fim de aju­
dá-lo a superá-la. Perceberam que as grandes ins­
tituições do antigo Israel estavam mortas ou agoni­
zantes. A monarquia, a profecia, o Templo e o sacer­
dócio, nenhum conseguiu evitar que a nação chegasse
à beira da destruição, que estava sendo provocada
por forças internas e externas. O Deuteronômio suge­
riu que Israel reaprendesse as lições de seus anos for-
mativos no deserto, sob Moisés: a obediência à lei
do S enhor era a única maneira de Israel garantir seu
futuro. Assim, o significado do Deuteronômio era o
próprio Deuteronômio. O livro apresentou-se a Israel
como a última esperança: obedecer e viver, ou deso­
bedecer e morrer (Dt 30,15-20).
A s origens do Deuteronômio
Não existe um acordo universal quanto à crise
especifica que inspirou a criação do Deuteronômio.
Uma das posições dos modernos estudos bíblicos
mantidas há mais tempo data do início do século
XIX e identifica o livro do Deuteronômio com o
“livro da Lei” encontrado na casa do Senhor pelo
sumo sacerdote Hilqiáhu durante o reinado de Josias
(2Rs 22,8ss.). Embora o livro inclua muito material
datado do fim do século VII a.C. e anterior, está claro 187
 DEUTERONÔMIO
que, na forma atual, o Deuteronômio data do Exílio
babilônico (587-539 a.C.). Foi durante essa época
que 0 remanescente da nação correu o risco de ex­
tinção. Nessa situação de vida ou morte, os deutero-
nomistas apresentaram a Israel o desafio da obediên­
cia a um autoritativo livro da Lei escrito e chama­
ram a nação para que escolhesse a vida (Dt 30,19).
Essa data exílica para o Deuteronômio não elimina
a possibilidade de tradições mais primitivas terem
sido usadas na criação do livro. Pelo contrário, o Deu­
teronômio foi o resultado de uma reinterpretação
consciente de antigas tradições legais, a fim de dar a
Israel esperança para o futuro.
Quem eram os deuteronomistas? De que círcu­
los se originaram? Mais uma vez, tem havido uma
variedade de respostas. A princípio, os profetas
foram apresentados como responsáveis pelo Deute­
ronômio, porque houve uma época em que tudo
que houvesse nas Escrituras hebraicas de valor ético
ou teológico era atribuído a círculos proféticos.
Mas o Deuteronômio não trata os profetas realmente
muito bem (cf o comentário sobre 18,9-22).
Outros intérpretes afirmam que o Deuteronômio
reflete a pregação dos levitas. Entretanto, na Bíblia
não há exemplos da pregação levítica, por isso é im­
possível dizer que o Deuteronômio é produto de tal
atividade. Além disso, o livro retrata, de maneira con­
sistente, os levitas como objetos de caridade. Seria
um auto-retrato pouco lisonjeiro.
A criação do Deuteronômio tem sido até mes­
mo atribuída aos sábios de Israel, mas eles nunca
aparecem no livro que supostamente compuseram
e apresentaram a Israel como modelo de vida.
A única possibilidade que resta é o grupo dos
anciãos de Israel. Eram eles os chefes da comuni­
dade que tinham a função de administradores das
leis preservadas no Deuteronômio. Eram os princi­
pais guardiões das tradições legais do antigo Israel.
Por que não lhes atribuir o Deuteronômio, o deposi­
tário dessas tradições?
O Deuteronômio foi composto a fim de apre­
sentar um novo modelo de vida para Israel em sua
terra. Durante o Exílio, Israel viu-se fora dessa terra,
esperando dela tomar posse mais uma vez. O Deu­
teronômio surgiu durante o Exílio. Foi criado pelos
anciãos, que se consideravam guardiões das anti­
gas tradições legais de Israel. Tomaram essas tradi­
ções, atualizaram-nas, desenvolveram-nas, amplia-
ram-nas e delas tiraram conclusões teológicas —
tudo para dar a Israel um novo modelo de vida. Era
a visão de uma nova vida que deu aos anciãos o
estímulo para criar o livro do Deuteronômio.
Forma e estrutura
Toda análise da forma literária do Deuteronômio
precisa partir das ligações do livro com as tradições
188
de tratados do antigo Oriente Próximo. No mundo
antigo, os tratados entre as nações seguiam um
padrão determinado que, em geral, incluía estes cinco
componentes: 1) título que identificava o rei que ofe­
recia o tratado; 2) prólogo histórico, no qual o rei
que oferecia o tratado relacionava seus atos bene­
ficentes para com o povo que aceitava o tratado; 3)
cláusulas ou exigências feitas pelo rei que oferecia
0 tratado; 4) lista de testemunhas do tratado e, oca­
sionalmente, dispositivos para sua guarda e sua lei­
tura periódica; 5) maldições e bênçãos que se segui­
ríam à transgressão e à observância do tratado. Até
uma leitura superficial do Deuteronômio deixará
claro que há uma ligação entre o Deuteronômio e a
forma do tratado internacional.
Ao mesmo tempo, é importante notar que o
Deuteronômio não é apresentado como se fosse
um tratado. Faz uso de formas literárias da tradição
de tratados, mas é apresentado como uma série de
discursos feitos a Israel por Moisés, pouco antes
de sua morte. O Deuteronômio é o testamento de
Moisés para Israel, que dentro em breve deve tomar
posse da terra de Canaã. Não é o texto de um tra­
tado ou uma aliança. Embora contenha elementos
da forma de tratado, também contém material que
não pode ser incluído entre essas formas (cf Dt
32-34).
Em sua forma atual, o Deuteronômio compõe­
-se de quatro discursos feitos a Israel por Moisés. O
tom dos discursos é exortativo. O livro tem o pro­
pósito de incentivar Israel a obedecer a lei. Moisés
retrata Israel como especialmente escolhido por
Deus para tomar posse de Canaã. Israel manterá a
posse dessa terra enquanto for obediente. (Este co­
mentário seguirá a estrutura evidente no próprio
livro, que divide o material em quatro discursos se­
parados, cada um introduzido por uma expressão
ritual para assegurar que as palavras que se segui­
rão são de Moisés — Dt 1,1; 4,44; 29,1; 33,1.)
A exortação à obediência é o centro do Deute­
ronômio, mas, como indica Dt 29,1, essa exortação
transformou-se no texto de um tratado ou aliança
entre Deus e Israel. Os antigos costumes e leis que
regulavam os relacionamentos mútuos do povo tor­
naram-se o teste de sua lealdade a Deus. A qualida­
de dos relacionamentos intersociais dentro de Israel
tomou-se o barômetro do relacionamento de Israel
com Deus. Assim, para o Deuteronômio, conhecer
e amar a Deus significa amar ao próximo e fazer-
-Ihe justiça. Isso, já se vê, é afirmado em muitas
passagens do Novo Testamento, por exemplo, Mc
12,29-31; IJo 4,7-12.20-21. Desse modo, os ele­
mentos dos tratados do antigo Oriente Próximo fo­
ram introduzidos no livro do Deuteronômio a fim
de dar novo valor e importância à obediência. O
efeito dessa transformação foi fazer do amor ao
próximo modelo e teste do amor a Deus.

COMENTÁRIO
PRIMEIRO DISCURSO DE MOISÉS
Dt 1,1-4/13
O cenário do discurso de Moisés a Israel é a
região conhecida como planície de Moab, imedia-
am ente a leste do rio Jordão. A época é pouco
antes das tribos tomarem posse da terra prometida
a seus ancestrais. O contexto dessas últimas pala­
vras de Moisés é uma exortação à obediência. Esse
“testamento” de Moisés é seu conselho a Israel
para que siga as lições do passado, se quiser asse­
gurar seu futuro. A lição é bastante simples: Deus
espera de Israel fidelidade completa; nada menos
é satisfatório. A viagem de Israel pelo deserto de­
pois da partida do Egito ensinou-lhe repetidamente
que a fidelidade é recompensada e a infidelidade,
castigada. Agora, Moisés gastará as últimas ener­
gias tentando levar Israel ao tipo de obediência, fi­
delidade e compromisso que assegurará seu futuro
na terra que em breve possuirá.
1,1-5 Prefácio ao primeiro discurso. Estes
vv. funcionam como preâmbulo, introduzindo não
só 0 primeiro dos quatro discursos de Moisés mas
também todo o livro. Especificam as pessoas en­
volvidas nos acontecimentos do livro, o cenário da
ação e o tempo e os propósitos exatos da obra. O
Deuteronômio pretende ser as palavras de Moisés
dirigidas a todo Israel. Aqui o livro salienta a uni­
dade do povo de Deus, sujeito à vontade divina.
Embora o local onde é feito o discurso seja
especificado com precisão (vv. lb-2), a localiza­
ção exata de todos os lugares mencionados não é
conhecida, apesar de estar claro que o cenário da
ação é a margem leste do rio Jordão.
Moisés começa seu primeiro discurso às tribos
pouco antes de Israel atravessar o Jordão para tomar
posse da terra prometida a seus ancestrais. O Êxodo
aconteceu há quarenta anos. Já foram obtidas vitó­
rias preliminares, mas Israel, acampado na planície
de Moab, ouve Moisés fazer um último apelo à
obediência, enquanto esclarece de maneira absoluta
a vontade divina para todo o Israel. O propósito des­
sa exposição é conduzir Israel a um compromisso
renovado.
1,6-18 A partida do Horeb. O primeiro discur­
so de Moisés começa com uma citação direta das
palavras divinas no Horeb (monte Sinai), convo­
cando Israel para começar a caminhada que termi­
nará com a aquisição da terra que será o cenário de
sua história subseqüente. As dimensões dadas para
a terra (v. 7) refletem a promessa feita a Abraão
(Gn 15,18) em vez de um conjunto de fronteiras
históricas. Essa promessa é agora cumprida à me­
dida que a terra é mostrada a Israel e, dessa forma,
passa para sua posse. Tudo que resta a Israel é tomar
posse de sua herança, o que, entretanto, não será
tarefa fácil.
DEUTERONOMIO 1
Os vv. 9-18 interrompem o relato da partida
de Israel do Horeb, retomada no v. 19. Depois de
chegar ao Horeb, Moisés previu as dificuldades à
frente e sugeriu que o povo escolhesse chefes para
partilhar com ele os encargos de liderança (v. 13).
Embora Moisés desempenhasse um papel indispen­
sável para levar Israel do Egito ao limiar da Terra
Prometida, Israel chegou a um ponto em sua vida
em que outros deviam primeiro partilhar e, por fim,
assumir, as responsabilidades que até aquele mo­
mento Moisés tivera de suportar sozinho. E sig­
nificativo que Israel precisasse escolher seus che­
fes. Qualquer colapso na disposição ou na fideli­
dade do povo seria motivado pelas decisões desses
chefes. Deus não podería ser acusado, pois Moisés
apenas confirmava os chefes que o próprio povo lhe
apresentava.
Entre aqueles confirmados nessa função por
Moisés estavam juizes especificamente encarrega­
dos de administrar justiça sem considerar as dife­
renças sociais e econômicas entre as pessoas que
tinham pendências diante deles (vv. 16-17). A justi­
ça baseava-se na premissa da igualdade de todos os
israelitas. De fato, o manto da igualdade foi até mes­
mo colocado nos ombros dos migrantes que mora­
vam entre os israelitas (v. 16).
Esta passagem se encerra com a nota parentética
de que Israel foi plenamente instruído a respeito de
suas responsabilidades no novo relacionamento com
Deus (v. 18). Israel, portanto, não poderia alegar igno­
rância, se fracassasse.
1,19-46 Fracasso de Israel em Qadesh-Bamea.
A caminhada a partir do Horeb terminou em Qadesh-
Barnea, lugar ao sul de Canaâ. O local serviría de
base de operações da qual as tribos israelitas come­
çariam o processo de adquirir a terra a eles prome­
tida. Deveria ser o cenário de vitórias iniciais; em
vez disso, foi cenário da primeira derrota de Israel,
por causa de sua falta de confiança em Deus.
O povo sugeriu que exploradores fossem en­
viados para fazer um reconhecimento da terra e de
seus habitantes (v. 22). Os exploradores voltaram
com relatos apaixonados sobre a terra, mas aterra­
dores sobre a população nativa de Canaã. Os
israelitas revoltaram-se contra a possibilidade de
ter de enfrentar os canaanitas em qualquer tipo de
conflito armado. Moisés tentou incentivar o povo,
lembrando-lhe de que Deus o libertara do Egito e
o guiara pelo deserto, mas isso de nada adiantou.
A resposta divina foi dar ao povo exatamente
0 que ele queria — um porto seguro fora da Terra
Prometida. Deus esperaria a geração seguinte para
começar o assentamento em Canaã. Além disso,
Moisés foi condenado a morrer fora da nova terra
(v. 37). Como chefe do povo, ele era o responsável
último pela perda de fé de Israel. Somente Kaleb, 189
 DEUTERONÔMIO 2
Josué e os filhos da geração revoltosa seriam pou­
pados dos efeitos da decisão do povo de permane­
cer fora de Canaã.
Depois de algum tempo, o povo decidiu que, na
verdade, queria tomar posse de Canaã, mas era tarde
demais. Foram facilmente derrotados pelos emoritas.
Tiveram de viver com as conseqüências de sua de­
sobediência. Qadesh, não Canaã, seria seu lar.
2,1-23 Travessia pacífica de Edom, de Moab
e de Amon. Ao narrar a história das experiências
de Israel naTransjordânia, os deuteronomistas pre­
sumem que houve uma travessia pacífica das áreas
agora ocupadas pelas tribos israelitas. Não houve
nenhum conflito sobre esses territórios, pois Deus
os concedera a seus respectivos habitantes em outra
época (vv. 5.9.19).
Outras tradições bíblicas consideram as popu­
lações desses territórios aparentadas com os israe­
litas; no caso dos moabitas e emonitas por intermé­
dio de Lot, sobrinho de Abraão (Gn 19,36-38); no
caso dos edomitas, por intermédio de Esaú, irmão
de Jacó (Gn 36,9).
Ainda outras tradições preservam a lembrança
de tensões que existiram entre esses povos e os
israelitas que avançavam. Segundo Nm 20,14-21,
Edom recusou-se a permitir que os israelitas atra­
vessassem seu território e Nm 22-24 relata a ten­
tativa de Balaq de Moab para conseguir uma mal­
dição sobre Israel.
O aspecto mais significativo da tradição deu-
teronômica sobre as relações de Israel com esses
povos é o universalismo que envolve essa tradição
aqui. O Deus de Israel também dá aos povos des­
ses países da Transjordânia a terra que habitam.
De modo claro, a preocupação divina se estende
além do território de Israel.
Segundo o Deuteronômio, embora fosse pou­
pado do conflito com essas nações, Israel ficou
preso em um conflito que tirou a vida de toda uma
geração de guerreiros. O inimigo que fez Israel
sofrer tal derrota devastadora era justamente Deus
(vv. 14-15). A infidelidade de Israel em Qadesh-
Barnea custou caro. Embora lutasse por Israel con­
tra Faraó, com a mesma facilidade Deus se volta
contra um Israel infiel. Os deuteronomistas querem
fazer um aviso: os atos divinos de libertação no pas­
sado não são garantia para o futuro! O único jeito
de Israel poder olhar o futuro com esperança é pela
obediência.
2,24-3,22 Conflitos com Sihon e Og. Embora
a presença histórica de Israel na margem leste do
Jordão fosse efêmera, a tradição deuteronõmica afir­
ma que as tribos de Rúben e Gad e dois clãs de Ma-
nassés se instalaram ali. A tradição também presu­
me que 0 território dessas tribos foi adquirido de
maneira semelhante à das terras a oeste do Jordão,
onde as outras tribos se estabeleceram — por meio
de confronto armado com a população nativa. Os
190 conflitos com os emoritas sob Sihon e o povo de
Bashan sob Og são apresentados como violentos ao
extremo (2,34; 3,6). Por causa da quantidade limi­
tada de terra cultivável na região, todo conflito tinha
o potencial de se tomar muito caro em termos de
vidas humanas, da mesma forma que os conflitos
semelhantes na mesma região hoje. Não é surpreen­
dente a intensidade desses conflitos, nem a tendên­
cia humana de atribuí-los à vontade divina. O lado
sombrio da crença de Israel, que recebeu a terra
como dádiva divina, era a prática de eliminar os que
tinham uma crença diferente.
Outra questão teológica levantada por este texto
é a relação entre as vontades humana e divina. Sihon
opôs-se à entrada de Israel em seu território, mas
isso aconteceu porque Deus tomara obstinado seu
coração (2,30). As vitórias obtidas por Israel contra
Sihon e Og foram causadas pelo S enhor (2,33; 3,3),
contudo os exércitos de Israel tiveram de combater
e derrotar as forças desses dois reis. O texto parece
assegurar que ambas, a ação divina e a humana, eram
necessárias, mas não esclarece como as duas se re­
lacionavam.
3,11 é uma observação parentética sobre o
grande tamanho do leito ou sarcófago de Og, que
ainda podia ser visto na época dos deuteronomistas.
Apesar do grande poder de Og, seu reino caiu diante
de um Israel obediente. A fidelidade tem um poder
que excede muito o poder militar ou político.
As vitórias sobre Sihon e Og resultaram na dis­
tribuição de seus territórios entre as tribos de Rúben
e Gad e entre Makir e lair, dois clãs de Manassés.
Como Sihon e Og desafiaram o S enhor (2,30; 3,1),
foram derrotados pelo poder do S enhor. Suas terras
foram confiscadas e passadas a Israel. A distribui­
ção dos territórios conquistados foi mais do que o
estabelecimento de fronteiras geográficas. Foi, antes
de tudo, celebração da vitória divina e afirmação de
crença na origem divina das reivindicações territo­
riais feitas pelas tribos aqui citadas. O mesmo padrão
— conquista seguida de distribuição de terra — for­
nece 0 esboço básico do livro de Josué (conquista;
Js 1—12; distribuição: Js 13—21). As vitórias sobre
Sihon e Og e a distribuição de suas terras entre as
tribos israelitas foram precursoras de vitórias futuras
na outra margem do Jordão.
As estipulações em 3,18-20 enfatizam a uni­
dade de Israel, importante tema deuteronômico. A
milícia de nenhuma tribo pode descansar enquanto
toda a terra de Canaã não for adquirida segundo a
promessa divina.
3,23-29 Josué. A tradição localiza o túmulo de
Moisés fora da Terra Prometida (Dt 34,5). É pre­
ciso, então, haver uma explicação para essa aparente
injustiça e para a sucessão ã posição de liderança
de Moisés entre as tribos. A respeito da primeira
questão, os deuteronomistas optam por uma solução
que preserve a integridade de Moisés. Embora pes­
soalmente inocente de qualquer culpa, foi uma pena
que Moisés fosse apanhado nas esteira de infideli-

dade que envolveu toda a geração da revolta em
Qadesh-Bamea (1,26). Isso contrasta com a tradi­
ção sacerdotal, que acusou o próprio Moisés de
abuso de confiança que resultou em sua exclusão
da Terra Prometida (Nm 20,12). Essas duas expli­
cações diferentes para a tradição sobre o túmulo
de Moisés refletem provavelmente a controvérsia
exílica entre a culpa comunitária e a responsabili­
dade pessoal como explicação para a presença do
mal e do sofrimento na vida de Israel.
Outra preocupação dos deuteronomistas é de­
monstrar que a função mosaica podia continuar de­
pois da morte de Moisés, de quem Josué foi o primei­
ro sucessor. Havería outros no futuro que poderíam
fazer o que Moisés fez outrora por Israel — trans­
mitir e interpretar a vontade divina. Se a Lei devia
ser 0 único guia para a vida de Israel na terra, Moisés
precisava ter sucessores legítimos que dessem a Israel
acesso à Lei e sua interpretação (cf. Mt 23,2; Pirke
Abot 1,1).
4,1-40 Conclusão do primeiro discurso. O
primeiro discurso de Moisés conclui com um resu­
mo não apenas do material precedente, mas de todo
o livro do Deuteronômio. O material encontrado
aqui foi incluído no Deuteronômio durante o Exí­
lio (587-539 a.C.), quando as circunstâncias força­
ram Israel a reconsiderar o significado de seu re­
lacionamento com Deus e examinar a posição des­
se relacionamento.
O livro do Deuteronômio como um todo e esse
capítulo em particular falam da fidelidade fundamen­
tal indispensável para o relacionamento singular de
Israel com Deus. Aqui o Exílio é explicado como
resultado de grave apostasia nessa fidelidade, mani­
festada no descaso por Israel da proibição de ídolos
(vv. 25-27). A insensatez de servir a outros deuses
provocou o Exílio (v. 28). Depois que Israel percebe
0 que acontece aos que são infiéis, o arrependi­
mento é possível (vv. 29-30). Finalmente, a miseri­
córdia divina não permite que a infidelidade de Israel
ponha termo ao relacionamento que existe entre
Deus e Israel, pois Deus permanece fiel à promessa
feita aos pais de Israel (v. 31). Por mais desastrosa
que fosse a infidelidade de Israel, ainda assim não
significava o fim de seu relacionamento com Deus.
Está claro que a obediência é a chave para man­
ter 0 relacionamento de Israel com Deus, que se
toma tangível pela posse da Terra Prometida. Este
texto fala cinco vezes da ligação entre obediência e
posse da terra (vv. 1.5-8.14.21-22.40). O texto usao
exemplo concreto da proibição de imagens para
mostrar os resultados da desobediência (w. 3-4.15-
26). Quando Israel desprezou os mandamentos de
Deus, seguiu-se o desastre. Zombar das palavras da
aliança (v. 13) resultou para Israel no exílio da terra
(w. 26-27). A fé dos deuteronomistas leva-os a espe­
rar que Deus traga a bênção da maldição do Exílio
(v. 31) e devolva Israel a uma intimidade sem par
com Deus (w. 32-39).
DEUTERONÔMIO 5
A obediência, então, é a base do relaciona­
mento de Israel com Deus, pois aproxima Israel de
Deus mais do que é considerado humanamente
possível (v. 6). E a singularidade do Deus de Israel
(v. 39) e da aliança que esse Deus faz eom Israel
(v. 13) que faz Israel, diferente de todos os outros
povos. Para assegurar seu futuro, Israel precisa ape­
nas reconhecer o que é tão óbvio e ordenar sua vida
conforme os mandamentos. Uma vida de obediência
trará não apenas renome (vv. 6-7), mas também vida
longa na Terra Prometida (v. 40).
Este texto é um aviso claro: a desobediência pro­
voca 0 Deus de Israel, que não tolera infidelidade.
A desobediência significa que o poder divino se
voltará contra Israel, tão facilmente como outrora
se manifestou por Israel (vv. 34-35). A chave do fu­
turo de Israel é o próprio livro do Deuteronômio, já
que ele é o conjunto das “leis e dos mandamentos”
a que Israel precisa obedecer para assegurar uma
longa vida na terra (4,1.40).
4,41-43 As cidades de refúgio. Uma apresen­
tação completa sobre as cidades de refúgio ocorre
em Dt 19, que não faz menção a esta passagem.
Nm 35,13-14 afirma que três cidades de refúgio
devem ser estabelecidas no lado leste do Jordão. As
três cidades em questão são citadas em Js 20,8. É
óbvio que este texto foi acrescentado ao contexto
atual sob a impressão de que essas cidades foram
estabelecidas por Moisés. Provavelmente este texto
se encaixaria melhor depois de Dt 3,12-17, quando
Moisés distribui terra para as tribos que vão ficar
naTransjordânia. A localização exata dessas cidades
é desconhecida.
SEGUNDO DISCURSO DE MOISÉS
Dt 4/44-28^9
4,44-49 Introdução. O tempo e o lugar do se­
gundo discurso de Moisés são especificados. Moisés
o pronuncia perto de Bet-Peor (4,46), local de um
vergonhoso ato de apostasia (Nm 25). Aqui os israe­
litas tinham se mostrado prontos a comprometer a
fidelidade absoluta que Deus esperava deles. Estava
também dentro das fronteiras da nova terra que Deus
acabara de dar às tribos (Dt 2,24-3,17). Assim, Bet-
Peor é memorial da complacência divina que supe­
rou a infidelidade de Israel. A lei que se segue deve
ser 0 meio de assegurar que Israel permanecerá com­
prometido somente com o serviço de Deus. Moisés
faz este discurso depois das vitórias iniciais de Israel
sobre os emoritas (w. 46-47). Essas últimas demons­
trações da complacência divina devem ser forte estí­
mulo à fidelidade.
5,1-6,3 Os Dez M andamentos. Com Israel
acampado na Transjordânia, a promessa feita aos
ancestrais das tribos israelitas está prestes a ser
cumprida. O povo que vivera pela promessa agora
precisa aprender a viver com o cumprimento. A
mudança mais dramática nesta transição é apren- 191
 DEUTERONOMIO 5
der que a posse contínua da terra depende da fide­
lidade a Deus. A aquisição inicial da terra resulta
da fidelidade de Deus às promessas feitas aos an­
cestrais das tribos israelitas. Agora os israelitas pre­ Israel conseguirá permanecer fiel a Deus enquanto
cisam retribuir essa fidelidade, se quiserem perma­
necer na nova terra.
Os Dez Mandamentos devem guiar Israel nesta
transição de viver pela promessa para viver com sua
realização. O Decálogo dá a Israel um meio de man­
ter um relacionamento contínuo com Deus. As “Dez
Palavras”, como a tradição judaica as chama, servem
para moldar a resposta de Israel ao Deus que o tirou
da escravidão no Egito (5,6) e que está prestes a con­
duzi-lo a uma nova terra. Os mandamentos são res­
tritivos apenas de uma forma: exigem a fidelidade
inflexível de Israel ao Deus que cumpriu todas as
promessas feitas a Israel. Comprometem Israel com o
serviço exclusivo de Deus, o que assegura que Israel
viverá e prosperará na terra que Deus está na imi­
nência de lhe dar (5,33-6,3).
{Nota: A numeração dos mandamentos segue
aqui a tradição católica romana e luterana. Outros
cristãos e os rabinos dividem a proibição contra o
falso culto em dois mandamentos [w. 6-7 e 8-9] e
unem as proibições de cobiça em um único [v. 21].
Outra versão dos Dez Mandamentos encontra-se
em Ex' 20,2-17.)
O primeiro mandamento (vv. 6-10) exemplifica
a paixão divina pela fidelidade absoluta de Israel.
Depois que Israel se instalar em sua terra, haverá
tentações para comprometer a fidelidade devida a
Deus. Os israelitas anseiam pelo que será uma nova ’ mentos humanos são outros requisitos prévios para
experiência para eles — uma vida de liberdade em
sua terra. O que não deve mudar para eles é o com­
promisso com Deus. Toda a sua vida deve ser deter­
minada pelo relacionamento com o Deus que os
tirou do Egito. A proibição de ídolos (vv. 8-9) lem­
bra Israel que seu conhecimento de Deus deve ser
obtido da experiência da realidade de Deus encon­
trada no Êxodo do Egito e na liderança no deserto.
O segundo mandamento (v. 11) proíbe a tentati­
va de utilizar com magia o poder que os antigos
acreditavam ser inerente ao nome divino. Na tradição
judaica primitiva, era habitual evitar completamente
a menção do nome divino. O Deus de Israel estava
além da manipulação. O nome de Deus não podia ser
ligado a nenhum propósito humano egoísta. O man­
damento a respeito do sábado (vv. 12-15) impõe duas
obrigações: guardar o dia do sábado, considerando-o
sagrado (v. 12), e não trabalhar nesse dia (v. 13). As Lei, que obtém sua autoridade de Deus e sua apli­
duas obrigações relacionam-se, pois o dia de descan­
so dá aos israelitas a oportunidade de se lembrar da
escravidão no Egito e de sua libertação pelo poder de
Deus. O sábado deve ser um lembrete semanal da
dependência de Israel em relação a Deus.
O quarto mandamento (v. 16) funciona corno
ponte entre os que o precedem e os que o seguem.
Os mandamentos tratam de dois tipos de relaciona-
192 mento. Os três primeiros mandamentos concentram-
-se no relacionamento entre Deus e Israel, enquanto
os sete últimos tratam dos relacionamentos que de­
vem existir dentro da própria comunidade israelita.
as pessoas permanecerem fiéis umas às outras. O
relacionamento entre pais e filhos é análogo ao re­
lacionamento entre o divino e o humano (1,31) e
também o relacionamento essencial dentro da co­
munidade israelita.
A comunidade não conseguirá perseverar se a
vida humana puder ser tirada por razões pessoais
e ilegítimas, por isso o homicídio é proibido (v. 17),
pois ignora a posição e o valor da pessoa como cria­
tura de Deus e, como tal, é um ataque às prerro­
gativas do Criador. Outra ameaça à vida da comuni­
dade é qualquer ameaça ao compromisso obrigató­
rio de fidelidade feito por marido e mulher. O sexto
mandamento (v. 18) almeja proteger o relaciona­
mento conjugal. A infidelidade é repreensível a Deus,
que também é fiel.
Com toda a probabilidade, o sétimo mandamento
(v. 19) trata de crimes contra pessoas, não roubo de
propriedade. Os membros da comunidade israelita
não devem voltar-se uns contra os outros. Por exem­
plo, o comércio de escravos é proibido aqui. Mas, em
sentido mais amplo, toda ação pela qual um ser hu­
mano assume o controle da vida de outro é ilegal. Os
seres humanos não devem ser manipulados, mas ter
a liberdade necessária para conservar um relaciona­
mento fiel com Deus.
A integridade e a sinceridade nos relaciona­
uma comunidade sadia. O oitavo mandamento (v.
20) busca proteger esses valores. O Deus que é fiel
em cada palavra e ação exige a mesma sinceridade
nos relacionamentos humanos. Finalmente, os dois
últimos mandamentos (v. 21) proíbem a cobiça.
Não só são proibidas as ações que subvertem a
vida da comunidade como são condenados os dese­
jos que levam a esses crimes. O egoísmo precisa ser
reprimido antes de se tomar a força dominante na
vida da pessoa. A posição da esposa na forma deu-
teronômica desse mandamento difere da de Ex
20,17, em que a esposa está colocada entre as pro­
priedades do marido. Aqui a mulher tem posição
mais favorável.
Os mandamentos vêm de Deus, mas são inter­
pretados por intermédio de Moisés (vv. 22-33). O
povo e Deus escolhem Moisés como mediador da
cabilidade de Moisés. Mais adiante, o Deuteronô-
mio falará sobre os sucessores na função mosaica
(18,15-19). Mas o presente texto evidencia a auten­
ticidade do encontro de Israel com Deus por inter­
médio de um ser humano.
A seção do segundo discurso que contém os
Dez Mandamentos encerra-se com breve exortação
que tenta dar motivos para a obediência (6,1-3). A
principal razão dada é que a obediência levará à

realização das promessas feitas aos ancestrais de
Israel: uma terra fértil e uma descendência nume­
rosa. O Exílio, que significava viver fora da terra e
em números dizimados pela guerra com a Babilônia,
podia ser visto como nada menos que o resultado
da desobediência de Israel.
6,4-25 O am or de Deus. A preocupação deste
texto é promover a obediência a um mandamento
em particular: a proibição do culto de outros deuses
além do S enhor. Os israelitas preparam-se para
entrar em uma terra muito próspera (w . 10-11).
Moisés previne-os contra a conclusão precipitada
de que a prosperidade da terra existe graças à bene­
volência dos deuses adorados pela população nativa
da terra. Israel não deve nunca se esquecer do que
aconteceu no Egito (v. 12). A libertação de Israel
da escravidão no Egito realizada pelo S enhor for­
mou um elo que não deve nunca ser rompido pelo
serviço de Israel a divindades adoradas por outros
povos. Israel não deve dividir sua fidelidade.
Há muitas maneiras de traduzir o v. 4 (c f a
tradução da Bíblia Mensagem de Deus; “Javé, nosso
Deus, Aquele-Que-É é o Unico”; e a tradução habi­
tual no judaismo: “O S enhor é nosso Deus, o Senhor
é um”). Embora todas possam ser defendidas com
fundamentos lingüisticos e teológicos, a tradução
daTEB enfatiza a indivisibilidade do Deus de Israel
e do serviço a ele. Este v. e seu contexto salientam
a fidelidade que Israel deve ao S enhor, mas essa
não é uma afirmação de monoteísmo explícito. De
fato, aqui está implícita a possibilidade da existência
de outros deuses. Para Israel, entretanto, só existe
um Deus e todas as suas energias devem se voltar ao
serviço desse único Deus.
Alguns podem achar estranho que o v. 5 ordene
o amor de Deus. O amor prefigurado aqui é o tipo
de profunda fidelidade e afeição que Israel deve ao
Deus que pôs um fim a sua cruel servidão no Egito.
Em segundo lugar, no Deuteronômio, amor é pra­
ticamente sinônimo de obediência. A imagem por
trás dessa injunção é o relacionamento entre pais e
filhos, no qual amor e obediência são termos equiva­
lentes. O amor que Israel deve a Deus é abrangente.
De fato, 0 livro todo do Deuteronômio não é nada
mais que um esboço das conseqüências práticas do
V. 5. Quando lhe perguntaram sobre o grande man­
damento da Lei, Jesus citou este v. (Mt 22,36-37; Mc
12,28-30).
As injunções dos vv. 7-9 salientam como a
devoção de Israel aos mandamentos de Deus deve
ser total. Israel deve se lembrar dos mandamentos
sempre e sob todas as circunstâncias. O judaísmo
primitivo transformou essas metáforas em ordens.
Os Judeus iniciaram o costume de usar filactérios
(pequenos estojos de couro contendo rolos diminu­
tos, onde estavam escritos os vv. 4-9 e também ou­
tros textos bíblicos). A crítica de Jesus a esse costu­
me presume que a obediência a essa ordem nem
sempre era acompanhada pelo tipo de total obediên­
DEUTERONÔMIO 7
cia prefigurada pelo v. 5 (cf Mt 23,5). Os judeus
também começaram a prender um meznzah (peque­
no estojo contendo um texto bíblico escrito) à parte
superior da ombreira da porta. Em vez de estabe­
lecer costumes específicos, o Deuteronômio tenta
assegurar que cada israelita, suas casas e toda a
comunidade se destaquem na fidelidade a Deus. A
base dessa fidelidade é a libertação divina de Israel
da escravidão (v. 12) e a insistência divina na fide­
lidade (v. 14). Não há necessidade de determinar a
força da fidelidade de Deus a Israel; isso foi tenta­
do anteriormente, com resultados desastrosos (v. 16;
c f Ex 17,1-7).
A última parte dessa passagem (vv. 20-25) é
apenas uma repetição do que já foi dito. (Tais re­
petições são características do Deuteronômio e
levam alguns intérpretes a localizar as origens do
livro na situação de ensinar e/ou pregar.) Em certa
ocasião, Israel era escravo de Faraó (v. 21). Deus
libertou Israel da escravidão com uma poderosa
exibição de força contra o Egito (v. 22). O propó­
sito desse ato misericordioso era o cumprimento
das promessas feitas aos pais de Israel (v. 23). Agora
Deus exige de Israel fidelidade absoluta, e é ela é
a única esperança de Israel para o futuro (v. 24).
Obediência, fidelidade e respeito são as chaves do
tipo de relacionamento com Deus que preservará o
futuro de Israel (v. 25).
7,1-26 As nações. O pêndulo da Bíblia oscila
para a frente e para trás no que diz respeito às na­
ções não-israelitas. Às vezes, também elas compar­
tilham as bênçãos prometidas a Israel (Gn 12,1-3;
Is 42,1-4). Converter-se-ão ao S enhor (Is 45,14-25;
Jonas). Outras vezes as nações são apresentadas
como inimigos implacáveis de Israel e sua queda é
motivo de alegria (Am 1-3; Naum).
Este texto é uma das condenações mais cruéis
de toda a Bíblia, exigindo que Israel aniquile a po­
pulação nativa de Canaã no decorrer de seu estabe­
lecimento na terra prometida aos ancestrais de Israel
(v. 2). Essa ordem é obviamente contrária às sensibi­
lidades dos leitores contemporâneos, mas devemos
lembrar que nunca foi cumprida, nem era para ser.
Qual seria, então, o propósito de proibir alianças e
casamentos com nações não-israelitas (vv. 2b-3)?
Este capítulo representa um julgamento teológico das
nações, não um relato histórico do tratamento a elas
dispensado por Israel.
Embora também não seja muito atraente aos
fiéis de hoje, esse julgamento teológico reflete a ex­
periência de Israel com as nações, em especial a
Assíria e a Babilônia, sérias ameaças à própria exis­
tência de Israel na época em que a tradição deute-
ronômica estava começando a se formar. Nessas
circunstâncias, o Deuteronômio usa as expressões
mais fortes possíveis para ordenar que Israel evite
qualquer contato com as nações. A pressuposição
por trás dessa proibição é que a assimilação cultu­
ral é uma arrieaça à existência de Israel tão grande 193
 DEUTERONÔMIO 7
quanto a pressão política e militar empregada con­
tra Israel pelas nações poderosas que a combatiam.
7,1-5 Os inimigos de Israel. Aqui a atitude
para com as nações é inegavelmente negativa: todo
contato possível com elas deve ser evitado. Não deve
ser firmada nenhuma aliança política com elas (v.
2b), pois firmar tais alianças significaria reconheci­
mento explícito dos deuses das nações. Embora o v.
3 possa ser aplicado a qualquer tipo de casamento
misto, é mais do que provável que os deuteronomis-
tas tivessem em mente os casamentos como mano­
bras políticas (cf. IRs 11,1-8). É inevitável que estes
também envolvam o reconhecimento explícito de di­
vindades estrangeiras. Finalmente, Israel deve des­
truir os acessórios do culto associado a esses deuses
(v. 5). Adaptá-los ao culto do S enhor, o que aparen­
temente foi tentado (cf. 2Rs 18,4b), toma confusa a
distinção entre o Deus de Israel e os deuses das
nações. Israel deve se dedicar exclusivamente ao
serviço do Senhor (Dt 6).
7,6-11 Santidade. As proibições a respeito do
contato com as nações surgiram, não de uma supe­
rioridade da parte de Israel, mas por causa da eleição
de Israel e do grave perigo do fiãcasso de Israel em
suas responsabilidades para com Deus. Israel foi
separada de todas as outras nações. A Lei lhe foi
dada a fim de manter esse relacionamento especial
com Deus. Não são as qualidades inerentes de Is­
rael que formam a base desse relacionamento, mas
o amor divino que concentrou sua escolha no menor
de todos os povos. Israel deve ser reconhecido como
a escolha de Deus por seu amor e obediência volta­
dos para Deus. Essa fidelidade será recompensada,
mas uma imediata retaliação virá aos infiéis.
7,12-16 Bênção. A fidelidade de Deus está fora
de questão. O futuro de Israel, então, depende em
grande parte da qualidade de sua adesão às respon­
sabilidades que fluem de seu relacionamento singu­
lar com Deus. Em certo sentido, a completa realiza­
ção das promessas feitas a seus ancestrais depende
da obediência de Israel. Aqui, o Deuteronômio junta
duas tradições de aliança. As promessas incondicio­
nais feitas a Abraão, Isaac e Jacó ligam-se às tradi­
ções de aliança condicionais relacionadas com Moi­
sés. O resultado da obediência é a bênção, descrita
aqui como abundância de vida, prosperidade e bem-
-estar — contraste completo com as condições que
afligiram os que sofreram a escravidão no Egito.
Mas essas bênçãos dependem da firme dedicação
de Israel a Deus e da preservação de sua identidade
única como povo eleito de Deus.
7,17-26 As vitórias de Israel. A nação de Israel
deve devotar-se à obediência com total abandono.
A metáfora usada para exemplificar esse tipo de
obediência são os conflitos armados de Israel com
a população de Canaã. Se Israel enfrentar esses
conflitos com absoluta confiança em Deus e total
destemor em face da oposição humana, a vitória é
194 certa, pois Deus porá todos os adversários de Israel
em terrível pânico, o que resultará na vitória com­
pleta de Israel. O v. 22 é um interessante trecho de
apologética para explicar por que as vitórias de Is­
rael durante a conquista não foram completas. Jz
2,20-23 dá ainda outra explicação; foi permitido que
alguns dos inimigos de Israel sobrevivessem a fim
de testar a fé de Israel.
8,1-20 Estudo de contrastes. Embora Israel
possa eliminar as ameaças externas à fidelidade que
deve a Deus, isso não significa que essa fidelidade
esteja assegurada. Há também ameaças internas ao
compromisso de Israel, que precisam ser identifica­
das. Podem não parecer tão insidiosas como o culto
a deuses estrangeiros, mas na realidade não são me­
nos ameaçadores à fidelidade que Deus espera de
Israel. Moisés agora volta-se para esses perigos inter­
nos e fala deles pondo em contraste “lembrar” e
“esquecer”, o deserto e a terra cultivável, a presunção
humana e a dependência de Deus. Esses três contras­
tes estão entrelaçados neste capítulo, que tem o pro­
pósito de manter Israel sempre obediente a Deus.
Lembrar-se dos atos misericordiosos de Deus
no Êxodo do Egito e na orientação no deserto é
fundamental para o relacionamento de Israel com
Deus, pois essa lembrança é estímulo à obediência.
Lembrar-se do que Deus fez permite que todas as
gerações experimentem a realidade e a fidelidade
de Deus. É inevitável que esquecer Deus leve à de­
sobediência. A vontade humana substituirá a vonta­
de divina. As exigências de Deus são relegadas ao
segundo plano da percepção humana.
O contraste entre o deserto e a terra cultivável
não pretende realçar a aridez do primeiro e a fertili­
dade da segunda; o contraste entre os dois está em
como o deserto impediu Israel de esquecer Deus, en­
quanto a fertilidade da nova terra que Israel possuirá
insensibiliza Israel à presença divina O deserto foi
lugar de teste enquanto Israel aprendia a considerar
sua existência totalmente dependente de Deus. A de­
solação da vida no deserto tomou quase impossível
ignorar a proteção divina Para esclarecer as coisas de
maneira mais dramática. Deus eliminou até o escasso
suprimento de comida no deserto e fez Israel viver de
maná, fonte milagrosa de nutrição. Na Terra Prome­
tida, Israel terá comida em abundância e, então, terá
a inevitável tentação de acreditar que a abundância é
o resultado de esforços humanos. Na verdade, a divi­
na providência supre as necessidades de Israel tanto
no deserto como na nova terra.
O propósito de Deus para Israel foi alcançado
por intermédio da colaboração humana. Moisés foi
o instrumento usado por Deus para tirar Israel do
Egito e conduzi-lo pelo deserto. A terra da promessa
deve ser adquirida por intermédio da liderança de
Josué e dos esforços da milícia tribal. O que se ini­
cia com colaboração humana termina com a pre­
sunção da auto-suficiência humana. Moisés adver­
te Israel para não ignorar nunca o poder alentador
de Deus, que pode ter sido mais evidente no deserto.

mas é, da mesma forma, uma realidade na terra
cultivável. Israel será tão dependente de Deus na
nova terra quanto o foi no deserto.
Esses três contrastes estão entrelaçados com
três ordens que convocam a constante fidelidade
fundamental a Deus, marca distintiva da tradição
deuteronômica (vv. 1.11.18). Em cada uma dessas
ordens, a palavra “hoje” enfatiza que todas as gera­
ções de Israel precisam se lembrar de Deus. O es­
quecimento levará ao desastre.
A primeira ordem (v. 1) é o típico chamado deute- foi o que Israel fez, quando estava no sopé da mon­
ronômico à obediência. Localiza a motivação para a
obediência nas dádivas de terra e prosperidade.
A segunda ordem (v. 11) é advertência mais
específica contra ignorar o papel constante que
Deus desempenha na vida de Israel. O amparo do
S enhor a Israel não se limita ao período no deser­
to. Israel deve ampliar seus horizontes além daqui­
lo que é conhecido e experimentado de imediato.
A prosperidade na terra não deve permitir que a
realidade de Deus desapareça de sua consciência.
Finalmente, a terceira ordem (vv. 18-20) é lem­
brete severo das conseqüências do “esquecer”. Põe
Israel no mesmo nível das nações que não foram
escolhidas para ser o povo de Deus. Esse, já se vê,
seria o pior tipo de desastre, pois Israel deve conti­
nuar a ser um povo com um relacionamento singular
com Deus. Mas, se Israel não se “lembrar” de Deus,
será fácil seguir e servir os deuses das nações. Israel, as duas tábuas não foi o resultado de um acesso de
então, se comportaria exatamente como se compor­
tam as nações que desalojou. Se Israel se esquecer de
Deus, poderá esperar ser expulso da terra da mesma
forma que o foram as outras nações.
9.1- 10,11 Teimosia de Israel e graça divina. bezerro de ouro. Ao não hesitar em incluir Aarão
Outra ameaça interna ao relacionamento de Israel
com Deus é a crença de Israel na própria integri­
dade. E claro que Israel depende completamente
da ajuda divina para adquirir a terra, mas a fim de
reforçar o tema do desmerecimento de Israel o Deu-
teronômio faz Israel se lembrar de sua revolta no
deserto. No momento em que Moisés firmava a
aliança entre Deus e Israel, o povo adorava um
ídolo. O ato de revolta foi suficiente para levar
Deus a destruir Israel. Somente pela intercessão
de Moisés Israel foi salvo dos efeitos totais da có­
lera divina para que as promessas feitas aos ances­
trais de Israel fossem cumpridas.
9.1- 6 A te rra como dádiva. As vitórias de Is­falar a Israel, Moisés recordou o passado para que
rael sobre os canaanitas, representados pelos ana-
quitas (gigantes lendários) e suas cidades fortifica­
das, acontecerão graças ao poder e à fidelidade de
Deus. Mas, como o próprio Israel terá de submeter
os canaanitas (v. 3b), haverá a tentação de ignorar
a ajuda divina. Além disso, a crença afirmada aqui
(vv. 4-5) e em Gn 15-16, de que as nações são des­
tituídas por serem culpadas, pode facilmente ser de­
turpada para uma crença na integridade de Israel.
A verdade é que Israel não é melhor que as nações.
Apesar de tudo que Deus fez por Israel, o povo foi
DEUTERONÔMIO 9
rebelde e teimoso na recusa de servir somente a
Deus. A única razão de Israel ser favorecida em
relação às nações é o juramento de Deus a Abraão,
Isaac e Jacó (v. 5).
9,7-14 Revolta. Enquanto Moisés estava em
comunhão com Deus no Horeb, Israel voltou-se
para a idolatria. No próprio momento em que a
aliança estava sendo firmada, estava sendo rompida
por Israel. A ironia é amarga. Não podería haver
uma ocasião mais imprópria para revolta, contudo
tanha de Deus.
No V . 6 , Moisés chamou Israel de povo de “dura
cerviz”; no v. 13 é o S enhor que exprime essa con­
denação do povo, junto com a intenção clara de
destruí-lo. A maldade das nações levou Deus a des­
tituí-las; agora a revolta de Israel voltava Deus tam­
bém contra ele. Moisés não considerou as palavras
de Deus dirigidas a ele, no v. 14: “Deixa-me agir!”,
proibição, e sim convite à intercessão. Moisés con­
seguiu desviar a cólera divina de Israel, mas antes
de iniciar sua intercessão desceu da montanha e con­
frontou 0 povo que esquecera seu Deus.
9,15-21 Rompimento da aliança. Qualquer que
tenha sido a razão para o bezerro de ouro ser cons­
truído, 0 Deuteronômio entende esse fato como rom­
pimento direto da ordem de Deus que proibia o culto
falso e 0 uso de ídolos. A ação de Moisés ao quebrar
raiva; destruiu as tábuas que simbolizavam a aliança
entre Deus e Israel porque este último decidiu des­
truir esse relacionamento. Como símbolos, as tábuas
perderam todo o sentido, quando Israel construiu o
entre os culpados (v. 20), os deuteronomistas estão
prontos a culpar os sacerdotes por ajudarem Israel a
escolher o caminho da revolta.
9,22-24 Mais revoltas. Israel revoltou-se mais
de uma vez. Estes vv. mencionam outros quatro
incidentes de revolta, a fim de comprovar o caráter
rebelde de Israel. Esse defeito fatal mostrou-se mais
de uma vez durante o período no deserto. Israel so­
breviveu por causa da intercessão de Moisés, mas
o que será dele quando não houver ninguém como
Moisés para interceder?
9,25-29 Oração de Moisés. Esta oração é ou­
tro contraste delineado pelos deuteronomistas. Ao
o povo se lembrasse da própria maldade e desobe­
diência. Ao falar a Deus, Moisés lembrou-o das
promessas feitas aos ancestrais de Israel (v. 27) e
os atos misericordiosos de salvação no Êxodo do
Egito (v. 29). Moisés lembrou a Deus a identidade
do povo destinado à destruição: é “teu povo, teu pa­
trimônio” (v. 25). É o povo que Deus libertou da
escravidão no Egito. Moisés esperava conseguir
evocar de Deus outro ato de libertação divina. Israel
precisava ser libertado dos efeitos debilitantes de
sua rebeldia. 195
 DEUTERONÔMIO 10
10,1-5 A arca da aliança. Para simbolizar uma
aliança renovada entre Deus e um Israel rebelde, o
S enhor ordenou a Moisés que talhasse duas novas
tábuas. Depois de novamente serem escritos os Dez
Mandamentos nas tábuas, elas foram colocadas em
uma arca de madeira, usada para guardar esses me­
moriais da aliança. Originalmente, a arca era sím­
bolo da resistência das tribos israelitas aos filisteus
(cf. ISm 4,1b; 7,2). Mais tarde ficou guardada no
Templo e era considerada o escabelo do trono de
Deus e, portanto, símbolo da presença divina (cf.
Ex 25,1-22). No Deuteronômio, a arca é apenas um
recipiente para as tábuas da Lei. É a obediência a
essa Lei que garante o favor de Deus, não a suposta
presença de Deus no Templo.
10,6-9 Uma inserção. Este texto interfere na
narrativa da intercessâo de Moisés pelos israelitas
rebeldes. Os vv. 6-7 refletem uma tradição sobre a
morte de Aarão um tanto diferente da que se encon­
tra em Nm 22; 33. Os vv. 8-9 dão informações en­
contradas em outras passagens do Deuteronômio
(cf 31,9.25-26). Eram os levitas que transportavam
a arca quando necessário. Duas outras funções le-
víticas são mencionadas: sua responsabilidade para
liderar o culto e abençoar o povo em nome de Deus.
10,10-11A resposta à oração de Moisés. Israel
não seria destruído. A aliança seria restabelecida.
Tudo isso foi resultado da misericórdia e do amor
divinos. A justiça divina exigia a aniquilação de Israel.
A fidelidade do S enhor às promessas feitas aos an­
cestrais de Israel e sua disposição de ouvir as súpli­
cas de Moisés possibilitaram a continuação da exis­
tência de Israel.
10.12- 11,32 O grande mandamento. Antes Senhor.
de entrar nos aspectos específicos da Lei para a
vida de Israel na terra (caps. 12-26), os deuterono-
mistas voltam a apresentar o grande mandamento
que exige o amor irrestrito de Israel a Deus (10,
12-11,25). Então, como ponte para as ordens espe­
cíficas, é feita uma advertência (11,26-32), afirman­
do que a Lei tem o potencial de trazer para o povo
uma grande bênção ou uma terrível maldição. As
exigências que Deus faz à nação têm conseqüências.
A experiência de Israel mostrou de maneira bas­
tante conclusiva que Deus é capaz de cumprir toda
promessa feita. Se Israel deseja assegurar seu fu­
turo na terra, a fidelidade a Deus e a obediência à
Lei são 0 único caminho para fazê-lo. A infideli­
dade ao S enhor e o menosprezo dos mandamentos
trarão o desastre.
10.12- 22 Fidelidade de Israel. A ordem queIsrael sucumbir às mentiras que garantem ser a fer­
exige total dedicação a Deus inicia essa transição
para as Leis do S enhor (caps. 12-26). Uma única
mensagem é transmitida de várias maneiras: o amor
de Deus é o centro da resposta de Israel ao S enhor.
Este Deus não é outro senão o Criador do universo
que livremente decidiu escolher os antepassados
de Israel para um amor especial. A resposta de Israel
196 deve incluir a observância de rituais que celebram
essa escolha. Entre eles está a circuncisão. Mas essas
observâncias devem ultrapassar a atividade ritualista
para a transformação do espírito. Toda a aproximação
de Israel a Deus precisa ser examinada (v. 16).
Uma maneira de o povo mostrar como leva a sério
sua escolha como povo de Deus é aceitando a respon­
sabilidade pelos membros da comunidade cuja posi­
ção social e econômica não lhes assegura a sobrevi­
vência. Ao se ligar a Israel, Deus escolheu um povo
fiaco e impotente para ser o objeto de um amor único
(Dt 7,7). Ao responder a esse amor, Israel precisa
amar o mesmo tipo de pessoas que Deus ama. Esse
padrão de comportamento trará a completa realização
das promessas feitas por Deus aos ancestrais de Israel.
Uma das promessas já foi cumprida com o cresci­
mento fenomenal do número de israelitas (v. 22; c f
Gn 15,5-6). Ainda resta para ser cumprida outra parte
da promessa, a dádiva da terra (Gn 17,8). A obediên­
cia de Israel levará à realização completa de todas as
promessas divinas.
11,1-25 Memórias. Aqui, altemam-se ordens e
narrativas da memória coletiva de Israel para incen­
tivar a obediência. O v. 1 inicia esse padrão. Sua for­
mulação da ordem básica que fundamenta todo o
livro apresenta três lições do passado que deviam
promover a obediência: o Êxodo (vv. 2b-4), a expe­
riência do deserto (v. 5) e o caso de Datan e Abirâm
(v. 6; c f Nm 16). Essas referências ao passado de
Israel dão exemplos positivos e negativos de como a
graça e o julgamento divinos afetam a vida dos obe­
dientes e dos desobedientes. Lembrar essas grandes
e terríveis experiências é educação nos caminhos do
O V. 8 mais uma vez exorta o povo a guardar
os mandamentos do S enhor. N os vv. 9-12, uma
comparação entre o Egito e Canaã estabelece a mo­
tivação para a obediência. A Terra Prometida que
aguarda Israel é abençoada por uma abundância
que se apóia na providência divina. Em contraste,
0 Egito proporciona colheitas apenas por causa de
um sistema de irrigação que é obra de engenhosi-
dade e esforço humanos. O cuidado providencial
de Deus pela terra de Canaã é outro incentivo à
obediência.
O pensamento da seção anterior é retomado pelo
V . 13, que exige a obediência como meio de asse­
gurar de Deus provisões e prosperidade no futuro.
Deus mandará a chuva que, na ocasião apropriada,
trará sucesso aos esforços agrícolas de Israel. Se
tilidade da terra garantida por outros deuses, verá
que é impossível sobreviver na terra. O povo terá, en­
tão, de aprender a verdade da maneira mais difícil.
Os últimos Yv. desta passagem (w. 16-25) são
um resumo final do discurso de Moisés até agora.
Aqui a principal ênfase são as obrigações que Deus
impõe a Israel. Estes w . são um pasticho de admoes-
tações feitas anteriormente por Moisés (cf Dt 1,7-8;

2,25; 4,9-10.38.40; 6,2.8-9.17; 7,23-24). A repetição
dessa mensagem salienta sua importância; a própria
existência de Israel depende de sua disposição de
corresponder ao amor divino.
11,26-32 As alternativas. Moisés quer que Is­
rael decida seu futuro. Expressa as alternativas com
muita clareza. O povo pode escolher ser abençoado
ou amaldiçoado. A bênção depende, naturalmente,
da obediência de Israel à Lei. As estipulações deta­
lhadas dessa Lei estão prestes a ser apresentadas ao
povo. Moisés adverte os que o ouvem que a aceita­
ção de uma vida guiada pela Lei é a única maneira
pela qual podem esperar as bênçãos prometidas a
seus ancestrais. A Lei, então, não é apenas um có­
digo legal para modelar o comportamento de Israel;
é a chave para a plenitude de vida que esptera Israel
do outro lado do rio Jordão.
Os últimos vv. (vv. 29-32) fazem o esboço de
um ritual que celebra o relacionamento entre Deus
e Israel (há uma apresentação mais detalhada desse
ritual em Dt 27,1 -26). A escolha que o povo é cha­
mado a fazer é realmente muito simples — é uma
escolha entre o S enhor e outros deuses. A escolha
de Israel é representada de forma dramática por um
ritual celebrado perto de Siquém, nos montes gemi­
nados Garizim e Ebal. Israel sabe que Deus o esco­
lheu entre todas as nações do mundo. Agora cabe a
Israel escolher o S enhor acima de todos os outros
deuses. Na verdade, não há nenhuma escolha real,
mas se Israel abandonar o S enhor por aquilo que,
na verdade, não são deuses o que se seguirá será so­
mente miséria e desastre. Se, entretanto, permanecer
fiel a Deus, não haverá limites para as expressões
do amor divino.
12,1-26,19 O Código Deuteronômico. Algu­
mas das leis encontradas aqui são exclusivas do Deu-
teronômio; muitas, entretanto, encontram-se em ou­
tros códigos, tanto israelitas como do antigo Oriente
Próximo. A marca especial do Deuteronômio pode
ser reconhecida na preocupação permanente pelos
pobres, na humanização de leis mais antigas e, princi­
palmente, na associação da obediência à continuação
da existência na terra. Se o povo deseja assegurar
um futuro para si na terra que Deus concedeu, há só
um caminho — o da obediência.
Aqui usamos a palavra “código” de maneira
generalizada. O livro do Deuteronômio é menos
um guia prático para questões legais do que uma
enumeração de valores e práticas tradicionais que
os membros respeitáveis da comunidade conside­
ram característicos da identidade israelita. Não há
nenhuma disposição “lógica” neste código e, a par­
tir do capítulo 22, há uma sucessão de leis isoladas
que não são explicadas com detalhes; de fato, pare­
cem não ter relação umas com as outras. Isso pode
confundir o leitor contemporâneo.
As vezes, palavras-chave fazem a ligação entre
diversas leis, mas em outras ocasiões isso não é
prontamente visível na tradução. Além disso, o es­
DEUTERONÔMIO 12
tudo do estilo retórico hebraico está apenas come­
çando. Talvez algum dia a “lógica” da disposição
do Deuteronômio fique clara. Todavia, ainda é im­
portante lembrar que este livro não é uma compila­
ção legal completa. Oferece aos leitores um resumo
conveniente de práticas tradicionais e convoca pa­
ra sua observância. Os deuteronomistas tentam ins­
pirar uma atitude de submissão e obediência. Não
estão necessariamente preocupados em dar ao povo
um código de leis completo.
12,1-28 Centralização. A lei que requer a cen­
tralização do culto sacrifical de Israel é exclusiva
do Deuteronômio e da literatura dele dependente.
A legislação e a prática anteriores prefiguravam esse
culto acontecendo em muitos altares por toda a terra
(cf. Ex 20,24). O afastamento do Deuteronômio do
costume anterior baseia-se na preocupação pela pu­
reza no culto de Israel e na crença de que uma mul­
tiplicidade de santuários é incompatível com o culto
do Deus de Israel. A preocupação com a pureza
cultuai e o desejo de unidade cultuai estão relacio­
nados, porque ambos fundamentam-se no reconhe­
cimento de que o Deus de Israel não é como os
deuses das nações. Os muitos santuários locais antes
associados às antigas divindades canaanitas são im­
próprios para o culto do S enhor. Esses santuários
foram substituídos por um só local escolhido pelo
Deus único.
Nesta passagem, há outras duas dinâmicas im­
portantes características do Deuteronômio: dessacra-
lizar e humanizar. Ao contrário dos deuses de Canaâ,
o S enhor não é uma força natural personificada;
conseqüentemente, nada na natureza é sagrado em
si mesmo. Se um lugar se toma veículo da presença
divina, é por causa da livre escolha divina, não devido
à santidade inerente ao lugar.
Segundo, esta passagem permite o abate de ani­
mais domésticos para uso profano (vv. 15.20). Em­
bora não deva ser consumido com a came, o sangue
não tem nenhum caráter sagrado especial e é, por
isso, derramado como água (w. 16.24). O sangue
deve ser oferecido a Deus (v. 27), provavelmente
em reconhecimento da soberania divina sobre a
vida, simbolizada pelo sangue.
Finalmente, o Deuteronômio investe no sacrifí­
cio com um propósito duplo. O primeiro representa
as preocupações religiosas particulares, tais como o
cumprimento de um voto (v. 7). Um segundo propó­
sito é mais humanitário em sua orientação, dando
ao devoto a oportunidade compartilhar a bênção
da terra, alegrar-se no S enhor e oferecer ajuda aos
economicamente dependentes (vv. 7.12.18).
Há aqui repetições, pontos de vista conflitantes
e diferenças em terminologia que indicam sua com­
plicada história literária. A lei original a respeito do
santuário central encontra-se nos vv. 13-19. Adições
posteriores (vv. 2-7.8-12.20-28) concordam todas
com a restrição do culto a um único santuário, cuja
escolha cabe somente a Deus. 197
 DEUTERONÔMIO 12
12,1-7 Destruição dos santuários canaanitas.
A centralização do culto é apresentada como conse-
qüência lógica do cumprimento de uma ordem pre­
viamente dada para destruir santuários canaanitas
e seus pertences (v. 3; cf. Dt 7,5). Colinas e árvores
frondosas eram com freqüência escolhidas como
locais para santuários porque diversos povos semí-
ticos as associavam ao divino. A atividade cultuai
nesses locais era inequivocamente condenada como
pecado pelos profetas (cf. Os 4,3; Jr2,20; Ez 6,13).
A expressão “houver escolhido... para ali morar”
(v. 5) é uma fórmula usada pelos reis do antigo
Oriente Próximo para indicar posse. A História Deu-
teronomista usa essa mesma expressão para se refe­
rir a Jerusalém (IRs 9,3; 11,36; 14,21; 2Rs 21,4.7).
Da mesma forma, a expressão “entre todas as tribos”
refere-se a Jerusalém em IRs 8,16; 11,32; 14,21;
2Rs 21,7. Isso indica que Jerusalém é o lugar esco­
lhido pelo S enhor para o único santuário permitido.
Naturalmente, o Deuteronômio não poderia citar a
cidade, pois Jemsalém só foi incorporada a Israel
no tempo de David (cf. 2Sm 5,6-12).
12,8-12 A centralização como meta da pere­
grinação de Israel. Os deuteronomistas estão bem
cientes de que a exigência de um único santuário
vai contra práticas legítimas mais primitivas. Essa
passagem caracteriza todas essas práticas anteriores
como temporárias. O “descanso” que o S enhor dá a
Israel (cf. IRs 5,4; 8,36) inaugura uma nova era
marcada por Deus. Aparentemente, Ezequias (2Rs
18,4) e Josias (2Rs 23,8-9.12-15.20) procuraram cen­
tralizar o culto, mas suas tentativas não sobrevive­
ram a eles. A meta deuteronômica de centralização
do culto foi bem-sucedida porque a guerra contra a
Babilônia reduziu a terra sob o controle israelita a
Jerusalém e alguns quilômetros quadrados em redor
dela. Assim, os deuteronomistas fizeram da necessi­
dade uma virtude.
12,13-19 Alguns efeitos da centralização. A
mais antiga das leis sobre o santuário central é diri­
gida a Israel na segunda pessoa singular, como acon­
tece com a maioria da legislação deuteronômica pri­
mitiva. Uma das conseqüências dessa lei é a permis­
são para 0 abate profano de animais domésticos, que
se toma uma necessidade prática, porque o abate ri­
tual deve se limitar ao santuário central. Embora a
dieta diária raramente inclua came, o abate de ani­
mais para a aliriientação tem de ser separado do culto.
Os levitas que oficiam nos santuários que serão eli­
minados em favor do santuário único são recomen­
dados à caridade dos israelitas, da mesma forma que
outros grupos economicamente dependentes (viúvas,
órfãos e migrantes; Cf. Dt 12,12; 14,27-28; 16,11;
18,6-7; 26,11-12).
12,20-28 Uma limitação. O efeito do v. 21 é
limitar a permissão bastante ampla do v. 25 a res­
peito do abate não cultuai de animais para alimen­
tação. Tal permissão restringe-se a lugares cuja dis-
198 tância do safituário central impossibilita na prática
o abate ritual dos animais. O v. 28 é uma conclu­
são homilética de toda a passagem sobre ó santuá­
rio central. É recomendada a obediência porque ela
assegura a Israel o favor divino.
Embora a lei da centralização seja importante
inovação deuteronômica, a parte principal do livro
trata de legislação que não exige nem mesmo men­
ciona a centralização. Ainda assim, essa inovação
foi momento decisivo na vida do antigo Israel.
Apresentou um senso de unidade e coesão em uma
época em que as outras instituições de Israel esta­
vam mortas ou moribundas. A centralização do
culto foi, realmente, uma inovação, mas que resul­
tou de uma nova interpretação do antigo modelo
cultuai do deserto. O que era perfeitamente viável
na época de Moisés nunca mais foi percebido por
Israel até o Deuteronômio. Sob a influência desse
livro, a centralização tomou-se o meio para expres­
sar a natureza única do Deus de Israel e do relacio­
namento único de Israel com o Divino.
12.29- 13,18 O espectro da infidelidade. O tra­
tamento insensível das nações no Deuteronômio não
resulta tanto de um sentimento de superioridade étni­
ca ou cultural por parte dos deuteronomistas quanto
de seu medo de que Israel estivesse em perigo real de
se perder para sempre em um mar de assimilação.
Se for para Israel ter algum futuro, será por causa
de uma autodefinição formulada com clareza mani­
festada por intermédio de padrões culturais distintos
que marcam Israel como diferente das outras nações.
Certamente, o mais distinto desses padrões é a reli­
gião de Israel, com sua ênfase na fidelidade a um,
e só a um. Deus. Em resultado dessa preocupação,
o Deuteronômio é quase implacável na determina­
ção de assegurar que Israel mantenha sua fidelidade
somente ao S enhor. Esta passagem em particular
trata das tentativas de subverter a fidelidade de Israel
e de como elas devem ser enfrentadas.
12.29- 31 Rituais religiosos estrangeiros. Os
historiadores da religião têm certeza de que o culto
israelita adotou grande parte dos rituais religiosos de
Canaã, modificados para se adaptar às crenças no
S enhor. Por exemplo, a festa agrícola da Páscoa as­
sumiu um tom distintamente javista pela associação
com o Êxodo (cf. Dt 16,1-6). De modo semelhante, o
sacerdócio israelita, o sistema sacrifical e até mesmo
O Templo de Jerusalém derivaram de padrões canaa­
nitas em uso por um longo tempo antes de Israel co­
meçar a existir. Porém tudo isso já se perdera na me­
mória coletiva de Israel quando o Deuteronômio foi
escrito.
O que os deuteronomistas têm diante dos olhos
é a tentação que Israel enfrenta: a deserção do S enhor
em favor dos deuses das nações conquistadas. Para
neutralizar essa tentação, o Deuteronômio relembra
tradições associadas ao período do assentamento (w.
29-30) e faz Israel se lembrar da natureza repugnan­
te dos rituais religiosos nunca adotados oficialmente
por Israel, tais como sacrifícios de filhos (v. 31). A

crítica incansável da religião não-israelita é para
superar a tendência de assimilação que ameaça não
só a identidade religiosa única de Israel, mas tam­
bém sua própria existência.
1232-13,18 Ameaças internas. Apesar da críti­
ca severa às religiões não-israelitas, os deuteronomis-
tas reconhecem que as ameaças mais sérias à aliança
vêm de dentro. Os passos a dar a respeito dessas
ameaças mostram como os deuteronomistas levam
a sério a fidelidade absoluta a Deus.
De modo bastante surpreendente, os primeiros
a passar por um exame minucioso são os profetas
(13,1-5). A incitação à apostasia pode vir, e vem,
de autoridades religiosas tais como os profetas. Ao
relacioná-las em primeiro lugar como as que podem
levar Israel a comprometer sua fidelidade ao S e­
nhor , o Deuteronômio revela uma verdadeira falta
de confiança nessas autoridades religiosas. Como
é natural, o Deuteronômio se apresenta como a pa­
lavra autorizada de Deus, o que, com efeito, toma
obsoleta a profecia. O povo pode determinar a von­
tade divina consultando este autoritativo documento
escrito em vez de confiar em autoridades humanas
e falíveis, capazes de induzi-lo em erro. Israel nunca
se enganará se obedecer os preceitos encontrados
no Deuteronômio.
A fidelidade que Israel deve a Deus transcende
todo laço humano, mesmo o da família (13,6-11).
Se um membro da família é incentivo à idolatria,
os israelitas fiéis a Deus não deixarão o amor fa-
milial ter precedência sobre o amor que têm a Deus.
Embora este texto faça uso de linguagem legal, seu
impulso básico é homilético. Concentra-se no valor
da fidelidade a Deus, em vez de na apresentação
de regras de conduta específicas, e deve ser inter­
pretado da mesma forma que passagens semelhan­
tes no Novo Testamento, como Mt 10,34-38 e seus
paralelos.
Uma terceira ameaça interna pode ser toda uma
cidade que passou para o culto de outros deuses
(13,12-18). Da perspectiva do Exílio, este não é
um exagero retórico. As conquistas assírias e babi-
lônicas reduziram Israel a uma fração daquilo que
ele era outrora. Toda a Galiléia e o centro da Pales­
tina foram perdidos. Das perspectivas dos deutero­
nomistas, essas perdas tinham uma única explica­
ção — a infidelidade de Israel. Se o remanescente
de Israel não for engolfado pelas nações, será por
causa da firme decisão de adotar absoluta fideli­
dade ao S enhor .
Segundo o Deuteronômio, a continuação da
existência de Israel depende da manutenção de sua
dedicação a Deus. Toda transigência equivale ao
suicídio comunitário. Os deuteronomistas fazem
essa afirmação com clareza chocante e convicção
sincera. Dentro da comunidade não há espaço para
ninguém que adote uma atitude de apostasia. A
vida e o futuro de Israel estão na balança. Qual é
a escolha de Israel?
DEUTERONÔMIO 14
14,1-21 Santidade. À primeira vista, o material
deste capítulo parece ter pouco a ver com santidade.
Isso é verdade se definimos santidade em termos de
virtudes a serem adquiridas e vícios a serem evitados.
Da perspectiva israelita, a santidade é conseqüência
da singularidade divina O Deus de Israel não é
como os deuses das nações e, por isso, os que servem
a ele não podem pautar seu comportamento segundo
os costumes associados ao serviço dos deuses estran­
geiros. Israel deve ser santo, isto é, único, como Deus
é santo.
Os vv. 1 e 2 proíbem a observância de ritos fú­
nebres praticados nas religiões canaanitas. (Aparen­
temente, tais ritos perduraram em toda a história de
Israel, até mesmo no período exílico — c f Ez 9,14­
15.) Esses rituais fúnebres estão associados ao culto
do deus que morre e ressuscita, refletindo os ciclos
agrícolas de infertilidade e fertilidade que se alter­
nam. Para Israel, esses ciclos não formam uma me­
táfora apropriada para o S enhor que tem soberania
absoluta sobre o cosmos. Israel pertence ao S enhor
(v. 2). É impensável, então, para o povo do S enhor
observar rituais estrangeiros.
O resto desta unidade (vv. 3-21) trata de leis ali­
mentares. E impossível saber a origem dessas obser-
vâncias. Mesmo as traduções para as línguas ociden­
tais dos nomes de alguns dos animais e pássaros
relacionados aqui não são mais que conjeturas. Qual­
quer tenha sido a origem dessas leis, é grande sua
importância na comunidade exílica e pós-exílica.
A observância de tais leis alimentares ajudaram
o judaísmo primitivo a desenvolver sua identidade.
Eliminou com eficácia a socialização com não-ju-
deus e, assim, ajudou a afastar o impulso à assimi­
lação. Gradativamente, à medida que foram criadas
e se desenvolveram no judaísmo antigo, as leis ali­
mentares ficaram tão enraizadas na identidade re­
ligiosa judaica que os primeiros cristãos tiveram
dificuldade para imaginar a possibilidade de uma
religião verdadeira sem elas (At 15,29; Cl 2,21).
A suposição fundamental por trás dessas leis alimen­
tares é que 0 povo de Deus não pode ser como o
povo que adora deuses estrangeiros, e essa distinção
deve estender-se até mesmo a questões alimentares.
De interesse especial é o v. 21b, que proíbe que
se cozinhe um cabrito no leite de sua mãe. (Mais
tarde, os rabinos extrapolaram dessa lei a proibição
de comer laticínios e carne na mesma refeição.)
Essa proibição é diferente de outras nesta passagem
que tratam de animais puros e impuros. Há alguma
evidência de que era ela a rejeição consciente de
determinado ritual canaanita, mas a evidência não
é suficiente para tirarmos uma firme conclusão. De
qualquer modo, todas essas leis fazem Israel se
lembrar de que seu futuro depende da disposição
de se afastar de tudo que possa comprometer sua
fidelidade a Deus.
14,22-15,23 Generosidade de Israel. Uma
crença israelita fundamental era que, embora Deus 199
 DEUTERONÔMIO 14
tivesse dado a terra a Israel, ela realmente pertencia
ao S enhor que a deu de presente a Israel, conforme
as promessas feitas a Abraão, Isaac e Jacó. Uma
consequência importante dessa crença foi o reco­
nhecimento da dependência de Israel da genero­
sidade divina. Os ricos e os pobres igualmente
deviam reconhecer Deus como fonte de seu sus­
tento. A legislação desta passagem descreve algu­
mas das maneiras pelas quais Israel decidiu expres­
sar essa crença; o dízimo, o ano da remissão das dí­
vidas, a alforria dos escravos e a consagração dos
primogênitos.
Em toda esta passagem é bem evidente a con­
sideração especial do Deuteronômio pelos pobres.
De fato, Dt 15,4-5 afirma que a obediêneia pode­
ría fazer com que a pobreza não existisse, mas
uma avaliação mais realista do potencial de Israel
para a obediência reconhece a existência da pobre­
za e a necessidade de generosidade por parte dos
ricos (15,11). Essa preocupação pelos pobres é uma
das manifestações de uma inclinação humanitária
mais ampla dentro do Deuteronômio. Por exemplo,
Dt 14,22-27 sugere que o propósito do dízimo é for­
necer alimentos especialmente para os pobres. Não
há menção de nenhum propósito sagrado para o
dízimo, como oferenda para o benefício de Deus.
Mesmo o uso do dízimo como sustento de sacer­
dotes e levitas é ignorado pelo Deuteronômio (cf
Nm 18,21-28). Os levitas recebem parte do dízimo
não por sua posição sacerdotal, mas por causa de
sua necessidade como os que não têm posição eco­
nômica (14,27.29).
Finalmente, o Deuteronômio faz acomodações
práticas em vista de sua expectativa de que haja
apenas um santuário. Dt 14,25 fala de trocar o dízimo
por dinheiro, o que tomaria óbvia a necessidade de
transportar produtos agrícolas por longas distâncias
até o santuário central. Da mesma forma, enquanto
Ex 22,30 espera que o sacrifício dos primogênitos
aconteça oito dias após o nascimento, Dt 15,20 elimi­
na a necessidade de viagens freqüentes ao santuário
central, afirmando que esse sacrifício podia aconte­
cer em qualquer ocasião durante o ano.
O dízimo (14,22-29) era a oferenda de uma parte
da produção agrícola originalmente destinada ao
sustento dos santuários e seu pessoal. Era costume
amplamente praticado no antigo Oriente Próximo.
(Embora a palavra “dízimo” em hebraico pareça ter
relação etimológica com a palavra “dez”, nem todos
os filólogos hebraicos concordam. Consideram
“dízimo” relacionado com a palavra ugaritica para
“libação, oferenda”.) No período monárquico, o rei
provavelmente apropriava-se de parte do dízimo para
sustentar santuários reais, tais como o Templo de
Jerusalém. O Deuteronômio ignora esse uso do dízi­
mo. Simplesmente dá o cardápio para uma refeição
festiva celebrada no santuário central. A cada três
anos, o dízimo deve ser usado localmente para o
200 bem-estar dos pobres (14,28-29).
A lei da remissão das dívidas (15,1-11) reflete
a prática israelita de deixar a terra sem cultivo em
intervalos regulares (Ex 23,10-11). Como é óbvio, a
observância de tal prática teria causado impacto na
terra de Israel, mas cada vez que era observada por
um lavrador, o ano sem cultivo dificultava as coisas
para os que dependiam economicamente da agricul­
tura. Ser-lhes-ia quase impossível saldar seus débi­
tos. É provável que esta lei pretendesse que os dé­
bitos não fossem cobrados durante o ano sem cul­
tivo de um lavrador, embora a tradução judaica mais
tardia exigisse que as dívidas fossem perdoadas
em vez de apenas adiadas. O “estrangeiro” citado em
15,3 não é o migrante, de certo modo integrado ao
sistema agrícola e econômico israelita, mas o merca­
dor ou artesão itinerante, que não é afetado pelo ano
sem cultivo. A lei deixa claro que ninguém deve tirar
vantagem das dificuldades financeiras de outrem. Os
pobres devem sentir a generosidade de seus irmãos
israelitas (15,9-11).
Uma forma de saldar dívidas é pelo trabalho
dos devedores. Os vv. 12-19 tentam impedir abusos
neste sistema. O serviço do escravo que trabalha
para pagar dívidas deve ser limitado. Servos do
sexo masculino e feminino têm os mesmos direitos.
Quando se completa o trabalho dos escravos, eles
devem receber apoio financeiro a fim de facilitar
sua transição para a liberdade. Para motivar a obser­
vância desses preceitos humanitários, o Deutero­
nômio lembra a seus leitores que eles são descen­
dentes de escravos. O israelita que trabalha para
pagar uma dívida continua sempre a ser israelita.
O credor precisa se lembrar da origem comum de
todos'(15,15).
A lei a respeito da oferenda dos primogênitos
machos (15,19-23) teve sua origem provável nos
rituais destinados a assegurar a fertilidade contínua,
oferecendo os primogênitos aos deuses. O Deutero­
nômio preserva essa prática adotada por Israel (cf.
Ex 13,2), mas o propósito dessa ação mais uma vez
não é sustentar o santuário e seu clero e sim forne­
cer alimentos para uma refeição festiva.
Israel sente o poder maravilhoso que tem o
S enhor dç prover para todo o povo. A resposta de
Israel a essa experiência de abundância divina deve
ser uma partilha pela qual ricos e pobres reconhecem
sua dependência de Deus. Pelos dízimos, os ricos
dão testemunho de que Deus é a fonte de sua abun­
dância. Aceitando a generosidade dos irmãos israeli­
tas, os pobres recebem seu sustento de Deus, que dá
a todo Israel participação na riqueza da terra.
16,1-17 Calendário de festas. Esta passagem
trata das festas de peregrinação da Páscoa-Pães sem
fermento, das Semanas e das Tendas. Essas festas
são conhecidas de outras passagens do Pentateuco
(Ex 23,14-17; 34,18-23; Lv 23; Nm 28-29). A marca
distintiva do Deuteronômio sobre sua celebração está
na transformação delas era ocasiões de peregrinação
ao santuário central. Por exemplo, segundo este tex-

to, a refeição da Páscoa deve ser comida no santu­
ário central (vv. 5-6), não nas cidades da terra, como
antes era costume (Lv 23,3).
A primeira festa, Páscoa-Pâes sem fermento, é
combinação daquilo que antes eram duas observân-
cias separadas. A Páscoa, marcada pelo consumo de
um cordeiro do rebanho, provavelmente originou-se
entre os pastores enquanto trocavam de pastagens
na primavera (Abib corresponde a março/abril). É
provável que a festa dos Pães sem fermento se te­
nha originado entre os agricultores, quando todo ano
renovavam os estoques de fermento, livrando-se
primeiro do estoque do ano anterior. Estas duas festas
já estavam unidas antes que os deuteronomistas
iniciassem sua obra. A tradição israelita associava
esta festa ao Êxodo do Egito. O Deuteronômio man­
tém essa ligação, mas não a desenvolve de maneira
significativa, exceto para insistir em sua celebração
no santuário central.
A festa das Semanas deriva seu nome da for­
ma como é calculada a época de sua celebração.
Como ela é observada no qüinquagésimo dia depois
da Páscoa, o Novo Testamento a chama de Pentecos-
tes (At 2,1). Ela também surgiu como festa agríco­
la para celebrar a colheita de cereais (cf. 15,9), que
ocorria em junho. Na tradição rabínica, tomou-se
associada à entrega da Lei no Sinai, mas aqui não
é feita nenhuma associação desse tipo. O v. 12
lembra os leitores da escravidão no Egito, a fim de
levá-los à obediência. Mais uma vez, a principal
preocupação do Deuteronômio é incentivar a pere­
grinação ao santuário central para uma festa de
alegria com a participação de todos (v. 11).
A terceira festa é a das Tendas, festa agrícola
outonal, celebrada ao término da colheita de tâma­
ras, azeitonas, uvas e outras frutas. O nome deriva
provavelmente das habitações temporárias erigidas
nos pomares para os ceifeiros. A tradição rabínica
usava-a para comemorar a época de Israel no deser­
to, quando o povo vivia em habitações temporárias
(tendas). Mais uma vez, o texto aqui não alude a
esse fato. Predominam as dimensões agrícolas da
celebração. De fato, não há nenhuma .alusão a qual­
quer elemento da tradição do Êxodo. O Deutero­
nômio simplesmente descreve a festa das Tendas
como a terceira festa de peregrinação a ser cele­
brada no santuário central.
Os dois últimos vv. (15,16-17) resumem a
obrigação de fazer as três peregrinações anuais ao
santuário central. Como essas festas celebram a abun­
dância agrícola da terra, é apropriado que os que
fazem a peregrinação tragam oferendas em sinal de
ação de graças pelos frutos que Deus lhes deu. Como
exposta, esta legislação é bastante impraticável. Ima­
gina toda a população do sexo masculino (no míni­
mo) no santuário central para cada uma destas festas.
A cena improvável toma-se um pouco mais provável
se considerarmos que essa parte da legislação deute-
ronômica originou-se no período exílico ou pós-exí-
DEUTERONÔMIO 16
lico, quando Judá estava reduzido a Jemsalém e a
alguns quilômetros quadrados em tomo dela.
16.18- 18,22 Os chefes de Israel. A qualidade
de sua liderança era motivo de grande preocupação
em Israel. Os deuteronomistas descrevem suas expec­
tativas em relação aos que exercem funções esptecífi-
cas: juiz, rei, sacerdote e profeta. O mais significati­
vo na apresentação do Deuteronômio é a pressupo­
sição de que os chefes de Israel, em especial o rei,
estão sujeitos à Lei autoritativo encontrada no livro
do Deuteronômio. O domínio do rei não é absoluto.
Todos OS chefes de Israel estão obrigados a seguir
as tradições sagradas que encontram expressão no
Deuteronômio. Isso serve para limitar a autoridade
da classe líder e toma-a mais responsável perante o
povo como um todo. O Deuteronômio defende, de
modo claro, a crença no valor do governo limitado.
16.18- 17,7 Juizes e escribas. Antes do estabe­
lecimento da monarquia, os chefes de Israel eram,
em sua maior parte, anciãos tribais. Os anciãos eram
os chefes de famílias e clãs importantes. Atuavam
de maneira a impedir que o poder central se concen­
trasse nas mãos de uma única pessoa. Com o surgi­
mento da monarquia, a influência dos anciãos dimi­
nuiu e seu papel na sociedade israelita foi assumido
por funcionários nomeados pelo rei. O v. 18 sugere
nomeações feitas por algum tipo de autoridade cen­
tralizada. É difícil ter certeza de tudo isso, porque a
Bíblia não apresenta nenhum relato teórico das ins­
tituições sociais, políticas e judiciais de Israel. Em
2Cr 19,5, há menção das reformas judiciais de
Josafat, que reinou em Judá durante o século IX
a.C., assim, há evidências da nomeação de juizes
pela autoridade central.
O papel desempenhado pelos juizes na socie­
dade israelita não se limitava à esfera judicial. Os
juizes equivaliam, provavelmente, aos governadores
locais responsáveis pelos negócios dos distritos a
eles designados. Exerciam prerrogativas legislativas
e também judiciais. .Enquanto os juizes formulavam
as normas, os escribas eram responsáveis pop comu­
nicar e impor as decisões dos juizes perante os quais
eram responsáveis.
O Deuteronômio é inflexível a respeito da inte­
gridade do sistema legal, na Antiguidade mais expos­
to à corrupção do que hoje. Os juizes sustentavam-
se com seus cargos e o suborno era a maneira mais
fácil de alcançar uma posição confortável. O v. 20
afirma que a justiça é o caminho para assegurar
prosperidade a todos. Uma sombria experiência en­
sinou a Israel como podem ser destrutivos lapsos da
autoridade judiciária.
À primeira vista, o material de 16,18-17,7 pare­
ce ser estranho em um contexto que trata de lideran­
ça. A preocupação aqui é a pureza do culto de Israel.
Entretanto, esta passagem dá um exemplo de como
opera o sistema judiciário (17,2-7) e amostras das
questões que devem ser resolvidas pelo judiciário
(16,21-7,1). Os juizes devem ficar atentos a quais- 201
 DEUTERONÔMIO 17
quer tentativas de introduzir práticas religiosas ca-
naanitas no culto do S enhor. Essas tentativas se­
riam repulsivas a Deus e destruidoras da sociedade
israelita.
Segundo, os juizes devem fiscalizar as práticas
sacrificais, a fim de assegurar que Israel leve a
sério esse aspecto do culto. Oferecer animais infe­
riores para o sacrifício não passa de um arremedo
do propósito desse culto.
Finalmente, o processo judicial exige integri­
dade não só dos que o conduzem, mas de todos os
envolvidos (17,6-7). Ninguém pode ser condenado
com base no depoimento de uma só testemunha.
As testemunhas devem estar preparadas para en­
frentar os castigos mais severos, se ficar compro­
vado que seu depoimento é falso. Israel inteiro é
responsável pela integridade do sistema judiciário.
O principal propósito desse sistema é purificar
Israel de práticas corruptas que ameaçam a própria
existência da comunidade.
17,8-13 O tribunal do santuário central. O
Deuteronômio toma providências para o julgamento
de questões complicadas demais para o judiciário
local. O texto não deixa claro quem inicia a apela­
ção, embora Ex 18,13-23 mencione que as apelações
são feitas pelas autoridades locais. O tribunal cen­
tral compõe-se de sacerdotes e um juiz. A inclusão
dos primeiros baseia-se no tradicional conhecimen­
to dos sacerdotes em questões legais. E provável que
os deuteronomistas introduzam o juiz como um
meio de romper o controle exclusivo dos sacerdotes
nesses assuntos. Os julgamentos do tribunal central
são para resolver programas legais de maneira de­
finitiva. Sem essa finalidade, o sistema judiciário
seria fraco demais para ser eficaz.
17,14-20 O rei. A instituição da monarquia co­
meçou como resposta à anarquia causada pela pres­
são imposta às tribos israelitas pelos fdisteus (cf
ISm 8-10). Como os primórdios da monarquia fa­
ziam parte da memória histórica de Israel, esta insti­
tuição não podia ser mitificada, como o foi nas outras
culturas do antigo Oriente Próximo, como parte da
ordem de criação por vontade divina. Israel sabia
que a monarquia foi estabelecida em resultado da
iniciativa humana, o que possibilitou a abordagem
da monarquia pelo Deuteronômio.
O Deuteronômio não rejeita a monarquia como
tal. Faz parte do passado de Israel e não pode ser
ignorada; entretanto, seu papel no futuro de Israel
precisa ser entendido com cuidado. O rei não deve
imitar os outros reis do antigo Oriente Próximo,
formando um grande exército, dedicando-se à diplo­
macia por meio de casamento, nem acumulando
vasta riqueza. Se o Deus de Israel é diferente dos
deuses das nações, o rei de Israel também tem de
ser diferente.
Para o Deuteronômio, o que toma singular a
monarquia de Israel é a sujeição do rei à Lei. Como
202 todos os outros israelitas, o rei também deve orde­
nar sua vida conforme o livro da Lei. É importante
freio na tendência inerente da monarquia ao abso-
lutismo. A obediência à Lei levará à manutenção
do rei e a desobediência com certeza levará ao de­
sastre. Como todos os outros israelitas, o rei está
sujeito à observância da Lei. Unidos nessa obser­
vância, rei e súditos são um único povo de Deus.
18,1-8 Sacerdotes e levitas. Sacerdotes e levi-
tas como tais não são discutidos no Deuteronômio,
exceto quando uma pessoa comum tem ocasião de
tratar com eles. A única exceção é este texto, que
contrasta fortemente com a legislação do autor sa­
cerdotal. Esta passagem tenta lidar com o conflito
sobre direitos sacerdotais — conflito que grassou
entre os sacerdotes de Jemsalém e os dos santuários
locais proscritos. Com a centralização do culto
sacrifical ordenada pelo Deuteronômio, estes últi­
mos perderam sua fonte de renda. A solução ofere­
cida pelos vv. 6-8 é de todo irrealizável e provavel­
mente nunca foi posta em prática (cf 2Rs 23,8-9).
No início da era pós-exílica, foi formulado um ajus­
tamento pelo qual os levitas se tomaram sacerdotes
de segunda classe no Templo, enquanto os sacerdo­
tes de Jerusalém mantinham sua posição exclusiva
como responsáveis pela condução do culto sacrifical
(cf Ez 44,9-31). Entretanto, o fim da hostilidade
entre esses dois grupos não se deveu aos círculos
deuteronômicos.
Alguns intérpretes afirmam que o Deuteronô­
mio foi produto de círculos levíticos. A luz deste
texto, tal alternativa parece improvável, pois os au­
tores presumíveis de um livro como o Deuteronô­
mio resolveriam em favor próprio todas as dispu­
tas nas quais fossem parte interessada. Deveríam,
no mínimo, ter apresentado uma sugestão mais
viável do que a dada aqui. Em algumas das outras
vezes em que são mencionados no Deuteronômio,
os levitas são apresentados como objeto de carida­
de com uma situação econômica tão arriscada que
precisam da ajuda dos outros israelitas (14,28-29;
16,11-14; 26,12). Não é um auto-retrato muito li­
sonjeiro pelos supostos autores do Deuteronômio.
18,9-22 Profetas. Antes de examinar o papel
do profeta, os deuteronomistas tratam de algumas
das técnicas divinatórias obviamente muito popu­
lares no antigo Israel. Segundo a tradição bíblica,
há três métodos legítimos de comunicação entre o
divino e o humano: os sonhos (Gn 40), o Urim e
Tumim (veja abaixo o comentário sobre 33,8-11) e
a profecia.
O antigo Oriente Próximo em geral, e a Meso-
potâmia em particular, era famoso pela variedade
de técnicas desenvolvidas para determinar a vontade
divina. Os w . 10-11 mencionam algumas. O Deu­
teronômio rejeita todas elas, por serem incompatí­
veis com o culto ao S enhor. E provável que a prin­
cipal objeção a essas técnicas não seja seu uso
para determinar a vontade divina, mas sua utiliza­
ção em diversos rituais destinados a manipular a

divindade. Depois de determinada a vontade divina,
os que faziam a consulta recebiam conselhos sobre
como podiam mudar quaisquer decisões da divin­
dade que pudessem afetá-los de maneira adversa.
O sacrifício infantil citado no v. 10 é provavelmente
um dos rituais mais horripilantes usados com a
adivinhação. Do ponto de vista deuteronômico, o
Deus de Israel está acima dessa torpe manipula­
ção. O uso de técnicas divinatórias é a justificativa
para a expulsão dos canaanitas da terra (v. 14).
O tratamento deuteronômico do profeta não
leva à confiança irrestrita nessa forma de liderança.
Os vv. 15-19 evidentemente presumem a continua­
ção da função profética, mas quem pode alegar ser
outro Moisés (v. 15)? O texto não supõe que haverá
muitos profetas capazes de fazer essa alegação. Al­
guns intérpretes afirmam que esse texto dá teste­
munho da existência de uma sucessão de profetas
em uma função de “o profeta”. Não há evidência
direta de tal função em nenhuma parte da Bíblia.
Sua existência é improvável.
Os profetas são mencionados apenas duas vezes
no Deuteronômio — aqui e em 13,1-6. Em ambos
os casos, são apresentados como ameaças potenciais
à fidelidade que Israel deve a Deus. Eles devem
ser controlados com muito cuidado, pois podem
afastar, e presumivelmente afastam, Israel do servi­
ço e da obediência totais ao S enhor (veja Jr 28). O
teste para a profecia verdadeira dado no v. 22 não
é nada prático e não serve para ninguém que tenha
de tomar uma decisão a respeito de um caso especí­
fico com certa urgência.
O Deuteronômio pode se dar ao luxo de ser tão
negativo sobre a profecia porque efetivamente eli­
mina sua utilidade. Se as pessoas quiserem conhecer
a vontade divina, tudo que precisam fazer é estudar
o livro da Lei, isto é, o próprio Deuteronômio. O
tratamento que o livro dá à profecia faz com que
seja muito improvável que o Deuteronômio tenha
surgido em circulos proféticos, como afirmam al­
guns intérpretes. Em certa época, todo texto que
refletia sensibilidade moral era atribuído a círculos
proféticos. O Deuteronômio partilha com a profe­
cia uma preocupação ardente pela dimensão ética da
vida de Israel com Deus, mas apresenta uma ima­
gem nada lisonjeira do profeta.
19,1-13 As cidades de refúgio. Embora o Deu­
teronômio não use a expressão “cidades de refúgio”,
como faz Nm 35, ambos os textos prefiguram a
mesma instituição. Não é fácil determinar suas ori­
gens. Como as cidades de refúgio pressupõem uma
identidade que transcende as tribos, devem ter sido
estabelecidas na última parte do período de assen­
tamento. Por outro lado, é provável que a monar­
quia proporcionasse algum tipo de autoridade cen­
tralizada para lidar cora a determinação judicial
dos homicídios como acidentais ou criminosos. As­
sim, as cidades de refúgio eram uma instituição in-
tertribal que procurava coibir os atos de vingança.
DEUTERONÔMIO 19
O Deuteronômio dá apoio teológico a essa institui­
ção, assegurando que impede o derramamento de
sangue inocente e a culpa conseqüente, com o re­
sultado da perda da terra (compare Gn 4,8-14).
Em sua apresentação das cidades de refúgio, o
Deuteronômio discute o uso (vv. 4-10) e o abuso
(vv. 11-13) delas. Por mais lamentável que seja um
homicídio acidental, seus terríveis efeitos serão
multiplicados se as pessoas fizerem um julgamento
apressado e punirem os responsáveis por mortes
acidentais como se fossem homicidas. Tal reação
provocaria outro ato de “justiça” e poderia iniciar
um ciclo incessante de homicídios. As cidades de
refúgio dão a oportunidade para uma calma deter­
minação de culpa ou inocência.
Infelizmente, as pessoas erradas podem se apro­
veitar do santuário proporcionado por essas cida­
des. Os anciãos, que eram os administradores de
justiça pré-monárquicos, precisam ficar vigilantes
para impedir o homicida de escapar à justiça. Os
culpados de homicídio devem, eles próprios, ser
mortos, porque seu derramamento de sangue ino­
cente ameaça a continuação da existência de Israel
na terra. Segundo a perspectiva religiosa dos deute-
ronomistas, os efeitos de um pecado como o homi­
cídio alcançam não só o responsável por ele como
também todos os que aparentemente concordam
com ele. Ao punir o indivíduo culpado, a comuni­
dade demonstra sua reação ao crime e, dessa forma,
escapa a qualquer culpa e castigo que derivem dele.
As cidades de refúgio ajudam a impedir o derrama­
mento de sangue inocente, mas nunca devem se
tomar um meio para os culpados fugirem às conse­
quências de seus crimes.
19,14 Os limites territoriais. Esta é a versão
deuteronômica de uma lei pré-israelita antiga en­
contrada em outros códigos legais do antigo Oriente
Próximo. Sem as salvaguardas legais de feitos regis­
trados e mantidos por autoridades civis, o respeito
aos limites territoriais é imprescindível para evitar
disputas de território. O Deuteronômio acrescenta
sua característica a essa lei antiga: a terra foi dada
pelo S enhor para seus donos atuais. As tentativas
de expropriá-la não passam de atos de revolta con­
tra 0 S enhor.
19,15-21 Testemunhas. A integridade do sis­
tema judiciário depende da veracidade das teste­
munhas. O que foi decretado a respeito de acusa­
ções de idolatria (17,6-7) estende-se a todos os
casos. Quando a veracidade das testemunhas é
duvidosa, pode-se apelar para o tribunal no santuá­
rio central (v. 17). O texto não descreve os proce­
dimentos usados pelo tribunal para decidir a ques­
tão do perjúrio. Aqui o enfoque está no castigo dos
culpados de mentir durante os procedimentos judi­
ciais. O castigo pelo perjúrio corresponde ao cas­
tigo pelo crime do qual as testemunhas falsas acu­
saram outros israelitas. No fim, o mal alcançará os
que planejam o mal para outros. O v. 21 salienta 203
 DEUTERONÔMIO 20
esse princípio. Os que, com seu peijúrio, põem em
perigo a vida dos inocentes descobrirão que a pró­
pria vida está perdida.
20,1-20 Regras para a guerra. O Deuteronômio
já tratou do assunto da guerra (cf. 7,1-26). O presen­
te capítulo traz legislação adicional, que será au­
mentada por Dt 21,10-14; 23,9-14; 24,5; 25,17-19.
Toda essa atenção à guerra é ofensiva às sensibili­
dades modernas, mas não podemos negar que o an­
tigo Israel adquiriu a terra de Canaã, em parte, por
meios violentos. De fato, alguns intérpretes acredi­
tam que, nos primeiros anos da história de Israel,
a guerra era uma instituição cultuai. A expressão
“guerra santa” é particularmente inadequada. Não
ocorre em parte nenhuma da Bíblia. É duvidoso que
alguma forma de guerrear fosse um padrão cultuai
em algum ponto da história de Israel. A teologia de
guerras desejadas e dirigidas divinamente era um
antigo lugar-comum no Oriente Próximo. O que le­
mos aqui e alhures na literatura deuteronômica é
uma interpretação das experiências e memórias do
campo de batalha de Israel. Dificilmente descreve
estratégia e táticas reais.
Uma convicção básica dessa ideologia de guer­
ra é que o resultado é determinado nos céus, onde
os deuses das nações em guerra lutam uns com os
outros pelo poder e o domínio da esfera celeste. O
que acontece nos campos de batalha terrenos ape­
nas reflete o que já aconteceu nas regiões celes­
tes. Por isso o sacerdote é o primeiro a exortar os
que entram em combate (vv. 2-4). Por isso a força
de Israel não depende de superioridade numérica
nem de armamento formidável. O Deuteronômio
lembra a Israel que Deus lutou e derrotou o Egito,
um império poderoso, quando o próprio Israel era
impotente.
O presente capítulo trata de três preocupações
específicas a respeito da conduta de guerra: a isen­
ção do serviço militar (vv. 5-9); o tratamento de ci­
dades inimigas (vv. 10-18) e a proteção dos recursos
naturais em tempo de guerra (vv. 19-20).
As leis que especificam as circunstâncias que
permitem diversas isenções do serviço militar en­
contram diversos paralelos nas leis de outros países
do antigo Oriente Próximo. Originalmente, essas
isenções reconheciam que as pessoas em “transi­
ção” estavam em uma situação especialmente vul­
nerável. Os antigos falavam dessa vulnerabilidade
em termos de sujeição a poderes demoníacos. Não
havia necessidade de expor o exército todo a esses
perigos, assim os que passavam por transições na
vida eram simplesmente isentos do serviço militar.
O Deuteronômio reinterpreta os elementos mitoló­
gicos dessas práticas e permite as mesmas isen­
ções em bases puramente humanitárias. Além disso,
isenta do combate todos os de pouca coragem. Em
circunstâncias difíceis, sua fraqueza podería afetar
todo o exército. E melhor que não tomem parte no
204 combate.
O tratamento das cidades inimigas parece bru­
tal, mas o que é descrito aqui (vv. 10-18) não é mais
brutal que as práticas de outras nações no antigo
Oriente Próximo. Ao interpretar estes vv., é impor­
tante lembrar que o Deuteronômio é mais visionário
que realista na apresentação das normas militares
israelitas. Israel não está em posição de se conduzir
conforme essas prescrições. Corre mais perigo de
ter suas cidades destruídas do que seus vizinhos.
Nenhuma mercê deve ser dada às cidades ca-
naanitas por causa dos perigos que os canaanitas
representam a respeito da fidelidade absoluta que
Israel deve a Deus (vv. 16-18). O fato de seus pro­
fetas 0 repreenderem consistentemente por seguir
os modos das nações é prova suficiente de que
Israel não se dedicou a um extermínio em grande
escala dos canaanitas. Embora houvesse conflitos
entre os dois povos, muitos dos últimos foram as­
similados pela população israelita, à medida que
Israel adquiria hegemonia sobre Canaã.
Finalmente, os vv. 19-20 indicam que Israel
não deve executar a tática da terra arrasada em seus
conflitos com outras nações. Os recursos, em espe­
cial os ligados à produção de alimentos, devem ser
preservados com cuidado. Aqui Israel se afasta da
prática mais comum na época, que testemunhava o
uso indiscriminado do extermínio militar. Somente
0 que ameaça a fidelidade de Israel a Deus deve ser
tratado sem misericórdia; em outros casos, o lado
humano e o bom senso devem controlar o potencial
destruidor da guerra.
21.1- 25,19 Leis heterogêneas. Os cinco capí­
tulos seguintes contêm leis que abrangem uma am­
pla variedade de assuntos. Não estão organizadas
em nenhuma ordem determinada, mas todas servem
para descrever o padrão da vida de Israel na terra.
Todas são apoiadas por uma única pressuposição:
a obediência a essas leis ajudará Israel a assegurar
seu futuro na terra.
21.1- 9 O homicídio anônimo. É outro caso de
adaptação deuteronômica de uma prática que prova­
velmente era de origem pré-israelita. Os códigos
legais do antigo Oriente Próximo afirmavam que a
eidade mais próxima do local de um homicídio não
esclarecido devia assumir a responsabilidade pelo
crime. Os chefes dessa comunidade deviam realizar
um ritual que não só aceitasse a responsabilidade
pelo crime, mas também desviasse da cidade a culpa
e 0 castigo pelo crime. Essa prática reflete a sólida
crença do antigo Oriente Próximo na solidariedade
do grupo e nas implicações religiosas de um crime
como o homicídio. A não ser que fosse realizada
uma ação específica, as consequências desse crime
poderíam destruir pessoas inocentes.
O texto descreve um rito que não pode ser con­
siderado sacrifical, pois o Deuteronômio só permite
o sacrifício no santuário central. Os sacerdotes le-
víticos são apenas testemunhas mudas, não ofician-
tes. O rito é todo conduzido pelos anciãos da cida-

de mais próxima do local do homicídio não esclare­
cido. Ao término do ritual, os anciãos rezam para
que a culpa do crime não seja atribuída à sua cida­
de, nem à nação como um todo. As palavras dessa
oração transformam os fragmentos de um rito mági­
co em um ato de obediência à lei e uma súplica por
misericórdia. Esta composição deuteronômica é tes­
temunha da crença no perdão como ato de graça
divina que não pode ser manipulado pela execução
de nenhum ritual.
21,10-21 Relacionamentos familiares. Nas
duas primeiras situações aqui tratadas (o casamento
com uma prisioneira de guerra, vv. 10-14, e os di­
reitos de herança do primogênito, vv. 15-17), os deu-
teronomistas presumem a existência da poligamia.
Embora a poligamia fosse praticada no antigo Israel,
a monogamia era muito mais comum, por razões
econômicas e sociais, como as apresentadas nesta
legislação. Mais tarde, por razões teológicas, a mo­
nogamia tomou-se a única forma de casamento per­
mitida no Judaísmo.
Quando um soldado israelita deseja desposar
uma prisioneira de guerra, precisa levar em conta
as sensibilidades da mulher e controlar seus impul­
sos. Antes de mais nada, a mulher deve ter certo
tempo para lidar com o choque do cativeiro, a sepa­
ração da familia e a integração a uma nova casa.
Para que essas transições aconteçam, o casamento
deve ser consumado apenas depois de um mês.
Depois que a ex-prisioneira se toma mulher de um
israelita, deve ser tratada como tal. Em caso de di­
vórcio, não volta à posição anterior, mas recebe a
liberdade devida a toda mulher israelita.
No mundo antigo, as leis de herança tendiam
a favorecer o primogênito. Em conseqüência disso,
criou-se o costume pelo qual o pai escolhia seu
“primogênito”. Essa situação ficou especialmente
complicada em uma família polígama. Os deutero-
nomistas querem assegurar os direitos do primo­
gênito verdadeiro, independente dos sentimentos
do pai em relação a ele ou à mãe dele. Sem dúvida,
conflitos como este contribuíram para favorecer a
forma monogâmica de casamento.
Por fim, os deuteronomistas tratam das dis­
putas que surgem entre pais e filhos (vv. 18-21).
Por causa do grande respeito devido à geração
mais velha em geral e aos pais em particular, os
jovens rebeldes punham-se em situação precária.
É provável que os anciãos sirvam de mediadores
para acalmar as paixões surgidas de altercações
domésticas. Impedem os pais de se deixarem levar
pela cólera com um filho recalcitrante. Os anciãos
têm autoridade para fazer com que o pleno casti­
go da lei (v. 21) caia sobre o filho, “um transvia-
do e rebelde” somente em casos em que não há
outra alternativa. Dessa forma, os anciãos ser vem
como válvula de segurança social, impedindo
que as discussões familiares cheguem a um ponto
incontrolável.
DEUTERONÔMIO 22
21,22-23 Enforcamento. No antigo Israel, o
enforcamento não era uma forma de castigo capital.
Depois de alguma outra forma de execução, o corpo
do criminoso ficava exposto como lição objetiva
para os que, por seus crimes, ameaçassem a exis­
tência de Israel. Compassivamente, os deuterono­
mistas limitam o espetáculo horripilante, ordenan­
do 0 enterro no mesmo dia da execução.
22,1-4 Respeito pela propriedade. O princípio
subjacente a essa lei é que a propriedade de uma
pessoa sobre um bem não cessa com a perda dessa
propriedade. É dever do israelita respeitar os direitos
de propriedade de todas as pessoas. Há outra versão
em Ex 23,4-5. O Deuteronômio generaliza o benefi­
ciário da lei, estendendo-a de “teu inimigo” (Ex
23,4) a todo israelita, e a propriedade relacionada
com animais a qualquer tipo de propriedade. Para
o Deuteronômio, essas prescrições não surgem de
uma noção abstrata de direitos de propriedade, mas
sim da convicção de que o futuro de Israel depende
da capacidade do povo para permanecer unido. As
disputas sobre propriedade só provocam dissensão.
O respeito pela propriedade alheia é um dos com­
ponentes práticos do espírito comunitário genuina­
mente eficaz.
22,5 O travestir-se. A lei aqui mencionada abran­
ge mais do que uma simples proibição de usar vestes
do sexo oposto. Os deuteronomistas também têm
em mente ornamentos, armas e outros objetos que
pertencem a um ou outro sexo. Não é possível ter
certeza se esse texto proíbe o travestimento por
causa de sua associação com a homossexualidade,
proscrita por Lv 18,22, ou por causa de possíveis
elos com diversos rituais canaanitas. A proibição
reflete também uma preocupação evidente em todas
as culturas do antigo Oriente Próximo — aceitar
as distinções existentes na natureza. Das perspec­
tivas da Antiguidade, é tolice empanar essas distin­
ções, já que estão presentes na natureza por uma
boa razão determinada pelo Criador.
22,6-7 Pássaros no ninho. Aqui os deutero­
nomistas mostram como estavam adiante de seu
tempo. Esta lei, característica do Deuteronômio,
aceita a possibilidade de ataque a um ninho de
pássaros para pegar alimento. Embora permita que
se peguem ovos e filhotes, o texto exige que o pás­
saro adulto seja libertado. Esse ato evita a possível
extinção de uma espécie na busca por comida. O
pássaro adulto fica livre para reproduzir novamente
e, assim, fica assegurada a sobrevivência da espé­
cie. A caça sem restrições ameaça a sobrevivência
da espécie.
22,8 Código de construção deuteronômico.
No antigo Israel, os telhados faziam parte do espaço
habitado das casas. Eram usados para entreter, dor­
mir e trabalhar. Aqui os deuteronomistas exigem
que se tomem simples precauções de segurança.
Embora a construção de um parapeito seja uma
despesa adicional, evita acidentes graves e suas 205
 DEUTERONÔMIO 22
consequências. Em nossa cultura, essas consequên­
cias incluiriam ações judiciais. No antigo Israel, um
acidente que resultasse de negligência podia ini­
ciar uma vingança de sangue, que o Deuteronômio
quer evitar.
22,9-11 M isturas. No mundo antigo, uma das
atividades reconhecidas dos estudiosos era a clas­
sificação dos fenômenos naturais. É provável que
estes w . reflitam a preocupação de respeitar as di­
ferenças na natureza que esses esforços de classifi­
cação revelaram. Elementos separados na natureza
não devem ser misturados por esforços humanos.
O judaísmo rabínico assumiu e desenvolveu essa
preocupação deuteronômica. Todo um tratado da
Mishná é dedicado à elaboração e aplicação do
princípio subjacente a esses w .
22,12 Franjas. Este é outro trecho de legisla­
ção deuteronômica que se tomou importante no
judaísmo rabínico. Mt 23,5 dá testemunho da preo­
cupação dos contemporâneos de Jesus com a obser­
vância dessa lei, ainda observada pelos judeus orto­
doxos atuais que acrescentam franjas a uma veste
íntima especial. Mais uma vez, a origem e o propó­
sito dessa lei são desconhecidos. Uma lei seme­
lhante em Nm 15,37-41 descreve as franjas como
lembretes dos mandamentos a que Israel deve obe­
decer. Esta é, certamente, uma explicação homi-
lética mais tardia, de um costume cujo significado
original era desconhecido até mesmo dos autores
sacerdotais de Números.
22,13-29 Casamento e relações sexuais. O res­
tante deste capítulo é dedicado à legislação que re­
gula a expressão da sexualidade humana. Embora
em geral os antigos fossem bastante reticentes sobre
esses assuntos, não consideravam a sexualidade hu­
mana como uma força má que precisa ser cuidado­
samente controlada ou sufocada. Por outro lado,
estavam bem cientes de como a sexualidade huma­
na é poderosa. O que na aparência é um comporta­
mento voluntário entre adultos pode ter importan­
tes repercussões para toda a comunidade. Tais ques­
tões precisam ser abordadas com prudência, a fim
de manter relacionamentos saudáveis dentro da
comunidade.
O primeiro caso trata das acusações contra a
virtude de uma mulher recém-casada pelo marido
insatisfeito (w. 13-21). Comparado aos outros casos
apresentados no presente capítulo, este é explicado
com certo detalhe. Os valores subjacentes a esta lei,
bem como a lei em si, não sintonizam imediatamen­
te com os pontos de vista contemporâneos a respeito
do papel e da posição das mulheres na sociedade.
Em especial, a preocupação com a virgindade da
mulher, sem uma preocupação concomitante com
a do marido, é injusta. Segundo, é injusto que a
mulher não exerça papel algum no tribunal onde
seu futuro está sendo determinado. Tal legislação
salienta como a sociedade israelita era diferente da
206 nossa. Embora possamos com razão rejeitar algu­
mas das pressuposições por trás desta lei, devemos
admirar a preocupação demonstrada pelos direitos
da mulher, em vista das falsas acusações do marido.
Os casos visados pelo resto do capítulo não são
apresentados com tantos detalhes como o anterior.
O valor em jogo em cada um deles é a proibição
de adultério (Dt 5,18). Como o adultério envolve a
ruptura do relacionamento conjugal, o castigo é
severo. (A noiva é tratada como a mulher casada,
pois ambas estão comprometidas com um relacio­
namento exclusivo com um homem.) O estupro de
uma mulher solteira (vv. 28-29) é tratado de forma
diferente porque não envolve a ruptura de nenhum
relacionamento conjugal. Isso, já se vê, ignora o
trauma da mulher solteira resultante de um estupro;
não será menos grave do que o da mulher casada.
A lei procura proteger os direitos da mulher estu­
prada, mas não de uma forma aceitável por nossa
cultura.
A última lei desta série (23,1) proíbe o relacio­
namento incestuoso entre um homem e a mulher
de seu pai. É provável que essa lei se referisse à
madrasta do homem, pois é duvidosa a necessidade
de uma lei explícita para proibir o incesto com a
mãe natural.
23,2-9 Quem é israelita? A legislação aqui apre­
sentada tem uma visão um tanto estreita da partici­
pação plena na comunidade de Israel. Tal atitude é
compreensível, dada a situação na qual o Deutero­
nômio foi escrito. Era uma época em que a própria
existência de Israel estava ameaçada por forças in­
ternas e externas. Não admira que os deuteronomistas
não estivessem dispostos a incluir todo o mundo ao
lidar com a questão de quem devia ser admitido ple­
namente na comunidade.
Embora os deuteronomistas não cheguem a reti­
rar a proteção tradicional dada ao migrante residente
(cf. 1,16; 10,18-19), traçam o círculo de admissão
plena na comunidade com muito cuidado — pode­
riamos dizer cuidadosamente demais. Por exemplo,
as leis dos vv. 2-3 tencionam provavelmente barrar
as pessoas diretamente associadas ao serviço de
divindades estrangeiras. Com toda a probabilidade,
o V . 2 visa aos que se fizeram castrar a fim de par­
ticipar de certos rituais não-javistas. Também há
algumas preocupações cultuais por trás da lei do
V . 3, que talvez se refira a filhos concebidos pela
mulher envolvida em rituais de fertilidade canaa-
nitas. A tradição rabínica entende que essa lei se re­
fere a filhos de relacionamentos incestuosos.
Talvez essa interpretação tenha sido incentiva­
da pela proibição permanente que negava participa­
ção plena na comunidade israelita aos moabitas e
amonitas. O Gênesis preserva a tradição de que am­
bos os grupos eram filhos do relacionamento inces­
tuoso entre Lot e suas duas filhas (Gn 19,30-38).
Todavia, o Deuteronômio justifica essa proibição
recorrendo a tradições associadas à entrada de Israel
em Canaâ (cf Dt 2; Nm 22-24). Os deuteronomistas

demonstram um pouco mais de abertura em relação
aos egípcios e à terceira nação da Transjordânia, os
edomitas. Indivíduos de ambos os grupos podem
ser admitidos à comunidade israelita porque os edo­
mitas são parentes por intermédio de Jacó, e os egip-
cios proporcionaram hospitalidade a Jacó e sua famí­
lia durante uma época de fome (Gn 25,24-26; 36,1).
Em época mais tardia, elementos de dentro do
judaísmo primitivo tentaram romper a censura des­
sas leis. A escola de Isaías, principalmente, merece
destaque por sua abordagem mais universal. Is 56,
em especial, deve ser mencionado como uma abor­
dagem mais tardia e mais aberta de alguns dos gru­
pos aqui mencionados.
23,10-15 Regras de decência. Entre os israeli­
tas, a decência era uma força mais poderosa do que
o é entre as pessoas da cultura ocidental contem­
porânea. Estas leis especificam certas ações como
expressões desse sentimento de vergonha. De um
ponto de vista positivo, podemos dizer que aqui o
Deuteronômio reflete a preocupação do antigo Israel
com a dignidade e a higiene. O Deuteronômio quer
manter esses padrões. Mais tarde, a comunidade
de Qumran será marcada por forte solicitude a res­
peito dessas mesmas questões. As práticas dessa
comunidade mostram uma especificação posterior
das leis gerais aqui encontradas.
23,16-17 Escravos fugitivos. Esta lei trata de es­
cravos que fugiram de senhores estrangeiros (não é
feita nenhuma provisão para escravos que fugiram de
seus senhores israelitas). Escravos fugidos que bus­
cam asilo em Israel devem receber proteção. Em geral,
tratados internacionais traziam a extradição para es­
cravos fugidos. O Deuteronômio não prevê a possi­
bilidade de tais acordos, porque um tratado interna­
cional é reconhecimento, ao menos implícito, de divin­
dades estrangeiras. Embora essa lei dê ajuda a escra­
vos fugidos, seu propósito real é preservar a santida­
de da aliança de Israel com o S enhor.
23,18-19 A prostituição sagrada. A atividade
sexual não pode ser mitificada em um rito quase sa­
grado que asse^qre o favor divino, em especial quanto
à fertilidade. E disso que tratam os rituais de fertili­
dade canaanitas. A atividade sexual é atividade huma­
na. Agir como se fosse outra coisa indica falta de fé
em Deus, única fonte da fertilidade da terra. Como a
prostituição sagrada é proibida como um mal, todo
ganho monetário dela obtido é abominável e não pode
ser oferecido ao S enhor.
23,20-21 Juros. Os empréstimos prefigurados
aqui não se assemelham às práticas de empréstimo
fundamentais em uma economia capitalista moderna.
Na situação abordada pelo Deuteronômio, os emprés­
timos são usados apenas como meio de fugir ao de­
sastre econômico. Tirar vantagem de parceiros na
comunidade da aliança quando estão em dificulda­
de financeira é incompatível com a visão de comu­
nidade do Deuteronômio. Os empréstimos feitos aos
que estão fora da comunidade são diferentes. Deus
DEUTERONOMIO 24
dará provisão adequada a todo o Israel, se a comu­
nidade for fiel à lei. Não deve haver necessidade de
suplementar a generosidade complacente de Deus
com juros ganhos em empréstimos feitos a irmãos
e irmãs em necessidade financeira.
23,22-24 Votos. Fazer votos de devoção religio­
sa não é obrigatório, mas uma forma permitida de
piedade. Depois que as pessoas se comprometem a
algum tipo de ação por um voto, é importante cum­
pri-lo. Os votos não cumpridos criam uma atmosfe­
ra em que se toma aceitável aprovar falhas no relacio­
namento de Israel com Deus. Da perspectiva do Deu­
teronômio, essa atitude é desastrosa.
23,25-26 C om partilhar a generosidade di­
vina. O Deuteronômio considera a fertilidade da
terra um dom de Deus a todo o Israel. Os indiví­
duos devem estar dispostos a partilhar a generosi­
dade divina com seus irmãos israelitas. Os deute-
ronomistas são bastante práticos para reconhecer
que pode haver abuso de tal atitude. Aquele que
semeou o trigo e plantou a vinha é quem deve fa­
zer a colheita. Os outros podem se servir em caso
de necessidade, mas esse direito é limitado pelos
direitos de propriedade dos que possuem o campo
e a vinha.
24,1-4 Novo casamento depois do divórcio.
Este texto não legisla a respeito do divórcio, mas
apenas o aceita como questão de costume. Sua preo­
cupação é proibir o homem de voltar a se casar com
a ex-mulher se ela se casou de novo e o marido se
divorciou dela. As razões dessa proibição não são
imediatamente claras, mas talvez os deuteronomis-
tas preocupem-se que divórcios e novos casamentos
irrestritos sirvam para fazer do divórcio uma forma
legal de adultério.
24.5 O utra isenção do serviço militar. Acrés­
cimo às isenções concedidas em 20,5-8. Encon­
tram-se isenções semelhantes entre outros povos
do antigo Oriente Próximo. A transição do estado
de solteiro para o de casado era considerada pelos
antigos como tempo em que o homem era particu­
larmente vulnerável a ataques dé poderes maléficos.
Não faria sentido ter tais pessoas no exército. O
Deuteronômio oferece um fundamento lógico hu­
manitário próprio para essa isenção.
24.6 Penhores. Se o que empresta exige de
quem toma emprestado um penhor para um emprés­
timo, este não pode ser a mó, peça essencial do
equipamento da casa. Sem ela, o grão não pode ser
moído para preparar o pão, a base da dieta do antigo
Israel. Exigir esse penhor envolvería uma verdadeira
provação para qualquer família.
24.7 Rapto. O rapto aqui descrito não inclui
manter alguém preso para receber resgate, mas a
venda de uma pessoa como escravo. Isso é tratado
como crime merecedor de pena capital, porque as
vítimas desses crimes são afastadas de suas comuni­
dades, que são a fonte de suas vidas. A lei protege a
pessoa que não goza da segurança proporcionada 207
 DEUTERONÔMIO 24
por família e riqueza, pois a vítima de rapto seria
tipicamente um abandonado social. Entretanto, nin­
guém deve ser afastado da comunidade da aliança,
não importa qual seja sua posição econômica.
24,8-9 Lepra. Esta passagem não apresenta
nenhuma orientação sobre como a lepra deve ser
tratada. Esse é uma questão para os sacerdotes. Os
leitores do Deuteronômio são aconselhados a respei­
tar o conhecimento que os sacerdotes têm do as­
sunto. O texto provavelmente supõe a existência da
legislação sacerdotal de Nm 13-14 e refere-se de
modo específico à tradição sobre Miriâm (Nm 12,9­
16). Esta é uma boa evidência de que as origens do
Deuteronômio encontram-se entre a laicidade e que
a fonte sacerdotal antecede o Deuteronômio no mí­
nimo em alguns anos.
24,10-13 Mais sobre os penhores. E bastante
difícil pedir um empréstimo sem ter de lidar com
a perseguição dos credores. O tratamento de quem
pede emprestado deve ser marcado por compreen­
são, compaixão e caridade. Não há desculpa para
aumentar os encargos dos pobres.
24,14-15 O salário dos pobres. O Deuteronô­
mio é marcado por uma preocupação especial com
os que ocupam uma posição social marginal. Aqui
os deuteronomistas exigem que o salário dos po­
bres seja pago todos os dias, pois o pouco que con­
seguem é a única barreira que suas famílias têm
contra a fome e a necessidade. A falta de pagamento
do salário dos pobres fará com que eles se voltem
ao S enhor em busca de ajuda. Como Deus ouve o
clamor dos pobres (SI 69,34), a cólera do S enhor
se voltará contra Israel por não considerar o bem-
estar dos necessitados.
24,16 Responsabilidade individual. Esse tex­
to parece ser oposto ao de Dt 5,9. Ambos os textos
contêm importantes intuições na realidade de crime
e castigo. Este texto afirma de maneira inequívoca
que cada pessoa deve ser tratada como indivíduo
quando é uma questão de responsabilidade crimi­
nal, o que significa que o culpado precisa aceitar
a pena criminal por qualquer transgressão da lei. O
texto de Dt 5,9 afirma que a natureza do ato crimi­
noso é tal que seus efeitos não se limitam a um úni­
co indivíduo. Por exemplo, é inevitável que as ações
do pai afetem toda a família. O castigo de um crime
pode ser dirigido a indivíduos, mas suas repercus­
sões atingirão muito mais pessoas.
24,17-22 Respigadura da colheita. Mais uma
vez, a preocupação do Deuteronômio pelos pobres
vem ao primeiro plano. Esta legislação dirige-se
aos prósperos proprietários de. terra e pede uma
forma de ineficiência proposital na hora da colheita
que permita aos pobres sobreviver sem exigir que
aceitem a caridade óbvia. Têm de trabalhar para o
sustento próprio. Os deuteronomistas lembram aos
ricos que todo Israel seria escravo não fosse pela
misericórdia divina. A resposta esperada dos que
208 se beneficiaram da bondade divina é a compaixão
pelos que não têm participação plena na riqueza da
comunidade.
25,1-3 Castigo corporal. Os deuteronomistas
aceitam o castigo corporal como um meio de lidar
com os culpados. Ao mesmo tempo, exigem salva­
guardas específicas para proteger os que sofrem o
castigo porque, apesar de seus crimes, ainda são
israelitas. O castigo deve seguir-se a um julgamento
legal. Deve ser ministrado sob a supervisão de uma
autoridade competente e limitar-se a um número
especificado de golpes de açoite. A tradição rabínica
limitava o castigo a trinta e nove chibatadas para
evitar a possibilidade de transgressão da determi­
nação do V. 3 (c f 2Cor 11,24).
25,4 Preocupação com o boi. Outra lei exclusiva
do Deuteronômio que mostra a que ponto esta tradi­
ção chegou em sua preocupação para que todos com­
partilhem a generosidade da terra dada por Deus. Até
os bois têm de ser bem tratados. O Novo Testamento
cita essa passagem como justificativa para a prática
pela qual os ministros do Evangelho sustentam-se
com seu ministério (ICor 9,9; ITm 5,18).
25,5-10 O levirado. O costume descrito aqui
(levir é o latim para “cunhado”) era praticado de
alguma forma em todo o antigo Oriente Próximo.
A suposta origem deste costume estava no desejo
do sistema social patriarcal de manter a riqueza (o
dote) e a fertilidade da viúva na mesma linhagem
patriarcal. Com o surgimento da urbanização e a
devolução de direitos da família patriarcal ampla
no antigo Israel, esta questão tornou-se menos
importante, embora, aparentemente, o levirado persis­
tisse até o século 1 d.C (cf Mt 22,23-28; Lc 20,27-33).
Os anciãos usam sua autoridade moral para incenti­
var a anuência a esse antigo costume, mas não po­
dem obrigá-la (v. 8).
25,11-12 Mutilação como castigo. Embora a
mutilação fosse um castigo comum no antigo Oriente
Próximo, este é o único caso desse castigo na Bíblia,
além da lex talionis (Dt 19,21). De fato, alguns intér­
pretes consideram esta passagem uma extensão da
lex talionis, que, neste caso, não pode ser aplicada
literalmente. Embora a intenção da mulher de livrar
o marido do adversário seja boa, há limites para o
tipo de atitude que ela pode tomar em benefício dele.
25,13-16 Leis de comércio. Que tipo de socie­
dade teria alguma coesão se toda transação comer­
cial fosse suspeita? A confiança é um componente
básico da vida comunitária. Aqui os deuteronomis­
tas exigem que os envolvidos no comércio mante­
nham-se fiéis a práticas comerciais honestas.
25,17-19 Os amalequitas. Na época em que o
Deuteronômio foi escrito, os amalequitas já haviam
desaparecido nas páginas da história. Os deuterono­
mistas sugerem que isso se deveu a pessoas que
obedeceram à ordem do Senhor . Uma inferência
adicional é que Israel deve se lembrar de tudo que
as nações lhe fizeram. Essa lembrança deve ajudar
Israel a evitar o desastre de assimilação, para que

essas nações não alcancem com a ajuda de Israel o
que não conseguiram pela força das armas.
26,1-15 Duas liturgias de recordação. O ritual
do antigo Israel era um veículo para o reconheci­
mento de sua dívida de gratidão para com Deus
que deu a Israel uma terra fértil. Ao pagar essa dí­
vida de gratidão Israel também quis se lembrar de
um ato divino anterior que foi até mesmo mais im­
portante que a dádiva da terra: o Êxodo, que trans­
formou Israel de uma nação de escravos em um
povo libertado. Os dois ritos aqui descritos fundem
ambas as tradições de ação de graça: gratidão pela
libertação e pela terra.
Os vv. 1-11 tratam do dízimo anual de produtos
agrícolas feito pelo israelita agradecido. O retrato
que os deuteronomistas pintam aqui é o de um lavra­
dor muito bem-sucedido que vem ao santuário cen­
tral para apresentar seu dízimo. Seu grupo inclui
não só sua família, mas também os levitas e os mi­
grantes residentes que dele dependem economica­
mente. Toda a comunidade se beneficia com a gene­
rosidade de Deus para Israel e, assim, todo o Israel
deve se envolver no ritual de ação de graças.
O centro dessa passagem é a confissão do israe­
lita quando a oferenda é colocada diante do S enhor
(vv. 5-10). Os devotos reconhecem sua origem
como povo sem terra nem liberdade. Podem agora
apresentar seus dízimos apenas porque Deus tomou
o partido de seus ancestrais contra os egípcios e
porque lhes deu uma terra fértil para morar.
Seguindo o ritual, todo o grupo reunido pelo
rico lavrador celebrava com uma refeição festiva a
felicidade concedida por Deus. Isso está de acordo
com a visão tipicamente deuteronômica dos ele­
mentos de um sacrifício sendo usados pelos partici­
pantes do ritual.
Os vv. 12-15 tratam do dízimo trienal, que não
é trazido ao santuário central, mas deve ser usado
em cada localidade para o sustento dos pobres. Em
vez de uma profissão de fé na atividade misericor­
diosa de Deus por Israel, o lavrador que apresenta
o dízimo afirma com devoção que foi obediente a
todas as estipulações a respeito da apresentação do
dízimo. A oração termina com uma súplica para que
Deus continue a ser benevolente para com Israel,
que depende totalmente de Deus para seu sustento.
Esta passagem difereneia Israel de seus vizi­
nhos canaanitas, que vêem a fertilidade como re­
sultado da manipulação habilidosa dos poderes
divinos. Para Israel, a fertilidade é uma dádiva que
só pode ser recebida com gratidão. A liberdade, a
felicidade e o futuro de Israel pertencem somente
a Deus. Israel se alegra por causa das dádivas que
Deus livremente lhe concedeu.
26,16-19 Compromisso mútuo. O Código Deu-
teronômico, que começou no capítulo 12, conclui
com uma declaração de compromisso mútuo de Deus
e de Israel. O povo proclama sua fidelidade a Deus e,
por intermédio de Moisés, Deus assegura o povo
DEUTERONÔMIO 27
das bênçãos que vêm aos obedientes. A tripla ocor­
rência de “hoje” (vv. 16.17.18) reflete uma assem­
bléia litúrgica na qual Israel mais uma vez aceita a
lei como componente de seu relacionamento com
Deus. Um efeito desse relacionamento é a grande
fama de Israel entre as nações. Uma vida nacional
levada de acordo com a lei divina só pode refletir a
glória divina (v. 19). A substância deste ritual de
compromisso mútuo ou renovação da aliança serve
de conclusão para o Código Deuteronômico e tam­
bém de transição para o que se segue: a séria adver­
tência de Moisés sobre as conseqüências terríveis
que sobrevirão a um Israel desobediente.
27.1- 28,69 Bênçãos e maldições. Agora os deu­
teronomistas voltam-se para o futuro. Para a Lei ter
seu efeito benéfico, toda geração terá de lembrá-la,
com suas cláusulas, e estar preparada para cumpri-la.
Este discurso descreve os esforços para assegurar
que Israel nunca se esqueça da Lei e permaneça fir­
memente apegado a ela.
27.1- 8 A Lei escrita. Estes vv. consideram o
Deuteronômio a Lei escrita autoritativa para a vida
de Israel na terra. É, então, apropriado que cópias
dela sejam deixadas em locais significativos ligados
à entrada de Israel na terra. Pedras com a Lei escrita
devem ser erguidas no local exato em que Israel atra­
vessar o Jordão. Outras pedras devem ficar no monte
Ebal, onde deverá acontecer uma grande cerimônia
de renovação da aliança.
Este texto preserva indiretamente a memória de
dois santuários israelitas onde um ritual lembrou a
entrada na terra. O primeiro era em Guilgal, a oeste
do Jordão; o segundo em Siquém, a cidade no sopé do
monte Ebal. Os rituais em ambos esses lugares cele­
bravam não só a entrada de Israel em Canaã, mas tam­
bém a entrega da Lei, que entrou em vigor no momen­
to em que o povo chegou à sua nova terra.
27,9-10 Moisés e os sacerdotes falam. De uma
perspectiva teológica, estes dois vv. são muito signi­
ficativos, pois afirmam que a obediência aos man­
damentos deve ser a resposta de Israel a sua eleição.
A obediência não foi a razão pela qual Israel se tor­
nou o povo eleito de Deus; a eleição de Israel foi
obra de graça. Em geral, a teologia deuteronômica
é caricaturada como teologia de retribuição que ins­
pira uma teologia de barganha com Deus. Aqui fica
muito claro que o Deuteronômio afirma que a base
do relacionamento divino-humano é um ato imere­
cido de graça divina. É porque foram escolhidos co­
mo povo de Deus que os israelitas devem obedecer
aos mandamentos.
27,11-26 Um ritual nos montes Garizim e Ebal.
Como o restante deste capítulo, estes vv. refletem
algum tipo de rito ligado à renovação da aliança
entre Deus e Israel. Infelizmente, não é possível re­
construir o formato desse rito apenas com base no
que resta aqui. A imagem criada pelo texto divide os
devotos em dois grupos, um em cada um dos montes
que flanqueiam Siquém. Os dois grupos devem 209
 DEUTERONÔMIO 28
recitar as bênçãos e maldições associadas à aliança
de Israel com o S enhor. O propósito provável do
ritual é demonstrar a livre aceitação por Israel das
conseqüências provenientes do relacionamento es­
tabelecido com Deus por intermédio da Lei.
As doze maldições nos vv. 14-26 apresentam
uma lista resumida de ações incompatíveis com a
posição de Israel como povo de Deus. Com certeza
a lista não está completa; serve apenas para lembrar
o povo que a obediência à Lei deve caracterizar a
vida da nação. A resposta do povo a cada maldição
indica seu entendimento e sua aceitação das conse­
qüências para o desobediente.
Não parece haver nenhum tema unificador do
conteúdo das maldições, embora alguns intérpretes
vejam o sigilo dos atos proscritos como elemento
comum. Se isto está certo, é provável que os deute-
ronomistas estejam tentando evitar um tipo de lega-
lismo que só vê culpa quando o ato é descoberto.
Aqui, talvez estejam dizendo que todo ato que não
leva em consideração a Lei é uma ofensa a Deus,
quer essa ofensa aconteça à luz do dia, quer não.
A última maldição é abrangente. Coloca a maldição
divina na apatia e inatividade dos que sabem o que
a Lei exige, mas não se esforçam por obedecer. A
expressão “desta Lei” (v. 26) é outra indicação de
que essa lista de maldições foi composta depois que
o Deuteronômio fora aceito como documento escri­
to autoritativo.
28,1-69 Bênçãos e maldições. Muitos intér­
pretes acreditam que os deuteronomistas conscien­
temente usaram a aliança (tratado internacional)
como metáfora para apresentar o relacionamento
entre Deus e Israel. Embora todos os elementos da
forma de aliança típica não estejam presentes no
Deuteronômio, os três mais importantes estão. Os
capítulos 5-11 equivalem ao prólogo da aliança,
que é exortação à fidelidade baseada no que Deus
fez por Israel. As estipulações dos capítulos 12-26
formam o centro da aliança, onde as obrigações de
Israel para com Deus são descritas com clareza. Fi­
nalmente, este capítulo representa um dos elemen­
tos decisivos da.aliança, as bênçãos e maldições.
Aqui são estabelecidas com inequívoca clareza as
conseqüências da fidelidade e da infidelidade. Co­
mo aeontece nos tratados do antigo Oriente Pró­
ximo, as maldições são muito mais numerosas que
as bênçãos. A metáfora da aliança explica o relacio­
namento entre Deus e Israel de uma forma pronta­
mente compreensível pelos antigos israelitas. Além
disso, salienta a apresentação deuteronômica da Lei
como resposta amorosa de Israel ao Deus que o li­
bertou da escravidão egípcia.
O simples número de maldições (w . 15-68)
comparado com as bênçãos (vv. 1-14) parece des­
mentir a afirmação de que, para os deuteronomistas,
a obediência é uma resposta de amor. Embora algu­
mas delas possam ter sido introduzidas nesta lista
210 depois do Exílio (por exemplo, os w . 36-38), o
número de maldições talvez seja apenas um estra­
tagema retórico para incentivar Israel à obediência.
Para os deuteronomistas, muitas das maldições já
se tomaram realidade. Estão tentando levar o povo
de volta à obediência, pois seu futuro depende da
obediência fiel.
Em termos de forma, os vv. 1-46 e 58-68 con­
têm bênçãos e maldições condicionais. Se Israel
for obediente, poderá esperar o favor divino; se for
desobediente, o julgamento divino. Embora fosse
questão de graça divina, a eleição de Israel não o
isenta de suportar as conseqüências da infidelidade.
O relacionamento de Israel com Deus depende da
fidelidade à vontade divina como expressa na Lei.
Os w. 47-57 prometem as maldições divinas
sobre um Israel desobediente. Parece não haver a
questão “se Israel for desobediente”. Estes w. pres­
supõem a infidelidade do povo: Por não teres servido
ao Senhor, teu Deus...” (v. 47a). Aparentemente, o
texto reflete a tragédia que aconteceu a Israel durante
0 cerco de Jerusalém e das outras cidades de Judá
(597-587 a.C.). Os w. 53-57 são bem horripilantes
em sua descrição dos horrores que acompanham um
cerco demorado. Na verdade, as conseqüências da
desobediência são terríveis.
Um elemento comum às bênçãos e maldições é
a relação delas com a terra. Em primeiro lugar, a
bênção significa a fertilidade do povo e da terra. As
maldições trazem doença, morte, seca, desassossego,
colheitas escassas e um cerco terrível, seguido pelo
exílio da terra e a volta à escravidão em uma terra
estrangeira. A terra é a grande dádiva divina para
um Israel libertado. A desobediência traz o contrário
de todos os atos beneficentes divinos (w. 60-68).
Embora os feitos de Deus por Israel fossem gran­
des, podiam ser desfeitos por um povo ingrato. E a
maldição pela desobediência, especificada simples­
mente nos vv. 15-68.
O-segundo discurso de Moisés termina com
um intenso chamado à fidelidade de Israel. A inten­
sidade da linguagem das maldições demonstra como
Israel deve levar a sério seu relacionamento com
Deus. É, na verdade, questão de vida ou morte.
TERCEIRO DISCURSO DE MOISÉS
Dt 29,1-32^ 2
A principal preocupação deste discurso é o fu­
turo imediato de Israel. Moisés providencia para que
Josué assuma a liderança das tribos depois de sua
morte. Igualmente importantes são as providências
para guardar o livro da Lei e para sua leitura perió­
dica. A Lei deve ser o guia da existência futura de
Israel na terra. Líderes humanos vêm e vão, mas a
lei perdura como o meio mais eficiente de salvaguar­
dar 0 compromisso de Israel com o S enhor.
29,2-8 Um chamado à fidelidade. O terceiro
discurso de Moisés começa de uma forma que já
deve ser bastante conhecida — a recitação dos atos

salvíficos de Deus a favor de Israel, desde a derro­
ta de Faraó (v. 2) até a derrota de Sihon e Og (v. 6).
Continua no estilo característico com um pedido de
obediência, seguido da promessa de prosperidade
na nova terra (v. 8).
O que toma singular esta passagem é o comen­
tário no V. 4 que afirma que Israel nem sempre
conseguiu reconhecer a presença divina nos acon­
tecimentos que consideramos “milagrosos”. Isso
deve ser um lembrete de que os feitos salvíficos de
Deus não são tão inequívocos a ponto de não exi­
gir fé da parte dos que os experimentam. Se Israel
reconhece a presença de Deus em sua vida, é porque
Deus dá o tipo de compreensão e discernimento que
percebe essa presença.
29,9-14 Participantes da aliança. Aqui os deu-
teronomistas desejam incluir todas as gerações de
israelitas como membros da aliança feita com Deus.
O compromisso de fidelidade cabe não só ao povo
que passou pelo Êxodo e pela caminhada no deser­
to, mas também a todas as gerações. A aliança que
Moisés conclui entre Deus e Israel envolve não só
os que estavam presentes no Horeb e em Moab, mas
também os que ainda vão nascer e que terão, da mes­
ma forma, os benefícios da bondade de Deus para
com Israel.
29,15-20 Admoestaçâo contra o falso culto.
O grande mandamento da Lei é a obrigação de
Israel de servir somente a Deus. Aqui Moisés repete
essa ordem central. Em geral, quando Moisés men­
ciona o Egito é para lembrar a Israel sua maravi­
lhosa libertação da escravidão. Aqui, entretanto, o
Egito serve de modelo do tipo de falso culto que
Israel deve evitar. O povo será tentado a abandonar
0 serviço de Deus pelo de divindades estrangeiras.
Se alguém sucumbir a essa tentação, pode esperar
o mais severo dos castigos. Não pode haver nenhu­
ma transigência a respeito do compromisso exclusi­
vo que Deus exige de Israel.
29,21-27 Consequências da desobediência.
Quando as pessoas virem os terríveis efeitos da
infidelidade de Israel, terão de saber a verdade. O
primeiro impulso será culpar os deuses das nações
que derrotaram Israel. Talvez concluam que uma
nação pequena como Israel não poderia suportar
os ataques furiosos de poderosos impérios mundiais.
A verdade é que a queda de Israel foi provocada
por deixar de observar as estipulações da aliança
do S enhor ( v. 25). As conseqüências foram a derrota
e o exílio. A ênfase constante na resposta divina ao
comportamento de Israel destaca a natureza pessoal
do Deus de Israel. Isso já foi revelado nos muitos
atos de amor de Deus em benefício de Israel; pode
também ser revelado pelos atos de julgamento de
um Israel infiel.
29,28 Uma retratação. Este v. é provavelmente
uma glosa introduzida no texto por um redator tardio,
o que, já se vê, não afeta, de modo algum, seu valor
teológico. Embora não haja consenso sobre o signi­
DEUTERONÔMIO 30
ficado do texto, ele serve para reconhecer que o
Deus de Israel não pode ser medido pelas perspecti­
vas teológicas dos deuteronomistas, por mais respei­
tados que sejam seus pontos de vista. O que temos é
certa intuição parcial das obras do divino. Tal intui­
ção é dada em nosso benefício, não deve servir para
limitar as prerrogativas de Deus. Aqui é que o Deute-
ronômio chega o mais próximo a reconhecer a rela­
tividade da percepção humana. O mistério do divino
sempre foge a nosso entendimento.
30,1-14 Arrependimento. Os seres humanos
não são apenas limitados na capacidade de entender
plenamente o mistério do divino; a vontade humana
também é incapaz de assumir um compromisso livre
do risco de infidelidade. Esta passagem pede a Israel
que volte ao S enhor depois de apostasias. O arrepen­
dimento trará a volta à terra da qual Israel foi exilado
(v. 4). A restauração significa a completa revogação
dos efeitos da infidelidade. Israel será restaurado a
sua terra e também gozará de renovada prosperidade.
O único requisito é a obediência — fruto do amor de
Israel por Deus.
Para que Israel não se sinta desencorajado por
suas faltas. Deus providenciará uma fonte de dedi­
cação antes inacessível. Israel não mais terá de se
apoiar na própria força, pois receberá um coração
circuncidado por Deus e adequado a um compro­
misso renovado (v. 6). Moisés continua para asse­
gurar ao povo que a obediência não é tarefa impos­
sível. O desempenho de Israel no passado pode dar
origem à idéia de que é impossível cumprir os man­
damentos, mas o texto (vv. 11-14) apresenta a obe­
diência como possibilidade genuína,
A Lei tem o propósito de ser um guia para a
vida humana. Não faz parte de um mistério divino
inacessível (v. 12). Crer outra coisa é nada menos
que uma tentativa de fugir à responsabilidade. Se­
gundo, a Lei é um guia prático para a vida cotidia­
na. Não é um sistema racionalista, insensível, que
está além da maioria das pessoas (v. 13). A Lei é o
caminho de vida aberto a todos.
30,15-20 A escolha. Todo o Deuteronômio con­
duz a esta escolha dramática que Moisés coloca
diante do povo. Estes vv. contêm todos os elementos
encontrados no restante do livro: mandamentos,
bênção e maldição, apelo à obediência. Depois de
tudo que foi dito, a força do livro resume-se em uma
escolha que as pessoas precisam fazer. O futuro de
Israel depende dela. A misericórdia divina não está
em debate. É a resposta de Israel que faz seu futu­
ro pender na balança. Moisés não é um observador
neutro no processo; está ajjaixonadamente preocu­
pado com 0 futuro de Israel. Por isso, praticamente
ordena a Israel que escolha a vida (v. 19a).
As alternativas de vida e de morte são mais
amplas do que pode parecer ao leitor contemporâ­
neo. “Vida” refere-se à esfera de atividade humana
sob proteção do divino; “morte” refere-se à esfera
de atividade humana desprovida da presença divina. 211
 DEUTERONÔMIO 31
A morte, então, é mais do que a cessação da vida
física; é existência fora da terra, existência no infer­
no do exílio. A morte é a vida sem Deus. Vida é a
bênção, morte, a maldição.
Aqui o bem e o mal não se referem necessaria­
mente a escolhas morais. O bem refere-se às conse-
qüências da vida com Deus: fertilidade, prosperida­
de e felicidade. O mal refere-se às conseqüências da
vida sem Deus: exílio, doença e morte. Cabe a Israel
fazer uma de duas escolhas: 1) vida com Deus, que
traz bênçãos e o bem ou 2) vida sem Deus, que é
nada menos que a maldição da morte. Não há outras
alternativas.
Moisés toma o céu e a terra como testemunhas
da escolha de Israel (v. 19b). Nos tratados do antigo
Oriente Próximo, forças personificadas da natureza
eram testemunhas da conclusão de um tratado e se
presumia que lidariam com qualquer membro do
tratado que se mostrasse infiel a seus dispositivos.
Israel, naturalmente, desmistifica esse aspecto da
forma de aliança, mas retém a idéia de testemunhas
da aliança, referindo-se aqui ao céu e à terra.
Israel encontrará sua verdadeira personalidade
tomando uma decisão de vida. A própria finalidade
da nação é amar o S enhor ( v. 20). Todas as gerações
de Israel devem se pôr no lugar dos que ouviram
pessoalmente Moisés, porque tudo que Israel precisa
lembrar é que tem apenas duas escolhas e que ao
fazer a escolha certa terá “longevidade” (v. 20).
31,1-8 Josué, sucessor de Moisés. Os deute-
ronomistas já prepararam os leitores para a morte
de Moisés e seu significado para o futuro de Israel
(1,37-38; 3,23-29). Embora Moisés fosse mais que
uma figura heróica na história épica da libertação
de Israel do Egito e sua caminhada para a Terra Pro­
metida, Deus foi o verdadeiro libertador de Israel e
guerreiro em seu benefício (v. 3a). Moisés deve
morrer, mas sua morte não privará Israel da lide­
rança de que necessita para se estabelecer na terra.
O papel de Israel na vida de Israel será assumido
por Josué. Ele é quem conduzirá Israel enquanto
este enfrenta o período crucial do assentamento em
Canaã.
31,9-13 A leitura da Lei. Embora a responsa­
bilidade de Moisés de liderar o povo deva ser assu­
mida por Josué, haverá um arranjo diferente a res­
peito da função de Moisés como mestre da Lei para
0 povo. Moisés escreveu a Lei e agora entrega-a
aos sacerdotes levíticos que conduzem a arca, onde
está depositado o documento escrito.
A Lei escrita é também dada aos anciãos. Os
sacerdotes recebem a custódia do documento, mas
os anciãos assumem a tarefa de ensinar a Lei que
competia a Moisés. Os anciãos eram tradicional­
mente responsáveis pela preservação da vida normal
da comunidade, orientando-a e resolvendo disputas
em termos de práticas e valores tradicionais. Não só
em Israel, mas em todas as sociedades pré-monár-
212 quicas do antigo Oriente Próximo, os anciãos eram
os guardiões da doutrina legal. Aqui recebem ordem
para ler periodicamente a Lei ao povo, “para que
ouçam e aprendam, e temam o Senhor ...” (v. 12).
Este costume de leitura pública era o veículo de re­
novação da aliança.
Não há registro de que esta ordem foi cumprida
como aqui prescrito, embora, sem dúvida, houvesse
algum ritual de renovação do compromisso. Mais im­
portante do que o ritual em si é a expressão da opinião
do Deuteronômio de que a função mosaica é desem­
penhada em parte pelos anciãos, que transmitiam e
administravam a observância das tradições legais do
antigo Israel.
31,14-32 Introdução ao cântico de Moisés. As
instruções divinas a Moisés a respeito do cântico que
ele deve compor e ensinar a Israel (vv. 16-21) são
formuladas pela designação divina de Josué. Mais
uma vez são tomadas providências, em vista da morte
iminente de Moisés (vv. 14.16). Josué deve dar a
Israel a liderança necessária no início do assenta­
mento em Canaã. O cântico deve ser uma força mo­
ral que toque a consciência de Israel no meio da
bênção material que a nova terra deve trazer.
O determinismo que marca os vv. 16-21 indica
sua introdução tardia neste contexto. A infidelidade
de Israel não é uma possibilidade — é inevitável.
O abandono do povo por Deus, em vista de sua in­
fidelidade é igualmente inevitável. Estes w . datam
do Exílio, quando os plenos efeitos da revolta de
Israel e da ausência de Deus estavam sendo sentidos
por Israel. E no meio dessa experiência que o cânti­
co servirá para lembrar a Israel que o que lhe aconte­
ceu é tão-só a maldição que ataca os desobedientes.
31,24-29 O livro da Lei. Outra tentativa de
lidar com a perda de Moisés. A Lei que ele promul­
gou deve ser preservada para as gerações futuras.
Moisés escreveu um relato da aliança que mediou
entre Deus e Israel. Esse documento escrito, sob a
proteção dos levitas, será um memorial perpétuo
da aliança. Moisés chama os anciãos do povo e lhes
fala da própria falta de fé na disposição de Israel
de permanecer dedicado a Deus. Experiências amar­
gas demonstraram o nível de dedicação da nação.
Mais uma vez Moisés roga o testemunho do céu e
da terra para sua última ordem a Israel (v. 28). A
invocação dessas testemunhas por Moisés é o elo
entre esta passagem e o cântico que segue. O cân­
tico começa com uma invocação semelhante (32,1).
31,30-32,47 O cântico de Moisés. O cântico de
Moisés é, em parte, uma acusação da infidelidade
de Israel à aliança. Assemelha-se aos procedimentos
legais por uma parte ofendida em uma aliança para
receber satisfação da parte ofensora. O cântico co­
meça com a convocação de testemunhas (w. 1-3).
Aqui são o céu e a terra que podem testemunhar a
existência de uma aliança entre Deus e Israel (veja
30,19; 31,28). Em seguida vem uma declaração da
falta de dedicação ao relacionamento da aliança (vv.
4-6). A denúncia começa com a argüição da apos-

tasia de Israel (w. 15-18). Finalmente, é declarada a
culpa do povo e pronunciada a sentença (vv. 19-25).
Em vista de sua apostasia total, Israel pode esperar
completa destruição.
Depois do julgamento, o cântico muda de re­
pente nos vv. 26-27. Os inimigos de Deus não
entenderão a derrota de Israel. As nações que não
sabem discernir o poder de Deus em ação na derrota
de Israel vão se ver enfrentando a própria sina. O
cântico resume a história trágica de Israel, afirman­
do ao mesmo tempo que a derrota da nação não é
a última palavra de Deus para Israel.
O cântico é corretivo sutil de uma aplicação
mecanicista da teologia deuteronômica. Da perspec­
tiva do Exílio, está bastante claro que Israel esco­
lheu a morte em vez da vida. Aqui o Deuteronômio
dá um avanço significativo ao prefigurar a bênção
adiante da maldição e proclamar uma nova vida
para Israel apesar de sua infidelidade. O que come­
ça com uma sentença de morte termina com a pro­
messa de vida nova.
32,48-52 A morte iminente de Moisés. Estes
vv. são uma elaboração de Nm 27,12-14, que vem
da história sacerdotal de Israel. Isso é evidente pela
explicação que o v. 51 oferece para a morte de
Moisés fora da Terra Prometida. Em Dt 1,32, a culpa
pela sina de Moisés é posta no pecado do povo e
não em uma falha pessoal dele mesmo.
QUARTO DISCURSO DE MOISÉS
Dt 33,1-34,12
O último componente do Deuteronômio inclui
0 testamento final de Moisés às tribos fcap. 33) e
0 relato de sua morte (cap. 34). As últimas palavras
de Moisés assumem a forma de uma bênção na qual
prevê o destino de cada tribo (compare Gn 27; 49).
O último capítulo não vem dos deuteronomistas,
que desejavam enfatizar a continuidade entre a era
mosaica e todos os períodos subsequentes da histó­
ria de Israel. O objetivo principal do último capí­
tulo é enfatizar a mudança radical provocada pela
morte de Moisés.
33,1-29 A bênção de Moisés. A essência desse
texto são as bênçãos que Moisés concede às tribos
individuais. São bênçãos envoltas em um cântico de
louvor que celebra a majestade e as vitórias divinas
em beneficio de Israel e também a dádiva da pros­
peridade da terra (w. 2-5.26-29). E pela conquista
que o Senhor se toma o rei das tribos israelitas
(v. 5). Nesse ponto começam as bênçãos.
DEUTERONÔMIO 34
As bênçãos citam doze tribos, embora esteja
faltando Simeão (compare Gn 49; Nm 1,5-15). O
número doze é mantido, porque a tribo de José está
dividida em Efiaim e Manassés. A julgar pelas apa­
rências, cada bênção tribal existia independentemen­
te, como evidencia a diversidade de forma e conteú­
do. Estes ditos independentes estão reunidos por um
clirnax adequado ao Deuteronômio. A última pala­
vra dita às tribos é uma palavra de bênção.
Entre as bênçãos individuais que merecem co­
mentário específico, destaca-se a de Levi (w. 8-11).
O Tumim e o Urim (v. 8) sâo oráculos de sorte, por
meio dos quais é possível obter respostas a per­
guntas que pedem sim ou não. Não é possivel deter­
minar com certeza a aparência desses objetos e
como eram manipulados (cf ISm 14,18-19.41-42;
23,9-12). O v. 10 mostra que os sacerdotes são
mais que funcionários do culto; também são respon­
sáveis pelo ensino dos valores morais tradicionais
de Israel.
34,1-8 A m orte de Moisés. Estes vv. finais
são uma elaboração daquilo que os deuteronomis­
tas escreveram em 3,27. A afirmação de que Moisés
foi enterrado “no vale, na terra de Moab, defronte
a Bet-Peor” pode dar a impressão que está sendo
indicado um local de sepultura bem conhecido; en­
tretanto, o V. 6 b afirma que o local exato da sepul­
tura de Moisés é desconhecido. Aparentemente, na
ocasião em que essas palavras foram escritas, a se­
pultura de Moisés já não era visitada, ou nem mes­
mo conhecida, embora os autores estivessem cientes
de uma tradição sobre a área geral associada à mor­
te de Moisés.
34,9-12. Conclusão. Aqui Moisés é um líder
único, insubstituível (cf. Dt 18,18). De fato, o v. 12
descreve Moisés em linguagem geralmente reserva­
da somente a Deus. Tal descrição poderia tomar-se
opressiva. Embora Moisés seja lembrado como
grande líder, outros terão de ocupar seu lugar, para
que Israel permaneça fiel à aliança. Com certeza,
os deuteronomistas consideram-se continuadores do
papel de Moisés para sua geração. Mais tarde, até
Jesus reconhecerá o direito dos fariseus à cátedra
mosaica (cf Mt 23,2). Jesus também acreditava
que sua missão era cumprir “a Lei” e “os Profetas”
(Mt 5,17-18) e, desse modo, completar a tarefa de
Moisés. Assim, as gerações posteriores que reco­
nheceram o papel especial de Moisés na vida de
Israel também reconheceram que aquilo que Moisés
fez pela primeira geração de israelitas, outros de­
viam fazer pelas gerações seguintes. -
213
 rofetas
Ánteriores
 JOSUE
John A. Grindel, C.M.
INTRODUÇÃO
Livro de Josué recebeu o nome de seu
principal protagonista, Josué, filho de
Nun. Josué fora auxiliar de Moisés e
o substituiu como chefe do povo. Em
hebraico, o nome Josué significa “o
S enhor salva” ou “Que o S enhor salve”.
O tema do livro é a ocupação da terra a oeste do
rio Jordão. O livro se divide em três partes distintas:
a conquista de Canaã (caps. 1-12); a divisão da terra
(caps. 13-21); a volta das tribos transjordanianas e a
despedida de Josué (caps. 22-24).
A História Deuteronom ista
Na Bíblia hebraica, o Livro de Josué é o primeiro
dos “Profetas anteriores”, assim chamados por cau­
sa da importância da palavra profética nesses livros.
Hoje em dia o livro é, em geral, considerado o pri­
meiro volume daquilo que é conhecido como “Histó­
ria Deuteronomista, que inclui os livros de Josué,
Juizes, Samuel e Reis e abrange o periodo que vai
desde a conquista de Canaã, no século XII a.C., até
a época do Exílio no século VI a.C. Com ffeqüência,
o livro do Deuteronômio é considerado a introdução
a esses livros.
Nosso entendimento moderno da História Deu­
teronomista deve muito ao trabalho de um biblista
alemão, Martin Noth. Ele mostrou que alguém que
compartilhava a perspectiva teológica e também o
estilo literário encontrado no livro do Deuteronô­
mio, formou uma obra histórica contínua reunindo
em um conjunto coerente muitas unidades de ele­
mentos diversos, originalmente independentes e
provindos de vários períodos da história de Israel.
O autor inspirou-se em numerosas fontes orais e
escritas, tais como anais, listas de reis e narrativas
de vários tipos. Algumas das unidades eram de ta­
manho considerável, tais como Js 2-11. As adições
do próprio autor estabeleceram uma estrutura in-
terpretativa que concatenou os elementos diversos
e estabeleceu julgamentos sobre os eventos da nar­
rativa. As adições do redator encontram-se princi­
palmente em comentários enfáticos — sermões e
discursos colocados na boca de personagens im­
portantes em períodos de significativa transição na
narrativa (p. ex., Js 1; 24; ISm 12; IRs 8), pas-
sagens-elo e resumos. Os biblistas discutem se essa
obra é produto de uma só pessoa ou de um grupo
de autores. A maioria supõe que a edição atual foi
composta logo depois do último acontecimento
nela relatado, a saber, a libertação do último rei
judeu, loiakin, de sua prisão babilônica, em 561
a.C. Muitos acreditam que a obra foi composta
na Palestina, mas outros acham que foi escrita na
Babilônia.
Embora Martin Noth julgasse que houve apenas
uma edição da obra, escrita por volta de 550 a.C.,
hoje é mais comum se falar em duas edições. A pri­
meira edição, mais primitiva, foi provavelmente escrita
durante o governo do rei Josias (620-609 a.C). A se­
gunda edição, mais tardia, bastante exaustiva, teria
sido compilada durante o Exílio, no século VI. Este
comentário interpretará o livro na perspectiva da se­
gunda edição, a do redator exílico.
A História Deuteronomista não foi escrita ape­
nas para preservar a lembrança do passado; seu pro­
pósito era, isso sim, apresentar uma explicação
teológica da perda dos dois reinos de Israel e Judá e
dar uma base teológica para a esperança no futuro.
Para entender a obra é necessário vê-la contra o
pano de fundo da época em que foi escrita.
Em 721 a.C., os assirios destruíram o reino
setentrional de Israel e, em 587 a.C., os babilônios
destruíram o reino meridional de Judá. Em 587 a.C.,
quando Jerusalém caiu, a cidade, com o Templo e o
palácio magníficos, foi arrasada e os chefes do povo
foram levados para o exílio na Babilônia.
O período do Exílio foi época de desespero e
dúvidas profundas por parte do povo. O SkwHOR pro­
metera zelar pelo povo e protegê-lo e guiá-lo, mas
agora tudo estava perdido. Por que o Senhor permitira
essa destruição e a perda de tudo? Em especial, o povo
perguntava a si mesmo se ainda era o povo de Deus e
se havia alguma base para a esperança no futuro. Deus
permanecería fiel às promessas feitas no passado,
apesar de tudo que acontecera desde então? A História
Deuteronomista foi escrita neste contexto. 217
 JOSUÉ
O propósito do autor é explicar que Israel per­
deu tudo por causa de sua pecaminosidade. O S e­
nhor chamara o povo à fidelidade à aliança e o
prevenira das conseqüências da infidelidade, mas
o povo pecara. Por isso, no exílio estavam sentindo
o julgamento divino. Israel não fora fiel ao S enhor
e sua longa história de pecado justificava o castigo
que sofria.
A obra é também uma exortação ao povo
para se arrepender e voltar ao S enhor e crer que
Deus cumprirá as promessas antigas. O povo deve
crer que, assim como no passado Deus respondeu
de maneira positiva ao povo arrependido, também
agora ouvirá seus clamores e o perdoará uma vez
mais. Todas as promessas antigas ainda estão em
vigor, embora temporariamentb suspensas por cau­
sa da pecaminosidade do povo. Ao mesmo tempo,
se o povo se arrepender, essas promessas servirão
de base para o futuro.
O propósito do Livro de Josué
No contexto da História Deuteronomista, o pro­
pósito específico do Livro de Josué, com ênfase na
conquista e na divisão da terra, é mostrar a fideli­
dade de Deus às promessas feitas no passado aos
patriarcas e a Moisés — em especial a promessa
da terra. Um dos temas principais encontrados no
Pentateuco é a promessa da terra. Essa promessa é
cumprida no Livro de Josué, de modo a suscitar no
povo a confiança nas promessas divinas. Agora
Israel, no meio do Exílio, pode confiar na atenção
e na presença contínuas de Deus e crer principal­
mente que a promessa da terra continua em vigor.
Ao mesmo tempo, é importante a obediência à Lei,
para que, tendo sido perdoado e levado de volta à
terra, Israel não atraia de novo sobre sua cabeça
uma destruição como a que está experimentando.
Exatidão histórica
Uma questão ffeqüentemente levantada a res­
peito do livro de Josué é sobre sua exatidão histó­
rica, especialmente quanto a seu relato da conquista
da terra no século XII a.C. Essa não é uma pergun­
ta fácil de responder. Há inconsistências e contra­
dições no próprio livro (cf 4,3 e 4,9; 8,3 e 8,12).
O que devemos pensar dos relatos conflitantes da
conquista da terra encontrados em Js 1—12 e Jz
1,1-2,57 Enquanto o quadro apresentado em Josué
é de uma violenta e completa conquista da terra
por um Israel unido, o quadro pintado em Juizes é
o de tribos ou clãs individuais lentamente tomando
sua terra e acomodando-se ao lado dos canaanitas
no país. E provável que este segundo quadro esteja
mais próximo da realidade.
O autor usa diversos tipos de material no livro,
de documentos reais a lendas. Também está claro
que 0 autor, escrevendo quinhentos anos depois dos
acontecimentos que estão sendo apresentados, esco-
218 lheu os dados para salientar um ponto de vista
teológico. Além disso, o autor entremeou toda a
obra de discursos originados por essa perspectiva
teológica.
A evidência arqueológica também levanta ques­
tões a respeito da confiabilidade histórica de parte
do material do livro, em especial as tradições so­
bre as cidades de Jericó e Ai. Enquanto o livro de
Josué traz extensos relatos sobre a conquista dessas
duas cidades, a evidência arqueológica mostra que
elas não foram ocupadas depois do século XIV a.C.
e que Ai fora destruída cerca de mil anos antes que
os israelitas entrassem na terra.
Em conclusão, é óbvio que o Livro de Josué
contém uma narrativa simplificada, esquemática,
incompleta, influenciada pelos pontos de vista teo­
lógicos do autor e que resultou da compilação de
dados muito diversos. Faremos algumas críticas
sobre a exatidão histórica das narrativas individuais,
à medida que continuarmos este comentário.
E interessante notar que a maior parte do ma­
terial dos capítulos 1-12, que trata da conquista da
terra, parece estar associada ao território de Ben-
jamin (c f Js 18,11-28) e ao santuário de Guilgal.
Parece que as tradições da primeira parte do livro
foram reunidas e transmitidas no santuário de Guil­
gal. Por outro lado, as listas tribais dos capítulos
13-21 datam todas do período da monarquia. Em­
bora algumas das listas aqui incluídas remontem
ao tempo de David e Salomão, no século X, outras,
como as dos capítulos 20 e 21, vêm do período de
Josias, no século VIL Devemos ser cautelosos
quanto à história bíblica da conquista e da divisão
da terra. A realidade era muito mais complexa.
Precisamos ter em mente que o autor estava mais
interessado em revelar o significado e o alcance dos
acontecimentos relatados do que em contar exata­
mente 0 que aconteceu. Pois é no significado dos
acontecimentos que aprendemos sobre Deus, sobre
nós mesmos e sobre o que Deus exige de nós.
A pessoa e a obra de Josué
Visto 0 que foi dito sobre a confiabilidade his­
tórica do material contido no livro de Josué, a pes­
soa e a obra de Josué também são um problema.
Se aceitarmos, como é apresentado na História Deu­
teronomista, que a conquista resultou de uma ação
militar unida, então, como comandante supremo das
forças israelitas, Josué desempenha papel importan­
te. Mas quando entendemos que a conquista foi um
processo secular de revolução interna, infiltração
lenta e ocupação por grupos individuais, então fica
difícil explicar a figura de Josué. Contribui para o
problema o fato de que, enquanto as tradições da
conquista preservadas no livro de Josué são da tribo
de Benjamin, Josué era da tribo de Eftaim.
Tudo isso mostra que a história complicadís­
sima da conquista foi reduzida, no Livro de Josué,
a um pequeno grupo de narrativas típicas agora

atribuídas a todo Israel, mas que tiveram origem
principalmente nas tradições da tribo de Benjamin.
Essas façanhas são agora atribuídas a Josué, pessoa
CO/AENTÁRIO
PARTE I: A CONQUISTA DE CANAA
Js 1,1-12,24
1.1- 2,24 Preparativos. O livro começa com oas instruções do S enhor, Josué agora dá ordens para
relato dos preparativos para a entrada na terra de
Canaã. Primeiro, há a investidura de Josué pelo
S enhor (1,1-9), seguida das ordens de Josué ao povo
(1,10-18) e do envio de espiões ao outro lado do rio,
a fim de fazer o reconhecimento da terra, especial­
mente de Jerico (2,1-24).
1.1- 9 Investidura de Josué. Como todo o capí­precisasse cumprir esse decreto.
tulo 1, essa passagem vem da mão do historiador
deuteronômico (doravante D) e forma a transição
da morte de Moisés (cf Dt 34) à conquista da terra.
A passagem retoma e desenvolve a investidura ori­
ginal de Josué em Dt 31. Em estilo de sermão, a
passagem segue a fórmula da investidura divina de
uma pessoa em função pública: descrição da tarefa
a ser desempenhada, manifestação de encoraja­
mento e a certeza da ajuda divina. Josué é apresen­
tado como sucessor de Moisés com a ordem de
completar seu trabalho.
A tarefa dada a Josué é conduzir o povo à ferra
que o S enhor dá aos israelitas. Desde o início (v. 2), Moisés para Josué.
fica evidente que a terra é uma dádiva do S enhor ao
povo; não é algo que o povo conquistou. A conces­
são dessa dádiva é a realização da promessa feita a
Moisés (v. 3). A descrição das fronteiras da terra no
v. 4 é a mais abrangente descrição da terra encontra­
da na Bíblia. Há três pontos fixos nesta descrição:
0 “deserto”, que se refere ao Négueb no sul e à
região a leste do rio Jordão; o “Eufrates”, que descre­ patível com a dos capítulos 1 e 3. O capítulo 1 fala
ve a fronteira setentrional, e o Grande Mar, que
descreve o Mediterrâneo no oeste. Como definida
aqui, a terra incluía a região do Líbano a noroeste
e quase toda a Siria de hoje e de então. Entretanto,
essas fronteiras nunca foram realidade. A única oca­
sião em que Israel começou a ter essas fronteiras ex­
tensas foi no tempo de David e Salomão, no século
X. Josué conseguirá realizar a promessa graças à
presença do S enhor junto a ele (v. 5).
Embora a terra seja uma dádiva do S enhor, os
vv. 6-9 insistem na necessidade de Israel ser “forte
e corajoso”, isto é, observar tudo que está escrito
na Lei, a fim de obter a posse da terra. Em outras
palavras, a desobediência de Israel pode frustrar as
promessas divinas. Tudo isso é mensagem impor­
tante para os exilados, que ouvem nesta passagem
a razão da perda da terra (sua desobediência) e as
condições para reconquistar a terra (obediência à
JOSUÉ 2
bem conhecida, que foi ativo quer na ação militar,
quer na resolução de conflitos na região montanhosa
central da Palestina.
Lei, c o n fia n ça no S enhor e as prom essas de p re ­
sença do S enhor).
1,10-18 Ordens de Josué ao povo. Recebidas
que o povo prepare provisões, porque em três dias
deve marchar e tomar posse da terra que o S enhor
lhes dá (vv. 10-11). Observe que a conquista é des­
crita como uma coisa pacífica, quase uma procis­
são religiosa. É como se o S enhor já tivesse decre­
tado que Israel possuiría a terra e agora o povo só
Nos vv. 12-15, Josué lembra às tribos que já se
estabeleceram na região a leste do rio Jordão a or­
dem de Moisés (cf Dt 3,12-20): todos os guerreiros
dessas tribos devem ajudar os irmãos a se estabele­
cer na terra além do Jordão, antes de voltarem a
sua terra. A conquista deve ser vista como um em­
preendimento unificado por parte de Israel.
Os vv. 16-18 apresentam a resposta das tribos
transjordanianas. Farão tudo que Josué prescreveu,
pois têm certeza de que o S enhor estará com ele
(vv. 16-17). O principal propósito desses vv. é mos­
trar a aceitação da transferência da liderança de
2,1-24 Patrulha de reconhecimento de Jericó.
O leitor atento notará imediatamente a tensão entre
esse capítulo e o material dos capítulos 1 e 3. Pri­
meiro, agora se afirma que o local do acampamento
israelita é em Shitim, provavelmente a Abel-Shitim
mencionada em Nm 33,49.
Segundo, a cronologia deste capítulo é incom­
de três dias como intervalo entre as ordens de Josué
ao povo e a verdadeira entrada na terra (cf. o v. 11).
Entretanto, o capítulo 2 diz que os espiões passaram
três dias na montanha antes de voltar ao acampa­
mento israelita (2,22), sem mencionar o tempo gasto
de ida e volta a Jericó. Além disso, os w. 1 e 2 do
capítulo 3 parecem a seqüência direta de 1,18.
Por fim, nesta narrativa encontramos um estilo
diferente daquele do material dos capítulos 1 e
3. Tudo isso significa que esta história é, sem dú­
vida, uma inserção mais tardia na narrativa. De
fato, há indicações de que a história de Rahab é
muito antiga e talvez remonte à época anterior a
David. Parece que D usou a história como a en­
controu, com a possível exceção da profissão de
fé de Rahab nos w . 9-11, profissão que reflete
temas deuteronômicos (cf. com Dt 26,5b-9 e Js
24,2b-13). 219
 JO SUÉ 3
Na forma original, a história de Rahab e dos
espiões era provavelmente um conto etiológico, isto
é, uma narrativa que explica algo a partir da histó­
ria de suas origens. A história explicou a sobrevi­
vência da família canaanita de Rahab no meio dos
israelitas depois da conquista. No contexto atual,
entretanto, o interesse do autor está na profissão
de fé de Rahab, por meio da qual ele enfatiza que
o S enhor é o responsável por tudo que está prestes
a acontecer. Aquele que é Deus lá em cima nos
céus e aqui embaixo na terra deu a terra a Israel e,
com poder, agora os conduzirá à terra. D está ten­
tando instilar esperança nos exilados, lembrando­
-os de quem seu Deus é. Se o S enhor agiu assim no
passado, então esse mesmo Senhor agirá agora com
poder em beneficio deles.
3.1- 5,12 A travessia do Jordão. Depois de
tratar dos preparativos para entrar na terra, o autor
narra a travessia do Jordão. Nesta seção encontra­
mos uma série de eventos carentes de unidade inter­
na, mas unidos pela preocupação com a travessia
e com a arca da aliança. É o único lugar em que a
arca é mencionada na narrativa da conquista. A
travessia divide-se em três passagens: preparativos
(3,1-13); travessia (3,14-17); construção do memo­
rial (4,1-9); término da travessia (4,10-18) e o acam­
pamento cultuai em Guilgal (4,19-5,12).
3.1- 13 Preparativos. Esta narrativa, junto com
a da travessia, apresenta o acontecimento como uma
solene procissão litúrgica. É mais do que provável
que a história se tenha desenvolvido como recons­
tituição cultuai e memorial da travessia do Jordão.
O autor tomou essa liturgia antiga e a usou como
esboço para a história, principalmente para mostrar
que era o Deus vivo o responsável por conduzir
Israel à terra (vv. 10-11). Mais uma vez, aqui está
importante mensagem para os israelitas, a saber,
que o S enhor é poderoso e pode conduzir os exi­
lados de volta à terra, como outrora conduzira o
povo à terra.
O texto dos vv. 1 e 2 resulta mais de 1,18 do
que do capítulo 2. Os w . 2-6 indicam ser o S enhor
quem conduz o povo. A arca é sinal da presença do
S enhor. A distância que o povo deve manter da arca
enfatiza o respeito que se deve mostrar ao Senhor.
O convite à santificação no v. 5 brota da idéia de
que 0 povo está prestes a experimentar maravilhas
realizadas pelo S enhor, isto é, ações extraordinári­
as. Essa intervenção divina exige adequada prepa­
ração humana. Envolvidas nessa santificação estão
uma série de ritos de purificação e a abstinência de
toda atividade sexual e de certos alimentos (cf. Ex
19,10-15; Nm 11,18; Js 7,13).
O V . 7 apresenta o propósito da ação que se
seguirá: é exaltar Josué à vista de todo o Israel e
confirmar seu papel como sucessor de Moisés. O
que vai acontecer mostrará a presença do S enhor
junto a Josué. O sermão de Josué nos w . 10-13 de-
220 clara quem é responsável por aquilo que está pres­
tes a acontecer — o Deus vivo que é Senhor de
toda a terra. E esse S enhor que parará as águas
para que o povo possa atravessar. O v. 10 relaciona
a população nativa da terra de modo estereotipado;
os canaanitas encontram-se nas cidades costeiras;
os hetitas, em pequenas colônias aqui e ali; os hi-
vitas, ao redor de Siquém e Guibeon; os emoritas
habitam a região montanhosa e os iebusitas, Jeru­
salém. Não está claro quem são os perizitas e os
guirgashitas.
3,14-17 A travessia. Agora tudo acontece como
previsto. Em procissão solene, o povo segue os sa­
cerdotes que carregam a arca da aliança e, quando
as águas param, o povo atravessa. A travessia é
conscientemente apresentada como paralela à do
mar Vermelho, porque a entrada na Terra Prometida
é, em certo sentido, a conclusão do grande ato de
libertação realizado pelo S enhor, que começou com
o Êxodo. Vemos aqui como o Êxodo se transforma
no prisma pelo qual são vistos todos os grandes
atos divinos de libertação. A volta do Exílio tam­
bém será vista como novo Êxodo. Para aumentar a
sensação de milagre e da grandeza da atividade
divina, fica claro que é fim de inverno ou começo
da primavera, quando o Jordão transborda por todas
as margens por causa do derretimento da neve das
montanhas ao norte. O rio pára em “Adâm”, cida­
de situada na junção dos rios Jaboc e Jordão, alguns
quilômetros ao norte de Jericó. O mar do Sal re­
fere-se ao mar Morto. O povo atravessa em frente
a Jericó. Há muitas ocasiões conhecidas em que o
Jordão ficou represado durante horas porque suas
ribanceiras desmoronaram e formaram um dique
natural. Talvez um evento desses esteja por trás
desta história.
4,1-9 Construção do memorial. Este episó­
dio é uma inserção secundária no texto, o que se
evidencia pelo resumo em 4,10, que se reporta à
travessia em 3,14-17, e pelo interesse especial nas
doze pedras de Guilgal. Embora a verdadeira locali­
zação de Guilgal seja desconhecida, fica em algum
lugar na região de Jericó. Desde um periodo bas­
tante primitivo, era santuário nacional israelita. É
mais que provável que fosse a presença natural de
um grupo de pedras nesse santuário, mais tarde
ligadas à travessia do Jordão, que deu origem a
este episódio. Acreditava-se que as pedras eram
um lembrete físico, um memorial perpétuo (v. 7)
de como “as águas do Jordão foram cortadas dian­
te da arca da aliança do Senhor, quando ela passou
0 Jordão!” O episódio, então, originou-se como
conto etiológico, como a história de Rahab no capí­
tulo 2. Duas tradições se combinam nestes vv.: uma
que explica a presença das pedras em Guilgal (vv.
1-8) e outra que explica a presença das pedras no
meio do rio Jordão (v. 9). Não está claro de onde
veio a segunda tradição e por que ela está incluída
no V. 9.

No presente contexto, estes w . têm o propósito
de enfatizar que foi o S enhor quem conduziu os
israelitas na travessia do Jordão. Para os exilados,
é uma mensagem de esperança: esse mesmo S enhor
pode conduzi-los de volta à terra. A explicação das
doze pedras no v. 17 é o ponto central de todo o
conjunto de dados de 3,1-5,12. A inclusão deste
episódio pode também ser uma tentativa de mais
íntima assimilação da travessia do Jordão à tradição
do evento do Êxodo-Sinai (cf com as doze pedras
para as doze tribos de Israel que comemoram a
aliança no Sinai em Ex 24,4).
4,10-18 Término da travessia. Embora estes
vv. estejam embaralhados, há neles certa lógica. O
estado em que o texto se encontra é conseqüência de
que diversos redatores lidaram com os vários assun­
tos. Depois da inserção de 4,1-9, o v. 10, resumindo
3,14-17, faz o leitor voltar à narrativa principal. O
V. 11 é um resumo adiantado da saída da arca do rio.
Na procissão litúrgica, depois de atravessar o rio a
salvo, o povo agora faz fila para testemunhar a saí­
da da arca do rio.
Os vv. 12-13 são uma adição por D, que deseja
enfatizar aqui, como em 1,12ss., que todas as tri­
bos de Israel estavam envolvidas — até mesmo as
que receberam terra a leste do Jordão. O número
quarenta mil é, com certeza, exagero. Talvez a so­
lução seja que a palavra que pode ser traduzida
como “mil” também pode ser usada como termo
técnico para indicar uma unidade militar de tama­
nho considerável.
O V. 14 volta a 3,7 e salienta o propósito prin­
cipal dessa travessia milagrosa, a saber, exaltar Josué
diante de todo Israel. Esse propósito foi alcançado
pelo grande milagre; dali em diante, o povo respei­
tou Josué como havia respeitado Moisés. Depois de
alcançados todos os objetivos do milagre, os sacer­
dotes saem agora do rio e, assim que chegam em
terra firme, o Jordão retoma seu curso e mais uma
vez inunda as margens.
4,19-5,12 Acampam ento cultuai em Guilgal.
Com a travessia do Jordão, um período da vida de
Israel está prestes a terminar e outro prestes a co­
meçar. Com a ênfase em vários ritos cultuais em
Guilgal, esta seção forma a transição desde o perío­
do de libertação até a ocupação da terra. A seção
apóia-se em dois eventos cultuais que se reportam
explicitamente à libertação do Egito: a colocação
das pedras em Guilgal (4,20-24) e a celebração da
Páscoa (5,10-12). A narrativa em 5,1 mostra o im­
pacto sofrido pelos habitantes da região com a en­
trada de Israel na terra. A circuncisão de todos os
israelitas do sexo masculino, relatada em 5,2-9, deve
preparar para a celebração da Páscoa.
O cenário é montado em 4,19. A data é o déci­
mo dia do primeiro mês, conhecido como nisan. É
a época da colheita, março-abril. A data é impor­
tante, tendo em vista a celebração da Páscoa, que
está próxima. O lugar onde o povo acampa depois
JOSUE 4
de atravessar o Jordão é identificado de forma
explícita pela primeira vez: Guilgal, aqui localiza­
do nos limites orientais de Jericó.
Na história das pedras memoriais (4,20-24), o
que importa é a explicação do significado das pe­
dras. Observe a comparação explícita da secagem
das águas do Jordão com a secagem do mar Verme­
lho (veja Ex 14,21). Os dois eventos proporcionam
os pontos de início e fim do período de libertação.
Com a entrada na terra, Israel alcançou o objetivo
para o qual foi libertado do Egito (cf. Ex 3,8). O
propósito das ações do S enhor é explícito: que
todo o povo da terra conheça o poder de Deus e
que os israelitas temam o S enhor. É mensagem
importante para os exilados; em meio à dor, devem
depositar esperanças no poder de seu Deus e dedi­
car-se inteiramente ao S enhor que liberta.
O objetivo de 5,1 é mostrar que o propósito do
Senhor foi alcançado entre os reis na terra de
Canaã. Reconheceram o poder do S enhor nos acon­
tecimentos da travessia e “perderam o alento”, lite­
ralmente “sua coragem se dissolveu”. A mesma ex­
pressão é usada por Rahab (2,10-11) e em Ex 15,13­
17, que narra os resultados do Êxodo. Mais uma
vez, o autor põe em paralelo a travessia do Jordão e
a do mar Vermelho.
A história da circuncisão em 5,2-9 está aqui por
razões antes teológicas que históricas. Ex 12,48 ex­
plica que somente os circuncisos podem tomar parte
na celebração da Páscoa. Entretanto, por alguma
razão (o texto não dá nenhuma), os meninos nasci­
dos no deserto durante os quarenta anos de cami­
nhada depois da saída do Egito não tinham sido cir-
cuncidados. Por isso, para a celebração apropriada
da Páscoa, agora a circuncisão é necessária. A refe­
rência à circuncisão acontecendo “novamente” (v. 2)
pretende mostrar a circuncisão e a celebração da
Páscoa em Guilgal, como repetição dos ritos em
tomo do Êxodo (cf Ex 12). O lugar do ritual cha­
ma-se colina dos Prepúcios, referindo-se a um local
perto de Guilgal onde foi praticado o rito da circun­
cisão. Observe a necessidade que D tem de expli­
car a razão da morte de todos os guerreiros que
haviam saído do Egito (cf Nm 14), provavelmente
para explicar aos exilados a razão de terem per­
dido a terra, a saber, por causa de sua desobediên­
cia. No V. 9, é feita uma tentativa para explicar o
nome Guilgal. O lugar recebeu esse nome porque
ali o Senhor “removeu”, literalmente “fez rolar para
longe”, 0 opróbrio do Egito. Um dos significados
da raiz da palavra gilgol é “fazer rolar para longe”.
Não está claro o que se deve entender por “opróbrio
do Egito”.
A seção conclui com a celebração da Páscoa
(vv. 10-12), festa que celebra o Êxodo. O décimo
quarto dia do primeiro mês era a data apropriada
para essa celebração (cf Ex 12,1-6). Assim como
o Êxodo começou com a celebração da Páscoa,
também a entrada na terra, que conclui esse perío- 221
 JO SUÉ 5
do de libertação, termina com a mesma celebração.
No dia seguinte, o povo come produtos da terra e,
com esse acontecimento, o maná (cf. Ex 16 e Dt
8,3) cessa, pois já não há necessidade dele. É, na
verdade, o fim de uma era.
5.13- 12,24 A conquista. Esses capítulos con­unir a história da queda de Jericó à história de Rahab
têm a narrativa da conquista: a conquista da parte
central da terra (5,13-9,27), a da parte meridional
(10,1-43) e a da parte setentrional (11,1-15). Os
vv. finais (11,16-12,24) apresentam um resumo.
5.13- 9,27 A conquista da Palestina central. como referência ao templo de Jerusalém, que ainda
Estes capítulos narram a tomada de Jerico (5,13-6,
27), a derrota e a vitória em Ai (7,1-8,29), o altar
no monte Ebal (8,30-35) e a aliança com os guibeo-
nitas (9,1-27).
5.13-
6,27 A tom ada de Jericó. A história co­
meça com a aparição de um ser divino que lembra
Ex 3, a vocação de Moisés. Josué deve ser visto
como o novo Moisés. Embora seja provável que o
material de 5,13-15 pertencesse originalmente a
uma epopéia independente, agora forma uma uni­
dade com 6,1-5, que fala da proclamação do S enhor
sobre a queda de Jerusalém e de suas instruções
sobre a forma como a cidade deve ser tomada. A
presença do chefe do exército do S enhor mostra a
presença do S enhor na conquista, desde o início.
Como 6,2 revela, o S enhor é o responsável pela
queda de Jericó. Em geral, as trompas feitas de
chifre de carneiro (6,4) eram usadas em guerras e
liturgias.
A evidência arqueológica mostra que Jericó já
estava em ruínas quando os israelitas entraram em
Canaã. As moradias de Tell-es-Sultan, local identi­
ficado como Jericó, eram escassas na época da con­
quista. O que deu origem à crença de que fora des­
truída durante a conquista foi o fato de ter estado
em ruínas no período dos Juizes e até o período da
monarquia. Por estar perto do santuário nacional
de Guilgal, surgiu a pressuposição de ter sido des­
truída sob Josué. Historicamente, não é possível
dizer o que está por trás dessa narrativa.
A narrativa do capítulo 6 é bastante complicada
e parece ter passado por diversas redações. Em sua
forma final, a história tem as características de um
ritual religioso, uma liturgia. D quer salientar aos
exilados que o S enhor foi responsável pela conquista
da terra e que esse mesmo Senhor pode mais uma
vez levá-los à vitória. Este primeiro sucesso em
Canaã assume um valor simbólico do poder do Se­
nhor. O múltiplo uso do número sete, número sagra­
do em Israel, representa a presença do S enhor nesta
narrativa.
Depois de receber instruções do S enhor sobre
como realizar a conquista de Jericó, Josué as trans­
mite para o sacerdote e o povo. Essas ordens são
executadas e a cidade cai diante dos israelitas (6,12­
21). A questão do “interdito” nos w. 17ss. é que,
como o S enhor é o guerreiro e o vencedor, o inimi-
222 go e os despojos pertencem a ele. Assim, são sagra­
dos e invioláveis. Chegar perto demais é aproxi­
mar-se demais de Deus. Destruí-los é ato de devo­
ção ao S enhor.
Aliados à referência a Rahab no v. 17, os w.
22,25 são provavelmente uma adição para ajudar a
no capítulo 2. Eles concluem a etiologia iniciada no
capítulo 2 que explica a presença de Rahab e sua
família no meio de Israel. A menção ao tesouro da
Casa do S enhor no v. 24 muitas vezes é entendida
não fora construído! E mais provável que se refira
a Guilgal.
A narrativa da queda de Jericó parece trazer
lembranças de uma conquista militar por meio de
um estratagema (6,1.20.21.25). Podem bem ser anti­
gas lembranças da queda original da cidade. A mal­
dição relatada em 6,26 explica por que a cidade
não foi reconstruída, e é cumprida em IRs 16,34.
(Um desses textos depende do outro, mas não está
claro qual deles é o dependente.)
7,1-8,29 Derrota e vitória em Ai. O material
dos capítulos 7 e 8 compõe-se de, no mínimo, duas
narrativas que foram combinadas, provavelmente no
tempo de D. A história principal falava de uma
derrota original de Israel em Ai. A ela foi combina­
da uma antiga história do crime e castigo de Akan,
a fim de dar uma explicação para a derrota. A única
dificuldade com a narrativa agrupada é que, na época
da conquista israelita. Ai (hoje identificada como
et-Tell) era desabitada. A evidência arqueológica
mostra que a cidade foi habitada pela última vez no
fim do terceiro milênio e ocupada novamente apenas
no século XI. Várias teorias foram desenvolvidas
para explicar essa narrativa. Uma teoria proeminente
diz que a história originalmente descrevia a queda
de Betei, que está a apenas alguns quilômetros de
distância, e depois foi ligada às ruínas em et-Tell. A
base para essa teoria é a evidência arqueológica,
que mostra que Betei foi destruída lá pelo fim do
século XIII. Entretanto, não está claro que essa
destruição se deveu aos israelitas. Embora a verda­
deira fonte da história seja desconhecida, é evidente
que ambas as narrativas são bem antigas. Como
veremos, o objetivo principal das narrativas reuni­
das é mostrar aos exilados que a transgressão da
aliança leva à derrota e à destruição, enquanto a fé
e a obediência conduzem à vitória.
O autor começa (7,11) com a explicação de
que 0 S enhor estava irado com Israel porque Akan
transgredira o interdito (cf 6,18); por isso, a der­
rota que estava para vir não deveria causar surpre­
sa. Aqui é introduzida a idéia da culpa coletiva,
isto é, como todo o povo podia sofrer por causa do
pecado de uma única pessoa.
Observe que os w . 2-3 nada dizem sobre o
envolvimento do Senhor. Tudo está sendo feito pela
iniciativa de Israel. Por isso, quando Israel ataca, é
derrotado e a coragem do povo se dissolve (7,4-5).

A palavra usada aqui para “mil” provavelmente re­
fere-se a um contingente militar de certo tamanho.
Junto com os anciãos, Josué agora consulta o
S enhor (7,6-9). A verdadeira preocupação de Josué
é expressa no v. 9, a saber, que quando os outros
habitantes da terra souberem da derrota voltem-se
contra Israel. Os ritos descritos nesses vv. referem-
-se ao ritual do luto (cf. Dt 9,26; Ex 32,11; 2Sm
12,15-17). A passagem relembra as queixas de
Israel no deserto contra Moisés e o S enhor (cf.
Ex 16,2-8).
Na resposta do S enhor (7,10-15), Josué fica
sabendo a razão da derrota, isto é, que Israel tomou
o que era interditado e, assim, transgrediu a aliança.
Israel está agora sob o interdito e o S enhor não pode
e não quer permanecer com Israel, a não ser que ele
elimine de seu meio aquele que incorreu no interdi­
to. O procedimento legal descrito (7,14) é o do julga­
mento pela sorte sagrada, embora não sejam dados
detalhes do procedimento. Os vv. expressam clara­
mente a idéia de que a comunidade toda pode sofrer
pelos pecados de uma única pessoa.
Depois da identificação de Akan como culpa­
do, ele e todos os seus bens são levados ao vale de
Akor e apedrejados, e a ira do S enhor contra Israel
se aplaca (7,16-26). Os vv. finais apresentam duas
etiologias como explicação da história de Akan.
Uma delas explica um montão de pedras no vale
de Akor (7, 26); a outra, o nome do vale de Akor
(7,24.26). Esta última etiologia desenvolve-se por
meio de um jogo com as palavras “Akor” e “Akan”
e pelo fato de a raiz hebraica para “desgraça” e
“aflito” (cf. 7,25) ter som semelhante a “Akor”.
Mais importante, entretanto, o propósito da história
é explicar aos exilados que a transgressão da alian­
ça leva à derrota.
Agora que a ira do S enhor contra Israel foi
aplacada, o S enhor diz a Josué que se prepare para
atacar Ai. Note que, em contraste com o capítulo
7, a vitória é assegurada (8,1), porque é o S enhor
que conduz Israel no combate. Portanto, Israel não
deve temer; deve apenas ser obediente e destruir
Ai, como destruiu Jerico (8,2). Entretanto, agora
os Israelitas são autorizados a tomar o butim e o
S enhor estabelece as linhas gerais da conquista —
deve ser por meio de uma emboscada.
Josué, então, dá instruções aos guerreiros que
devem preparar a emboscada (8,3-8) e eles vão as­
sumir suas posições (8,9). Observe-se mais uma vez
a certeza de que os israelitas vão se apoderar da
cidade, porque o S enhor entregou-a nas mãos deles
(cf 8,1).
Os w . 10-23 descrevem o combate. Quando a
maior parte dos israelitas fugiu outra vez em apa­
rente derrota diante do rei de Ai, todos os soldados
de Ai saíram atrás deles, deixando a cidade aberta
e desprotegida. Quando Josué, seguindo as ordens
do S enhor, estende o dardo em direção de Ai, os
soldados que estavam de emboscada se levantam e
JOSUÉ 9
tomam a cidade, ateando-lhe fogo. Quando os sol­
dados de Ai percebem o que está acontecendo, é
tarde demais. Vêem-se presos entre os dois grupos
do exército dos israelitas, e são eliminados até a úl­
tima pessoa. Somente o rei de Ai é poupado e con­
duzido vivo a Josué. O ato de Josué estender o dardo
(8,18.26) lembra a ação de Moisés durante a guerra
contra Amaleq (cf. Ex 17,8-13). Parece ser outro
incidente onde a vida de Josué é posta em paralelo
com a vida de Moisés.
A história conclui (8,24-29) com o relato da
execução de todos os habitantes de Ai (veja Dt
20,16-18), a tomada do butim e a destruição da ci­
dade. Estes vv. finais contêm outra dupla etiologia
que explica como tudo foi transformado em ruína
“que ainda hoje existe” (explicação do nome da ci­
dade, “a ruína”) e como surgiu o montão de pedras
na entrada da cidade — foram usadas para cobrir
o cadáver do rei de Ai.
Em contraste com o capítulo 7, o capítulo 8
mostra como Israel é vitorioso quando luta sob a
liderança do Senhor e faz a vontade do S enhor. A
mensagem para os exilados é clara; o pecado leva
à derrota e a obediência conduz à vitória.
8,30-35 O altar no monte Ebal. Esses vv. são
uma adição dos redatores, pois interrompem o fluxo
da narrativa em 8,29 e 9,1. Os vv. relatam o cumpri­
mento das ordens de Moisés (cf. Dt 27,1-8.11-13;
11,29) a respeito do que vai acontecer depois que
o povo entrou na terra. Note a referência a Moisés
muitas vezes repetida nestes vv. que, como veremos
mais adiante, se relacionam estreitamente com o
material do capítulo 24.
Os montes Ebal e Garizim defrontam-se dos
dois lados de uma profunda ravina no norte do
Israel central, cerca de trinta quilômetros ao norte
de Ai. Entre eles está a cidade de Siquém, antigo
lugar de culto. Essas duas montanhas flanqueavam
o importante desfiladeiro que cortava de leste a
oeste a região montanhosa central de Israel.
9,1-27 Aliança com os guibeonitas. As duas
narrativas dos vv. 1-2 e 3-27 mostram as possíveis
reações de um povo ameaçado de destruição total;
formar uma aliança comum contra a ameaça ou
fazer uma aliança com quem o ameaça.
A referência (v. 1) à região montanhosa, à Bai­
xada e ao litoral do Grande Mar identifica as três
regiões (de leste a oeste) da terra da Palestina.
A narrativa sobre os guibeonitas nos w. 3-27
reflete uma história literária complexa. Além das adi­
ções mais tardias de D, nos vv. 9-10, 24-25 e 27b,
a figura de Josué parece ter sido uma inserção secun­
dária no texto e os vv. 16-27 parecem ser uma adi­
ção secundária à história original (é possível pular
de 9,15 para 10,1, sem nenhuma sensação de hiato).
Não está claro se apenas uma ou quatro cidades (cf
o V. 17) fizeram aliança com Israel; também nem
sempre está claro quem agia por Israel —- os “filhos
de Israel” ou Josué. 223
 JO SU E10
Como a história de Rahab (cf. o cap. 2), essa
é uma etiologia preservada para explicar a presença
dos guibeonitas no meio de Israel, apesar das proibi­ ma outros quatro reis da vizinhança para ajudá-lo a
ções de Dt 20,10-18, e seu papel como servos (le­
nhadores e aguadeiros) em um santuário israelita.
A história também explica como Israel assumiu o
controle da região montanhosa central e serve de
base para o capítulo 10. Para os exilados, no século
VI, o propósito da história teria sido chamá-los à
fé no poder e nas promessas do S enhor (cf. os w .
9-10; 24-25). Não há dúvida sobre a historicidade
de uma aliança entre Israel e os guibeonitas (cf.
2Sm 21,1-9).
A primeira parte da narrativa (w. 3-15) relata
a trapaça dos guibeonitas e a conclusão da aliança.
Guibeon identifica-se com a el-Jib atual, localidade
na região montanhosa central, cerca de onze quilô­
metros a noroeste de Jerusalém e situada ao longo
de importante estrada leste-oeste de Jerico à planície coberto cerca de trinta quilômetros ao longo de ca­
costeira. Aparentemente, Guibeon pertencia a uma
pequena aliança de quatro cidades (cf o v. 17).
Qualquer que fosse a povoação existente em el-Jib
na época de Josué, a evidência arqueológica mostra
que não era grande, embora mais tarde se tornasse
cidade importante.
Os guibeonitas foram ter com Israel em Guilgal
(v. 6), para onde Israel voltou depois da cerimônia
de aliança relatada no capítulo anterior. A hesitação montanhosa.
de Israel a respeito da aliança proposta (v. 7) brota
de Dt 7,2; 20,10-18, A aliança teria incluído a paz
entre as duas partes e também a defesa mútua (cf
10,1-15). A razão dada para a busca dessa aliança
é a fama do S enhor, o Deus de Israel, e tudo que
esse Deus fizera por Israel no Egito e contra os
reis Sihon e Og (cf Nm 21,21-35). Sem procurar
os conselhos do S enhor, Israel concorda com a
aliança e as partes compartilham uma refeição de
aliança para selá-la (vv. 14-15).
A segunda parte da narrativa (vv. 16-27) relata
a descoberta do estratagema e a reação de Israel.
O juramento era tão importante que nem a desco­
berta da trapaça foi razão suficiente para livrar
Israel de suas obrigações. Entretanto, os guibeonitas tos, Josué não quer perder tempo com eles. Depois
devem ser castigados, por isso recomenda-se que
se tornem “lenhadores e aguadeiros” (vv. 16-21),
expressão que se refere a uma forma inferior de
participação na comunidade (cf Dt 29,10). Josué
chama os guibeonitas e lhes diz que devem desem­
penhar suas tarefas “para a casa do meu Deus” (v.
23). Não está claro se aqui a referência é a Guibeon
ou a Guilgal. A resposta dos guibeonitas parece
refletir o conhecimento de Dt 20,10-18.
10.1- 43 A conquista do sul. Em uma série de o objetivo da história é desenvolver a confiança
incidentes relacionados, Josué assume o controle
da parte meridional de Israel. A oportunidade para
essa conquista é o ataque a Guibeon pelos cinco
reis do sul.
10.1- 27 A cam panha de Guibeon. leva
224 Adoni-Sédeq, rei de Jerusalém, ouve falar de como
Josué lidou com Ai e Jerico e seus reis e que Guibeon
fez uma aliança com Israel, fica atemorizado e cha­
atacar Guibeon (w. 1-4). O medo brota da força de
Guibeon e porque esta cidade passou para o lado de
Israel, dando-lhe importante cabeça de ponte na re­
gião montanhosa central. Assim, os cinco reis cercam
Guibeon, como meio de impedir o avanço de Israel
na região montanhosa e como castigo. A Guibeon
do capítulo 10, “cidade grande, tanto quanto as cida­
des reais” (v. 2), contrasta com a Guibeon do capí­
tulo 9, tão fiaca que buscou uma aliança com Israel.
O quadro apresentado no capítulo 10 também está
em desacordo com a evidência arqueológica. Quando
os guibeonitas apelam para seu protetor, Josué, este
responde imediatamente e, depois de marchar toda
uma noite, ataca os cinco reis de surpresa e inflige-
lhes uma grande derrota (vv. 5-10). A marcha teria
minhos montanhosos. Observe que Josué é vitorioso
porque o Senhor entregou os cinco reis em seu poder
(v. 8). As grandes pedras de granizo mencionadas
no V. 11 resultaram, sem dúvida, de uma tempestade
de verão excepcionalmente rigorosa que provocou
tantos estragos quanto o exército de Israel. Bet-Horon
era o nome de importante desfiladeiro, um dos prin­
cipais pontos de entrada no lado oriental da região
Qs vv. 12-14 não devem ser tomados ao pé da
letra. Com certeza, o compilador entendeu-os como
descrição de um milagroso prolongamento do dia,
para que Josué tivesse luz do sol suficiente para
liquidar o inimigo. Entretanto, devemos ver esses
vv. como descrição poética que enfatiza o fato de
o S enhor ter lutado por Israel e ser responsável
pela vitória. Grande parte dessa história está rela­
tada em Jz 1,4-20, onde consta que três das cida­
des aqui relacionadas foram tomadas pela tribo de
Judá.
Qs vv. 16-27 descrevem a morte dos cinco reis
que iniciaram o ataque a Guibeon. Maqedá ficava
a oeste de Jerusalém. Quando os reis são descober­
de se certificar que não podem fugir, Josué manda
seus homens perseguir os soldados em fuga e ma­
tá-los antes que fujam para suas cidades fortifica­
das (vv. 16-19). A humilhação posterior dos reis
(v. 24) teve o propósito de desenvolver a confiança
de Israel e enfatizar o poder do S enhor em seu
meio. A história termina com uma nota etiológica
que explica a existência de um monte de pedras na
entrada de uma gruta em Maqedá (v. 27). Assim,
dos exilados no poder de seu Deus para vencer os
inimigos (cf. vv. 8-14.25).
10,28-43 Conclusão da conquista do sul.
Depois de derrotar a coalizão dos cinco reis, Josué
Quando
avante essa vitória com ataques de surpresa
contra seis cidades a oeste e sudoeste de Jerusalém

(vv. 28-29). As descrições desses ataques seguem
um padrão definido que relata como a cidade foi
tomada e seus habitantes passados a fio de espada,
sem deixar um sobrevivente sequer. Dessa manei­
ra, Josué realiza a destruição de cada cidade con­
forme a vontade do S enhor (Dt 20,10-18). Israel
foi bem-sucedido porque o S enhor entregou as
cidades em seu poder.
Não é possível harmonizar completamente a
descrição da coalizão nos vv. 1-5 ao relato da cam­
panha contra o sul descrita nesses vv. Embora haja
certa sobreposição de cidades, os vv. 28-39 pare­
cem refletir uma tradição diferente da dos vv. 1-5.
O que parece estar por trás deles é a pressuposi­
ção de que, ao avançar contra Jerusalém em diferen­
tes ocasiões da história, os inimigos de Israel se­
guiam sempre a mesma rota. Foi a rota de Senaque-
rib em 701 a.C. (cf. 2Rs 18,13) e de Nabucodonosor
em 587 a.C. (cf. Jr 34,7), quando avançaram sobre
Jerusalém.
Os vv. finais (40-43) resumem esta parte da
conquista. O propósito do autor é mostrar que Israel
conquistara todo o território ao sul de Guibeon sob
a liderança de Josué. A descrição é muito exagerada
e 0 autor usa o resumo para enfatizar como Josué
seguira as ordens do S enhor e alcançara o sucesso
porque o Senhor lutou por Israel. Mais uma vez,
para os exilados a mensagem é clara; devem ser
obedientes e confiar no poder do S enhor.
11,1-15 A conquista do norte. O capítulo co­
meça repentinamente sem nenhuma ligação clara
com o material precedente, exceto que o rei de
Hasor “soube disso”. E provável que, originalmente,
este material fosse uma tradição independente;
agora é apresentado como o equivalente setentrional
da conquista do sul relatada no capítulo 10. Essa
tradição pode ter pertencido a uma ou mais tribos
do norte e depois se estendido a todo o Israel. As­
sim, também, a figura de Josué foi provavelmente
introduzida na história de forma suplementar. En­
tretanto, a tradição parece se basear em um funda­
mento histórico. Note que esse capítulo segue o
mesmo esboço do capitulo 10: um rei forma uma
coalizão para derrotar os israelitas, mas Josué a der­
rota com um movimento de surpresa e ataca as ci­
dades envolvidas.
A narrativa começa com labin, rei de Hasor,
formando uma coalizão de reis do norte. Observe
como a descrição começa com detalhes específicos
e depois fica cada vez mais vaga. Todos os mem­
bros da coalizão, com tropas, cavalos e carros, reú­
nem-se perto das águas de Merom, alguns quilô­
metros a sudoeste de Hasor, para lançar um ataque
contra Israel (vv. 1-5). A topografia desses capítu­
los abrange a região da Galiléia em geral, mais
tarde designada à tribo de Neftali. Escavações ar­
queológicas mostram que, no século XIII a.C.,
Hasor, localizada cerca de doze quilômetros ao
JO SU E11
norte do mar da Galiléia, era uma cidade magnífi­
ca e bem podia se encaixar na descrição que dela
fazem esses vv. As escavações mostram também
que foi destruída em meados do século XIII, o que
podería coincidir com a época de Josué. As outras
três cidades aqui citadas localizam-se ao sul de
Hasor. A Arabá é a grande fenda que contém o
mar da Galiléia (aqui chamada “Kinéret”), o rio
Jordão e o mar Morto. O tamanho do exército ini­
migo está, sem dúvida, exagerado, para engrande­
cer a vitória.
Israel foi bem-sucedido contra a coalizão por­
que o S enhor entregou os canaanitas em seu poder
e porque Josué obedeceu o S enhor, seguindo a tá­
tica estabelecida para ele (vv. 6-9). Observe que
nada é dito sobre onde Josué recebeu a palavra do
S enhor. Pelo contexto, parece que ainda estava em
Guilgal. A mutilação dos cavalos impediu os ca­
naanitas de usar seus carros, em seguida queimados.
Então os canaanitas tiveram de fugir a pé, o que
permitiu a vitória de Israel. Como Israel só come­
çou a usar carros no tempo de David e Salomão,
é duvidoso que tivessem conseguido derrotar um
exército equipado com carros.
A razão das ações de Josué contra Hasor é que
este fora o principal de todos esses reinos (vv.
10-12). Por trás da observação sobre Israel não ter
queimado nenhuma das outras cidades “que se er­
guiam sobre suas colinas” (v. 13) está um lembrete
que Israel não possuía nem a força nem o conheci­
mento técnico para derrotar os exércitos de carros
dos canaanitas. A extensão da destruição descrita
nestes w . é, portanto, provavelmente exagerada.
Essa seção conclui com um resumo a respeito
da obediência de Josué: ele fez tudo que o S enhor
ordenara a Moisés (v. 15). A mensagem aos exilados
é reiterada: a necessidade de obediência ao S enhor
e confiança em seu poder. Com tal confiança, a
vitória é possível.
11.16- 12,24 Resumo da conquista. A conquis­
ta se encontra agora resumida por dois textos se­
parados. O sumário em 11,16-23 era o original re­
sumo e conclusão da narrativa. O capítulo 12, com
a lista de reis conquistados, foi inserido mais tarde.
11.16- 23 Sumário redatorial. Estes vv. vêm do
compilador original das histórias da conquista. O tema
básico, estabelecido em nos vv. 16 e 23, é que Josué
“tomou aquela terra” . Assim, o S enhor cumpriu
todas as promessas feitas a Moisés (cf. Js 1,1-9). A
descrição da terra conquistada (vv. 16-17) ultrapassa
de maneira significativa a descrição nos capítulos
anteriores “de Dan a Beer-Sheba”. O monte Halaq,
que assinala a fronteira meridional, está no extremo
sul do deserto do Négueb, ao sul de Judá. Báal-Gad,
a fronteira setentrional, refere-se a um local no extre­
mo sul do vale do Líbano.
O V. 18 tenta afastar a idéia de que a conquista
foi rápida. Menciona que Israel teve de combater 225
 JO SUÉ 12
todas essas cidades porque tal era a vontade do S e­
nhor: determinara que todas as cidades, exceto
Guibeon, lutariam contra Israel e, assim, dariam mo­
tivos para ser exterminadas (cf. Dt 20,10-20).
Os w . 21-22 estão um pouco dissonantes no
contexto. Os anaquitas são descritos alhures como
“gigantes” (Nm 13,33). O redator quer mostrar que
houve pontos de distúrbio onde nem toda a popula­
ção nativa fora exterminada.
Mais uma vez, a conclusão no v. 23 salienta
que o S enhor cumpriu as promessas feitas a Moisés.
O mesmo v. forma a transição para a partilha da
terra que começa no capítulo 13. A insistência na
fidelidade do S enhor às promessas feitas a Moisés
era mensagem importante para o povo no exílio.
12,1-24 Lista dos reis derrotados. Este capi­
tulo divide-se em duas partes: uma relação dos reis
derrotados pelos israelitas sob Moisés, a leste do
Jordão (vv. 1-6), e uma relação dos reis que Israel
derrotou sob Josué, a oeste do Jordão (vv. 7-24). O
capítulo é um aperfeiçoamento de 11,23 e tem o
propósito de enfatizar que o país todo fora conquis­
tado por Israel.
O material dos vv. 1-6 foi desenvolvido de Dt
3,8-17 e Js 13,9-32. O v. 1 menciona as fronteiras
setentrional e meridional do território conquistado
a leste do Jordão, a saber, o monte Hermon no
norte e o rio Amon no sul. A metade meridional
dessa região desde o rio Amon até o rio Jaboc per­
tencera a Sihon, rei dos emoritas, que tinha a ca­
pital em Heshbon (vv. 2-3). A região ao norte do
Jaboc esteve sob o controle de Og, rei do Bashan
(vv. 4-5). Nm 21,21-35 (cf. Dt 2,26-3,11) relata a
derrota de Sihon e Og. Nm 32 relata como Moisés
designou essa terra aos rubenitas, aos gaditas e à
metade da tribo de Manassés (v. 6). Os refaítas
mencionados no v. 4 eram um povo lendário de
grande estatura que habitara a Síria e a Palestina
em tempos antigos (cf. Gn 14,5; Dt 2,11; 3,11;
2Sm 21,16-20).
A relação dos reis derrotados a oeste do Jordão
nos vv. 7-24 é uma lista muito importante porque
os w . 13b-24 contêm nomes de cidades não men­
cionadas antes. Estes últimos vv. não são simples­
mente um resumo das histórias anteriores, mas
representam uma tradição independente da conquis­
ta que alguns biblistas dizem ser muito antiga e
datar do tempo de Salomão. Os vv. 16b-24 têm
especial interesse, pois relacionam cidades encon­
tradas nos territórios de Efraim e Manassés na Pa­
lestina central, onde nenhuma conquista anterior
foi mencionada.
A impressão dada por essas listas é a de uma
conquista total da terra e essa é, quase com certeza,
a intenção do autor. O interesse do autor nos capítu­
los sobre a conquista (6-11) não foi fazer um rela­
to histórico exato, mas sim mostrar Deus cumprindo
promessas passadas por meio de grandes atos em
2 26 benefício de Israel.
PARTE II: A DIVISÃO DA TERRA
Js 13,1-22,34
13-22 A divisão da te rra. Estes capítulos con­
têm detalhes geográficos pormenorizados sobre
como a terra foi dividida entre as diversas tribos e
dão informações estatísticas sobre pessoas, lugares
e tribos. Seu propósito é mostrar como Deus deu
0 país todo a Israel como seu patrimônio, exata­
mente como prometera a Moisés (cf. 11,23). Era
mensagem importante para o público original deste
livro, os exilados, que recentemente tinham perdi­
do a terra. Para eles, o Livro de Josué promete aci­
ma de tudo que o S enhor é fiel às antigas promessas
feitas aos patriarcas.
Os dados encontrados nesses capítulos são o
resultado da combinação de diversas fontes, Martin
Noth afirma que essa parte é o resultado da com­
binação de dois documentos, uma lista de cidades
do reino de Judá, que data da época do rei Josias,
e um levantamento de fronteiras anterior à monar­
quia. Realmente, as raízes de alguns desses dados
são bem antigas, mas os capítulos refletem o im­
pacto de acontecimentos mais tardios. Esta seção
pode ter sido composta antes da redação de Josué
e pode até mesmo ser uma inserção mais tardia na
narrativa original da conquista (cf. 13,1b e 23,1b).
Embora o interesse principal destes capítulos
esteja na região a oeste do Jordão, a seção começa
com um levantamento da distribuição da terra a leste
do Jordão, que Moisés fizera às tribos de Rúben e
Gad e à metade da tribo de Manassés (13,8-33).
Conclui com a narrativa da volta dessas tribos a
seu território a fim de tomar posse dele (cap. 22).
Os capítulos 14-21 tratam da distribuição de terras
às tribos de Judá e de José em Guilgal (caps. 14—17),
da distribuição em Shilô às sete tribos restantes
(caps. 18-19) e da separação das cidades de refúgio
(cap. 20) e das cidades levíticas (cap. 21).
No material a seguir, este comentário não apre­
sentará uma análise detalhada das fronteiras e listas
de cidades fornecidas no texto bíblico. Os leitores
interessados em tais detalhes devem consultar atlas
e comentários mais técnicos. Este comentário se
restringirá a observações gerais.
13,1-33 Introdução à divisão da terra. Quan­
do Josué está em idade avançada, o S enhor lhe
ordena que distribua a terra a oeste do Jordão entre
as nove tribos e a metade da tribo de Manassés,
que ainda não têm terra. Este capitulo é uma com­
posição D na qual o autor menciona que nem todo
o território a ser distribuído fora conquistado (v.
1), descreve a terra que ainda precisa ser conquis­
tada (vv. 2-6), lembra o leitor que Moisés já dis­
tribuira terras a leste do Jordão para as tribos de
Rúben e Gad e a meia-tribo de Manassés (v. 8) e
faz uma descrição geral (vv. 9-13) e específica (vv.
15-31) dessa terra. Duas notas de rodapié foram

acrescentadas para explicar por que a tribo de Levi
não recebeu um patrimônio de terra como todas as
outras tribos (vv. 14.33). Embora o propósito do
autor pareça claro, é aparente certa falta de lógica
e continuidade nestes vv. (cf. o v. 7 com os vv. 1-6
e 0 V. 14 com os vv. 8-13). Isso nos diz que nesses
capítulos há várias camadas de material.
Os vv. 1-7 identificam as partes de Canaã que
Israel não conseguira conquistar. A falta de ligação
entre a descrição da terra a ser conquistada e a
ordem subsequente para distribuir a terra entre as
nove tribos e meia (v. 7) deixa claro que os w. 2-6
foram acrescentados posteriormente. A área prefi-
gurada por eles é aquela pertencente ao império de
David e Salomão.
Os vv. 8-14 são outra adição ao texto para
explicar por que Josué devia distribuir terra apenas
a nove tribos e meia (v. 8) e para dar uma visão
geral desse território (vv. 9-13). Esses vv. parecem
basear-se em Dt 3.
Os vv. 15-31 descrevem as terras distribuídas
às tribos de Rúben e Gad e à meia tribo de Manas-
sés. Os rubenitas recebem o planalto que se estende
desde o norte do rio Amon até Medebá e Heshbon;
os gaditas recebem os planaltos ao norte de Heshbon
e a meia tribo de Manasses recebe a área de Bashan
e parte do Guilead.
O capítulo conclui lembrando que Moisés dis­
tribuiu as terras a essas tribos quando estava na
planície de Moab.
14.1- 21,42 Distribuição da te rra a oeste dode Judá. Observe que, em Jz 1,10, a região mos­
Jordão. Essa é a parte central da segunda metade
do livro de Josué e se divide em cinco seções: in­
trodução (14,1-5); quinhão das tribos de Judá e
José em Guilgal (14,6-17,18); sorteio em Shilô
para as sete tribos restantes (18,1-19,51); lista das
cidades de refúgio (20,1-9) e relação das cidades
levíticas.
14.1- 5 Introdução. Esses vv. apresentam a in­quem afirme que 14,6-15 originalmente seguia
trodução específica ao sorteio da terra a oeste do
Jordão. Salientam que o sacerdote Eleazar e Josué
e os chefes das famílias dividiram a terra (v. 1), que de fronteiras é também a mais detalhada e indica
foi atribuída por sorteio, de acordo com as instru­
ções que 0 S enhor prescrevera por intermédio de
Moisés (vv. 2.5; cf. Nm 33,54; 34,13). Também é
explicado por que a terra foi dividida entre doze
tribos, embora a de Levi não recebesse terra, por­
que os descendentes de José formavam duas tribos
(vv. 3-4).
Nas tradições veterotestamentárias tardias, o
sacerdote Eleazar (v. 1) é apresentado como filho
de Aarão (Ex 6,25; Lv 10,5; Nm 3,2). Embora o
uso do sorteio seja citado diversas vezes no Antigo
Testamento, os contextos não deixam claro o que
estava envolvido. A razão da necessidade de expli­
car por que os descendentes de José formavam duas
tribos (vv. 3-4) vem da tradição que afirmava ser
Israel composto de doze tribos. Entretanto, nem
todas as tradições concordavam sobre a identidade
J0 5 U E 15
das doze tribos e algumas tradições nem mesmo re­
conheciam o esquema de doze tribos. Por exemplo,
enquanto uma tradição falava de José como uma
tribo (17,14-18), outra tradição falava dos descen­
dentes de José como duas tribos. Por isso, o redator
esclarece desde o início que os descendentes de José
formavam duas tribos, Efraim e Manassés.
14.6- 15,63 O quinhão da tribo de Judá. Essa
seção compõe-se de quatro unidades: a parte dada
a Kaleb (14,6-15), a relação das fronteiras de Judá
(15,1-12), o presente a Omiel (15,13-19) e a lista
das eidades de Judá (15,20-63).
14.6- 15 O quinhão de Kaleb. A história narra
como Kaleb entrou na posse da cidade de Hebron:
foi uma recompensa por sua fidelidade ao S enhor
quando Moisés o enviou para espionar a terra mui­
tos anos antes. Nm 13-14 (cf Dt 1,20-45) relata
como todos os espiões, exceto Kaleb e Josué, deram
conselhos contra a invasão. Consequentemente,
Deus retardou a conquista até toda a geração morrer,
exceto Kaleb e Josué. Embora em Nm 13-14 não
se encontre uma promessa específica de terra para
Kaleb, ela está pressuposta em Dt 1,36.
Em diversas passagens do Antigo Testamento,
Kaleb é identificado como judaíta (p. ex., Nm 13,6;
34,19), mas em outras é dado como qenizita (p.
ex., Nm 32,12). Originalmente, os qenizitas faziam
parte do povo edomita (Gn 36,11.15.42) que se
estabelecera na região montanhosa meridional de
Judá. Assim, supõe-se que Kaleb faça parte da tribo
trada aqui como ocupada por Kaleb foi conquista­
da por Judá e Simeão, que derrotaram os três che­
fes anaquitas.
Como essa passagem e também 15,13-19 sub­
vertem uma apresentação de outra forma organiza­
da dos sorteios tribais, há quem alegue terem elas
sido inseridas no texto como suplementação. Há
11,21-23 e que 15,13-19 foi tirada de Jz 1,10-20.
15,1-12 Fronteiras de Judá. Essa primeira lista
que o compilador D tinha registros mais completos
de Judá que das outras tribos. Embora artificial, a
lista é antiga e talvez anteceda o período da monar­
quia. É, com certeza, mais antiga do que a lista de
cidades em 15,21-62.
15,13-19 O presente p ara Otniel. Essa histó­
ria, duplicata quase literal de Jz 1,10-15, é uma
etiologia para explicar por que os filhos de Omiel,
que também pertenciam ao grupo qenizita, tinha
acesso a reservatórios de água que deveriam perten­
cer aos kalebitas em Hebron. Observe que aqui se
afirma que Kaleb tomou pela força a área que lhe
foi dada como patrimônio em 14,6-15.
15,20-63 Cidades de Judá. Essa lista de cida­
des baseia-se em um catálogo de doze províncias
que compunham o reino meridional de Judá, pro­
vavelmente formada com propósitos administrativos 227
 JO SU E16
governamentais, em algum momento depois de
David. O V. 63 foi acrescentado para explicar por
que Jerusalém não aparece na lista de cidades, a
saber, porque os judaítas não conseguiram expul­
sar os iebusitas que moravam na cidade. É David
quem finalmente tomará a cidade (2Sm 5,6-9).
16.1- 17,18 O quinhão das tribos de José. rência a Shilô seja secundária, pois a referência a
Esta seção é formada de quatro partes: descrição
geral da área ocupada pelos filhos de José, onde
eles são apresentados como uma única tribo (16,1­
3); lista das fronteiras da tribo de Efraim (16,4-10); ser Guilgal o lugar desse sorteio da terra. Historica­
lista do quinhão dos descendentes de Manassés,
exceto Makir, que já recebera terra a leste do Jordão
(17,1-13); e a história de como os descendentes de
José reclamaram que precisavam de mais terra
(17,14-18).
Essas listas contrastam com as listas judaítas
detalhadas dos capítulos anteriores. São dados me­
nos detalhes e o material é, com frequência, apre­
sentado de maneira bastante confusa. Observe a
preocupação de explicar por que os canaanitas con­
tinuaram a morar no meio dessas tribos (16,10;
17,12), embora em ambos os casos se insista que
eles foram reduzidos a servos, já que não haviam
sido expulsos.
Em 17,1-6, por meio de uma formulação
genealógica, estão descritos os membros da meia
tribo de Manassés, que se estabeleceram na área a
oeste do Jordão (cf Nm 26,28-34). O clã de Makir
(v. 1) formava a meia tribo que se estabeleceu a
leste do Jordão.
17,14-18 consiste em duas versões (17,14-15;
17,16-18) da mesma tradição combinada em uma
narrativa. O tema de ambas é um pedido de mais
território, feito pelos descendentes de José, porque
a área montanhosa que haviam recebido não era
grande o bastante para acomodar a todos. Nos vv.
16-18, também se queixam de que não consegui­
ram expulsar os canaanitas, por causa dos carros
de ferro destes últimos. Em ambas as versões, Josué
responde dizendo aos filhos de José para aproveitar
melhor a área montanhosa, desmaiando parte da
floresta. Na segunda versão, também os incentiva
a desapossar os canaanitas.
18.1— 19,51 Sorteio em Shilô. Depois de apre­tuário é tradição remota encontrada na Antiguida­
sentar 0 quinhão de terra das importantes tribos de
Judá e José, o redator faz uma introdução (18,10)
e descreve os quinhões das sete tribos restantes:
Benjamin (18,11-28); Simeão (19,1-9); Zabulon
(19,10-16); Issacar (19,17-23); Aser (19,24-31) e
Neftali (19,32-39).
A introdução (18,1-10) descreve o procedimen­
to para o sorteio da terra: depois que um grupo de­
signado (três membros de cada tribo) faz um levan­
tamento e prepara a descrição dela, a terra é divi­
dida em sete partes. Josué distribui as diversas par­
tes às sete tribos, por sorteio, mas é bastante impro­
vável que as tribos realmente recebessem a terra
228 dessa maneira. Na verdade, o processo de ocupa­
ção histórica foi altamente complexo e durou certo
tempo. Note-se que, enquanto as tribos de Judá e
José iniciaram o procedimento para receber seu
quinhão, aqui Josué (v. 3) adverte as outras sete
tribos por não tomarem mais iniciativa para tomar
posse da terra conquistada. É provável que a refe­
Judá no sul e a José no norte (v. 5) não faz sentido
se 0 ponto de referência for Shilô, que ficava no
território de Efraim. A tradição original suponha
mente, Shilô sucedeu a Guilgal como santuário na­
cional. A referência à Tenda do Encontro (v. 1) é
estranha, pois referências a ela são muito raras nas
partes deuteronômicas do Antigo Testamento (cf
Dt 31,14-15; ISm 2,22). Essa referência à Tenda
do Encontro deve-se, provavelmente, a uma revisão
mais tardia do texto.
Em geral, os quinhões dados às diversas tribos
são descritos em termos de antigas listas de fron­
teiras e de listas de cidades elaboradas com pro­
pósitos administrativos. Note-se que não são da­
das fronteiras tribais para Simeão (19,1-9). A ra­
zão é que, desde tempos bem primitivos, a tribo
de Simeão era absorvida pela tribo de Judá e não
tinha território próprio. Em vez disso, Simeão ocu­
pava algumas cidades dentro da área pertencente a
Judá. D justifica essa distribuição aos simeonitas
alegando que a parte de Judá era maior do que o
necessário.
Aparentemente, o quinhão original de Dan era
bastante pequeno. Entretanto, os danitas foram for­
çados a migrar para o norte (19,47) principalmente
porque não conseguiram dominar os canaanitas na
planície costeira que fazia parte de seu quinhão ori­
ginal (veja Jz 17-18).
Só aqui é relatado que Josué recebeu uma ci­
dade específica. Talvez a passagem (19,49-50) fosse
acrescentada para justificar a afirmação mais tar­
dia de que Josué foi enterrado dentro de seu patri­
mônio (Js 24,30; Jz 2,9).
A conclusão dessa seção baseia-se em 14,1 e
18,1.
20,1-9 As cidades de refúgio. O direito de san­
de clássica e na oriental e está normalmente asso­
ciada a alguns santuários. Esta passagem relaciona
as cidades onde quem tivesse matado alguém in­
voluntariamente encontrava refúgio e asilo. Por trás
desta passagem está o fato de na sociedade semítica
antiga, no caso de homicídio, ser responsabilidade
do parente mais próximo da vítima vingar a morte,
tirando a vida do homicida. Isso era verdade mes-
,mo no caso de homicídio acidental. Por isso, havia
necessidade de proteger a pessoa que acidental­
mente matasse outra. Ao que sabemos, as cidades
de refúgio não tinham paralelo. As seis cidades aqui
relacionadas aparecem de novo na lista de cidades
levíticas do capítulo 21, e Siquém e Hebron abri-

garam santuários famosos. Também é provável que
existisse um santuário em Qadesh (que significa
“sagrado”). Portanto, parece que o direito de asilo
está ligado a essas cidades por causa dos santuários
nelas existentes.
Uma das dificuldades apresentadas por esse
capitulo é que, à parte as leis concernentes ao cos­
tume de asilo em Nm 35,9-15 e Dt 19,1-13, nenhum
texto bíblico dá um exemplo concreto dessa práti­
ca. Assim, sérias dúvidas podem ser levantadas a
respeito da historicidade do que está apresentado
aqui e não há evidência suficiente disponível para
respostas satisfatórias.
21,1-42 As cidades levíticas. D menciona di­
versas vezes que a tribo de Levi não recebeu ne­
nhum patrimônio, isto é, nenhuma parte de territó­
rio (13,14.33; 14,4; 18,7). Os levitas receberam
apenas cidades para nelas morar, junto com suas
pastagens (14,4). Este capítulo relaciona as cida­
des dadas aos levitas em obediência à ordem do
S enhor a Moisés (Nm 35,1-8).
O principal problema no que diz respeito ao
capítulo é se a instituição das cidades levíticas é
ou não verdade historicamente. A lista de cidades
que temos está organizada de maneira artificial,
como se vê no esquema de doze tribos nela imposto.
Mais uma vez, não vemos em nenhuma parte do
Antigo Testamento um exemplo concreto de como
funcionava essa instituição. Não é surpreendente,
então, que alguns considerem a instituição de cida­
des levíticas e, portanto, sua lista, puramente teó­
rica e idealista. Entretanto, há biblistas atuaiè que
afirmam a existência de uma realidade histórica
subjacente na história. De maneira específica, dizem
que as cidades levíticas representam “colônias”,
isto é, lugares designados para grupos fiéis como
os levitas, a fim de levar estabilidade a determina­
da área. Outros argumentam que a lista representa
um arranjo administrativo estabelecido por David
para governar as áreas fronteiriças de seu novo
império. É verdade que Israel controlou o extenso
território pressuposto pela lista apenas no tempo
de David e Salomão e que, em sua maioria, as ci­
dades aqui relacionadas foram áreas fronteiriças
difíceis do império conquistado por David. Os le­
vitas não eram seus únicos habitantes dessas cida­
des, mas tinham certos direitos e prerrogativas a
respeito e suas pastagens.
A história da origem dos levitas como descen­
dentes dos três filhos de Levi (Qehat, Guershon e
Merari) é tardia (pós-exílica) e excessivamente sim-
plificadora da realidade. Note que os qehatitas estão
divididos em dois grupos: os descendentes de Aarão
(os sacerdotes) e os outros qehatitas.
21,43-22,34 Conclusão. Estes vv. concluem a
narrativa da divisão da terra (21,43-22,9) e forne­
cem um apêndice a respeito da construção de um
grande altar pelas tribos transjordaniánas quando
regressaram a suas terras (22,10-34).
JOSUE22
21,43—22,9 Resumo e despedida das tribos
orientais. Os vv. 43-45 são um resumo do livro até
este ponto. Como os outros contidos no livro (9,1-2);
10,40-43), este resumo vai além do que foi real­
mente narrado nas histórias que o precedem. Ape­
sar das alusões em contrário (13,1-6), o redator
afirma aqui que Israel conquistou toda a terra. To­
davia, O importante é a mensagem que ele deseja
transmitir: o Senhor foi fiel a todas as promessas
feitas aos patriarcas. Em conseqüência disso, Israel ,
tomou posse de toda a terra e encontrou a paz.
Como já observamos, este é o tema principal do
livro de Josué e mensagem importante para o povo
exilado no século VI. Os exilados podem confiar
neste Deus que é fiel a promessas passadas e que
tem 0 poder de cumpri-las.
O material de 22,1-9 está estreitamente ligado
a 21,43-45, porque é a “paz” descrita em 21,45
que permite a despedida das tribos orientais des­
crita em 22,1-9. Estes vv. estruturam o tema de­
senvolvido em 1,12-18. Josué reconhece a fide­
lidade das tribos orientais (22,1-3) e, como as tri­
bos a oeste do Jordão estão estabelecidas, despede
as tribos orientais para que voltem a suas terras
(22,4) com a advertência para que permaneçam
fiéis à Lei de Moisés (22,5). Depois despede-os
com sua bênção (22,6). No livro todo, o redator dá
atenção especial às tribos orientais, a fim de enfa­
tizar que a conquista da terra foi obra de todo o
Israel. A união de todas as tribos era muito impor­
tante para ele.
22,10-34 Apêndice: construção do grande
altar. Esta história constitui um apêndice à narra­
tiva da conquista e divisão da terra. Aparentemen­
te, narra como, a caminho de casa, as tribos orien­
tais constroem um altar bem grande na região do
rio Jordão (v. 10). Quando as outras tribos tomam
conhecimento disso, reúnem-se para declarar guer­
ra às tribos orientais (vv. 11-12). A razão para essa
reação tão forte ao altar encontra-se na acusação
da delegação enviada para pedir explicações, a sa­
ber, o altar é visto como ato de rebeldia contra o
Senhor ( v. 16). As tribos discordantes estão teme­
rosas das consequências desse pecado para todas
as tribos (vv. 17-20). O que se pressupõe aqui é a
crença do compilador D de que só pode haver um
único lugar de culto. As tribos ocidentais se abran­
dam quando as orientais lhes garantem que o altar
não se destina a sacrifícios, mas é um memorial —
um lembrete a todas as tribos de que as tribos orien­
tais, apesar de não morarem na Terra Prometida
em sentido estrito (cf. o v. 19), tinham o direito de
cultuar 0 S enhor ( vv. 21-29).
Por trás da história está uma narrativa mais
antiga que provavelmente lidou com um conflito
entre as tribos orientais e ocidentais a respeito de
práticas religiosas e que forneceram uma etiologia
para descrever algum grande altar. A história foi
tão minuciosamente reelaborada, que nada se pode 229
 JO SUÉ 23
dizer sobre a narrativa original. Como está, é uma
clara advertência contra lugares cultuais ilegítimos
e salienta a união de todas as tribos. Esse último
ponto encontra-se no conceito de culpa comunitária
expresso nos w . 17-20, onde se entende que a su­
posta traição das tribos orientais afeta todas as tri­
bos e na razão dada pelas tribos orientais para a
construção do altar — como testemunho da união
das tribos orientais e ocidentais.
Os vv. 10 e 11 não deixam claro se o altar foi
construído na margem leste ou oeste do Jordão.
Para a história de Peor, c f Nm 25,6-18. O objetivo
da observação no v. 18 parece ser indicar que Is­
rael ainda está oferecendo sacrifícios para expiar
esse pecado.
PARTE lil:
DESPEDIDA E MORTE DE JOSUÉ
Js 23,1-24,33
23-24 Discurso de despedida de Josué. Em­
bora estes dois capítulos tenham introduções sepa­
radas, juntam-se na edição final do livro como
última vontade e testamento de Josué. Percebendo
que seu fim está próximo, Josué reúne o povo para
lembrar-lhes tudo que aconteceu e incentivá-lo a
ser fiel à aliança. Também os adverte sobre as ter­
ríveis conseqüências da revolta contra o S enhor.
Os dois capítulos devem ser vistos contra o pano
de fundo dos tratados do antigo Oriente Próximo.
Os biblistas estão cientes de fortes paralelos entre a
maneira como a aliança do Sinai é apresentada no
Antigo Testamento e a forma dos tratados de vassa-
lagem do antigo Oriente Próximo. Em geral, tais
tratados continham estes elementos: introdução pes­
soal pelo soberano; relato de história, isto é, o que
o soberano fez para o vassalo; condições que o vas­
salo deve observar como resposta àquilo que o sobe­
rano fez por ele; bênçãos e maldições pela fidelida­
de, ou falta dela, ao tratado; cooperação de testemu­
nhas e a exigência de que o tratado seja lido periodi­
camente diante do povo. Esses elementos dão forma
a estes capítulos, de diversas maneiras.
23,1-16 Último apelo de Josué. Este capítulo
entra na categoria de um discurso de despedida.
Josué relembra o passado, em especial as ações di­
vinas em benefício do povo, lembra o povo daqui­
lo que Deus exige dele e daquilo que ainda precisa
ser feito. O discurso foi afetado pelo estilo do ser­
mão levítico, onde há muita repetição e uma mistura
de história, condições, maldições e •‘ênçãos. Nestes
últimos elementos, vemos a influência dos antigos
tratados de vassalagem.
O capítulo é criação total do autor D e forma a
conclusão à narrativa da conquista. O propósito do
capítulo é explicar aos exilados por que perderam a
terra — por sua infidelidade ao S enhor, o que pro-
230 vocou a realização das ameaças divinas de destrui­
ção. Enfatizando que o S enhor cumpriu todas as
promessas feitas no passado (w . 2-11), o autor diz
ao povo que, se se apegarem novamente ao S enhor,
terão a terra de volta, porque o S enhor é fiel a pro­
messas passadas. Por meio de advertências especí­
ficas no texto, 0 autor diz aos exilados como devem
agir na situação atual.
Depois que o S enhor deu aos israelitas descan­
so de todos os seus inimigos, Josué, na velhice,
convoca Israel para seu discurso de despedida (w.
1-2). Relembra tudo que o S enhor fez pelo povo (v.
3), menciona que, de acordo com as promessas fei­
tas diante dos israelitas, o S enhor expulsará as na­
ções das regiões a eles foram destinadas (w. 4-5) e
convoca o povo à obediência à Lei de Moisés (vv.
6-8). O povo deve evitar qualquer atividade que possa
até mesmo sugerir a existência dos deuses dos estran­
geiros (v. 7). Depois 0 autor mais uma vez recorda
como o S enhor expulsou as nações diante de Israel
(v. 9) por fidelidade às promessas feitas no passado
(v. 10) e convoca Israel a amar o S enhor ( v. 11).
Josué ameaça Israel: se abandonar o S enhor e, de
algum modo, aliar-se às nações estrangeiras (v. 12),
então o S enhor não mais expulsará as nações diante
dele e o abandonará às nações (v. 13). Israel deve
reconhecer que todas as promessas do S enhor foram
cumpridas (v. 14). Josué menciona que, como o
S enhor cumpriu todas as promessas feitas no passa­
do, assim também cumprirá todas as ameaças, a sa­
ber, erradicar Israel da terra, se ele transgredir a
aliança (w. 15-16).
24,1-28 Renovação d a aliança. Em contraste
com 0 capítulo 23, este capitulo baseia-se em uma
tradição que contém lembranças autênticas de an­
tigas cerimônias de renovação de alianças. A supo­
sição de que esta cerimônia de aliança data do fim
da vida de Josué baseia-se apenas no contexto, não
no relato em si. Estes vv. relacionam-se estreita­
mente com a cerimônia no monte Ebal, relatada
em 8,30-35, e, do ponto de vista histórico, se adap­
taria melhor naquele contexto do que no fim da
vida de Josué.
Embora o texto possa ter origem em uma ce­
rimônia passada, como a renovação da aliança do
Sinai da qual os siquemitas foram convidados a
participar, foi influenciado por cerimônias de reno­
vação de alianças celebradas periodicamente em
Israel. Essas cerimônias, por sua vez, haviam sido
influenciadas pela forma dos tratados de vassalagem
do antigo Oriente Próximo.
Josué reúne todas as tribos de Israel em Siquém,
a fim de lhes falar (v. 1). Siquém, antigo centro
cultuai, ficava perto da atual cidade de Nablus,
cerca de 48 quilômetros ao norte de Jerusalém.
Não há nenhuma informação disponível sobre como
Israel assumiu o controle da região montanhosa
central onde se localizava Siquém. E provável que
a ocupação tenha sido pacífica. Josué agora dirige­
-se ao povo (vv. 2-15). A parte principal do discur-

so é a recitação da história de Israel desde o tempo
dos patriarcas até o período da conquista (w . 2­
13). Josué salienta que o S enhor foi o responsável
por tudo que aconteceu.
O rio citado nos w . 2 e 3 é o Eufrates e a
montanha de Seir (v. 4) refere-se à região ao sul do
mar Morto. A terra dos emorítas (v. 8) é a região
a leste do Jordão. Sobre Bileâm, cf. Nm 22-24. O
V. 14 contém as cláusulas da aliança; dedicação total
ao S enhor por causa de tudo que fez por eles. O
V. 15 contém o desafio de Josué ao povo: decidi
quem ides servir! A resposta do povo (w. 16-18) é
que, como familia de Josué, servirão ao S enhor, por
causa de tudo que fez por eles.
Em resposta à advertência de Josué sobre as
conseqüências da infidelidade (vv. 19-20), o povo
reafirma sua dedicação (v. 21). Depois de se decla­
rarem testemunhas (v. 22), o povo professa solene­
mente sua disposição de servir ao S enhor em res­
posta ao convite de Josué (vv. 23-24). Então é fir­
mada a aliança, uma grande pedra é erguida para
comemorar o acontecimento e o povo é dispensado
(vv. 25-28). A função da pedra não está clara. É
possível que nela estivessem escritos os termos da
aliança.
JOSUE24
Em seu contexto atual, o propósito deste capí­
tulo é claro. O autor está convocando os exilados
à fidelidade total ao S enhor, em resposta a tudo
que 0 S enhor fez por eles. Assim como os primei­
ros israelitas haviam se dedicado ao S enhor, tam­
bém agora os israelitas no exílio escolhem a quem
vão servir. Ao relatar a renovação da aliança, o
compilador também deixa claro aos exilados que a
aliança pode ser renovada outra vez, se Israel es­
tiver disposto a se dedicar completamente ao S e­
nhor , como fizeram seus ancestrais. A ameaça sobre
a resposta do S enhor à infidelidade de Israel (w .
19-20) tem o propósito de lembrar mais uma vez
aos israelitas que perderam a terra por causa de
sua desobediência.
24,29-31 M orte de Josué. Depois de uma
longa vida, Josué morre e é enterrado em Timnat-
-Sérah, cidade efraimita que lhe fora dada por seus
serviços (19,49-50). O v. 31 serve de treinsição para
o livro dos Juizes.
24,32-33 Tradições de sepultamento. Outra
pessoa acrescentou estas breves notas sobre o novo
sepultamento dos ossos de José em Siquém (cf. Gn
50,25; 33,19) e sobre o sepultamento de Eleazar,
contemporâneo de Josué.
231
 JUIZES
John A. Grindel, C.M.
INTRODUÇÃO
Livro dos Juizes narra a história de
Israel entre a morte de Josué e a ele­
vação de Samuel. O centro do livro é
uma compilação de histórias sobre
vários heróis do passado de Israel —
os juizes. Diversas tradições a respeito do período
anterior à monarquia estão ligadas às histórias.
O livro divide-se em três partes: um prólogo
(1,1-2,5), histórias dos juizes (2,6-16,31) e um
apêndice que trata da migração da tribo de Dan e
da guerra civil contra Benjamin (17,1-21,25).
O s ju izes
O livro recebeu o nome em homenagem aos
principais protagonistas que, segundo consta, “jul­
garam” Israel. O autor distingue entre os juizes
“maiores” e os juizes “menores”. Os juizes maio­
res são chefes militares carismáticos, assunto de
longas narrativas. Os juizes menores são aqueles
sobre os quais poucas informações são dadas além
dos nomes e da extensão de seu cargo.
O verbo hebraico normalmente traduzido por
“julgar” tem dois significados básicos: exercer a
função de juiz (no contexto de um tribunal ou de
um julgamento particular) e governar. Nenhum dos
juizes é jamais associado a qualquer função de
julgamento ou arbitragem, exceto Deborá (4,4-5);
mas isso foi antes de ser chamada por Deus. Mais
exatamente, os juizes maiores aparecem exercendo
um papel especificamente militar e, às vezes, agin­
do como governantes civis. Não é dada nenhuma
informação sobre a atividade dos juizes menores.
Outro titulo usado para vários juizes é “salva­
dor”, provavelmente titulo original de pelo menos
alguns juizes. Os juizes maiores são apresentados
como carismáticos, isto é, pessoas escolhidas pelo
S enhor para livrar o povo da opressão. Todo poder
dado a eles é considerado medida excepcional.
Com posição do livro
O livro é uma série de histórias sobre heróis
israelitas que livraram o povo da opressão. Origi­
nalmente, as histórias falavam da libertação de tri­
bos individuais e por isso tinham limitada abran­
gência geográfica. Somente mais tarde os heróis
foram transformados em libertadores do Israel todo.
Essas narrativas heróicas do folclore do povo tinham
o propósito de entreter e edificar e foram reunidas
antes que o historiador deuteronomista (D) deci­
disse fazer uso delas. (Sobre a obra do historiador
deuteronomista, veja a introdução ao livro de Josué,
p. 217.)
É provável que tenha sido D quem deu a esses
heróis a orientação pan-israelita. D também impôs
uma estrutura teológica às histórias dos juizes
maiores. Tal estrutura apresenta uma introdução que
descreve como o povo pecou; como Deus permitiu
que o povo caísse nas mãos dos inimigos e como,
quando o povo protestou, o S enhor enviou um
salvador para libertá-lo. Cada uma das histórias
termina com uma nota sobre quanto tempo a terra
ficou em repouso graças à libertação efetuada pelo
juiz-salvador. A estrutura D apresenta a chave para
interpretar as histórias dos juizes, isto é, como o
pecado leva ao castigo, mas o arrependimento à
libertação.
O propósito do Livro dos Juizes
O livro dos Juizes deve ser lido no contexto da
história deuteronomista. O propósito do autor é
apresentar uma teologia básica da história: o pecado
leva ao castigo, mas o arrependimento traz perdão
e libertação. Essa mensagem era dirigida ao povo
no exílio que havia pouco perdera sua terra. O
autor explica-lhes que perderam a terra por causa
de sua pecaminosidade; mas, se agora se arrepen­
derem e voltarem ao S enhor, este mais uma vez os
perdoará e libertará. Embora uma mensagem de
esperança esteja presente, o livro como um todo
mostra a intensificação progressiva do pecado do
povo. No primeiro capítulo é apresentada a oca­
sião deste pecado, a saber, Israel não expulsou da
terra as nações com suas práticas idólatras. Ao
avançarmos na leitura do livro, as consequências
desastrosas dessa situação ficarão cada vez mais
aparentes. 233
 JUÍZES 1
Exatidão histórica
As tradições básicas sobre os juizes maiores, o
material sobre a conquista no capítulo 1 e os relatos
das atividades das tribos de Dan e Benjamin no
apêndice são bastante antigas. Os redatores deutero-
nomistas ulteriores não reelaboraram de maneira sig­
nificativa essas histórias, limitando-se a acrescentar
comentários no início e no fim delas e a inserir co-
nectivos entre as histórias. Não há razão para negar
que as histórias baseiam-se em acontecimentos reais,
embora cada tradição deva ser estudada separada­
mente em termos de sua historicidade. Só porque as
histórias são antigas não significa que possam ser
aceitas sem críticas como históricas.
Redatores mais tardios modificaram dois as­
pectos das histórias, ao lhes impor a perspectiva
“pan-israelita” e adotar uma cronologia artificial.
Como mencionamos acima, a perspectiva “pan-is­
COMENTÁRIO
PARTE I: A CONQUISTA
Jz 1,1-2,5
Essa parte apresenta uma visão da conquista
da Palestina diferente da apresentada em Js 1-12.
Aqui não está presente a idéia de uma conquista
abrangente da Palestina por um exército de Israel
unido. Ao contrário, a imagem é a de cada tribo,
sozinha ou com uma ou duas outras, lutando para
conseguir um território próprio.
O capitulo não é uma composição literária
unificada, mas foi formado de tradições separadas,
muitas das quais são bastante antigas e vêm de
fontes diferentes das tradições usadas em Js 1-12.
O material foi organizado para descrever a ativida­
de das várias tribos em uma linha de sul a norte.
O Israel aqui apresentado é incapaz de ocupar as
planícies costeiras, tanto no sul como na parte cen­
tral do país, e de controlar a planície de Jezreel. Em
resultado, o povo fica afastado das grandes áreas
férteis da terra. Isso parece estar mais de acordo
com a evidência arqueológica do que a imagem
apresentada em Josué.
Entretanto, é importante entender que o redator
não introduziu esse material para contradizer nem
para corrigir a imagem em Josué, mas sim como
relato das atividades da geração posterior à morte de
Josué, porém durante a vida dos anciãos que lhe so­
breviveram. Isso fica claro pelo fato de 1,1-3, prove­
niente de D, pressupor a visão singular da conquista
encontrada em Josué e a distribuição da terra relatada
em Js 13-22 e porque o material de Jz 2,10 se refere
à geração posterior aos anciãos que sobreviveram a
Josué. O redator, então, introduziu esse prólogo como
preparação para a avaliação negativa do período en-
234 contrado em 2,1-5. Portanto, o capítulo 1 pretendia
raelita” foi introduzida em época mais tardia em
histórias que originalmente falavam da libertação de
um número limitado de tribos. A cronologia encon­
trada no livro é diferente. Se somarmos os anos
mencionados no texto, então o período dos juizes
abrangería 410 anos, tempo demais, pois a evidên­
cia disponível coloca o período dos juizes entre
1200 a.C. e 1050 a.C., aproximadamente 150 anos.
Uma leitura atenta mostra de maneira clara que a
cronologia do livro é estereotipada e artificial. D
impôs a cronologia para corroborar o comentário
em IRs 6,1 de que houve 480 anos entre o Êxodo
e o início da construção do Templo de Jerusalém.
Embora o livro mostre os juizes em seqüência, na
realidade alguns dos maiores poderíam ter sido con­
temporâneos. A cronologia em seqüência é exigida
para cada um dos juizes ser um libertador de todo
Israel.
fornecer a base para a explicação em 2,1-5 da razão
pela qual os israelitas não conseguiram expulsar os
habitantes da terra de seu meio, a saber, porque de­
sobedeceram ao S enhor, fazendo pactos com os ha­
bitantes da terra e não destruindo seus altares. Con-
seqüentemente, o S enhor não expulsará essas nações
do caminho de Israel, mas as deixará na terra para
que possam se opor a Israel e seus deuses sejam uma
cilada para Israel (2,3).
Quando o livro começa, o redator parece pressu­
por que Israel ainda está em Guilgal (cf Jz 2,1; Js
4,19; 10,43; 14,6 e os comentários sobre Js 18,5).
Agora que a terra foi subjugada e dividida entre as
tribos (cf. Josué), é necessário que cada uma reivin­
dique seu território. Consultam o S enhor para ver
quem será o primeiro a atacar os canaanitas (1,1). A
resposta do S enhor é que Judá será o primeiro, e
Judá convida Simeão para se juntar a ele (1,2-3). Essa
associação mostra que a tribo de Simeão foi absorvi­
da pela de Judá em um período bastante primitivo e
não tinha território próprio (cf. Js 19,1-9).
Os vv. 4-36 apresentam os sucessos e fracassos
das diversas tribos. O fato de Judá ser apresentado
primeiro e receber tanto espaço (vv. 4-20) mostra que
0 compilador pressupunha a proeminência da tribo
de Judá. Judá é, em grande parte, bem-sucedido nos
combates com os habitantes da terra, mas não com­
pletamente (cf. vv. 18-20). Os perizitas (v. 4) faziam
parte da população nativa da Palestina (cf. Js 17,15
e Gn 34,30). O incidente com Adoni-Bézeq, em
Bézeq, lembra a história de Adoni-Sédeq, em Js 10
e talvez esteja relacionada a ela. A localização de
Bézeq é incerta. A mutilação de Adoni-Bézeq tem
0 propósito de humilhá-lo e tomá-lo incapaz de com­
bater no futuro. O v. 8, que trata da tomada de Jeru­
salém, parece ser uma inserção mais tardia e não

está de acordo com o v. 21. O material dos w. 10­
15 é basicamente duplicata de Js 15,13-19 e tem o
propósito de explicar por que os filhos de Otniel
tinham acesso aos reservatórios de água que deviam
pertencer aos kalebitas em Hebron. A referência aos
qenitas no v. 16 explica a presença deles entre as
tribos de Judá. Judá é in c ^ a z de assumir o controle
da planície costeira meridional porque o povo de lá
tinha carros de ferro (w . 18-19). Os benjaminitas
são mencionados em seguida (v. 21) por causa de
sua estreita associação com a tribo de Judá. Jerusa­
lém só será tomada quando David conquistá-la pes­
soalmente.
O compilador agora apresenta o ataque à parte
central do país pela casa de José (vv. 22-29). Note
que a casa de José aparece tomando Betei, embora
a cidade tenha sido dada a Benjamin (Js 18,22). O
propósito da história (vv. 22-26) é, provavelmente,
mostrar como Israel fez pactos com os habitantes
da terra. Os vv. 27-29 relatam que as tribos foram
incapazes de assumir o controle da planície costei­
ra central, nem da planície de Jezreel. Estes vv.,
junto com as referências aos fracassos no norte
(vv. 30-35), são relatados Oomo exemplos da manei­
ra como Israel pecou, morando no meio dos habi­
tantes originais da terra, em vez de expulsá-los.
Observe que não se diz que não puderam expulsar
os nativos, mas sim que não os expulsaram; em vez
disso, impuseram a corvéia aos nativos.
Em 2,1-5, o compilador dá a razão para o es­
boço do capítulo 1, a saber, explicar por que, nas
histórias que se seguem, Israel não conseguirá ex­
pulsar os habitantes nativos da terra: porque o S e­
NHOR não estará com eles, pois foram desobedientes
(veja Js 23,12-13). Estes w ., compostos por D, são
a chave para a seção toda e transmitem mensagem
elara para os exilados. D explica que perderam a
terra porque foram desobedientes e não cumpriram
as exigências da reform a de Josias (veja 2Rs
22,1-23,30). A localização de Bokim é incerta. Mui­
tos biblistas supõem que o texto original trazia ori­
ginalmente “Betei” (veja 20,18.26; 21,2). A mudan­
ça para “Bokim” em 2,1 confirma a etiologia de
2,5, onde está explicado que o lugar recebeu o nome
de Bokim (os chorões) porque o povo chorou ali. O
anjo ou “mensageiro” do S enhor é o enviado do
S enhor, que fala em nome do Senhor.
II PARTE: O S JUÍZES
Jz 2,6-16,31
2,6-3,6 Introdução. Estes vv. proporcionam
uma introdução específica para as histórias dos
juizes. Várias mãos participaram da formação des­
te texto que se divide em três partes: o relato da
morte de Josué (2,6-9); a introdução específica ãs
histórias dos juizes (2,10-23) e uma lista das na­
ções que restaram no meio de Israel (3,1-6).
JUIZES 2
2,6-9 Relato da m orte de Josué. Estes vv. são
paralelos a Js 24,28-31, mas em seqüência diferen­
te. A repetição mostra que Jz 1,1-2,5 é inserção
tardia no texto pelas razões já dadas e para propor­
cionar um plano de fundo para a compreensão da
pecaminosidade do povo e do julgamento deles pelo
Senhor como está descrito em 2,10-23. O relato da
morte e do sepultamento de Josué é repetido aqui
para mostrar que se uma nova era se inicia.
2,10-23 Introdução específica às histórias dos
juizes. Este material não está unificado. E bastan­
te repetitivo, com um conteúdo quase idêntico en­
contrado nos vv. 11-17; 18-19; 20-23. É mais do
que provável que o v. 10 e os vv. 20-23 eram origi­
nais e que D inseriu os vv. 11-19 posteriormente.
Seu propósito é mostrar a tremenda apostasia den­
tro de Israel durante o período dos juizes. Os deuses
dos habitantes nativos tomaram-se verdadeiramen­
te uma cilada para Israel (veja 2,3), daí a necessi­
dade dos “salvadores”, os juizes. Os vv. deixam
claro que, apesar da libertação que será trazida
pelos juizes, ninguém deve ser levado a pensar que
os israelitas arrependeram-se verdadeiramente de
sua pecaminosidade. Ao contrário, o período todo
é descrito como época de apostasia sempre cres­
cente (2,19).
O autor menciona que uma nova era começou.
Há agora uma geração que não conheceu nem as
obras salvíficas do S enhor em benefício de Israel,
nem a Lei da Aliança (v. 10). Ao contrário servi­
ram ao deus pagão Báal e as Astartes (forma plural
para indicar diversas manifestações da deusa
Astarte), abandonando o Deus de seus pais que os
tirara do Egito, dessa forma provocando o S enhor
(vv. 11-12). Báal e Astarte (v. 13) eram a personi­
ficação do culto idólatra canaanita. O uso do plu­
ral “Baalim” e “Astartes” não indica muitas divin­
dades, mas sim as várias formas locais delas.
Esse abandono encoleriza o S enhor e, assim,
este permite que o povo caia em poder nos inimi­
gos (vv. 13-15; veja Js 23,11-13). Mesmo quando
o S enhor suscita juizes para libertá-los, o povo
não os ouve nem segue seu exemplo de obediência
e continua a cultuar outros deuses. E quando o juiz
morre o povo reincide e faz ainda pior do que
antes (vv. 16-19). Muitos biblistas aereditam que
D inseriu os vv. 11-19 aqui para servirem de intro­
dução às histórias dos juizes e que neles se encon­
tram os elementos da estrutura teológica para as
histórias, isto é, a pecaminosidade do povo, a có­
lera do S enhor contra o povo e sua permissão para
que eaíssem nas mãos dos inimigos, o pranto do
povo e a libertação pelo S enhor. Note, entretanto,
que o terceiro elemento da estrutura, o pranto do
povo, só é mencionado de passagem (v. 18). Note
também que o pranto do povo não é de arrependi­
mento, mas apenas de dor e aflição (mas veja 10,6­
16). O S enhor parece mais comovido pelo sofri­
mento do que pelo arrependimento do povo. Aqui 235
 JUIZES 3
são revelados o am or e a dedicação do S enhor
pelo povo.
A pecaminosidade do povo é tão grande, entre­
tanto, que o Senhor precisa julgá-lo; assim, o Se­
nhor jura não expulsar mais nenhuma das nações
que Josué deixou quando morreu. Essas nações porão
os israelitas à prova e farão com que demonstrem
novamente sua fidelidade ao S enhor ( w . 20-23).
A mensagem em tudo isso para os exilados é
clara: Israel perdeu a terra por causa da contínua
infidelidade à aliança. Entretanto, ainda há espe­
rança porque, assim como o Senhor respondeu aos
gritos de desgraça do povo no passado, poderá fa­
zê-lo de novo agora. Além disso, a idéia de prova
enfatizada no v. 22 deixa uma porta aberta para os
exilados — talvez possam passar na prova. A úni­
ca coisa que fica bastante clára com essa passa­
gem é que a salvação divina é uma dádiva; não é
uma resposta mecânica a uma ação por parte do
povo. nem mesmo um ato de arrependimento (cf.
10,10-17).
3,1-6 As nações que restaram. Estes w. dão
duas listas das nações que permaneceram no meio
de Israel, além de reflexões mais tardias sobre a
razão pela qual o S enhor as deixou. A clássica lista
das nações que viviam na Palestina antes da con­
quista está no v. 5 (cf. Js 3,10). Os “cinco tiranos
filisteus” (v. 3) refere-se às cinco cidades habitadas
pelos filisteus (não-semitas que entraram na Pales­
tina mais ou menos ao mesmo tempo que os israe­
litas) na planície costeira meridional. As razões acres­
centadas para o S enhor deixar as nações no meio de
Israel (3,1-2) têm o propósito de ser mais benevo­
lentes do que as vistas anteriormente.
3,7-11 Otniel. Este relato sobre o primeiro dos
juizes parece ser elaborado por D e apresenta um
exemplo ideal da teologia de D. Por causa da na­
tureza generalizada da história, é dificil atribui-la
a algum tempo e lugar. Sendo tão breve, ajuda-nos
a entender com clareza os elementos básicos da teo­
logia histórica de D.
Esquecendo o S enhor, Israel serve aos Baalim
e às Asherás (v. 7). Isso inflama a cólera do S enhor,
que entrega o povo ao poder de Kushan-Rishatáim,
rei de Arâm-dos-Dois-Rios. Quando o povo clama
ao S enhor, este envia-lhes um salvador, Otniel, fi­
lho de Qenaz, irmão mais novo de Kaleb (cf. Js
15,17). Aqui são vistas em toda sua simplicidade
as fórmulas introdutórias estruturais de D. A locali­
zação de Arâm-dos-Dois-Rios é desconhecida. O
espírito do S enhor que desce sobre os juizes nessas
histórias significa um poder ou força impessoal
que envolve de tal forma a pessoa que ela se toma
capaz de feitos extraordinários. O v. 11 apresenta
a fórmula de conclusão normal de D.
3,12-30 Ehud. Na história de Ehud percebe­
mos, pela primeira vez, a existência de uma tradição
antiga adotada e usada pelo redator. A história co-
236 meça eom o quadro estrutural de D: Israel peca, o
S enhor atiça um opressor, o povo clama e o S enhor
envia um salvador (vv. 12-15). A história é cheia de
humor. O opressor é “Eglon”, que significa alguma
coisa semelhante a “touro jovem” ou “novilho gordo”
(cf. o v. 17). Este rei de nome ridiculo é assassinado
pelo benjaminita canhoto (literalmente, Benjamin
significa “filho da mão direita”) e o rei é tão gordo
que o punhal de 30 cm se perde em seu ventre. A
história tripudia sobre eomo o herói israelita vence
em esperteza o opressor e seus guardas. Em resulta­
do da libertação por intermédio de Ehud, a terra
fica em repouso por oitenta anos (v. 30).
Moab (v. 12) está situada na margem sudeste do
mar Morto. Aqui o rei de Moab aparece em aliança
com 0 povo do norte (os emoritas) e com nômades
do sul (os amalequitas). Entretanto, o cenário para a
história é a margem oeidental do Jordão nas cerca­
nias de Jericó (v. 13), confirmado pela referência ao
“fresco quarto de cima” (v. 20), apropriado à área
deserta em volta de Jericó. A localização de Seirá (v.
26) é desconhecida. Confusos pela descoberta do rei
morto, os moabitas tentam atravessar o Jordão e voltar
para casa; mas os israelitas estão prontos para eles
nos vaus (vv. 26-29). Originalmente, a história tratava
apenas da tribo de Benjamin nas cercanias de Jericó
(v. 13, “cidade das Palmeiras”).
3,31 Shamgar. Tanto a origem como a razão
dessa referência a Shamgar são incertas. A refe­
rência não tem paralelo nem nas histórias dos juizes
maiores, nem nas referências aos juizes menores.
Além disso, parece ser uma inserção tardia, já que
4,1 parece seguir-se diretamente a 3,30. A referên­
cia aos filisteus como inimigos de Israel é estranha
aqui, pois eles só se tomaram problema para Israel
no fim do período dos juizes. A morte dos filisteus
com uma aguilhada lembra as façanhas de Sansão
(15,14-17). Shamgar não parece ser nome semítico
e há quem suponha ser ele realmente um canaanita
que derrotou os filisteus e, assim, libertou Israel.
4.1- 531- Deborá e Baraq. A história de Deborá
e Baraq é contada duas vezes. O capitulo 4 é um
relato em prosa e o capítulo 5 contém um poema
que celebra a mesma vitória. Ambos os textos tra­
tam de um combate entre Israel e uma coalizão for­
te, talvez formada por canaanitas e filisteus, perto
da torrente do Qishon, no vale de Jezreel, nas vizi­
nhanças do monte Tabor, mas o capítulo 5 locali­
za-a mais para o sudoeste do vale.
4.1- 24 A narrativa em prosa. A narrativa em
prosa começa com o quadro estrutural costumeiro de
D (vv. 1-3). Desta vez o opressor é o rei de Canaã,
labin, que reina em Hasor e tem um general chama­
do Siserá, que mora em Harôshet-Goim. O verda­
deiro protagonista é Siserá e a menção a labin pa­
rece secundária, referência talvez relacionada a Js
ll ,l s . A localização de Harôshet-Goim é incerta,
mas devia ser na parte setentrional da Palestina.
Os w . 4-7 relatam a chamada de Baraq por
intermédio de Deborá e a reunião por ele das tri-

bos de Zabulon e Neftali para o combate. Deborá
é descrita como profetisa e alguém que o povo
procurava para julgamentos (vv. 4-5). E uma juíza,
então, no sentido forense. Ramá e Betei estão a
apenas alguns quilômetros ao norte de Jerusalém.
As ligações tribais de Deborá não são claras.
Embora julgue nas regiões montanhosas de Effaim,
é ligada aqui com as tribos de Zabulon e Neftali.
Baraq é de Qédesh, ao norte de Hasor, no territó­
rio da tribo de Neftali. O número de dez mil ho­
mens (v. 10), de apenas duas tribos, parece ser um
exagero.
O v. 11 atua como nota de rodapé a fim de
preparar para o v. 17, explicando como um grupo
de qenitas, que deveriam estar bem mais para o
sul, encontravam-se nesta região.
O combate propriamente dito é descrito nos
vv. 12-16, mas o relato dá poucos detalhes. Deus
é considerado responsável por tudo que acontece.
Só o S enhor é merecedor de glória.
O assassinato de Siserá (vv. 17-22) é flagrante
violação da lei de hospitalidade. Parece também
que Hasor e o clã de Héber, o qenita, tinham uma
aliança mútua! Por alguma razão, lael, mulher de
Héber, decide ficar do lado dos israelitas. Os vv.
23-24 são a conclusão normal de D, embora parcial.
D adia a referência cronológica final até 5,31, para
apresentar os capítulos 4 e 5 como uma unidade.
5,1-31 O Cântico de Deborá. Considerado um
dos textos bíblicos mais antigos, devido à idade e
à condição do texto, esse poema é sabidamente di­
fícil. O significado de muitas palavras hebraicas
primitivas é incerto e alguns vv. são quase incom­
preensíveis. Além disso, as ligações com o capí­
tulo 4 nem sempre são claras. Em sua forma atual,
o poema é um cântico de louvor ao S enhor, o Deus
do Sinai e da Conquista, por aquilo que realizou
por intermédio de Deborá e Baraq.
Originalmente, o v. 1 pode ter estado ligado
diretamente à oração do v. 31, antes de o cântico
ser inserido. O v. 2 introduz o assunto do cântico,
a saber, os chefes de Israel e os nobres feitos do
povo, isto é, 0 que foi realizado por Deborá e Baraq.
O v. 3 é um convite para que escutem este hino ao
Deus de Israel. Os vv. 4-5 lembram como o S enhor
conduziu Israel à Palestina, com o acompanhamento
de uma série de acontecimentos cósmicos. Os vv.
6-8 descrevem a situação antes de Deborá: não era
seguro viajar nas estradas, o povo adorava deuses
novos e Israel estava desarmado diante de exérci­
tos estrangeiros. Os vv. 9-11 fazem outro convite
para cantar sobre os chefes de Israel e sobre o
S enhor . Os vv. 12-18 descrevem a reunião das tri­
bos para o combate prestes a acontecer. O v. 12
descreve o chamado geral para Deborá e Baraq
reunirem as tribos. A reunião das tribos está des­
crita no V. 13 e os vv. 14-17 descrevem as tribos
que responderam de forma positiva ao convite do
S enhor e as que não o fizeram. No v. 18 é dado
JUIZES 6
louvor especial a Zabulon e Neftali. Os vv. 19-22
descrevera o combate. Por trás dos vv. 20-22 há a
idéia de uma tempestade repentina que apanhou e
atolou os carros de Siserá, de modo que seu exér­
cito foi derrotado facilmente.
Os eventos que cercam a morte de Siserá são
relatados nos vv. 23-30. Primeiro, a cidade de Meroz
é amaldiçoada porque, ao contrário de lael, não
ofereceu nenhuma ajuda a Israel, talvez ignorando o
Siserá em fuga. Os vv. 24-27 descrevem alegremente
a morte de Siserá nas mãos de lael. Este relato é um
pouco diferente do que é narrado em 4,21. Aqui lael
parece agredir Siserá enquanto este tomava o leite.
Os vv. 28-30 relatam em tom irônico a preocupação
da mãe de Siserá com a demora de sua volta e a
resposta que ela recebe da mais sábia de suas prince­
sas. O V. 31 resume a teologia do poema e apresenta
a parte final da estrutura D.
Para os exilados, o episódio de Deborá e Baraq
é forte motivação de esperança e confiança no
S enhor , que destrói os inimigos de Israel e conce­
de liberdade da opressão, bastando para isso que
Israel clame a ele.
6,1-8,28 Guideon. Estes capítulos reiteram o
ciclo básico de pecado, castigo, arrependimento e
libertação. Desta vez são os midianitas que opri­
mem Israel e o salvador enviado pelo S enhor é
Guideon. Guideon destrói o altar de Báal em Ofrá
e, em seu lugar, ergue um altar ao S enhor, e recebe
um novo nome, lerubáal. Com um punhado de ho­
mens alcança grande vitória sobre os midianitas,
mas não aceita ser soberano, como querem os ho­
mens de Israel. Embora a narrativa pareça basi­
camente clara e consistente, há dentro dela muitas
tensões. Primeiro, há o duplo nome do herói, Gui­
deon e lerubáal. Segundo, o capítulo 6 é obviamente
formado de uma série de tradições diferentes (6,11­
24; 25-32; 33-35; 36-40). Há significativa tensão
entre 6,33-35, em que todas as tribos estão reuni­
das, e 7,3-6, em que, quase imediatamente, a maio­
ria é mandada de volta para casa por razões pura­
mente teológicas. Em 8,1-3, Efraim está zangado
com Guideon porque ele não os convocou, mas isso
parece diretamente oposto ao que é dito em 7,24s.
Por fim, Guideon é apresentado não só como defen­
sor do povo, mas também como um homem resol­
vido a vingar a morte de irmãos. Tudo isso sugere
que os capítulos são um conjunto de tradições ori­
ginalmente independentes que foram organizadas
em um bloco contínuo, mas sem habilidade sufi­
ciente para livrar as histórias de todas as inconsis­
tências. Originalmente, muitas das histórias diziam
respeito apenas à família de Abiézer, da tribo de
Manassés, mas, mais tarde, fizeram-nas referir-se
a todo Israel.
Em sua maioria, os biblistas aceitam a histori-
cidade da opressão dos israelitas pelos midianitas,
povo da região do deserto a sudeste da Palestina.
Gn 25,2ss. menciona que Midian era um filho de 237
 JUfZES 6
Abraão enviado para o leste, para que não interfe­
rissem na herança de Isaac. Não está claro aqui se
os capítulos descrevem apenas ataques isolados, o
deslocamento de tribos seminômades para áreas
cultivadas em determinadas épocas do ano ou uma
invasão em larga escala, semelhante à invasão da
terra por Israel. Essa questão não pode ser resolvi­
da, mas o que está claro é que o redator estava
mais interessado em apresentar uma mensagem
teológica aos exilados do que em relatar um evento
político e militar.
Esses capítulos dividem-se em quatro partes
principais; a vocação de Guideon (6,1-40); a derrota
dos midianitas (7,1-8,3); a perseguição dos reis dos
midianitas (8,4-21) e a oferta de realeza (8,22-28),
6,1-40 A vocação de Guideon. A história de
Guideon começa com a estrutura padrão das histó­
rias dos juizes. A opressão midianita é descrita como
muito grave e difundida, estendendo-se da Palestina
central e setentrional até o sudoeste. Junto com outros
povos nômades, os amalequitas e os filhos do Orien­
te, os midianitas estavam rápida e indiscriminada­
mente saqueando o campo. Os israelitas foram força­
dos a procurar esconderijos, onde estabeleceram uma
série de refúgios e inventaram um sinal para avisar
a aproximação dos midianitas (vv. 2-5). Reduzidos
a completa miséria, os israelitas clamam ao Senhor
(v. 6). Agora aparece um novo elemento: em resposta
ao clamor de Israel, o Senhor envia um profeta para
lembrar o povo de tudo que o Senhor fez por ele e
como o Senhor lhe ordenara para não venerar os
deuses pagãos dos emoritas. Mas Israel desobedeceu
e, na verdade, cultuou os deuses pagãos. O propó­
sito destes vv. (7-10) é a acusação de que, pela deso­
bediência, os israelitas provocaram o próprio sofri­
mento, mensagem importante para o público do livro,
isto é, os exilados.
A vocação de Guideon é relatada no que pare­
cem ser duas tradições divergentes, nos vv. 21-24
e 25-32. A primeira é uma lenda cultuai que explica
as origens do santuário em Ofrá e mostra Guideon,
um agricultor, batendo o trigo em um lagar, a fim
de escondê-lo dos saqueadores. Um anjo do Senhor
aparece a Guideon e convoca-o para salvar o povo
(v. 12). Aqui, como em outras passagens do Antigo
Testamento, o anjo representa o Senhor e é permu­
tável com o Senhor .Obviamente sem ter consciên­
cia das explicações do profeta nos vv. 7-10, Guideon
contesta a saudação do anjo com um comentário
sarcástico, afirmando que em vez de estar com ele,
0 S enhor abandonou o povo (v. 13). Apesar do
sarcasmo de Guideon, o Senhor o envia para salvar
Israel (v. 14) e assegura-lhe o sucesso porque “Eu
estarei contigo” (vv. 15-16). Esta troca de palavras
reforça a idéia de que só Deus é responsável pelo
que está prestes a acontecer (cf o cap. 7). Não sa­
tisfeito ainda, Guideon pede um sinal, que o Senhor
238 dá (w. 17-21). Aqui, o sinal é cultuai: a divindade
consome a oferenda de um jeito especial. Consa­
grado pelo fogo do rochedo, Guideon aí constrói
um altar ao Senhor e o chama “O Senhor é paz”
(vv. 22-24). “Shalom” é palavra complexa, que ex­
prime idéias de paz, colaboração e acordo entre as
partes. A idéia de que ver o Senhor pode ser fatal
(v. 22) encontra-se diversas vezes no Antigo Testa­
mento (p. ex. Ex 19,21; 33,18-23).
A história da destruição do altar de Báal e da
construção de um altar apropriado ao Senhor (vv .
25-32) é uma variação da história anterior. O reda­
tor incluiu-a aqui por duas razões: mostrar que
Guideon só pode esperar derrotar os inimigos de
Israel se eliminar o culto dos deuses estrangeiros e
explicar o outro nome de Guideon, seu nome “báal”,
“lerubáal”, que tem a explicação ligada à reação
do povo à demolição do altar de Báal por Guideon.
Querem que o pai de Guideon, loash, entregue-o
para que o matem (vv. 28-30). A resposta de loash
(v. 31) é que todo aquele que defender Báal, agin­
do contra Guideon sem a autorização de Báal, tam­
bém será morto e, se Báal é realmente Deus, que
ele mesmo defenda sua causa. O segundo nome de
Guideon é um trocadilho com a palavra hebraica
que significa “litigar, tomar uma atitude contra, pro­
cessar”. Portanto, seu nome significa algo como
“que Báal processe” ou “tome uma atitude” .
Os vv. 33-40 formam a transição para o com­
bate contra os midianitas descrito no capítulo 7. Os
midianitas e seus aliados atravessam o Jordão, vin­
dos do deserto, em um de seus ataques e assumem
o controle da planície de Jezreel (v. 33). Original­
mente, a história tratava apenas da família de Gui­
deon e da família de Abiézer, da tribo de Manassés,
mas em alguma etapa da compilação do material
tomou-se uma história sobre todo Israel. Por isso, as
referências aqui às tribos de Aser, Zabulon e Neftali
são secundárias. Antes de entrar em combate, Gui­
deon busca a certeza da aprovação divina por meio
de um oráculo (vv. 36-40). Os oráculos antes do
combate são comuns no Antigo Testamento ( c f , por
ex., 4,6-7; Js 6,2-5; 7,10-15; 8,1-2). Talvez o uso do
velo fosse prática aceita. Guideon pede uma segunda
prova, porque a primeira pode ter sido inconclusa,
isto é, porque o velo poderia ter recebido orvalho,
embora o chão parecesse seco.
7,1-8,3 Derrota dos midianitas. Convencido da
aprovação divina para entrar em combate, Guideon
acampa em uma colina acima do acampamento dos
midianitas. Os detalhes topográficos no v. 1 não es­
tão muito claros, mas parece que as forças oponentes
estavam acampadas no extremo sudeste da planície
de Jezreel. Embora o Senhor não dissesse nada quan­
do Guideon reuniu suas tropas (6,34-35), agora lhe
diz para reduzir o tamanho de seu exército, para que
os israelitas não recebam o crédito pela vitória futura
O propósito de 7,1-8 é mostrar que o Senhor é o
responsável pela vitória contra os midianitas. A his­
tória original descrevia a vitória de apenas trezentos

filhos de Abiézer contra os midianitas. Mais tarde,
quando a vitória foi atribuída a todo Israel, os reda­
tores aproveitaram a oportunidade para afirmar que
Deus concedera a vitória, fazendo Guideon man­
dar todos os guerreiros para casa, exceto trezentos.
Há duas reduções de tropas (vv. 3-6). A natureza
do teste nos vv. 4-6 é incerta. Por que escolher os
soldados que lambem a água com a língua, como
cães? Talvez tenha sido um teste arbitrário para
fornecer um meio pelo qual Deus pode escolher. O
v. 8 explica como os trezentos conseguem cântaros
e trompas suficientes para usar na estratégia de com­
bate (cf. os vv. 16-22).
Conhecendo a necessidade que Guideon tem
de contínuas garantias de sucesso, o Senhor agora
toma a iniciativa e lhe diz para se esgueirar até o
acampamento midianita com seu servo e ouvir o
que dizem (vv. 9-11). Em contraste com a fiaqueza
e o temor de Guideon, o que é revelado é o poder
do Senhor .O que Guideon ouve é um homem con­
tando a outro seu sonho (vv. 13-14). O propósito
da migalha de pão que simboliza Israel é mostrar
como ela é pequena e inadequada em relação ao
que é capaz de fazer. Mais uma vez, é demonstra­
do que o Senhor será o responsável pela vitória.
Os vv. 16-22 descrevem o ataque contra os mi­
dianitas. Note-se que Guideon e seus homens não
se envolvem em nenhuma luta; em vez disso, é o
S enhor que joga os midianitas uns contra os outros
(v. 22). Israel dividiu a noite em três vigílias de
quatro horas cada. O ataque começa no início da
vigília da meia-noite (v. 19). É difícil imaginar
como os soldados israelitas podiam simultanea­
mente realizar as ações descritas nos vv. 19-20. É
mais provável que diversas tradições diferentes
tenham sido combinadas aqui. Amedrontados pela
repentina explosão de luz ao redor de seu acampa­
mento e pelo barulho provocado pela quebra dos
cântaros, pelas trompas e pelos gritos, os midianitas
entram em confusão e fogem para o leste e o rio
Jordão.
Mais uma vez Guideon reúne as tribos para o
combate e as envia aos vaus do rio para interceptar
os midianitas em fuga, enquanto eles tentam atra­
vessar o Jordão. Do ponto de vista logístico, esse
procedimento de Guideon não faz muito sentido.
Ele reúne todas as tribos e manda todas para casa,
com exceção de trezentos homens. Então, quase
imediatamente, volta atrás e convoca as outras tri­
bos de volta, o que levaria algum tempo e não é
compatível com a velocidade necessária para al­
cançar os vaus do rio presumida pelo texto. Essa
tensão no texto resulta da transformação daquilo
que originalmente era a vitória de uma única tribo
em uma vitória de todo Israel. A convocação de
Efraim no v. 24 não se encaixa bem com a queixa
de Efraim em 8,1-3. Aparentemente, os effaimitas
queixam-se de ter sido convocados muito tarde para
o combate. O texto pressupõe que Efraim era a
JUiZES 8
tribo mais importante da época. Com boa diploma­
cia oriental, Guideon acalma os efraimitas, citando
um provérbio que diz como a família de Abiézer rea­
lizou pouco em comparação com o que fez Efraim
(vv. 2-3).
8,4-21 A perseguição dos reis midianitas. Aqui
o foco passa das ações de Deus às de Guideon. O
Senhor não aparece nesse capítulo, exceto por uma
referência no discurso de Guideon (vv. 7.19). O re­
dator só pode ter querido mostrar o que aconteceu
a Guideon. Não é uma imagem lisonjeira.
A passagem começa com um retrospecto da si­
tuação em 7,22, com Guideon perseguindo os mi­
dianitas em fuga. Sukot e Penuel eram cidades no
vale do Jordão, mas a leste do rio. A referência aos
dois reis midianitas no v. 5 é surpreendente, já que
não houve nenhuma menção anterior a eles. Parece
que 8,4-12 é uma variante de 7,22-8,3. Os nomes dos
reis estão deturpados e significam algo como “vítima
sacrifical” e “proteção negada”, referências óbvias
ao que lhes vai acontecer. Os ocupantes de Sukot e
Penuel não estão muito convencidos de que Guideon
vai sair vitorioso e, assim, não estão prontos a ajudá-
lo, para mais tarde não sofrer represálias dos midia­
nitas (vv. 6-8).
Guideon captura os dois reis quando eles fogem
de um ataque de surpresa a seu acampamento (w.
10-12). A localização de Qarqor é incerta, mas pode
ter sido o acampamento central do qual os midiani­
tas faziam ataques periódicos à Palestina. Não há
proporção real nos vv. 13-17 entre o crime e o cas­
tigo. Obviamente, Guideon está tentando enviar uma
mensagem aos outros habitantes da área Os “anciãos
da cidade” (v. 16) eram os governantes quando não
havia rei.
Os w . 18-21 surgem como verdadeira surpresa,
mas explicam por que Guideon estava perseguindo
os dois reis midianitas, a saber, vingança de sangue.
Eles haviam matado seus irmãos de sangue, por
isso agora devem ser mortos. Nada é conhecido do
incidente em Tabor (v. 18) que deu origem a essa
vindita.
8,22-28 O ferta de realeza. Originalmente (vv.
22-23), a realeza não teria sido oferecida a Guideon
por todo Israel, como apresentado aqui, mas por
um grupo mais limitado ou uma determinada cida­
de. Como bom seguidor do Senhor ,Guideon recu­
sa a oferta e afirma um princípio javista ortodoxo;
o Senhor seja vosso soberano. Embora Guideon
recuse o título de rei, 8,24s. e 9,2s. deixam claro
que ele aceita o poder sobre o povo e exige os or­
namentos de um juiz. O efod feito dos despojos era
objeto cultuai usado para obter oráculos (cf. Ex
28,15-30). Este efod tomou-se objeto de prática
idólatra, prática na qual o redator põe a culpa pela
queda final da família de Guideon (cf o cap. 9).
Note-se como o redator salienta que “todo” Israel
prestou homenagem idólatra ao efod (v. 27). A
pecaminosidade de Israel continua. 239
 JUÍZES 8
8,29-9,57 Abimélek. Embora haja algumas ten­
sões nesse material, a maior parte da história pros­
segue com uma série de cenas definidas com cla­
reza. Abimélek, um dos filhos de Guideon, con­
segue fazer-se aceito como rei da cidade de Siquém,
matando todos seus irmãos, exceto um, lotâm, que
invoca uma maldição sobre a cidade e Abimélek.
Logo se cria tensão entre Abimélek e os proprietá­
rios de Siquém e inicia-se um conflito militar, em
conseqüência da conspiração chefiada por um ho­
mem chamado Gáal. Abimélek é vitorioso, mas é
uma vitória vazia. Ao sufocar a revolta, ele destrói
a cidade, elimina os proprietários e é morto. Não
há nenhuma razão para negar a historicidade do
que é aqui narrado. Siquém ficava na fronteira
meridional do território da tribo de Manassés, no
planalto central e no século XII se tomara parte da
confederação israelita. A arqueologia confirma uma
destruição da cidade no fim do século XII.
A história de Abimélek não se enquadra no
padrão de outras histórias dos juizes maiores. Pri­
meiro, Abimélek não é retratado como herói que
salva Israel da opressão. Segundo, falta o quadro
estrutural de D, exceto pela afirmação inicial sobre
o pecado de Israel. Essa passagem (8,33-35), junta­
mente com a conclusão (9,56-57), fornece a chave
para entender a história. Em 8,33-35, Israel é acu­
sada de pecaminosidade e de ser ingrato à familia
de lerubáal-Guideon; em 9,56-57, encontramos a
explicação da história: é mostrado como Deus se
vinga do mal que Abimélek fizera e dos homens
de Siquém que se voltaram para a idolatria e des­
truiram a família de Guideon. Em outras palavras,
a história é sobre a pecaminosidade e o castigo de
Israel. Como vem imediatamente após a recusa da
coroa por Guideon, a história de Abimélek se des­
taca como 0 conto do filho mau que aceitou a
coroa — de fato, procurou-a. A história tem tam­
bém forte sentimento antimonarquista. A ênfase no
pecado e no castigo destina-se especialmente aos
exilados: a razão da destruição de Jerusalém e da
perda da terra no tempo deles é sua pecaminosi­
dade, em especial o culto de deuses estranhos.
A ênfase em todo Israel na história é clara­
mente secundária, isto é, acrescentada depois do
fato. Abimélek nunca reinou sobre todo Israel, mas
somente sobre a cidade-estado de Siquém e seus
territórios.
A descrição dos filhos de Guideon e a nota
sobre a morte de Guideon em 8,29-32 atuam como
transição para a história de Abimélek. A concubina
é mulher legítima, mas de segunda categoria. O
deus Báal-Berit (v. 33) era a divindade padroeira
de Siquém. Ao aceitá-lo, o povo voltou à forma
pré-israelita de governo conhecida em Siquém, a
monarquia. A rejeição do Senhor é também a rejei­
ção de um sistema sociopolítico.
Como Abimélek não tinha direito de governar
2 40 a cidade, teve de abordar os proprietários de Siquém
por intermediários, os irmãos de sua mãe que ali
moravam (9,1-3). Os “proprietários”, as pessoas
proeminentes de Siquém que formavam uma as­
sembléia eívica, tinham o poder de nomear um rei.
Por trás da história está o fato de que, embora
Guideon não aceitasse a realeza, depois de sua mor­
te seus filhos exerceram considerável influência, e
os proprietários de Siquém estavam descontentes
com tal situação. Dispõem-se, então, a dar a Abi­
mélek o dinheiro para contratar vagabundos e aven­
tureiros para matar seus irmãos (vv. 4-5). A refe­
rência a “de uma só vez” (v. 5) sugere uma execu­
ção pública no mesmo lugar. 70 é um número re­
dondo que significa muitos. Sobre o terebinto (car­
valho) sagrado de Siquém, c f Gn 12,6; Dt 11,30;
Js 24,26.
A fábula de lotâm (vv. 7-15) foi encaixada aqui
pela adição do v. 15 e reflete a forte rejeição da
instituição da monarquia. Embora a oliveira, a fi­
gueira e a vinha sejam árvores típicas e apreciadas
na Palestina, o espinheiro, à parte o fato de produzir
belas flores na primavera, parecia inútil aos antigos
e verdadeira praga por causa dos espinhos. O pro­
pósito da fábula é mostrar que só os piores e menos
qualificados estão dispostos a aceitar a coroa. O
discurso de lotâm (vv. 16-21) é dirigido aos proprie­
tários de Siquém que não agiram de forma honrosa
ao fazer Abimélek rei, e ele pronuncia uma maldi­
ção contra os proprietários e Abimélek. Os vv. 17­
18 são uma adição posterior ao texto, para explicar
a afirmação do v. 16.
Depois de apenas três anos, os proprietários
de Siquém se rebelam contra Abimélek. O autor
atribui isso â ação de Deus (v. 23), para iniciar a
sucessão de acontecimentos que levam à destrui­
ção de Siquém e à morte de Abimélek. A assem­
bléia cívica podia nomear o rei e também depô-lo.
O que realmente leva à fase decisiva é a chegada
de Gáal, que instiga uma rebelião em larga escala
contra Abimélek (vv. 26-29).
Quando Abimélek fica a par disso por intermé­
dio do governador da cidade, chega com seu exér­
cito e derrota Gáal (vv. 30-40). Note que Abimélek
não reside em Siquém, mas em Arumá, cidade
próxima. Tabur-Haares significa “Umbigo da Terra”
e Elon-Meonemim significa “Carvalho dos Adivi­
nhos”. Referem-se a lugares próximos a Siquém.
Depois que Gáal é derrotado, Zebul não lhe permite
continuar a usar Siquém como base de operações
e ele desaparece. No dia seguinte, Abimélek volta e
arma uma emboscada contra a população de Siquém
que foi ao campo verificar os estragos em suas
plantações. Semear sal sobre um local (v. 45) é um
antigo rito de maldição. Pelos vv. 46-49, ficamos
sabendo que Abimélek destruiu apenas a parte baixa
da cidade. A cidade alta ficava sobre uma plata­
forma artificial que sustentava o palácio do gover­
nador e o templo de Báal-Berit (também conhecido
como Bet-Milõ; veja os vv. 6.20). Os proprietários

restantes refugiam-se na caverna do templo de
El-Berit. O verdadeiro significada da palavra
traduzida aqui por “caverna” é desconhecido. Al­
guns gostariam de traduzi-la por “cidadela”. A refe­
rência é a alguma parte do templo fortificado que
Abimélek incendeia, matando os que se haviam
refugiado ali (vv. 46-49).
O fim de Abimélek chega quando ele ataca
Tebes, cidade a nordeste de Siquém (vv. 50-55).
Aparentemente, Tebes participara da revolta. A morte
nas mãos de uma mulher era considerada desgraça
(v. 54). Com sua morte, falha a primeira tentativa
de iniciar a monarquia em Israel.
10,1-5 Tolá e lair. São os primeiros dos juizes
“menores”. As descrições desses homens seguem
um padrão regular; nome, origem, tempo na função,
morte, sepultamento e família. Como os números
de anos na função não são estereotipados, é prová­
vel que sejam originais da tradição. Embora agora
se diga que julgaram todo Israel, sua esfera origi­
nal de influência devia se limitar a uma área deter­
minada. Além disso, seu trabalho deve ter sido con­
temporâneo ao de outros juizes menores ou até ao
dos juizes maiores. Seu papel não é claro. Já expli­
camos na introdução que a palavra hebraica para
“julgar” também significa “governar”. É possível,
então, que fossem espécies de administradores lo­
cais. É afirmado que Tolá “salvou” Israel, o que
talvez signifique que, depois da confusão e ansie­
dade da época de Abimélek, Tolá trouxe estabilida­
de com sua administração.
10.6- 12,7 Jefté. A história de Jefté é uma com­bre que querem de volta a terra que alegam lhes
posição de diversas tradições às quais foram acres­
centadas algumas adições mais tardias. A história
desenvolve-se assim; prólogo (10,6-16); Jefté é cha­
mado de volta (10,17-11,11); conversações de Jefté
com os amonitas (11,12-28); promessa de Jefté, der­
rota dos amonitas (11,29-40) e derrota dos efrai-
mitas (12,1-7).
10.6- 16 Prólogo. Estes w . introduzem a his­co é que 0 território em disputa não pertencia nem
tória de Jefté e contêm uma versão ampliada do
quadro estrutural de D. O interessante aqui é como
essa estrutura se ampliou: primeiro, pela inserção
da lista de divindades, no v. 6; depois pela inser­
ção da lista dos oponentes passados, presentes e fu­
turos de Israel, nos vv. 11 e 12, e a discussão entre
0 S enhor e o povo a respeito da resposta do S enhor
a seus gritos, nos vv. 10-16. Recapitulando 2,6-3,6
e referindo-se aos inimigos passados e futuros
(filisteus) de Israel, esta parte se torna uma intro­
dução teológica à segunda metade do livro dos
Juizes. A questão é que não há nada automático na
resposta do S enhor ao clamor de Israel (cf. os vv.
11-14). É necessário mais do que palavras admi­
tindo a culpa. O que finalmente faz o S enhor não
suportar o sofrimento dos israelitas (v. 16) é que,
além de admitir a culpa, eles também se mostram
dispostos a aceitar o castigo (v. 15) e, mais impor­
tante, a erradicar os deuses estrangeiros de seu meio
JUIZES 11
(v. 16). O autor está dizendo aos exilados o que se
espera deles.
Desta vez os opressores são os amonitas, que
ocuparam o território dos moabitas a leste do rio
Jordão. Afligiram especialmente os israelitas em
Bashan, a leste do Jordão, perto do mar da Galiléia
e na parte meridional de Guilead, que pertencia à
tribo de Gad. As vezes, atravessavam o Jordão e
saqueavam as tribos meridionais de Judá, Benjamin
e Efraim.
10,17-11,11 Jefté é chamado de volta. 10,17-
18 deixa claro que nenhum dos chefes de Guilead
queria começar a guerra contra os amonitas. Por
isso, a atenção se volta para Jefté, chefe de um ban­
do que saqueava a área (11,1-3). Por causa de seu
nascimento ilegítimo, fora expulso de sua terra pelas
mesmas pessoas que agora querem-no de volta para
chefiá-los no combate. Ao contrário das histórias
dos outros juizes, o chamado de Jefté para ser juiz
não ocorre em um único momento; acontece por
meio de conversações. Nas conversações com os
anciãos (vv. 4-10), eles primeiro lhe oferecem ape­
nas 0 papel de comandante (v. 6). Quando Jefté
não aceita imediatamente, aumentam a oferta para
ser “o chefe de todos os habitantes de Guilead” (v.
8), 0 que parece sugerir que a função de juiz in­
cluía responsabilidades administrativas, além de
militares. O v. 11 trata de certa forma de investidura.
11,12-28 Conversações com os am onitas.
Antes de correr para a batalha, Jefté tenta esclare­
cer as razões da hostilidade dos amonitas e desco­
ter sido tomada pelos israelitas quando estes subi­
ram do Egito (vv. 12-13). Então, Jefté expõe a jus­
tificativa histórica e teológica para a ocupação por
Israel da terra disputada a leste do Jordão. O mate­
rial dos vv. 13-27 é, sem dúvida, uma inserção
mais tardia para justificar a posse da terra entre os
rios Arnon e Jaboc por Israel. O argumento históri­
a Amon nem a Moab, mas fazia parte do antigo
reino de Sihon, que Israel conquistara sob Moisés.
O argumento teológico é que os territórios perten­
cem aos que os receberam de sua divindade parti­
cular e que o Deus israelita lhes dera esse território.
O esboço histórico nos vv. 15-22 está de acordo
com Nm 20-24.
11,29-40 A promessa de Jefté e a derrota
dos amonitas. Agora o espírito do S enhor vem
sobre Jefté, que inflige severa derrota aos amonitas.
O centro de atenção nesta cena é o voto de Jefté;
se o S enhor entregar os amonitas em suas mãos,
ele oferecerá em holocausto ao S enhor quem quer
que saia das portas de sua casa quando ele voltar
(vv. 30-31). Quem sai a seu encontro é sua filha.
Há alguns paralelos a esse acontecimento no fol­
clore comparado. O que surpreende é o autor não
ter censurado esse relato de sacrifício humano!
Alhures no Antigo Testamento ele é condenado (Lv 241
 JUÍZES 12
18,21; 20,2-5; Dt 12,31; 18,10; Mq 6,7). Entretan­
to, aqui o fato do sacrifício humano é secundário
ao tema da irrevocabilidade da promessa de Jefté.
Uma vez feita, a promessa tem de ser cumprida. O
que complica a situação é que agora a história é
usada como etiologia para uma festa de lamenta­
ção extinta em Israel (vv. 39-40). Alguns a conside­
ram um mito transmitido como história para expli­
car a festa. Talvez ela tenha o propósito de mostrar
os efeitos lamentáveis de não confiar na disposição
do S enhor de salvar Israel. Não há necessidade
dessas práticas pagãs.
12.1- 7 D errota dos efraim itas. Esta história,não é citado. Seu pai é de Soreá, cidade no território
que preserva lembranças de conflitos de fronteira
entre Guilead e Efraim, está vagamente ligada ao
resto. Como na história de Guideon (8,lss.), os
efraimitas ficam transtornados por não terem sido
convocados para ajudar no combate aos amonitas.
Jefté alega que foram convidados mas não respon­
deram (vv. 1-3). No dialeto falado pelos efraimitas,
a sibilante inicial de shibólet não podia ser pronun­
ciada corretamente, desse modo, dando-os a co­
nhecer. O sentido do insulto no v. 4 não está claro.
A conclusão da história de Jefté em 12,7 vem
da fórmula usada para os profetas menores, levando
alguns a considerar Jefté um desenvolvimento mais
tardio de alguém que originalmente era apenas um
dos juizes menores. Essa idéia é apoiada pelo fato
de que a história de Jefté está entre as duas relações
de juizes menores (10,1-5 e 12,8-15).
12,8-15 Ibsan, Elon e Abdon. Segunda e últi­
ma relação dos juizes “menores”, seguindo o modelo
da primeira relação (10,1-5).
13.1- 16,31 Sansão. As histórias de Sansãoé possível que esse capítulo tenha sido composto
contêm o ciclo mais extenso de tradições do livro
dos Juizes. Embora não haja razão para negar sua
historicidade, está claro que essas tradições foram
profundamente alteradas por elementos lendários,
cultuais e folclóricos — talvez até por antigos mitos
solares. O nome de Sansão (Shimshon) relaciona-se
com a palavra hebraica para sol, e ele vem de uma
região próxima a Bet-Shémesh (templo do sol).
Há algumas diferenças significativas entre as
tradições de Sansão e o outro material do livro. O • menino que vai nascer (vv. 8-14). Na conversa com
quadro estrutural de D reduz-se a um relato sobre
0 pecado do povo e sua entrega pelo Senhor ao
poder dos filisteus. Nada é dito sobre um clamor
ao S enhor. Além disso, Sansão jamais comanda um
exército e não liberta Israel nem dos filisteus nem
de qualquer outro opressor. Suas relações com os
filisteus parecem estar no nivel de um feudo par­
ticular. Entretanto, o redator considera essas faça­
nhas 0 início da libertação de Israel do poder dos
filisteus.
Cada uma das diversas tradições tinha uma
existência independente anterior. Entretanto, o reda­
tor habilidosamente juntou-as em um todo coerente.
O material divide-se em quatro partes: nascimento
242 de Sansão (cap. 13), seu casamento (cap. 14), der­
rota dos filisteus por Sansão (cap. 15) e captura e
morte de Sansão (cap. 16).
13,1-25 Nascimento de Sansão. O capitulo
começa com uma forma breve da estrutura de D
(v. 1). Os filisteus tinham entrado na Palestina cer­
ca de cinquenta anos depois dos israelitas, como
parte da migração dos povos do mar do Egeu e de
Creta. Repelidos pelos egípcios por volta de 1200
a.C., estabeleceram-se na costa mediterrânea da
Palestina.
Os w. 2-5 relatam o anúncio pelo anjo do pró­
ximo nascimento de Sansão a sua mãe, cujo nome
originahnente entregue à tribo de Dan e ponto de par­
tida para a migração dos danitas para o extremo norte
da Palestina (cap. 18). A esterilidade é tema comum
no Antigo Testamento (cf. Gn 11,30 e ISm 2,2s.) e
é usada como oportunidade para a milagrosa inter­
venção divina, por meio da qual uma criança nasce
para cumprir missão especial. Nos w. 4 e 5, a regra
do nazirado (Nm 6,1-8) é adaptada para a consagra­
ção de uma pessoa no ventre. Normalmente, o nazir
era um adulto que, de livre e espontânea vontade, se
consagrava ao S enhor pela vida toda ou por determi­
nado período. Sansão é consagrado desde a coneep-
çâo, por isso os ritos antes de seu nascimento apli-
cam-se também a sua mãe. Sansão viverá sob estes
regulamentos: abster-se de vinho e bebidas alcoó­
licas, não raspar a cabeça e evitar todo contato com
os mortos. O v. 7 acrescenta que será um nazir até a
morte.
Como os capítulos seguintes não se referem
ao voto de nazirado sob o qual se encontra Sansão,
mais tarde como introdução ao ciclo, a fim de trans­
formar a história de Sansão em uma narrativa da
transgressão do voto do nazirado. É essa pessoa
pecaminosa que o Senhor usa para começar a liber­
tação do povo do poder dos filisteus (v. 5).
Nos vv. 6-23, 0 pai de Sansão, Manôah, mos­
tra a característica cautela semitica sobre o teste­
munho de uma mulher e, assim, precisa ouvir ele
mesmo o que ele e sua mulher precisam fazer pelo
0 anjo, Manôah procura um sinal, que recebe na
consumação do holocausto pelo fogo e na elevação
do anjo na chama (v. 19). Só então se convence de
que 0 mensageiro vem de Deus. Quando Manôah
pergunta-lhe o nome, o anjo não o revela, dizendo
que ele é “misterioso”, isto é, incompreensível, como
as obras de Deus (veja os w . 18.19).
14,1-20 Casam ento de Sansão. As primeiras
façanhas de Sansão acontecem no contexto de seu
casamento. Em Timná, cidade filistéia, distante
alguns quilômetros de Soreá, Sansão se apaixona
por uma filistéia e pede aos pais que vão tomá-la
para ser sua esposa (vv. 1-3). Normalmente, as con­
versações de casamento eram conduzidas pelo pai
do noivo. Os pais de Sansão ficam descontentes

porque ela não é israelita; uma esposa estrangeira
era considerada perigosa para a segurança. No
Antigo Testamento, a palavra “incircuncisos” (v. 3)
é usada apenas a respeito dos filisteus, indicando
o fato de que eram os únicos na região que não
praticavam o rito da circuncisão. Talvez o redator
também não aprovasse esse casamento, mas no v.
4 ele fornece a chave interpretativa para o resto do
capítulo; 0 que está prestes a acontecer faz parte
do plano do Senhor .Embora não esteja explícito,
parece que o autor considera esses acontecimen­
tos, especialmente os dos vv. 19-20, o meio pelo
qual o Senhor começa a libertar Israel dos filisteus
(13,5).
Todo o processo da ida e volta de Sansão a
Timná (vv. 5-9.10) é obscuro e as referências a seus
pais nos vv. 5 e 10 são embaraçosas. Talvez sejam
adições mais tardias para mostrar que os pais de
Sansão concordaram com ele e arrumaram o casa­
mento apesar de sua oposição. Entretanto, a parte
importante é a morte do leão e o encontro posterior
do mel em sua carcaça. E o espírito do S enhor que
dá a Sansão a força para lidar tão facilmente com o
leão (v. 6). Note que Sansão quebra o voto do nazi-
rado, comendo o mel, impuro por ter sido tirado de
um cadáver.
E impossível solucionar o enigma de Sansão
(vv. 10-18) sem conhecer as ações privadas do herói.
Os filisteus só conseguem resolvê-lo ameaçando
sua mulher (v. 15). Essa traição faz com que Sansão
realize uma de suas façanhas contra os filisteus (v.
19). Ashqelon era uma fortaleza filistéia na costa,
a sudoeste de Timná.
15,1-20 D errota dos filisteus. Quando a raiva
passa, Sansão vai visitar sua mulher, levando-lhe
um cabrito de presente (v. 1). Entretanto, não o
deixam entrar, porque o pai dela já a deu ao acom­
panhante de honra de Sansão, tendo interpretado a
saída repentina de Sansão (14,19) como repúdio e
divórcio dela. O pai propõe uma alternativa, mas
Sansão sai irritado (v. 3).
É difícil visualizar o incidente com as raposas
(vv. 4-5). Obviamente, tem o propósito de ser uma
espécie de tática de guerrilha. Em tudo isso, Sansão
parece estar exagerando, pois foi ofendido por uma
única família.
Os filisteus não demoram a retaliar contra a
mulher de Sansão e a família dela. Sansão se vinga
dos filisteus (vv. 6-8) e foge para Etâm, no territó­
rio da tribo de Judá. Os filisteus pressionam Judá
para que lhes entregue Sansão (vv. 9-10). Tanto a
localização de Etâm como a de Léhi são desconhe­
cidas. Léhi significa “queixo” e sua presença aqui
nos prepara para o trocadilho no v. 17. Agora ho­
mens de Judá descem para capturar Sansão e, para
seu espanto, encontram-no pronto a se render (vv.
11-13). O grande número que foi capturá-lo mostra
que não esperavam tanta facilidade (v. 11). Quando
Sansão vê os filisteus, o espírito do Senhor desce
JUÍZES 16
sobre ele, movendo-o mais uma vez a ação extraor­
dinária (vv. 14-16), outro feito pelo qual o S enhor
começa a libertar Israel dos filisteus (cf. 13,5).
Note que Sansão transgride outra vez a lei do
nazirado, tocando a carcaça de um animal. O v. 17
nos diz que o nome do lugar, “Rámat-Léhi” (Alto da
queixada) explica-se pela ação de Sansão de jogar
para longe a queixada. Os w. 18-19 apresentam a
etiologia de uma fonte em Léhi chamada “En-Qoré”,
isto é, “fonte daquele que invoca”.
É provável que a nota sobre a magistratura no
V. 20 indique a conclusão de uma edição primitiva
das histórias de Sansão e que o capítulo 16 tenha
sido acrescentado mais tarde (c f 16,31).
16,1-31 C ap tu ra e m orte de Sansão. Este
capítulo tem três episódios separados; Sansão e a
prostituta (vv. 1-3); Sansão e Dalilá (vv. 4-22) e a
morte de Sansão (vv. 23-31). Os dois últimos episó­
dios estão claramente relacionados, mas o primeiro
parece ser independente. Entretanto, por causa da
força de Sansão, é um bom preparo para a pergunta
do V. 5.
O episódio com a prostituta (vv. 1-3) acontece
em Gaza, uma das cidades filistéias na costa meri­
dional da Palestina. As portas da cidade de então
tinham uma abertura semelhante a um túnel, ladeada
por salas de guarda. Sansão conseguiu escapar à
emboscada na porta, saindo em uma hora inespera­
da, quando os homens estavam esperando nas salas
de guarda, pois não esperavam que Sansão saísse
antes de amanhecer. A distância de Gaza a Hebron
é de cerca de sessenta quilômetros e o caminho é
ascendente.
Sansão agora se apaixona por Dalilá. Esse epi­
sódio (vv. 4-22) é uma série de cenas estereoti­
padas em que Sansão parece tão enfeitiçado por
Dalilá que seu comportamento é ridículo e anormal.
Um forte elemento de magia percorre o episódio.
Primeiro, os filisteus parecem acreditar que um
poder mágico ou sobrenatural dá força a Sansão (v.
5). As três primeiras explicações que Sansão dá de
sua força também se baseiam em idéias mágicas
(vv. 6-14). Cordas de arco (v. 7) eram feitas de ten­
dões de animais abatidos; mais uma vez, Sansão
desrespeita a regra do nazirado, tendo contato com
parte de um cadáver. Por fim, na quarta vez que dá
a explicação de sua força, Sansão fala a verdade
(vv. 15-17). E a primeira vez que a força de Sansão
é apresentada como algo permanente e que reside
em seu cabelo não cortado. Nas outras histórias, a
força lhe é dada apenas em ocasiões especiais como
dádiva do espírito do S enhor (14,6.19; 15,14). A
história em 16,1-3, entretanto, supõe algum tipo de
força permanente, da mesma maneira que 15,8. A
nota ameaçadora no v. 22 prepara para os w. 28-30,
em que a força de Sansão é novamente o resultado
de uma dádiva do S enhor para a libertação de Israel.
Sansão é incapaz de fugir depois que seu cabelo
foi cortado (v. 20), porque o S enhor se afastara 243
 JU(ZES17
dele. A última das transgressões da regra do nazi-
rado — que acontecem com demasiada freqüência
— ocorre quando raspam a cabeça de Sansão.
Talvez a razão do acréscimo do episódio da
morte (vv. 23-31) fosse mostrar que embora Sansão
tivesse esbanjado sua força por egoismo, no fim ele
se voltou para o S enhor (v.28) e teve morte honrosa,
fazendo a justiça divina cair sobre os filisteus. Dagon
(v. 23) era uma antiga divindade agrícola do mundo
semítico ocidental. Na Bíblia, aparece exclusiva­
mente como divindade filistéia. Dagon significa
“grão”. O número três mil no v. 27 parece exagero,
o que foi, provavelmente, intenção do redator, em
vista da afirmação no v. 30.
O capítulo conclui (v. 31) repetindo a extensão
do tempo em que Sansão julgou Israel (c f 15,20).
Não há nenhuma referência à paz na terra, pois o
compilador percebeu que as façanhas de Sansão
foram apenas o começo da libertação de Israel dos
filisteus.
PARTE III: APENDICE
Jz 17,1-21,25
O apêndice do livro dos Juizes contém dois epi­
sódios aqui colocados porque tratam do período
anterior à monarquia: a migração de Dan para o
norte (17,1-18,31) e aguerra civil contra Benjamin
(19,1-21, 25). A afirmação: “Naquele tempo não
havia rei em Israel, cada um fazia o que era certo
a seus olhos”, aparece no início (17,6) e no fim do
apêndice (21,25). Em 18,1 e também em 19,1, há
o lembrete que “naqueles dias, não havia rei em
Israel”. São, na verdade, declarações pró-monarquia
que 0 redator inseriu porque não considerou louvá­
veis os acontecimentos narrados nesses capítulos.
Só podiam ter acontecido porque não havia rei na
terra. O redator via a monarquia como um fator
estabilizador necessário em Israel.
17,1-18,31 A migração de Dan. O propósito
destes dois capítulos não é apenas relatar a história
de Dan, mas sim dar informações sobre as origens
e a natureza do santuário de Dan. Esse santuário
tomara-se importante em 922 a.C., quando as tribos
do norte se separaram das do sul e formaram o rei­
no de Israel. Em resultado dessa separação, o san­
tuário de Dan passara a ser o santuário nacional do
reino do norte, juntamente com o de Betei. Os sa­
cerdotes de Jerusalém desaprovaram o culto do
Senhor no santuário de Dan. Esses dois capítulos
argumentam contra esse santuário, mencionando
que 0 culto ali representava uma fusão de devotos
desiguais e que a prata usada para fazer o objeto
sagrado ali era proveniente de dinheiro roubado.
Embora tendo linhagem nobre, o sacerdócio ali apa­
rece como tendo transigido.
O capítulo 17 constitui o pano de fundo para
os acontecimentos do capítulo 18. Note-se que o
244 ídolo fundido (vv. 3-4) é um ídolo do S enhor, o
que é expressamente proibido pela Lei mosaica
(cf. Ex 20,4-6). Miká também faz um efod (cf
8,24-27) e ídolos domésticos, isto é, artigos usados
para a adivinhação (v. 5). No começo, ele faz de
um de seus filhos o sacerdote, isto é, aquele que
tomava conta do santuário e proferia oráculos.
Um jovem levita de Bet-Lehem aparece pro­
curando uma situação melhor e Miká o convence
a ser seu sacerdote (vv. 7-13). O interesse de Miká
em ter um sacerdote levita sugere que os levitas já
eram conhecidos como mais habilidosos em ques­
tões cultuais. O título “pai” (v. 10) enfatiza o papel
do sacerdote como adivinhador cultuai e transmis­
sor de oráculos.
O capítulo 18 começa com a afirmação que os
danitas procuravam um território onde morar, pois
não haviam recebido nenhum patrimônio entre as
tribos de Israel (v. 1). À luz de Js 19,40-48, é di­
fícil aceitar essa afirmação. Eles haviam recebido
território a oeste de Benjamin, ao sul de Efraim e
ao norte de Judá. Entretanto, foram tão restringidos
pelos emorítas e filisteus (veja 1,34) que não conse­
guiram controlar o território, por isso enviaram ex­
ploradores para procurar um distrito melhor. Soreá
e Eshtaol (v. 2) são cidades do antigo território
danita encontradas nas histórias de Sansão. Os ex­
ploradores reconheceram provavelmente o levita co­
mo proveniente do sul pelo sotaque (v. 3). Um dos
principais papéis do sacerdote era consultar Deus
em benefício do povo (v. 5). A resposta favorável
do sacerdote será usada mais tarde para justificar
a conquista de Láish e a morte de seus habitantes
(V . 10).
Láish (v. 7) era uma cidade na extremidade
setentrional da terra, perto das fontes do rio Jordão.
O lugar é rico em recursos e o povo, tranqüilo e
confiante, vive em uma cidade sem muros. A afirma­
ção de que o povo vivia “à maneira dos sidônios”
parece indicar que a cidade seguia os costumes
fenícios. Os exploradores justificam sua recomen­
dação para atacar a cidade, dizendo que Deus a
entregou a suas mãos (vv. 8-10, e c f v. 6). “Mahanê-
Dan” (v. 12) significa “acampamento de Dan”.
Os danitas põem à frente os nâo-combatentes,
o rebanho e as bagagens (v. 21) porque esperam
ser atacados pelas costas assim que Miká descobrir
que roubaram seus ídolos e seu sacerdote. Miká
vai atrás deles, mas volta para casa quando descobre
força numerosa, (vv. 22-26).
A matança da população de Láish (v. 27) é
injustificável. A que o pecado levou! Os danitas
reconstroem a cidade, poem-lhe o nome de seu
ancestral e erigem o ídolo fundido que pertencera
a Miká (vv. 28-30). No v. 30, o levita de repente
tem nome, lehonatan, filho de Guershom, filho de
Moisés. A “época da deportação da terra” (v. 30)
refere-se ao ano 734 a.C., quando a Palestina se­
tentrional caiu nas mãos dos assírios e o templo de
Dan foi destruído. O v. 31 menciona que os danitas

tinham preservado seu santuário em Dan durante o
tempo que a verdadeira casa de Deus subsistiu em
Shilô.
19.1- 21,25 Guerra civil contra Benjamin.
Esses três capítulos são formados por algumas
narrativas de origem independente combinadas com
habilidade em uma história contínua. Apresentam
outro exemplo de como as coisas podiam dar erra­
do porque “naqueles dias não havia rei em Israel;
cada um fazia o que era certo a seus olhos” (21,25).
Um crime hediondo é cometido e Israel reage de
tal maneira que provoca uma guerra civil em larga
escala.
Os capítulos dividem-se em três passagens; O
episódio com o levita e sua concubina (19,1-30); a
assembléia de Israel e a guerra punitiva contra Ben­
jamin (20,1-48) e a obtenção de mulheres para os
benjaminitas sobreviventes (21,1-25).
19.1- 30 O levita e sua concubina. A históriaouvem que alcançarão sucesso, porque o S enhor
do levita que vai a Bet-Lehem para reconduzir sua
mulher e que, na volta, sofre gritante ultraje é nar­
rada para explicar por que a guerra explode entre
Benjamin e as outras tribos de Israel. A história
é cheia de dramática ironia: a hospitalidade do so­
gro retarda tanto a volta do levita que ele não con­
segue fazer a viagem de volta para casa em um só
dia; se tivesse parado em lebus, a cidade canaanita,
teria evitado o ultraje; em Guibeá, não é um ben-
jaminita que lhe oferece hospitalidade, mas uma
pessoa de fora.
Para o propósito da história não é importante
que o homem seja levita. Embora o redator identifi­
que “lebus” como “Jerusalém” (v. 10), na verdade
Jerusalém nunca teve esse nome. Talvez lebus fos­
se um subúrbio de Jerusalém. A esse tempo, Jeru­
salém ainda era uma cidade canaanita. Guibeá fi­
cava cerca de cinco quilômetros ao norte de Jeru­
salém e Ramá, três quilômetros mais para o norte.
Ao entrar em Guibeá, o levita não recebe ne­
nhum oferecimento de hospitalidade dos benjami­
nitas dali, mas é levado por um estranho, um ancião
que, como o levita, vinha da montanha de Efraim.
O ancião oferece ao levita a mesma hospitalidade
que seu sogro lhe oferecera em Bet-Lehem. No
Antigo Testamento, o verbo “conhecer” (v. 22) tem
emprego eufemístico para significar relações se­
xuais. Aqui é usado de maneira deliberadamente
ambígua.
O ato horripilante de cortar a mulher morta e
enviar pedaços dela a todas as tribos serve ao pro­
pósito de incitar as tribos contra Guibeá pelo ultra­
je cometido (cf. ISm 11,7). A dedução é que as
tribos precisam ajudar o levita a se vingar de Guibeá
ou sofrer destino semelhante.
20.1- 48 G uerra contra Benjamim. Em respos­
ta ao chamado do levita, os israelitas se reúnem
em Mispá, cerca de treze quilômetros ao norte de
Jerusalém (vv. 1-2). “Desde Dan até Beer-Sheba”
é uma frase que representa os limites setentrionais
JUÍZE5 21
e meridionais do antigo Israel. Os israelitas do lado
leste do rio Jordão (teiVa de Guilead) também vêm
à assembléia. O tamanho dos exércitos (vv. 8-10) é
exagerado. Talvez a palavra hebraica para “mil” re­
fira-se a determinado agrupamento ou contingente
militar, como vimos no livro de Josué.
No v. 16, o narrador parece sugerir que uma
das razões pelas quais os benjaminitas resistirão e
serão capazes de infligir grandes perdas aos israe­
litas são os setecentos exímios atiradores canhotos.
Os israelitas vão para Betei, distante alguns quilô­
metros, para consultar o Senhor sobre quem deve
atacar primeiro. A sorte cai sobre Judá (vv. 17-19).
Os dois primeiros ataques contra Guibeá são
rechaçados e os israelitas sofrem algumas perdas
significativas (vv. 20-25). Depois da segunda derrota,
eles consultam o S enhor, jejuam e oferecem holo-
caustos e sacrifícios de paz (vv. 26-27). Dessa vez
entregará os benjaminitas em suas mãos.
Os w . 29-43 são dois relatos do mesmo aconte­
cimento, toscamente combinados. O relato nos vv.
29-36 descreve mais a tática de campo das tropas
e e dos vv. 37-43 a vitória da perspectiva da embos­
cada bem-sucedida. Ambos têm semelhança com a
captura de Ai em Js 8. Note que, no v. 35, é o
S enhor que derrota Benjamin. Os vv. 44-48 dão as
estatísticas dos derrotados. No fim, restam apenas
seiscentos, que fogem para o rochedo de Rimon (v.
47). A localização de Rimon é desconhecida. Em­
bora a tradição de guerra contra Benjamin possa
ser antiga, a história, como a temos aqui, foi revis­
ta para tomá-la conveniente. É provável que a tra­
dição original tratasse de uma guerra entre Ben­
jamin e seu vizinho do norte, Efraim. E imprová­
vel que a destruição total de uma tribo chegasse a
ocorrer.
21,1-25 M ulheres p a ra os benjam initas.
Depois de quase extinguir toda uma tribo, os israe­
litas percebem que para essa tribo sobreviver eles
precisam conseguir mulheres para os seiscentos ho­
mens sobreviventes. Este capítulo apresenta dois
relatos de como as obtiveram. Os relatos separados
foram harmonizados pela explicação de que cada
estratagema trouxe apenas uma solução parcial para
0 problema (v. 14).
O primeiro relato (vv. 1-14) fala do problema
subjacente; em Mispá os homens de Israel tinham
jurado que nenhum daria suas filhas em casamento
a um benjaminita (v. 1). A solução que acabam por
encontrar foi ver se alguém não subira para a assem­
bléia, já que fora prestado um juramento solene
que quem não subisse seria morto (vv. 2-5). labesh-
de-Guilead ficava a leste do Jordão.
O segundo estratagema tem paralelos no fol­
clore grego e romano (vv. 15-23). Os anciãos lem­
bram-se da festa anual em Shilô, quando as filhas
de Shilô saiam para dançar. Cada benjaminita rece­
beu ordem de raptar uma delas para ser sua mulher. 245
 JUÍZES 21
Os anciãos prometem interceder pelos benjaminitas
quando os pais ou irmãos vierem se queixar. Como
elas foram raptadas deles, não dadas aos benjami­
nitas, os homens de Shilô não serão culpados de
quebrar a promessa de não dar as filhas em casa­
mento para os benjaminitas (v. 22). A grande assem­
bléia convocada em 20,1 agora se dispersa e os is­
raelitas voltam para seu patrimônio (v. 24).
O narrador conclui dizendo mais uma vez que
todos esses tristes comportamentos censuráveis
246
aconteceram porque “naquele tempo, não havia rei
em Israel; cada um fazia o que era certo a seus
olhos” (v. 25). A história de pecado de Israel come­
çou. Por fim, essa pecaminosidade levará à destrui­
ção do reino do sul, Israel, no século VIII e à des­
truição do reino do sul, Judá, no século VI. Entre­
tanto, o livro menciona mais de uma vez não só o
poder salvífico do Senhor ,mas também a vontade
divina de salvar os israelitas quando eles clamam
ao Senhor .
 1 E 2 SAMUEL
Paula J. Bow es
INTRODUÇÃO
riginalmente, 1 e 2 Samuel eram um só
livro, da mesma forma que 1 e 2 Reis
e 1 e 2 Crônicas. Foram divididos em
dois na tradução grega da Bíblia He­
braica conhecida como Septuaginta, da
qual foram feitas as primeiras traduções em latim e
outras línguas. Os livros de Samuel são o centro de
um conjunto maior de narrativas que abrangem a
história de Israel desde a entrada em Canaã, por
volta do século XII a.C., até o cativeiro na Babilônia
(587-586 a.C.). Esta parte da história deuteronomista,
assim chamada porque os autores basearam sua teo­
logia nos ensinamentos do livro do Deuteronômio,
foi compilada por volta do século Vll a.C. Sua men­
sagem básica era que Deus escolheu Israel para ser
um povo especial e, por intermédio de Moisés, redi­
miu-o da escravidão no Egito e com ele fez uma
aliança no monte Sinai. A palavra de Deus, que
chegou a Israel por intermédio de Moisés, continua
a guiar e a castigar o povo e também seus reis, por
intermédio dos profetas. Se os israelitas forem fiéis
às leis da aliança, terão prosperidade e paz; se deso­
bedecerem, podem esperar o castigo por calamida­
des naturais, invasão e até exílio. Assim, por fideli­
dade e gratidão, devem guardar os mandamentos do
Senhor que lhes demonstrou tanta estima e graça.
Portanto, os livros de Samuel não são história no
sentido moderno, mas história teológica — narrati­
vas dos procedimentos divinos com o povo escolhido.
O s protagonistas
Há pessoas importantes nesses livros, principal­
mente três: Samuel, o profeta do título, e os dois
primeiros reis de Israel, Saul e David, ungidos por
Samuel. O relato do milagroso nascimento de Samuel,
tão semelhante a outros nascimentos auspiciosos na
história de Israel, estabelece o espírito do conjunto.
Deus interveio para trazer outro salvador em resposta
à necessidade que Israel tinha da palavra de Deus.
Como a maior parte da Escritura, os livros de Samuel
falam do cuidado e do castigo divinos para este
povo especial e da justiça e misericórdia divinas para
com ele.
Calamidades e libertação
É digno de nota que a libertação que surge
para Israel no início da missão profética vem acom­
panhada pela ruína da casa sacerdotal de Eli e a
perda do bem mais precioso de Israel, a Arca da
Aliança, o sinal de que Deus habitava no meio dos
israelitas (ISm 2-4). Nessa calamidade nacional, a
Deus é atribuída a devolução da arca pelos filisteus
(1 Sm 6). Seria de esperar que a aliança de Samuel
com o Senhor em Mispá (cap. 7) trouxesse satis­
fação ao povo, mas este teme os filisteus o bastante
para pedir um rei humano como outras nações. Em
Nm 11, Deus respondeu ao pedido de carne pelo
povo com codomizes, até não agüentarem mais.
Aqui Deus lhes dá o que querem, apesar das desvan­
tagens de um rei humano e sua rejeição do divino.
Não obstante as objeções de Samuel, Deus manda
0 profeta ungir Saul, com a expectativa implícita
de que o rei sempre estará sob orientação profética
e terá de obedecer à Lei mosaica.
Israel ganha um rei
O primeiro rei, Saul, embora talentoso e aceitá­
vel para os israelitas, mostra-se inaceitável para o
Senhor ,que, então, determina nova tentativa com um
homem segundo o coração de Deus, David (ISm
13,13-14). Agora surge a situação confusa (para nós)
de dois reis ungidos, um dos quais empenhado em
violenta perseguição ao outro, temendo que seu trono
lhe seja tirado. Durante toda a perseguição de David
por Saul, o fugitivo recebe ajuda de várias partes, até
mesmo dos filhos de Saul, Jônatan e Mikal.
Alguns anos mais tarde, a carreira de Saul che­
ga ao fim, em batalha desastrosa contra os filisteus
(ISm 31). David é finalmente escolhido rei, primei­
ro pelos judaítas (2Sm 2,11) e, depois, com a morte
do último herdeiro qualificado de Saul, pelos israe­
litas (2Sm 5). Essa unção independente pelas duas
partes de Israel mostra a divisão religiosa e políti­
ca, que durou enquanto existiu a monarquia, isto é,
até 586 a.C., quando Jerusalém foi saqueada pelos
babilônios. 247
 1 SAMUEL 1
A ascensão de David
O período desde a prímeira unção de David
(ISm 16) até sua entronização sobre as duas casas
de Israel (2Sm 5) costuma ser designado como re­
lato da ascensão de David. Assim como a elevação
de Samuel no início do primeiro livro de Samuel foi
concomitante com a queda da casa de Eli, a ascen­
são de David é simultânea ao desaparecimento de
Saul. O segundo livro de Samuel contém os relatos
da elevação de David (cap. 5), o traslado da Arca da
Aliança para Jerusalém (cap. 6), a promessa de uma
sucessão duradoura (cap. 7) e a envolvente história
da vida de David como rei (caps. 9-20).
O reino tranqüilo e a família perturbada
Bastante semelhante à vida tranqüila de Adão
no jardim do Éden (Gn 2), David se vê com os
ESQUEMA DOS LIVROS DE SAMUEL
ISm 1-3 Parte 1 Samuel e a casa de Eli
ISm 4-7 Parte II a Arca da Aliança
ISm 8-15 Parte III Saul, o primeiro rei
ISm 16-31 Parte IV Saul e David
COMENTÁRIO: 1 SAMUEL
I. SAMUEL E A CASA DE ELI
1Sm 1-3
O Primeiro Livro de Samuel começa com dupla
necessidade: o desejo de Haná de ter um filho e, de
modo equivalente, a necessidade espiritual que Israel
tem da palavra de Deus. A palavra do S enhor, tão
necessária à vida de Israel, é, segundo a tradição
deuteronomista, a maior bênção de Israel, exata­
mente como a maior bênção de uma mulher em
Israel é ter um filho. A necessidade de Israel não
é revelada, enquanto os leitores não experimentam
o sofrimento de Haná. Entender esse sofrimento pre­
para-os para apreciar a magnanimidade do Senhor ,
que supre as duas necessidades.
1,1-8 Haná pede um filho. Como acontece
em outros anúncios de nascimento na Bíblia, esse
começa com uma breve genealogia do marido de
Haná, Elqaná (cf. a de Manôah em Jz 13 e a de
José em Mt 1). Nenhum deles é o protagonista; em
vez deles, suas mulheres conduzem a ação. Aqui a
mulher Haná, estéril e desprezada (por todos, me­
nos pelo marido, Elqaná), tem ciúmes da rival
Peniná, fértil e desdenhosa. Da mesma forma, Hagar
tripudiou Sara (Gn 16,4) e Leá lutou contra Raquel
(Gn 30).
Outra característica das narrativas bíblicas de
nascimento é a descrição desse filho especial como
devoto e obediente aos mandamentos do S enhor
248 (ISm 1,3; Lc 1,5-6). A peregrinação e o sacrifício
inimigos subjugados por todos os lados (2Sm 7,1)
e um reino próspero e ampliado (2Sm 8). Como
fez Adão, David desobedece a palavra de Deus, o -
que acarreta tristezas inesperadas. Confirmando a
profecia de Natan em 2Sm 12, uma espada jamais
se afastará da casa de David, pois quatro de seus
filhos terão mortes prematuras e violentas. Os capí­
tulos 9 a 20 relatam-nos essas provações com dra­
mático realismo. O uso do diálogo para retratar o
personagem e prosseguir com a ação proporciona
uma das leituras mais fascinantes de toda a Bíblia.
Embora o autor desconhecido use técnicas de
romance, esses relatos não são produtos de sua ima­
ginação. Mostram, por meio de histórias animadas,
que Deus opera com liberdade humana, cuidando
do povo com um amor que continuamente perdoa
e salva.
2Sm 1-8 Parte V: a luta pelo reino
2Sm 9-20 Parte VI: o rei David
2Sm 21-24 Parte VII: apêndices
anuais de Elqaná e Haná mostram que são pais dig­
nos de um filho especialmente favorecido, Samuel.
Também são mencionados, no v. 3, Eli e seus
filhos, Hofni e Pinhás, todos sacerdotes no santuário
de Shilô, centro do culto do Senhor , antes que a
cidade fosse tomada pelos filisteus (cf o cap. 4).
Embora os filhos de Eli ainda não figurem na histó­
ria, sua presença no início da narrativa sugere uma
ligação entre Haná e os graves problemas de Israel.
Nem mesmo as tentativas pacientes e amoro­
sas de Elqaná para a consolar impedem Haná de
chorar. Ela nem consegue comer. Dessas profunde­
zas, a ação só pode surgir na esperança de mudan­
ça e alívio.
l,9-19a Haná reza pela dádiva do S enhor.
Depois de ter descrito o que acontece nessa família
ano após ano, o autor focaliza determinado dia em
Shilô. De sua cadeira à entrada do Templo, Eli observa
a perturbada Haná em oração. Ela regateia; se tiver
um filho, ela o consagrará ao S enhor como nazir.
Esse voto impunha abstinência de vinho, de bebidas
alcoólicas, de cortar o cabelo e de contato com cadá­
veres (cf. Nm 6; Am 2,11-12). Sansão (Jz 13-16)
estava sob esse voto, mas, no seu caso, foi o anjo que
ao anunciar seu nascimento o exigiu, não sua mãe.
Haná oferece essa condição espontaneamente, mos­
trando considerável abdicação, pois a criança ficaria
com ela apenas três anos.
É irônico que o que Haná oferece inclua a absten­
ção de bebida, enquanto seus movimentos fazem

Eli suspeitar de embriaguez. Depois de Haná con­
vencer Eli de que esse não é o caso, ele endossa seu
pedido. Como não ouviu as palavras, não sabe que, na
realidade, ela faz um pedido por aquele que o substi­
tuirá no sacerdócio. Depois das orações de Eli e
Haná, esta última passa por notável mudança. Agora
não chora mais e consegue comer e beber (v. 18)!
l,19b-28 Nasce Samuel. Quando Haná dá à
luz seu filho, chama-o Samuel, explicando que o
pedira ao Senhor .Entretanto, o nome Samuel signi­
fica “o que é de Deus”, não “pedido”. O nome Saul
seria mais próximo desse significado. Esse tipo de
ambivalência não é raro nos nomes bíblicos.
Elqaná foi de uma bondade característica ao dis­
pensar Haná das três peregrinações seguintes até que
Samuel seja desmamado. A preocupação dos pais
pelo culto do Senhor é realçada por sua proeminên-
cia na história e nos generosos detalhes de oferendas
e costumes daquela época (século XI a.C.).
Quando, finalmente, ela leva Samuel ao Templo,
é natural que Haná deixe Eli saber que sua oração
foi respondida, pois ele a apoiou (cf Jz 13 e Mt I).
As palavras-chave “pedir”, “conceder” e “orar”, re­
petidas em 1Sm 1,17-28; 2,1, dão provas da resposta
divina à oração persistente. Haná não desconfia
que 0 menino Samuel suprirá não apenas sua neces­
sidade de ser mãe, mas também a necessidade de
Israel de um profeta que leve a palavra do Senhor
ao povo.
2,1-10 O cântico de Haná. O cântico que o
autor bíblico pôs na boca de Haná encontra equiva­
lente no Novo Testamento, no Magnificat de Maria
(Lc 1,46-55). Os dois hinos expressam alegria pelo
nascimento de uma criança especial; ambos louvam
o poder, a santidade e a salvação de Deus. Nos dois,
os ricos orgulhosos são rebaixados e os pobres hu­
mildes são exaltados. O poema de Haná faz-nos
lembrar a Justiça divina; o de Maria, a misericórdia
divina. O Magnificat apenas alude a inimigos, mas
o cântico de Haná começa e termina com sua derro­
ta e o desprezo por eles (vv. 1.10).
Neste poema, o Senhor é visto como santo, oni­
potente, onisciente e no controle de todos os even­
tos da vida de todas as criaturas. Há fortes contras­
tes entre os famintos e os saciados, as estéreis e as
férteis, os fiéis e os maus. Permeia a passagem o
tema da proteção do povo pelo Senhor , inclusive
do rei prenunciado e ungido do v. 10.
2,11-21 Os pecados dos filhos de Eli e as
bênçãos de Samuel. Nestes vv., o serviço aprova­
do de Samuel, desde pequeno, é posto em contraste
com 0 desregramento dos filhos de Eli, descritos
como sujeitos vadios (literalmente “filhos de Belial”),
a mesma designação que Haná esperava que Eli não
lançasse contra ela em 1,16. A acusação sumária
contra Hofni e Pinhás é que eles não conheciam o
Senhor ,conhecimento que significava experiência
e obediência a Deus.
1 SAMUEL 2
Normalmente, os sacerdotes israelitas recebiam
partes do animal sacrifical, em especial o peito e a
perna direita (Lv 7,29-36). Mas os filhos de Eli
exigiam sua parte antes da queima ritual da gordura
e até mesmo antes que a carne estivesse cozida —
dificilmente o controle dignificado que seria de
esperar dos sacerdotes.
A história de sua irreverência cultuai é imedia­
tamente seguida pela imagem idílica do menino
Samuel vestindo o efod, prenuncio de seu futuro
papel. A bênção agradecida de Eli aos pais de
Samuel resultou no nascimento de mais cinco filhos,
dádiva divina muito bem-vinda para os israelitas
(c f Gn 18,13-14; 21,5-8; Rt 4,11-15).
2,22-26 Eli repreende os filhos. Ao repreender
os filhos, Eli faz a pergunta que David não fará a
seu filho quando este se declarar rei durante a vida
do pai: “Por que fazeis semelhantes coisas?” (IRs
1,6). Pode haver intercessão por sua fomicação, mas
seus pecados contra o Senhor , os ligados ao sacri­
fício, não têm mediador. Eli previne em vão, mas
Hofni e Pinhás não podem alegar ignorância. Como
se recusaram a obedecer o pai, o autor comunica­
-nos que mereceram o castigo, pois o Senhor deci­
dira sua morte. O v. 26 mais uma vez salienta o con­
traste entre os filhos infiéis de Eli e Samuel, que, ao
crescer, conquista a aprovação do Senhor e dos ho­
mens (cf. Lc 2,52).
2,27-36 A profecia contra a casa de Eli. A
acusação pelo homem de Deus começa no padrão
profético tradicional de lembrar os benefícios an­
teriores do Senhor aos acusados, relacionando seus
deveres, sua transgressão e, por fim, seu castigo.
No V. 29, Eli é envolvido junto com os fdhos por ter
se fartado com o que eles tomaram. O âmago da
questão é ele ter preferido os filhos ao Senhor .Por­
tanto, a função deles como sacerdotes é, na maior
parte, suprimida e os que ministram terão existência
miserável, implorando um emprego que lhes dê uma
remuneração.
O encontro de Natan com David (2Sm 12) de­
pois do adultério deste com Bat-Sheba e do assassi­
nato de Uriá tem aqui diversos paralelos. Para ambos,
Eli e David, o castigo se revelará dentro de suas
famílias. Como Hofni e Pinhás, o filho de David com
Bat-Sheba morrerá (2Sm 12,19; 1Sm 2,34), mas, ao
contrário de Eli, David é perdoado e tem permissão
para continuar rei (2Sm 12,13). Talvez a chave para
os tratamentos diferentes de Eli e David esteja em
2,25, que afirma que os pecados contra o Senhor
não têm intercessor. Enquanto o pecado de David
foi contra Uriá, os filhos de Eli pecaram contra o
Senhor ,profanando o culto divino. Portanto, a reale­
za de David permanece, mas o sacerdócio dos filhos
de Eli é substituído. O novo sacerdote, que agirá de
acordo com o coração e o desejo de Deus, terá uma
casa estável e ministrará diante do ungido do Senhor
(ISm 2,35). A profecia é fluida o bastante para incluir
como sacerdote fiel (em hebraico o mesmo adjetivo 249
 1 SAMUEL 3
que o empregado para [casa] “estável”), Samuel, o
rei Saul ungido, Sadoq, David e até mesmo o Mes­
sias, cujo nome significa “o ungido”.
3,1-18 Vocação de Samuel. A profecia que
afastou do sacerdócio Eli e sua casa não se cumpre
imediatamente. Samuel estava sendo instruído e
ainda não tinha consciência de seu papel futuro.
Embora nessa época fosse rara a palavra direta do
S enhor, Israel ansiava por seu Deus tanto quanto
Haná ansiava por um filho. O Senhor agora vai re­
mediar isso, da mesma maneira que a esterilidade
de Haná foi revogada, sendo Samuel instrumento
dos dois atos divinos.
A imagem de Eli adormecido e praticamente
cego descreve o estado de Israel em relação ao
Senhor. A lâmpada de Deus, isto é, a palavra de
Deus, está quase apagada pelo desmerecimento dos
sacerdotes oficiantes. O S enhor ignora Eli e cha­
ma diretamente o menino Samuel para receber a
palavra divina. Há humor no fato de Samuel correr
até Eli três vezes antes que o velho sacerdote per­
ceba que quem está chamando é o S enhor. O quar­
to chamado traz a resposta pronta de Samuel: “Fala,
o teu servo escuta”, correspondente ao “Eis-me
aqui” de Abraão quando o Senhor o chamou para
sacrificar Isaac (Gn 22,1-2). A presteza de Samuel
contrasta com a má vontade dos sacerdotes para
ouvir (ISm 2,25). Samuel é o fiel sacerdote esco­
lhido que logo substituirá a casa infiel e rejeitada
de Eli. Mais tarde, um drama semelhante será re­
presentado entre Saul, o primeiro rei de Israel,
rejeitado, e David, o rei escolhido.
O capítulo começa com a observação de que
■eram poucas as visões vindas do S enhor e termina
com Samuel recebendo frequentes revelações em
Shilô. No meio, Eli e Samuel se falam duas vezes
(w. 4-9.16-18). O centro do capítulo é dado às pala­
vras que o Senhor dirige a Samuel sozinho (vv. 10­
14). O Senhor nada diz sobre o futuro de Samuel,
mas se concentra na condenação da casa de Eli,
acrescentando que não há possibilidade de expiação.
A resignação de Eli com essa sentença é um reconhe­
cimento exemplar da soberania e da justiça divinas.
Quando Samuel abre as portas do Templo pela
manhã, interpreta a comunicação da palavra do
Senhor ao povo depois de um longo silêncio. Para
Israel e para Samuel, será um novo dia.
li. A ARCA DA ALIANÇA
ISm 4-7
Desde a caminhada no deserto do Sinai, os
israelitas foram acompanhados pela Arca da Alian­
ça, símbolo tangível da presença do S enhor que
habitava no meio deles (Ex 37,1-9). A Arca era
uma caixa de madeira recoberta de ouro que se
acreditava conter as tábuas da lei dadas a Moisés
no monte Sinai (Ex 19-20). As tradições dos capí-
250 tulos 4—7 preenchem a lacuna entre o ministério
dos filhos de Eli e a inauguração formal de Samuel
como profeta. Durante essa época, a liderança de
Israel centraliza-se na Arca pois, apesar do silêncio
da palavra, o S enhor permaneceu com Israel. Mesmo
quando é capturada, a Arca atua contra o inimigo
pelo bem de Israel. Essa parte da narrativa mostra
os israelitas em grande desvantagem diante do ini­
migo filisteu e tentando usar a presença do S enhor
para lhes trazer a vitória.
4.1- 11 Israel leva a A rca p ara a batalha.
Depois da desastrosa derrota em Afeq (vv. 1-2), o
povo de Israel procura uma defesa mais eficiente
contra seu inimigo mais perigoso, os filisteus. Estes
“povos do mar” haviam entrado em Canaã pelo oeste
e se estabelecido ao longo da planície costeira por
volta de 1200 a.C. Eram não-semitas, adoradores
do deus dos cereais, Dagon, e, militar e culturalmen­
te, superiores aos israelitas.
Como a costumeira estratégia de combate fa­
lhou, os israelitas mandam buscar a Arca do S enhor.
O S enhor é descrito (v. 4) sentado sobre querubins,
representações de bestas mitológicas aladas que guar­
davam os templos pagãos. Os querubins estavam na
tampa da Arca como emblemas dos espíritos de Deus
que ministravam o culto divino. A presença da Arca
no acampamento israelita desaponta os filisteus, mas
os estimula a lutar com extraordinária bravura por
medo de se tomarem escravos de Israel. Não só 30
mil israelitas foram mortos (v. 10) como a própria
Arca é tomada — notícia que faz todos os ouvidos
arderem (4,11).
4,12-22 A glória de Israel vai embora. Depois
da tomada da Arca, o ministério da casa de Eli chega
ao fim com a morte de Hofni, Pinhás e o pai de
ambos. O choque da perda é tal que a mulher de
Pinhás morre ao dar à luz (v. 19). Seu filho, chama­
do por ela simbolicamente de I-Kabod, que signifi­
ca “Não há mais glória”, vive e é mencionado em
ISm 14,3 como tio de Ahiá, sacerdote no acampa­
mento de Saul. (Dar o nome conforme as circuns­
tâncias do nascimento da criança é comum na Bí­
blia. O filho de Sara, Isaac, tem um nome assim
[Gn 21,36] e também os filhos de Jacó [Gn 30,6­
24; 35,18]. E muito pertinente no caso de Raquel
que, como a nora de Eli, morre durante o parto.)
5.1- 5 A humilhação de Dagon. Como alívio
dos tristes acontecimentos do capítulo 4, esse relato
introduz um tom mais leve. É assegurado ao público
israelense que, embora a Arca estivesse perdida, o
Senhor ,cuja presença ela representava, não perdeu
o poder divino. Aqui, o deus filisteu Dagon é desde­
nhado em dois episódios cada vez mais humilhantes.
No primeiro, ele pareee se curvar diante da Arca que
fora levada a seu templo. No segundo, está desmem­
brado diante dela. Ficamos sem saber se foi possível
consertá-lo. Tal é o destino, diz a história, de deuses
fabricados por mãos humanas.
5,6-12 A Arca aflige as cidades filistéias. Na
passagem anterior, a Arca criou problemas para o

deus Dagon em seu templo de Ashdod, uma das
cinco principais cidades filistéias. Agora cria pro­
blemas para os próprios filisteus. Há uma praga de
ratos em Ashdod, hemorróidas em Gat e morte em
Eqron. Quatro vezes (vv. 6.7.9.11) ficamos sabendo
que isso acontece porque a mão do Senhor pesa
sobre os filisteus. Com a mesma repetição, dessa
vez do verbo hebraico “transferir”, o autor bíblico
enfatiza que a Arca foi transferida de uma cidade
para outra (vv. 8.9.19). Em cada cidade, o sofrimen­
to aumenta, como aconteceu com a indignidade de
Dagon. Houve uma escalada semelhante durante as
dez pragas em Ex 7-12 e nas pressões exercidas
sobre os que detinham Sara e Rebeca antes de solta-
rem-nas (Gn 12,20.26). Podemos sorrir com os israe­
litas porque os filisteus foram derrotados dessa ma­
neira e também porque seu grito de dor subiu, não
a Dagon, mas ao Deus de Israel no céu.
6,1-9 Os filisteus planejam devolver a arca.
Nesta narrativa teológica, os filisteus realizam o de­
sejo de devolver a Arca. Depois de consultar seus
conselheiros, separam duas vacas de suas crias para
que elas apontem o causador das pragas. De fato,
a reação normal seria que as vacas voltassem para
suas crias. Mas, se se voltassem para a fronteira is­
raelita, isso significaria que fora o S enhor quem
provocara seus problemas.
Os filisteus conhecem bastante a história israe­
lita para ver um paralelo entre esse acontecimento
e as pragas causadas aos egípcios antes do Êxodo e
estão determinados a não repetir a teimosia de Faraó,
nem suas conseqüências. Como “simpatia”, fundem
o ouro de suas ofertas aplacadoras em forma de cinco
tumores e cinco ratos, um para cada uma de suas
cidades. Deixando os animais levar os símbolos das
pragas, esperam eliminá-las de sua terra.
6,10-18 A Arca retorna; algumas conseqüên­
cias inesperadas. As vacas atreladas ao carro da
Arca comportam-se de maneira exemplar, como se
estivessem à frente de uma procissão para Bet-
-Shémesh, provavelmente a cidade israelita mais
próxima de Eqron, para onde a Arca fora levada
por último. Os israelitas se alegram ao vê-la e cele­
bram oferecendo um sacrifício, da mesma forma
que Eliseu sacrificará seus bois, usando o equipa­
mento para fazer o fogo (IR s 19,19-21). Como
acontece com freqüência, uma grande pedra marca
o lugar do sacrifício e da intervenção divina.
6,19-21 Problema para Israel. A volta da arca
é prejudicada pela morte de várias pessoas que
deixaram de saudá-la e, assim, cometeram o peca­
do de irreverência (cf. a desgraça de Uzá em 2Sm
6,6-8). O poder e a santidade do Senhor represen­
tados na Arca tomam-se tão amedrontadores para
os israelitas quanto haviam sido para os filisteus.
Sem revelar a razão, o povo de Bet-Shémesh envia
mensagens aos habitantes de Qiriat-learim, cerca de
doze quilômetros ao norte de Jerusalém, para que
venham buscar a Arca. O capítulo termina como
1 SAMUEL 7
começou, com a Arca indesejável para os filisteus
e para o próprio povo de Deus.
7,1-6 Samuel começa seu ministério. Exceto
pela transferência para Jerusalém em 2Sm 6, a histó­
ria da Arca termina no v. 2. Apesar da acolhida du­
vidosa e da ausência de um santuário adequado como
existira em Shilô, os israelitas estão satisfeitos porque
pelo menos ela está de novo na terra deles. A perma­
nência da Arca em Qiriat-learim tem resultados po­
sitivos, pois o V. 3 fala do desejo do povo de voltar
para o Senhor. Vinte anos mais tarde, estão dispostos
a assumir isso em público diante de Samuel em Mispá,
provavelmente o local ao norte de Jerusalém. (A
passagem lembra Jacó em Betei [Gn 35,1-7], onde
o Senhor pediu-lhe que fizesse um altar. Lá como
aqui, foi exigido o abandono de todos os deuses es­
trangeiros.) Samuel menciona, de maneira explícita,
Báals e Astartes, objetos de fertilidade usados no
culto idólatra.
Os israelitas expressam submissão em uma ce­
rimônia de expiação, que inclui derramamento de
água, jejum e a confissão dos pecados. A liderança
de Samuel nesta ocasião inicia seu ministério ativo
em Israel. Hofhi e Pinhás eram sacerdotes que não
tinham nenhum conhecimento do S enhor (2,12).
Agora Samuel vem no lugar deles como sacerdote
e juiz, com esse conhecimento, e por seu intermédio
Israel recebe bênçãos e vitória.
7,7-17 A liderança de Samuel. A reunião de
Israel em Mispá tinha propósitos religiosos, mas os
filisteus usam-na para um confronto militar. Mais uma
vez Samuel intercede e, antes que seja preciso lutar,
os filisteus se dispersam com medo dos trovões. Israel
aproveita a oportunidade para persegui-los. A vitória
é atribuída ao Senhor e devidamente assinalada por
Samuel com uma pedra. Esta “Pedra do Socorro”
(Ében-Êzer) não é a mesma que a de 4,1, embora
ambas mostrem o Senhor ajudando Israel, uma por
meio da Arca, a outra pela intercessão de Samuel.
Agora a presença de Samuel substitui a da arca.
Nas mãos dos filisteus, a Arca percorreu as cidades
deles; agora é Samuel que percorre as quatro cida­
des mencionadas, julgando.
Por enquanto, os filisteus não são mais ameaça
para Israel. David terá de combatê-los mais tarde (caps.
13; 23; 2Sm 5,17-25), mas, a essa altura, as cidades
que a Arca visitara ficam sob o controle israelita.
Ao construir um altar para o S enhor, Samuel
está na tradição de Noé (Gn 8,20), Abraão (Gn 12,7;
22,9), Isaac (Gn 26,25), Jacó (Gn 35,7), Moisés (Ex
17,15; 24,4), Aarão (Ex 32,5) e Josué (Js 8,30).
Samuel é profeta como Moisés e, como Josué, sacer­
dote e também juiz. É a única figura bíblica que é
sacerdote, profeta e juiz. Depois dele, as vocações
sacerdotal e profética começam a se separar. Entre­
tanto, mesmo Samuel, com a plenitude de autori­
dade e carisma, não satisfaz o povo, que deseja ser
conduzido por um rei, como outras nações. 251
 1 SAMUEL 8
III. SAUL, O PRIMEIRO REI
ISm 8-15
Estes capítulos relatam a mudança turbulenta
do governo de líderes como Samuel para o de um
rei. Com a perda da Arca e a constante ameaça dos
filísteus como pano de fundo, os israelitas cada
vez mais vêem no estabelecimento da monarquia a
solução para suas fraquezas. A princípio Samuel
resiste, mas, por ordem do Senhor , unge Saul
(8,22). Depois de ser escolhido pela sorte (10,21)
e derrotar os amonitas, Saul é oficialmente empos­
sado em Guilgal (11,15). Em um estado de espírito
negativo, Samuel adverte o povo sobre as prerro­
gativas de um rei (cap. 12). A monarquia traz vanta­
gens, mas é preciso estar preparado para os efeitos
colaterais.
A advertência de Samuel encontra certa concre­
tização quando mais tarde o Senhor rejeita o pri­
meiro rei ungido de Israel. O texto indica que Saul
fracassa porque desobedeceu à palavra do Senhor
a ele foi transmitida pelo profeta Samuel (caps. 13
e 15). Nem circunstâncias atenuantes nem o zelo
pelo culto do Senhor podem invalidar este teste cru­
cial de obediência à palavra, para o rei e também
para todos os israelitas.
8,1-5 O povo pede um rei. O texto hebraico
usa 0 substantivo ou o verbo para ter um rei uma
dezena de vezes neste capítulo, com a palavra “juiz”
empregada quase o mesmo número de vezes. A
realeza está prestes a substituir o antigo sistema de
governo de Israel. Até agora, heróis carismáticos
enviados pelo Senhor haviam conduzido o povo no
combate aos inimigos. Agora, em vez de pedir um
novo juiz, o povo pede que Samuel designe um rei.
8,6-22 O preço da realeza. Descontente com
esse pedido, Samuel se zanga por causa do Senhor ,
a quem reconhece como o verdadeiro e único rei de
Israel. Na conversa reveladora com o Senhor ,Samuel
enfrenta a realidade de um povo que foi continua­
mente infiel, apesar de receber grandes favores. O
V. 8 está entre uma ordem dupla para Samuel obe­
decer ao povo. Depois que Samuel descreve o que
0 rei fará, a ordem contida nos w. 7 e 9 repete-se
no V. 22. Se os filhos de Samuel aceitarem suborno,
o rei tomará tudo que eles valorizam, inclusive a
liberdade (vv. 11.13.14-17).
A advertência não é levada em consideração,
apesar do lembrete de que não há caminho de volta
(v. 18), porque, depois que o rei for empossado,
será inútil reclamar. As vezes, O Senhor nos dá o
que pedimos antes de sabermos se realmente o
queremos.
Talvez os vv. 11-17 tenham sido escritos como
percepção tardia, depois que os israelitas aprende­
ram bem o que significava ter um rei. A descrição
é a de um reino florescente bem estabelecido, difi­
cilmente comparável ao reinado simples e primitivo
252 de Saul.
9,1-2 Saul é apresentado. Duas vezes nos é
revelado que Saul é um benjaminita do norte, em
contraste com David, cujas origens estão em Judá,
no sul. À medida que a história se desenvolve, essa
distinção significa mais. A entrada de Saul na rea­
leza é auspiciosa. É bonito, mais alto que a maioria,
e filho de um homem rico. “Bonito” e “valente” são
palavras também usadas para descrever David (16,18)
cujo ancestral, Bôaz, era homem rico (Rt 2,1). Nos
livros de Samuel há muitas pessoas belas ou boni­
tas: David, Bat-Sheba, Amnon, Absalão e Adonias,
mas que, quase sempre, tiveram um fim infeliz (cf.
2Sm 11.13; IRs 1-2). O autor parece advertir que
tais dons exteriores não indicam necessariamente a
aprovação divina e que podem ser fonte de orgulho
e desobediência à Lei. Não é a aparência que Deus
aprova, mas o que está no coração (16,7).
9,3-10 A busca infrutífera. Aqui vemos Saul
em ação. Filho obediente, procura com diligência
as jumentas perdidas do pai. Saul e seu servo atra­
vessam quatro regiões diferentes em sua busca
ampla, mas infrutífera. Quando estão prestes a
desistir, a sugestão do servo leva-os ao homem de
Deus em Suf. Só no v. 14 é revelado que o homem
de Deus é Samuel. Na discussão para resolver se
e como vão até o homem de Deus e que presente
lhe dar em retribuição pelo conselho sobre as ju ­
mentas (vv. 3-10), o verbo “percorrer” é usado onze
vezes em hebraico. Os verbos de ação transmitem
a intensidade da busca.
9,11-13 Samuel preside ao sacrifício. Agora
os verbos mudam de “percorrer” para “subir”, mos­
trando que Saul e seu servo precisam não só subir
para alcançar a cidade, mas também, depois de
entrar nela, subir de novo até o lugar alto onde o
homem de Deus abençoaria o sacrifício. Aqui o
lugar alto é local de culto do Senhor , mas mais
tarde esses lugares seriam condenados por causa
de culto idólatra (Jr 2,20; 3,6).
Em vez de “homem de Deus”, perguntam pelo
vidente, isto é, alguém que vê com maior percepção
o presente ou o futuro. O narrador interpõe a infor­
mação de que na ocasião em que escreve a palavra
certa para ambos era “profeta” (v. 9). O v. 13 é
importante, pois não só inclui todas as palavras de
ação do capítulo; chegar, subir, encontrar, comer (três
vezes) e chamar ou convidar, como contém a proi­
bição exposta com cuidado contra comer antes que
Samuel chegue e abençoe o sacrifício. Saber isso
ajudará o leitor a entender a importância do fato de
Saul não esperar a chegada de Samuel no capítulo
13. E mais: a menção de convidados significa que
o sacrifício não era uma cerimônia pública, mas só
para convidados. As moças que dão informações
não parecem ser participantes.
9,14-25 Samuel e Saul se encontram. Na reve­
lação em que o Senhor prepara Samuel para a che­
gada de Saul, a palavra “rei” nunca é usada. Saul
deverá ser um comandante militar que salvará o povo

das mãos dos filisteus. Embora essa não fosse a
prática com os juizes, Samuel é instruído para ungir
Saul. Essa unção e a porção especial que Saul rece­
be para comer (vv. 23-24) são indicações do caráter
religioso da monarquia recém-instituída.
Sem saber o que o aguarda e antes de ser ungi­
do, Saul se vê como hóspede de honra no banquete
de Samuel. Saul protesta com humildade contra o
louvor de Samuel, insistindo, como fizera Guideon,
que sua família é a mais insignificante de sua tribo
(Jz 6,15). Samuel promete dizer tudo o que se passa
no coração de Saul. Com esse apoio profético, Saul
inicia um processo de autodescoberta à medida que
o S enhor faz Samuel conhecer sua vontade. Em vista
da revelação anterior recebida por Samuel de que
Israel rejeitara o S enhor em favor de um rei (8,7),
é pura ironia Samuel descrever Saul como alguém
ardentemente desejado por Israel (9,20). Em seus
papéis diferentes, Samuel e Saul satisfazem neces­
sidades de Israel, um a de um profeta, o outro, a de
um rei. Qual deles será o verdadeiro líder de Israel?
9,26-27 Depois da festa. É uma surpresa que
a unção não seja pública. Se todo Israel esperava
um rei, por que todo esse sigilo? Talvez fosse um
meio de lembrar ao povo que o S enhor opera em
seu tempo e de seu jeito oculto.
10,1-8 Os sinais da unção de Saul. Samuel
dá a Saul três sinais para confirmar sua unção como
chefe de Israel. Cada um deles ocorre em um lugar
diferente e satisfaz uma necessidade futura de Saul.
O primeiro é em Selsá, nome derivado do verbo
hebraico “vir sobre”. O verbo aparece duas vezes
neste capitulo e refere-se ao espírito que veio so­
bre Saul (vv. 6.10). Esse sinal aponta para a loca­
lização das jumentas e também para a vida e obra
de Saul. O segundo sinal, a provisão de cabritos,
pães e vinho, dá-lhe o sustento para sua tarefa. As
dádivas são consagradas como oferendas a Deus e,
por isso, indicam a aprovação divina. O terceiro
sinal liga a realeza de Saul ao dom do espírito e à
capacidade de profetizar. A existência de prefeitos
filisteus (v. 5) em Guibeá de Deus lembra a previ­
são de Samuel (9,16) de que Saul salvará Israel
desse incômodo inimigo.
Apesar dos sinais positivos, isto é, a transfor­
mação de Saul em outro homem e a promessa de
Samuel de que o Senhor está com ele (vv, 6-7), Saul
passa por um teste imediato: deve esperar Samuel
por sete dias em Guilgal e, então, o profeta lhe dirá
0 que fazer. Desde o início, Saul é “outro homem”,
mas não é um homem dono de si mesmo,
10,9-13 Saul como profeta, É fácil ver que as
habilidades proféticas de Saul não lhe trazem o
respeito conferido a Samuel. Na época, a profecia
era um fenômeno mais comum em Israel do que
seria o caso mais tarde. Os primeiros profetas via­
javam em bandos chefiados pelo “pai” (v. 12) e
entravam em estados de transe, muitas vezes pro­
vocados por música (v. 5). (Elias e Eliseu [IRs
1 SAMUEL 11
17-21; 2Rs 1-9] eram desse tipo.) A experiência de
Saul aqui prenuncia um acontecimento semelhante
em ISm 19,22-24.
10,14-16 Silêncio de Saul. Seria a modéstia
natural que fez com que Saul omitisse a noticia de
sua unção, quando o tio o interrogou? Ou Saul
precisava da ratificação pelo povo de sua realeza
antes de tomá-la pública? De qualquer modo, a
ratificação acontece mais tarde em Mispá (vv. 20­
24). O mesmo acontecerá no caso de David, que
será ungido por Samuel (16,1-13) muito antes de
se tornar rei de Judá (2Sm 2,4). Um futuro rei de
Israel, lehu, também será ungido anos antes de
subir ao trono (2Rs 9-10). De fato, Saul só se tor­
nou rei depois de ser vitorioso contra os filisteus.
10,17-27 Saul é designado pela sorte. Como
aconteceu em 7,5, Samuel mais uma vez reúne todo
Israel em Mispá para a escolha formal do novo rei
pela sorte. A mensagem do S enhor começa como
um tratado entre um senhor e seu vassalo, lembran­
do 0 bem que o S enhor fizera pelo povo no passa­
do. Embora o tenha libertado dos opressores, o povo
rejeitou o rei divino em favor de um rei humano. O
tom de Samuel é de repreensão e castigo, em vez de
alegria por um presente esperado. A escolha de Saul
prossegue em forma de uma inquisição. Inúmeras
vezes pequenos embaraços anuviam a elevação de
Saul, dando a entender que desde o começo nem
tudo estava bem.
Em resposta ao clamor do povo no deserto.
Deus enviou maná e codornizes (Ex 16; Nm 11).
Comer as codornizes satisfez o desejo dos israelitas
de comer carne, mas lhes trouxe a morte. O maná
foi a resposta divina à necessidade de alimento; logo
enjoaram dele, mas o maná os manteve vivos. De
modo semelhante, Saul era o que o povo queria,
mas ele fracassou como rei. A pergunta dos vadios
se Saul podia salvá-los será respondida pela liber­
tação dos homens de labesh (11,9).
11,1-11 O desafio dos amonitas. Os amonitas
eram antigos e importunos vizinhos de Israel que se
estabeleceram ao longo da costa nordeste do mar
Morto. A resposta de Nahash ao pedido de um trata­
do com labesh é cruel, especialmente para ouvidos
modernos. Enquanto essa resposta aterroriza todos os
que a ouvem, hoje a reação de Saul seria igualmente
detestável. O interessante é que Saul, o rei ungido,
não sabe o que aconteceu porque estava arando (!) e
precisa ser informado pelo povo. Só então o espírito
lhe sobrevêm e o impele à ação militar.
O sangrento chamado às armas por Saul traz
consigo uma terrível ameaça de castigo, fazendo com
que milhares venham ao combate. Um desmembra­
mento semelhante com o envio das partes a todas as
tribos de Israel é relatado em Jz 19-20, desta vez
para punir uma atrocidade israelita.
Além da liderança carismática de Saul, não há
nenhum sinal especial de intervenção divina no
combate contra os amonitas (v. 11). Os habitantes 253
 1 SAMUEL 11
de labesh haviam levado os amonitas a esperar a
rendição (v. 3), estratagema bem-sucedido que deve
ter agradado aos ouvintes israelitas. O zelo de Saul
traz a vitória que confirma sua realeza.
11.12- 15 Renovação da realeza de Saul.clama a vitória (v. 4), fazendo os fiiisteus retomar
Embora o povo peça a Samuel para entregar os
homens que desafiaram o governo de Saul, é Saul
que toma a decisão de perdoá-los. Entretanto, a
iniciativa de Samuel causa a renovação da realeza
em Guilgal. Samuel conserva seu papel de líder
religioso e fazedor de reis, mas Saul emerge como
herói militar triunfante, digno de ser rei.
12,1-5 Samuel exige uma avaliação. Quando
a vida de Samuel se aproxima do fim, ele exige
uma avaliação de seu ministério, atitude incomum
na história bíblica. Sua lista de possíveis infrações esperar o sacerdote para realizar o sacrifício (9,13).
daria um exame adequado para a carreira de qual­
quer político. Samuel é completamente isento de
culpa. Não tomou nada, em contraste com o rei,
que, como previsto em 8,11-18, tomará tudo que o
povo valoriza. Samuel sugere que o governo de um
profeta é justo, comparado com o de um rei.
12,6-12 Uma história de infidelidade israe­
lita. Com seus antecedentes esclarecidos, Samuel
desanda a falar sobre a ingratidão de Israel para
com 0 Deus que tirou seus pais do Egito e os
salvou dos inimigos. Antes, Israel recebera um juiz
em tempos de opressão, mas agora o medo do
amonita Nahash é bastante grande para fazê-lo
exigir o governo permanente de um rei. Embora
agora Saul seja esse rei, Samuel ainda sofre por
causa da rejeição pelo povo do Senhor como o
verdadeiro rei de Israel. O v. 10 menciona explici­
tamente a tentação perene de Israel: a confiança e
o culto de outros deuses.
12.13- 18 Um sinal do descontentamento doJônatan, os únicos que possuíam armas, tentaram
Se n h o r .O povo está enganado se pensa que pode
descansar facilmente no que diz respeito à obe­
diência e ao culto do Senhor . Samuel mais uma
vez adverte-os de que o Senhor seu Deus é o
Senhor da história, com ou sem um rei humano. O
rei não está acima da lei divina. O sinal da sobe­
rania divina vem com o pedido de Samuel para
que troveje e chova durante uma estação em que
isso quase nunca acontece. A colheita fica arruina­
da; irado, o Senhor fez a vontade do povo.
12,19-25 Samuel intercede pelo povo. Embora
o povo admita ter pecado ao pedir um rei, não pode
desfazer esse ato. Quando pedem a Samuel para
interceder junto aô Senhor ,ele lhes dá apoio e in­
centivo, mas adverte contra a idolatria. Essa será a
mensagem típica dos profetas posteriores, apesar da
infidelidade do povo. Os israelitas serão punidos se jamais relatado sobre ele. A fé de Jônatan está por
fizerem o mal, mas, como Samuel, o Senhor nunca
os abandonará. Por sua parte, eles devem temer e
cultuar o Senhor ,para não ser aniquilados.
13,1-7 Vitória de Jônatan contra os fiiisteus.
Depois da vitória contra os amonitas (11,11), Saul
254 enfrenta um inimigo muito superior, os fiiisteus.
Sem carros nem cavalaria, os três mil homens são
deploravelmente sobrepujados. A única nota alegre
é 0 ataque bem-sucedido de Jônatan ao posto
filisteu em Guibeá (v. 3). Depois disso, Saul pro­
a luta. Os soldados amedrontados desertam em
grande número (vv. 6-7), enquanto Saul, apegan­
do-se aos que restaram, espera Samuel para presi­
dir ao sacrifício que os preparará para o combate.
13,8-18 O teste de Saul. Com a deserção de
suas tropas dispersas, houve enorme pressão sobre
Saul para impedir que o exército se desintegrasse.
O fato de Samuel não conseguir chegar a tempo é
intrigante, pois o atraso estava desmoralizando os
soldados. Foi afirmado que o povo era obrigado a
Assim, é desobediência Saul usurpar o papel de
Samuel e oferecer ele próprio o sacrifício. A con­
fiança de Saul estava na “mágica” das oferendas
— e talvez na força que o alimento daria — mais
do que no Deus a quem as oferendas eram feitas
e que decidiría o resultado do combate.
O impulsivo Saul fracassou nesse teste e a con-
seqüência desse fracasso foi a perda da realeza.
Saul é figura trágica e sua história tem diversos
presságios de um fim infeliz. A reprimenda de
Samuel sugere isso e indica nova escolha divina,
um homem segundo o coração do Senhor (v. 14).
Samuel parte, deixando Saul com um exército di­
zimado para enfrentar um ataque triplo dos fiiisteus.
13,19-23 A vantagem filistéia. Qs fiiisteus
controlavam não só o preço das ferramentas amola­
das, mas também a manufatura do ferro. Os israelitas
tinham de se contentar com relhas de arado e armas
que só podiam ser amoladas pelos fiiisteus. Saul e
combater, apesar dessas desvantagens, porque acredi­
tavam que a vitória na guerra pertencia ao Senhor .
Se Israel perdesse, seria porque, irado, o Senhor se
afastara do povo. Se vencesse, o Senhor estava com
eles. Um aspecto importante da guerra israelita no
tempo de Samuel era o interdito que exigia que
todos os despojos tomados na vitória fossem dedi­
cados ao Senhor , isto é, fossem completamente
destruídos, como holocausto ou sacrifício. A ques­
tão da destruição de um povo conquistado apresenta
um segundo teste para Saul no capítulo 15.
14,1-15 Jô n atan provoca pânico entre os
fiiisteus. A presença de Ahiá (v. 3) associa os es­
forços de Saul ao sacerdócio rejeitado da casa de
Eli. Jônatan, que domina este capítulo, é exceção,
pois, em contraste com seu pai, nada adverso foi
trás de sua atribuição do sucesso ao Senhor (v.6).
A fidelidade do escudeiro lembra a fidelidade que
0 Senhor esperara e não recebera de Saul. Nessa
percepção do Senhor ,Jônatan é como David, que,
antes de entrar em combate, sempre consultará o
S enhor (cf. 23,2.4; 30,8; 2Sm 2,1). Na façanha de

Jônatan, o pânico filisteu e o terremoto que se
segue são claramente atos do Senhor .A confiança
de Jônatan contrasta com o julgamento incorreto e
a impulsividade de Saul.
14,16-23 Saul chefia a desordem. A confu­
são anormal no acampamento filisteu causada pelo
ataque de Jônatan tem dois resultados vantajosos
para Israel: os antes destemidos filisteus começam
a se matar uns aos outros e os desertores israelitas
voltam a Saul, que mais uma vez lucra com o su­
cesso de Jônatan (cf. 13,4). O autor atribui a vitória
ao S enhor ( v. 23).
14,24-30 O juram ento temerário. O juramen­
to irrefletido de Saul, proibindo os soldados exaus­
tos de comer, é obedecido por todos, menos por
seu filho, que não fora informado. O soldado que
informa Jônatan e o próprio Jônatan criticam aber­
tamente a ordem de Saul (vv. 28-30). O soldado
menciona a fraqueza do povo; Jônatan fala de seu
próprio restabelecimento por ter comido um pouqui­
nho de mel, descrevendo o ato do pai como incômo­
do para o povo e, portanto, contraproducente (cf.
Jz 11,29-31).
14,31-36 Saul corrige a desobediência ritual.
Saul mais uma vez demonstra pouco juízo quando
o povo por demais faminto não deixa o sangue es­
correr da carne antes de comê-la, como eram obri­
gados a fazer (Lv 3,17). Saul mostra-se piedosa-
mente preocupado com o ritual apropriado e, para
seu mérito, faz depressa os arranjos necessários.
Embora queira fazer a vontade do S enhor, é um
desastrado que põe mais fé na cerimônia do que no
S enhor. Até o altar que constrói por devoção parece
desnecessário.
14,37-46 Jônatan salvo pelo povo. Tendo de
ser lembrado para consultar o S enhor (v. 36), Saul
não recebe resposta e conclui que a causa é o
pecado de alguém. Até a vida de seu filho não é
um preço baixo demais para pagar a fim de afastar
o silêncio do S enhor. O desconhecimento da von­
tade de Deus atormenta o reinado de Saul e pre­
nuncia sua morte (cf. os caps. 28 e 31). Quando o
povo salva Jônatan do fanatismo do pai, a sanidade
de Saul é posta em dúvida.
14,47-54 As guerras e a genealogia de Saul.
Apesar do que foi dito acima, Saul parece ter supe­
rado militarmente seus inimigos vizinhos (v. 47). O
capítulo conclui com uma lista dos filhos, mulhe­
res e generais de Saul. É tratamento bíblico padrão
no fim de um reinado. Talvez também assinale o
fim da realeza de Saul.
15,1-9 Saul “reinterpreta” suas ordens. As
palavras de Samuel deixam claro que o S enhor é
supremo e que, como fez Saul rei, o rei precisa obe­
decer ao S enhor. O fato de Saul poupar Agag frus­
tra o decreto divino do castigo, que devia recompen­
sar Israel pela crueldade de Amaleq (Ex 17,8-16;
Dt 25,17-19) e zomba do interdito (cf. comentário
sobre 13,19-23).
1 SAMUEL 16
15,10-23 Segunda rejeição de Saul. Quando
Saul desobedece, poupando a vida de Agag e o
melhor dos despojos amalequitas, o S enhor se
arrepende de tê-lo feito rei. O governo de Saul
toma agora um rumo visivelmente decadente. Pro­
curando repreender Saul, Samuel descobre que ele
foi a Karmel para erigir um monumento a si pró­
prio. Quando se encontram, Saul diz em tom con­
fiante: “Eu obedeci à voz do S enhor”. Esses inci­
dentes mostram a vaidade de Saul e o fracasso no
conhecimento do Senhor.
O encontro é jocoso e também irônico. Samuel
não deveria estar ouvindo os balidos e mugidos
que ouve; a desobediência que Samuel veio casti­
gar é negada pelo culpado. O oráculo poético de
Samuel (vv. 22-23) põe em perspectiva o sacrifício
exterior relacionado a uma atitude interior de obe­
diência. Também liga as práticas israelenses de adi­
vinhação e idolatria ao pecado e à presunção. Ao
superestimar o ritual, Saul fatalmente confundiu
seus valores (cf. 13,11-13; 14,33-35).
15,24-31 Saul se arrepende. Saul admite sua
culpa, culpando o povo, mas Samuel não aceita a ex­
plicação nem reconhece que Saul pode ter agido com
boa-fé. Saul acha a rejeição impossível de suportar e
suplica a Samuel que o acompanhe no sacrifício.
Samuel concorda, mas não antes de apresentar outra
rejeição simbólica: arrancar a ponta do manto de
Samuel é como se a realeza de Saul fosse arrancada.
15,32-35 Samuel realiza a tarefa de Saul. A
sentença de Samuel para Agag é uma reafirmação da
lex talionis que prescreve que o castigo deve condizer
com 0 crime (Lv 24,17-21). Assim como Agag, por
sua espada, privou as mulheres dos filhos, sua mãe
ficará sem seu filho. E sentença lapidar e incontes­
tável do Senhor (v. 33), que usa acontecimentos hu­
manos para fazer sua inescrutável vontade.
Talvez o leitor de hoje fique atônito com o
sangue-frio do profeta ao completar o interdito com
a morte de Agag, mas os profetas bíblicos não são
conhecidos como covardes diante da morte (cf Ex
32,25-28; IRs 18,40). Não pode haver sentimenta-
lismo na obediência a Deus, que “faz morrer e faz
viver” (2,6).
IV. SAUL E DAVID
ISm 16-31
Da mesma forma que o sacerdócio da casa de
Eli foi eliminado e substituído por Samuel, aqui
Saul é rejeitado e substituído por David. A casa de
Eli pecou contra o culto do S enhor; Saul pecou ao
não impor o interdito contra Amaleq e ao usurpar
0 papel de Samuel como sacerdote no oferecimen­
to do sacrifício. As duas infrações dizem respeito
ao culto do S enhor e ficaram sujeitas à destruição
das respectivas casas.
Do mesmo modo que Eli atuou como sacerdo­
te depois de sua rejeição (ISm 2-3), também Saul 255
 1 SAMUEL 16
continua como rei, embora o Senhor já não esteja
com ele. Orientado pelo Senhor ,Samuel unge um
novo rei, David, que se mostra soldado competente
e bem-sucedido em tudo que faz. Nestes capítulos,
Saul o persegue por ciúme desse sucesso, mas
David habilmente escapa sempre. Por fim, Saul cai
vítima do próprio inimigo cuja derrota fora o propó­
sito de sua coroação (9,16; 10,1).
David tem todas as características desejadas em
um herói bíblico: aparência agradável, oratória e
também habilidade musical. Comparado a Saul,
David é superior desde sua primeira apresentação.
O mais importante é o Senhor estar com ele, o que
é dito apenas uma vez sobre Saul (10,7) e diversas
vezes sobre David (16,18; 17,37; 18,12.14.28; 20,13).
16.1- 13 Unção de David. O pesar de Samuel
pela rejeição de Saul sugere não só que ele alimen­
tara esperança pelo sucesso de Saul como rei, mas
também que se sentia ligado a ele (c f 15,11). A
brusca intervenção do S enhor impede mais tristeza;
ele está decidido a escolher outro rei.
O temor que Samuel tem de que Saul o mate
(v. 2) nos surpreende, pois nega a impressão de
que Samuel tinha autoridade sobre Saul. O Senhor
encoraja Samuel com um subterfúgio. A nova unção
deve ser feita sob a capa de um sacrifício na casa
de Jessé em Bet-Lehem. A pergunta dos anciãos:
“E uma ocasião feliz que te traz?” (v. 4), adverte
que a palavra profética podería trazer tanto o bem
como o mal (cf. IRs 1,9-16; 2,23-24).
Samuel unge David em um banquete particular,
sem ostentação (compare com a unção de Saul em
9,22-27; 10,1). E o último ato profético registrado
de Samuel antes de sua morte (25.1; 28,3).
16,14-23 David, o futuro rei. Em outro sinal
de rejeição, o espírito do Senhor agora se afasta de
Saul e é substituído por um espírito maligno. Mas
Saul não fica sem alívio. O fato de David ser o meio
para expulsar o espírito maligno dificilmente pode
ser coincidência.
O relacionamento de David com Saul tem co­
meço feliz. Saul sente imediata atração por David
e lhe dá a função de escudeiro, o que significa trei­
namento em serviço para a realeza. Mas essa mes­
ma proximidade logo causará problemas.
17.1- 11 Goliat insulta o exército de Israel. Ofavor de David. Essa amizade é profusamente gene­
desafiante que sai do acampamento filisteu é tão
forte e está com uma armadura tão imponente que
aterroriza Saul e seu exército acampado na colina
oposta. Parecem ter se esquecido que quem deter­
mina a vitória é o Deus de Israel (14,6; 17,47).
17,12-37 David, herói e salvador. Sem men­
cionar sua unção anterior por Samuel, o autor rein-
troduz David como um filho mais novo enviado ao
acampamento israelita com provisões para seus
irmãos. Alguns comentadores atribuiram essa dis­
crepância a uma outra tradição aqui incluída no
texto. Entretanto, o que hoje vemos como contra-
256 dição muitas vezes não era problema para os israe­
litas. A destemida aceitação por David do desafio
de Goliat destaca-se contra o terror abjeto dos is­
raelitas (v. 11).
A recompensa que Saul promete ao defensor
de Israel lembra contos de fedas em que se prome­
tem ao herói fortuna e a mão da filha do rei. Uma
vantagem mais realista vem em forma de isenção
de impostos para a família do herói. Por isso tudo,
vemos como o exército e o governo de Saul eram
financiados e que a advertência de Samuel sobre
os direitos do rei estava se cumprindo (8,10-17).
A oferta de Saul para fazer de David seu genro
dá-lhe um grande direito de suceder ao trono. A
previsão posterior de Jônatan de que David seria
rei reflete esse costume (20,12-16; 23,17).
Agora um pequeno drama doméstico acontece
na acolhida zangada que David recebe do irmão
mais velho Eliab (v. 28). O papel de David aqui é
comparável ao de José, enviado aos irmãos pelo pai
enquanto eles apascentavam os rebanhos (Gn 37).
Nos dois casos um irmão mais moço de extraordi­
nária promessa é objeto de ciúme e desprezo.
17,38-54 O encontro decisivo. Quando David
não consegue usar a armadura de Saul para lutar
com o filisteu, recorre a outras habilidades e confia
no S enhor. Junto com pedras e uma funda, esses
eram os meios simples para derrotar Goliat. A teo­
logia do evento resume-se na declaração de David;
“Não é pela espada, nem pela lança que o S enhor
concede a vitória” (v. 47).
Há um anacronismo óbvio no v. 54, pois Jeru­
salém só se tornou cidade israelita quando David
já era rei (2Sm 5). A menção de Jerusalém e da
tenda de David é adição mais tardia.
17,55-58 Saul encontra David pela primeira
vez. E esquisito que Saul, que fizera de David seu
escudeiro e tocador de citara em 16,21 -23, nada saiba
sobre o novo herói, o mesmo acontecendo com seu
general, Abner. Os comentadores suspeitam que aqui
possa ter sido acrescentado um relato alternativo.
18,1-4 A aliança de amigos. Pai e filho são
imediatamente atraídos a David, em resultado de sua
vitória sobre Goliat. Saul fá-lo parte de sua família e
Jônatan tira as vestes e as armas para entregá-las a
David. O presente equivale à abdicação do trono em
rosa e dura a vida toda, enquanto que o amor menos
desinteressado de Saul por David logo se acaba.
18,5-30 Saul se volta contra David. Quando
a popularidade de David aumenta com suas vitó­
rias, a ponto de fazer que as mulheres cantem sobre
ele em detrimento de Saul (v. 7), em um ataque de
ciúmes Saul tenta cravar David na parede enquanto
este toca sua citara. O medo do rei aumenta quan­
do David foge e ele percebe que o espírito do
Senhor o abandonou e está com David (vv. 12.15).
Essa transferência do espirito foi a explicação bíbli­
ca para o contínuo sucesso de David contra os filis-
teus (vv. 5.30).
 1 SAMUEL 21

Saul, que tinha motivos para ser grato a David, A principio, Jônatan parece ser um obstáculo para
age três vezes com má-fé contra ele. Primeiro, ofe­ que David se tome rei, já que é o legítimo herdeiro
rece-lhe a mão de sua filha mais velha, Merab, de Saul. Ao contrário, é o meio pelo qual se cumpre
somente para dá-la a outro homem (w. 17.19); se­ 0 destino de David. Este capítulo marca a mudança
gundo, envia David para a guerra, na esperança de no papel de Jônatan de príncipe herdeiro ptira súdito
que os filisteus o matem (v. 17), tática que o próprio de David. E mais: em seu sucesso contra os filisteus
David usará contra o marido de Bat-Sheba em 2Sm no capítulo 14 e sua salvação subsequente pelo povo,
11-12); terceiro, oferece a David a posição de genro Jônatan, com efeito, substitui o pai como rei. Quando
em troca da entrega de cem prepúcios de filisteus, dá a David todos os acessórios da realeza, Jônatan
na esperança de que o perigo da incumbência traga abdica do trono (cap. 18). A realeza de David, insti­
a morte a David (v. 25). Embora, por modéstia, David tuída divinamente pela unção de Samuel (cap. 16),
hesite em se tomar genro (vv. 18.23), fica contente tem, assim, a intercessão humana de Jônatan.
e parece não ter consciência da animosidade de Saul 20,11-17 O juram ento de fidelidade. O pacto
(v. 26). Na entrega do dobro de prepúcios, Saul dá entre David e Jônatan contém duas premonições:
a David a mão de sua filha mais nova, Mikal. Jônatan, o esperado herdeiro do trono, dará lugar a
David parece já ter ultrapassado Jônatan mili­ David e depois morrerá (vv. 14-16). Ambos enfren­
tarmente, de quem não é relatada nenhuma outra tam a morte; ambos estão na fila para a realeza. A
vitória além da do capítulo 14. Jônatan cai, enquan­ bênção de Jônatan para David (v. 13) reconhece a
to David sobe (compare Jo 3,30). rejeição de Saul e indica a sucessão de David.
19.1- 17 Jônatan e Mikal ajudam David. Em 20,18-34 Jônatan testa seu pai. Saul tenta de­
defesa do amigo, Jônatan consegue do pai um jura­ sesperadamente conter a maré favorável a David,
mento de que não matará David (v. 6). Entretanto, matando-o. Quando Jônatan desculpa a ausência de
quando o espírito maligno volta para incitar Saul a David, a reação de Saul vem com vingança. Em
cravar David na parede com sua lança, Mikal junta­ palavras bastante abusivas, Saul ataca não somente
-se a Jônatan para proteger David. Depois de conven­ Jônatan, mas também sua mãe, insinuando uma trai­
cê-lo do perigo de Saul (v. 11) e fazê-lo descer em ção não revelada por parte dela. Em vez de tentar
segurança pela janela, ela demonstra espírito inven­ atrair Jônatan para seu lado, Saul aumenta o afasta- •
tivo ao enganar os soldados do pai (vv. 13-16) e co­ mento, brandindo a lança contra o próprio filho.
ragem ao enfrentar sua repreensão (v. 17). Assim, o Pela primeira vez, Jônatan se zanga e sai da sala.
infeliz Saul vê-se afastado dos dois filhos por causa 20,35-42 Jônatan m anda David se pôr a ca­
de seu comportamento com David. O fato de haver minho. Aqui, Jônatan se junta à irmã Mikal para
um ídolo na casa de Mikal sugere que, na prática, corajosamente defender David contra a intenção
0 culto do S enhor não era tão puro quanto exigia o assassina de seu pai. Quando Jônatan se afasta do
ideal bíblico (compare Gn 31). pai, 0 isolamento de Saul aumenta e com ele sua
19,18-24 Saul junta-se aos profetas. O espírito loucura. Ao término da cuidadosa charada de atirar
do Senhor age para frustrar Saul em sua tentativa de flechas, David apresenta a Jônatan a tripla home­
agarrar David. Os que estavam por perto devem ter nagem que cabe a uma pessoa régia. Salvando-lhe
achado engraçado ver todos os emissários de Saul e a vida, Jônatan ajudou David a ser rei. Mais tarde,
depois ele próprio arrebatados pelo espírito ao se David preservará a posteridade de Jônatan, salvan­
aproximarem dos profetas entre os quais David se do seu filho (2Sm 9; 21,7).
escondera. A passagem em que Saul, em situação 21,1-10 Ahimélek ajuda David. Com a ines­
altamente indigna, caminha em transe com seus emis­ perada chegada de David sozinho em Nob, Ahimélek
sários confirma o dito popular de 10,11-12: “Tam­ tem a premonição de que nem tudo está bem. Teme
bém Saul entre os profetas?” Essa descrição reforça que David seja um fugitivo e que ele e seus compa­
a incompetência e a rejeição de Saul e ao mesmo nheiros não estejam religiosamente preparados para
tempo reflete a depreciação popular da profecia pri­ comer o pão destinado aos sacerdotes. Apresentan­
mitiva. O ponto principal é que o Senhor está prote­ do-se como se estivesse em missão confiada por
gendo David contra Saul, para decepção do rei. Saul, e sob o preceito da guerra santa, que exigia
20.1- 10 Jônatan promete lealdade a David. abstinência de relações sexuais (Lv 15,18; Dt 23,10),
Com as mesmas palavras ditas por Saul ao poupar David minora seu medo e recruta sua ajuda. Con­
os rebeldes que antes haviam se oposto a seu governo vencido de que tudo está em ordem, Ahimélek não
(11,13), Jônatan pronuncia o que é quase um decre­ procura esconder de Doeg, um servo de Saul, o fato
to real, afirmando que David não morrerá nas mãos de ter dado pão e armas a David (v. 8). Mais tarde,
de Saul (v. 2). Ao fazer isso, opõe-se à vontade de a presença de Doeg exigirá um ajuste de contas. O
seu pai e transfere sua lealdade de Saul para David. episódio mostra que as necessidades humanas têm
Por seu lado, é tão grande a confiança de David em precedência sobre as normas cultuais, pormenor
Jônatan que ele pede a Jônatan que o mate, se for também salientado quando os discípulos arrancam
provado culpado (v. 8), em vez de deixá-lo morrer espigas de trigo para comer no sábado (Mt 12,3-4;
nas mãos de Saul (compare 2Sm 14,32). Mc 3,25-26; Lc 6,3-4). 257
 1 SAMUEL 21
21,11-16 David foge para Akish de Gat. A
segunda pessoa que David encontra ao fugir de Saul
é Akish, rei de Gat. Com Ahimélek, David repre­
sentara o papel de alguém que recebera uma missão
de Saul; com Akish, finge loucura, pois os atacados
de insanidade eram considerados possuídos por um
espírito maligno, o que os tomava intocáveis. Em­
bora David, o caçado, pareça estar louco, não está;
Saul, 0 caçador, é o verdadeiro louco.
22.1- 5 David provê para seus pais. O refúgio cimento, David foge com seus homens, agora em
de David na caverna de Adulâm possibilita a for­
mação de um bando. Agora não mais hostis, seus
irmãos juntam-se a ele e, com alguns rejeitados
pela sociedade, dão-Uie proteção. E o começo de
uma base de poder que levará à coroação de David.
Em vista da perseguição de Saul, David pede
permissão para que seus pais morem provisoria­
mente em Moab. A dúvida de David sobre aonde
devia ir em seguida resolve-se com as instruções
do profeta Gad para que volte a Judá — e o peri­
goso campo de ação de Saul. Em todas as vicissi-
tudes, o S enhor continua a cuidar de David.
22,6-23 Doeg trai Ahimélek. A cena muda
para o acampamento de Saul, onde, de lança em
punho, ele se queixa da deslealdade de seus ho­
mens. A paranóia está envolvendo a apreciação dos
eventos por Saul, de modo que até mesmo os mais
próximos a ele são suspeitos. A revelação por Doeg
do encontro de David com Ahimélek em Nob leva
Saul a agir. Quando Ahimélek se apresenta diante
dele, Saul, mais uma vez, faz uma acusação de
conspiração (vv. 8.13) e se recusa a ouvir sua pa­
tética, mas válida, defesa. O castigo de Ahimélek
é um resultado previsto, mas não a reação à ordem
de Saul para matar os sacerdotes. Quando nenhum
homem se move para obedecer à ordem, Saul pres­
siona 0 edomita Doeg para que realize a tarefa
cruel, presumindo que um estrangeiro teria menos
escrúpulos para executar israelitas.
Doeg começa a matança pelos sacerdotes e es­
tende-a ao resto dos habitantes e aos rebanhos e ao
gado de Nob. O que Saul deveria ter feito a Agag
e aos amalequitas, faz aqui contra seu próprio povo
(15,3). Enquanto o verdadeiro alvo da animosidade
de Saul escape, um filho de Ahimélek, Ebiatar,
sobrevive para relatar o massacre a David (vv.
20.21). Com a chegada de Ebiatar, a história volta
aos fugitivos na floresta. Aqui, David aceita a res­
ponsabilidade pela matança em Nob, oferecendo a
Ebiatar toda a proteção possível.
23.1- 6 David consulta o S enhor. Em contras­de David; o comedimento quando o inimigo está a
te com Saul, que precisou ser lembrado para con­
sultar o S enhor e depois não recebeu resposta
(14,36-37), ao perguntar se deve combater os filis-
teus, David não só recebe resposta afirmativa como
também pergunta uma segunda vez por causa dos
homens amedrontados. A vitória de David é previ­
sível porque o efod está em seu acampamento,
258 trazido por Ebiatar quando fugiu de Saul. Agora o
S enhor está com David de maneira concreta, pois
0 efod permite-lhe acesso cultuai à vontade do
Senhor.
23,7-13 Saul frustrado mais uma vez. Saul
entende a presença de David em Queilá como
oportunidade dada por Deus para agarrar o inimigo.
Dois outros usos do efod dão a conhecer a David
o plano de Saul de persegui-lo e a traição dos in­
gratos cidadãos de Queilá. Por causa desse conhe­
número de 600. Mais uma vez, a narrativa contras­
ta Saul e David; este último é visto como devoto,
temente e obediente a Deus; o primeiro titubeia
por sua falta do conhecimento de Deus.
23,14-18 David e Jônatan se encontram pela
última vez. Os detalhes essenciais do relacionamento
entre David e Jônatan, esboçados em 18,1-4, são
aqui ampliados. Jônatan reconhece abertamente que
David será rei e seu pai não conseguirá alcançá-lo
(v. 17). Só a previsão da posição de Jônatan como
ajudante de David não se concretiza, pois Jônatan
não vive o bastante para ver David coroado rei. As
palavras de Jônatan confirmam sua lealdade a David
e a desistência de qualquer direito ao trono.
A breve visita de Jônatan fortalece a resolução
de David e confirma o cuidado oculto que o S enhor
tem pelo rei que favoreceu. Depois de renovada sua
aliança, Jônatan se despede de David e da narrativa,
exceto pela notícia de sua morte em 31,6-7.
23,19-28 Saul é desviado da perseguição.
Quando os habitantes de Zif se oferecem para reve­
lar 0 esconderijo de David, Saul inexplicavelmente
pede mais investigações. Anteriormente, quando
soube que David estivera em Nob, agira imediata­
mente (22,11). Agora propõe uma busca ampla,
que só dará a David mais tempo para fugir.
Desde sua queixa de que ninguém lhe conta
nada (22,7-8), duas vezes Saul recebe informações
que quase levam à captura de David (vv. 7.19). Em
ambas as vezes tem de abandonar a perseguição
devido a acontecimentos inesperados ou à interven­
ção divina. Entretanto, Saul nem tem consciência
disso, nem desiste da perseguição.
24,1-16 David pede justiça ao Senhor. É a
terceira vez que espiões leais a Saul avistam David.
Os três mil homens de Saul (v. 3) sobrepujam com
folga os 600 de David (23,13). Descoberto na caver­
na, por David e seus homens, Saul está agachado
na mais humilhante das posições. O constrangi­
mento do rei serve de realce a duas características
seu alcance e o extraordinário cuidado para não
ofender o ungido do S enhor. Como a piedade impe­
de-o de matar Saul, David procura o S enhor para
defendê-lo.
David dirige-se a Saul com humor considerá­
vel. Depreciando-o como a um cão morto, ou a
uma pulga, tenta mostrar ao rei a inutilidade da
perseguição.

24,17-23 Saul adm ite que David será rei. O
hábil discurso de David (cf. 16,18) é tão persuasivo
que Saul começa a chorar. A resposta de Saul é
grata e contrita, mas o anúncio de que sabe que
David será rei é profético. Como seu filho Jônatan,
Saul também pede a David para poupar sua posteri­
dade, contrariando o costume aceito da eliminação
da casa reinante anterior pelo novo rei.
Aqui Saul não é mais um perigoso persegui­
dor, mas um cativo vencido à mercê daquele que
se recusa a matá-lo. A situação está carregada de
tanta emoção que, esquecendo por algum tempo a
inimizade, cada um voltou para seu lugar.
25,1 Israel pranteia Samuel. Com a morte de gos de David, como se fosse da cavidade de uma
Samuel, o papel de juiz de Israel passa para o rei.
Samuel era sacerdote e também profeta, duas fun­
ções que agora assumem crescente importância para
pôr um freio ao poder do rei.
25,2-11 David busca provisões com Nabal (o
idiota). Entre os dois encontros de Saul e David
(caps. 24 e 26), há aqui um romântico interlúdio.
Se perguntávamos a nós mesmos como David sus­
tentava seus homens no deserto, essa história dá a
resposta. Nabal oferece a David um tipo de oposi­
ção diferente da de Saul, mas que poderia ser igual­
mente ameaçadora. Nabal se recusa a partilhar
alimento com David e seus homens em uma época
de hospitalidade tradicional, a festa da tosquia do
rebanho (compare Gn 38,13; 2Sm 13,23ss.).
Quando pede presentes da festa de Nabal, David
0 faz começando astutamente com saudações poli­
das, insinuações ao provável débito de Nabal, alu­
são à festa e, por fim, o pedido de provisões. Em
resposta, primeiro Nabal tenta fazer de David um
zero e depois iguala-o a um escravo fugido. David
trata Nabal como irmão (v. 6) e pai (v. 8), mas
Nabal menospreza-o como a um desconhecido (v.
11). Embora David possa não ter tido nenhum direi­
to estrito de participar da festa. Nabal, por sua vez, (2Sm 3,2), aparece como mulher de Saul em 14,50.
falha em “saber” o que é para o seu bem.
25,12-35 Abigáil (a sábia) salva David. Depois
de ouvir a rejeição de Nabal, David, irado, cinge a
espada, ordenando a seus homens que façam o
mesmo. Repetindo três vezes o verbo cingir, o autor
protela a ação para aumentar a expectativa e mos­
trar a implacável determinação de David e seus
homens famintos.
Nesse ínterim, os servos de Nabal informam
sua senhora Abigáil sobre o que transpirou e ates­
tam o bem que David e seus homens lhes fizeram
(vv. 14-17). A franqueza deles ao descrever Nabal
como “idiota” (literalmente, “filho de Belial” — c f
a palavra “vagabunda” de Haná, em 1,16) indica não
só que ela merecia a confiança deles, mas também
que a rabugice de Nabal era bem conhecida.
Ao contrário do marido, Abigáil sabe o que é
para seu bem. Apressa-se com presentes em tempo
de aplacar a ira crescente de David. Em discurso
tão habilidoso quanto o de David, ela primeiro culpa
1 SAMUEL 26
Nabal por agir como idiota e a si mesma por não
ter visto os homens que David enviara. Mencio­
nando que o S enhor salvou David de incorrer em
homicídio (v. 26), oferece seus presentes. Prova de
sabedoria é sua percepção de que, como David
está combatendo as guerras do S enhor e não há
maldade nele, o S enhor estabelecerá uma dinastia
duradoura para ele (v. 28).
Abigáil conclui seu discurso com uma bênção
para David (v. 29), em que emprega duas metáforas:
1) refere-se ao “bomal dos vivos”, onde David será
mantido como promessa de vida e 2) pede ao S e­
nhor que arremesse para longe as vidas dos inimi­
funda, recordando a vitória de David sobre Goliat
com uma funda (17,40.49s.). O último desejo de
Abigáil, que David se lembre dela quando tudo
que ela previu acontecer, recebe resposta igualmente
afável de David, que depois deixa-a partir em paz.
25,36-39 O festim de Nabal. Em três breves
vv., a vida de Nabal chega ao fim, com uma orgia
de embriaguez seguida de um acesso. Ele prepara­
ra para si mesmo o festim de rei (v. 36) que deve­
ria ter sido preparado para o verdadeiro rei, David.
David apelara a ele como se fosse um servo; ao
contrário, a mulher de Nabal se apresenta como
serva (vv. 27.41) enquanto prediz a realeza de
David. Assim, o bem que David fez (vv. 15.21) é
recompensado (v. 30) e o mal que Nabal fez a
David (vv. 17.21,26.39) é castigado.
25,40-43 As esposas de David. Ao fazer de
Abigáil sua esposa, David recebe não só uma mu­
lher de sabedoria, que sabe falar, mas também,
muito provavelmente, o controle da propriedade de
Nabal no território kalebita de Hebron (Js 14,13­
14). Essa vantagem é contrabalançada pela entrega
de Mikal a outro por Saul. Ahinoam, mais tarde
citada como mãe do primogênito de David, Amnon
Se agora ela era mulher de David e fora de Saul,
isso talvez se relacione com a explosão violenta de
Saul ao afirmar que Jônatan era filho de uma trans-
viada (20,30).
26,1-12 David enfrenta Saul. Este eapítulo
apresenta o irmão de loab, Abishai, segundo no
comando do exército de David e um homem sempre
pronto com a espada (2Sm 3,22ss.; 8,16). Quando
ele pede a David para matar Saul adormecido, David
recusa, mais uma vez honrando a santidade de um
rei ungido (24,7). Em vez de tirar a vida de Saul,
David leva embora seus meios de defesa, a lança e
o cantil de água. A entrada e a tomada têm sucesso
por causa do sono profundo que o S enhor mandou
sobre o acampamento (v. 12). E outro exemplo das
ajudas divinas continuamente concedidas a David à
custa de Saul (cf. 19,22ss.).
26,13-20 Dupla repreensão. Abandonando o
acanhamento que mostrou no encontro anterior com
Saul (cap. 24), David, de uma distância segura em 259
 1 SAMUEL 26
um monte oposto, acusa abertamente Abner, gene­
ral de Saul, de negligenciar a guarda do rei. Quan­
do isso chama a atenção de Saul, David deixa Abner
para atacar o rei com palavras. David está disposto
a aceitar a perseguição de Saul se ela vier do Se­
nhor, mas se vier de homens (isto é, de Saul) será
forçado a fugir para uma terra estrangeira, onde
será tentado a servir a outros deuses (v. 19).
26,21-25 Saul se arrepende novamente. Con­
trito e agradecido, Saul admite que tem sido louco
(compare Nabal, cap. 25). David, entretanto, não faz
nenhum pacto com ele como fez no encontro ante­
rior (eap. 24). Ignorando a promessa de Saul de não
lhe fazer mal (v. 21), David lembra ao rei que a única grito de reconhecimento tem ecoado através dos sé­
razão de ter sido poupado é o fato de ser ungido.
Isso reflete mal em Saul, que, ao perseguir aquele
que ele sabe que será rei, não tem esses escrúpulos
de consciência. Embora ambos se separem com bên­
çãos mútuas, Saul fez a paciência de David chegar
ao limite.
27.1- 4 David sai de Israel. David sente um cairá diante dos filisteus, como acontecerá com Saul
desânimo parecido com o de Abraão depois das
repetidas promessas de um filho (Gn 15,4). Embora
tanto Saul como Jônatan tenham previsto que será
rei, enquanto Saul o persegue, David não tem espe­
rança para sua vida no futuro.
27,5-12 Akish dá Siqlag a David. Em um
acordo mutuamente agradável, Akish encontra em
David um soldado hábil, e David consegue, por in­
termédio de Akish, prover para si mesmo e seus
homens. Talvez imaginemos por que não há indica­
ção do encontro anterior, quando Akish se mostrou
relutante em abrigar outro louco (21,11-16). Com
as informações que temos, não dá para chegar a
uma conclusão sobre essa incompatibilidade.
Nos dois encontros com Akish, David nunca
trai sua firme lealdade a Israel. Os ataques que faz, bate do dia seguinte.
ostensivamente a favor de Akish, são contra inimi­
gos tradicionais de Israel e dos filisteus. David tem
o cuidado de matar todos os humanos, para evitar
que 0 traiam, se voltarem como prisioneiros. Como
outras na Bíblia, essa trapaça fica sem castigo.
28.1- 2 Akish confia em David. Quando Akish que sua confiança em David era firme. Entretanto,
diz que David deve saber que partirá com os filis­
teus contra Israel, David responde que Akish saberá
0 que seu servo fará. A resposta de David é um
disfarce para sua lealdade que jamais se afastou de
Israel e significa que ele não espera ter de se trair
diante de Akish. No capítulo seguinte, a questão
foge a seu controle.
28,3-6 O S enhor não responde a Saul. No­
vamente nos é comunicada a morte de Samuel, um
fato que, junto com o banimento por Saul dos
adivinhos (segundo Dt 18,10-14), limita bastante
seu conhecimento da vontade divina ao enfrentar o
inimigo. Vendo-se superado em número de tropas,
Saul tem medo, algo que jamais é dito a respeito
de David, a não ser em relação à perseguição por
260 Saul (23,15). Mais uma vez, como em 14,37, Saul
fica sem orientação divina, desvantagem que David
nunca tem de enfrentar.
28,7-14 Saul procura uma necromante. Em
hebraico, o nome “adivinho” é uma forma do verbo
“conhecer”. Em contraste com Akish, que saberá (v.
2) 0 que David fará, Saul não sabe o que o S enhor
fará e, para descobrir, procura alguém que saiba.
Embora isso signifique desobedecer a seu próprio
decreto, Saul, muito amedrontado, procura uma necro­
mante. Imediatamente, ela se defende de seu pedido,
afirmando que Saul — e todo o mundo em Israel —
sabe que é ofensa grave praticar a adivinhação. Logo
que evoca Samuel, ela sabe quem é o suplicante. Seu
culos, na música e na literatura.
28,15-19 Saul descobre o que quer saber.
Demonstrando surpresa por Saul não ter aceito a
retirada do S enhor para longe dele, Samuel repete
a rejeição divina de sua realeza. Aqui Saul está sendo
punido por não ter matado Agag (cap. 15). Israel
e seus filhos. A resposta relutante de Samuel diz a
Saul tudo que ele preferiría não saber.
28,20-25 A bondade da necromante. Apro­
veitando a declaração de Samuel de que Saul de­
sobedecera à palavra do S enhor, no v. 18, o autor
agora inicia um jogo de palavras com o verbo “obe­
decer”. Quando a mulher vê que Saul caiu por terra
de tanta fraqueza, ela faz com que ele se lembre de
que até agora ela lhe obedeceu (v. 21). Por sua vez,
ele deve obedecer-lhe (v. 22), quando ela insiste
em lhe preparar alguma comida. Por insistência de
seus servos, Saul obedece (v. 23) e lhe é oferecido
um bezerro cevado (compare Lc 15,23.27). É o úl­
timo banquete de Saul antes de sua morte no com­
29,1-11 R elutantem ente, Akish dispensa
David. Como quando da perda da Arca, os filisteus
estão mais uma vez acampados em Afeq (4,1), pron­
tos para lutar contra Israel. Akish ordenara a David
e a seus homens que partissem com ele, mostrando
os outros chefes filisteus se lembram da história
que dizia ter matado David milhares de seus homens
(v. 5; 18,6-7; 21,11-12) e, com realismo, vêem em sua
presença entre eles o perigo de ele se unir a Saul e
atacá-los pela retaguarda.
O discurso com o qual Akish manda David de
volta é lisonjeiro, a ponto de chamá-lo de Anjo de
Deus (compare 2Sm 14,17; 19,28). Quando Akish
não vê nada de errado em David, ele está na tra­
dição de Potifar e seu carcereiro, que não viram
nada de errado em José e confiaram nele o bastan­
te para deixá-lo encarregado de tudo (Gn 39,6.23).
David inspira a mesma confiança em Akish. Vindo
de estrangeiros, esse é um alto elogio tanto para
José como para David. Os irmãos israelitas, porém,
não se deixaram cativar com a mesma facilidade.

David pergunta a Akish por que ele não pode
partir e combater “os inimigos de meu senhor, o
rei” (v. 8). Suas palavras podem se referir a Akish
ou ao rei Saul (cf. 28,2). Aqui David mais uma vez
escapa astutamente, levando intata sua amizade com
Akish.
30,1-10 Ataque amalequita contra Siqlag.
Embora a devastação deles por Saul no capítulo 15
devesse tê-los tomado impotentes, os amalequitas
agora vingam-se saqueando a cidade que Akish dera
a David. Em vez de serem postos sob o interdito,
como Saul tinha ordens de fazer, os ocupantes de
Siqlag foram aprisionados com vida. Antes de sabe­
rem disso, a narrativa mostra em crescendo a triste­
za dos soldados que regressavam, com o relato de
seus soluços e choro até não terem mais forças, a
informação de que as duas mulheres de David esta­
vam entre os cativos e, por fim, a extrema amargura
dos homens para com David, a ponto de estarem
dispostos a apedrejá-lo, sinal raro de desencanto com
David. Ao se voltar para o Senhor ,David reconhece
que Deus é a fonte de sua força e seu sucesso.
Em obediência ao oráculo recebido por meio do
efod (v. 8), David persegue Amaleq e deixa para trás
200 dos soldados mais exaustos, que ficam tomando
conta da bagagem; esses soldados teião papel signifi­
cativo na distribuição do butim (w. 21-25).
30,11-16 O egípcio abandonado. David rece­
be ajuda providencial na pessoa do escravo egípcio
doente que os amalequitas tinham abandonado. Em
troca de comida, água para beber e proteção, o es­
cravo leva-o até os amalequitas que estão festejando.
Esse egípcio inclui-se em uma extensa lista dos que
ajudaram David: Mikal, Jônatan e Ahimélek, todos
surgindo no momento crucial.
30,17-25 David salva os cativos de Siqlag.
Depois de um número incontável de amalequitas
terem sido massacrados, todos os cativos são liber­
tados. Em seguida, David enfrenta outro desafio de
seus homens que não queriam partilhar o butim com
os que ficaram para trás com a bagagem (v. 10). Os
que reclamaram são chamados de malvados e vadios
(v. 22), mas é de gente assim que o pequeno exérci­
to de David foi formado (22,2). Ele precisa continua­
mente encorajá-los a confiar no Senhor (23,1-5) e
a fazer o bem aos companheiros, por gratidão a ele
COMENTÁRIO: 2 SAMUEL
V. A LUTA PELO REINO
2Sm 1-8
Depois da morte de Saul, David não toma o
poder, mas espera que o Senhor lhe conceda a
realeza. Rejeita a coroa de Saul oferecida pelo
mensageiro amalequita, mas, depois de ser ungido
pelos habitantes de Judá (cap. 2), aceita a fidelida­
2 SAMUEL 1
(30,23). A decisão rápida e fume de David de com­
partilhar o butim entre todos os membros do exér­
cito toma-se precedente para Israel (v. 25).
30,26-31 A divisão do butim. David se mostra
um político astuto ao enviar presentes do butim aos
povoados judaítas no Négueb, onde já era conhecido.
Esses presentes podem ser meios para conseguir acei­
tação mais tarde, quando for cogitado para a realeza
depois da morte de Saul (2Sm 2,1-4).
31,1-8 Como Saul e Jônatan morreram. A
imagem feliz de David compartilhando os despojos
da vitória sobre os amalequitas dá lugar à imagem
mais sombria de Saul e dos soldados israelitas fugin­
do e caindo diante dos filisteus. Mais uma vez, a
sorte de David aumenta enquanto a de Saul entra em
declínio, como rei e também como ser humano.
Ignorando detalhes do combate, a parte narra­
tiva, que começa e termina no monte Guilboa (vv.
1-8), repete a notícia da morte dos três filhos de
Saul e do encontro de Saul (morto) (vv. 2.4.8), a
chegada dos incircuncisos/filisteus (vv. 3.7.8), a
fuga dos israelitas (vv. 1.7) e a descoberta da morte
de Saul, primeiro pelo escudeiro e depois pelos is­
raelitas (vv. 5.7). De modo concêntrico, esses acon­
tecimentos encerram a mensagem central da morte
de Saul (v. 6). O embelezamento literário aumenta
o patético e a importância do evento.
31,9-13 M isericórdia p ara os corpos dos
mortos. Os filisteus profanam o corpo de Saul de
três maneiras: cortam-lhe a cabeça, sabendo que
qualquer mutilação de um cadáver é um horror para
os israelitas; despojam-no figurativa e literalmente
de sua glória como soldado, tirando suas armas e
depositando-as no templo deles; por último, fazem
0 imperdoável: pregam seu corpo na muralha da
cidade. Aparentemente, troféus de guerra pendura­
dos em uma casa de culto creditam a vitória ao deus
(cf 5,2; 21,10).
Embora a queima de corpos seja um costume
abominável, aqui é misericórdia, pois assim não
podem mais ser cometidas atrocidades com eles. O
sepultamento apropriado significa que estão em paz.
O corpo de Saul volta a labesh, cenário de sua
primeira vitória depois de ser ungido rei (cap. 11).
O homem que devia salvar Israel dos filisteus (9,16)
caiu, ele próprio, nas mãos deles.
de do norte que lhe é trazida por Abner, ex-general
de Saul. Embora esse plano seja frustrado pela
morte de Abner nas mãos de loab, o último obstácu­
lo ao reinado sobre um Israel unido é removido por
acontecimentos fora do controle de David (caps.
4—5). Uma vez rei, David consolida sua posição
tanto política como religiosa, trazendo a Arca de
Deus para a nova capital em Jerusalém. Todo Israel 261
 2 SAMUEL 1
é, então, dádiva divina a David que, apesar de reve­
ses temporários, prospera com a bênção e a proteção
de Deus.
1.1- 16 O relato dos amalequitas a David. das
palavra “morte” é usada oito vezes nesta passagem,
começando com a morte de Saul e terminando com
a execução por ordem de David do amalequita que
lhe trouxera o diadema e o bracelete de Saul como
testemunho de sua morte. Se o amalequita esperava
recompensa do homem que ele supunha ambicioso
pela realeza, estava redondamente enganado. Em vez
de gratidão, recebe a morte por alegar ter matado
um rei ungido. Aqui David é consistente em sua
notável reverência por quem o Senhor ungiu, como
demonstrou em ISm 24,7; 26,9.
1,17-27 A queda dos fortes. O vocábulo
hebraico para “guerreiro”, que também aparece na
tradução como “herói” (v. 22) e “mais valentes” (v.
23), é a palavra-chave para a elegia de David. A
repetição de “abatido” e “tombar” salientam a dis­
posição sombria, enquanto o amor especial de
David por Jônatan é enfatizado no v. 26. As instru­
ções para não dar a notícia às filistéias, que talvez de David. Mas David impõe a volta de sua mulher
se regozijem, contrastam com as ordens, no v. 24,
para que as israelitas chorem sobre Saul e se lem­
brem da generosidade de Saul para com elas. O
orvalho e a chuva são convocados para participar
do luto, não aparecendo sobre os montes onde ja ­
zem os mortos (v. 21). O escudo negligenciado de
Saul, não mais ungido com óleo, simboliza a rejei­
ção da unçâo de Saul.
2.1- 7 Anúncio de realeza por David. Em vez
de ir a sua terra natal, Bet-Lehem (ISm 16,4), o
Senhor ordena a David que suba a Hebron. Numa
mensagem de gratidão pronunciada ali, ele inclui o
anúncio de que foi ungido rei de Judá. Como a região Abner para com Ishbôshet (vv. 8-10) é branda com­
em volta de Hebron fazia parte do patrimônio kale-
bita tradicional, talvez David tenha obtido controle aliança com Abner. Com efeito, loab diz: “Por que
da propriedade em Hebron por intermédio de seu
casamento com Abigáil, viúva do kalebita Nabal (Js
14,13; ISm 25,3).
2,8-11 Israel segue Ishbôshet, filho de Saul.
Não o Senhor , mas Abner, general de Ishbôshet,
constitui este como rei sobre todo Israel, exceto o
território de David em Judá. Essa fraqueza política
de Ishbôshet é auspiciosa para o futuro de David.
2,12-24 Os três filhos de Seruiá. Combate
simbólico, mas inconclusivo entre os israelitas sob
Abner e os judaítas sob loab, general de David,
transforma-se em batalha acirrada. Depois da der­
rota israelita, Asahel, irmão de loab e Abishai (v.
18), recusa-se a desistir. De maneira compulsiva,
persegue Abner, que tenta dissuadi-lo, sabendo que,
se matar Asahel será passível de vingança de san­
gue. Quando Abner é forçado a ferir Asahel com
sua lança, loab e Abishai continuam a perseguição.
A apresentação dos três irmãos, primos de David,
começa com violência, a eles associada durante
262 toda a vida.
2,25-32 Benjamin e Judá contam suas per­
das. A história passa de um confronto sangrento
em Guibeon para outro em Gueba. Embora as per­
A de Benjamin sejam muito maiores que as de
Judá, os dois lados ficam gratos por voltar a seus
respectivos acampamentos.
3,1-6 A casa de Saul e a casa de David. A casa
de Saul se enfraquece, enquanto a casa de David se
fortalece, processo marcado pela morte dos filhos
de Saul em contraste com a fertilidade de David:
suas seis mulheres tiveram o mesmo tanto de filhos,
dos quais somente três— Amnon, Absalão e Adonias
— aparecem na narrativa bíblica.
3,7-11 A questão de Rispá, a concubina. O
relacionamento de Abner com a concubina de Saul,
Rispá, mais do que insulto a um superior, podia ser
considerado tentativa de ocupar o trono. Entretanto,
Abner abstém-se de um golpe, reconhecendo David
como o chefe profetizado de Israel (vv. 9-10).
3,12-21 Abner e David fazem uma aliança.
Com a deserção de Abner, todas as tribos de Israel
ligadas a Saul estão prontas para ficar sob o governo
Mikal, filha de Saul, como condição para a aliança.
Sem nenhuma consideração por Paltiel, para não
falar dos sentimentos de Mikal, o trato é feito, abrin­
do caminho para sérias negociações entre Abner e
David. Abner não se refere a nenhuma passagem
bíblica conhecida quando diz que o Senhor falou
que David salvará Israel dos filisteus (v. 18). Isso foi
prometido a respeito de Saul, se ele tivesse obede­
cido ao Senhor (ISm 13,13-14). A narrativa ressalta
que Abner partiu em paz (vv. 21-24), mas não era
uma paz durável.
3,22-30 O zelo de loab. A insubordinação de
parada ao ataque de loab a David por fazer uma
o deixaste partir assim?” Então, sem ordens, loab
mata Abner a sangue-frio (v. 27). Essa não é a últi­
ma vez que loab age com violência para o bem do
Estado. Sem castigar de fato, mas cheio de frustra­
ção, David lança horrível maldição em loab e sua
posteridade (v. 29). Presumivelmente impressionado
pela explosão de David, loab submete-se ã ordem de
David de prantear Abner em público.
3,31-39 O sepultamento de Abner. A tristeza
de David pela morte de Abner pode ser sentida na
amarga elegia que ele compôs para o funeral. A
elegia e o pranto imoderado do rei (v. 32) conven­
cem 0 povo que David não ordenara a execução de
Abner. A reconhecida fraqueza de David diante de
loab é enigma persistente na narrativa (v. 39). Exi­
gia que ele suportasse um homem que era espinho
constante a seu lado, mas, ao mesmo tempo, David
devia a loab grande parte do sucesso de suas guer­
ras e de seu governo.
4,1-4 Os sucessores de Saul. Restando da casa
de Saul apenas o neto aleijado, Mefibôshet, além

do apavorado Ishbôshet, os israelitas não podem
procurar uma liderança eficiente dentro das tribos
do norte. Parece não haver mais nenhum empecilho
no caminho da realeza de David.
4 ^ 1 2 O assassinato de Ishbôshet Com Ishbôshet
desmoralizado e a segurança relaxada, é fácil para
os dois homicideis entrar no quarto real. É compre­
ensível que considerem o governo de Ishbôshet ter­
minado, mas dificilmente poderíam esperar que
David não acolhesse o presente de sua cabeça. É um
segundo exemplo da recusa de David de tomar o
reino por meios violentos (compare 1,1-16).
A execução dos dois homens, cruel para nós,
é realizada segundo a Lei em Dt 21,22s. Como os
filisteus trataram Saul, da mesma forma são trata­
dos os matadores de seu filho.
5,1-5 Rei de todo Israel. Quando as tribos
israelitas (do norte) vêm ungir David rei, têm duas
motivações. Primeiro, proclamam-no irmão (seus
ossos e sua carne), condição para a realeza, exigida
para evitar o governo estrangeiro (cf Dt 17,15).
Segundo, recordam a liderança militar de David
(ISm 18,16) e a promessa divina de que o trono de
David seria estabelecido sobre ambos, Israel e Judá
(3,10). Assim, ele se toma rei de uma nação exte­
riormente unida, mas com conflitos internos nunca
muito distantes da superfície.
5,6-16 Uma cidade e um a casa para o novo
rei. O relato de como David fez de Jerusalém, antes
habitada por iebusitas pagãos, sua capital está trun­
cado e confuso. Apesar da fama de Jerusalém ser
inexpugnável (os cegos e os aleijados podiam de­
fendê-la), David consegue tomá-la depois que loab
corajosamente sobe no poço para ganhar acesso à
cidade. Essa informação vem de ICr 11,6, que
acrescenta ter David recompensado a bravura de
loab fazendo-o chefe e príncipe.
Para propósitos políticos, a nova capital de David
tem situação ideal, pois está na fronteira entre duas
das principais tribos de seu reino: Judá e Benjamin.
Depois de instalado, David tem tempo e recursos para
construir um palácio para si. Manda buscar madeira
de cedro e trabalhadores de seu amigo, Hirâm, rei de
Tiro, exatamente como seu filho Salomão fará mais
tarde para construir o Templo (IRs 7).
5,17-25 O Se n h o r segue à frente de David
na batalha. O sucesso ainda não subiu à cabeça de
David, pois ele continua a consultar o Senhor antes
de ir combater os filisteus, que agora parecem se
ressentir do novo poder de David. Depois do pri­
meiro ataque do inimigo, David chama o lugar de
Báal-Perasim (literalmente, “Dono das Brechas”),
jogo de palavras que se refere à brecha feita pelo
Senhor nas linhas inimigas para espalhar os solda­
dos filisteus e os deuses que eles deixaram para trás
(vv. 20-21; compare Gn 38,29).
No segundo ataque dos filisteus, é o Senhor quem
orienta a defesa, ordenando um ataque de retaguarda
por Israel e dando um sinal audível (v. 24) de que
2 SAMUEL 7
está comandando a marcha. Saul jamais teve a van­
tagem desse apoio tangível.
6.1- 10 O golpe em Uzá. O traslado da Arca é
relatado com mais detalhes em 1Cr 13; 15. Apren­
demos em 13,6 que Baalá é outro nome para Qíriat-
-learim, onde a arca foi deixada (ISm 7,1-2). A
alegre procissão de 30 mil (!) é interrompida pela
morte inesperada de Uzá quando ele toca a Arca
(v. 6). David, transtornado pelo acontecido, deixa a
Arca na casa de Obed-Edom, significativamente
identificado como cidade filistéia de Gat. Se é para
a Arca trazer destruição aos israelitas, que fique
com os filisteus, parece dizer a ação de David. Em­
bora este relato não tente explicar a morte de Uzá,
em ICr 15,13 David atribui a cólera do Senhor à
ausência dos sacerdotes e levitas.
6,11-19 David traz a Arca a Jerusalém. Quan­
do 0 rei ouve falar das bênçãos para a casa de
Obed-Edom, arrisca-se a outro traslado. Na procis­
são festiva, David, vestido somente com o efod de
linho usado pelos sacerdotes nas funções litúrgicas,
faz-se notar por dançar com todas as suas forças
(v. 14). É ocasião de alegria, música e distribuição
de presentes (v. 19). Com o traslado da Arca para
Jerusalém, a cidade firma-se como capital religiosa
e política de Israel.
6,20-23 O escárnio de Mikal. Pela terceira vez,
a presença da Arca traz problemas (ISm 6,19; 2Sm
6,6-7). O Senhor ,que se acredita estar nela presente,
indica assim que é livre para habitar onde quiser e
não necessariamente conforme o desejo do rei. Agora
David encontra outro revés: o escárnio de Mikal,
pelo que ela considera uma dança indecente (v. 20).
A resposta magoada de David fá-la lembrar-se de que
o Senhor rejeitou a casa do pai dela. Seu castigo é
não ter filhos até o dia de sua morte — naquela so­
ciedade, a maior desgraça que poderia acontecer a
uma mulher (cf ISm 1).
7.1- 17 A casa do Senhor e a casa de David.
Em paz com todas as nações circundantes, David tem
tempo para se dedicar aos assuntos internos, inclusive
o culto público de Deus. No mundo antigo, um deus
estava reabnente estabelecido quando tinha uma casa
adequada. A imediata aprovação de Natan para o plano
de David de construir uma casa para o Senhor é re­
vogada por um oráculo noturno. O fato de o Senhor
não se comunicar diretamente com David, mas por
intermédio de Natan, salienta a contínua importância
da profecia em relação à monarquia.
Mencionando com orgulho sua simples morada
no deserto, o Senhor muda as boas intenções de
David. O próprio Senhor estabelecerá uma casa, no
sentido de uma dinastia que governará para sempre
(v. 13). Em um meticuloso jogo de palavras, “casa”
significa palácio (v. 1), casa (vv. 2.5.6.7), dinastia
real (vv. 11.16) e templo (v. 13). Fazendo David
lembrar-se de suas origens humildes, o Senhor in­
condicionalmente promete-lhe um grande nome (v.
9) e um trono firmemente estabelecido (vv. 13.16). 263
 2 SAMUEL 7
A profecia que afirma que o filho de David cons­
truirá um templo realiza-se sob Salomão (IRs 8).
Para outro relato da promessa dinástica, c f ICr
28,1-10.
Esta passagem tem sido interpretada como a
aliança pessoal do Senhor com David. Nela, o go­
verno direto do S enhor sobre Israel é substituído
por um rei humano, escolhido por Deus. A posteri­
dade desse rei continuará a ocupar o trono por todas
as gerações. A atitude anteriormente hostil de Samuel
quanto a deixar Israel ser como outras nações trans­
forma-se no endosso divino da realeza davídica e
também no estabelecimento de sua firme sucessão
dinástica. Junto com SI 89 e ICr 17, este texto é o
fundamento lógico bíblico para a teologia régia se­
gundo a qual o rei era o representante do Senhor para
trazer a Israel vitória e bênçãos.
7,18-29 David louva o S enhor. Em grata res­
posta à promessa do S enhor, David compara a
própria pequenez com a grandeza do Senhor ( vv.
18.19.22). O S enhor é o único Deus e Israel seu
povo especialmente favorecido (vv. 22.23). Como
o S enhor fez no v. 6, David também recorda a
libertação de Israel da escravidão no Egito (v. 23).
Então, em uma renovação da aliança, David reafir­
ma Israel como o povo do S enhor e o S enhor como
seu Deus (v. 24), encerrando com uma oração pela
bênção do S enhor ( v. 29).
8,1-14 As vitórias de David. Este capítulo
podería se chamar “David ataca”, porque o verbo,
variadamente traduzido como “derrotar”, “vencer”
e “matar”, aparece nos vv. 1, 2, 3, 5, 9 e 13. A lista
de vitórias começa com os filisteus e continua pelos
países que fazem fronteira com Israel. A série de
conquistas inclui Moab, Arâm (Síria) e Edom.
O fato de David utilizar apenas cem cavalos
de carro mostra a inferioridade de seu exército em
relação aos dos inimigos. Entretanto, o abundante
butim enriqueceu David com escudos (v. 7), e
objetos de ouro, prata e bronze (w. 8.10), todos
consagrados ao S enhor ( v. 11).
8,15-18 As cabeças do governo. Além de ser
líder militar, David governa e administra com justi­
ça (compare 15,1-6). loab comanda o exército e
Benaiáhu, os kereteus e os peleteus, que se acredita
serem cretenses e filisteus (veja 15,18). Usando mer­
cenários estrangeiros, os reis antigos sabiam como
se proteger de golpes palacianos.
VI. O REI DAVID
2Sm 9-20
David senta-se no trono em Jerusalém em paz
com os vizinhos. Certo de uma dinastia duradoura
(cap. 7), busca fazer o bem com seu crescente poder
e fortuna. Em um momento de paixão, David trans-
gride a Lei, trazendo sobre si o castigo divino que
passa por sua família e ameaça até mesmo seu trono.
264 Estes capítulos abrangem uma unidade narrativa, cha­
mada narrativa da corte, porque relata a história da
vida de David como rei. É considerada uma tradi­
ção separada das tradições sobre Saul e David, cha­
mada fonte tardia. Entretanto, há nos capítulos 9—20
elos narrativos com temas mais primitivos, que dão
evidências contra a completa independência das fon­
tes, por exemplo a influência de loab sobre David e
a divisão recorrente entre as tribos do norte e do sul.
9.1- 13 David cumpre seu juramento. Um
David próspero lembra-se da aliança e da amizade
com Jõnatan, a cujos descendentes pode demonstrar
bondade. Com laços tão estreitos com a casa de
Saul, é estranho que David tivesse de perguntar se
havia algum sobrevivente da casa de Saul. Entre­
tanto, se os eventos relatados no capítulo 21, em
que David poupou Mefibôshet quando entregou à
vingança guibeonita dois filhos e cinco netos de
Saul, aconteceram antes dos relatados no capítulo
9, fica mais fácil entender por que só Mefibôshet
foi poupado.
Quando o filho aleijado de Jônatan, neto de
Saul, é trazido da casa de Makir para a corte de
David (cf 17,27), David faz todo o possível para
que Mefibôshet se sinta bem-vindo. Embora pro­
teste ser um cão morto — expressão de inferiorida­
de política e psicológica — , Mefibôshet toma-se
parte da família de David e tem a honra de comer
à sua mesa. Sibá, seu criado, é designado para cul­
tivar a terra da família, que sustentaria a todos eles,
inclusive os quinze filhos e vinte servos de Sibá.
Ao fazer isso, David cumpre o juramento e
mostra que nada tem a temer desse descendente de
Saul. O narrador menciona duas vezes que Mefibô­
shet é paralítico, dizendo, com efeito, que ele não se
qualifica para ser rei (vv. 3.13). E, então, duvidoso
que fazer Mefibôshet membro de sua família teria
sido um meio de vigiar um possível pretendente ao
trono. No sentido contrário existe a alegação de
traição que Sibá dá a entender quando o trono de
David está em perigo (16,1-4).
10.1- 5 David e os amonitas. David continua
suas boas obras, aqui apresentando condolências
ao rei amonita pela morte de seu pai. Mas as coisas
se tornam adversas devido aos conselhos negativos
dos auxiliares do jovem rei. Raspando a barba e
expondo a nudez dos emissários de David, Hanun
faz o insulto máximo. David é ponderado e permite
que os homens fiquem em Jerico até suas barbas
crescerem outra vez.
10,6-12 loab conduz a defesa contra Amon.
Esperando a represália, os amonitas preparam-se
para atacar primeiro, com a ajuda de mercenários
arameus. Depois de dispor habilmente os soldados
para a defesa, loab encoraja-os para que lutem com
bravura e deixem o resultado por conta do S enhor.
O sucesso do combate será, então, a típica combi­
nação bíblica de esforço humano e poder de Deus.
10,13-19 A derrota dos amonitas e arameus.
Quando os arameus fogem diante de loab, seus

aliados amonitas fazem o mesmo diante do resto das
tropas sob o comando de Abishai (v. 10). A vitória
é apenas temporária, pois os arameus, depois de
reunir recratas de soberanos simpatizantes do outro
lado do Eufrates, tentam mais uma vez conquistar
Israel. Agora David chefia o combate pessoalmente,
aniquila o inimigo e transforma os arameus em sú­
ditos. Esse relato marca o ponto alto das façanhas
militares de David.
11,1-15 David e Bat-Sheba. Enquanto o exér­
cito cerca Rabá, David não tem nada que fazer, além
de tirar sonecas e passear pelo terraço. Em uma
dessas tardes ociosas, vê a bela Bat-Sheba e manda
buscá-la. Em prolongado jogo de palavras com o
verbo “enviar”, o autor faz David “enviar” com
freqüência nos capítulos 10 e 11, alertando o leitor
para seus plenos poderes reais. Entretanto, também
Bat-Sheba envia, quando informa David que está
grávida (v. 5), e loab envia Uriá de volta das linhas
de frente (v. 6).
Nem mesmo a informação de que Bat-Sheba era
mulher de um dos oficiais de seu exército impede
David de possui-la. Quando sabe que está grávida,
ele começa uma cuidadosa intriga para encobrir sua
paternidade. Quando faz a Uriá a pergunta tripla sobre
como estão loab, o povo e a guerra, isso é só conver­
sa fiada para disfarçar seu verdadeiro intento de fazer
Uriá descer a sua casa, para sua mulher.
Essa tentativa é feita durante três noites (vv.
8.10.13), mas, em vez disso, Uriá pernoita com os
servos do rei. Quando David pergunta por quê, a
resposta surpreendente de Uriá contrasta as más
intenções do rei com a honradez de seu fiel solda­
do. Na terceira noite, embora David o tenha embria­
gado, ele persiste em evitar sua casa. O frustrado
David, então, planeja uma solução para seu dilema,
instigando a morte de Uriá, sob a cobertura do
combate. É irônico que David envie as instruções
para loab em uma carta levada pela própria vítima.
11,16-27 David planeja a m orte de Uriá. As
instruções de David a loab não são exatamente
cumpridas. David planejara que apenas Uriá fosse
morto e que o fato parecesse acidente. loab, com-
preensivelmente preocupado com a própria repu­
tação como estrategista militar, atrai os homens de
Rabá ao ataque, provocando a morte de alguns is­
raelitas, entre eles Uriá.
Ora, loab, prevendo a cólera de David por causa
da divergência, prepara o mensageiro com cuidado
para uma possível reação irada. O que David diz
dá não só uma visão de como as guerras eram
combatidas naquele tempo, mas também do que se
passava na mente de loab. Por exemplo, a advertên­
cia sobre deixar as tropas chegarem perto de mura­
lhas de cidades lembra a morte vergonhosa de Abi-
mélek em circunstâncias semelhantes, nas mãos de
uma mulher (v. 21; Jz 9,50-54). loab talvez esteja
comunicando a David como a morte de Uriá real­
mente aconteceu.
2 SAMUEL 12
A reação de David é inesperadamente branda.
Coisas assim acontecem na guerra, diz ele, e a
espada devora ora de um lado, ora de outro (v. 25).
Mais tarde, David ficará muito preocupado com
quem a espada devora, quando se tratar de seus
filhos. Aqui ele responde como se a um relatório
comum, com mensagens apropriadas de encoraja­
mento para que o cerco seja mantido.
Depois de se demorar na passagem entre o
mensageiro e David, a narrativa recupera a veloci­
dade, para contar o luto de Bat-Sheba por Uriá,
seu casamento com David e o nascimento do filho
deles, tudo nos vv. 26-27. Completados o adultério
e 0 homicidio, o julgamento do Senhor vem final­
mente: o que David fizera desagradou ao S enhor
(v. 27). Esse julgamento é a chave para o que se
segue.
12,l-7a “Tu és esse homem!” Agora é a vez
do Senhor de enviar. O David ébrio de poder está
prestes a recobrar o juízo. Natan, o profeta que trou­
xe a promessa de um reino estável para David (7,16),
agora transmite a desaprovação do S enhor. Em uma
parábola, Natan conta sobre o pobre (Uriá) cuja
ovelha querida (Bat-Sheba) foi tomada por um rico
(David). A imagem da vida cotidiana da ovelha com
seu dono reflete o casamento feliz que David usur­
pou por egoísmo e crueldade. Embora na parábola
nada seja dito sobre homicídio, David interrompe,
decretando a morte do rico. Quando acrescenta que
o ladrão pagará uma indenização quatro vezes maior,
inadvertidamente prenuncia a perda de seus quatro
filhos (12,18; 13,28; 18,15; IRs 2,24-25).
12,7b-15a A espada sobre a casa de Davi.
Reproduzindo as palavras do S enhor, Natan enume­
ra todos os benefícios concedidos a David: o reinado
sobre Judá e Israel, o harém do falecido Saul, fato
antes desconhecido. Isso não bastava? O Senhor te-
ria acrescentado mais se David tivesse pedido (v. 8),
tão contente estava ele com esse seu favorito. David
era como um filho mimado, para quem nunca é feito
o suficiente. Agora traiu a generosidade do Senhor,
desprezando sua palavra (v. 9).
O castigo que Natan descreve vem em ordem
inversa dos fatos que o provocaram. Por causa do
homicídio, a espada jamais se afastará da casa de
David. Porque ele tomou Bet-Sheba, um outro (de
identidade não revelada) se deitará com as mulheres
do rei. Como David fizera isso secretamente, o cas­
tigo acontecerá diante de todos. Quando David hu­
mildemente admite ter pecado, Natan responde que
0 S enhor já o perdoou. A morte que David merecia
não será a sua, mas a do filho de Bat-Sheba, ainda
por nascer.
12,15b-25 David im plora pela vida do filho.
Embora, além de rezar, Davi jejue e durma no chão
(traço irônico, em vista da preocupação de David
com o sono, no capítulo 11), a criança fica doente
e morre. Com efeito, David pranteou a morte com
antecedência e, quando ela é confirmada, surpre- 265
 2 SAMUEL 12
ende seus familiares, levantando-se, lavando-se, mu­
dando as vestes e comendo. O israelita de luto cos­
tumava se abster de tudo isso; ao ignorar o costume,
David mostra sua independência do ritual estabe­
lecido e também a aceitação da morte da criança
(compare ISm 21,1-7).
Depois que David consola Bat-Sheba, agora sua
mulher, o Senhor abençoa a união com outro filho.
A aprovação divina é marcada pelo envio de Natan
para acrescentar o nome ledidiá, ou “Amado do Se­
nhor ”,ao nome já a ele dado, Salomão. O amor do
Senhor por Salomão será comprovado por sua ele­
vação ao trono depois de David (IRs 1).
12,26-31 David conquista Rabá. Em vez de
tomar a cidade sitiada de Rabá ele mesmo, loab
chama David para dela se apoderar. Juntamente com
a coroa de ouro da divindade amonita Milkom,
David toma muitos despojos e muitos cativos que
pôs no trabalho. A história agora passa das vitórias
militares de David para David, rei e pai.
13,1-22 O estupro de Tamar. Absalão, terceiro
filho de David, domina o capítulo por causa de seu
relacionamento com Tamar, que seu meio-irmão
Amnon ama. O “amor” vem a ser uma paixão irracio­
nal que deixou Amnon doente. Partindo daí, o esperto
amigo de Amnon, lonadab, aconselha-o a usar a
“doença” como desculpa para David vir vê-lo.
David não desconfia do pedido de Amnon para
que Tamar prepare tortas para um irmão adoentado.
Quando Tamar apronta a refeição e todos saem do
quarto (v. 9), em vez de comer, Amnon exige que
ela se deite com ele. Usando o verbo “deitar” nos
w . 5,6,8,11 e 14, o narrador recorda o fato de David
se deitar com Bat-Sheba e a recusa de Uriá de ir se
deitar em sua casa (cap. 11). A reiteração de “ir­
mão” e “irmã” salienta o mal que consome a famí­
lia de David.
Tamar faz uma súplica entemecedora e elo-
qüente para Amnon não cometer um crime intolerá­
vel (literalmente, “infâmia”) em Israel, mas Amnon
recusa-se a ouvir esses argumentos sensatos. Con­
sumida sua paixão, o ódio latente de Amnon vem
à tona. Antes ele mandara que todos os seus servos
saíssem (v. 9), agora ele chama o criado para ex­
pulsá-la (v. 17). Tamar implora para não ser humi­
lhada ainda mais; novamente, Amnon recusa.
Amnon mandá-la embora é o contrário de David
mandar buscar Bat-Sheba (11,4). Cheia de mágoa,
Tamar rasga sua túnica de princesa e no fim encon­
tra um lar com Absalão. Embora ficasse muito irri­
tado quando soube desse caso, David nada faz con­
tra seu primogênito. Todavia, a cólera silenciosa de
Absalão tem um ar de presságio.
13,23-39 Absalão pune Amnon. Paciente, mas
determinado, Absalão espera dois anos para ajusto
as contas com o odioso Amnon por Um crime que seu
pai deixara de punir. Absalão usurpa a prerrogativa
de seu pai e, por causa disso, vemos David aos pou-
266 COS perder o controle sobre os filhos.
Uma notícia falsa de que todos os filhos tinham
sido assassinados (v. 30) faz David temer o pior. Sur­
preendentemente bem informado, lonadab explica que
só Amnon fora morto. Aqui, o comportamento de
David assemelha-se ao de muitos chefes poderosos
isolados dos planos dos subordinados. Como aconte­
ceu com Amnon (v. 21), David nada faz a Absalão
que, incontido, foge para junto de seu avô na região
nâo-israelita de Gueshur (cf Gn 34).
14,1-24 A m ulher sagaz de Teqoa. Quando
loab acha que é a ocasião certa, manda buscar uma
mulher sagaz para instigar a volta de Absalão. Como
a parábola de Natan (12,1-6), a história dela deve
levar David a fazer julgamento sobre um caso se­
melhante à verdadeira situação do rei, mas com
bastante diferença para afasto as suspeitas até que
seja tarde demais. Como a de David, a história da
mulher tem dois filhos que brigaram e, em conse-
qüência disso, um foi morto. Há duas diferenças:
a morte do filho dela não foi homicídio premedi­
tado como a de Amnon e a família dela está exi­
gindo a vingança de sangue, o que não acontece
com a de David. Ambas têm o problema de salvar
o filho sobrevivente, porque, no caso da mulher,
ele é o único para estabelecer a posteridade, e, no
caso de David, Absalão é o herdeiro do trono.
Quando David promete proteger o filho dela,
a mulher imediatamente faz uma analogia com a
situação de David. Sem perceber, o rei julgou a si
mesmo, porque o que fizer pelo dela fará pelo
próprio filho (v. 13). A mulher enfatiza seu propó­
sito: Deus não traz os mortos à vida, mas planeja
meios de fazer voltar os banidos. Se o rei protege­
ria o filho dela da morte contra um vingador, as­
sim também deveria dar um lar a Absalão (v. 17).
Para conquisto David, a mulher usa disfarce
(v. 2), homenagem (v. 4), metáfora (v. 7) e franca
bajulação (vv. 17.20). (Compare ISm 29,10; 2Sm
19,27.) Por fim, David reconhece a mão de loab
na charada, mas não se zanga. O estratagema de
loab permite-lhe trazer de volta Absalão pela razão
aparente de que a nação precisa do herdeiro do trono.
Entretanto, Absalão volta a Jerusalém sem estar
completamente reconciliado com o pai, pois David
não autoriza sua presença na corte.
14,25-27 Absalão é belo. Para preencher a pas­
sagem do tempo antes do contato seguinte de David
com Absalão, o narrador concentra-se na beleza de
Absalão e no peso de seu cabelo. Isso nos deve alertar
para um possível problema, porque Bat-Sheba e Tamar
também eram belas e ambas tiveram problemas por
causa da beleza.
14,28-33 Absalão reconciliado com David.
Mais uma vez, Absalão deixa passar dois anos (com­
pare 13,23) antes de demonstrar sua frustração. Fi­
camos sem saber a razão pela qual loab, que plane­
jou a volta de Absalão, recusa-se a vir quando cha­
mado, e por que Absalão decidiu valer-se de meios
agressivos para trazer loab até ele. A violência do

caráter de Absalão está aparente nisso e em sua
disposição de fazer com que David o mate se o rei
considerá-lo culpado (v. 32).
No encontro de Absalão com o pai, não há
nenhuma palavra de boas-vindas ou perdão, so­
mente um beijo. Seria o beijo de alguém que vai
traí-lo (compare Lc 22,48)?
15,1-6 O político Absalão. Absalão agora adota
uma vida de exibição, com carros, cavalos e ho­
mens que correm adiante dele. Assumindo o papel
de juiz para litigantes que vêm a Jerusalém e adu­
lando os provenientes das tribos do norte, Absalão
esforça-se para ampliar a brecha entre o norte e o
sul em Israel. A imagem é a de uma pessoa de
grande vaidade e perfídia.
15,7-12 David enganado pela terceira vez.
Assim como foi ludibriado para permitir que Tamar
fosse até Amnon (13,5-7) e Amnon até Absalão
(13,26-27), mais uma vez David deixa a espada
ameaçar sua casa, permitindo que Absalão vá a
Hebron. E difícil para o rei contestar a razão dada p>or
Absalão para ir, o cumprimento de um voto feito em
Gueshur (v. 8). David não alega que Absalão podia
cultuar em Jerusalém, possivelmente porque Hebron
era o lugar de nascimento de Absalão (3,2-3) e onde
David foi ungido rei de Israel (5,3). Essas considera­
ções fazem de Hebron um lugar tanto lógico como
irônico para Absalão arregimentar seus seguidores.
Quando Ahitôfel, conselheiro de David, passa para o
lado de Absalão, está iniciada a conspiração.
15,13-18a A lealdade dos servidores de
David. A gravidade da ameaça de Absalão reflete­
-se na decisão imediata de David de fugir de Jeru­
salém, assim que fica sabendo da traição. Todos os
seus servidores preparam-se para partir. Ao mencio­
nar que o rei deixa dez concubinas para cuidar da
casa, o narrador antecipa outro cumprimento da pro­
fecia de Natan (12,11). Durante a triste caminhada
de David para fora de Jerusalém, o grupo pára pri­
meiro em frente à subida do monte das Oliveiras
(cenário da via dolorosa de Jesus, cf. Lc 22,39). E
a primeira de sete paradas.
15,18b-23 A lealdade de um estrangeiro. En­
quanto seu povo passa adiante dele antes de diri­
gir-se para o leste, saindo de Jerusalém, David pára
e insiste com Itai de Gat para que volte ao rei, re­
ferindo-se não a si, mas a Absalão em Jerusalém.
A fiel determinação de Itai de ficar, para a morte
ou para a vida (v. 21), contrabalança a traição de
Absalão. Depois dessa segunda parada, David atra­
vessa o Cedron (compare Jo 18,1).
15,24-31 A chegada da Arca. A triste procissão
pára uma terceira vez quando surgem os sacerdotes
Sadoq e Ebiatar com a Arca. Talvez pensando em
Shilô (ISm 4,4-11), David manda de volta a Arca
na esperança de que o Senhor deixe-o revê-la em
Jerusalém (v. 25). Embora resignado com o que
quer que lhe esteja reservado, David não deixa
de usar os sacerdotes e seus filhos como fonte de
2 SAMUEL 16
informações sobre as atividades de Absalão em
Jerusalém.
David continua a subir pelo monte das Oliveiras,
chorando e descalço. As cabeças de todos estão co­
bertas como sinal de profunda tristeza Quando o rei
vem a saber que seu conselheiro juntou-se a Absalão,
David pela primeira vez reza publicamente para que
os conselhos de Ahitôfel sejam frustrados (v. 31).
15,32-37 Hushai é enviado em missão. Ago­
ra David e o povo alcançam o cume do monte das
Oliveiras onde, nos é informado de maneira signi­
ficativa, o povo costumava adorar a Deus (v. 32).
Nessa quarta parada a ajuda vem a David na pessoa
de seu amigo e confidente, Hushai (cf ICr 27,33).
Como aconteceu com a Arca, David não o mantém
a seu lado, mas envia Hushai para desfazer os con­
selhos de Ahitôfel a Absalão.
16,1-4 Sibá traz presentes. A onda da adversi­
dade começa a se voltar a favor de David quando
ele desce a montanha. Na quinta parada de David,
Sibá, criado de Mefibôshet (9,2-4.9-10), vem a seu
encontro com três tipos de provisões: transporte,
alimento e bebida. Sem demonstrar gratidão, David
pergunta e é informado de que Mefibôshet está em
Jerusalém, esperando ser coroado rei. Sem investigar
mais a fundo essa acusação de traição, impulsiva­
mente David dá a Sibá todos os bens de Mefibôshet.
Mais tarde, Mefibôshet tentará se desculpar (19,25­
31), mas o ressentimento de David pelo que pode
ser um ressurgimento da casa de Saul realça a ameaça
persistente de secessão pelo norte.
16,5-14 Shimeí amaldiçoa e apedreja David.
A sexta parada na fuga de David de Jerusalém põe
o rei em confronto com outro membro da casa de
Saul, também traiçoeiro, mas mais hostil. Shimeí de
Bahurim inflige a David a maior humilhação pública
que este já sofrerá, mas, para David, as maldições e
as pedradas não se comparam à dor da rebelião de
Absalão (v. 11). Shimeí alegra-se que a história san­
grenta de David (talvez se referindo aos aconteci­
mentos de 21,1-14) lhe tenha trazido o castigo do
S enhor ( v. 8), enquanto David, recusando a oferta
de Abishai para cortar a cabeça de Shimeí, aceita
com paciência o que o Senhor permitiu, esperando
que seu sofrimento seja compensado mais tarde (v.
12). Luto, humilhação, dúvida e traição atormentam
a caminhada de David, desde a saída de Jerusalém.
O apoio do povo, a lealdade de Itai e a promessa de
ajuda de Hushai e dos filhos dos sacerdotes (15,36)
são suas únicas alegrias. Exaustos, rei e povo chegam
ao Jordão, a sétima parada.
16,15-23 Absalão e seus conselheiros. De volta
a Jerusalém, Absalão reúne um conselho de guerra.
Hushai chega ao acampamento inimigo com excla­
mações de “Viva o rei!” A vaidade de Absalão le­
va-o a presumir que “o rei” significa ele próprio,
mas mesmo assim ele questiona a transferência da
lealdade de Hushai, (Para um jogo semelhante com
palavras malcompreendidas, c f ISm 28,1-2.) 267
 2 SAMUEL 17
Absalão também entende que a dedicação que
Hushai agora oferece àquele “que o Senhor escolheu
e todo este povo e todos os homens de Israel” (v. 18)
refere-se a ele. Com essas duas certezas aparentes,
basta a promessa de Hushai de servi-lo como serviu
a seu pai para convencer Absalão da sinceridade
de Hushai.
Antes de buscar o conselho de Hushai, Absalão
obedece às instruções de Ahitôfel de tomar as con­
cubinas de David. Este astuto ardil político para rei­
vindicar a realeza dará um golpe mortal em qualquer
esperança de reconciliação entre pai e filho (compare
3,6-11). A tenda sobre o terraço lembra o passeio
auspicioso de David no terraço de seu palácio (11,2)
e a profecia que um outro de sua casa se deitaria
com suas mulheres à luz do sol (12,11). Com ironia,
0 narrador comenta a grande consideração que tanto
David como Absalão tinham pelos conselhos de
Ahitôfel (v. 23).
17,1-14 Ahitôfel e Hushai aconsèlham Absalão.
Analisando com discernimento a situação de David,
Ahitôfel aconselha Absalão a avançar rápida e silencio­
samente contra o rei exausto. O desânimo dos segui­
dores de David provocará pânico e fuga, deixando o
rei sozinho e exposto. Com David fora do caminho,
0 povo passará para o lado de Absalão em paz. A ale­
goria apropriada de Ahitôfel paia isso, a volta de uma
esposa ao marido (conforme o grego; c f TEB, v. 3,
nota), é a única lisonja para o ego inchado de Absalão,
mas leva a um acordo inicial para seu plano.
Como se para exibir seu novo conselheiro,
Absalão pede que Hushai também fale. Aproveitan­
do ao máximo a oportunidade, Hushai sugere com
diplomacia que, embora Ahitôfel costume dar bons
conselhos, dessa vez seu conselho não é bom. Hushai
descreve com ardor a valentia de David na guerra,
sua habilidade tática, a coragem de seus homens,
prevenindo que a derrota no primeiro ataque trará o
desânimo aos homens de Absalão. Todo Israel deve,
portanto, ser convocado e o próprio Absalão conduzir
o exército. Como o plano de Ahitôfel não dera ao
príncipe um papel na perseguição, Absalão deve ter
achado essa alternativa muito atraente.
O quadro minucioso pintado por Hushai, de
uma vitória na qual todó Israel cai sobre David e
arrasta a uma torrente toda a cidade que o acolhe,
cega Absalão e seus seguidores à irrealidade do plano.
O narrador comenta que o eficiente plano de Ahitôfel
foi rejeitado porque o Senhor planejou a ruina de
Absalão (v. 14).
17,15-22 David atravessa o Jordão. Hushai
deve ter temido que o plano de Ahitôfel ainda pu­
desse ser adotado, pois insta com David para não
se demorar daquele lado do Jordão. Com a ajuda de
uma mulher inteligente que lembra Rahab (cf. Js 2),
os dois filhos dos sacerdotes conseguem entregar a
mensagem a tempo. David e seu povo passam a noite
atravessando o Jordão, movimento que significa se-
268 paração e também segurança.
17,23-29 A juda a David. Ahitôfel sabe que o
plano de Hushai trará a derrota para Absalão e os
rebeldes. Não é o desapontamento da rejeição pessoal
que o leva ao suicídio. Ahitôfel é um realista que
jogou alto e perdeu. Sua morte não é vergonhosa, pois
ele foi enterrado no túmulo da família. Os crimino­
sos ganhavam como túmulo um monte de pedras
(cf. Js 7,25-26; 2Sm 18,17).
Bem à frente de Absalão, David chega a Maha-
náim (veja Gn 32,1-3.11). O príncipe amonita Shobi,
Makir, que abrigara Mefibôshet antes de David
levá-lo a Jerusalém (9,4), e Barzilai, rico partidário
de Saul, trazem provisões necessárias e bem-vindas
para os exaustos homens de David. Esse inesperado
apoio de não-judaítas ajuda a restaurar a força e a
coragem dos fugitivos.
18,1-5 David implora por Absalão. Os prepara­
tivos de David para o combate incluem a divisão do
exército em três comandos: loab, Abishai e o recém­
-chegado Itai, o guidita, com seus homens (15,18­
22). O apoio de Itai foi decisivo, por causa do grande
número de soldados perdidos para Absalão.
A oferta de David para conduzir os soldados
no combate é polidamente recusada, ou porque sa­
biam que o rei era alvo de captura ou porque que­
riam poupá-lo de um confronto com Absalão. A
David, outrora elogiado por matar dezenas de milha­
res (ISm 18,7; 29,5), dizem, de modo comovente,
que ele vale dez mil — por trás das linhas. Antes
de partir, os soldados e seus comandantes ouvem
a ordem de David para que tratem Absalão com
brandura.
18,6-18 Absalão é derrotado. A breve notíeia
da batalha na qual os homens de David são vito­
riosos (vv. 6-8) fala de pesadas baixas causadas
mais pela floresta traiçoeira do que pela luta em si.
Em muitos combates bíblicos, com freqüência, as
forças naturais — lama. insetos ou doença — põem
fim às hostilidades. Mais que dos combatentes, a
vitória é do S enhor, que move os acontecimentos
segundo sua vontade.
As conseqüências são muito mais dramáticas
do que o combate em sí. A cabeça de Absalão pren­
de-se em uma árvore, enquanto o soldado fiel e o
desobediente loab, discutem quem o matará (w. 11­
14). O soldado lembra a ordem de David, mas isso
não detém loab que, como um matador, crava seus
chuços no coração de Absalão e deixa seus picadores
acabarem com ele. Como Abner (3,22-27), loab não
tolera ameaças ao trono. É homem de ação, agindo
segundo conselhos humanos; David, mais sensível à
vontade de Deus em sua vida, ama o filho acima do
poder real. Aqui, ele fica cada vez mais consciente
da espada punitiva que, conforme a profecia de
Natan, nunca se afastaria de sua casa (12,10).
Ao soar da trompa (v. 16), termina a batalha
pelo trono. Os israelitas fogem e Absalão é coberto
por um monte de pedras, o sepultamento de um
criminoso (cf. Js 7,26). A esteia que Absalão cons-

truiu para si lembra o monumento memorial de Saul
(ISm 15,12). A notícia de que Absalão não tinha
descendentes é contradição direta de 14,27, que lhe
atribui três filhos.
18,19-32 A notícia é dada a David. Ao impe­
dir Ahimáas de ir correndo contar a David que
Absalão está morto, loab deve ter-se lembrado que
David mandou executar o amalequita que lhe deu a
noticia da morte de Saul (1,13-15). Embora Ahimáas
ultrapasse o kushita, ao chegar a David, não tem
coragem de lhe dizer a amaiga verdade (v. 29). Com
distrações sobre corredores avistados e saudações
formais (vv. 24-28), a narrativa demora-se de forma
torturante, por cerca de 13 w., antes que o golpe da
morte de Absalão deixe o rei arrasado.
19,1-5 loab censura a aflição de David. A
simples repetição das palavras: “Meu filho, Absa­
lão, meu filho, meu filho!” transmite a profunda
aflição de David, mais que qualquer descrição.
Como antes chorara e cobrira a cabeça enquanto
subia o monte das Oliveiras (15,30), por causa da
revolta de Absalão, aqui David chora com a cabeça
coberta (v. 5) porque Absalão está morto. Em vez
de cântieos e alegria pela vitória, o povo entra furti­
vamente na cidade, como um exército derrotado
(v. 4). O uso de “furtivamente” lembra que Absalão
furtivamente ganhara para si os corações dos habi­
tantes de Israel, na tentativa de tomar o trono de
seu pai (15,1-6).
A voz de loab é a voz da razão e do Estado,
em contraste com a preocupação de David com a
morte que tinha tanta esperança de evitar. Menos­
prezando a aflição do rei, loab lembra a David que
ele está insultando o próprio povo que salvou sua
vida. David reage à ameaça de perda de apoio,
fazendo força para saudar o povo. Aqui os efeitos
dos pecados de David ultrapassam sua família para
tocar no trono. Ele é um homem abatido, não mais
o monarca enfatuado dos capítulos 9 e 10, que
gostava de praticar boas ações. Agora, é forçado a
praticá-las.
19,10-15 A volta das tribos do norte. Da cena
em Mahanáim com sua desanimada procissão de
vitória diante de David, a narrativa passa ao que
resta do exército de Absalão em fuga. Sem chefe e
divididos em suas lealdades, pouco a pouco perce­
bem que David não era o fracasso como rei que
outrora eles julgavam que fosse. Quando David
ouve dizer que querem que ele volte (palavra ffe-
qüente nos vv. 11-15), transforma-se em um políti­
co persuasivo, lembrando-lhes seu parentesco e pro­
metendo tirar o comando de loab e dá-lo ao antigo
general de Absalão, Amasá (17,25). Esse rebaixa­
mento exaspera o impetuoso loab, até ele promover
a própria volta (cap. 20).
19,16-24 A apologia de Shimeí. Este será o pri­
meiro de três encontros que correspondem aos
acontecidos quando David desceu o monte das Oli­
veiras (16,1-14). O benjaminita Shimeí, que amal­
2 SAMUEL 20
diçoara e apedrejara David, apressa-se a ser o pri­
meiro a fazer o rei atravessar o Jordão. Ao repetir
o verbo “atravessar”, a narrativa transmite a urgên­
cia da travessia do rei.
Sibá acompanha Shimeí (v. 18), demonstrando
que sua lealdade estava o tempo todo com a casa
de Saul. Quando Shimeí pede perdão, Abishai mais
uma vez oferece-se para matá-lp, mas David não
quer vingança em seu dia de vitória (cf. 16,9; ISm
11,13). David refere-se a Abishai como Satanás,
ou um adversário, da mesma forma que Jesus fará
com Pedro (Mt 16,21-23).
19,25-31 M efibôshet explica sua ausência.
Pondo a culpa de seu atraso na traição de Sibá, o
coxo Mefibôshet mostra sua lealdade, aparecendo de
luto. Embora alegue que Sibá o caluniara e elogie
David chamando-o de anjo de Deus (v. 28), David
lhe responde bruscamente e lhe devolve metade dos
bens que antes dera a Sibá (16,1-4). Esse encontro
não prova a lealdade de Mefibôshet, mas mostra que
está disposto a deixar Sibá ficar com toda a proprie­
dade, porquanto David está salvo (v. 31).
1932-41a David tenta recompensar Barzilai.
Embora seja benjaminita, Barzilai demonstrou fide­
lidade a David com seu presente de suprimentos em
Mahanáim (17,27-29). Apesar de ser homem de
posses, como Nabal (ISm 25,2), o sábio e generoso
Barzilai é um agradável oposto do tolo e avarento
Nabal. Pelo protesto de Barzilai de que era velho
demais para apreciar a vida na corte, ficamos saben­
do como os reis antigos passavam os dias.
19,41b-44 A divisão latente. A essa altura, todo
Judá e metade de Israel estão com David. Qs israe­
litas, que haviam reconsiderado sua posição, acu­
sam os judaítas de se terem apossado de David,
talvez na tentativa de encobrir a própria indecisão.
Qs judaítas se defendem com vigor, apesar dos
protestos israelitas de que têm mais direito sobre o
rei (v. 44). A volta de David a Jerusalém encobre
uma divisão mais profunda entre as duas partes da
terra, que explodirá com violência sob Roboão,
neto de David (IRs 12).
20,1-3 Israel segue Sheba. Um novo líder para
os israelitas insatisfeitos que recentemente haviam feito
David atravessar o Jordão surge em um benjamini­
ta chamado Sheba, que o narrador classifica como
indivíduo rebelde (literalmente “filho de Belial”),
como em ISm 1,16; 10,27; 25,17; 30,22. Com o
grito de Sheba, “Cada qual para as suas tendas”, os
homens de Israel mais uma vez abandonam David
(compare IRs 12,16). Ao chegar em Jerusalém, o rei
toma as dez concubinas desonradas que haviam sido
deixadas para guardar o palácio (15,16; 16,21-22) e
as mantém em uma dependência sob guarda, pelo
resto de suas vidas.
20,4-13 A perseguição de Sheba. Ao tratar da
nova ameaça por parte de Sheba, David designa Amasá
para formar o exército judaíta. Quando Amasá fra­
cassa, David, ignorando loab, manda Abishai em 269
 2 SAMUEL 21
perseguição a Sheba. De repente (v. 7), vemos loab
e seus homens marchando em perseguição a Abishai.
Apesar da relutância de David para lidar com ele,
loab parece poderoso demais para ser contido.
No caminho, em Guibeon, loab interrompe a
perseguição para, com sua desumanidade caracterís­
tica, eliminar seu rival Amasá. Ao matar Amasá, loab
livra David de mais um problema político; dessa vez
não ouvimos dizer que David chorou. O povo perto
do soldado morto chafurdando no próprio sangue
fica consternado. A perseguição só continua depois
que o corpo é coberto e removido do meio da estrada.
20,14-22 A mulher sagaz de Abel-Bet-Maaká.
Antes, quando loab chamou uma mulher sagaz no
capitulo 14, ela recebeu instruções quanto ao que
devia fazer e dizer. Aqui, uma mulher sagaz diz a
loab o que fazer (v. 16). Sua conversa é sobre a
destruição, planejada por ele, de uma cidade que é
cidade-mãe em Israel, isto é, um lugar ao qual os
israelitas em dificuldades podem recorrer para pedir
conselhos. A fim de evitar isso, a mulher está dis­
posta a sacrificar apenas uma vida por seu povo.
Como acabou de assassinar Amasá, é muito irônico
da parte de loab negar com tanta veemência que de­
seja arruinar ou destruir alguma coisa (v. 20). Quan­
do a mulher entrega a cabeça decepada de Sheba,
loab faz soar a trompa para a retirada.
20,23-26 Chefes de governo. Com o governo
de volta a Jerusalém, loab está a salvo no comando,
mas é estranha a falta de Abishai. Uma lista de fun­
cionários encerra o longo segmento narrativo con­
tido nos capítulos 9-20.
VII. APEHDICES
2Sm 21-24
Estes capítulos dão informações sobre David
que não se encaixam na narrativa contínua de 2Sm
9-20. Aqui é realçada a dedicação de David ao
S enhor, de modo que sua fidelidade à aliança divi­
na lembra o tema deuteronomista de obediência ao
Senhor e as bênçãos que a acompanham. A história
da vida de David termina em IRs 1—2 com a ascen­
são de Salomão ao trono e a morte de David.
21,1-14 David alivia a fome. Talvez estes acon­
tecimentos tenham precedido a decisão de David
de levar Mefibôshet para sua casa (cap. 9). Aqui,
depois de consultar o S enhor, como era seu costu­
me (cf ISm 23,2.4.9-12; 30,7-8; 2Sm 2,1), David
ouve que a vingança de sangue à qual Saul ficou
sujeito em um ataque de outro modo desconhecido
precisa ser cumprida. Aparentemente, Saul transgre­
diu com um massacre total a aliança que os guibeo-
nitas tinham induzido os israelitas a fazer (Js 9,3-27).
Não são os guibeonitas sobreviventes, mas o S enhor
quem exige reparação. Entretanto, os guibeonitas
decidem os meios da expiação, para a qual David
escolhe dois filhos e cinco netos de Saul que serão
270 executados.
Com uma dedicação semelhante à de Antígona
pelo irmão morto, Rispá guarda os corpos dos mor­
tos, dois dos quais são seus filhos (v. 8). A morte
que envolvia exposição às aves do céu e aos ani­
mais selvagens era considerada um horror em Israel.
O relato dessa bondade para com os mortos desperta
a simpatia de David e ele faz com que todos os sete
e também os ossos de Saul e Jônatan (ISm 31,11-13)
sejam sepultados no túmulo de Qish, pai de Saul
(V. 14).
O relato de suas mortes inclui dois prenún-
cios do fim da fome; tem início a colheita da cevada
(v. 9) e a chuva começa a cair (v. 10). Os corpos são
sacrifícios para rogar ao Senhor uma boa colheita
por meio da expiação de pecados passados dos quais
não houve arrependimento. O incidente é exemplo da
idéia israelita de culpa coletiva pela qual o povo sofre
juntamente com o rei quando este ofende a Deus.
21,15-22 David e seus valentes. Seguem-se
quatro breves relatos de combates com gigantes
filisteus equipados como Goliat (ISm 17,4-7). A
história da ajuda que lhe é dada por Abishai (v. 17)
mostra como os “duros” filhos de Seruiá (3,39)
são necessários a David. A referência a David como
a lâmpada de Israel indica a consideração afetuosa
dos soldados (cf. 18,3-4). A confusão entre o v. 19,
que atribui a morte de Goliat a Elhanan, e ISm
17,48-51, onde David é o herói, é solucionada em
ICr 20,5, que afirma ter Elhanan matado o irmão
de Goliat, dando assim um gigante a David e outro
a Elhanan.
22,1-51 A rocha de libertação de David. Em
poema majestoso, duplicata do Salmo 18, David
louva o S enhor com humildade e gratidão por tê­
-lo salvo de seus inimigos. Os vv. iniciais apresen­
tam sete sinônimos para o S enhor como salvador:
rocha, fortaleza, libertador, escudo, arma, cidadela
e refúgio. O Senhor salva David da violência (v. 3)
e 0 liberta dos homens violentos (v. 49). O S enhor
ouve a voz do salmista (v. 7), mas estrangeiros ou­
vem a mesma voz, agora revestida de poder para
subjugar outras nações (v. 45).
A ação do Senhor na vida de David é compa­
rada à ação da natureza: ondas sobem, torrentes
surpreendem (v. 5); a terra treme e se abala (v. 8);
fogo, nuvem, vento, escuridão, relâmpago e águas
aparecem em ação tumultuada para retratar a rea­
ção do S enhor ao grito daquele que é perseguido
(vv. 5-17). A libertação pelo Senhor é descrita em
termos mitológicos: o Altíssimo monta no carro do
querubim e voa, surgindo sobre as asas do vento
(V. 11; c f ISm 4,4; 2Sm 6,2; Ex 25,10-22). As ra­
zões para a libertação são o amor do S enhor (v. 20)
e porque David foi considerado sem culpa (v. 21),
fiel (v. 22) e puro (v. 25).
No centro do salmo, o poeta dirige-se direta­
mente ao S enhor. “Com o fiel, tu és fiel... és ínte­
gro... puro... tortuoso... atiras teu olhar... minha lâm­
pada és tu... o S enhor ilumina minhas trevas” (vv.

26-29). O Senhor lida com as pessoas segundo a
integridade de suas vidas. Note os contrastes: o
puro versus o perverso (v. 27), o humilhado versus
o que se exalta (v. 28), as trevas versus a luz (v. 29). anciãos, o total da população podia ser até cinco
Voltando à terceira pessoa. Deus é apresentado
de novo como rochedo (v. 32), o caminho do poeta
é seguro e seus pés são velozes (v. 34). Em prepa­
ração à guerra, Deus treina David para usar o arco
e 0 cinge de vigor para o combate (vv. 33.35.40).
Com essa força dada por Deus, o poeta supera seus
inimigos, que fogem e são exterminados (v. 41),
esquecidos (v. 42), esmagados e pisoteados (v. 43),
escravizados (v. 44), obedientes (v. 45), desmorona­
dos e cercados (v. 46). O poema termina dando
graças pelo que o Senhor concede ao rei ungido,
“a David e a sua dinastia, para sempre” (v. 51; cf.
ISm 2,10).
23.1- 7 David louva a Deus. Estas “últimas pa­ao sofrimento. David toca uma nota progressiva na
lavras” de David começam no estilo dos oráculos
de Bileâm (Nm 24,3-4.15-16; Gn 49; Dt 33). De­
pois de se descrever como criado, ungido e favore­
cido pelo Deus todo-poderoso de Israel, o poeta
atribui suas palavras âo espírito do S enhor (v. 2).
Um governante justo e temente a Deus é compara­
do à ação da luz da manhã brincando na relva
molhada (cf. Os 6,3). O governo de David foi esta­
belecido em uma aliança eterna (2Sm 7), pois ele
viu a salvação e a satisfação de todos os desejos
(vv. 5-6). Em contraste, os vadios são perigosos ao
toque e, como espinhos, destinam-se ao fogo (cf
SI 118,12).
23,8-39 Os valentes de David. David ligou a si
um grupo fiel de guerreiros excepcionais. Eles se
destacam pela força e a bravura (vv. 8-12). Juntos
arriscam a vida para retirar para David água de uma
cisterna guardada pelo inimigo (v. 16). O ato de David
despejar a água diante do Senhor liga a ele a dedica­
ção dos valentes com um ato de adoração. Dos guer­
reiros restantes citados, apenas Abishai e Benaiáhu
têm papéis significativos na história de David.
24.1- 9 A tentação de David. Os antigos israe­
litas viam a ira do Senhor em toda calamidade.
Aqui, a peste em Israel começa devido à curiosida­
de de David para saber o tamanho de seu povo,
conhecimento evidentemente reservado ao Senhor.
loab tenta dissuadir David de fazer o recenseamen-
to, mas fracassa (vv. 3-4). Sua viagem subseqüente
pela terra dá uma idéia da extensão de Israel duran­
2 SAMUEL 24
te o reinado de David. O reino se limita com o mar
Mediterrâneo a oeste, Guilead a leste, Dan ao norte
e Beer-Sheba ao sul. Contando mulheres, crianças e
vezes os 1 milhão e 300 mil relacionados (v. 9).
24,10-17 David se arrepende. Mais uma vez
David lamenta um ato impulsivo (compare ISm
24,6). O profeta Gad oferece a escolha de três expia-
ções, cada uma das quais contém três unidades de
tempo. David escolhe os três dias de peste, a mais
curta, porém mais intensa.
Assim como a fome de 21,9 terminou no início
da colheita da cevada, aqui a peste começa no tem­
po da colheita do trigo, ambas sinais de mitigação
divina. Estas, com a misericórdia do S enhor reti­
rando a mão do anjo destruidor da direção de Jeru­
salém (v. 16), são lições do amor de Deus em meio
teologia antiga quando, em vez da expiação cole­
tiva aceita, pede ao S enhor para castigar apenas a
ele e a sua família.
24,18-25 A eira de Aravna. A ordem para er­
guer um altar em Jerusalém, com as promessas de
fazer uma casa duradoura para David (7,8-16) é a
base para a teologia de Sião de Israel que celebra
Jerusalém, a montanha sagrada de Deus, como o
lugar central de culto para toda a humanidade (cf
Is 2-4; SI 46; 47; 76; 84; 87; 122).
A necessidade que David sente de comprar a
eira de Aravna significa que ele não possuía toda a
terra de sua capital e que os canaanitas partilhavam
a terra com Israel. Assim como Abraão tomou legal
sua propriedade da sepultura de Sara em Makpelá,
comprando em vez de aceitar o lugar como presente
(Gn 23,10-16), David também recusa a oferta de
Aravna e insiste em pagar um alto preço pela terra
que mais tarde será o terreno para o Templo.
Epílogo
O Senhor satisfez duas importantes necessida­
des do povo: um profeta para transmitir a palavra
divina e um rei para govemá-lo. Esses são os líde­
res pelos quais o S enhor guia a história desse povo,
castigando-o ou libertando-o conforme é preciso.
Deus exige obediência, fidelidade e gratidão, mas
não abandona o pecador. As vidas de todos estão
mergulhadas na bondade e no amor de Deus.
271
 1 E 2 REIS
A l i c e L. Laffey, R .S .M
INTRODUÇÃO
s dois Livros dos Reis são os últimos
capítulos de uma seção maior do An­
tigo Testamento conhecida como His­
tória Deuteronomista. Essa história
também inclui os livros do Deuteronô-
mio, de Josué, dos Juizes e 1 e 2 Samuel.
No Deuteronômio, é apresentada a Lei. A fide­
lidade à Lei deve ser a resposta de Israel a sua
aliança com o S enhor, seu Deus. O livro especifica
as responsabilidades do povo depois de entrar na
terra prometida a seus ancestrais.
O Livro de Josué descreve a triunfante conquista
da terra de Canaâ por Israel sob a eficiente lideran­
ça de Josué, conquista realizada com facilidade e
rapidez por causa da fidelidade do povo ao S enhor.
O Livro dos Juizes faz um relato mais realista
da entrada dos israelitas em Canaâ. O avanço foi
lento e nem sempre coroado de êxito. O S enhor dei­
xou OS canaanitas habitar a terra ao lado dos israe­
litas, porque estes não foram fiéis a Deus e adora­
ram ídolos. Durante esse período de cerca de 240
anos de história israelita, o comando da terra assu­
miu a forma de juizes — chefes militares ou con­
selheiros prudentes, cujas atribuições não eram
hereditárias.
O Primeiro Livro de Samuel ^resenta Samuel, o
último dos juizes de Israel, o profeta que ungirá o pri­
meiro rei de Israel. Apesar de alguma oposição, Saul
é designado primeiro monarca de Israel. Entretanto,
a infidelidade ao S enhor leva à sua queda e ele é
substituído por David, o servo do S enhor, em quem
repousa o Espírito de Deus. O Segundo Livro de
Samuel continua a narrativa da ascensão de David
ao poder e relata sua aliança com o Senhor, na qual
lhe é prometida uma dinastia.
Os dois livros dos Reis narram a história da
dinastia de David. Salomão, filho de David, suce­
de ao pai como rei e a dinastia se inicia: a promessa
do S enhor é cumprida. Além disso, Salomão cons­
trói um templo para o S enhor, também de acordo
com a promessa do S enhor a David.
O Primeiro Livro dos Reis relata em pormeno­
res 0 reinado de Salomão, a construção do templo
do Senhor e a subsequente degeneração de Salomão
em infidelidade. Os pecados de Salomão e a estu­
pidez de seu filho levam à divisão do reino em
reinos do norte e do sul — Israel e Judá. Grande
parte do restante do primeiro livro trata do reino
do norte, em especial de seus líderes idólatras; para
eles não pode haver dinastia duradoura.
O Segundo Livro dos Reis continua a julgar as
monarquias de Israel e Judá. Judá elabora um pa­
drão complexo entre seus reis mais ou menos bons
e maus, em contraste com o padrão consistente de
maldade encontrado no reino do norte. Por fim, o
perverso reino do norte recebe um castigo definiti­
vo; o Senhor envia a Assíria para conquistá-lo e os
israelitas são conduzidos ao exílio. Posteriormente,
O reino do sul segue caminho semelhante. Por causa
da infidelidade — mais explicitamente, por causa
dos pecados do perverso rei Manassés — , os babi­
lônios destroem o Templo e conduzem o povo de
Judá ao exílio. Assim terminam o Segundo Livro
dos Reis e a História Deuteronomista, exceto pela
nota promissora sobre a contínua fidelidade do Se­
nhor nos três últimos vv. de 2 Reis. Ali está registra­
do que 0 rei exilado de Judá, loiakin, é libertado da
prisão e recebe tratamento amistoso do novo rei da
Babilônia.
O redator deuteronom ista
Em sua maioria, os estudiosos concordam que
estes sete livros do Antigo Testamento — Deutero­
nômio, Josué, Juizes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis —
existiam originalmente em fragmentos escritos em
épocas diferentes, por pessoas diferentes em luga­
res diferentes. Essas fontes foram agrupadas por
um ou mais reedatores em uma única unidade lite­
rária e teológica. Parte do material deve ser tão an­
tiga quanto o século X a.C., remontando ao reinado
do rei Salomão; outros materiais, tais como o rela­
to da destruição de Judá, não podem ser datados
de um período anterior ao século VI a.C. Um últi­
mo autor, em geral chamado de redator deutero­
nomista ou historiador deuteronomista e citado co­
mo “Dtr” pelos estudiosos, organizou as fontes à 273
 1 REIS
sua disposição em um relato unificado e explicado
do passado de Israel.
A teologia deuteronom ista
Toda a História Deuteronomista é relatada da pers­
pectiva de um encadeamento teológico consistente, que
descreve as atitudes fundamentais entre Deus e o povo.
O Senhor inicia o bem para o povo, mas este se afasta
de Deus e adora ídolos. Este mal provoca a ira do
Senhor e a resposta de Deus é castigar o povo, por
exemplo, entregando-o nas mãos dos inimigos. A opres­
são que 0 povo sofre leva-o a se voltar de novo para
seu Deus e pedir perdão e libertação. O Senhor ouve
a súplica do povo e o salva, mas logo depois o povo
se afasta de Deus outra vez. O padrão — bem de
Deus, pecado de Israel, ira e castigo divinos, aflição e
súplica de Israel, perdão de Deus -— repete-se
freqüentemente em toda a História
Nos Livros dos Reis, essa teologia emerge em
forma de bênçãos pela fidelidade dos reis (por exem­
plo, a riqueza e a honra de Salomão porque buscou
sabedoria para governar o povo do S enhor) e casti­
go pelos pecados dos reis (por exemplo, a recusa a
Jeroboão de uma dinastia, por ter induzido Israel ao
pecado). De maneira consistente, a fidelidade resul­
ta em bem-estar, enquanto a infidelidade leva inevi­
tavelmente à ruína.
Quando passamos um olhar pela História e re­
conhecemos esse padrão repetido com ffeqüência,
perguntamo-nos se eles (nós) algum dia aprenderão
(aprenderemos) a lição.
Temas
1. A aliança davídica. 2Sm 7 apresenta um re­reis de Judá que o redator deuteronomista julga terem
lacionamento especial entre o S enhor e o rei David.
Chamado de “aliança davídica”, esse relacionamen­
to especial, é uma explicação adicional da aliança
do Sbshor com Israel. David é o “servo do Senhor”,
um homem “segundo o coração do S enhor”. Como
o S enhor está com David, este é vitorioso contra os
filisteus; o S enhor lhe concede descanso e lhe per­
mite construir para si um palácio de cedro. David
peca, mas reconhece e se arrepende de seu pecado;
embora seja castigado, é perdoado e o Senhor não
0 rejeita, nem revoga a aliança. Assim, David se
toma um modelo — aquele que andou nos cami­
nhos do S enhor.
E s t e t e m a d o a m o r e s p e c i a l d o S enhor p o r
D a v id e d a r e s p o s ta fie l d e D a v id c o n tin u a a a p a r e ­
c e r e m to d a s a s p a rte s d o s L iv ro s d o s R e is. A fid e ­
l i d a d e d o S enhor a S a l o m ã o e a o s r e i s d e J u d á é
e x p lic a d a c o m o c o n s e q ü ê n c ia d o ín tim o re la c io n a ­
m e n t o d e D a v i d c o m o S enhor; a f i d e l i d a d e d e
D a v id e r a c o m p r o v a d a e to d o s s e b e n e f ic ia v a m d e la . presentes. Não pronunciam a palavra do S enhor
N o ta m o s , e n tã o , q u e o s b o n s re is d e J u d á s ã o “ c o m o
D a v id ” e o s m a u s r e is “ n ã o s ã o c o m o D a v id ” . S a ­
lo m ã o e o s re is d e J u d á s ã o s e p u lta d o s “ c o m se u s
p a is , n a C id a d e d e D a v id ” . E fe ito u m e s f o r ç o e s -
274 p e c ia l p a ra m o s tra r q u e c a d a re i s u c e s s iv o d e J u d á
é filho de seu pai, isto é, descendente direto de
David. De fato, o S enhor abranda o castigo que
seu povo merece e adia o fim do reino “por causa
de David, seu servo”.
2. A dinastia davídica. Em conseqüência da
aliança do Senhor com ele, David, ao contrário de
Saul, terá uma dinastia; seus filhos governarão de­
pois dele. Este tema inspira grande parte dos Livros
dos Reis. A promessa é cumprida quando Salomão
sucede a David. Mais uma vez, segundo a teologia
do redator deuteronomista, a fidelidade traz bênçãos,
riquezas e prosperidade para o rei e para o povo,
enquanto a infidelidade traz a adversidade. A fide­
lidade de Salomão leva à sabedoria, à riqueza, à
honra e ao templo, mas sua infidelidade leva à divi­
são do reino. Contudo, a dinastia de David perma­
nece intacta. Uma única tribo, Judá, permanece fiel
aos descendentes de David. Durante cerca de 400
anos e até o último capítulo de 2 Reis, há um filho
de David no trono de Judá.
3. O Templo do Senhor. David está disposto
a construir um Templo para o S enhor, mas o S enhor
prefere que o filho de David, Salomão, o construa.
A construção é descrita nos primeiros capítulos de
1Reis. Se o Senhor é importante, então a morada
de sua presença precisa ser grandiosa. Três capítu­
los são dedicados a descrições minuciosas da cons­
trução do Templo e, finalmente, em IRs 8, Salomão
o dedica.
O Templo figura com proeminência no restante
da História. O pecado mais grave de Jeroboão foi
construir santuários em Betei e Dan para impedir o
povo de ir para Jerusalém, no sul, para cultuar. Os
feito “o que é reto aos olhos do S enhor” são aqueles
que adornam primorosamente o Templo, levam ofe­
rendas até ele, ordenam sua restauração e removem
os ídolos que seus maus predecessores nele puseram.
Quando reis judaicos formam alianças com nações
estrangeiras, o templo é pilhado e seus tesouros são
roubados. Inevitavelmente, a destruição do reino de
Judá e 0 desaparecimento do Templo do S enhor an­
dam de mãos dadas.
4. Profecia e concretização. Do princípio ao
fim dos Livros dos Reis, encontramos muitos exem­
plos da convicção do redator de que Deus é fiel. A
palavra de Deus, expressa por meio de representan­
tes escolhidos, é eficiente; sempre se concretiza.
Os profetas prometem, exortam e ameaçam porque
0 redator deuteronomista via a história de Israel
como a expressão viva da fidelidade ou infidelidade
dos israelitas à aliança com o S enhor. O s profetas
revelam as conseqüências futuras dos atos e atitudes
em vão. O poder de Deus fará essa palavra ser
cumprida e a História registra explicitamente que
isso acontece.
5. A Lei. A fidelidade ao S enhor ou a falta dela
por parte dos governantes é manifestada em toda a

História Deuteronomista, inclusive nos Livros dos
Reis, em termos da obediência de Israel à Lei do
S enhor. A Lei de Moisés e a resposta dos descen­
dentes de David são as medidas para avaliar a mo­
narquia. O redator deuteronomista interpreta os acon­
tecimentos da história israelita conforme os reis e o
povo obedecem ou desobedecem a essa Lei.
Estes cinco temas — aliança, dinastia. Templo,
profecia e Lei — são interdependentes e permeiam a
História. São instrumentos essenciais na exposição
que o redator deuteronomista faz de sua teologia e
fundamentais para a unidade dos Livros dos Reis.
A s mulheres e o Livro dos Reis
Muitos comentaristas não percebem o papel
significativo desempenhado pelas mulheres duran­
te 0 período das monarquias de Israel e como essas
figuras foram incorporadas aos Livros dos Reis. E
importante não só reconhecer a má liderança de
uma Izébel, que até excedeu o marido em idolatria,
malevolência e trapaça, mas também notar outras
personagens femininas que influenciaram de forma
significativa o curso da história de Israel; Bat-She-
ba, a rainha de Shebá, a mulher de Jeroboão, a viúva
para quem Eliseu multiplicou o óleo, a escrava
israelita e a mulher de Naaman, que, junto com
COMENTÁRIOi 1 REIS
PARTE I: O REINADO DE SALOAAAO
1Rs 1,1-11^ 3
Para melhor entender muitas das alusões con­
tidas nos capítulos introdutórios do Primeiro Livro
dos Reis, poderá ser útil adquirir certo conhecimen­
to sobre a vida dos israelitas em sua terra no primei­
ro milênio a.C. Primeiro, consideremos o problema
do sincretismo (fusão de práticas religiosas diferen­
tes) e das mulheres estrangeiras. Os israelitas adora­
vam o Senhor, o Deus que, com atos maravilhosos
na história em beneficio deles, tirara-os do Egito e
os trouxera a uma terra que se tornara deles. Mas,
quando já estavam nessa terra, eram ffeqüentemente
tentados a incorporar ao culto do S enhor os cultos
de fertilidade de seus vizinhos canaanitas. Em parte
isso se explica por sua nova dependência da agricul­
tura e sua necessidade de garantir uma terra fértil
e uma colheita próspera. O Senhor fizera coisas
maravilhosas no deserto, mas será que podia fazer
as plantações crescerem?
A infiltração de práticas pagãs de fertilidade
na religião israelita foi muitas vezes ocasionada
pelo casamento de israelitas com mulheres canaani­
tas e outras “estrangeiras”. Depois do casamento,
essas mulheres conservaram sua crença nos deuses
e deusas da fertilidade e, consequentemente, foram
muitas vezes acusadas de levar Israel à idolatria.
1 REIS 1
Eliseu, possibilitou a cura do marido. O presente
comentário fará um esforço especial para salientar
as contribuições das mulheres.
Diante disso, pode-se perguntar se o redator
deuteronomista— como, aliás, o Cronista— neces­
sariamente deve ter sido um homem. Entretanto,
considerando o período no qual os textos foram pro­
duzidos, bem como seu conteúdo e estilo, inclino-me
a atribuir-lhes autoria masculina.
Naquele tempo e asora
Embora a organização definitiva dos Livros dos
Reis não tenha acontecido depois do fim do século
VI a.C., nós, como comunidade de fiéis, considera­
mos sua palavra sagrada e significativa. E importante
entendermos o contexto no qual estes livros foram
escritos — por quem e para quem — e procurarmos
entender o que significavam para o povo ao qual se
destinavam originalmente. Todavia, precisamos ir
mais longe. Para que estes textos façam sentido para
judeus e cristãos do século XX, precisamos dialogar
com os textos no contexto das situações sociopolíti-
cas e culturais em que nos encontramos. Juntos, pre­
cisamos procurar entender o que constitui a fideli­
dade à aliança no século XX e, inversamente, qual
forma assume nossa idolatria.
Por isso 0 historiador deuteronomista exorta contra
o matrimônio misto (por exemplo, Js 23,12) e, no
texto, 0 casamento com mulheres estrangeiras é,
quase sempre, prenúncio de destruição.
Precisamos ter em mente, também, que o texto
que temos como Escritura é história de caráter teoló­
gico; aqui a história foi moldada por uma perspec­
tiva teológica. O intérprete da história do século XX
espera que os documentos expressem o que realmen­
te aconteceu e pode, por descuido, rotular como falsa
a adaptação dos eventos (por exemplo, por delibe­
radas omissões, ênfases, comentários editoriais, até
mesmo construções literárias). Contudo, somos real­
mente tão diferentes quando distinguimos entre his­
tória econômica e história política (ambas com ên­
fases e omissões apropriadas); ou quando reconhe­
cemos que a interpretação paraguaia da Guerra do
Paraguai pode ser muito diferente daquela dos ma­
nuais brasileiros?
A o a p lic a r e s s e p rin c íp io a o s L iv ro s d o s R e is ,
s ó p o d e m o s s u p o r q u e ta lv e z a s c o is a s n ã o a c o n ­
te c e ra m p re c is a m e n te c o m o aqui d e s c rita s . Em
h a rm o n ia c o m a in te n ç ã o d o re d a to r fin a l d e m o s ­
tra r c o m o a fid e lid a d e a o S enhor c o n d u z i u ao su­
c e s s o e o o p o s to , a v e rd a d e ira h is tó ria d a s p e rs o n a ­
g e n s — o q u e re a lm e n te a c o n te c e u a e la s e a Is ra e l
d u ra n te s e u s r e in a d o s — p re c is a s e r in te rp re ta d a
c o m o c o n se q u ê n c ia d e s u a fid e lid a d e o u in fid e li- 275
 1 REIS 1
dade ao S enhor. O presente comentário examinará
com atenção como o texto retrata as personagens
e pretende sugerir, quando houver uma óbvia incon­
sistência, o que provavelmente estava acontecendo
na história de Israel.
Os primeiros capítulos de 1 Reis ligam os dois
livros veterotestamentários anteriores, 1 e 2 Samuel,
ao que segue. O “herói” de 2 Samuel, o rei David,
morre e confere a majestade a Salomão, filho de
Bat-Sheba, sua esposa favorita, embora um filho
mais velho, Adonias, seja um ativo pretendente ao
trono. Os capítulos seguintes salientam que o rei­
nado de Salomão se caracteriza pela devoção ao
Senhor, explicando, desse modo, seu sucesso polí­
tico e econômico. Salomão começa reconhecendo
sua fidelidade à aliança, sua reverência pelo S e­
nhor. É para o S enhor e por causa do dom do
Senhor que terá êxito como rei. Os últimos capí­
tulos (11-12), entretanto, mostram um desvio na
fidelidade de Salomão. Ele, que tinha “amado o
S enhor”, agora ama “mulheres estrangeiras” (11,1),
que tiram seu coração do bom caminho. Esse jul­
gamento é responsável pelo fato de Salomão per­
der 0 apoio de seu povo porque o oprimiu (por
exemplo, pela cobrança de impostos e pelo traba­
lho forçado) — tanto que o reino é dividido depois
de sua morte.
1,1-4 David em seu leito de morte. Em sua
maioria, os biblistas acreditam que esse incidente —
David agora velho e “frio”, isto é, incapaz de man­
ter relações sexuais — funcione como uma inclu­
são. (Inclusão é a técnica de adaptar uma unidade
literária usando a mesma palavra, a mesma frase ou
o mesmo episódio no início e no fim dela) O pri­
meiro pecado de David foi seu encontro sexual com
Bat-Sheba (2Sm 11). Ali ele tomou para si uma
mulher que já pertencia a outro. Aqui, por ironia,
Abishag, “jovem extremamente bela”, sua por direito,
é incapaz de aquecê-lo e excitá-lo. Para essa socie­
dade patriarcal, a mulher é propriedade, primeiro
do pai, depois do marido; contudo, essas mulheres
— Abishag e Bat-Sheba — afetam de maneira signi­
ficativa a vida do rei, o bem-estar do reino e até
mesmo as circunstâncias que cercam a morte do rei.
Estes vv. também indicam que David, que ficara em
casa “na primavera, na época em que os reis costu­
mam partir para a guerra”, não morrerá em combate
como seu antecessor, Saul. O reino, na época da
morte de David, está bem estabelecido e em paz.
1,5-10 Ambição de Adonias. Seria de esperar
que 0 filho mais velho de Salomão, Adonias, suce­
desse ao pai como rei. Mesmo antes da morte do pai
e, aparentemente, com a tácita aprovação paterna,
Adonias prepara-se para assumir. Adquire uma
carruagem, cavalos e capangas, bens adequados a
alguém que em breve “sairá à frente e combaterá
os combates [do povo]” (cf. ISm 8,20). Consegue
276 partidários, mas falta-lhe o apoio essencial do porta-
-voz do Senhor, o profeta Natan, o que, com cer­
teza, é mau presságio.
1,11-53 Salomão é proclamado rei. Natan
apóia Salomão como futuro rei de Israel e age para
que isso aconteça. Natan serviu de porta-voz do
S enhor a David pelo menos duas vezes antes. Foi
ele quem comunicou a David a promessa divina de
uma dinastia (2Sm 7) e quem comunicou o julga­
mento divino do pecado de David com Bat-Sheba
(2Sm 12). David tem toda razão para levar a sério a
palavra de Natan. Agora, para convencer David de
que Salomão deve reinar depois dele, Natan arran­
ja um encontro entre David e Bat-Sheba. Ela deve
lembrar a David a promessa feita por ele de que o
filho dela sucedería ao pai no trono. Natan asse­
gura a Bat-Sheba que ele também tentará persuadir
David de que Salomão deve ser rei.
Bat-Sheba e Natan executam o plano com su­
cesso. David nomeia Salomão seu sucessor e lhe
ordena que monte sua mula para ser ungido rei e
sentar-se em seu trono. O pretendente Adonias ago­
ra não tem qualquer possibilidade. Sua única espe­
rança é que Salomão lhe poupe a vida, o que ele faz,
pelo menos por enquanto.
Foi esse texto escrito durante o reinado de Sa­
lomão, em sua corte? Legaliza, de fato, uma cons­
piração? Na perspectiva histórica, talvez a resposta
deva ser afirmativa; contudo, na perspectiva teoló­
gica, 0 porta-voz do S enhor, apoiado pela mulher
de David, revelou, verdadeiramente, a vontade do
S enhor.
2,1-11 Ultimas instruções e morte de David.
Os últimos conselhos de David a seu filho têm a
ver, antes de mais nada, com a fidelidade à aliança.
Como David, Salomão deve venerar o S enhor; só
assim terá a garantia de sucesso em seus empreen­
dimentos; só assim ficará garantida a permanência
de um descendente de David no trono. E a primeira
vez que são expressas condições a respeito da di­
nastia; sua continuação depende da resposta fiel à
aliança.
Os outros conselhos de David referem-se a
determinadas pessoas: loab, os filhos de Barzilai e
Shimeí. Como loab, general de David, sem o conhe­
cimento nem a anuência de David, trespassara
Abner (veja 2Sm 3) e Amasá (veja 2Sm 20), David
quer que Salomão castigue loab. (Aqui poderiamos
perguntar se Salomão quer loab fora do caminho
porque ele apoiara Adonias, se esse pedido de David
legaliza a decisão de Salomão de matar um inimigo
político.)
Barzilai. em contraste, representa a lealdade. Ele
ajudou David a fugir de Absalão e essa fidelidade
merece recompensa. Em outras duas passagens da
História Deuteronomista (2Sm 9,10; 2Rs 25,29), co­
mer à mesa com o rei é sinal explícito de privilégio.
Finalmente, Shimeí deve ser castigado. David
manteve sua promessa e não o passou à espada co­
mo sua traição merecia (cf. 2Sm 19,24). Por outro

lado, tal infidelidade não pode ser ignorada. Cons­
piradores em potencial não devem atrapalhar o
reinado de Salomão.
Depois de pronunciar suas últimas palavras,
David morre. Reinara sete anos em Hebron e 33 em
Jerusalém, isto é, um total de 40 anos. Não se sabe
ao certo se esses números denotam exatidão histó­
rica ou foram usados simbolicamente. (Em muitos
textos bíblicos, inclusive na História Deuterono-
mista, como ficará evidente, os números 3, 4, 7 e
12 [30, 300 e assim por diante] expressam totalidade
ou conclusão.) David adormeceu junto a seus pais e
foi sepultado na Cidade de David. Esta asserção é a
primeira de muitas expressões semelhantes que ocor­
rem em toda a História Deuteronomista com referên­
cia aos reis davídicos. O redator deuteronomista re­
fere-se explicitamente ao lugar do sepultamento para
enfatizar a estreita ligação entre David e todos os reis
de Judá.
2,12-46 O reino se tom a seguro. David legiti­
mou a eliminação por Salomão de loab e Shimeí
como adversários políticos. Agora Salomão deve le­
gitimar a supressão de Adonias, seu meio-irmão, pois,
enquanto viver, Adonias será uma ameaça em poten­
cial ao trono. Adonias pede para si Abishag, a mulher
que “aquecera” o David moribundo (1,3). Reconhe­
cendo a influência de Bat-Sheba sobre Salomão,
Adonias pede-lhe que interceda para que ele possa
ter Abishag por mulher. A resposta de Salomão é
uma recusa veemente, pois ele percebe que esse pe­
dido é uma clara pretensão ao trono (observe mais
uma vez a importância indireta, mas muito real, de
Abishag; cf. 2Sm 16,22). Salomão está agora absol­
vido por ordenar a morte de seu irmão.
Em seguida, Salomão afasta Ebiatar de sua
posição de prestígio (v. 27). Afinal de contas, ele
apoiara Adonias. O texto legitima essa decisão com
uma referência à denúncia profética da casa de Eli
(cf. ISm 2,30-36). Assim, cumpre-se a palavra do
S enhor.
Outra ameaça ao trono de Salomão é o general
de David, loab. loab merece a morte por matar
dois homens sem o conhecimento de David e o
próprio David assim o quis, ou é isso que devemos
entender. Por coincidência, acontece que loab tam­
bém fora um dos que apoiaram Adonias! Quando
Ebiatar está fora do caminho, Salomão o substitui
por Sadoq; quando loab está fora do caminho,
Salomão o substitui por Benaiáhu (v. 35). Como é
óbvio, Sadoq e Benaiáhu tinham apoiado firme­
mente Salomão (cf IRs 1,8).
Por fim, alguma desculpa deve ser encontrada
para justificar a morte de Shimeí. David queria que
Shimeí fosse castigado por sua deslealdade e Sa­
lomão só precisa descobrir um jeito de eliminá-lo.
Depois de criar circunstâncias para que Shimeí
quebre um juramento, Salomão aguarda. Sua paciên­
cia é recompensada e, conseqüentemente, Shimeí é
morto (v. 46). Depois de eliminar toda a oposição.
1 REIS 4
Salomão está agora seguro no trono. A perspectiva
teológica do redator do texto confirma que foi cum­
prida a vontade do Senhor, expressa por intermédio
do profeta Natan e de David. Se interpretado histori­
camente o V.39, foram precisos três anos para tomar
0 reino completamente seguro.
3.1- 15 Sabedoria de Salomão. Afastadas as
ameaças políticas, são oportunas as alianças políti­
cas. Salomão não perde tempo para assegurar a
“amizade” do Egito, casando-se com a filha de Faraó,
o que elimina a possibilidade de invasão a partir do
sul e cria o clima de paz para Salomão constmir seu
palácio, o Templo do S enhor e a muralha de Jeru­
salém. Embora tenha realizado um casamento misto,
não é feita menção à idolatria. Explica-se o fato de
cultuar nos lugares altos — atividade mais tarde as­
sociada à infidelidade ao S enhor — porque o Templo
ainda não fora construído (v. 2).
A primeira parte do reinado de Salomão carac­
teriza-se pela fidelidade à aliança com o S enhor,
pelo amor e pela obediência. Ele cultua no melhor
santuário e faz generosos sacrifícios ao S enhor, tira­
dos da abundância de prosperidade com que o Se­
nhor o abençoou. Muitas vezes, como aqui, os so­
nhos ocasionam um encontro com o S enhor (obser­
ve-se, por exemplo, o sonho de Natan em 2Sm 7). No
diálogo que se segue, Salomão se reconhece servo
do Senhor e lhe pede um coração atento para gover­
nar o povo e discernir entre o bem e o mal.
O Senhor responde com generosidade. O pedi­
do de Salomão será concedido e, além disso, ele
receberá as bênçãos normais da fidelidade à aliança
— riquezas, glória e vida longa. (Quando estes tex­
tos estavam sendo escritos, os israelitas não acredi­
tavam na vida após a morte. Assim, para o historia­
dor deuteronomista, a recompensa pela fidelidade à
aliança assumia a forma de prosperidade material,
vida longa e prole para continuar a vida da pessoa.)
A veneração de Salomão pelo S enhor, comprovada
por seu pedido altruísta, fazia com que merecesse
sabedoria além das bênçãos usuais da aliança. Salo­
mão desperta de seu sonho e mais uma vez oferece
sacrifícios ao Senhor (inclusão).
3,16-28 Julgam ento de Salomão. Salomão
começa imediatamente a fazer julgamentos com o
coração sábio que o Senhor lhe dera. Com perspi­
cácia, estabelece a condição que lhe permitirá deter­
minar a verdadeira mãe da criança viva, e sua deci­
são cheia de sabedoria deixa o povo admirado, isto
é, a glória que o Senhor prometera.
4.1- 6 Os principais funcionários do reino. O
conselho de ministros de Salomão, se é que pode­
mos chamá-lo assim, compunha-se de Josafat, que
apoiara David (cf. 2Sm 8,16; 20,24); Ebiatar (seria
o mesmo Ebiatar rejeitado em IRs 2,27?); Benaiáhu
e Sadoq, que haviam apoiado Salomão em sua pre­
tensão ao trono (veja IRs 1,8); os filhos dos que
apoiaram Salomão (Azariáhu, filho de Sadoq, e
dois filhos de Natan) e, finalmente, alguns desco- 277
 1 REIS 4
nhecidos não mencionados em outras passagens da
Bíblia.
4,7-5,14 O reino de Salomão. Assim como exis­
tiram 12 filhos de Jacó e 12 tribos de Israel, agora a
terra é dividida em 12 partes. Dessa vez, cada prefei­
to deverá prover às necessidades do rei e de sua casa
durante um mês por ano. É a primeira evidência tex­
tual de que Salomão usava o povo em beneficio pró­
prio. Aqui é admitido o que Samuel advertira — que
0 rei encarregaria o povo de lavrar sua lavoura e de
colher a sua colheita, que cobraria dízimos de searas
e vinhas e rebanhos (cf ISm 8,12.15.17).
Cada divisão de suprimentos tem um chefe,
mas a identidade desse chefe parece não interessar.
São citados sete homens, como se para distingui-
-los de outras pessoas com o mesmo nome. Cinco
são identificados apenas como filho de alguém. Ne­
nhum é descrito mais pormenorizadamente em outra
passagem da História. Contudo, podemos concluir
com segurança que esses homens têm em comum
a lealdade a Salomão.
A astuta organização do império de Salomão
assegura paz e prosperidade na terra. Por essa razão,
Salomão continua a distinguir-se pelos dons divi­
nos de sabedoria, excepcional inteligência e conhe­
cimento. Além disso, sua sensatez política comple­
ta-se com seus talentos literários e musicais e tam­
bém seus conhecimentos de biologia. Não admira
que receba aclamação internacional!
5,15-32 Preparativos para a construção do
templo. Salomão faz alianças onde quer que seja
possível (cf 1Rs 3,1), e a que mantém com os fení-
cios originou-se no tempo de David (cf. 2Sm 5,11).
Apelando à história passada de boas relações de seu
pai com Hirâm, Salomão obtém cedros do Líbano e
trabalhadores para a construção do Templo. A reale­
za de Salomão vem do Senhor e a construção do
Templo cumprirá a profecia de Natan (cf 2Sm 7,13).
Dessa maneira, o texto justifica a consolidação da
realeza e da religião em Jerusalém.
As primeiras etapas da construção do Templo
são marcadas pela cooperação entre os dois países.
Os termos do contrato ou “aliança” são cumpridos
pelas duas partes. Mas existe cooperação interna?
Ou, em outras palavras, sob que condições e obri­
gações os israelitas participam do projeto de cons­
trução? Os 30 mil trabalhadores, em turmas de 10
mil (notem-se os números!), representam trabalho
forçado? Seu ressentimento provoca jtarte da hostili­
dade contra a dinastia, no fim do reinado de Salo­
mão (cf IRs 11-12)?
O s b ib lis ta s s u g e r e m a e x is tê n c ia d e u m a fa c ç ã o
c o n tr á r ia a o T e m p lo e m Is ra e l, d a m e s m a f o r m a q u e
h o u v e u m a fa c ç ã o c o n tr á r ia à m o n a rq u ia ( c f IS m
8 ). D e s s e p o n to d e v is ta , u m g ru p o c o n s e r v a d o r —
n ã o s a b e m o s d e q u e ta m a n h o — re s is tiu à c o n s tm -
ç â o d e u m a m o ra d a p e rm a n e n te p a ra o Senhor em
s e u m e io . C o m b in a r te m p lo e re i f a ria c o m q u e fo s -
278 s e m a in d a m a is “ c o m o a s o u tra s n a ç õ e s ” . A p re s e n ç a
desse elemento conservador explicaria por que David
não construiu um templo. Também explicaria certa
resi.stência à construção do Templo durante o reinado
de Salomão. Além disso, a resistência teria sido au­
mentada pelo tratamento desumano dos trabalhado­
res do Templo.
6.1- 38 Construção do Templo. A datação es­
pecífica que encontramos aqui relaciona esse novo
e importante evento a dois outros grandes aconte­
cimentos da história de Israel; o Êxodo e a ascen­
são de Salomão ao trono. Esse feitio de datação é
comum no Antigo Testamento, inclusive nos Livros
dos Reis. A data nunca é dada pelo ano (por exem­
plo, 964 a.C.), mas pelo relacionamento de um
evento a outros acontecimentos importantes.
Segue-se minuciosa descrição do Templo. A
santidade do Templo é atestada pela afirmação de
que o máximo de trabalho possível é feito longe
do local da construção (v. 7). Sua magnificência é
afirmada pelas freqüentes referências a madeiras
nobres (oliveira, cipreste e cedro importado), pedras
finamente trabalhadas e uma profusão de revesti­
mento de ouro e outros tipos de decoração. O lugar
santíssimo, que abrigaria a Arca da Aliança, desta­
ca-se pela riqueza de sua ornamentação.
Inserida no relato da construção do Templo está
uma palavra profética que estabelece condições para
0 cumprimento pelo S enhor de sua promessa a
David (a dinastia duradoura?) e também para o
S enhor permanecer no meio de Israel e não aban­
donar seu povo: Salomão deve obedecer às leis, às
normas e aos mandamentos do S enhor ( vv. 11-13).
Esse texto é um forte eco de teologia deuteronomis-
ta: a obediência produzirá o bem, mas as bênçãos
dependem da fidelidade. O capítulo termina afir­
mando que o Templo foi construído em sete anos.
7.1- 12 Construção do palácio. Imediatamen­
te depois de afirmar que a Casa do S enhor levou
sete anos para ser construída, o texto nos diz que
foram precisos treze anos para construir a casa do
rei. Devemos concluir que “sete” tem o propósito de
simbolizar o término do templo, enquanto “treze”
é uma estimativa precisa de tempo necessário para
construir o palácio de Salomão? Ou devemos con­
cluir que o rei se importou mais com o esplendor
de sua casa do que com a Casa do S enhor? En­
quanto o templo do S enhor mede 60 por 20 por 25
côvados, 0 palácio é maior: 100 por 50 por 30 cô-
vados (um côvado variava de 38 a 56 centímetros).
Samuel também constrói um tribunal e alojamen­
tos separados para si e para a filha de Faraó. Tudo
é feito com capricho; ele constrói um pórtico e um
átrio para seu palácio, semelhantes aos construídos
para o Templo. .
^ 7,13-51 Objetos do Templo. Estes w . formam
uma inclusão — Templo, palácio. Templo. Embora
o próprio Templo, inclusive o altar, a mesa sobre a
qual se apresentava o pão da oferenda e os cande­
labros, seja pesadamente revestido de ouro, muitos

dos objetos fabricados para o uso dentro do recinto
do templo — as colunas, o “Mar”, os suportes, as
tigelas, os recipientes, as pás e as bacias de aspersão
— são feitos de bronze. Hirâm, rei de Tiro, fora
contratado para fornecer cedro para o templo; agora
Hirâm, habilidoso metalurgista e israelita cujo pai
era de Tiro, é contratado para ajudar nos trabalhos
em bronze.
A dedicação das oferendas ao Senhor feita
por David torna-se precedente para Salomão e os
reis futuros (v. 51). Esses presentes para Deus são
salvaguardados nos tesouros do Templo. Não se
sabe ao certo se esses tesouros eram também os do
palácio, mas saquear os objetos de valor da Casa
do S enhor seria, com certeza, considerado ofensa
grave. Quando tudo está concluído, o Templo é
dedicado.
8,1-21 Dedicação do Templo. Os vv. 1-4 reú­
nem 0 antigo e o novo: os anciãos, os chefes tribais,
os chefes das famílias, a Arca e a tenda da reunião,
os levitas e os sacerdotes, a Cidade de David. É
incerto se o texto reflete uma combinação de tex­
tos ou um esforço mais tardio para atribuir tudo a
Salomão e ao Templo. De qualquer modo, o pas­
sado — a liderança anterior de Israel e a antiga
morada do S enhor — vem agora ao Templo de
Jerusalém. Afirma-se que toda a comunidade de
Israel, inclusive Salomão, sacrificou ovelhas e bois
ao S enhor e assistiu à procissão dos sacerdotes
com a Arca, levando-a a para seu lugar santíssimo
no Templo. O leitor é explicitamente lembrado de
que a Arca contém as duas tábuas de pedra, que
simbolizam a aliança do S enhor com Israel (v. 9).
Que melhor maneira de ligar o rei e o S enhor, de
mostrar a fidelidade de Salomão ao S enhor (com­
pare IRs 3,4.15) e expressar a aprovação do povo
pelo que Salomão construiu? A nuvem que encheu
o Templo é clara indicação da aprovação do Senhor
(cf. Ex 16,10; 40,38; Nm 9,18 e muitos textos se­
melhantes). Mais uma vez, é dada a confirmação
para o rei e o Templo. Agora as promessas profé­
ticas feitas em 2Sm 7 de que o filho de David se
sentaria no trono e construiría um Templo para o
S enhor estão cumpridas.
8,22-66 O ração de Salomão. O resto desse
longo capítulo é construído como oração de Salo­
mão ao S enhor por ocasião da dedicação do Tem­
plo. Os vv. 22-26 são semelhantes na forma à ora­
ção de David em 2Sm 7,22-29: primeiro, é exalta­
da a singularidade do Senhor; depois, o Senhor
recebe agradecimentos pelas bênçãos já concedi­
das e pela promessa divina futura; por fim, é feito
0 pedido para que o S enhor cumpra o resto da pro­
messa. Aqui, 0 pedido específico é pelos filhos de
Salomão e a continuação da dinastia. Então, Salo­
mão reúne engenhosamente sentimentos pró-Tem-
plo e contrários a ele. Afirma que nenhum lugar,
nem mesmo o céu dos céus, pode conter o Senhor,
contudo também afirma que o Templo que cons­
1 REIS 9
truiu é 0 lugar exato onde o S enhor q uer ser cultua­
do (vv. 27-30).
Muitos biblistas acreditam que os vv. 33-34 e
46-51 sejam adições mais tardias à oração original,
porque sugerem uma condição de exílio. Isso é bem
possível, pois a oração original entende o Templo
como lugar apropriado para suplicar o perdão do
pecado, pecado que resulta em vários castigos —
derrota, seca, fome, peste, ferrugem etc. O Templo
também é entendido como o lugar do justo julga­
mento e o lugar para onde Israel deve se voltar pa­
ra suplicar a vitória em combate (a Arca não será
mais levada na guerra).
Os vv. 41-43.60 sugerem uma abertura a estran­
geiros que pode se originar ou na política imperia­
lista de Salomão ou simplesmente em sua diploma­
cia exterior. Estes vv. podem até ser uma adição exí-
lica de uma época na qual o nacionalismo não era
mais uma possibilidade.
A eleição de Israel como povo escolhido é ex­
plícita e repetidamente dada como a razão pela qual
o Senhor deve ouvir a oração de Israel.
O discurso de Salomão ao povo (vv. 56-61)
repete a forma do início de sua oração ao S enhor:
ele louva o S enhor por cumprir as promessas divi­
nas e depois suplica bênçãos contínuas para o futu­
ro. Mais uma vez, o texto liga a obediência de Israel
ao Senhor ao não-abandono do povo pelo S enhor.
A dedicação termina da mesma maneira como co­
meçou, com Salomão e o povo oferecendo sacrifí­
cios ao Senhor. A festa só acaba depois de sete dias.
O povo volta para casa, contente com o rei e com o
Templo.
9,1-9 Promessa e admoestação a Salomão.
O diálogo continua. Salomão falou em uma oração
ao S enhor; agora o S enhor fala mais uma vez a
Salomão (cf. IRs 3,10-14). Enquanto antes o S e­
nhor exigira obediência para que a presença divina
continuasse no Templo e no meio de Israel, agora
ele estabelece condições para a continuação da di­
nastia de David (cf IRs 6,12-13). Mais adiante, o
texto cita especificamente o pecado de idolatria
(v. 6). O castigo para a infidelidade de Salomão e
seus descendentes incluirá a destruição do templo,
a perda da nacionalidade e o exílio. Aqui, o texto
prenuncia o que acontecerá.
9,10-18 O utras atividades do rei. Esse texto
sugere outras imperfeições do rei, que impôs a cor-
véia a seu povo para construir o Templo (cf IRs
5,27-31) e, mais tarde, tratou Hirâm injustamente.
As vinte cidades galiléias que Salomão deu a Hirâm
significavam um pagamento menos que adequado
pelos materiais que ele forneceu para o Templo e
o palácio. Além disso, Salomão forçou os não-is-
raelitas que viviam em seus domínios a ajudar não
só na construção do Templo e do palácio, mas tam­
bém na da muralha de Jerusalém, de várias cidades
e de uma frota. Contudo, a essa altura de seu rei­
nado, Salomão ainda é fiel ao S enhor, como de- 279
 1 REIS 10
monstram sua preocupação com o Templo e suas
oferendas.
10.1- 13 Visita da rainha de Shebá. Uma ricaros dez e um podem cada um representar o todo) em
mulher submete-se à sabedoria superior de Salomão
e fica impressionada com seu estilo grandioso e
sua fidelidade a Deus. Os dois trocam muitos pre­
sentes valiosos. Os vv. 11 e 12 parecem deslocados,
combinando mais com IRs 9,26-28. De qualquer
modo, atestam a estreita colaboração entre as frotas
de Hirâm e Salomão, em proveito de Salomão. O
ouro de Ofir é agora suplementado por madeira e
pedras preciosas.
10,14-29 Riqueza de Salomão. Salomão gosta
de ostentar sua riqueza; usa ouro em toda a parte.
Suas taças e utensilios são de ouro e ele expõe
escudos de ouro em seu palácio. A cada três anos
seus navios trazem nova carga de metais precio­
sos. Parece que Salomão tem tudo: a sabedoria do
S enhor, paz em sua terra, riquezas abundantes, o
reconhecimento de todos. Talvez sua fama traga
inveja e ressentimento, pois parte de sua riqueza
vem de tributos anuais. Devemos também pergun­
tar se 0 texto que descreve os carros de Salomão
é alusão sutil à condenação da monarquia em ISm
8 , 11- 12.
11.1- 43 Os pecados de Salomão. Salomãoseu pai. Além disso, Salomão é sepultado com seus
casou-se com a filha de Faraó e amou o Senhor (cf
IRs 3,1-3). Agora ama mulheres estrangeiras e em
abundância simbólica (700 e 300!). Como, na opi­
nião do redator deuteronomista, o casamento com
mulheres estrangeiras levava inevitavelmente ao culto
de seus deuses, Salomão merece a condenação este­
reotipada desse autor, por idolatria. Portanto, o cora­
ção de Salomão não é mais como o de seu pai,
David, completamente fiel ao Senhor. Sua desobe­
diência é explícita. O Senhor prometeu a continua­
ção da sua dinastia sob a condição que o povo ado­
rasse o S enhor e só o Senhor. A resposta do S enhor
ao pecado de Salomão só pode ser a ira e o castigo.
E, assim, o S enhor mais uma vez fala a Salomão
(vv. 11-13). Notamos aqui a ausência de mediação
profética; o S enhor especifica, ele mesmo, o casti­
go. O reino não ficará para o filho de Salomão, mas
para seu servo; contudo, “por causa de David”, isso
não acontecerá durante a vida de Salomão, nem toda
a realeza lhe será arrebatada.
Durante a última parte do reinado de Salomão
não lhe faltam adversários: Hadad e os edomitas,
no sudeste; Rezon da Síria, no nordeste, e até seu
servo Jeroboão, no norte de Israel. E o rei do Egito
acolhe Jeroboão! O texto justifica a revolta de
Jeroboão com uma palavra profética (vv. 31-39).
Ahiá transmite a Jeroboão basicamente a mesma
mensagem que o S enhor deu a Salomão: o reino
será dividido e parte dele será dada ao servo de
Salomão. Por causa de David, isso só acontecerá
depois da morte de Salomão.
Se dez tribos foram dadas a Jeroboão e uma
280 Única ao descendente de David, o que aconteceu à
décima segunda? Em sua maioria, os biblistas de­
duzem que a referência aqui é simbólica (os núme­
vez de histórica. A esse tempo, certas tribos haviam
sido incorporadas a outras; por exemplo, Simeão e
Levi a Judá e talvez também parte da tribo de Ben-
jamin (cf IRs 12,21).
O redator deuteronomista, cujas palavras são
postas na boca de Ahiá, apressa-se a impor condições
para o futuro reinado e o potencial dinástico de Jero­
boão; dependerão da fidelidade aos mandamentos
do S enhor. David tomou-se o modelo por excelên­
cia. Por causa dele, seus descendentes continuarão
a ser uma dinastia; somente se for fiel ao S enhor
como David, Jeroboão pode esperar uma dinastia
duradoura. Os descendentes de David serão, na ver­
dade, castigados, mas o redator deuteronomista vê
um fim até para esse castigo.
O relato da morte de Salomão (vv. 41-43) asse­
melha-se ao da maioria dos reis judaicos. É feita re­
ferência a uma fonte, que se perdeu, em que podem
ser encontradas mais informações a resjteito do
reinado de Salomão. É também feita referência à
duração de seu reinado — neste caso, 40 anos (uma
geração), o mesmo número de anos do reinado de
ancestrais, inclusive David, na cidade de seu pai.
Finalmente, o texto observa que seu filho Roboão
reinou em seu lugar, à maneira dinástica.
PARTE II: JUDA E ISRAEL ATE A EPOCA DE ACAB
1Rs 12,1-16,34
Essa seção relata a história do reino dividido,
entre cerca de 930 a.C. e 870 a.C. Durante esse
tempo, três dos descendentes de David reinaram
no reino meridional de Judá: Roboão, filho de
Salomão; Abiâm, filho de Roboão, e Asá, filho de
Abiâm. O reino setentrional não conseguiu susten­
tar uma dinastia. A casa de Jeroboão resistiu só até
0 filho de Jeroboão, Nadab, ser assassinado. A casa
de Baeshá resistiu só até o filho de Baeshá, Elá,
ser assassinado. Zimri ficou no trono apenas sete
dias, até também ser assassinado. A casa de Omri
conseguiu manter uma dinastia de quatro gerações.
Como o texto bíblico considera Acab o rei mais per­
verso do norte — a mulher de Acab, Izébel, matou
os profetas e levou Acab à ruína — , o historiador
deuteronomista acrescenta a sua História toda uma
seção sobre o reinado de Acab e seu confronto com
os profetas Elias, Miquéias e Eliseu.
12,1-25 Cisma de Israel. Cumpre-se a profe­
cia de Ahiá a Jeroboão (11,31-39). Se Roboão ti­
vesse astúcia política, poderia ter evitado a divisão.
Aconteceu que a presunção arrogante levou-o ao
autoritarismo e, em última análise, à derrota. O rei­
nado de Salomão originou um rival, mas um líder
com poucos seguidores. O de Roboão produz os
seguidores e a revolta. O S enhor preveniu Salomão

sobre a divisão que estava para vir; Ahiá profeti­
zou a Jeroboão; agora Shemaiá diz a mesma coisa
a Roboâo e seu povo. A divisão do reino é explicada
três vezes p>ela infidelidade dos reis davídicos.
Como não tem um centro geográfico como o
que David e Salomão estabeleceram em Jerusa­
lém, Jeroboão, durante os primeiros anos de seu
reinado, muda-se com ffeqüência. A partir de agora,
no Livro dos Reis, a palavra “Israel” refere-se ape­
nas ao segmento setentrional do que fora o reino
unido de David e Salomão. “Judá” refere-se ao
reino do sul, a parte da terra governada por um des­
cendente de David.
12,26-32 Rebelião religiosa. Poderia haver
uma solução religiosa para o dilema politico de
Jeroboão? A instituição de um novo rei exige uma
nova capital e, seria de supor, um novo templo. De
que outra maneira pode a unidade politica, social
e religiosa do povo ser mantida? Sua própria iden­
tidade como povo e nação está estreitamente ligada
à crença no S enhor e a seu culto, mesmo que às
vezes a idolatria e o sincretismo sejam praticados.
É Jeroboão realmente culpado, ou é culpado apenas
aos olhos do historiador deuteronomista, para quem
todos os reis do norte, sem exceção, fazem o mal
aos olhos do S enhor?
Qualquer que seja a verdadeira resposta a essa
dúvida histórica, na perspectiva do redator do tex­
to bíblico, Jeroboão faz justamente as coisas que
só merecem condenação: bezerros de ouro para o
povo adorar (v. 28; compare Ex 32); constrói tem­
plos nos lugares altos (v. 31); ordena sacerdotes
não-levitas (compare Ex 28ss.); e arbitrariamente
estabelece uma festa de peregrinação (v. 32).
12,33-13,34 Mensagem do profeta de Judá.
Não nos surpreende que o que segue seja uma con­
denação profética. Ao oferecer sacrifícios sobre o
altar em Betei, Jeroboão é admoestado por um pro­
feta judaico, que condena não só o altar mas tam­
bém os sacerdotes que Jeroboão ordenou. Mais tar­
de, durante o reinado de Josias, em Judá, os sacer­
dotes ilegítimos dos lugares altos serão sacrificados.
(Telia 0 texto sido escrito durante o reinado de Josias
para legitimar o expurgo?)
A verdade dessa palavra profética confirma-se
pelo cumprimento de outra das palavras do profeta
— a destruição do altar (cf. IRs 13,5). O profeta de
Deus está em contato com o poder de Deus. Quan­
do Jeroboão lhe suplica que interceda para que sua
mão estendida e seca seja restabelecida, ele o faz
e o rei se recupera (13,6). Contudo, apesar de suas
experiências do poder de Deus, Jeroboão não se
arrepende.
O poder de Deus opera pelo representante divino
mesmo quando esse agente não é obediente a Deus.
Os estudiosos questionam com fteqüência por que o
velho profeta iludiu (tapeou!) o enviado de Deus.
Os profetas merecem o crédito e a obediência dos
que ouvem a palavra de Deus por seu intermédio.
1 REIS 14
deles, mas devem ser obedientes à palavra de Deus
que eles mesmos ouviram. Quando a pessoa ouviu
Deus, não deve confiar em um ser humano —
mesmo que este seja mensageiro de Deus. O profeta
mais novo enfrenta agora a condenação divina de
sua desobediência por intermédio de outro profeta:
não será sepultado com seus pais. Mais uma vez, o
texto registra que a palavra profética se cumpre. O
profeta de Deus morre e é sepultado, mas não junto
a seus pais. Contudo, era um verdadeiro profeta; a
palavra que pronunciou contra Betei se cumprirá.
(No V. 32, “Samaria” é usada como sinônimo de
“Israel”.)
14,1-20 M orte de Abiá. Quando estiver em
dificuldades, consulte Deus; quando tudo estiver
bem, faça como quiser — essa parece ser a filosofia
de Jeroboão. A doença de seu filho Abiá leva-o ao
mesmo profeta que lhe fizera a promessa cumprida
de realeza (cf. IRs 11,30-39). Agora Jeroboão pro­
cura Ahiá para saber a sorte de seu filho. Por que
o próprio Jeroboão não vai ver Ahiá? Por que a mu­
lher de Jeroboão precisa se disfarçar? Seria porque
o rei não quer que o povo saiba que ele precisa da
ajuda de um profeta? Assim como na seção anterior
não foram citados os nomes dos profetas, não é dado
0 nome da mulher de Jeroboão. O nome de Abiá
é citado uma vez. O texto deliberadamente destaca
Jeroboão como a personagem central — Jeroboão,
o rei infiel.
O filho de Jeroboão morrerá — como seria de
esperar, tal é a palavra do Senhor (compare 2Sm
12,14). Além disso, o mesmo profeta por intermé­
dio de quem Deus deu condicionalmente uma dinas­
tia a Jeroboão agora retira-a. Dos filhos de Jero­
boão, só Abiá não sofrerá morte violenta. Jeroboão
é tão mau que até o sepultamento de Abiá precisa
ser justificado; há nele alguma coisa que agrada ao
S enhor (v. 13)1
Assim como se perderam os Anais de Salomão
(cf IRs 11,41), o mesmo aconteceu com os Anais
dos reis de Israel (v. 19) e, aliás, também com os
Anais dos reis de Judá (v. 29). A duração do reina­
do de Jeroboão, seu sepultamento e a elevação de
seu filho ao trono associam-no ao reino israelita
subseqüente.
14,21-31 Reinado de Roboão. O texto alterna
os relatos dos reinados dos reis de Judá com os dos reis
de Israel. Junto com a notícia estereotipada da idade
de Roboão quando ele começou a reinar e da duração
de seu reinado, é dado o nome de sua mãe, Naamá
Esse padrão é comum para a maioria dos reis de Judá.
Como os reis tinham muitas mulheres, era importan­
te registrar em que familia um novo rei fora criado.
Para Roboão, o detalhe de que sua mãe era amonita
(v. 21) lembra IRs 11,1-6, em que ficamos sabendo
do casamento de Salomão com muitas mulheres es­
trangeiras e sua consequente prática da idolatria.
Os vv. 22-24 narram como, sob o rei Roboão,
Judá sucumbe à idolatria. Isso explica a guerra de 281
 1 REIS 15
Judá contra o Egito e também o reino setentrional
de Israel. Sob o governo de Roboão, Judá fica igual
a Israel. Aqui, os Livros dos Reis começam a des­
crever um relacionamento proporcional entre a
qualidade do rei e a condição do Templo, um en-
cadeamento elaborado em todo o resto da História
Deuteronomista.
Apesar de sua maldade, Roboão é descendente
de David; portanto é sepultado com seus ancestrais
e seu filho Abiâm sobe ao trono em seu lugar.
15,1-8 Reinado de Abiâm. A descrição dada
aqui do filho de Roboão é completamente estereo­
tipada: em que ano do reinado de quem no norte
fulano começou a reinar no sul? Quanto tempo rei­
nou? Quem era sua mãe? Como seu reinado deve
ser avaliado na perspectiva da aliança e em compa­
ração com o de David? Se o julgamento é que de­
terminado rei de Judá foi infiel ao S enhor, então o
fato de ter permanecido no trono explica-se por uma
referência à fidelidade do S enhor a seu servo David.
Se durante o governo de determinado rei não
ocorreu nada de muito importante, em uma pers­
pectiva teológica, então é feita uma referência à
morte e ao sepultamento do rei com seus ances­
trais. E dado o nome do sucessor. Se quiser mais
informações a respeito do rei, o leitor deve consul­
tar os Anais dos reis.
15,9-24 Reinado de Asá. Asá reverte o reinado
de seu pai. Abiâm reinou apenas três anos, Asá rei­
na 41. Ao contrário de David, seu pai não estava
inteiramente com o S enhor. Asá, como David, agra­
da ao Senhor. Roboão permitiu a presença de hieró-
dulos (cf. IRs 14,24), Asá os expulsa. Abiâm fez
ídolos, Asá suprime-os. Maaká, rainha-mãe do rei­
nado de Abiâm, venerava uma deusa canaanita, Asá
a expulsa. Além disso, Asá trouxe para o Templo
oferendas valiosas, presentes apropriados de si mes­
mo e até de seu pai. O reinado de Asá perdura
durante os reinados de pelo menos cinco reis do
norte; ele tem muitos dons e constrói muitas cida­
des, bênçãos do Senhor por sua fidelidade.
O único defeito de que Asá parece culpado é
deixar os lugares altos permanecerem (v. 14). Isso
significa que ele tolera a idolatria de outros dentro
de seu reino? E essa a causa da guerra contínua
entre o sul e o norte? Por outro lado, a irresistível
fidelidade de Asá e sua semelhança com David
seriam a explicação dada pelo historiador deutero­
nomista para o fato de Asá chamar a Síria em sua
defesa contra Israel (compare 2Sm 10,19 e IRs
10,29)? Mais adiante, o texto condena alianças es­
trangeiras porque elas evidenciam a falta de con­
fiança no S enhor.
15,25-32 Reinado de Nadab. Em uma pers­
pectiva teológica, o reinado do filho de Jeroboão,
simultâneo aos primeiros anos do reinado de Asá
no sul, é semelhante ao de seu pai. Nele e em toda
a família de Jeroboão, cumpre-se a palavra profé-
282 tica de Ahiá (cf. IRs 14,10-16). O v. 32 reproduz
0 V. 16. Em geral, os biblistas explicam tais repe­
tições como fruto de diversas fontes. Muitas vezes,
a ênfase dada por tais repetições é deliberada.
Se a realidade histórica era a guerra constante
entre os reinos do norte e do sul, então é preciso
reconhecer a verdade, apesar do julgamento teoló­
gico de que Baeshá era mau e Asá bom. A história
só pode ser moldada pela teologia deuteronomista
até certo ponto.
15,33-16,14 Reinado de Baeshá. A capital do
reino do norte ainda não é Samaria, mas Tirsá, a
cidade onde Jeroboão posteriormente se instalou
(cf. IRs 12,25 e, em especial, IRs 14,12.17).
Por intermédio de seu profeta lehu, o S enhor
condena Baeshá. Como a de Jeroboão, a maldade
de Baeshá fará com que mereça o mesmo fim: sua
casa será destruída; só um filho reinará e terá morte
violenta. Na perspectiva histórica que permeia dis­
cretamente o texto, podemos concluir que o reina­
do de Baeshá foi relativamente estável. Ele sobrevi­
veu por 24 anos no trono e seu filho se tomou rei
em seu lugar. Contudo, na perspectiva teológica, sua
infidelidade à aliança fez com que o castigo final
fosse inevitável.
16,8-14 Reinado de Elá. O historiador deutero­
nomista registra apenas uma coisa sobre o reinado
de Elá: cumpre-se a profecia de lehu. Elá é assas­
sinado e a casa de Baeshá, destruída. Seu sucessor
é seu servo e assassino, Zimri.
Não podemos deixar de notar a instabilidade
do reino do norte. A casa de Jeroboão reinou du­
rante 24 anos antes de Nadab ser assassinado; a
casa de Baeshá reina durante 26 anos, antes de Elá
ser assassinado. Em ambos os casos, o assassino
se toma rei. Nenhuma das casas reinou durante
uma geração completa.
16,15-22 Reinado de Zim ri. O assassino de
Elá fica apenas sete anos no trono antes de se
suicidar (compare ISm 31,4) e ser substituído por
Omri, chefe da tropa. Aparentemente, Omri tem
mais apoio popular do que Tibni, outro pretendente
ao trono, e também Zimri. O historiador-teólogo
deuteronomista culpa o pecado de Zimri por seu
breve reinado e seu fim. Nenhum pecado é atribuí­
do a Tibni e, assim, não é dada nenhuma explica­
ção para sua morte. De conformidade com a violên­
cia do período, uma explicação histórica plausí­
vel é que os partidários de Omri eliminaram sua
oposição.
16,23-28 Reinado de Omri. Omri muda a ca­
pital de Tirsá para Samaria — façanha importante
na história política de Israel. Tem morte natural e
é sepultado com os ancestrais. Seu filho Acab toma­
-se rei em seu lugar. Contudo, o castigo por sua
idolatria e outros pecados será inevitável.
16,29-34 Reinado de Acab. Enquanto outros
reis do norte são comparados a Jeroboão e muitos
podem até ter feito “mais mal” que seus anteces­
sores, Acab é citado claramente como culpado de

maldade mais que qualquer um dos outros. Seus pe­
cados específicos são casar-se com Izébel e adorar
Báal; chega até a construir um templo para Báal na
capital.
Além disso, a reconstrução de Jerico por Hiel
durante o reinado de Acab faz jus ao cumprimento
da maldição em Js 6,26. Perde o primogênito quan­
do lança os alicerces e o filho mais moço quando
assenta as portas. Qualquer que seja a datação
relativa desses textos (se Hiel reconstruiu Jericó e
sacrificou seus filhos — acontecimentos históricos
condenados no texto mais tardio de Josué — ou se
a passagem em Josué representa uma tradição mais
primitiva inserida em 1 Reis para documentar me­
lhor a maldade de Acab), não há dúvida de que
IRs 16,34 serve de indicação adicional do pecado
de Acab.
PARTE III: HISTÓRIAS DOS PROFETAS
IR s 17,1-22,54
O restante de 1 Reis compõe-se de lendas pri­
mitivas sobre profetas e seus discípulos. O conteúdo
é episódico, inserido no reinado de Acab em Israel
e, indiretamente, no reinado de Josafat em Judá. A
natureza dos profetas descrita até aqui é enfatizada
em toda a narrativa. Será cumprida a palavra que
Deus proclama por intermédio de um profeta; o
profeta é mais poderoso que o rei.
17.1- 6 A seca profetizada por Elias. A palavra4-5). O episódio é artisticamente construído. Antes
de Elias a Acab é um aviso de seca e uma asserção
de que Elias controlará sua duração. A palavra do
S enhor a Elias é uma promessa de proteção: comida
e bebida, e um lugar seguro. Na palavra do S enhor
ao profeta está implícito o poder do Senhor; na
palavra do profeta está implícito o castigo do S enhor
pelo pecado de Acab.
17,7-24 Elias e a viúva. Os milagres da mul­
tiplicação do óleo e da farinha e a ressurreição do
único filho de uma viúva são o segundo e o terceiro
relatos de atos do poder divino por intermédio de
Elias; ele já provocou a seca. O pecado de Acab
trouxe sofrimento ao povo de Israel; a fidelidade
de Elias traz alimento, o mesmo acontecendo com
a fé da mulher. Aqui são demonstrados o poder do
Senhor de tirar a vida e de devolvê-la e a confiança
de Elias no S enhor.
18.1- 46 Elias e os profetas de Báal. O leitorignora seu problema e imediatamente aborda outro
não deve se surpreender com outro milagre, com cer­
teza não quando um episódio tem o propósito de
contrastar o poder de Deus com o poder do não-deus.
O S enhor trará chuva depois de três anos de seca
e fome.
Elias surge como o representante do Senhor, en­
quanto Acab e Izébel são devotos dos Baalim. Oba-
diáhu atua como intermediário deles. Embora seja
temente ao S enhor, a ponto de arriscar seu bem-estar
para esconder os profetas perseguidos, Obadiáhu tra­
balha para o rei mau e tem medo dele. Entretanto,
, 1 REIS 19
como é fiel ao Senhor, Obadiáhu obedece a Elias e
proporciona o encontro, depois de três anos, entre
Acab e Elias. Ambos acham que o outro é o “agou­
rento de Israel”. Quem, em última análise, provocou
a seca — o profeta Elias ou o mau rei Acab?
O lugar de confronto é o monte Carmelo: Elias,
profeta do S enhor, contra 850 falsos profetas. Em
um texto semelhante a Dt 30,15-20 e Js 23,14-16,
Elias exorta o povo a escolher o Senhor (v. 21). Segue­
-se uma demonstração do poder do Senhor. Um pro­
feta contra 850, dois novilhos preparados para o sa­
crifício, extensa intercessão (três derramamentos de
quatro talhas de água sobre o altar de 12 pedras) e
um único pedido. O altar do Senhor pega fogo. Depois
que a supremacia do Senhor é firmemente restaura­
da, a seca dá lugar à chuva (v. 45). O incidente tem
0 propósito de ensinar a Acab a maldade de seus
meios e ensinar ao leitor o poder do Senhor.
Os estudiosos comentam com freqüência o fato
de Elias matar os profetas de Báal. O texto não é
sobre o homicídio de pessoas; é sobre o poder do
Senhor. Dentro desse contexto, o mal precisa ser
afastado do meio de Israel.
19,1-18 Fuga p ara o Horeb. O encontro de
Elias com Deus no monte Horeb tem sido assunto
de muito estudo e reflexão. Horeb é outro nome
do Sinai, a montanha de Deus onde o Senhor falou
a Moisés no meio de uma sarça ardente (cf Ex 3) ,
e onde mais tarde deu a Moisés o Decálogo (cf. Dt
do encontro com o S enhor, Elias está desanimado
e quase desesperado. A terra é má, o rei é mau, os
profetas estão mortos e a vida de Elias foi ameaçada
por Izébel. Ele gostaria de morrer.
Mas, assim como foi alimentado durante a seca
e a fome, também agora Elias é protegido. Um anjo
acorda-o duas vezes para comer e, na segunda vez,
sugere a viagem que deve fazer (v. 7). Exatamente
como os israelitas caminharam 40 anos no deserto,
agora Elias faz uma viagem de 40 dias e 40 noites
no deserto. A queixa de Elias a Deus (v. 10) evoca
o convite do Senhor para um encontro que acon­
tece não onde mais se espera estar o poder de Deus
— em um vento forte e violento, um terremoto, no
fogo — mas no sussurrar de um sopro tênue.
Agora não há tempo para amuos. Elias expõe
ao S enhor sua situação difícil, mas pelo visto Deus
assunto. Elias é profeta e como profeta é encarre­
gado de sair do deserto e ungir três pessoas: Hazael,
como rei de Arâm, lehu, como rei de Israel, e Eliseu,
como seu sucessor. Juntos, esses homens efetiva­
mente eliminarão todos os que têm sido infiéis ao
S enhor. Entretanto, um resto fiel (sete mil homens)
será poupado.
19,19-21 Vocação de Eliseu. Primeiro Elias
chama seu sucessor. A função do manto talvez seja
simbólica (cf IRs 11,30-31), ou pelo menos uma
alusão ao encontro de Elias com o Senhor (v. 13). 283
 1 REIS 20
Eliseu reconhece o chamado sutil e o segue, pondo,
simbolicamente, um ponto final ao anterior modo
de vida.
20.1- 43 Vitórias de Acab sobre Ben-Hadad. É
indiscutível que o reino setentrional de Israel esteve agora pronuncia uma condenação semelhante às
em guerra com Arâm durante grande parte do reina­
do de Acab. Desde a época de Baeshá, havia hosti­
lidade e luta intermitente entre os dois países. Mas
o fato histórico é que Israel foi vitorioso contra Arâm Izébel será igualmente destruída.
durante o reinado de Acab. Como o teólogo deutero-
nomista explica isso? Como a maldade de Acab pôde
merecer a vitória? Lembra-se do poder da palavra
profética do Senhor, em especial quando um profeta
é ouvido e obedecido? O primeiro combate resulta
em uma vitória israelita porque Acab procura a pa­
lavra do profeta e age de acordo com ela. O segundo
combate também resulta em uma vitória israelita,
desta vez porque os arameus estupidamente acredi­
tam que o Deus de Israel pode ser conquistado na
planície. A desproporção entre os dois exércitos tem
o propósito de mostrar o poder do Senhor. A vitória
é do S enhor.
Segundo as regras da teologia da “guerra santa”
de Israel, o S enhor é o guerreiro que luta por Israel tar território. Embora jamais seja citado no capitulo,
e, conseqüentemente, todos os despojos lhe perten­
cem. O Senhor foi vitorioso contra Arâm; foi a
palavra do profeta que dirigiu a estratégia de Acab
no primeiro combate; a palavra do profeta também
avisou de um segundo ataque. O Senhor mostrou
grande poder ao conseguir a vitória de Israel sobre
as forças muito maiores de Arâm. Portanto, Ben-
-Hadad pertence ao S enhor e Acab não tem o direito
de libertá-lo (v. 34). (O crescente poder da Assíria
no antigo Oriente Próximo pode ser a explicação
histórica por trás da paz provisória entre Arâm e
Israel. Os Anais assírios de Salmanasar referem-se
a uma aliança entre Arâm e Israel quase no fim do
reinado de Acab [cf IRs 22,1].)
Na perspectiva teológica, a referência ao com­
panheiro de um profeta que se recusa a obedecer
o profeta e por isso é morto (v. 36) é introdução
apropriada à condenação profética de Acab. Acab se
condena em seu encontro com o profeta (c f 2Sm
12). Assim como o soldado tem de sofrer o castigo
por negligenciar sua responsabilidade, o fato de Acab
poupar o rei Ben-Hadad (cf ISm 15,8-9) acaba
levando a sua morte.
21.1- 29 Confisco da vinha de Nabot. Para de sua morte e se liberte, Miquéias diz que o Senhor
entender por que Nabot não queria vender nem
trocar sua propriedade ancestral, precisamos con­
sultar textos como Lv 25 e Js 13. A interação de
personagens mostra Acab aceitando os valores tra­
dicionais e a decisão de Nabot, embora relutante.
Por outro lado, Izébel, que até agora a]iareceu
pouquíssimo no texto — ela matara os profetas e
ameaçara Elias — , não respeita a decisão de Nabot
e ridiculariza o marido por fazê-lo. Por esse moti­
vo, usurpa o poder de Acab, isto é, seu nome e seu
284 selo, e trama com sucesso a morte de Nabot. Acab
colabora tacitamente com Izébel e colhe os bene­
fícios. Ou assim parece, até que Elias mais uma
vez enfrenta Acab! A condenação profética é opor­
tuna; homicídio e roubo não ficarão impunes. Elias
que Jeroboão e Baeshá tinham ouvido — o fim
violento da dinastia de Omri. O corpo de Acab
ficará no mesmo lugar de seu pecado. E a perversa
Como Acab ouve a palavra do profeta pelo
que ela é — a palavra de poder do S enhor — , ele
se arrepende. Podemos esperar que se cumpra a
palavra profética, mas aqui como alhures (cf 2Sm
12,13-14) ela é suavizada; o castigo que lhe é de­
vido é retardado até o reinado de seu filho.
22,1-40 Campanha contra Ramot-de-Guilead.
É provável que em alguma etapa anterior da compi­
lação do texto tenha sido relatado a sucessão de Asá
no trono de Judápor Josafat (cf IRs 22,41-45), antes
do presente relato de uma aliança de Israel e de Judá
contra Arâm. Aqui Josafat reconhece a unidade an­
terior de Israel e de Judá e o potencial de tal unida­
de. Assim, procura ajudar o rei do norte a reconquis­
esse rei é Acab. Talvez fique em segundo plano
quando comparado a Josafat! O que aconteceu ao
tratado de Asá com Arâm? Teria Arâm se tomado
ambicioso e começado a se infiltrar para o sul? Teria
Josafat considerado uma aliança com Israel estrate­
gicamente mais importante do que uma aliança com
Arâm? Afinal de contas, Israel era um vizinho seten­
trional mais próximo do que Arâm.
De qualquer modo, Josafat quer que os profetas
sejam consultados (v. 6). O rei do norte manda buscar
os profetas comprometidos, aqueles que mantêm o
apoio, dizendo precisamente o que o rei quer ouvir.
Simulam, mas não ousam arriscar a verdade, temen­
do que a palavra do Senhor seja adversa. Josafat
pressiona por um profeta mais digno de confiança,
um que diga “o que o Senhor lhe disser” (v. 14).
Acab considera falsa a primeira palavra sarcás­
tica de Miquéias (v. 16). O verdadeiro profeta só
podia condenar o perverso Acab. A resposta real
de Miquéias é uma profecia da morte de Acab em
combate: as ovelhas ficarão sem pastor. O mal de
Acab é tão grande que o julgamento do S enhor é
final. Para garantir que Acab não ouça a profecia
até permitiu um espírito de mentira na boca dos
profetas. Quer Acab busque consolo na certeza en­
ganosa dos falsos profetas, quer leve a sério a pala­
vra de Miquéias, seu fim não mudará. O S enhor de­
cretou sua perda (v. 23).
O aprisionamento de Miquéias não é a primeira
referência nos Livros dos Reis à perseguição de um
profeta. Izébel matou muitos e Elias fugiu dela para
salvar a vida.
Com a morte de Acab (v. 35) cumprem-se várias
profecias, inclusive a de Miquéias. Além disso, Arâm

ajudou a exterminar o mal de Israel (compare 1Rs
19,17). Acab é sepultado e seu filho Acazias (cf. IRs
21,29) toma-se rei em seu lugar.
22,41-51 Reinado de Jo sa fa t Na perspectiva
do historiador deuteronomista, o reinado de 25 anos
de Josafat é relativamente tranquilo. Como seu pai,
Asá, ele faz o que é reto aos olhos do Senhor. Con­
tinua a boa prática paterna de eliminar os hieródulos
(cf. IRs 15,12). Contudo, como seu pai, também
permite que os lugares altos continuem ativos como
COMENTÁRIO: 2 REIS
PARTE IV:
OS REINOS DE ISRAEL E JUDÁ
2Rs 1,1-17/41
1.1- 8 Acazias consulta Báal-Zebub. Novo 16), mas os textos mais tardios relatam que Eliseu
início e novo rei de Israel. O leitor percebe imedia­
tamente que tipo de rei o teólogo deuteronomista
julga que Acazias é — ele consulta um ídolo! O
que se segue é um julgamento e uma condenação
proféticos.
1.9- 12 M orte de dois oficiais. Para o teólogo
deuteronomista, o poder do profeta ultrapassa de
longe 0 do rei. Nenhum mero soldado pode sobre­
pujar 0 poder de Deus. Em vez disso, Elias decreta
a condenação dos soldados enviados para captu­
rá-lo, os dois grupos de 50 e seus chefes (cf IRs
18,13). A palavra de Deus por meio de Elias não
pode ser silenciada; é eficiente.
1,13-18 M orte do rei. O terceiro oficial envia­
do por Acazias reconhece o poder de Elias e suplica
por sua segurança. Sabe o que o rei não entendeu;
o S enhor, Deus de poder, está com Elias. Quando
Elias encontra o rei em pessoa, repete a sina de
Acazias: a consequência da idolatria é a morte.
2.1- 8 Elias e Eliseu. A partida de Elias é desen­
volvida com detalhes literários e leva a um clímax.
Elias sabe da iminente separação e quer estar com
Eliseu 0 maior tempo possível. Eliseu segue o pro­
feta para o sul, de Guilgal a Betei, a Jericó e até o
Jordão. O papel simbólico do manto de Elias como
instrumento de poder vem mais uma vez à tona
quando é usado para dividir as águas.
2.9- 18 Eliseu sucede a Elias. O outro lado docom os edomitas, contra Moab (cf IRs 22). Tendo
Jordão é o lugar da intervenção divina. Elias é
arrebatado em um carro de fogo conduzido por
cavalos de fogo. Quando Eliseu vê isso, sabe que,
segundo a palavra de Elias, o poder profético ser-
-Ihe-á, em grande parte, conferido. Rasga seu manto
em dois; pega o manto de Elias e o usa para voltar
a atravessar o Jordão, onde encontra os que, a partir
de agora, serão seus seguidores. Elias não pode ser
encontrado; de agora em diante, o poder de Deus
que estivera sobre ele deve ser procurado em seu
sucessor, Eliseu.
2 REIS 3
lugares de culto (cf. IRs 15,14). A referência a
Edom e a uma frota (vv. 49.50) indica relativo poder
e prosperidade.
22,52-54 Reinado de Acazias. Como os outros
reis que terminam dinastias no norte, Acazias reina
somente dois anos. Seu mal é comparado não só ao
de Jeroboão e ao de seu pai Acab, como poderiamos
esperar, mas também ao de sua mãe. Concluímos que
sua mãe era a perversa Izébel, principalmente porque
sua idolatria é especificada como culto a Báal.
Muitos biblistas histórico-críticos sugeriram a
existência de confusão histórica e literária entre os
dois homens. Em parte isso acontece porque Deus
dissera a Elias para ungir Hazael e lehu (IRs 19,15­
realiza a unção (cf. 2Rs 8,13; 9,6). Às vezes, con-
jetura-se que os milagres agora atribuídos a Elias
eram originalmente atribuídos a Eliseu e foram
alterados, repetidos e reagrupados a fim de realçar
0 contraste literário entre Acab e Elias.
2,19-22 C ura da água. A prova da eficiência
da palavra profética de Eliseu é registrada imediata­
mente. A terra com potencial de fertilidade precisa
de água pura para que a colheita e o povo sejam
saudáveis. Portanto, a pedido do povo, Eliseu lança
sal na água e a partir de então ela é considerada
fonte de bem-estar. O poder do profeta opera o bem.
2,23-25 A maldição do profeta. O poder do
profeta também pode prejudicar, em especial os
que não levam o profeta a sério. Essa é a interpreta­
ção comum desse episódio: a maldição de meninos
que leva à morte deles. O autor não pretende descre­
ver a crueldade do profeta, mas a gravidade de não
se levar um profeta a sério.
3,1-27 Expedição de lo râm contra Moab.
lorâm, filho de Acab, outro do tipo “tal pai, tal
filho”, sucede a seu irmão no trono. Embora, na
opinião do redator deuteronomista, não seja tão mau
quanto sua mãe (Izébel) e seu pai, mesmo assim
lorâm é mau, como todos os reis do norte.
A paz contínua entre Judá e Israel durante o rei­
nado de Josafat ocasionou sua aliança, dessa vez junto
de enfrentar uma escassez de água, os reis, a pedido
do rei de Judá, consultam um profeta sobre seu dilema.
Procuram Eliseu, que rejeita lorâm, por achá-lo pare­
cido demais com o pai para seu gosto. Todavia, em
consideração ao rei do sul, Eliseu consulta o Senhor;
terão água suficiente e até serão vitoriosos contra os
moabitas (w. 17-18). O Senhor opera a vitória. A pro­
messa do profeta cumpre-se por meio da milagrosa
percepção errada dos moabitas.
A derrota em combate faz o rei moabita buscar
a ajuda síria e, quando esse recurso falha, sacrifica 285
 2 REIS 4
o próprio filho na esperança de ganhar o favor de
seu deus contra Israel. Horrorizados, os israelitas
voltam para Israel. Talvez até eles temam o poder
do deus moabita em Moab!
4.1- 7 O óleo da viúva. A multiplicação do óleoprofeta, ou ao menos comprar uma quantidade de
de uma viúva — milagre de Elias (cf. IRs 17,14-16)
— é realizada também por Eliseu. O marido dela
também fora profeta e ela crê no poder de Eliseu.
Sua queixa trouxe-lhe a libertação.
4,8-37 Eliseu e a shunamita. O profeta do
S enhor tem poder sobre a vida e a morte. Eliseu
promete um filho à shunamita estéril e, mais tarde,
ressuscita essa criança (cf IRs 17,21-23). A mulher
reconhecera Eliseu como profeta e se oferecera para
prover às suas necessidades; ele recompensou-a
com um filho. Agora, ela procura o profeta depois
da morte da criança, mais uma vez demonstrando
confiança no representante de Deus; mais uma vez
é recompensada Aqui é apresentado Guehazi, servo
de Eliseu, que não conseguiu ressuscitar o menino
(V. 31).
4,38-41 A sopa envenenada. Uma fome (com­
pare IRs 18,3) é a razão do milagre seguinte de
Eliseu. Assim como o sal purificara a água conta­
minada (2Rs 3,19-22), agora a farinha purifica uma
sopa envenenada. Epi ambos os casos, o profeta in­
tervém e realiza um milagre em benefício da saúde
de sua gente.
4,42-44 Multiplicação dos pães. Este milagre
complementa os vv. 1-7 e juntos são paralelos a IRs
17,14-16. Vinte pães de cevada e de trigo novo —
alimento para o profeta, sim, mas insuficiente para
alimentar cem pessoas famintas. Isto é, insuficiente
se o poder do Senhor nãò estiver presente.
Não podemos desconsiderar a estreita ligação
literária entre os milagres realizados por Elias e
Eliseu, em especial a multiplicação de comida e as
ressurreições, e milagres semelhantes de Jesus re­
latados nos evangelhos sinóticos. Parece que os au­
tores neotestamentários selecionaram determinados
atos de Jesus para assegurar, principalmente aos
judeus convertidos, que o poder de Deus atuava
por intermédio dele.
5.1- 27 C ura de Naaman. Cinco pessoas sãodeuteronomista da profecia quer que acreditemos.
apresentadas neste episódio: a mulher de Naaman; a
jovenzinha israelita, escrava da mulher de Naaman;
o próprio Naaman; o rei de Arám, senhor de Naaman; e,
por último, 0 rei de Israel. Quatro são identificadas
por sua relação com o leproso e todas apoiam o pe­
dido para que o rei de Israel o cure. O rei de Israel, la até o canibalismo de crianças. O rei israelita
porém, é impotente, como ele próprio admite. Em
contraste, Eliseu, o profeta de Deus, cura com o poder de Eliseu é reafirmar o poder de Deus: a fome
de Deus.
Eliseu ordena a Naaman que se lave sete vezes
no Jordão, mas, como já se lavara em outros rios
antes, o leproso se recusa a fazê-lo. Ainda não per­
cebe que a palavra do profeta contém o poder de
Deus. Ignora sua palavra, mas mais tarde é persua-
286 dido por seus servos, que repetem as palavras do
profeta. Naaman faz o que Eliseu ordenou e é
curado (v. 14).
A cura física de Naaman passa a ser a base da
fé no Deus de Israel. Ele deseja recompensar o
terra de Israel, sobre a qual possa, no fíituro, cultuar
o S enhor em Arâm. Eliseu recusa os presentes,
mas louva a conversão de Naaman.
Guehazi, porém, é outra história. O poder do
S enhor operara por meio de Eliseu para realizar a
cura de Naaman, mas por que não colher benefício
pessoal do poder do S enhor? Essa parece ser a
motivação de Guehazi ao pedir a Naaman os talen­
tos de prata e as mudas de veste — motivação
forte o bastante para fazer Guehazi mentir, primeiro
para Naaman, depois para Eliseu. Mas o conheci­
mento e o poder de Deus estão presentes no profe­
ta de Deus, que censura a trapaça de Guehazi e o
condena à lepra de Naaman. A infidelidade só pode
produzir maldição!
6,1-7 Recuperação do m achado perdido.
Eliseu realiza outro milagre, este para os profetas.
O profeta de Deus tem o poder e o conhecimento
de Deus (cf. 2Rs 5,26-27) para fazer o bem aos que
são fiéis a Deus.
6,8-13 Emboscada araméia. Aqui, Eliseu é des­
crito como um profeta de Deus com conhecimento
extraordinário, que ele usa para o bem de Israel e con­
tra os arameus. O desejo dos arameus de prendê-lo
é prova do poder de Eliseu.
6,14-23 Soldados arameus afetados de ceguei­
ra. Com 0 poder de Deus, o profeta de Deus supera
qualquer obstáculo. Inspira confiança em seu aju­
dante amedrontado; sozinho contra uma tropa
araméia, suplica para que os soldados fiquem ce­
gos; conduz ele mesmo uma tropa cega à capital do
inimigo deles; persuade um rei israelita a alimentar
e libertar arameus. Além disso, amedronta de tal
forma os arameus que faz os ataques cessarem —
ataques que, em primeiro lugar, estão tendo sua
eficiência impedida pelo eonhecimento de Deus.
Eliseu está no controle — pelo menos, a teologia
6,24-7,2 Cerco de Sam aria. A guerra contra
Arâm e a fome em Israel descrevem um pais sob
maldição, uma terra longe da fidelidade a seu Deus.
Às vezes a idolatria instigava o sacrifício de crian­
ças; agora a iminência da morte pela fome estimu­
culpa Eliseu pela fome e tenta matá-lo. A resposta
terminará no dia seguinte, mas o escudeiro do rei
que duvidou da palavra do profeta morrerá.
7,3-13 Os leprosos às portas da cidade. Que
grande escolha existe entre morrer de fome e morrer
pela espada? Esse é o raciocínio dos leprosos ao
fugirem para o acampamento arameu. Sua coragem
é recompensada. Pois sugerindo a chegada de um

grande exército e fazendo o inimigo fugir, o poder
de Deus opera em benefício de seu povo.
7,14-20 Fim do cerco. A fiiga dos arameus marca
o fím do cativeiro de Israel em Samaria e, em con-
seqüência, o fim da fome. Os suprimentos dos
arameus passam a ser espólio de guerra. Além disso,
cumpre-se a palavra de Eliseu ao escudeiro do rei (cf
2Rs 7,2); ele é esmagado na porta da cidade.
8,1-6 Profecia de fome. A mulher que fora
boa para Eliseu, a quem ele dera um filho e para
quem ele ressuscitara o filho, mais uma vez acre­
dita no profeta. Eliseu avisa sobre uma fome e ela
foge da terra. A fome dura sete anos, depois dos
quais ela volta para reclamar sua propriedade em
Israel. O encontro com o rei revela um rei fiel. Ao
ouvir 0 testemunho de Guehazi e o relato da mu­
lher, o rei devolve os bens da shunamita. Embora
seu nome nunca seja citado, ela é um modelo de
alguém que leva Deus e a palavra divina a sério.
8,7-15 A m orte de Ben-Hadad é profetiza­
da. Arâm já devia ter tomado conhecimento do
poder dos profetas do S enhor. Eliseu frustrara as
incursões de Arâm em Israel (cf. 2Rs 6,12) e con­
duzira o exército arameu a Samaria (cf. 2Rs 6,19).
Agora o rei de Arâm consulta o profeta de Israel
sobre sua saúde (cf. a consulta de Acazias aos ídolos
em 2Rs 1,2). Eliseu aproveita a ocasião para pro­
fetizar para Hazael que ele substituirá Ben-Hadad
como rei.
É fato histórico que Ben-Hadad foi assassina­
do por seu servo Hazael, que usurpou o trono de
Arâm. Também é fato histórico que Hazael comba­
teu Israel (cf. IRs 18,17). Entretanto, o teólogo deu-
teronomista não acusa Eliseu de precipitar o assas­
sinato. Eliseu apenas menciona o resultado final e
Hazael escolhe os meios.
8,16-24 Reinado de lorâm de Judá. Embora
seja rei de Judá, lorâm é como Acab. É casado
com a irmã de Acab (está subentendido que ela é
do tipo “tal pai, tal filho”, exatamente como eram
Acazias e lorâm, os filhos de Acab). Julgado em
seus próprios termos, em uma perspectiva teológica,
o reinado de lorâm merece acabar, mas Deus pre­
serva a dinastia por causa do fiel ancestral de lorâm,
David. Entretanto, há tempos difíceis, como a guer­
ra com os edomitas e a perda de Libná, dificuldades
políticas interpretadas como condenação religiosa.
Apesar de seu pecado, lorâm é sepultado com seus
ancestrais na Cidade de David, e seu filho Acazias
se toma rei em seu lugar.
8,25-29 Elevação de Acazias. A mãe de
Acazias era irmã de Acab. Basta saber disso para
prever qual será o julgamento do redator deutero-
nomista a respeito de seu reinado! Ele faz o mal e
é como Acab. A aliança entre Judá e Israel contra
Arâm resulta no ferimento de lorâm em combate
(IRs 18,17 previu que Hazael mataria muitos israe­
litas), 0 que leva a uma visita de Acazias a lorâm
em Jezreel.
2 REIS 10
9.1- 15 Unção de lehu. O curso da história é
interrompido para legitimar lehu como sucessor de
lorâm. A mensagem profética, que desta vez Eliseu
manda um dos filhos dos profetas entregar, coloca
lehu, servo de lorâm, no trono de Israel. A profe­
cia contra a casa de Acab (IR s 21,21-22) e Izébel
(IRs 21,23) agora será cumprida. Os outros chefes
do exército confirmam a unção e formam uma
conspiração com lehu contra lorâm.
9,16-26 Assassinato de lorâm . O assassinato
de lorâm é patético. Enquanto está sendo confor­
tado por Acazias, rei de Judá, seu chefe do exército
o trai. Mas a traição é fácil, como demonstra a
maneira como lehu persuade os cavaleiros de lorâm.
O encontro de lehu e lorâm é descrito como o en­
contro do bem e do mal. Como foi ungido por
Eliseu, lehu justifica o S enhor pelo mal que a casa
de Acab fez. Além disso, o sangue de lorâm é der­
ramado em um lugar simbólico da culpa de Acab,
a vinha de Nebat (cf. IRs 21,21).
9,27-29 M orte de Acazias. Acazias, filho de
Ataliá, a irmã malvada de Acab, também precisa ser
eliminado. lehu ordena sua morte e é obedecido.
Contudo, como pertencia à linhagem de David, o
corpo de Acazias é transportado para Jerusalém e
sepultado com seus ancestrais na Cidade de David.
930-37 M orte de Izébel. Finalmente, é hora
do castigo para a malvada Izébel. Assim como
persuadiu os cavaleiros de lorâm, agora lehu per­
suade dois ou três eunucos, que jogam Izébel pela
janela, provocando sua morte. A maneira como mor­
reu e a decomposição de seu corpo são adequados
julgamentos teológicos para sua maldade. A palavra
do profeta — o poder do S enhor — é cumprida
(cf. IRs 21,23).
Izébel chamou lehu de Zimri. Zimri foi o che­
fe da metade dos carros de Elá, rei de Israel que
matou seu senhor, dessa forma eliminando a casa
de Baeshá (cf. IRs 16). Agora lehu eliminou a
casa de Acab. Contudo, aqui lehu é entendido como
instrumento do S enhor ao purificar Israel e tam­
bém Judá da má liderança.
10.1- 11 Assassinato dos descendentes de Acab.
lehu não se contenta em ter matado lorâm, Acazias
e Izébel; precisa livrar Israel de toda a casa de Acab,
70 descendentes. Assim como os outros chefes do
exército juntaram-se à conspiração de lehu (2Rs 9,3­
4), os cavaleiros juntaram-se a ele (2Rs 9,18-20) e
os eunucos o apoiaram (2Rs 9,33), agora os chefes
de Samaria cumprem suas ordens, matando todos os
parentes vivos de Acab. lehu considera sua morte
— e o extermínio de todos os que apoiavam Acab
— 0 cumprimento da profecia de Elias contra a
casa de Acab (IRs 21,21).
10,12-14 Os irmãos de Acazias. A eliminação
da casa de Acab e do mau rei de Judá, Acazias,
ainda não é o bastante. Acazias era filho de Ataliá
e havia outros filhos; e Ataliá era irmã de Acab.
Ainda estão vivos. Os parentes que estão viajando 287
 2 REIS 10
para visitar a família de Acazias também devem
ser todos exterminados.
10,15-17 lehu em Sam aria. Estes w . realçam
a reunião de partidários de lehu (cf. 2Rs 9,18-19.32; aceitarão mais os fundos, mas também não serão
10,5), o assassinato dos que apoiavam a casa de
Acab (veja v. 11) e o entendimento que o redator
tem de que essas mortes foram o cumprimento da
profecia de Elias (veja v. 10). Quer em Jezreel,
quer em Samaria ou em outra parte de Israel, todos
os que apoiaram as más intrigas da casa de Acab
são destruídos.
10,18-36 O templo de Báal é destruído. Essa
não é a primeira vez que uma personagem usa de
trapaça para realizar o propósito divino. Lembramo-
-nos do profeta que mentiu (IRs 13)? lehu deve
cumprir sua missão de livrar Israel do mal que a
casa de Acab perpetrou ali, e é isso que ele faz (cf
IRs 19,17). Sua recompensa é que seus fdhos ocu­
parão o trono de Israel até a quarta geração.
Mas lehu também é culpado de cometer o
pecado de Jeroboão, tolerando os santuários em
Betei e Dan. O texto julga esse pecado com refe­
rência à perda para Arâm do segmento oriental da
terra de Israel.
11.1- 20 Governo de Ataliá. Até mesmo os quehistoriador deuteronomista, a justaposição das de­
conhecem os Livros dos Reis não prestam muita
atenção a Ataliá. Em um período patriarcal como
esse, nenhuma mulher governaria legitimamente.
Izébel pode ter sido mais forte que Acab (cf IRs
21) e Ataliá, irmã de Acab, pode, de fato, ter gover­ lho Amasias se toma rei em seu lugar.
nado Judá durante sete anos, mas a casa do homem,
seja ele Acab ou David, sempre recebe o crédito.
Assim como a coragem de algumas mulheres
salvou Moisés (Ex 2), agora lehosheba, irmã de
Acazias, salva Joás (da dinastia davídica) da mão
assassina de Ataliá. O lugar de proteção é a Casa do
Senhor e o protetor é o sacerdote lehoiadá, que unge
Joás rei de Judá. Quando Ataliá percebe o que acon­
teceu — que um descendente homem de David foi
ungido rei — ela e os que a apóiam ficam impo­
tentes. A morte que ela infligiu aos outros filhos de
Acazias agora se toma seu destino.
A restauração da linhagem davídica exige re­
novação da aliança, um novo compromisso do rei
e do povo com o Senhor e um novo compromisso
do povo com 0 rei. Depois que o templo de Báal
é demolido (compare 2Rs 10,18-28), o rei, tendo
restabelecido a aliança apropriada, dirige-se da Casa completamente Israel também teria uma explicação
do Senhor para sua casa e seu trono.
12.1- 22 Reinado de Joás. Joás tinha 7 anos
quando começou a reinar e reinou durante 40 anos.
O redator deuteronomista atribui o bem de seu rei­
nado à orientação de lehoiadá.
O relato da restauração do Templo durante o
reinado de Joás descreve sacerdotes que não são
administradores. Aparentemente, a harmonia de
Joás com os sacerdotes leva ao que ele considera
um acordo conveniente: os sacerdotes ficam com
288 todo 0 dinheiro que recebem, mas também susten­
tam o Templo. Durante 23 anos os sacerdotes fi­
cam com 0 dinheiro — e ponto final! Chamados a
prestar contas, escusam-se de responsabilidade; não
responsáveis pela restauração do Templo. Os sa­
cerdotes chefiados por lehoiadá assumem um com­
promisso: lehoiadá auxilia na coleta do dinheiro e
em seu uso para a restauração do Templo.
Todavia, o reinado de Joás tem uma falha —
os lugares altos continuam a existir. Em geral, os
lugares altos condenados pelo historiador deutero­
nomista estão ligados a Israel. Mas Ataliá era irmã
de Acab... Na verdade, podemos pressupor a con­
tínua existência do sincretismo em Judá, bem como
traços restantes da idolatria que existira sob Acazias.
Além disso, no campo, mesmo entre partidários do
Senhor, ainda pode ter havido resistência à centra­
lização do culto em Jerusalém. O leitor não deve
se surpreender, então, ao descobrir um castigo li­
mitado para Judá: Arâm representa uma ameaça a
seu bem-estar.
Talvez o fato de Judá subornar Arâm com tri­
butos seja histórico, como o é a morte violenta de
Joás. Entretanto, sugerimos que, na perspectiva do
clarações tem 0 propósito de afirmar uma relação
implícita de causa e efeito. Sejam quais forem seus
pecados, Joás é descendente de David; é sepultado
com seus ancestrais na Cidade de David e seu fi­
13,1-9 Reinado de Joacaz em Israel. Poderiamos
pensar que este texto foi tirado do livro dos Juizes. O
pecado de Joacaz leva à ira do S enhor e à opressão
de Samaria. Entretanto, Joacaz aplaca o Senhor, que
manda um libertador, e os israelitas ficam livres de
Arâm. Porém, o padrão logo se repete (cf Jz 2,11­
19). De volta a sua terra, com relativa segurança, o
povo continua a pecar; sua sina é a falta de prosperi­
dade. Quando Joacaz morre, o descendente de lehu
continua a linhagem (cf 2Rs 10,30).
13,10-25 Reinado de Joás em Israel. Para
fazer uma leitura lógica dessa passagem, deveria­
mos colocar os w . 22-23 depois do v. 7, os vv, 24­
25 depois do v. 19 e os w. 12-13 depois do v. 21.
Assim, os israelitas que fizeram o mal durante o
reinado de Joacaz mereceríam a contínua opressão
de Arâm; contudo, o fato de Arâm não destruir
teológica.
O encontro de Joás com Eliseu demonstra mais
uma vez o poder do profeta. O fato de Joás levar
o profeta a sério é um bom sinal (embora ele esteja
desesperado) e faz com que ele mereça os sucessos
militares contra Arâm; por outro lado, o fato de não
executar a palavra do profeta com obediência total
— assim Eliseu interpreta as três flechas — é res­
ponsável pela vitória restrita. O texto também insi­
nua conflitos entre Israel e Judá (cf 2Rs 14,8-14)
e também com Moab.
 2 REIS 16

Apesar de seu encontro com Eliseu, ou talvez na Cidade de David e seu filho lotâm reina em seu
por causa de seu sucesso incompleto, Joás recebe lugar.
o tradicional tratamento deuteronomista para um 15,8-12 Zacarias de Israel. O filho de Jero­
rei do norte: fez o mal, como Jeroboão. Joás é boão contrasta com seu pai enérgico; permanece
sepultado em Samaria e seu filho senta-se em seu no trono apenas seis meses antes de cair vítima de
trono (cf. 2Rs 10,30). uma conspiração. O historiador deuteronomista
Há certa confusão a respeito do nome deste rei considera tanto seu reinado como seu término a
— o texto hebraico varia entre loash e lehoash. Os realização da palavra do S enhor a lehu (cf. 2Rs
relatos sobre o rei aqui registrados originam-se, 10,30).
com toda a probabilidade, no mínimo de duas fontes 15,13-16 Shaium de Israel. Não há muito o
(observe-se, por exemplo, a duplicação dos vv. 12­ que dizer sobre o reinado de um mês de Shaium.
13, em 2Rs 14,15-16). A instabilidade do trono é óbvia. Outra conspira­
Ao contrário de Elias, Eliseu morre e não deixa ção e outro rei. Antes mesmo que o teólogo deutero­
nenhum sucessor específico. Contudo, como Elias, nomista possa avaliar Menahêm, assassino e suces­
uma aura de milagres acompanha sua trajetória. sor de Shaium, o leitor prevê qual será o julgamento
Como o poder do profeta está em sua pessoa — de um rei que se vinga cruelmente nos inocentes e
em sua vida e em seus ossos — não nos surpreende nos que foram fiéis a seu rei.
que, para o historiador deuteronomista, até o con­ 15,17-22 Menahêm de Israel. Como seria de
tato com os ossos de Eliseu restaure a vida. Até o esperar, Menahêm recebe a condenação do redator
fim, Eliseu age como mediador do poder de Deus. deuteronomista. Ele é mau, como Jeroboão. Adia a
14.1- 22 Amasias de Judá. A mãe de Amasias,possível ameaça assíria e assegura o trono, pagando
lehoadin, era de Jerusalém. Como a mãe de Joás tributo ao rei assírio — com o imposto cobrado de
(Sibiá, de Beer-Sheba), era originária do sul, o que seu povo.
sugere que o reinado de Amasias pode ser mais 15,23-26 PeqaMá de Israel. Peqahiá não é
positivo. Ele vence os edomitas, mas, como seu poupado do julgamento deuteronomista atribuído a
pai, deixa que os lugares altos permaneçam. Trava todos os reis do norte. O filho de Menahêm fica no
um combate fracassado contra Israel, que esvazia trono durante dois anos e, então, é assassinado por
os tesouros do templo e também do palácio. O seu escudeiro, Péqah.
conselho de Joás a Amasias — não lute comigo, 15,27-31 Péqah de Israel. Péqah também é
porque perderá — , dado como alegoria, lembra a mau e é comparado a Jeroboão. Durante seu reina­
parábola de lotâm (Jz 9,7-15). do, Israel continua perturbado pela Assíria. O tribu­
Apesar de sua morte violenta, fora de Jerusa­ to já não é suficiente; a Assíria toma parte das terras
lém, Amasias era da linhagem de David e foi sepul­ israelitas. Péqah não é forte o bastante para resistir
tado na Cidade de David com seus ancestrais. Seu à conspiração de Oséias.
filho. Azarias, foi proclamado rei em seu lugar. 15,32-38 lotâm de Judá. A primeira coisa a
14,23-29 Jeroboão II de Israel. Como seu ho­ notar é outra confusão de nomes — Azarias e Ozias,
mônimo, Jeroboão II é um mau rei do norte. Con­ como designações para o pai de lotâm — , provavel­
tudo, seu remado é longo e próspero (sabemos isso mente causada aqui, também, pela presença de duas
por 2Reis e pelos profetas Amós e Oséias). Essa fontes. Como seu pai, lotâm faz o que é reto aos
combinação de mal e um longo reinado próspero é olhos do Senhor; reina durante 16 anos e constrói
inconsistente com a teologia deuteronomista tradi­ uma das portas da Casa do Senhor. Contudo, os
cional, na qual a prosperidade costuma ser conse- lugares altos não desaparecem; Arâm e Israel opri­
qüência do bem e o sofrimento, do mal. O longo mem Judá. Quando lotâm morre, é sepultado com
remado próspero de um mau rei, porém, pode ser seus ancestrais na Cidade de David. Seu filho Acaz
explicado se ele realiza uma promessa profética; o se toma rei em seu lugar.
poder da palavra do profeta sempre se realizará. En­ 16,1-20 Acaz de Judá. Acaz merece a conde­
tretanto, uma coisa interessante sobre o v. 25 é que nação do historiador deuteronomista por sua idola­
ele registra a realização de uma profecia não citada tria e seu sacrifício de crianças (compare Gn 22). Na
em nenhum texto anterior. É a primeira vez na his­ época, Judá está bastante enfraquecido. Os edomitas
tória deuteronomista que Jonas, filho de Amitai, é recuperam territórios e a coalizão Arâm-Israel ata­
mencionado. ca Judá, com a intenção de destronar Acaz. Embo­
15.1- 7 Azarias de Judá. Como o do reinadora esse plano fracasse, força uma aliança entre Judá
de seu pai, o julgamento que o redator deuterono­ e a Assíria, o que, na prática, faz de Judá um vassalo
mista faz do reinado de Azarias é confuso. Sua mãe, da Assíria. O profeta Isaías preveniu contra tal
leqoliáhu, é de Jerusalém. Azarias faz o bem aos aliança (Is 7,1-16). O aumento da influência assíria
olhos do S enhor ; seu reinado é longo (atravessa os significa não só a presença contínua do sincretis-
reinados de cinco reis do norte). Mas os lugares mo, dos lugares altos e da idolatria, e o saque da
altos permanecem e ele fica leproso. Azarias, da Casa do S enhor, como também a substituição do
linhagem de David, é sepultado com seus ancestrais altar do S enhor por um altar assírio. Na perspec- 289
 2 REIS 17
tiva do teólogo deuteronomista, que maior insulto
poderia ser feito ao Senhor?
Apesar de tudo, Acaz é descendente de David.
Por isso, é sepultado com seus ancestrais na Cida­
de de David e seu filho Ezequias se toma rei em
seu lugar.
17.1- 41 Oséías de Israel. A Assíria destruiu defi­Isaías confirma que não há razão para Ezequias
nitivamente o reino setentrional de Israel em 721 a.C.
(cf. 2Rs 18,9-12). Era a política assíria costumeira
levar para o exílio muitos dos principais cidadãos de
uma nação conquistada (por exemplo, os sacerdotes)
e transferir povos estrangeiros para o território subju­
gado. O objetivo era impedir o desenvolvimento de
oposição capaz de formar uma conspiração.
O texto menciona três etapas no desenvolvimen­
to do sincretismo pós-exílico em Israel. Como o
Senhor é o Deus da terra, é necessário prestar o culto
adequado apenas a ele. Entretanto, como a população
dominante, pelo menos em influência, agora não é
israelita, o S enhor é ignorado. Chega-se a um acor­
do quando a devoção a ele é combinada com as prá­
ticas idólatras de outros povos.
O teólogo deuteronomista interpreta o desapa­
recimento de Israel como castigo apropriado por
todo o mal cometido contra o S enhor. Constante e
consistentemente, tanto Israel como Judá fizeram­
-se de surdos às admoestações proféticas. Agora,
nas mãos da Assíria, Israel paga sua infidelidade.
Além disso, o futuro parece ameaçador para Judá.
A dinastia de David permanece, mas se tiver mais
reis como Acaz (cf. 2Rs 16) deveremos perguntar:
“Por quanto tempo?”
PARTE V:
O REINO DE JUDÁ DEPOIS DE 721 A.C.
2Rs 18,1-25,30
18.1- 12 Ezequias. Ezequias é muito diferentemais tarde da parte de Josias, não impedirá que seja
do pai; chega a ser comparado a David! Não só
cabe-lhe a glória de destruir os restos da idolatria
de Acaz como até mesmo esfacela a serpente que
Moisés fabricara (cf. Nm 21,9). Sua fidelidade é
recompensada com um reinado de 29 anos, prospe­
ridade, vitória sobre cidades filistéias e a seguran­
ça da independência da Assíria nas primeiras etapas
de seu reinado, na mesma época da conquista de
Israel.
18,13-37 Invasão de Senaquerib. Contudo, a
Assíria continua sendo séria ameaça. O diálogo rela­
tado aqui concentra-se em quem confiar: em Ezequias
e seu Deus ou no poderoso rei da Assíria (compare
Is 36 com IRs 18). Ezequias parece ftaco, enquanto
são relatadas vitórias assírias passadas. Agora o leitor
é capaz de prever o julgamento do redator deuterono­
mista. A fidelidade ao S enhor e à aliança trarão o
sucesso, sejam quais forem as circunstâncias. A con­
fiança em um poder estrangeiro e um povo idólatra,
290 entretanto, só pode trazer destruição.
19.1- 19 Ezequias e Isaías. Depois de ouvir a
mensagem do rei assírio, Ezequias vai à Casa do
S enhor e consulta Isaías, profeta do S enhor. Antes
mesmo de ouvir as palavras consoladorast do pro­
feta, Ezequias imagina um final feliz: o S enhor,
irado com o poder dos assírios, castiga-os por isso.
temer o rei assírio. Quando o rei da Assíria repete
suas ameaças, Ezequias novamente procura o Senhor
(cf Is 37,1-20).
19,20-37 Castigo de Senaquerib. Mais uma
vez Isaías consola Ezequias. “Em consideração a
David”, o historiador deuteronomista lembra ao lei­
tor: a Assíria não destruirá Jerusalém.
O poder da palavra do profeta é logo demonstra­
do. O S enhor, guerreiro de Israel, destrói muitas tro­
pas assírias e os sobreviventes fogem. Nem o rei assírio
escapa ao castigo; seus próprios filhos o matam. En­
quanto a Casa do S enhor é fonte de libertação para
Ezequias e Judá, a casa de Nisrok é o lugar do assas­
sinato de Senaquerib (compare Is 37,21-38).
20.1- 21 Enfermidade de Ezequias. O relacio­
namento de Ezequias com o S enhor amplia-se com
sua cura. Embora Isaías tivesse profetizado que
Ezequias morreria de sua doença, Ezequias suplica
ao Senhor, que ouve sua oração e acrescenta quinze
anos à sua vida. O sinal de que a nova palavra do
profeta será cumprida é o movimento milagroso de
uma sombra (cf Is 38,1-8), indicação imediata do
poder eficiente do S enhor (compare IRs 13,3-5).
Com 0 surgimento da Babilônia como poder
mundial, a Assíria deixou de ser uma grande amea­
ça às nações do antigo Oriente Próximo. Essa era a
realidade política. A História Deuteronomista, entre­
tanto, aproveita a oportunidade para prenunciar a
vitória final da Babilônia sobre Judá com uma pro­
clamação profética a Ezequias. A amizade com a
Babilônia, quer agora da parte de Ezequias, quer
por ela destruída Judá em suas mãos. Contudo, o
próprio Ezequias continuará a ser recompensado por
sua fidelidade; a desgraça virá somente depois de sua
morte (cf Is 39). Ezequias, da linhagem de David,
é sepultado com seus ancestrais, e seu filho Manassés
se toma rei em seu lugar.
21.1- 18 Reinado de Manassés. A profanação
de Jerusalém com sangue inocente e da Casa do
S enhor, com toda expressão possível de idolatria,
por Manassés é imperdoável. A promessa feita a
Salomão da presença contínua do S enhor em seu
Templo e de um descendente davídico no trono de
Israel (c f IRs 9,3-5) estava condicionada à fideli­
dade dos reis à aliança. Agora o teólogo deuterono­
mista invoca a palavra de Deus por intermédio dos
profetas, para condenar o pecado de Manassés e
prever as terríveis consequências desse pecado para
Judá. O fim está próximo.
O historiador deuteronomista reconhece o fato
de que Manassés sobreviveu no trono de Judá du-

rante 55 anos, o reinado mais longo registrado entre
todos os reis davídicos, contudo ele também foi
julgado teologicamente como o pior deles. Talvez
a nota sutil de que Manassés foi sepultado “no
jardim de sua casa, o jardim de Uzá” (v. 18), em
vez de uma declaração explícita de que foi sepul­
tado com seus ancestrais na Cidade de David, seja
seu jeito mais severo de julgar Manassés. Antes de
mais nada, ser sepultado, e com os ancestrais, era
muito importante para os israelitas. Apesar do mal
de Manassés, seu filho se tomou rei em seu lugar;
um rei davídico permaneceu no trono enquanto
existiu a nação de Judá.
21,19-26 Reinado de Amon. Do tipo “tal pai,
tal filho”, Amon é condenado por fazer mal seme­
lhante ao que fizera seu pai. Entretanto, Amon cai
mais facilmente nas maldições que esse pecado
merece: seu reinado dura apenas dois anos; ele é
assassinado e sepultado, como seu pai, no jardim
de Uzá. A instabilidade do povo pode ser vista pelo
assassinato dos que assassinam. De qualquer modo
o filho de Amon, Josias, reina em seu lugar.
22,1-7 Reinado de Josias. Como Ezequias,
Josias merece comparação com David. Além dis­
so, assim como Joás restaurou o Templo depois do
reinado da malvada Ataliá, também Josias dispõe­
-se a fazer o mesmo (c f 2Rs 11-12).
22,8-2330 O livro da Lei. Josias está cuidando
da restauração do Templo, quando é encontrado o
livro da Lei. Quando ouve as palavTas ali contidas,
Josias julga seus pais pelos padrões do livro e teme
pelo futuro de Judá: a nação merece as maldições do
Senhor. Para melhor avaliar o possível impacto do
livro sobre Judá, ele o envia à profetisa Huldá, que
transmitirá o julgamento do Senhor. Ela pronuncia
uma palavra dupla: sim, Judá será castigado por sua
história de pecado; entretanto, por causa da angústia
de Josias com a palavra do Senhor, a nação não será
destruída antes da morte do rei (compare 1Rs 21,29).
A leitura do livro da Lei na presença de todo
o povo lembra a ordem de Moisés para que tal lei­
tura fosse feita (Dt 31,9-13). A cerimônia de reno­
vação da aliança lembra Js 24,25-27 e 2Rs 11,17-20.
A cerimônia da aliança e a proclamação da Lei sim­
bolizam a renovação do compromisso de Israel com
o S enhor.
A purificação do Templo por Josias é tão ampla
quanto sua profanação por Manassés. Também é
feito um comentário específico quanto à remoção
de todos os restos idolátricos deixados pelos reina­
dos de Salomão, Acaz e Manassés em Judá e até
por Jeroboão em Israel. De fato, Josias cumpre a
palavra que o profeta pronunciou a seu respeito em
IRs 13,2. Além disso, a celebração da Páscoa —
uma volta às raízes da nação — é aqui restabele­
cida (cf Ex 12; Nm 9; Dt 16; Js 5).
Como o teólogo deuteronomista concilia o bem
realizado por Josias em Judá com a queda iminen­
2 REIS 24
te da nação para a Babilônia? Ele repete a conde­
nação profética de Manassés (cf 2Rs 21,10-15),
lembrando o leitor das maldições que Judá sofreria
por negligenciar a aliança (2Rs 22,16). E Josias
morre antes da queda da nação.
Josias morre na batalha de Meguido (609 a.C.).
Judá se alinha com a Babilônia contra uma coalizão
entre o Egito e a Assíria; assim, o rei morre nas
mãos do Egito. Esta verdade histórica não pode ser
negada, apesar do julgamento deuteronomista do
reinado de Josias. Entretanto, Josias é levado de
volta a Jerusalém para ser sepultado por seu filho
Joacaz, que reinou em seu lugar.
Muitos biblistas questionam se o livro da Lei foi
encontrado no Templo ou compilado pela primeira
vez naquela época, a partir de antigas leis. Também
questionam se Josias estabeleceu — novamente pela
primeira vez — ou restabeleceu a Páscoa. Para os
propósitos do presente comentário, basta saber que
há bons argumentos para apoiar ambas as posições.
23,31-35 Reinado de Joacaz. O julgamento
deuteronomista sobre Joacaz é muito simples: ele
faz o mal e por isso é castigado. O castigo é um rei­
nado de três meses, exílio no Egito e morte no exílio.
Seu sucessor, embora descendente de David, não é
seu filho e sim um dos filhos de Josias, seu meio
irmão. O poder do Egito sobre o rei de Judá é sim­
bolizado pela mudança de nome — de Eliaqim
para Joaquim; ele não deve ser considerado servo
da aliança davídica e do S enhor, mas do Egito. Faz
o que um vassalo deve fazer: recolhe tributo do povo
para aplacar o faraó Nekô.
23,36-24,7 Reinado de Joaquim. Com a de­
cisiva vitória da Babilônia sobre o Egito na batalha
de Karkemish (605 a.C.), o inimigo de Judá trocou
de nome. A ameaça que se chamava Egito-Assíria
era agora, decisivamente, a Babilônia. De fato, Judá
tomou-se vassalo da Babilônia.
A inútil tentativa de Joaquim de derrubar o
poder da Babilônia só podia terminar em desastre.
O historiador deuteronomista aproveita a oportuni­
dade para explicar a queda de Judá como realiza­
ção profética. O S enhor trocou de lado; agora, por
causa dos pecados de Manassés, Deus apóia todas
as nações que são contra Judá (c f 2Rs 21,10-15).
Contudo, apesar do mal de Joaquim, ele é da li­
nhagem de David; repousa com seus ancestrais e
seu filho loiakin reina em seu lugar.
24,8-17 Reinado de loiakin. A mãe de loiakin,
Nehushtá, é de Jerusalém. Ele faz o mal aos olhos
do S enhor. Seu reinado dura apenas três meses.
Isaías profetizara o exílio de loiakin na Babilônia,
junto com o exílio de outros e o confisco dos tesou­
ros do templo e do palácio (cf 2Rs 20,17-18). Mais
uma vez, a palavra do Senhor é eficiente. Quando
Nabucodonosor coloca o tio de loiakin no trono de
Judá como rei fantoche, muda seu nome, a mesma
coisa que o faraó Nekô fizera a Eliaqim e por ra- 291
 2 REIS 24
zões semelhantes. Mataniá (Sedecias) está sob total
controle babilônico.
24,18-25,21 Reinado de Sedecias. Como fize­
ra seu predecessor, Sedecias faz o mal aos olhos do
Senhor. De fato, durante algum tempo, age como
fantoche de Nabucodonosor, apesar do tratamento
severo de Judá pela Babilônia, mas depois se rebela.
Entretanto, Sedecias não é bastante forte para se
rebelar, nem militarmente (em uma perspectiva his­
tórica), nem por meio da fidelidade ao S enhor (em
uma perspectiva teológica). A conseqüência é, como
seria de esperar, o desastre. Sedecias é capturado e
tem os olhos vazados, seus filhos são degolados.
Além disso, Jerusalém é completamente devastada:
o Templo é demolido e incendiado, o mesmo acon­
tecendo com 0 palácio e outras grandes residências.
A muralha da cidade é destruída e outra onda de
pessoas é levada ao exílio. Além disso, os exilados
próximos ao rei são mortos.
25,22-26 Governo de Godolias. Segundo esse
testemunho, o representante de Nabucodonosor quer
paz em Judá e está disposto a tolerar os antigos
chefes das tropas e os cidadãos que permaneçam na
terra. Entre eles, está certo lishmael, que chefia uma
revolta; mas uma conquista é impossível. Como re­
sultado, os judaítas são forçados a fugir para o Egito,
porque mataram o governador babilônico e temem
a retaliação babilônica (compare Jr 40-44).
292
25,27-30 Libertação de loiakin. A concessão
de anistia por ocasião da investidura de um novo rei
era prática relativamente comum no antigo Oriente
Próximo e Médio. Por essa razão muita gente pensa
que a nota sobre a soltura de loiakin é historicamente
exata. Mas, mesmo assim, por que deveríam esses w.,
dos quais há uma duplicação no fim do livro de Jere­
mias, terminar a História Deuteronomista? Alguns
biblistas acreditam que a História foi escrita para
explicar por que Judá caiu. Outros afirmam que a
História é um chamado à fidelidade futura: aprender
com 0 passado para o futuro. Os que preferem a se­
gunda interpretação consideram esses vv. finais
abertos a um novo futuro. Sim, Judá fora destruído;
sim, o Templo fora incendiado; sim, a dinastia daví-
dica, como fora conhecida, estava no fim. Mas... o
rei não fora assassinado; a promessa davídica não
estava totalmente extinta. De fato, loiakin ganha um
assento mais elevado que os dos outros reis e come
todos os dias à mesa do rei babilônio. Uma referência
semelhante na História Deuteronomista deixa claro
que essa afirmação tem significado simbólico — seja
ou não historicamente verdadeira (veja 2Sm 9,7).
Acompanhando o registro inspirado da história
de Judá, veremos que a esperança existe sim, bem
depois do exílio, em um sucessor davídico. O evan­
gelho de Mateus, por exemplo, apressa-se a chamar
Jesus de “filho de David” (Mt 1,1).
 QUADRO GERAL DO
NASCIMENTO DA BÍBLIA