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Teologia Contemporânea 1

FACULDADE TEOLÓGICA IBETEL


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Teologia Contemporânea
Teologia Contemporânea 2
Teologia Contemporânea 3

Declaração de fé
A expressão “credo” vem da palavra latina, que apresenta a mesma grafia e cujo
significado é “eu creio”, expressão inicial do credo apostólico -, provavelmente, o mais
conhecido de todos os credos: “Creio em Deus Pai todo-poderoso...”. Esta expressão
veio a significar uma referência à declaração de fé, que sintetiza os principais pontos da
fé cristã, os quais são compartilhados por todos os cristãos. Por esse motivo, o termo
“credo” jamais é empregado em relação a declarações de fé que sejam associadas a
denominações específicas. Estas são geralmente chamadas de “confissões” (como a
Confissão Luterana de Augsburg ou a Confissão da Fé Reformada de Westminster). A
“confissão” pertence a uma denominação e inclui dogmas e ênfases especificamente
relacionados a ela; o “credo” pertence a toda a igreja cristã e inclui nada mais, nada
menos do que uma declaração de crenças, as quais todo cristão deveria ser capaz de
aceitar e observar. O “credo” veio a ser considerado como uma declaração concisa,
formal, universalmente aceita e autorizada dos principais pontos da fé cristã.

O Credo tem como objetivo sintetizar as doutrinas essenciais do cristianismo para


facilitar as confissões públicas, conservar a doutrina contra as heresias e manter a
unidade doutrinária. Encontramos no Novo Testamento algumas declarações
rudimentares de confissões fé: A confissão de Natanael (Jo 1.50); a confissão de Pedro
(Mt 16.16; Jo 6.68); a confissão de Tomé (Jo 20.28); a confissão do Eunuco (At 8.37);
e artigos elementares de fé (Hb 6.1-2).

A Faculdade Teológica IBETEL professa o seguinte Credo alicerçado


fundamentalmente no que se segue:

(a) Crê em um só Deus eternamente subsistente em três pessoas: o Pai, o Filho e o


Espírito Santo (Dt 6.4; Mt 28.19; Mc 12.29).

(b) Na inspiração verbal da Bíblia Sagrada, única regra infalível de fé normativa


para a vida e o caráter cristão (2Tm 3.14-17).

(c) No nascimento virginal de Jesus, em sua morte vicária e expiatória, em sua


ressurreição corporal dentre os mortos e sua ascensão vitoriosa aos céus (Is 7.14;
Rm 8.34; At 1.9).

(d) Na pecaminosidade do homem que o destituiu da glória de Deus, e que


somente o arrependimento e a fé na obra expiatória e redentora de Jesus Cristo
Teologia Contemporânea 4

é que o pode restaurar a Deus (Rm 3.23; At 3.19).


(e) Na necessidade absoluta no novo nascimento pela fé em Cristo e pelo poder
atuante do Espírito Santo e da Palavra de Deus, para tornar o homem digno do
reino dos céus (Jo 3.3-8).

(f) No perdão dos pecados, na salvação presente e perfeita e na eterna justificação


da alma recebidos gratuitamente na fé no sacrifício efetuado por Jesus Cristo em
nosso favor (At 10.43; Rm 10.13; 3.24-26; Hb 7.25; 5.9).

(g) No batismo bíblico efetuado por imersão do corpo inteiro uma só vez em águas,
em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, conforme determinou o Senhor
Jesus Cristo (Mt 28.19; Rm 6.1-6; Cl 2.12).

(h) Na necessidade e na possibilidade que temos de viver vida santa mediante a


obra expiatória e redentora de Jesus no Calvário, através do poder regenerador,
inspirador e santificador do Espírito Santo, que nos capacita a viver como fiéis
testemunhas do poder de Jesus Cristo (Hb 9.14; 1Pe 1.15).

(i) No batismo bíblico com o Espírito Santo que nos é dado por Deus mediante a
intercessão de Cristo, com a evidência inicial de falar em outras línguas,
conforme a sua vontade (At 1.5; 2.4; 10.44-46; 19.1-7).

(j) Na atualidade dos dons espirituais distribuídos pelo Espírito Santo à Igreja para
sua edificação conforme a sua soberana vontade (1Co 12.1-12).

(k) Na segunda vinda premilenar de Cristo em duas fases distintas. Primeira -


invisível ao mundo, para arrebatar a sua Igreja fiel da terra, antes da grande
tribulação; Segunda - visível e corporal, com sua Igreja glorificada, para reinar
sobre o mundo durante mil anos (1Ts 4.16.17; 1Co 15.51-54; Ap 20.4; Zc
14.5; Jd 14).

(l) Que todos os cristãos comparecerão ante ao tribunal de Cristo para receber a
recompensa dos seus feitos em favor da causa de Cristo, na terra (2Co 5.10).

(m) No juízo vindouro que recompensará os fiéis e condenará os infiéis, (Ap 20.11-
15).

(n) E na vida eterna de gozo e felicidade para os fiéis e de tristeza e tormento eterno
para os infiéis (Mt 25.46).
Teologia Contemporânea 5

Sumário
Declaração de fé 3

CAPÍTULO 1 – TEOLOGIA CONTEMPORÂNEA 11


Introdução 11
1. Antecedentes da Teologia Contemporânea 12
1.1. Reformadores 13
1.2. Escolástica protestante: Aristotelismo 15
1.3. Racionalismo 16
1.4. Deísmo 17
1.5. O Iluminismo 19

CAPÍTULO 2 - MODERNISMO – TEOLOGIA LIBERAL 23


1. O Início da Teologia Moderna 23
2. Idealismo Transcendental - Immanuel Kant 24
2.1. A influência de Immanuel Kant na Teologia 25
2.2. A autonomia preconizada por Kant 26
2.3. As ideias deístas e sua influencia na teologia contemporânea 26
2.4. Uma separação radical entre história e fé 26
3. Teologia do Sentimento - Schleiermacher 27
3.1. A Religião como Sentimento 28
3.2. A Dependência Total de Deus 29
3.3. Os Distintos Níveis de Consciência 30
3.4. Os Reflexos da Filosofia de Schleiermacher Sobre sua Teologia 31
4. Teologia Especulativa ou Dialética - Hegel 33
4.1. O Pensamento 34
4.2. A Dialética 36
4.3. Deus como fundamento da religião 36
4.4. Como Hegel relaciona religião e filosofia? 37
5. A Teologia dos Valores Morais – Ritschl 40
6. Harnack 41

CAPÍTULO 3 – HISTÓRIA DO CRISTICISMO BÍBLICO 43


1. Os principais teólogos desse período 43
1.1. G. E. Lessing 43
1.2. Ferdinand C. Baur 44
1.3. David Friedrich Strauss 44
1.4. Johann Salomo Semler 45
1.5. F.C. Baur e Julius Welhausen 45
1.6. Teoria Graf-Wellhausen 46
1.7. Johann Gottfried Eichhorn 47
Teologia Contemporânea 6

1.8. H.E.G. Paulus 47


1.9. Frederick Schleiermacher 48
1.10. Wilhelm Wette 48
2. A Teoria Documentária 48
3. O Método Histórico-Crítico Hoje 50
3.1. Objeção quanto à premissa crítica 50
3.2. Objeção quanto à concepção de história 50
3.3. Objeção quanto ao efeito do método 51
4. Crítica Textual e Alta Crítica 51

CAPÍTULO 4 – TEOLOGIA E XISTENCIALISTA 53


1. Conceito 53
2. Relação com a religião 54
3. Fé cristã e existencialismo 54
4. Filósofos que mais influenciaram o existencialismo 55
4.1. Soren Kierkegaard 56
4.2. Friedrich Nietzsche 60

CAPÍTULO 5 – TEOLOGIA DIALÉTICA – NEO ORTODOXA 67


1. Karl Barth e a revolta contra o Liberalismo Teológico 67
1.1. Objeções à teologia dialética de Karl Barth 71
2. Neo-ortodoxia 72
2.1. Emil Brunner 72
2.2. Objeções à neo-ortodoxia 75
3. Revista Teológica Zwischen den Zeiten 77

CAPÍTULO 6 - A TEOLOGIA EXISTENCIALISTA DE RUDOLF BULTMANN 79


1. Bultmann 79
1.1. Um Ponto Crítico 82
1.2. Objeções à doutrina de Bultmann 83

CAPÍTULO 7 – TEOLOGIA DO SER DE PAUL TILLICH


ILLICH 87
1. Teologia do Ser 87
2. Objeções à teologia de Paul Tillich 89

CAPÍTULO 8 - TEOLOGIA SECULAR, COX E BUREN 91


1. Teologia Secular, Cox e Buren 91
2. A Cidade Secular - Harvey Cox 92
3. A postura da teologia secular 92
3.1. Dietrich Bonhoeffer 93
4. O século XX foi o século da morte de Deus 94
4.1. Deus, uma hipótese descartável 94
4.2. O agnosticismo e a humanização de Cristo 94
Teologia Contemporânea 7

4.3. Deus é alienação 95


4.4. Darwin e o desencantamento do mundo 95
4.5. Não é Deus quem pune, é o bacilo 96
4.6. Totem, metáfora primitiva da divindade 96
4.7. Deus foi assassinado 96
5. Avaliação da teologia secular 99

CAPÍTULO 9 – A TEOLOGIA DA ESPERANÇA E DA HISTÓRIA 101


1. Teologia da Esperança – Jurgen Moltmann 101
1.1. Objeções à Teologia da Esperança 103
2. Teologia da História – Wolfhart Pannemberg 104
2.1. A questão da fé relacionada à história 105
2.2. O conceito de revelação e fé em Pannenberg 105

CAPÍTULO 10 – TEOLOGIA DA E VOLUÇÃO DE TEILHARD DE CHARDIN 107


1. Conhecendo a Proposta Teológica de Teilhard de Chardin 107
2. Principais Objeções a Teologia Evolucionista de Chardin 109

CAPÍTULO 11 – TEOLOGIA DO PROCESSO 111


1. Pressuposições da Teologia do Processo 111
2. Objeções à teologia do processo 112

CAPÍTULO 12 – TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO 115


1. Contextualizando a teologia da libertação 115
2. Teologia da Libertação 116
3. Principal erro da Teologia da Libertação 118

CAPÍTULO 13 – AUTORIDADE E RESPONSABILIDADE 121


1. O atributo mais importante de Deus é o amor 121
2. Deus não é soberano 122
3. Deus ignora o futuro, pois ele vive no tempo, e não fora dele 122
4. Deus se arrisca 122
5. Deus é vulnerável 122
6. Deus muda 122

CAPÍTULO 14 – A TEOLOGIA DA PROSPERIDADE 125


1. O Que Não é a Verdadeira Prosperidade 129
2. O Que é a Verdadeira Prosperidade 130
2.1. A verdadeira prosperidade é ter a Deus como bem maior 130
2.2. A verdadeira prosperidade é possuir riquezas espirituais 131
2.3. A verdadeira prosperidade é possuir riquezas eternas 131
3. Advertências Bíblicas Sobre as Riquezas Terrenas 131
4. Como Obter a Verdadeira Prosperidade 132
Teologia Contemporânea 8

CAPÍTULO 15 - A TEOLOGIA NEGRA 133


1. Definição da Teologia Negra 133
2. O Pano De Fundo Histórico Para a Teologia Negra 133
2.1. Os Duzentos Anos da Escravidão Racista (1600-1865) 134
2.2. Cem Anos do Racismo Institucionalizado (1860-1960) 134
3. Fatores Que Contribuíram Para o Surgimento da Teologia Negra 134
3.1. O Movimento dos Direitos Civis (nas décadas dos 50 e 60) 135
3.2. O Livro “Religião Negra” de Joseph Washington (1964) 135
3.3. O Movimento “Poder Negro” 135
4. A Defesa Acadêmica da Teologia Negra 136

CAPÍTULO 16 - TEOLOGIA AFRICANA 137


1. Jesus, o Irmão Mais Velho 137
2. Jesus, o Antepassado 138
3. Jesus, o Grande Chefe 139
4. Jesus, Aquele que Cura 140
5. Jesus, o Libertador 141

CAPÍTULO 17 - PENTECOSTALISMO 143


1. Historicidade do Pentecostalismo 143
2. Os principais pressupostos da doutrina pentecostal 145
3. Razões que contribuíram para crescimento do Movimento Pentecostal 147
4. Objeções à doutrina pentecostal 147

CAPÍTULO 18 – TEOLOGIA - NEOPENTECOSTALISMO 149


1. Introdução 149
2. História do Movimento Neopentecostal 149
3. Pressuposições da Doutrina da Prosperidade 150
4. Objeções ao Neopentecostalismo 151
5. Conclusão 152

REFERÊNCIAS 153
Teologia Contemporânea 9
Teologia Contemporânea 10
Teologia Contemporânea 11

Capítulo 1

Teologia Contemporânea
Introdução

A Teologia Contemporânea é a teologia do Século XX. Em sentido real,


nasceu em 1919. Seu iniciador foi um jovem pastor, Karl Barth (1886-1968). É
ele um novo pivô teológico na história, o anúncio de uma nova era teológica,
considerando como marca o seu Comentário da Carta de Paulo aos Romanos,
em 1919.

Em termos concretos, a Teologia Contemporânea trata do estudo acerca


da teologia mais particularmente do Século XX. Esse século esteve
comprometido com uma pluralidade de “teologias”, de caminhos e de muitas
reflexões sobre o mundo, sobre Deus e o homem.

De início, há a necessidade de uma passagem reflexiva pelo período


medieval, ainda que de modo conciso, no que tange aos debates teológicos e seus
grandes expoentes. Depois, em evidência, a Reforma Religiosa com suas
propostas renovadoras, não no sentido de se estabelecer novas doutrinas, mas de
reaver a natureza e sentido da Bíblia como padrão de fé e prática da Igreja. Sobre
a salvação e o papel da Igreja, se constituem algo de extrema importância nesse
cenário, respectivamente. Entretanto, o que era para ser renovado, transformou-
se numa divisão de segmentos eclesiais, fazendo surgir posturas diversas em
relação a vários pontos doutrinários.

Antes de se refletir sobre a teologia do Século XX, é imprescindível


verificar que a Teologia Contemporânea tem suas bases assentadas no Século
XIX. Immanuel Kant sistematizou a confiança do homem moderno na
capacidade da razão para tratar de todo o material em sua capacidade e em sua
incapacidade para ocupar-se do que vai mais além. Assim, um novo conjunto de
pressupostos religiosos moldou o pensamento do homem moderno.
Teologia Contemporânea 12

O Iluminismo qualificou os séculos XVII e XVIII, constituindo a história


intelectual do Ocidente. Enquanto a cosmologia da Idade Média era percebida
como um sistema orgânico, na modernidade tudo passou a ser relativo,
fragmentado. A era da razão toma corpo, de modo que o homem passou a ser
visto como o centro do universo. Deus já não era mais visto como o autor da
criação, e se era, não interviria nela; a religião não mais doutrinava a vida
humana, mas a produção científica.

1. Antecedentes da Teologia Contemporânea

Não se pretende, à exaustão, escrever uma história da Teologia


Contemporânea. Mas, apresentar brevemente um panorama histórico dos
antecedentes da Teologia do Século XX, com perspectivas à Teologia atual.
Assim, tem-se por objetivo compreender alguns fatores dos antecedentes
histórico–filosóficos que deram origens ao que chamamos de Teologias
Contemporâneas.

Por Teologia Contemporânea quer-se dizer da Teologia ou Teologias


surgidas no início do século XX, precisamente em 1919, na Suíça, com Karl
Barth e sua obra Der Römerbrief [Cartas aos Romanos – 1919] (CONN, p. 4).
Mas há um curso até chegar o motivo da publicação de Barth; deve-se
compreender isto para poder se entender a Teologia do Século XX, ou seja, as
Teologias que temos hoje são frutos colhidos de sementes plantadas antes de
1919. Possuem suas bases fundamentadas em Imannuel Kant, Hegel, Sorem
Kickgaard, Friedrich Schleiermacher, Martin Heidegger, Friedrich Nietzche,
Karl Marx e outros.

No mundo cristão, a partir do final do século 16, a filosofia, que era


considerada serva da teologia, se expandiu para além dos limites do pensamento
aristotélico e da Bíblia – em parte devido à ciência natural e em parte fruto de
reflexões de pensadores como René Descartes (1596-1650). O progresso da
ciência, especialmente devido à obra de Isaac Newton (1642-1727), a partir da
publicação, em 1687, de seus Principia Mathematica (Princípios de Matemática),
fez com que muitos homens se convencessem do poder da razão e da necessidade
de todas as coisas serem testadas por ela, inclusive aquelas relacionadas à área da
consciência ou do espírito, que, até então, se pensava serem inacessíveis à razão.
Teologia Contemporânea 13

1.1. Reformadores

Da Reforma Religiosa do Século XVI até o período conhecido como


Iluminismo abrange trezentos anos. Os Séculos XVI, XVII e XVIII foram o
berço do pensamento moderno (BROWN, 1999, p. 31). Os Reformados
(Lutero, Calvino e Zwínglio) representam a fina flor do pensamento teológico
sistematizado. Isto faz com que as obras dos Reformadores sejam tidas
primeiramente como fontes para o estudo da fé cristã (MONDIN, 1980, p. 5,
6).

A redescoberta de Deus na Reforma foi uma virada teológica, pois Deus


deixa de ser objeto de especulação e do Credo e passa a ser visto como Aquele
com que os homens podem se relacionar, que entrou na vida humana e fala
através das Escrituras (BROWN, 1999, p. 31). Tal descoberta incentivou mais o
interesse no mundo em geral como já havia iniciado na Renascença (XIV). O
mundo passou a ser visto como Criação de Deus a qual deveria ser explorado,
rejeitando, assim, a teologia natural. “Para muitos, isto significava que podiam
parar de olhar para a natureza em busca de provas de uma realidade além dela;
podiam estudá-la e apreciá-la por amor a si mesma como criação de Deus”
(idem, p. 32).

O resultado desta nova investigação gerou novas perguntas filosóficas,


principalmente aquelas voltadas para explicações naturais do universo criado.
Cada vez mais os filósofos que surgiam tendiam ou ao Deísmo ou ao Ateísmo.
Com um Universo tão natural as pessoas vieram a pensar que a ciência poderia
explicar tudo em termos de causas naturais. Cada vez mais o Deus descoberto
pelos Reformadores passava à margem do pensamento filosófico, sendo
empurrado para fora, pois o homem estava cada vez mais racional.

Lutero havia rompido com a Teologia Escolástica da Idade Média,


chegando a proferir sermões contra a Razão. Não a Razão per si, a quem Lutero
chamava de “Prostituta do Diabo”. A crítica de Lutero era quanto ao fato de se
depender totalmente de Aristóteles (filosofia aristotélica) para compreensão das
Escrituras. Para ele “tudo devia ser examinado à luz da Palavra de Deus na
Escritura [...] a filosofia fez com que a Bíblia fosse irrelevante, e a razão tomou
para si o lugar da revelação” (idem, p. 33, 35). Lutero considerava que a Razão
Teologia Contemporânea 14

era útil para julgar e discernir os assuntos da sociedade e do governo, não


podendo ultrapassar o nível “mundano” (GEORGE, 1993, p. 60). A Razão, para
servir à fé precisava ser iluminada pelo Espírito Santo, ou seja, a mente devia ser
cativa à Palavra de Deus: “A menos que eu seja condenado pelas Escrituras e pela
razão simples, não posso e não irei me retratar”. Note, portanto, que Lutero
critica a Razão autônoma, a que tira a primazia da Revelação. Assim conclui
Brown: “A razão tinha seu legítimo lugar na ciência e nas questões de todos os
dias. Tinha sua função verdadeira em entender e avaliar aquilo que era colocada
diante dela. Mas não era o único critério da verdade”. Desta forma podia dizer
Lutero: “É perigoso desejar investigar e aprender a pura divindade pela razão
humana sem Cristo o mediador, conforme têm feito os sofistas e os monges,
além de ensinarem os outros a fazer assim. A nós foi dado o Verbo encarnado,
que foi colocado na manjedoura e pendurado no Madeiro. Este Verbo é a
Sabedoria e o Filho do Pai, e Ele nos declarou qual é a vontade do Pai para
conosco. Aquele que deixa este Filho, para seguir seus próprios pensamentos e
especulações, é esmagado pela majestade de Deus”.

Zwínglio também teve um passado ligado ao Humanismo Erasmiano. O


seu desenvolvimento intelectual treinado nas disciplinas humanistas o fazia
aberto à filosofia e à razão (GEORGE, 1993, p. 112, 113). Mesmo assim,
desejava ser guiado pelas Escrituras: “dirigido pela Palavra e pelo Espírito de
Deus, vi a necessidade de deixar de lado todos esses [ensinamentos humanos] e
aprender a doutrina de Deus diretamente de sua própria Palavra”. Sua formação
na Humanidade e inclinação ao racionalismo foi vista como um precursor da
Teologia Liberal, mas é certo que não é assim, pois, fundamentava sua Teologia
não apenas sobre o sola scriptura, mas também sobre o tota scriptura. A
Escolástica Tomista, fundamentada no Aristotelismo, também teve influência
sobre Zwínglio. A Razão era tão forte em Zwínglio que o mesmo aceitou a
possibilidade de Pagãos serem eleitos e não pertencerem à Igreja Visível. Isto foi a
consequência lógica de sua exposição da doutrina da eleição (idem, p. 124, 125).
O único caminho de salvação estava em Cristo e “dependia da livre decisão de
Deus para escolher quem ele deseja”. O mesmo pode ser dito de seu colóquio em
torno da Ceia do Senhor, que, segundo Zwínglio, era apenas um memorial,
discordando tanto de Roma como de Lutero. O certo é, a despeito disso, ver em
Zwínglio um Reformador temente a Deus e que, à semelhança de Lutero,
procurava ter sua mente cativa à Palavra de Deus.
Teologia Contemporânea 15

Calvino, o Grande Reformador, teve uma abordagem mais sistemática na


Teologia e no papel da Filosofia. Segundo Calvino, não obstante as provas
escolásticas da existência de Deus, o homem possui a plena consciência de Deus.
O subtítulo de um dos capítulos das Institutas (Livro I) é “A Mente Humana é
naturalmente imbuída com o Conhecimento de Deus”. Mas a revelação de
Deus, que o mostra como Criador e Redentor em Cristo, só é encontrada nas
Escrituras. Em seus estudos no Collège de Montaigu, Calvino ocupou-se, antes
de sua conversão, com os estudos humanistas. Timothy George diz que nesta
escola, enquanto os amigos de Calvino se divertiam, ele “ocupava-se das
minúcias da lógica nominalista ou das questiones da teologia escolástica” (idem,
p. 170). Mesmo assim, Calvino repudiou o método escolástico de se fazer
teologia (idem, p. 170) comparando-a a “um tipo de magia esotérica”. Nota-se,
que semelhante a Lutero, que Calvino, mesmo sendo influenciado pelo
Humanismo, busca formular a sua Teologia a partir das Escrituras. Não era a
Filosofia o fundamento, mas a Teologia Bíblica. Devia-se “Crer a fim de
Entender” (credo ut intellego - Anselmo). Deus e Sua Palavra não eram questão
apenas de demonstração lógica, mas de vivê-los.

1.2. Escolástica protestante: Aristotelismo

Melanchthon buscou corrigir a má impressão que havia na Filosofia


Aristotélica admitindo que o erro estava nos editores e comentaristas. O
Aristotelismo era indispensável para a Teologia tanto na metodologia como no
conteúdo, segundo Melanchthon (MONDIN, 1980, p. 6). A Escolástica
Protestante se deu no século XVII onde os teólogos protestantes sistematizam
suas doutrinas e buscam defender a fé dos ataques dos teólogos romanos. “O
impulso original se enfraquece ao se propagar; a paixão viva se petrifica em
códigos e credos; a revelação torna-se lugar comum. E assim a religião que
começou em visão termina em ortodoxia” (MACKINTOSH, 1964, p. 19). A
atitude desta época é o rigor teológico e os amplos sistemas dogmáticos (idem, p.
19). As Escrituras passam a ser “texto-prova” (dicta probantia) das Doutrinas;
passa-se a reconhecer “a aptidão da razão a conhecer Deus e receber a Revelação”
(MONDIN, 1980, p. 7). A proposta é não deixar qualquer tema sem uma
abordagem intelectual fundamentada na Teologia Natural.
Teologia Contemporânea 16

1.3. Racionalismo

Dentro do Século XVIII surgiram movimentos que influenciaram o


Século XX, tanto na Teologia como na Filosofia. Esses movimentos foram o
Racionalismo, o Iluminismo e o Pietismo. O Racionalismo se relaciona com o
Iluminismo, e deixou marcas profundas na Religião, na Filosofia e na Ciência
(MACKINTOSH, 1964, p. 23).

O Racionalismo foi o movimento que surgiu já no Século XVII e que


deu impulso e fundamentos para o Iluminismo (XVIII). Tinha como
fundamento o fato de que a Razão era apta para julgar todas as coisas, visto que
no universo havia racionalidade, isto é, uma mente racional (BROWN, 1999, p.
37). Isto já mostra que os primeiros Racionalistas do século XVII não eram tão
ateus. Defendiam “o emprego certo da razão” para se examinar o mundo criado
por Deus. Diz Colin Brown que eles “não eram homens sem religião” (1999, p.
38). William Horden confirma tal proposição ao apresentar a proposta de John
Locke de não haver tolerância com os Ateus por estes se constituírem ameaças à
estrutura da civilização ocidental (1979, p. 45). Havia espaço, pouco ou muito,
para Deus em seus pensamentos, mas este espaço era apenas uma forma de
aguçar a curiosidade deles pela “estrutura racional do universo”.

René Descartes (1596 - 1650), considerado “o pioneiro do


Racionalismo”, defendia o uso da razão apenas na ciência e na metafísica, crendo
que assuntos como a política e a religião não estivessem ao alcance da razão. Seu
método de investigação através da dúvida deu origem ao “racionalismo
cartesiano”. O princípio de Descartes era “nunca aceitar qualquer coisa como
verdadeira a não ser que a conhecesse claramente como tal”. Sua principal obra
foi Discurso do Método (1637). Seu método da dúvida o levou a questionar
mesmo a existência do mundo, concedendo a possibilidade de que tudo na sua
mente fossem apenas sonhos e ilusões. Para sua resposta ele lançou mão de três
teses:

(a) Poderia duvidar de tudo, menos de que estivesse duvidando. Isto o leva
ao seu famoso cogito ergo sum (Penso, logo existo!);

(b) Deus também existe. Isto Descartes o fez através dos argumentos causal e
ontológico. Se a ideia do finito subentende a existência de um ser
Teologia Contemporânea 17

infinito, a ideia do ser Perfeito subentendia a existência Dele;

(c) A realidade existe. Assim, Descartes entendia que, se Deus existe e é


Perfeito ele não nos enganaria colocando ideias falsas em nossas mentes.
O que se percebe em Descarte é um estabelecimento da consciência
individual como o juízo final da verdade. Isto o contrasta com Lutero,
cuja Razão estava cativa à Palavra de Deus.

Deve-se entender que o Racionalismo lançou a base para o Iluminismo.


O Racionalismo Escolástico deu impulso ao Racionalismo Iluminista à medida
que aquele colocava mais e mais a Razão como apta a julgar todas as coisas.
Enquanto o primeiro preservou a autoridade da Revelação Bíblica (MONDIN,
1980, p. 7) este submeteu a Revelação Bíblica também à Razão. Enquanto, por
exemplo, o filósofo protestante Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 – 1716)
procurava estabelecer uma harmonização sistemática entre a fé e a razão, outros
como em Baruch Spinoza (1633 – 77), ‘livre – pensador’, o Racionalismo obteve
sua expressão exponencial sistematizada, sendo ele um “pioneiro na crítica
bíblica” (BROWN, 1999, p. 40).

David Hume (1711 – 76) também levou ao extremo o pressuposto


Racionalista, empregando “a razão até aos limites para demonstrar as limitações
da razão” (idem, p. 48). Publicou um livro que criticava a ideia de Milagres,
dizendo ser impossível acontecer algum, pois, contradiziam as leis da natureza.
Seu ataque à Religião veio através de sua The Natural History of Religion
discursando sobre a “origem evolucionária da religião”. Para ele, os atributos dos
deuses e deusas do passado foram unidos para formar uma só divindade. Deus
foi ficando cada vez mais à margem dos discursos.

1.4. Deísmo

O Racionalismo deu origem aos Deístas que acreditavam que Deus


apenas tratava este mundo como um proprietário. Ora, se tudo era possível
explicar através da Razão, por meio das Causas Naturais, implicava que Deus não
mais interferia neste Mundo. Então pergunta-se: Para que Deus e para que a
Religião? Eis o ápice do Racionalismo, o Iluminismo, tema do próximo tópico.
Teologia Contemporânea 18

O Deísmo teve início na Inglaterra na primeira metade do século 17, no


seio de um grupo de escritores de tendência racionalista, alguns dos quais
discípulos de John Locke. Foi um movimento de curta duração, que em meados
do século 18 já havia perdido a sua força original. Contudo, foi o estopim de
outros movimentos de reação à ortodoxia protestante, em especial na França,
Alemanha e Estados Unidos. Dentre os deístas ingleses destaca-se, especialmente,
John Toland (1670-1722), defensor do princípio da lei natural.

Toland defendia a ideia de que ―a doutrina cristã nunca foi misteriosa e


devia ser entendida somente como uma réplica da religião natural.

O movimento deísta surgiu como uma reação à ideia de que o


conhecimento teológico somente poderia ser adquirido através do ensino da
Igreja ou da revelação pessoal de Deus, por intermédio do Espírito Santo, sob a
alegação de que há uma religião natural, um conhecimento religioso inato em
todas as pessoas, ou que pode ser obtido pelo uso da razão. Seu propósito era
estabelecer uma religião ao mesmo tempo natural e científica.

Dentre os princípios que balizavam o Deísmo, destaca-se a crença num


Deus transcendente, que está acima e além da sua criação, sendo a causa
primeira. Tudo é regido por leis naturais, não havendo lugar, portanto, para
revelação bíblica, milagres, providência e encarnação. Deus não se envolve mais
com o mundo que ele mesmo criou. Cristo foi apenas um mestre e, como tal,
não deveria ser cultuado. Os deístas criam também que a ética e a piedade eram
as virtudes que necessitavam ser desenvolvidas, como culto perene a Deus, sendo
a Bíblia um manual eminentemente ético.

Para corroborar o que foi dito resumidamente sobre os princípios do


Deísmo, podem ser retiradas cinco ideias básicas da obra de Matthew Tindal
(1657-1733), Christianity as Old as the Creation (O Cristianismo é tão Antigo
quanto a Criação, 1730), considerada por alguns historiadores como a Bíblia
deísta:

(a) tudo que é reconhecido além e acima da razão é crença sem prova;

(b) os piores inimigos da humanidade são os que têm mantido as criaturas na


superstição: os sacerdotes, por exemplo;
Teologia Contemporânea 19

(c) tudo o que é de valor na revelação já foi dado aos homens na religião
natural racional, daí o cristianismo ser tão antigo quanto a criação;

(d) tudo o que é obscuro, ou está acima da razão, na assim chamada


revelação, é superstição e não tem valor;

(e) os milagres não são prova real da revelação, pois, ou são supérfluos,
explicados à luz da razão, ou são um insulto à perfeita obra de um
Criador, que pôs este mundo a girar segundo as mais perfeitas leis
mecânicas e não interfere no seu funcionamento.

Os deístas, em síntese, substituíram a revelação pela razão e pelos


sentidos, mudando o foco da teologia de Deus para o homem, ou seja,
preocuparam-se mais com o sujeito conhecedor, do que com a realidade a ser
conhecida. Em seu afã de valorizar o homem, desvalorizaram o pecado. O legado
do Deísmo não foi, contudo, totalmente negativo, posto que o cultivo da ética e
da piedade estimulou, de alguma forma, o empenho dos cristãos em atividades
humanitárias e em uma maior tolerância religiosa.

O Deísmo não ficou restrito à Inglaterra, mas migrou para a França, a


Alemanha e especialmente as colônias inglesas na América, que, em 1776,
obtiveram sua independência, como Estados Unidos da América. Dentre os
líderes do movimento de independência, alguns eram declaradamente deístas,
como Benjamin Franklin (1706-1790), Thomas Jefferson (1743-1826) e
Thomas Paine (1737-1809). Este último, com seu livro Age of Reason (Idade da
Razão, 1794-1796), popularizou as ideias deístas em seu país.

1.5. O Iluminismo

Iluminismo é o nome do movimento cultural, social e religioso que se


desenvolveu na Europa no período que vai da Revolução Inglesa (1688) até a
Revolução Francesa (1789), ou seja, cerca de 100 anos.

O objetivo do movimento era iluminar o povo, mediante a razão, contra


o obscurantismo da história, da tradição e da sociedade política e religiosa. O
alvo era o homem no estado de pura natureza, que devia ser restaurado. Sua
Teologia Contemporânea 20

fonte principal foi o racionalismo, que forneceu ao iluminismo o método crítico


que utilizou com habilidade.

O iluminismo teve origem na Inglaterra, daí passando para a França,


Itália e Alemanha. Locke desenvolveu o Deísmo inglês como uma religião
natural e racional dos livres pensadores. No campo da ética, Locke defendeu a
moral natural, racional e autônoma.

O pleno desenvolvimento do iluminismo ocorreu na França, onde houve


o culto da razão, ou seja, a razão humana passou a dominar acima de tudo e de
todos. Essa postura enfaticamente racional gerou uma forte oposição a todas as
atividades e instituições que não fossem meramente racionais, como a Igreja. A
Revolução Francesa, considerada o maior movimento social dos tempos
modernos, foi altamente influenciada pelo iluminismo e colocou em dúvida os
dogmas da religião cristã, em especial a ingerência da Igreja nas coisas do Estado.

Dentre os principais iluministas franceses destacaram-se, inicialmente,


Jean D‘Alembert (1717-1783) e Denis Diderot (1713-1784), responsáveis pela
editoração da Enciclopédia, que foi um poderoso instrumento para a difusão das
ideias iluministas, não só na França, mas em outros países. Outra figura de
destaque foi François-Marie Arouet (1694-1778), mais conhecido como
Voltaire, colaborador da Enciclopédia e autor de vários tratados na área da
filosofia. Voltaire professava um teísmo baseado na ordem e na realidade do
mundo, e pregava a tolerância para todas as religiões, exceto para a oficial,
imposta. Não menos importante que Voltaire foi Jean-Jacques Rousseau (1712-
1778), autor do Contrato Social, que tanto influenciou os chamados Pais
Fundadores da Independência Americana. Rousseau repudiou a doutrina cristã
da queda, afirmando: Todo homem é nobre por natureza. Ele nasceu livre, mas
em todos os lugares se acha em cadeias. Sua escravidão deve-se à corrupção da
sociedade, para a qual a religião deve arcar com boa dose da culpa [...] Assim, as
crianças devem ser criadas fora da influência danosa da Igreja. O fundador do
iluminismo na Alemanha foi Christian Wolff, responsável pela divulgação do
racionalismo de Leibniz. Foi no Sacro Império Germânico que a teologia
iluminista alcançou o seu maior desenvolvimento, em especial o Deísmo de
Locke, através das obras de Hermann Reimarus (1694-1768) e Moses
Mendelssohn (1729-1786).
Teologia Contemporânea 21

Reimarus é considerado o precursor, no âmbito da teologia histórica, do


tema do Jesus Histórico, através do livro Apologie oder Schutzschrift fur die
vernunftigen Verehrer Gottes (Apologia dos Adoradores Racionais de Deus), no
qual retratou Jesus como um pregador simples da Galiléia, cujo ensinamento
moral se misturou com a política e a escatologia, e que morreu desiludido, tendo
procurado em vão estabelecer o reino de Deus na Terra. Disse ainda que o
cristianismo se baseia nas alegações fraudulentas da ressurreição e da segunda
vinda de Cristo, que os discípulos teriam inventado depois da morte de Jesus.

Para Reimarus, os livros da Bíblia deveriam ser lidos e estudados como


todos os outros livros. Consequentemente, a história da vida de Jesus deveria
passar pelo crivo da razão, segundo o qual todos os fatos e circunstâncias estariam
obrigados a ser considerados exclusivamente à luz da evidência dos Evangelhos.
Essa atitude se tornou típica do iluminismo teológico, que foi, portanto,
responsável pelo novo tratamento dado pelos historiadores e teólogos a detalhes
da vida de Jesus, inclusive verificando aspectos ligados à credibilidade dos escritos
evangélicos.

Muitos estudiosos consideram que o maior expoente do iluminismo


alemão foi Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), autor de Die Erziehung des
Menschengeschlechts (A Educação do Gênero Humano, 1780). Essa obra
expressa a sua crença na perfeição da raça humana e na perspectiva do
desenvolvimento de uma consciência moral que poderia conduzir a humanidade
a um estágio nunca atingido de irmandade universal e liberdade moral, superior
a todos os dogmas e doutrinas. Para Lessing, ―a cultura, a ciência, a verdade não
é uma posse, e sim uma perene investigação, segundo uma concepção
historicista, a que se submete também a religião, inclusive o cristianismo. Ele
ainda considerava que as principais religiões eram expressões diferentes da única
religião verdadeira, cujo papel é fornecer uma educação moral para a raça
humana, ensinando todos os homens a viverem como irmãos.

O iluminismo exerceu significativa influência, embora negativa, sobre o


cristianismo de um modo geral, mormente sobre o movimento evangélico, no
século 19. Isso porque a ênfase dos iluministas estava centrada no homem,
colocando Cristo e seu evangelho em segundo plano. Tal entendimento os levou,
naturalmente, a uma racionalização da teologia e, consequentemente, deu azo ao
Teologia Contemporânea 22

surgimento, identificação e desenvolvimento de várias tendências religiosas e


filosóficas.

Os liberais iluministas rejeitaram o antigo aforismo ― todo poder emana


de Deus, mesmo com o acréscimo tomista ― para o povo. Assim, os
governantes, mesmo os reis ou príncipes de sangue, não têm direitos inalienáveis
de governo. Pelo contrário, o governo deriva sua autoridade do consentimento
do povo governado. É interessante a comparação entre a concepção de Calvino
sobre o Estado e o pensamento iluminista. O primeiro entendia que o Estado era
um instrumento estabelecido por Deus para a manutenção da moralidade e para
a promoção da verdadeira religião, razão pela qual a Genebra calvinista, no
período de 1555 a 1564, é um exemplo clássico de moderna teocracia. A
concepção dos iluministas era substancialmente diferente: embora reconhecessem
a Divindade, propunham alvos essencialmente humanistas para a sociedade.

Não obstante as diferenças essenciais assinaladas, o iluminismo tinha pelo


menos um ponto em comum com o movimento evangélico: a ética moralizadora
da sociedade.
Teologia Contemporânea 23

Capítulo 2

Modernismo – Teologia Liberal

1. O Início da Teologia Moderna

A corrente liberal marcou predominantemente a teologia protestante do


século XIX. Seus precursores e inspiradores mais próximos podem ser
encontrados principalmente no Deísmo inglês de fins do século XVII e do século
XVIII, em deístas do Iluminismo na França, como Voltaire e Jean-Jacques
Rousseau, em Kant, em filósofos e teólogos do Romantismo e do Idealismo
alemão, além de em determinadas correntes teológicas de fins do século XVIII e
inícios do século XIX.

O Liberalismo Teológico não nasceu de um vácuo, mas seu surgimento


pode ser relacionado ao espírito da época. O liberalismo surgiu nesse contexto
histórico, social, cultural e religioso. A sua base foi o racionalismo do séc. XVII
que foi a base do iluminismo francês do séc. XVIII e do Deísmo inglês.

Os teólogos liberais lançaram-se ao estudo histórico-crítico do Novo


Testamento. Estabeleceram uma distinção entre a religião de Jesus e a religião
sobre Jesus. Reduziram a fé cristã à mensagem de Jesus sobre o reino de Deus e a
vivência do amor.

A teologia liberal recebeu influências de duas concepções opostas: deístas


ingleses e racionalistas alemães, de um lado, e românticos de tendências
semipanteístas e Schleiermacher, de outro. Ambas concepções, contudo, rejeitam
a existência de milagres, tal como, em geral, entendidos na teologia tradicional.
“Enquanto para os primeiros (deístas e racionalistas), não existem milagres, para
os últimos, tudo na natureza é milagre, o que também equivale à negação dos
mesmos" (Teologia e Modernidade, pg. 55).
Teologia Contemporânea 24

Segundo a definição mais ampla possível, o Liberalismo Teológico foi o


esforço de reformular a fé cristã harmonizá-Ia de acordo com as perspectivas do
Iluminismo. O liberalismo é uma completa adaptação da teologia cristã ao
mundo moderno. É uma tentativa de interpretar os conceitos bíblicos pela ótica
da modernidade. Os liberais estão preparados para sacrificar muitos elementos da
ortodoxia cristã tradicional em sua busca de relevância contemporânea.

O liberalismo teológico pode então ser dividido em duas fases:

(a) Racionalismo ou Iluminismo cujos principais filósofos e teólogos foram Baruch


Spinoza, Gottfried Wilhelm Leibniz e Gotthold Ephraim Lessing (alemães), John
Locke (inglês), os escritores e filósofos ingleses conhecidos como Platonistas de
Cambridge e também os deístas.

(b) O Romantismo, também chamado de Modernismo que surgiu no final do século


XVIII e perdurou até o final do século XIX. Nele se destacam Jean-Jacques
Rousseau e Emanuel Kant, que foram os arquitetos do liberalismo romântico.

Na teologia, o maior destaque coube ao alemão Friedrich


Schleiermacher, chamado de "Pai da moderna teologia protestante". O alemão
Albrecht Ritschl dominou a teologia liberal protestante após Schleiermacher, e
outro teólogo alemão, Adolf von Harnack, foi o mais proeminente discípulo de
Ritschl.

2. Idealismo Transcendental - Immanuel Kant

O Modernismo teve origem na Alemanha, para onde haviam convergido


várias correntes teológicas e filosóficas no século 19. Quem deu início a esse tipo
de teologia liberal foi Immanuel Kant (1724-1804), especialmente através do
livro Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft (Religião dentro
dos Limites da Razão Somente, 1793). Kant se mostrou simpático à ênfase deísta
apoiada no tripé Deus, virtude e imortalidade, mas divergiu do iluminismo no
que tange ao propósito da vida, colocando em primeiro lugar a ética absoluta, ao
invés da felicidade.
Teologia Contemporânea 25

2.1. A influência de Immanuel Kant na Teologia

A revolução teológica do século passado que ficou conhecida pelo nome


de teologia existencialista ou contemporânea, tem as suas raízes nas ideias do
filósofo Immanuel Kant. Kant logrou sistematizar a confiança do homem
moderno na capacidade da razão para tratar de tudo o que diz respeito ao mundo
material, e sua incapacidade para ocupar-se de tudo o que está além do nosso
mundo. Ao fazer isso, Kant não se projetou apenas sobre o século dezenove, mas
também sobre o século vinte.

O mundo grego havia elaborado algumas normas religiosas básicas em


torno do paradoxo entre a forma e a matéria. Na idade média, o homem do
ocidente havia assimilado algumas dessas ideias, reorganizando-as em torno do
conceito de natureza e graça. De certa forma, a síntese de Tomás de Aquino era
de origem pagã e aristotélica, e privava a graça de seu caráter puramente cristão,
fazendo dela um elemento aperfeiçoador da superestrutura, ao invés de ser um
ato transformador de Deus.

Kant e sua ideia de autonomia fizeram dessa privação da graça mais que
uma simples moldura teológica: pela primeira vez na história da civilização
ocidental, a natureza foi separada da graça de forma elaborada, consequente e
consciente. No pensamento do homem moderno, a graça foi suplantada pela
ideia de emancipação; o homem tinha que nascer de novo como pessoa
completamente livre e autônoma, emancipada de qualquer pensamento
preconizado. De acordo com essa nova maneira de pensar, até mesmo o conceito
de natureza – conservado da síntese medieval aquiniana – se transformou,
passando a ser uma esfera microcósmica dentro da qual a personalidade humana
podia exercer sua autonomia. A natureza era agora interpretada como um terreno
infinito que o pensamento matemático autônomo devia controlar.

A história do pensamento e da teologia ocidental desde Kant nos mostra


como esses pressupostos religiosos, trabalhando com ideias tomadas do
cristianismo, modelaram uma nova teologia e um novo mundo.
Teologia Contemporânea 26

2.2. A autonomia preconizada por Kant

A autonomia preconizada por Kant, isto é, a emancipação de valores


exteriores, produziu uma avaliação muito elevada da capacidade humana,
sobretudo da razão humana como autoridade final e como crivo para a verdade.
A razão, e somente a razão, poderia julgar o mundo do fenômeno e o mundo do
número. Para Kant, essa autonomia representava a substituição do conceito de
revelação do cristão – que tem sua expressão máxima em Cristo e na Bíblia – pela
razão autônoma do homem. A verdadeira religião, na filosofia kantiana, não
consiste em conhecer o que Deus tem feito para a nossa salvação, e sim em
conhecer o que devemos fazer para chegarmos a ser dignos dela. Essa moralidade
religiosa, segundo Kant, pode ser alcançada sem a necessidade de nenhum
aprendizado bíblico.

2.3. As ideias deístas e sua influencia na teologia contemporânea.

O conceito deísta que fez parte do processo de florescimento da


autonomia não dava nenhum lugar à intervenção divina na criação por meio de
algo sobrenatural e revelador. Da mesma forma, a autonomia do método sobre o
texto bíblico estabeleceu certos pressupostos, como o abandono da doutrina da
inspiração verbal. Começa-se então a fazer distinção entre a Palavra de Deus e a
Bíblia, ressurge a ideia de que há erros na Bíblia e que esta deve ser tratada como
qualquer conjunto de documentos do passado.

Essa ideia de humanização da Bíblia veio a ser uma das características


distintivas da crítica bíblica, quer seja em sua forma mais conservadora, ou em
suas expressões mais radicais.

2.4. Uma separação radical entre história e fé.

A divisão entre história e fé também se tornou mais tarde um pressuposto


da teologia contemporânea. O Jesus histórico parecia cada vez mais distante do
Cristo da fé. Acerca desse impasse, G.E. Lessing afirmou que “o verdadeiro valor
de qualquer religião não depende da história, senão de sua capacidade de
transformar a vida através do amor”. Os teólogos contemporâneos apresentam
repetidas vezes essa dissociação do Jesus histórico e do Jesus da fé, afirmando que
ainda que a história escrita do cristianismo não se possa aceitar, o ensino de
Teologia Contemporânea 27

Cristo pode e deve ser aceito. A historicidade da Bíblia parece menos importante
que aquilo que ela diz. Barth fará isso ao ser indagado sobre se a serpente
realmente falou no jardim do Éden, dizendo que isso não tem a menor
importância diante do que a serpente disse. Bultmann fará o mesmo ao rejeitar
os relatos evangélicos como sendo produtos historicamente duvidosos por um
lado, e aceitando-os, por outro lado, por causa da sua compreensão existencial do
“Eu”. Moltmann o utilizará ao burlar-se da noção clássica de escatologia
cumprindo-se na história, e ao mesmo tempo falará sobre a igreja orientada para
o futuro. Também John Robinson, ao mesmo tempo em que rejeita a ideia de
céu como sendo um “lugar lá em cima”, fala de uma nova dimensão de vida
como ser em profundidade, e de Deus como o Fundamento do ser.

Não há duvida de que Immanuel Kant teve grande influência sobre o


pensamento teológico contemporâneo. Na verdade, desde Kant que a história do
pensamento e da teologia ocidental é a história de como seus pressupostos
religiosos, associados a muitas ideias cristãs, deram origem a um mundo novo.
Embora sua filosofia encarasse com valentia as questões pleiteadas por Hume, ele
enclausurou os seres humanos no mundo dos fenômenos, não havendo modo da
mente fenomenal conhecer o numeral. Entre tantas objeções que se pode fazer a
Kant, uma é a mais óbvia: Se o nosso entendimento acerca de Deus não é ao
menos alegórico, como pode o homem conhecer a Deus? A filosofia de Kant
transforma Deus em um ser incognoscível, e esse pressuposto será um grande
dilema para a teologia dialética de Karl Bath, bem como de outros teólogos
contemporâneos.

3. Teologia do Sentimento - Schleiermacher

Friedrich Daniel Ernest Schleiermacher, o assim chamado pai do


liberalismo protestante, nasceu na Alemanha, em 1768, filho de um capelão do
exército pertencente à Igreja Reformada da Alemanha. Em 1796, foi ordenado
em Berlim, onde atuou como pastor na Igreja da Trindade. Como professor de
Teologia, ensinou em Halle, em 1804, e em Berlim (1810), na universidade que
ajudou a fundar.

O ambiente filosófico a partir do qual Schleiermacher emergiu e no qual


desenvolveu seu pensamento foi o do Iluminismo.
Teologia Contemporânea 28

Ao longo do período iluminista, a teologia sofreu ataques nas mais


diversas áreas. Padrões refinados para o estudo da história foram desenvolvidos.
Tais padrões, primando pela exatidão e objetividade, quando aplicados aos textos
históricos da Bíblia, conduziam ao questionamento de sua credibilidade.

Por sua vez, a ciência, com sua inquestionável história de sucesso, foi
considerada capaz de retratar a realidade com profunda exatidão, de maneira
que, onde a Escritura Sagrada conflitava com ela (como na menção de episódios
sobrenaturais, por exemplo), deveria ser terminantemente rejeitada pelo homem
moderno.

O tempo em que viveu Schleiermacher também foi caracterizado pela


crítica quanto à autenticidade de documentos até então tidos como fidedignos. A
Bíblia, evidentemente, não escapou dessa análise rígida. Como consequência, a
chamada *alta crítica pôs em dúvida a autoria dos diversos livros da Bíblia e fixou
a data de sua composição em anos bem mais recentes do que aqueles
tradicionalmente aceitos.

Três são as bases sobre as quais o pensamento de Schleiermacher foi


construído. O exame desses elementos fundamentais, evidentemente, lança luz
sobre todo o seu pensamento teológico, além de revelar desdobramentos da
própria mentalidade iluminista.

3.1. A Religião como Sentimento

Schleiermacher ensina haver no homem um sentimento que o liga a


Deus. Trata-se de um senso interior que proclama a sua continuidade com o
Espírito do universo. Esse sentimento, ou gefuhl, não é uma simples emoção,
mas sim o reflexo de que tudo no universo procede de uma só raiz e, nessa raiz,
todas as coisas são essencialmente idênticas. O gefuhl, segundo Olson, "é a
consciência distintamente humana de algo infinito, além do próprio eu, da qual
ele depende para tudo."

Esse conceito básico é expresso de modo claro no discurso de


Schleiermacher sobre a essência da religião:
Teologia Contemporânea 29

Ela (a religião) quer intuir o Universo, quer observá-lo piedosamente em


suas próprias manifestações e ações, quer ser impressionada e planificada, na
passividade infantil, por seus influxos imediatos... A religião quer ver no homem,
não menos que em todo outro ser particular e finito, o Infinito, seu relevo, sua
manifestação.

Para o teólogo alemão, a sede da religião é o interior do homem. É no


"eu", no íntimo do ser humano, em suas intuições, que se encontram as
evidências de uma realidade superior que abrange o próprio homem e que
também o transcende.

Ademais, o sentimento de que fala Schleiermacher encontra-se em cada


indivíduo de modo necessário, já que resulta de sua relação também necessária
com o "Infinito", o "Uno e Todo" de que é uma manifestação individual.

3.2. A Dependência Total de Deus

A resposta mais elevada dada pelo homem ao sentimento referente a


Deus é o senso de total dependência dele. É nessa dependência que se traduz de
modo pleno o sentimento relativo ao Espírito do universo. Tal dependência é o
próprio sentimento aqui tratado, manifesto de forma amadurecida quando o ser
humano tem plena consciência dele.

Para Schleiermacher, a doutrina é apenas uma das maneiras pelas quais se


expressa o sentimento religioso de dependência. Daí decorre que a doutrina não
é essencial e nem mesmo necessária, uma vez que há outras formas em que a
dependência se faz manifesta.

Sendo a religião um sentimento expresso na "consciência de ser


dependente do Todo", sua comunicação se realiza de modo mais eficaz pelo
exemplo e não por meio do ensino formal. Além disso, considerando que o
sentimento religioso, como qualquer outro sentimento, apresenta variadas
formas de manifestação, é natural que variadas sejam também as expressões
religiosas (teísmo, panteísmo e seus respectivos desdobramentos), todas elas
válidas, à medida que os sentimentos de dependência que as originaram,
partindo de diferentes personalidades, também são válidos.
Teologia Contemporânea 30

Eis aí a mais pura manifestação da religião não dogmática, bem como os


germens da pluralização da verdade religiosa com a qual o Cristianismo, com seu
discurso exclusivista, teria de lidar não só ao tempo do Iluminismo, mas, a partir
de então, ao longo de toda a sua história.

3.3. Os Distintos Níveis de Consciência

O sentimento de dependência do Todo de que fala Schleiermacher pode


manifestar-se em diferentes graus em cada indivíduo, havendo, inclusive, aqueles
em que o grau de dependência de Deus é baixíssimo.

É essa variação nos níveis de consciência de cada um que o teólogo


alemão define o pecado. Segundo Stanley Gundry, para Schleiermacher, "o
pecado é essencialmente a consciência sensual, o que quer dizer qualquer tipo de
preocupação total com este mundo, excluindo-se a total dependência do homem
diante de Deus.".

Evidentemente, essa reconstrução da Hamartiologia redunda numa


antropologia mais otimista do que aquela que a Bíblia, com a doutrina do
pecado original, ensina. Além disso, essa visão de pecado produz, como se verá,
reflexos tanto na cristologia como na Soteriologia. De antemão, percebe-se que,
sendo o pecado a prisão da consciência humana ao que é finito, a recusa de
identificação com o Universo, vivendo nele ou confundindo-se com ele,
reconhecendo afinal ser dele dependente, a salvação consiste numa transformação
nessa consciência, livrando-a do individualismo. Por outro lado, o papel de
Cristo na redenção do homem consiste em criar essa mudança de consciência por
meio da pregação da igreja.

Schleiermacher, além de atribuir significados novos para termos próprios


do vocabulário cristão ortodoxo, também sustentou um conceito reducionista de
Jesus, apresentando-o como um homem munido de aguda consciência divina,
profundamente dependente de Deus, mas não divino, no sentido que a igreja
cristã o apresenta em seus credos.
Teologia Contemporânea 31

3.4. Os Reflexos da Filosofia de Schleiermacher Sobre sua Teologia

Primeiro, sua filosofia marcantemente influenciada pelo romantismo


conduz fatalmente ao panteísmo. De fato, é muito difícil não associar sua
teologia com uma forma, pelo menos experimental, de panteísmo.

Schleiermacher ensinava que no âmbito da piedade, tudo se resume no


fortalecimento da consciência do Todo e, especialmente, na descoberta do
vínculo com o infinito já existente dentro de cada um. É, pois, precisamente
nessa esfera experimental que o teólogo alemão aparece mais fortemente de mãos
dadas com o panteísmo.

Para o pai do liberalismo, portanto, o centro do Cristianismo, o objeto


da fé e a essência de qualquer modelo religioso era predominantemente aquilo
que o homem experimenta. O que Deus diz ou faz, conforme ensina a ortodoxia
cristã, deve dar lugar a uma nova forma de compreensão da verdade religiosa,
forma essa centrada na experiência, livre dos credos ou dogmas tradicionais. Estes
perdem sua importância à medida que não combinam com a experiência
humana da consciência de Deus.

Sendo a experiência a norma pela qual tudo em religião deveria ser


julgado, para Schleiermacher até as Escrituras tinham que se submeter ao seu
escrutínio. É nesse ponto que sua Bibliologia se define. Para ele, a Bíblia não
deveria mais ocupar lugar de autoridade suprema. Acima dela devia ser colocada
a experiência religiosa.

Rejeitar as doutrinas cristãs que eram inaceitáveis para as mentes


esclarecidas da época foi uma marca distintiva da cosmovisão que, tendo Kant
como seu principal expoente, exaltava a razão, tornando inaceitável uma religião
baseada na revelação sobrenatural.

Merece também análise o conceito de pecado formulado por


Schleiermacher bem como seus reflexos sobre a cristologia e a Soteriologia. Para
ele, pecado é crer na própria autonomia em relação ao Todo (Deus) e a salvação
consiste em livrar-se dessa falsa crença.
Teologia Contemporânea 32

A salvação proposta por Schleiermacher não impõe a necessidade de um


Deus-homem. Por isso, em seu modelo teológico, não há espaço para a doutrina
tradicional das duas naturezas de Jesus Cristo. Este é apresentado como um ser
humano comum, distinguindo-se apenas por seu senso constante e agudo de
dependência de Deus, presente nele desde a mais tenra infância. Sua função de
salvador consistiu de transmitir essa intuição ao mundo por intermédio da igreja
que fundou.

Assim, Schleiermacher nega tanto a divindade de Cristo como a sua


morte expiatória, temas esses que são centrais no Cristianismo. Além disso, no
âmbito soteriológico, todo o conjunto de suas ideias, desde seu conceito de Deus
até sua definição de salvação, conduzem ao universalismo, isto é, à crença na
salvação de todos que, segundo ensina, mediante a morte, caminharão rumo à
infinitude, na qual perderão a individualidade, confundindo-se com o Universo.

Vê-se que, no afã de criar um modelo aceitável à mentalidade iluminista,


o teólogo alemão pagou um preço muito alto: reduziu Cristo a um simples
modelo a ser seguido, transformou seu sacrifício numa forma dramática de
chamar a atenção para o seu exemplo e definiu a salvação final como o dissolver
do eu no Todo universal. Mais uma vez conclui-se que dificilmente a teologia de
Friedrich Schleiermacher pode ser chamada de cristã.

Schleiermacher criou um conceito nitidamente panteísta de Deus,


destruiu a singularidade da verdadeira religião, menosprezou o valor do dogma,
reduziu o pecado a uma simples indisposição mental, transformou Cristo num
mero modelo a ser seguido, esvaziou a cruz de seu valor expiatório, conceituou a
salvação como um simples aprofundamento da consciência de depender do Todo
que alguns chamam "Deus" e fez da igreja pouco mais do que a promotora dessa
mesma consciência.

Conclui-se, portanto, que o modelo exposto por Friedrich


Schleiermacher não pode ser esposado por nenhum indivíduo que se considere
cristão. E ainda que o liberalismo protestante, que teve em Schleiermacher o seu
fundador, não é opção aceitável para aqueles que pretendem preservar a verdade
exposta nas páginas da Escritura, impondo-se a necessidade de desencorajar e
mesmo refrear seu ensino em escolas teológicas e em igrejas, sob pena de se
perderem os elementos distintivos da igreja de Deus e da genuína fé.
Teologia Contemporânea 33

4. Teologia Especulativa ou Dialética - Hegel

A palavra dialética vem do grego e quer dizer “apto à palavra” ou


“movimento de ideias“. Na Grécia antiga, a dialética era a arte do diálogo e, aos
poucos, passou a ser a arte de, através do diálogo, demonstrar uma tese por meio
de argumentações capazes de definir claramente os conceitos envolvidos.

Heráclito de Éfeso (cerca de 540 a 480 antes de nossa era) é considerado,


pela maioria dos historiadores, o “pai da dialética”, pois afirmava que a realidade
(a natureza) é um perpétuo vir a ser, um constante movimento das coisas que são
ao mesmo tempo elas mesmas e as coisas contrárias, que se transformam umas
nas outras. “É uma mesma coisa ser vivo e ser morto, desperto ou adormecido,
jovem e velho, essas coisas se transformam umas nas outras e são de novo
transformadas” (Fragmento 88 – Coleção Os Pensadores). Para Heráclito, a
dialética está na estrutura contraditória do real. As afirmações de Heráclito,
inovadoras e polêmicas para a sua época, causaram variadas manifestações entre
os filósofos, pois ele propunha ao mesmo tempo a mudança e a contradição
como a “essência” da natureza e dos homens, negando as leituras que se
baseavam na ideia de imutabilidade, de permanência a uma só identidade.

Decerto suas teses influenciaram o modo de proceder do pensamento


grego. A concepção dialética, entretanto, carente de conhecimentos científicos
que só seriam desenvolvidos séculos mais tarde, acabou sendo perpassada pela
forma de análise metafísica. Durante a Idade Média, devido à influência dos
estudos dos textos gregos, alguns teólogos trataram a dialética como um exercício
de contraposição de ideias e argumentos até se chegar a um conceito que fosse
irrefutável racionalmente e correspondesse à fé cristã.

Com a Renascença e a valorização do homem como o centro do


universo, através do movimento humanista, o pensamento filosófico e
especulativo conseguiu se desprender da teologia e passou a refletir sobre os
fenômenos físicos, sociais e políticos sem a tutela dos dogmas religiosos.
Pensadores como Galileu Galilei, Giordano Bruno, Maquiavel, Montaigne e
mesmo Thomas Hobbes contribuíram, através de suas análises, com a retomada
da concepção dialética, ressaltando elementos típicos da dialética, tais como: as
ideias de contradição, mediação, transformação e movimento constante.
Teologia Contemporânea 34

Durante o Século XVIII, o Iluminismo, corrente filosófica que


correspondia aos interesses da burguesia em ascensão, contrapunha-se à
intervenção dos dogmas religiosos nas ciências e na explicação da sociedade e da
política. Na França, filósofos como Diderot e Rousseau demonstravam que eram
os conflitos e as contradições sociais que moviam tanto a política quanto a
própria sociedade e que os indivíduos de uma sociedade influenciavam na
formulação do modelo dessa sociedade, assim como eram influenciados por ela.

Mas foi com Georg Wilhelm Friedrich HEGEL (1770 a 1831) que a
concepção dialética foi retomada, num patamar que resgatava o pensamento
iraquiano. Para Hegel, o que regeria o nosso conhecimento e a nossa razão seria a
existência de um Espírito Universal que se exterioriza na natureza e na cultura.
Esse Espírito seria a razão, o logos e a partir do momento em que ele se move e
opera no universo, ele o descobre e o transforma. Ao transformar o universo, esse
“Espírito” se reconhece em suas obras e adquire um maior conhecimento de si e
do mundo, elevando-se a um estágio superior de entendimento. A História seria
o resultado da ação do “Espírito Absoluto” sobre o mundo, manifestando-se
através de suas obras (artes, ciência, técnicas) e de instituições (religião, filosofia,
leis, etc.),

A Dialética ou Ciência da Lógica, como Hegel também definia a


dialética, seria o método pelo qual o Espírito Absoluto se reconheceria ao operar
sobre o mundo. Todas as vezes que o Espírito Absoluto opera no mundo, ele
reflete a si mesmo, reconhecendo-se e superando as formas anteriores. Tal
manifestação pressupõe a contradição como princípio que estabelece a relação
entre o Espírito Absoluto e o Universo, ou seja, ao invés de entender a
contradição como algo absurdo e destrutivo, Hegel vê nela a condição de
existência e transformação dos sujeitos.

4.1. O Pensamento

A filosofia que Hegel propôs é uma tentativa de considerar todo o


universo como um todo sistemático. O sistema é baseado na fé. Na religião
cristã, Deus foi revelado como verdade e como espírito. Como espírito o homem
pode receber esta revelação. Na religião a verdade está oculta na imagem; mas na
Teologia Contemporânea 35

filosofia o véu se rasga, de modo que o homem pode conhecer o infinito e ver
todas às coisas em Deus.

O sistema hegeliano é assim um monismo espiritual mas um monismo


no qual a diferenciação é essencial. Somente através da experiência pode a
identidade do pensamento e o objeto do pensamento serem alcançadas, umas
identidades na qual o pensar alcança a inteligibilidade progressiva que é seu
objetivo. Assim, a verdade é conhecida somente porque o erro foi experimentado
e a verdade triunfou; e Deus é infinito apenas porque ele assumiu as limitações
de finitude e triunfou sobre elas. Similarmente, a queda do homem era necessária
se ele devia atingir a bondade moral. O espírito, incluindo o Espírito infinito,
conhece a si mesmo como espírito somente por contraste com a natureza.

O sistema é monista pelo fato de ter um tema único: o que faz o universo
inteligível é vê-lo como o eterno processo cíclico pelo qual o Espírito Absoluto
vem a conhecer a si próprio como espírito (1) através de seu próprio
pensamento; (2) através da natureza; e (3) através dos espíritos finitos e suas
autoexpressões na história e sua autodescoberta, na arte, na religião, e na
filosofia, como um com o próprio Espírito Absoluto.

O compêndio do sistema de hegeliano, a "Enciclopédia das Ciências


Filosóficas", é dividida em três partes: Lógica, Natureza e Espírito. O método de
exposição é dialético. Acontece com frequência que em uma discussão, duas
pessoas que a princípio apresentam pontos de vista diametralmente opostos
depois concordam em rejeitar suas visões parciais próprias, e aceitar uma visão
nova e mais ampla que faz justiça à substância de cada uma das precedentes.
Hegel acreditava que o pensamento sempre procede deste modo: começa por
lançar uma tese positiva que é negada imediatamente pela sua antítese; então um
pensamento seguinte produz a síntese. Mas esta síntese, por sua vez, gera outra
antítese, e o mesmo processo continua uma vez mais. O processo, no entanto, é
circular: ao final, o pensamento alcança uma síntese que é igual ao ponto de
partida, exceto pelo fato de que tudo que estava implícito ali foi agora tornado
explícito, tudo que estava oculto no ponto inicial foi revelado.
Teologia Contemporânea 36

4.2. A Dialética

O método dialético hegeliano consta, pois de três momentos: tese,


antítese e síntese. A tese é o momento do ser em si; ele põe, afirma uma parte da
realidade, negando implicitamente uma outra parte da realidade, porque toda
afirmação inclui uma negação. A antítese é o momento do ser extra se, (fora de
si); ela contrapõe, afirmando-a, à parte da realidade implicitamente negada pela
tese. Não se trata, de função puramente negativa; mas essencialmente afirmativa;
é neste sentido que Hegel fala do poder portentoso do negativo. Portanto,
pertence, de fato, à negação manifestar o que foi obscurecido pela tese, e
libertando a realidade dos limites da estaticidade para mostrar sua riqueza
interior. A síntese é o memento da união das partes postas pela tese e pela
antítese num todo única, o qual anula as imperfeições dos momentos anteriores,
porém conserva a positividade deles “ser em si e para si”. Na síntese se encontra a
sublimação e a elevação.

4.3. Deus como fundamento da religião

Para Hegel, na religião, o homem sabe-se determinado por Deus e a ele


está relacionado. Por isso Deus é o princípio a partir do qual se constitui a
religião. Portanto, isso pressupõe que, de alguma forma, Deus seja acessível ao
homem. Porém esse não é tão evidente pelo simples fato de alguns não crerem
nele.

No entanto a porta de entrada no pensamento hegeliano é o fenômeno


do amor. Nele, por primeiro, descobre o caráter dialético da realidade. O ponto
de partida é o fato da autoalienação na realização do amor: o amor, esquecendo-
se a si mesmo, sai da existência amorosa e vive no outro. No amor, o homem
perde-se a si mesmo e encontra-se no outro.

Para Hegel aquilo que acontece no amor só é possível de compreensão a


parti de um todo. Na dialética do amor realiza-se á vida. O amor é modificação
da vida. E a vida é o que anima todos os viventes. Também a vida a partir de sua
essência, é dialética. Na origem é uma; dividi-se na multiplicidade dos viventes
para, finalmente, reencontrar-se na unidade. Aí Hegel encontrou o princípio
teológico de sua filosofia. Se o divino é pura vida, também a divindade tem
caráter dialético. O fato de atingir o divino, permite-lhe tomar posição no
Teologia Contemporânea 37

absoluto. Portanto Deus não é o momento conclusivo de seu sistema, mas o


ponto de partida.

Contudo Hegel não tenta demonstrar a existência objetiva de Deus. No


entanto indaga como o homem pode chegar a pensar Deus. Faz uma
interpretação a partir da confluência das possibilidades humanas. O processo é a
consciência da própria divindade. Com isso o homem só chega a Deus como
presente, na imanência, não ao Deus transcendente.

De acordo com Hegel, Deus deve ser como aquele que passa por uma
história e nela se revela. Este é o tema fundamental apresentado em sua obra
filosófica, a Fenomenologia do Espírito. Para ele, em todos os problemas do
homem o do mundo, em último caso se trata do próprio Deus. Fundamenta a
questão de Deus como único fundamento de tudo e o princípio do ser e do
conhecer.

4.4. Como Hegel relaciona religião e filosofia?

Em um de seus fragmentos juvenil Hegel, fala de elevação à vida infinita


e esta elevação é a religião, portanto, Hegel atribui tal elevação à religião e não a
filosofia. A filosofia é a religião compreensiva porque refletem sobre ideias, pensa
em termos de oposição. A religião se opõe a ela porque pensa em termos de
totalidade. Pela religião a vida finita se eleva à vida infinita, isso é possível porque
o próprio finito é vida.

No entanto, o jovem Hegel dá preferência à religião. Porém na


maturidade esse pensamento faz a inversão, não atribui o acesso ao infinito à
religião, e sim a filosofia. Busca a superação da oposição entre filosofia e religião.
Nesta nova síntese do pensamento pensando o pensado estabelece uma nova
unidade entre Deus e o homem. O espírito é o todo a partir do qual Deus e
homem, ambos espíritos, se tornam compreensíveis. Na juventude situa a
possibilidade de pensar o absoluto através da elevação da religião, com a
maturidade parte da própria filosofia. A razão ocupa o lugar que era ocupado
pela elevação da religião. Contudo, a religião ocupa o segundo momento do
devir do espírito absoluto.
Teologia Contemporânea 38

Em (El concepto de religión, p. 95) diz que:

Deus não é espírito vazio, mas o espírito. E o espírito não é o só puro


nome, determinação superficial, mas um ser cuja natureza se desenvolve,
concebendo a Deus como essencialmente tríplice na unidade.

Com efeito, Deus se torna consciente na autoconsciência do homem pela


concepção ontológica:

“O homem conhece Deus só em quanto Deus se conhece a si mesmo nos


homens. Este saber é a autoconsciência de Deus, mas também o saber que Deus
tem dos homens, e tal saber é o saber que os homens têm de Deus”
(Enciclopédia, 564).

No entanto, Hegel preferiu uma atitude crítica em relação à religião. Não


queria acabar como a religião, mas procurou renová-la dentro da sociedade
moderna como autêntica religião do povo, fundada na razão, pois não queria
uma religião acrítica, porém não defendeu uma razão sem tradição. Por isso, ele
não via a religião como campo privado e sim como valor educativo.

Vejamos o que diz Hegel citado por Zilles em (Filosofia da Religião, p.


77):

A religião consumada é aquela na qual o conceito de religião retorna


a si [...] onde a ideia absoluta, Deus, enquanto espírito segundo sua
verdade e seu caráter manifesto, constitui o objeto da consciência. As
religiões anteriores nas quais a daterminabilidade do conceito é
menor, mais abstrata e defeituosa, são religiões determinadas que
constituem etapa de transição do conceito de religião até seu
acabamento. Esta religião revelada é, pois, a cristã. A religião cristã
mostra-se nos como a religião absoluta (El concepto de religión,
p.126).

Desenvolve o tema da alienação do homem pela religião, e diz que o


homem não é capaz de construir a sua vida moral por si mesmo, está sempre em
busca de resposta no além e apoiando-se numa pessoa, ou seja (Cristo).
Teologia Contemporânea 39

Entretanto, para Hegel, como já vimos, o centro do mistério cristão


não é Jesus Cristo, mas a Trindade. Como o espírito absoluto é o
pensamento e como tal se distingue de si mesmo, também Deus não
é uma unidade indiferenciada, mas trindade de pessoas em sua
infinita vida espiritual. Essa trindade corresponde aos três momentos
da dialética da ideia do espírito; o Pai é o permanecer imutável de
Deus, como ideia em si; o Filho ou deus-homem, é a manifestação
de Deus fora de si na natureza; o Espírito Santo é o retorno do
mundo a Deus e sua reconciliação com ele (ZILLES, 1991, p. 77).

Para Hegel no cristianismo o indivíduo renuncia o direito de determina


por si mesmo o que é verdadeiro, bom e justo, aceitando o que imposto pela fé.
E a alienação é sinônima de escravidão e opressão e caracteriza a religiosidade
judaico-cristão como a relação senhor escravo Deus Transcendente para ele, é o
senhor dominador, o homem é o escravo. Hegel chama estas realidades infinitas,
as totalidades divinas de ideia, que se manifesta na realidade se realizando na
múltipla vida, esta vida criadora chama de Deus que deve ser concebido como
espírito.

Entretanto, para Hegel há dois caminhos para conhecer Deus: o empírico


(todos os homens têm consciência de Deus), parte do ponto de vista da
consciência finita, ou seja, o caminho empírico procede do conhecimento
imediato pelo sentimento passando pela representação até o pensamento
reflexivo, mesmo assim não pode conhecer Deus, pois a subjetividade impede
esse acesso. Por isso é necessário outro caminho, o especulativo (quando Deus
torna-se uma questão problemática. É a través de um princípio filosófico do
próprio ato do conhecimento que a consciência do homem compreende Deus).
É aí que está situada a religião. Sua forma é absoluta, isto é, nela a verdade
aparece como é em si e para si. Para Hegel só se pede conhecer Deus pelo
caminho especulativo.

Contudo, o espírito absoluto desde o começo se apresenta em toda


realidade como em todas as ciências. Entretanto Hegel afirma que o espírito
absoluto está mais bem revelado na arte, na religião e na filosofia.
Teologia Contemporânea 40

5. A Teologia dos Valores Morais – Ritschl

Uma teologia liberal até certo ponto nova e original, a teologia do valor
moral, surgiu em fins do século XIV e nos primeiros anos do século XX, tendo
como divulgadores o teólogo protestante alemão Albrecht Ritschl (1822-1889) e
seus discípulos. Ritschl fora influenciado tanto por Kant como por
Schleiermacher. A influência de Kant se traduz no conceito de religião como o
triunfo do espírito ou do valor moral sobre os males da sociedade, e a de
Schleiermacher, na crença de que Deus não é conhecido como auto-existente,
mas somente até onde ele se autorrevela através de Cristo.

Ritschl foi autor de várias obras, das quais a mais importante é Die
christliche Lehre von der Rechtfertigung und Versöhnung (A Doutrina Cristã da
Justificação e da Reconciliação, 1870-1874). Bengt Hägglund sintetiza o livro da
seguinte forma: Salvação, que Ritschl define como “justificação”
(Rechtfertigung) ou perdão dos pecados, restaura a liberdade ética entravada pelo
pecado. Mediante a fé, a relação entre o homem e Deus, antes perturbada,
transforma-se em confiança e filiação. Disto resulta uma modificação interna na
vontade do homem: o homem chega a reconhecer a vontade de Deus e deste
modo se predispõe a fazer o bem. Tal transformação interna é o que Ritschl
denomina “reconciliação” (Versöhnung). Esta, por sua vez, manifesta-se em boas
obras. Além de rejeitar o conceito jurídico da justificação, defendido por setores
da ortodoxia protestante, a partir de Lutero e Calvino, Ritschl negou ou
reinterpretou as seguintes doutrinas tradicionais: trindade, igreja, reino de Deus,
revelação, pecado original e encarnação. Ritschl não concebia o pecado como
corrupção universal perante Deus e entendia que a divindade de Cristo era
figurada e se caracterizava unicamente pela unidade de sua vontade com Deus,
configurando uma espécie de monotelismo.

A tentativa de aplicar os princípios filosóficos kantianos ao cristianismo


protestante constituiu atitude típica de uma era em que havia pouco respeito
pelos mistérios da religião e praticamente nenhum temor ante o julgamento
divino. O esforço de Ritschl em manter uma teologia de revelação divina sem a
fé em milagres foi duramente atacada tanto por liberais como por conservadores,
mas a sua influência na teologia protestante alemã da segunda metade do século
XIV foi, sem dúvida, muito grande.
Teologia Contemporânea 41

6. Harnack

O discípulo mais importante da escola de Ritschl foi Adolf von Harnack


(1851-1930), teólogo e historiador alemão, grande erudito em patrística. Sua obra
mais conhecida é Lehrbuch der Dogmengeschichte (História dos Dogmas, 1886-
1889), onde ele procurou demonstrar que a relevância do cristianismo para o
mundo moderno não repousa no dogmatismo teológico, mas no entendimento da
religião como um desenvolvimento histórico. Sua ideia mais distintiva foi que o
dogma da igreja primitiva consistia no resultado natural da busca de padrões para
filiar membros, e que isto obscurecia a natureza essencial e o impacto prático dos
ensinos de Jesus. Ele também procurou demonstrar que os credos formulados nos
Concílios Ecumênicos de Nicéia (325) e Calcedônia (451) usaram um grande
número de conceitos retirados da filosofia grega, na formulação do dogma da
Trindade e da Pessoa de Cristo. A este desenvolvimento ele chamou de segunda
onda da helenização, posto que a primeira onda, a doutrina gnóstica, havia sido
rejeitada pela igreja. Paul Tillich, contemporâneo de Harnack, embora concorde
com uma possível influência gnóstica, considera a generalização de Harnack
inadequada, uma vez que ela leva à conclusão de que só deve ser aproveitado no
Novo Testamento àquilo que tiver uma ligação clara ou for derivado do Antigo
Testamento. Diz mais, que se isso for verdadeiro, cerca de dois terços da escritura
neotestamentária deve ser deixada de lado, pois tanto Paulo como João usam muitos
conceitos helenistas.

As ideias de Harnack sobre os dogmas não eram inéditas, pois no século


XVII, na Assembleia de Westminster, havia um grupo que, paradoxalmente, se
colocava contra toda e qualquer ideia de dogma configurada especialmente pelos
credos, chegando alguns a considerar os Dez Mandamentos como elementos
dogmáticos cuja referência deveria ser evitada no contexto dos padrões de
Westminster. Contudo, o antidogmatismo de Harnack foi muito mais substancial e
profundo.

Numa série de conferências realizadas em Berlim em 1900, compiladas e


publicadas com o título Das Wesen des Christentums (O que é o Cristianismo,
1900), Harnack procurou apresentar um sumário do que ele considerava a essência
do evangelho. Sua intenção era separar essa essência, que ele chamou de o ― miolo
do evangelho, que é permanentemente válido, do elemento periférico ou da ―
casca, ou seja, das formas mutáveis de vida e de pensamento nas quais o evangelho
foi transmitido. O miolo da mensagem de Jesus é o reino de Deus, e os cristãos
Teologia Contemporânea 42

devem seguir o exemplo de Jesus de uma ― retidão superior governada pela lei do
amor, que existe independente do culto religioso.

Em decorrência da fórmula de miolo e casca, Harnack cunhou a ideia de


dois evangelhos, um verdadeiro e outro falso, ou seja, o evangelho de Jesus e
evangelho sobre Jesus. Ele afirmou que o evangelho sobre Jesus não está contido no
evangelho pregado por Jesus. Essa, na realidade, é a fórmula clássica da teologia
liberal: o evangelho ou a mensagem pregada por Jesus nada tem com a mensagem
posterior, contida na Bíblia, pregada sobre Jesus. Tal afirmativa pressupõe a redução
do evangelho somente aos sinóticos, e mesmo assim devem ser eliminados todos os
sinais que identifiquem uma possível influência paulina. A teoria do conflito entre
Paulo e Pedro, desenvolvida por Baur, é revivida aqui em uma versão mais refinada,
moderna, ou seja, que Paulo interpreta Jesus de um modo que está muito longe do
verdadeiro Jesus histórico. Na realidade, toda a comunidade cristã primitiva que
rodeava Paulo estava impregnada de conceitos helenizantes, e foi ela, com base na
experiência da ressurreição, que produziu as doutrinas sobre Jesus, doutrinas que não
podem ser encontradas na mensagem original de Jesus.

Esta mensagem original é a mensagem da vinda do reino, e o reino de Deus


é o estado no qual Deus e os membros individuais de seu domínio estão em uma
relação de perdão, mútua aceitação e amor. Tillich, ao concluir a sua análise crítica
sobre a obra de Harnack, afirma que o maior erro dele e de toda a teologia liberal é
que ela não está apoiada em uma teologia sistemática.
Teologia Contemporânea 43

Capítulo 3

História do Criticismo Bíblico


O movimento de absolutização da racionalidade levou nos séculos
passados a sociedade a rejeitar toda forma de explicação que não fosse científica.
Este cientificismo estava aliado ao ceticismo (francês) e ao deísmo (inglês), bem
como ao próprio humanismo que colocava o homem como centro do universo e
sua mente como critério de julgamento para toda a realidade. O conceito de
Revelação Bíblica não se encaixava na intelectualidade desta sociedade que se
impôs, porque o sobrenatural não pode ser explicado em termos científicos.
Então, uma ciência do espírito toma forma e dita as normas para que a
interpretação da Bíblia pudesse ser aceita pela mentalidade moderna. O método
histórico-crítico é resultado deste movimento histórico racionalista.

1. Os principais teólogos desse período

A seguir vamos analisar os principais teólogos desse período e suas


respectivas contribuições para o criticismo bíblico.

1.1. G. E. Lessing

Gotthold Ephraim Lessing (1729-81) poeta alemão, dramaturgo, teólogo


e luterano deísta. Ele é conhecido como “o pai do criticismo alemão” (Minute
History of the Drama, 1935). Quando jovem se engajou na tradução das obras
de Voltaire, que viveu por algum tempo na Alemanha, mas abandonou tal
empreitada e desenvolveu sua própria filosofia descrente. Lessing foi uma
proeminente voz de uma nova proposta sobre a história do homem que levou ao
conceito de “desenvolvimento orgânico”. Lessing considerava a história como
um contínuo processo pelo qual um deus imanente vai de forma gradual
educando a humanidade. A humanidade é vista como um indivíduo gigante que
vai se desenvolvendo desde a infância passando pela juventude até a maturidade;
sempre mudando, mas sempre o mesmo indivíduo e em cada estágio de
desenvolvimento vai adquirindo avançados conceitos éticos. A palavra germânica
Teologia Contemporânea 44

aplicada a este processo é aufheben [NT: elevar]. A revelação foi meramente a


instrução progressiva da raça e não foi negada para ser omitida, mas também não
foi sempre intencionada para ser fixa, dada uma vez por todas. Requereu ser
mudada de era em era. Este processo de educação religiosa das raças, em que
necessariamente há avanço na doutrina, eventualmente tornou-se o conceito de
desenvolvimento orgânico. (James Sightler, Tabernacle Essays on Bible
Translation, 1992, pp. 8, 9).

1.2. Ferdinand C. Baur

Ferdinand Christian Baur (1792-1860), fundador da escola de criticismo


do Novo Testamento de Tuebingen (Alemanha), afirmou que o Evangelho de
João não foi escrito até 170 d.C. e que somente quatro das epístolas de Paulo
foram de fato escritas por ele. Argumentou que o Novo Testamento foi
meramente o registro natural das igrejas primitivas. Ele ensinava que Paulo
pregou uma ressurreição espiritual ao invés de uma ressurreição corpórea e que
somente depois da morte do apóstolo, durante a controvérsia com os docetistas é
que a pregação da ressurreição corpórea teve início. Baur também promoveu a
doutrina do “desenvolvimento orgânico” que “a igreja como o corpo literal de
Cristo na terra empreendeu progressivamente elevadas verdades, mas sempre
infalível e autoritativa em qualquer ponto ao longo da história” (James Sightler,
Tabernacle Essays on Bible Translation, 1992, p. 9). A escola de Tuebingen foi
muito influente em espalhar o modernismo teológico.

1.3. David Friedrich Strauss

Outro membro da esquerda hegeliana foi David Friedrich Strauss (1808-


1874), que, influenciado pelo pensador iluminista Reimarus e pelos ensinos da
escola de Tubingen, do mesmo modo que Baur considerou o Evangelho de João
como o mais afastado no tempo. Racionalista não confesso, em sua maior obra,
de 700 páginas, Das Leben Jesu kritisch bearbeitet (A Vida de Jesus Criticamente
Examinada, 1836), considerou os milagres bíblicos atribuídos a Jesus como
impossíveis, justificando-os através da ideia demito, que teriam sido engendrados
por escritores do século II, em atendimento aos anseios dos homens daquele
tempo, que esperavam um Messias que fizesse maravilhas e aguardavam o
cumprimento das profecias do Antigo Testamento. Os argumentos de Strauss
podem ser reduzidos aos seguintes silogismos:
Teologia Contemporânea 45

(a) Todos os textos que não se conciliam com as leis conhecidas e universais que
governam os acontecimentos não são históricos;

(b) Todos os textos nos quais Deus intervém no curso natural dos fatos são
irreconciliáveis com as leis conhecidas e universais que governam os
acontecimentos;

Logo, todos os textos nos quais Deus intervém no curso natural dos fatos
não são históricos. Para Strauss, Jesus existiu, mas o Cristo do Novo Testamento
é essencialmente, em todos os seus característicos sobre-humanos, criação
mitológica e deve ser entendido simbolicamente como a realização da Ideia ou
Espírito Absoluto na raça humana. A vida de Jesus, conforme apresentada nos
Evangelhos, foi uma tentativa de despir o Jesus histórico de sua moldura de mito
criada pela imaginação poética da igreja antiga. No final de sua vida, Strauss
publicou o livro Der alte und der neue Glaube (A Velha Fé e a Nova, 1872), no
qual se propõe a substituir o cristianismo pelo materialismo científico, uma
forma personalizada de darwinismo. Seu conceito de que o homem é a união
entre o finito e o infinito, entre o espírito e a natureza, tem sido copiado por
algumas crenças esotéricas modernas como a Nova Era.

1.4. Johann Salomo Semler

J. S. Semler (1725-91), um teólogo alemão da Universidade de Halle,


seguindo as tendências de seu tempo que dizia da importância de se estudar a
Bíblia de forma neutra e assim não considerar a Inspiração Divina e da rejeição
do aspecto miraculoso que considera o sobrenatural como mito ensinava que a
Bíblia é um livro igual a todos os outros e que devia ser estudado como tal. Ele
fez a separação dos conceitos Palavra de Deus e Escritura Sagrada, e desarticulou
da hermenêutica o conceito de Inspiração.

1.5. Johann Salomo Semler

No século XIX dois teóricos F.C. Baur e Julius Welhausen aplicando a


teoria histórica de Hegel a história como um processo evolucionário e dialético
deram início a Teoria Documentária de Composição do Pentateuco. Segundo o
desenvolvimento dessa teoria as fontes Javista, Eloísta, Deuteronômica e
Teologia Contemporânea 46

Sacerdotal (conhecida como JEDP) são identificadas com diferentes autores


negando a autoria de Moisés.

Tudo havia começado através de um Médico francês, Jean Astruc, que


havia formulado sua impressão de que no primeiro capítulo de Gênesis Moisés
utilizara duas memórias principais e outras secundárias para redigir seu texto. Ele
chamou de Fonte A, aquela que utilizava a palavra hebraica Elohim para referir
Deus, e Fonte B, às partes do escrito que fazia uso do nome Yahweh. Logo seu
argumento ganhou popularidade e expandiram sua ideia para todo o Pentateuco
negando até a autoria mosaica. Ainda Alexander Geddes, um padre católico da
Escócia, dizia que havia fragmentos lendários de vários autores no Pentateuco
que eram desconexos entre si, mas que ganharam forma a partir de um redator
fixo. Ele sugeriu não um Pentateuco, mas sim que deveria ser pensada a
existência de um Hexateuco composto durante o reinado de Salomão por um
desconhecido. Tais teorias afastavam qualquer ideia de um cânone. O
pressuposto da Inspiração sequer era mencionado entre os teóricos. Chegando ao
ponto de Hartmann (1831) dizer que talvez a escrita fosse desconhecida no
tempo de Moisés, sendo o Pentateuco constituído de vários documentos pós-
mosaicos, com muitas adições, em tempos diversos, até formarem o Pentateuco
que conhecemos hoje.

1.6. Teoria Graf-Wellhausen

De acordo com a teoria Graf-Wellhausen, o Antigo Testamento não é a


divina revelação de Deus, mas meramente o registro da evolução da religião
judaica. Wellhausen tinha a opinião que “a religião judaica tinha evoluído a
partir do desenvolvimento de primitivas histórias dos tempos dos nômades para
o elaborado e institucionalizado ritualismo do período dos séculos antes de
Cristo” (The History of Christianity, Lion Publishing, 1977, p. 554).
Wellhausen negou a historicidade de Abraão, Noé e outros personagens bíblicos.
Afirmou que Israel não conhecia o Deus Jeová até Moisés lhes ensinar sobre Ele
no monte Sinai. Afirmou que as leis e o sistema sacerdotal não foram dados
através de Moisés, mas foram desenvolvidos depois que Israel já estava
estabelecido em Canaã e em alguns casos, depois do exílio babilônico; que a
maior parte do Pentateuco foi escrito durante a época dos reis de Israel como
uma “piedosa fraude”. Esta teoria teve, em suas diversas mutações várias formas e
Teologia Contemporânea 47

detém uma vasta influência na educação da maior parte das denominações e tem
afetado dramaticamente o ensino “evangélico”.

1.7. Johann Gottfried Eichhorn

Por sua vez, Johann Gottfried Eichhorn (1752-1827) desenvolveu e


popularizou a teoria de Jean Astruc. Foi Eichhorn que fez a distinção entre
“baixo criticismo” e “alto criticismo”. Baixo criticismo é o exame de manuscritos
para “recuperar” o melhor possível do texto original de um documento,
enquanto que alto criticismo é a investigação de questões tais como autorias,
datas e historicidade da Bíblia. (Ambos, baixo e alto criticismo vieram do mesmo
caldeirão de ceticismo e ambos têm minado grandemente a fé nas Sagradas
Escrituras porque são baseadas erradamente à fé). Eichhorn audaciosamente se
engajou no criticismo bíblico, afirmando que:

O Pentateuco não foi escrito por Moisés como ensinou Jesus Cristo
e os apóstolos e como tradicionalmente o povo de Deus acreditava,
mas que foi editado como uma composição de diversos documentos
e tradições. “Esta teoria foi depois estendida e desenvolvida na tese
Graf-Wellhausen, o qual via todo o Pentateuco como o produto de
vários extratos de tradições orais, desenvolvidas com o passar do
tempo e os escritos registrados muito tempo depois que os eventos
ocorreram” (Disponível em: http://www.christis.org.).

1.8. H.E.G. Paulus

H.E.G. Paulus (1761-1851) de Heidelberg, Alemanha, fez uma divisão


naturalista para explicar os milagres de Cristo. Ele afirmou, por exemplo, que
Jesus não caminhou de fato sobre a água, mas que Ele estava caminhando sobre a
terra e por causa da neblina e da névoa parecia que Ele estava caminhando sobre
a água. Ele afirmou que Jesus não morreu na cruz, mas somente desmaiou, e
com a umidade de baixa temperatura da tumba reviveu; e depois de um
terremoto ter movido a pedra, Ele saiu do sepulcro e apareceu aos discípulos.
Teologia Contemporânea 48

1.9. Frederick Schleiermacher

Frederick Schleiermacher (1768-1834) de Halle, Alemanha, exaltou a


experiência e sentimentos acima da doutrina bíblica. Ele usou linguagem cristã
tradicional, mas lhe deu um novo e herético significado. Enfatizou a necessidade
de conhecer Cristo através da fé, mas isto não significava crer na Bíblia como a
verdadeira Palavra de Deus tanto historicamente quanto infalivelmente; ele se
referia meramente a própria intuição humana ou subconsciente. Não era pela fé
na Palavra de Deus, mas “fé na fé”. Ele não considerava as verdades bíblicas
históricas como necessárias para a fé. Assim Schleiermacher podia dizer: “Com
meu intelecto eu sou um filósofo, e com meus sentimentos sou um devoto; mais
do que um cristão” (citado por Daniel Edward: “Schleiermacher Interpreted by
Himself and the Men of His School”. Schleiermacher é corretamente visto como
a fonte principal da massiva mudança que ocorreu nas denominações
protestantes históricas durante os dois últimos séculos... Schleiermacher
pavimentou o caminho para a visão neo evangélica que o homem pode ser um
genuíno cristão e “amar o Senhor” mesmo que rejeite a doutrina bíblica.

1.10. Wilhelm Wette

O descrédito a Bíblia era tal que Wilhelm Wette (1780-1849) escreveu


em 1805 dizendo que o Pentateuco pertencia ao tempo de Josias (621 a.C.),
Reuss, em 1850, atribuiu ao tempo de Esdras, e Karl Graff, em 1865, se
referindo ao Êxodo, Levítico e Números, apresentou a teoria de que essas
literaturas pertenciam ao período do cativeiro babilônico! Todos partiam da
premissa de que não fora Moisés o autor e de que não havia unidade literária no
Pentateuco.

2. A Teoria Documentária

Alguns pensam que há vários documentos principais combinados por um


redator para formar o Pentateuco e possíveis documentos secundários. Hermann
Hupfeldt, em 1853, ensinou que, além do Deuteronômio, havia três
documentos. Ele os chamou de J, E1 e E2. Riehm, em 1854, propôs um quarto
documento que chamou D. Assim, seriam os documentos da composição E1,
E2, J, D. Reuss, em 1850, diz serem os documentos em número de cinco: J, E1,
E2, D, P. Foi ele quem adicionou o documento P na teoria documentária. Mas
Teologia Contemporânea 49

foi Julius Wellhausen quem deu popularidade à teoria documentária do


Pentateuco e ao criticismo como um todo (1876).

Há problemas com a Teoria Documentária que ficam logo evidentes:

(a) Os proponentes e adeptos da teoria não concordam entre si quanto ao número


de documentos, ao grupo que pertencem, ou mesmo quanto à identificação dos
documentos principais e secundários;

(b) a teoria não conseguiu ser provada por causa da ausência de evidências
históricas;

(c) quando a teoria rejeita Moisés como autor, está ao mesmo tempo rejeitando o
testemunho dos escritores bíblicos que afirmam a autoria mosaica.

(d) os teóricos da composição têm imputado ao autor ou redator do Pentateuco


uma sórdida má intenção que manipularia ao seu prazer o texto apenas para
prevalecer sua posição ideológica em detrimento da Palavra de Deus;

(e) e negando o sobrenatural da Bíblia descartam a intervenção de Deus na história.

A Bíblia afirma que Moisés sabia escrever (Nm 33.1,2; Dt 31.24) e


recebeu ordem para fazê-lo (Êx 17.14; 34.27). Ele era profeta de Deus e com
autoridade suficiente para tratar da escrita inspirada (Dt 18.15; 31.9-11).

A teoria das Fontes do Pentateuco (JEDP) tem sido questionada. Ela não
parece subsistir à luz da investigação. Os trabalhos de John Van Seters (1975),
Hans Heinrich Schmid (1976) e Rolf Rendtorff (1977) demonstraram que a
Teoria Documentária da Composição do Pentateuco não se sustenta. Algumas
alternativas estão sendo elaboradas para fugir da forma rígida, mas aparenta ser
uma serpente com a cabeça esmagada que apenas se debate agonizante.

3. O Método Histórico-Crítico Hoje

O método histórico-crítico é, em realidade, um conjunto de métodos


para a análise do texto. E há variações na abordagem conforme a necessidade
exegética do texto em questão. Pode-se distinguir no método: crítica textual;
Teologia Contemporânea 50

crítica literária; história traditiva; história redacional; história da forma; história


temática; análise de detalhes; conteúdo teológico.

Na atualidade é quase uma imposição a utilização do método histórico-


crítico. Quem não o utiliza logo é taxado de anticientífico, pelas razões que
acompanharam o desenvolvimento do método na história. Porém o método é
problemático e suscita questões que precisam ser tratadas. Hoje, pelo tempo
decorrido, já temos condições de notarmos pelo menos três objeções:

3.1. Objeção quanto à premissa crítica

A visão crítica da Bíblia é por si só uma bitola por demais limitadora. A


premissa obrigará o pesquisador a uma crítica da Bíblia que o levará a distinguir
entre Palavra de Deus e Escritura, entre o que é considerado autêntico e
inautêntico na Bíblia! Um subjetivismo autoritativo e ideológico é a ferramenta
para a análise. Contudo, quem tem esta autoridade? Qual chave hermenêutica
possibilitaria o discernimento do que é Escritura dentro das Escrituras? A questão
não é passível de consenso.

3.2. Objeção quanto à concepção de história

A visão histórica que nega a Revelação de Deus na Bíblia desconsidera a


coordenada hermenêutica do objetivo da escrita, do caráter do escrito, da
especificidade que o escrito propõe a si mesmo. E se há negação da proposta do
escrito como será possível a compreensão do seu intento? E a Bíblia é
completamente categórica a respeito do seu intento: homens santos a escreveram
inspirados pelo Espírito de Deus para que a Pessoa, Vontade e Ação da
Divindade fossem reconhecidas. A Bíblia não é apontamento de tradições e
harmonização de contradições. Ela revela Deus.

3.3. Objeção quanto ao efeito do método

O resultado da aplicação do método histórico-crítico se faz notar nas


instituições teológicas e nas igrejas. Ele não produz uma erudição crente. Pelo
contrário, destitui o equipamento da fé, debilita o fundamento espiritual,
afugenta as vocações, inibe a contemplação, causa embaraço a evangelização e ao
Teologia Contemporânea 51

acesso da pessoa não especializada ao texto bíblico. Funciona como um


desserviço para a causa do Evangelho.

Uma consideração se faz importante aqui. Há pessoas doutas e crentes


que utilizam o método. É inegável o esforço daqueles que mantém um elevado
padrão da Inspiração das Escrituras em sua exegese, mesmo aplicando a questão
crítica à Bíblia.

Mas não é a regra geral. Contudo, louvamos a Deus pelas exceções.

4. Crítica Textual e Alta Crítica

Crítica textual e alta crítica são apenas algumas das muitas formas de
crítica bíblica. Seu objetivo é investigar as Escrituras e fazer decisões quanto à
autoria, historicidade, e data em que certo documento foi escrito. A maioria
desses métodos acaba tentando destruir o texto da Bíblia.

Crítica bíblica pode ser dividida em duas formas principais: alta crítica e
baixa crítica. Baixa crítica é uma tentativa de achar a escrita original do texto, já
que não mais possuímos os manuscritos originais. Alta crítica lida com a
autenticidade do texto. Certas perguntas são feitas, tais como: Quando foi
realmente escrito? Quem realmente escreveu o texto?

Muitos críticos não acreditam na inspiração das Escrituras e, portanto


usam essas perguntas para dissipar o trabalho do Espírito Santo nas vidas dos
autores das Escrituras. Eles acreditam que o nosso Velho Testamento foi
simplesmente uma coleção de tradições orais e não foram realmente escritos até
depois de Israel ter se tornada cativa à Babilônia em 586 A.C.

Claro que podemos ver nas Escrituras que Moisés escreveu a Lei e os
primeiros cinco livros do Velho Testamento (chamado de Pentateuco). Se esses
livros não foram realmente escritos por Moisés, e não até muitos anos depois da
nação de Israel ter sido fundada, os críticos poderiam clamar falta de precisão do
que foi escrito, e com isso refutar a autoridade da Palavra de Deus. Mas isso não
é verdade.
Teologia Contemporânea 52

Crítica textual é a ideia de que os escritores dos Evangelhos foram nada


mais do que simples colecionadores de tradições orais e não atualmente os
escritores diretos dos Evangelhos. Um crítico que defende essa posição de crítica
textual disse que o propósito do seu estudo é encontrar a "motivação teológica"
por trás da seleção do autor e compilação de tradições ou outros materiais
escritos e que fazem parte do Cristianismo.

O que podemos ver em todas essas formas de crítica textual é a tentativa,


por parte de alguns críticos, de separar o trabalho do Espírito Santo na produção
de um documento escrito que é confiável. Os escritores das Escrituras explicaram
como as Escrituras passaram a existir. "Toda a Escritura é divinamente inspirada,
e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça"
(2Tm 3.16). Foi Deus quem deu aos homens as palavras que Ele queria que
fossem registradas. O Apóstolo Paulo escreveu: "Sabendo primeiramente isto:
que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a
profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum" (2Pe 1.20,21).
Aqui Pedro está dizendo que essas escrituras não foram imaginadas pela mente
humana, criadas apenas por homens que queriam escrever algo. Pedro continua:
"mas os homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo" (2Pe
1.21). O Espírito Santo disse a eles o que Deus queria que escrevessem. Não há
necessidade de criticar a autenticidade das Escrituras quando podemos saber que
Deus estava por trás de tudo, dirigindo e guiando os homens quanto ao que
registrar.

Mais um versículo pode ser interessante quanto ao assunto de


autenticidade das Escrituras. "Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o
Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de
tudo quanto vos tenho dito" (Jo 14.26). Aqui Jesus estava dizendo aos seus
discípulos que em breve Ele estaria indo embora, mas que o Espírito Santo iria
ajudá-los a lembrar o que Ele ensinou aqui na terra para que assim pudessem
mais tarde registrar. Deus estava por trás da autoria e preservação das Escrituras.
Teologia Contemporânea 53

Capítulo 4

Teologia Existencialista
1. Conceito

O existencialismo é uma doutrina ético-filosófica e literária que destaca a


liberdade individual, a responsabilidade e a subjetividade do ser humano. O
existencialismo considera cada homem como um ser único que é mestre dos seus
atos e do seu destino.

O existencialismo afirma a prioridade da existência sobre a essência,


segundo a célebre definição do filósofo francês Jean-Paul Sartre: "A existência
precede e governa a essência." Essa definição funda a liberdade e a
responsabilidade do homem, visto que esse existe sem que seu ser seja pré-
definido. Durante a existência, à medida que se experimentam novas vivências
redefine-se o próprio pensamento (a sede intelectual, tida como a alma),
adquirindo-se novos conhecimentos a respeito da própria essência,
caracterizando-a sucessivamente. Esta característica do ser é fruto da liberdade de
eleição. Sartre, após ter feito estudos sobre fenomenologia na Alemanha, criou o
termo utilizando a palavra francesa "existence" como tradução da expressão
alemã "Da sein", termo empregado por Heidegger em Ser e tempo.

O existencialismo foi inspirado nas obras de Arthur Schopenhauer, Søren


Kierkegaard, Fiódor Dostoiévski e nos filósofos alemães Friedrich Nietzsche,
Edmund Husserl e Martin Heidegger, e foi particularmente popularizado em
meados do século XX pelas obras do escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre e
de sua companheira, a escritora e filósofa Simone de Beauvoir. Os mais
importantes princípios do movimento são expostos no livro de Sartre
"L'Existentialisme est un humanisme" ("O existencialismo é um humanismo").
O termo existencialismo foi adotado apesar de existência filosófica ter sido usado
inicialmente por Karl Jaspers, da mesma tradição.
Teologia Contemporânea 54

2. Relação com a religião

Apesar de muitos, senão a maioria, dos existencialistas terem sido ateístas,


os autores Søren Kierkegaard, Karl Jaspers e Gabriel Marcel propuseram uma
versão mais teológica do existencialismo. O exmarxista Nikolai Berdyaev
desenvolveu uma filosofia do Cristianismo existencialista na sua terra natal,
Rússia, e mais tarde na França, na véspera da Segunda Guerra Mundial.

3. Fé cristã e existencialismo

O existencialismo não é uma simples escola de pensamento, livre de


qualquer e toda forma de fé. Ajuda a entender que muitos dos existencialistas
eram, de fato, religiosos. Pascal e Kierkegaard eram cristãos dedicados. Pascal era
católico, Kierkegaard, um protestante radical marcado pelo ríspido antagonismo
com a igreja luterana. Dostoiévski era Greco-ortodoxo, a ponto de ser fanático.
Kafka era judeu. Sartre realmente não acreditava em força divina. Sartre não foi
criado sem religião, mas a Segunda Guerra Mundial e o constante sofrimento no
mundo levou-o para longe da fé, de acordo com várias biografias, incluindo a de
sua companheira, Simone de Beauvoir. Curiosamente, Sartre passou seus últimos
anos de vida explorando assuntos de fé e dedicação com um judeu ortodoxo.
Apenas podemos imaginar suas conversas, já que Sartre não as registrou.

Para os existencialistas cristãos, a fé defende o indivíduo e guia as decisões


com um conjunto rigoroso de regras em algumas vertentes cristãs e em outras
como o espiritismo, as decisões são guiadas pelo pensamento, pela alma. Para os
ateus, a "ironia" é a de que não importa o quanto você faça para melhorar a si ou
aos outros, você sempre vai se deteriorar e morrer. Muitos existencialistas
acreditam que a grande vitória do indivíduo é perceber o absurdo da vida e
aceitá-la. Resumindo, você vive uma vida miserável, pela qual você pode ou não
ser recompensado por uma força maior. Se essa força existe, por que os homens
sofrem? Se não existe e a vida é absurda em si mesma, por que não cometer
suicídio e encurtar seu sofrimento? Essas questões apenas insinuam a
complexidade do pensamento existencialista.

“A existência precede e governa a essência.” É um conceito da corrente


filosófica existencialista. A frase foi primeiramente formulada por Jean-Paul Sartre, e
é um dos princípios fundamentais do existencialismo.
Teologia Contemporânea 55

O indivíduo, no princípio, somente tem a existência comprovada. Com o


passar do tempo ele incorpora a essência em seu ser. Não existe uma essência pré-
determinada.

Com esta frase, os existencialistas rejeitam a ideia de que há no ser humano


uma alma imutável, desde os primórdios da existência até a morte. Esta essência será
adquirida através da sua existência. O indivíduo por si só define a sua realidade.

Em 1946, no "Club Maintenant" em Paris, Jean Paul Sartre pronuncia


uma conferência, que se tornou um opúsculo com o nome de "O
Existencialismo é um Humanismo". Nele, ele explica a frase, desta forma:

Se Deus não existe, há pelo menos um ser, no qual a existência


precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por
qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz
Heidegger, a realidade humana. Que significa então que a existência
precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se
descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal
como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque
primeiramente é nada. Só depois será, e será tal como a si próprio se
fizer.

Os existencialistas perguntaram-se se havia um Criador. Se sim, qual é a


relação entre a espécie humana e esse criador? As leis da natureza já foram pré-
definidas e os homens têm que se adaptar a elas? Esses homens estiveram tão
dedicados aos seus estudos que tornaram-se antissociais, enquanto se
preocupavam com a humanidade.

4. Filósofos que mais influenciaram o existencialismo

Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger são alguns dos filósofos que mais


influenciaram o existencialismo. Os dois primeiros se preocupavam com a
mesma questão: o que limita a ação de um indivíduo? Kierkegaard chegou à
possibilidade de que o cristianismo e a fé em geral são irracionais, argumentando
que provar a existência de uma única e suprema entidade é uma atividade inútil.
Teologia Contemporânea 56

Há duas linhas existencialistas famosas, quer de impulsionadores, quer de


existencialistas propriamente ditos.

A primeira, de Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger é


agrupada intelectualmente. Esses homens são os pais do existencialismo e
dedicaram-se a estudar a condição humana. A segunda, de Sartre, Camus e
Beauvoir, era uma linha marcada pelo compromisso político. Enquanto outras
pessoas entraram e saíram, esses sete indivíduos definiram o existencialismo.

4.1. Soren Kierkegaard

O existencialismo cristão se baseia na compreensão de Cristianismo de


Kierkegaard. Ele argumentava que o universo é, fundamentalmente, paradoxal e
que o seu maior paradoxo é a união transcendente de Deus e do homem na
pessoa de Jesus Cristo. Ele também postulou ter um relacionamento pessoal com
Deus que supera todas as normas morais, as estruturas sociais e normas comuns,
pois ele afirmou que, seguir as convenções sociais é essencialmente uma escolha
estética pessoal feita por indivíduos.

Kierkegaard propôs que cada pessoa deve fazer escolhas independentes,


que compreendem, em seguida, a sua existência. Nenhuma estrutura imposta -
mesmo os mandamentos bíblicos - pode alterar a responsabilidade de cada
indivíduo em procurar agradar a Deus de qualquer forma pessoal e paradoxal,
Deus escolhe estar satisfeito. Cada pessoa sofre a angústia da indecisão até que ela
faça um "salto de fé", e comprometa-se a uma escolha particular. Cada ser
humano é confrontado pela primeira vez com a responsabilidade de saber de sua
própria vontade, e depois com o fato de que uma escolha, mesmo que errada,
deve ser feita a fim de viver autenticamente.

Soren Aabye Kierkegaard, nasceu na capital dinamarquesa, Copenhague,


em 1813. Foi o último dos filhos do casamento precipitado que Michael
Pedersen Kierkegaard (viúvo e sem filhos) realizou com sua governanta Anne
Srensdatter (respectivamente 56 e 44 anos na época do nascimento de Soren)
uma vez que já era viúvo sem filhos. Kierkegaard teve um relacionamento muito
difícil com seu pai, pois sua personalidade ficou marcada como a do filho da
expiação. Vive com uma vocação de sacrifício e de mártir idealizada pelo pai.
Teologia Contemporânea 57

Considerava-se pecador diante do olhar de Deus, apesar de sua educação


ter sido baseada no princípio do amor e temor de Deus, assim mesmo sentia
sobre si a responsabilidade dos pecados de seu pai. Vale mencionar que seu pai
blasfemou contra Deus na sua infância. Mais tarde quando a família mudou-se
para Copenhague, seu pai enriqueceu tornando-se um comerciante de lã, apesar
da forte crise que assolava o país deixando muitos dinamarqueses na miséria.

Dois outros fatores marcaram profundamente a vida do filósofo: a morte


de seus irmãos Mikael em 1819, e de sua irmã Maren Cristine em 1822. A
fatalidade aumentou a angustia de seu pai que já era um homem marcado por
um grande sentimento de culpa e deixou profundas cicatrizes em Kierkegaard.

Sua obra trás as marcas dos relacionamentos difíceis que teve com seu pai
e com sua noiva Regina Olsen, com quem rompe um romântico noivado que
durara aproximadamente um ano. Apesar de muito apaixonado afirma estar
fazendo um grande bem à noiva: “... nosso rompimento é um profundo ato de
amor...” Na verdade não havia nenhuma razão aparente para o rompimento.
Entretanto, em suas notas ele menciona um “terrível acontecimento” que
chamou também de o “grande tremor de terra”.

Após esta experiência traumática do noivado rompido, vem um grande


período de profundidade literária. Não se pode deixar de mencionar que
Kierkegaard escreve a partir de sua experiência pessoal. No transcurso de sua
filosofia vão se agregando aspectos de sua existência. O filósofo vive momentos
de profunda depressão, uma amargura sem limites. Porém, esta energia negativa,
se transforma em inspiração para a produção literária que aborda tema diverso da
existência humana.

Em 2 de outubro de 1855 passa mal na rua e é levado ao hospital.


Internado, rejeita tomar a comunhão das mãos de um padre, afirmando que os
padres são apenas funcionários de uma instituição e não são testemunhas do
cristianismo. Kierkegaard queria tomar a comunhão, mas esta não poderia ser
das mãos de um clérigo, antes queria que fosse ministrada pelas mãos de um
leigo. Kierkegaard tinha uma boa relação com Deus, mas não aceitava a igreja.

Emilio Boesem, amigo que o assistia no hospital, escreve por


Kierkegaard, uma palavra de despedida dizendo como foi sua vida de solidão e
Teologia Contemporânea 58

seu destino. Em 11 de novembro de 1855, prematuramente, morre Kierkegaard


com 42 anos. Depois de sua morte a igreja Luterana tenta apropriar-se de seu
corpo (apesar de em toda sua vida ter negado religião oficial), porém os jovens
dinamarqueses não permitiram.

4.1.1. O Estágio Religioso

A religião sempre foi para Kierkegaard uma fonte de inspiração e um


espaço de reflexão e existência. Desde a infância é conduzido pela família na
prática religiosa. Mais tarde, parte para a especulação religiosa ao se iniciar em
um curso de teologia, visando à carreira eclesiástica. A religiosidade pessoal do
filósofo é composta por duas realidades: por um lado o cristianismo com seus
dogmas e seus paradoxos. Por outro lado, a tensão psicológica com que ele e sua
família recebem estes dogmas e paradoxos do cristianismo em meio aos
problemas existenciais profundos e traumáticos no ambiente familiar: angústia,
medo e tremor.

Desde o início, ele deixa claro que se trata de um autor religioso. Neste
sentido, tremor e temor tornam-se um bom exemplo para a introdução ao
mundo religioso de Kierkegaard. Esta obra citada é escrita em um momento de
algum otimismo por parte do autor. Seu objetivo é mostrar através do sacrifício
de Abraão que o estágio ético não é absoluto, pelo contrário fica até ofuscado
diante de exigências superiores do estágio religioso. O autor então argumenta
que Abraão não hesitou em sacrificar Isaac e que este desprendimento foi
exatamente o motivo pelo qual seu filho veio a ser restituído. Será que
semelhante renuncia feita por Kierkegaard em relação à noiva no passado pudesse
a trazer de volta então? A resposta a este questionamento só seria possível se
Kierkegaard se elevasse ao plano da fé como o fez Abraão. Desta forma, percebe-
se que o estágio religioso é marcado pelo subjetivismo.

Entretanto, apesar da vida religiosa ser consequência dos dois primeiros


estágios, requer-se por ela uma decisão. Kierkegaard entende que teve que fazer
uma escolha, muito clara, pela vida religiosa. Entre as várias vocações que
estavam diante de si, ele escolheu a vida religiosa, que para o filósofo torna-se a
forma de vida mais difícil, entre outras coisas, por ser marcada pela solidão e pelo
olhar atento de Deus. Nesta sua escolha pela vida religiosa solitária, Kierkegaard
foi conduzido a uma crise com os oficiais da Igreja Luterana (Igreja oficial da
Teologia Contemporânea 59

Dinamarca). O filósofo compreendeu que acontecia em seu tempo a


descristianização do mundo. Sua luta solitária, contra pastores e bispos oficiais
preocupados com suas carreiras eclesiásticas, aumentará o seu sofrimento e o fará
alvo das chacotas populares, aumentando, a cada dia, a sua solidão.

A solidão no sofrimento torna-se o centro da meditação de Kierkegaard.


A partir da solidão e do sofrimento o filósofo desenvolve o sentido da
subjetividade e da existência que vem do seu interior. Na luta contra o
luteranismo oficial, desenvolve um sistema religioso doloroso que se diferencia
em muito da religião que se praticava. O hegelianismo, que outrora o
influenciou, é agora alvo de duras críticas dirigidas por Kierkegaard. Ele não
aceitava a aproximação da Igreja com o romantismo de Hegel. Kierkegaard
aponta para o erro imbecil no âmbito religioso, segundo ele não havia qualquer
compatibilidade entre o cristianismo como um momento histórico que se devia
ultrapassar, conforme o pensamento dos romancistas. Não, o cristianismo não
pode ser considerado apenas como um acontecimento histórico.

4.1.2. Conceito de Deus

“O importante é entender–me a mim mesmo, é perceber o que Deus


realmente quer que eu faça; o importante é achar uma verdade que é verdadeira
para mim, achar a ideia em prol da qual posso viver e morrer” Journals p.44. In
Filosofia e Fé Cristã, Colin Brown

Em 1848, Kierkegaard passou pela experiência de conversão e registrou


em um de seus Jounals o seguinte testemunho: “A totalidade do meu ser está
transformada... Mas a crença no perdão dos pecados significa crer que aqui no
tempo o pecado é esquecido por Deus, que é realmente verdade que Deus o
esquece.” Kierkegaard se opunha a Hegel e ridiculariza os argumentos abstratos
da metafísica especulativa. Ele escreve sobre Hegel em 1850:

Quantas vezes demonstrei que fundamentalmente Hegel torna os


homens em pagãos, em raça de animais com o dom do raciocínio.
No mundo animal, pois, "indivíduo” sempre é menos importante do
que raça. Mas a peculiaridade da raça humana é: justamente porque
o indivíduo é criado à imagem de Deus, o “indivíduo” está acima da
raça. Isto pode ser entendido erroneamente e terrivelmente abusado,
Teologia Contemporânea 60

reconheço. Mas isso é o cristianismo. E é aí que a batalha deve ser


travada (Journals).

Para Kierkegaard a subjetividade isolada é má, assim como a objetividade


de Hegel por si só, também é má. Para ele, a única salvação era a subjetividade.
Deus era como uma subjetividade infinita e compulsora. Por se tratar o
cristianismo de uma religião histórica e em decorrência das críticas desta
realidade, Kierkegaard escreveu que os resultados dos fatos históricos para ele
eram incertos, o importante era a escolha subjetiva. Crer em Deus era um salto
de fé, um comprometimento com o absurdo. A pessoa faz uma escolha por
aquele fato histórico porque este significa tanto para ela que até arrisca a vida por
ele. “Então vive; vive inteiramente cheio da ideia, e arrisca sua vida por ela; e sua
vida é a prova de que crê”. Não precisa haver provas para a pessoa crer e viver
esta fé. A fé é impossível se houver provas e certezas. Sem riscos não há fé, é
uma impossibilidade. A fé e a razão são opostas mutuamente exclusivas.

No tocante à justiça de Deus, Kierkegaard diz que cada criminoso, cada


pecador, que pode ser punido neste mundo, pode também ser salvo para a
eternidade. Na eternidade, o que será lembrado? O sofrer, aqui, pela verdade.
Todas as transações neste mundo têm como filtro o intelectualismo e a
espiritualidade, sendo Deus nos Céus o parceiro.

4.2. Friedrich Nietzsche

Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu numa família luterana em 15 de


outubro de 1844, filho de Karl Ludwig, seus dois avós eram pastores
protestantes; o próprio Nietzsche pensou em seguir a carreira de pastor.
Entretanto, Nietzsche rejeita a fé durante sua adolescência, e os seus estudos de
filosofia afastam-no da tentação teológica. Iniciou seus estudos no semestre de
Inverno de 1864-1865 na Universidade de Bonn em Filosofia Clássica e
Teologia evangélica. Durante os seus estudos na universidade de Leipzig, a
leitura de Schopenhauer (O Mundo como Vontade e Representação, 1820) vai
constituir as premissas da sua vocação filosófica. Aluno brilhante, dotado de
sólida formação clássica, Nietzsche é nomeado aos 24 anos professor de Filosofia
na universidade de Basiléia. Adota então a nacionalidade suíça. Desenvolve
durante dez anos a sua acuidade filosófica no contacto com o pensamento grego
Teologia Contemporânea 61

antigo - com predileção para os Pré-socráticos, em especial para Heráclito e


Empédocles.

Em 1879 seu estado de saúde obriga-o a deixar o posto de professor. Sua


voz, inaudível, afasta os alunos. Começa então uma vida errante em busca de um
clima favorável tanto para sua saúde como para seu pensamento: "Não somos
como aqueles que chegam a formar pensamentos senão no meio dos livros - o
nosso hábito é pensar ao ar livre, andando, saltando, escalando, dançando [… ]
"Em 1882 começa a escrever o Assim Falou Zaratustra, quando de uma estada
em Nice. Nietzsche não cessa de escrever com um ritmo crescente. Este período
termina brutalmente em 3 de Janeiro de 1889 com uma "crise de loucura" que,
durando até a sua morte, coloca-o sob a curatela da sua mãe e sua irmã. No
início desta loucura, Nietzsche encarna alternativamente as figuras míticas de
Dionísio e Cristo, expressa em bizarras cartas, afundando depois em um silêncio
quase completo até a sua morte. Após sua morte, sua irmã, Elisabeth Förster-
Nietzsche e Peter Gast, dileto amigo do filósofo, segundo um plano de
Nietzsche, datado de 17 de março de 1887, efetuaram uma coletânea de
fragmentos póstumos para compor a obra conhecida como Vontade de Poder.

Durante toda a vida sempre tentou explicar o insucesso de sua literatura,


chegando a conclusão de que nascera póstumo, para os leitores do porvir. O
sucesso de Nietzsche, entretanto, sobreveio quando um professor dinamarquês
leu a sua obra “Assim Falou Zaratustra” e, por conseguinte, tratou de difundi-la,
em 1888.

Crítico da cultura ocidental e suas religiões e, consequentemente, da


moral judaico-cristã. Nietzsche é, juntamente com Marx e Freud, um dos autores
mais controversos na história da filosofia moderna.

Nietzsche, sem dúvida considera o Cristianismo e o Budismo como "as


duas religiões da decadência", embora ele afirme haver uma grande diferença
nessas duas concepções. O budismo para Nietzsche "é cem vezes mais realista
que o cristianismo". Não obstante, também se autointitula ateu: "Para mim o
ateísmo não é nem uma consequência, nem mesmo um fato novo: existe comigo
por instinto" (Ecce Homo, pt.II, af.1)
Teologia Contemporânea 62

Friedrich Nietzsche quis ser o grande "desmascarador" de todos os


preconceitos e ilusões do gênero humano, aquele que ousa olhar, sem temor,
aquilo que se esconde por trás de valores universalmente aceitos, por trás das
grandes e pequenas verdades melhor assentadas, por trás dos ideais que serviram
de base para a civilização e nortearam o rumo dos acontecimentos históricos. E
assim a moral tradicional, e principalmente esboçada por Kant, a religião e a
política não são para ele nada mais que máscaras que escondem uma realidade
inquietante e ameaçadora, cuja visão é difícil de suportar. A moral, seja ela
kantiana ou hegeliana, e até a catharsis aristotélica são caminhos mais fáceis de
serem trilhados para se subtrair à plena visão autêntica da vida.

Nietzsche golpeou violentamente essa moral que impele à revolta dos


indivíduos inferiores, das classes subalternas e escravas contra a classe superior e
aristocrática que, por um lado, pelo influxo dessa mesma moral, sofre de má
consciência e cria a ilusão de que mandar é por si mesmo uma forma de
obediência. Essa traição ao "mundo da vida" é a moral que reduz a uma ilusão a
realidade humana e tende asceticamente a uma fictícia racionalidade pura.

Para Nietzsche na vida só se pode conservar e manter-se através de


imbricações incessantes entre os seres vivos, através da luta entre vencidos que
gostariam de sair vencedores e vencedores que podem a cada instante ser
vencidos e por vezes já se consideram como tais. Neste sentido a vida é vontade
de poder ou de domínio ou de potência. A vida é tudo e tudo se esvai diante da
vida humana. Porém as máscaras, segundo ele, tornam a vida mais suportável, ao
mesmo tempo em que a deformam, mortificando-a à base de cicuta e,
finalmente, ameaçam destruí-la.

Não existe via média, segundo Nietzsche, entre aceitação da vida e


renúncia. Para salvá-la, é mister arrancar-lhe as máscaras e reconhecê-la tal como
é: não para sofrê-la ou aceitá-la com resignação, mas para restituir-lhe o seu
ritmo exaltante, o seu merismático júbilo.

O homem é um filho do "húmus" e é, portanto, corpo e vontade não


somente de sobreviver, mas de vencer. Suas verdadeiras "virtudes" são: o orgulho,
a alegria, a saúde, o amor sexual, a inimizade, a veneração, os bons hábitos, a
vontade inabalável, a disciplina da intelectualidade superior, a vontade de poder.
Mas essas virtudes são privilégios de poucos, e é para esses poucos que a vida é
Teologia Contemporânea 63

feita. De fato, Nietzsche é contrário a qualquer tipo de igualitarismo e


principalmente ao disfarçado legalismo kantiano, que atenta o bom senso através
de uma lei inflexível, ou seja, o imperativo categórico: "Proceda em todas as suas
ações de modo que a norma de seu proceder possa tornar-se uma lei universal".

Para Nietzsche o homem é individualidade irredutível, à qual os limites e


imposições de uma razão que tolhe a vida permanecem estranhos a ela mesma, à
semelhança de máscaras de que pode e deve libertar-se.

Para Nietzsche a liberdade não é mais que a aceitação consciente de um


destino necessitante. O homem libertado de qualquer vínculo, senhor de si
mesmo e dos outros, o homem desprezador de qualquer verdade estabelecida ou
por estabelecer e estar apto para se exprimir a vida, em todos os seus atos - era
este não apenas o ideal apontado por Nietzsche para o futuro, mas a realidade
que ele mesmo tentava personificar.

O mundo para Nietzsche não é ordem e racionalidade, mas desordem e


irracionalidade. Seu princípio filosófico não era portanto Deus e razão, mas a
vida que atua sem objetivo definido, ao acaso, e por isso se está dissolvendo e
transformando-se em um constante devir. A única e verdadeira realidade sem
máscaras, para Nietzsche, é a vida humana tomada e corroborada pela vivência
do instante.

Nietzsche era um crítico das "ideias modernas", da vida e da cultura


moderna, do neonacionalismo alemão. Para ele os ideais modernos como
democracia, socialismo, igualitarismo, emancipação feminina não eram senão
expressões da decadência do "tipo homem". Por estas razões, é por vezes
apontado como um precursor da pós-modernidade.

Muitas de suas frases se tornaram famosas, sendo repetidas nos mais diversos
contextos, gerando muitas distorções e confusões. Algumas delas:

(a) "Deus está morto. Viva Perigosamente. Qual o melhor remédio? - Vitória!".
(b) "Há homens que já nascem póstumos."
(c) "O Evangelho morreu na cruz."
Teologia Contemporânea 64

(d) "A diferença fundamental entre as duas religiões da decadência: o budismo não
promete, mas assegura. O cristianismo promete tudo, mas não cumpre nada."
(e) "Quando se coloca o centro de gravidade da vida não na vida, mas no "além" -
no nada -, tira-se da vida o seu centro de gravidade."
(f) "Para ler o Novo Testamento é conveniente calçar luvas. Diante de tanta
sujeira, tal atitude é necessária."
(g) "O cristianismo foi, até o momento, a maior desgraça da humanidade, por ter
desprezado o Corpo."
(h) "A fé é querer ignorar tudo aquilo que é verdade."
(i) "As convicções são cárceres."
(j) "As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras."
(k) "O idealista é incorrigível: se é expulso do seu céu, faz um ideal do seu inferno."
(l) "Em qualquer lugar onde encontro uma criatura viva, encontro desejo de
poder."
(m) "Um político divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e
inimigos."
(n) "Quanto mais me elevo, menor eu pareço aos olhos de quem não sabe voar."
(o) "Se minhas loucuras tivessem explicações, não seriam loucuras."
(p) "O Homem evolui dos macacos? É, existem macacos!"
(q) "Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal."
(r) "O depois de amanhã me pertence"
(s) "Deus está morto, mas o seu cadáver permanece insepulto."
(t) "Acautela-te quando lutares com monstros, para que não te tornes um."
Adorava a França e a Itália, porque acreditava que eram terras de homens com
espíritos-livres. Admirava Voltaire, e considerava como último grande alemão
Goethe, humanista como Voltaire. Naqueles países passou boa parte de sua vida e ali
produziu seus mais memoráveis livros. Detestava a prepotência e o antissemitismo
prussianos, chegando a romper com a irmã e com Richard Wagner, por ver neles a
personificação do que combatia - o rigor germânico, o antissemitismo, o imperativo
categórico, o espírito aprisionado, antípoda de seu espírito-livre. Anteviu o seu país
em caminhos perigosos, o que de fato se confirmou catorze anos após sua morte,
com a primeira grande guerra e a gestação do Nazismo.
Teologia Contemporânea 65

Capítulo 5

Teologia Dialética – Neo Ortodoxa


Teologia dialética (ou teologia da crise ou, ainda, teologia da Palavra) foi
um movimento teológico que floresceu na Europa (particularmente na
Alemanha) da década de 1920.

Reagindo ao liberalismo teológico, a teologia dialética tem em Karl Barth


o principal nome. Além dele, outros teólogos tornaram-se conhecidos, como
Emil Brunner, Friedrich Gogarten e Eduard Thurneysen, por exemplo.

De uma forma geral, a teologia dialética apresenta duas características


básicas. Em primeiro lugar, afirma-se que a própria revelação tem estrutura
dialética, "na medida em que mantém unido elementos que se excluem
reciprocamente: Deus e homem, eternidade e tempo, revelação e história".
Segundo, os próprios enunciados teológicos devem seguir esta metodologia
dialética, exprimindo tanto a posição quanto a negação. O grande exemplo desta
metodologia continua sendo o primeiro livro de Karl Barth, intitulado “A Carta
aos Romanos”.

A teologia dialética encontrou o seu fim com a extinção, em 1933, da


revista que era a porta-voz de suas ideias, a Zwischen den Zeiten.

1. Karl Barth e a revolta contra o Liberalismo Teológico

Em 1919, um jovem pastor de uma pequenina igreja da Suíça escreveu


um comentário tão radical que certo escritor disse que Karl Barth pegou uma
carta escrita em grego do primeiro século e transformou em uma carta urgente
para o homem do século vinte. Um teólogo católico disse que esse comentário
aos Romanos foi uma revolução copernicana na teologia protestante que acabou
com o predomínio do liberalismo teológico. Ele foi, de fato, uma bomba que
Barth lançou no cenário teológico contemporâneo.
Teologia Contemporânea 66

Diz-se da segunda versão do comentário aos Romanos, totalmente


revisada e publicada em 1921, que ela foi ainda mais revolucionária que a
primeira. Porém, de qualquer forma, 1919 tem sido para muitos o ponto de
partida da teologia contemporânea.

A influência da obra de Karl Barth nessa nova era da teologia é enorme.


Ele transformou a teologia do século vinte em teologia da crise. Foi ele quem
dominou o ambiente teológico, formulou os problemas e apresentou as hipóteses
de maior relevância, e desde então tem estado no centro da teologia moderna.
Não há nenhuma dúvida de que o pensamento de Barth dominou o pensamento
teológico do seu tempo. Ele produziu um impacto tão grande na teologia
protestante, que todo teólogo do nosso século que quiser estudar teologia a sério,
pode se opor à sua teologia ou acolher suas ideias, mas não pode jamais ignorá-la
se quiser conhecer a situação teológica contemporânea.

O que havia nesse comentário do pastor Barth que sacudiu os alicerces


teológicos do século vinte? Quais foram os princípios que Barth apresentou e que
se converteram no legado de uma nova era teológica? Harvie M. Conn, aluno do
Dr. Cornelius Van Til, esboça alguns princípios que emanam do comentário de
Karl Barth aos Romanos e que parecem ter desempenhado o papel mais influente
na formação das novas variantes teológicas. Esses princípios serão abordados nos
tópicos a seguir.

A revolta teológica contra o liberalismo teológico foi uma das mais


notórias características da teologia barthiana. Barth havia aprendido teologia aos
pés de dois grandes teólogos liberais, à saber: Harnack e Herrmann. O Jesus do
mentor de Barth, Harnack, não era o filho de Deus único e sobrenatural, mas a
encarnação do amor e dos ideais humanistas. A Bíblia do mentor de Barth,
Herrman, não era a Palavra infalível de Deus, e sim um livro extraordinário,
ainda que ordinário, cheio de erros e que exigia uma crítica radical para
encontrar a verdade. A medida de toda a verdade era a experiência, o sentimento.
A teologia desses dois mestres e também a de Barth era o Idealismo teológico,
caracterizado por uma profunda veia de pietismo e de preocupação pela prática
da experiência religiosa cristã. Em 1919, e com muito mais força em 1921, Barth
se encarregou de repudiar grande parte desse liberalismo clássico.
Teologia Contemporânea 67

A primeira guerra mundial e seus horrores acabaram por soterrar o


idealismo teológico liberal. A culta Alemanha, a liberal Inglaterra e a civilizada
França lutavam como animais ferozes. Nesse ínterim, os mestres liberais de Barth
se uniram com outros teólogos para declarar seu apoio à Alemanha, o que
demonstrou que eles eram mestres de uma religião atada a uma cultura, e não a
Deus. O comentário de Barth aos Romanos surgiu então como repúdio de seus
antigos mestres liberais. O liberalismo fazia de Deus algo imanente ao mundo;
Barth se opôs a isso e apresentou Deus como Totalmente Outro. O subjetivismo
do liberalismo do século XIX havia colocado o homem no lugar de Deus; Barth
exclamou: Seja Deus, e não o homem! O liberalismo havia exaltado o uso
aculturado da religião; Bart condenou a religião como o pecado máximo. O
liberalismo edificou a teologia sobre a base da ética, Barth quis edificar a ética
sobre a base da teologia. O comentário de 1921 de Barth propôs uma nova ideia
de revelação. Em oposição ao antigo liberalismo, Barth enfatizou a necessidade
que o homem tem da revelação, e chamou suas ideias de Teologia da Palavra de
Deus. Barth, porém, insistiu na distinção entre a Bíblia e a Palavra de Deus. Este
era seu legado kantiano.

Segundo Barth, pode-se ler a Bíblia sem ouvir a Palavra de Deus. A


Bíblia é simplesmente um livro, mas, pelo menos, um livro através do qual nos
pode chegar a Palavra de Deus. A relação entre Deus e a Bíblia é real, porém
indireta. A Bíblia, diz Barth, é a Palavra de Deus enquanto Deus fala por meio
dela [...] a Bíblia se transforma em palavra de Deus nesse momento. Para ele, até
que a Bíblia se torne real para nós, até que ela nos fale da nossa situação
existencial, ela não é Palavra de Deus. Esse é o conceito barthiano de revelação. A
dialética de Barth, ou teologia do paradoxo. O comentário de Barth também
introduziu um novo método para explicar a teologia, a dialética. Esse termo ficou
rapidamente associado à obra de Barth, ainda que o método tenha sido tomado
por empréstimo do teólogo existencialista Soren Kierkegaard. Kierkegaard havia
dito que toda afirmação teológica era paradoxal, não podendo ser sintetizada. O
homem devia somente conservar ambos os elementos do paradoxo. É esse ato de
sustentação do paradoxo que Kierkegaard chama de salto de fé.

Tal conceito influenciou muito a teologia barthiana, de maneira que


quando preparava o comentário aos Romanos, Barth afirmava que ― enquanto
estamos na terra, não podemos fazer outra coisa em teologia a não ser utilizar o
método de afirmação e contra-afirmação. Não nos atrevemos a pronunciar em
Teologia Contemporânea 68

forma absoluta a palavra definitiva [...] O paradoxo não é acidental na teologia


cristã. Ele pertence, em certo sentido, ao coração do pensamento doutrinário. A
própria natureza da revelação, segundo Barth, é um paradoxo: Deus é o oculto
que se revela; conhecemos a Deus e conhecemos o pecado; todo homem é
escolhido e também reprovado em Cristo; o homem é justificado por Cristo, mas
ainda é pecador. Certo comentarista observou que, segundo a teologia dialética
de Barth, a revelação que vem de cima para o homem, ao encontrar a
contradição do pecado e finitude humana, só pode ser assimilada pela mente
humana como sendo um paradoxo.

O comentário de Barth veio reafirmar a transcendência absoluta de Deus.


Um dos pressupostos de Barth, que também é um legado kantiano, é que Deus é
sempre sujeito, nunca objeto. Deus não é simplesmente uma unidade no mundo
dos fenômenos; ele é infinito e soberano, “Totalmente Outro”, e só pode ser
conhecido quando nos fala. Ele não pode ser explicado como qualquer outro
objeto pode ser, apenas podemos nos dirigir a Ele [...] Por esta razão, não cabe à
teologia medi-lo em uma forma de pensamento direto ou unilinear. Não
podemos falar a respeito de Deus. Apenas falamos a Deus. Segundo Barth, a
própria natureza de Deus exige que as afirmações que lhe dirigimos sejam
revestidas de contradição: Não podemos considerá-lo perto, a não ser que o
consideremos longe. Sem dúvida o grande tema de Barth, em oposição declarada
ao liberalismo, foi a infinita diferença qualitativa entre eternidade e tempo, céu e
terra, Deus e o homem. Não se pode identificar Deus com nada no mundo, nem
sequer com as palavras da Escritura. Deus chega ao homem como a tangente que
toca o círculo, mas na realidade não o toca. Deus fala ao homem como a bomba
explode na terra. Depois da explosão, tudo o que resta é uma cratera abrasada no
terreno, e essa cratera é a igreja.

O comentário de Barth também demarcou a fronteira entre a história e a


teologia. A teologia do século dezenove se dedicou a procurar o Jesus histórico
por detrás do Cristo sobrenatural da Bíblia. Os liberais clássicos como o
professor de Barth, Harnack, se dedicaram a buscar nos evangelhos, os quais eles
condenavam como nãoconfiáveis, os fatos históricos sobre Jesus. Barth asseverou
que essa busca é um a busca sem importância, pois, segundo ele, a revelação não
entra na história, apenas a toca como uma tangente toca um círculo. Segundo
Barth, não há nada na história sobre o que possamos basear a fé. A fé é um vazio
preenchido não pela história, mas pela revelação.
Teologia Contemporânea 69

Profundamente influenciado pelos conceitos de história de Kierkgaard e


de Franz Overbeck, Barth dividiu a história em dois níveis: Historie e
Geschichte. Ainda que ambos os termos possam ser traduzidos por história, no
alemão, a conotação que essas duas palavras têm é bem diferente. Historie é a
totalidade dos fatos históricos do passado, podendo ser comprovada
objetivamente. Geschichte se ocupa daquilo que une essencialmente, que exige
algo de mim e requer meu compromisso. Segundo Barth, a ressurreição de Jesus
pertence ao âmbito de Geschichte, não de Historie. Para ele, o âmbito da
Historie de nada vale para o crente. Jesus deve ser confrontado no âmbito de
Geschicht.

Mais uma vez a influência do pensamento de Immanuel Kant sobre a


teologia de Karl Barth, principalmente no que concerne ao mundo dos
fenômenos e dos números é muito grande, podendo-se até dizer que a teologia
contemporânea tem sua raiz em Konigsberg, na Prússia. Ao longo do
desenvolvimento da teologia contemporânea, as ideias kantianas de fenomenal e
numenal volta e meia reaparecem com uma nova roupagem. Alguns tomam o
tema e o ampliam, porém sua influência continua sendo grande a ponto de
podermos designar o século dezoito e o pensamento de Kant como protótipo da
teologia contemporânea.

1.1. Objeções à teologia dialética de Karl Barth

Há, sem dúvida, algumas críticas que se pode fazer à obra de Barth. Ele
mesmo reconheceu alguns de seus excessos e poliu boa parte dos argumentos que
enfatizou a princípio, e até certo ponto, pode-se dizer que ele suavizou algumas
ideias mais incisivas. O que passo a expor agora são algumas críticas que se
podem fazer ao pensamento de Barth.

Em primeiro lugar, ainda que as ideias de Barth representem uma revolta


contra o liberalismo clássico, suas ideias podem ser chamadas de novo
liberalismo. Barth não conseguiu se livrar do ponto de vista crítico liberal das
Escrituras. Por causa dos seus pressupostos liberais, Barth não aceita a inerrância
da Bíblia, chegando mesmo a afirmar que toda a Bíblia é um documento
humano falível e que buscar partes infalíveis nas Escrituras é simples capricho
pessoal e desobediência. A inerrância das Escrituras é uma das diferenças cruciais
Teologia Contemporânea 70

entre o liberalismo e o cristianismo ortodoxo, e o posicionamento de Barth nada


mais é que uma opção por ficar em cima do muro. Sua ideia de revelação, em
última instancia, é puramente subjetiva. Para Barth, a diferença entre a Bíblia
como meramente um livro e a Bíblia como a Palavra de Deus depende
exclusivamente da reação humana frente a este livro. Embora em uma atitude de
revolta contra o liberalismo ele tenha exclamado: Seja Deus e não o homem, na
prática, dentro da sua teologia dialética, o homem é entronizado no centro da
experiência religiosa. O resultado final da dialética de Barth é a destruição da
verdade objetiva. Se toda comunicação histórica e toda experiência direta com
Deus se encaixa em uma concepção pagã de Deus, como poderemos aproximar-
nos da verdade sobre Deus? Também a sua insistência em descrever Deus como
“Totalmente Outro” faz de Deus um ser indescritível. Como Deus não é um
objeto no tempo e no espaço, e visto que a inescrutabilidade e profundidade
formam parte da natureza de Deus, o homem não pode conhecê-lo diretamente,
afirma ele. A questão é: se Deus é assim tão indescritível e insondável, de que
maneira o homem pode conhecê-lo? A separação que Barth faz da Historie e da
Geschichte, traz à tona a problemática concernente à historicidade da obra
redentora de Cristo como fundamento do cristianismo. Ela argumenta na
tradição de Nietzche e Overbeck, separando o cristianismo da história, e ao fazê-
lo, acaba por solapar a base do cristianismo. É claro que o propósito de Barth foi
tirar do liberalismo o monopólio quanto ao método de interpretação, mas ao
fazê-lo, também privou o cristianismo do seu lugar na história.

2. Neo-ortodoxia

Analisando os pressupostos teológicos do novo liberalismo, Karl Barth


havia desencadeado uma tremenda revolução com seu comentário aos Romanos,
e nos anos que se seguiram, a revolução se ampliou consideravelmente, se
avolumando sob a égide de um novo movimento teológico denominado ―neo-
ortodoxia. Emil Brunner talvez tenha sido um dos nomes mais conhecidos dessa
nova escola, depois, é claro, de Barth.

2.1. Emil Brunner

Brunner foi um teólogo suíço residente nos Estados Unidos que também
teve participação importante no desenvolvimento da teologia neo-ortodoxa.
Nascido em 1889, estudou em Zurich, Berlim e também no Union Theological
Teologia Contemporânea 71

Seminary, em Nova Iorque. Tornou-se professor de teologia em Zurich em


1924, e em 1953 deixou a Suíça para tornar-se professor na Universidade Cristã
do Japão.

Desde os primeiros anos do comentário aos Romanos, a neo-ortodoxia –


às vezes chamada de barthianismo – cruzou muitas fronteiras, tendo exercido
influência no oriente. No Japão, por exemplo, apesar da influencia de Brunner,
foi Barth quem foi apelidado de ― o papa teológico. Enquanto nos Estados
Unidos ele era recebido como um dos mais importantes teólogos, no Japão ele
era conhecido como o único teólogo. Essa influência de Barth no Japão deve-se
principalmente aos escritos de Tokutaro Takahura, por volta de 1925. Na
verdade, o mundo inteiro sentiu o abalo da teologia barthiana, tanto que ao final
da década de cinquenta, as três principais correntes teológicas já eram
mencionadas como sendo a conservadora ou ortodoxa,liberal e neo- ortodoxa.

2.1.1. Diferença de opiniões entre Barth e Brunner

Temos que reconhecer que existe muita rivalidade no movimento. A


ferrenha diferença de opiniões entre Barth e Brunner quanto à realidade do
nascimento virginal e da revelação geral, as criticas de Barth à Bultmann e as
críticas que Bultmann devolveu à Barth, a discordância de Pannenberg acerca do
conceito barthiano de história, são indicativos de que as vozes dentro do
movimento neo-ortodoxo nem sempre foram unânimes. Emil Brunner aceita a
revelação geral, e a mesma é negada por Barth. Barth aceita o nascimento
virginal, conceito que é negado por Brunner. Ele foi duramente criticado por
Barth por afirmar que a imagem de Deus se encontra ainda no homem pecador e
que Deus se revela na natureza, mas se defendeu argumentando que se o homem
pecador não é mais a imagem de Deus e se não há nenhuma revelação de Deus
na natureza, então o homem não pode ser responsabilizado pelo pecado que
comete.

2.1.2. Neo-ortodoxia e o conceito de revelação

O tema mais debatido pela neo-ortodoxia é o conceito de revelação. A


revelação, segundo Barth, é uma perpendicular que vem de cima, e que por isso
não pode se comparar com as melhores intuições humanas. A revelação é um
evento no qual Deus toma a iniciativa. Também é dito que a revelação não pode
Teologia Contemporânea 72

comparar-se com a Bíblia, pois é superior a ela. A Bíblia e suas afirmações são
testemunhas, são sinais indicadores da revelação, mas não é a revelação em si. A
Escritura não é a Palavra de Deus, e nem as afirmações da Escritura são
revelação. Segundo Barth, comparar a Bíblia com a Palavra de Deus é objetivar e
materializar a revelação.

Nesse mesmo terreno, Brunner definiu a revelação como sendo uma


ocasião de diálogo em que Deus se encontra com o homem. Não se pode dizer
que a revelação tenha acontecido, a não ser que ambos os participantes do
encontro, a saber, Deus e o homem, se encontrem.

O coração da revelação da Palavra de Deus, segundo a perspectiva neo-


ortodoxa, é Jesus Cristo. De fato, Barth insiste tanto nessa ideia que chega ao
ponto de negar a existência de qualquer outra revelação, à parte de Cristo. Para
ele, a história da revelação e a história da salvação vêm a ser a mesma coisa. No
Cristo de Barth, Deus revelou que não queria deixar o homem existir em pecado.
Por isso, Barth insiste em que nunca deveríamos mencionar o pecado, a não ser
que agreguemos imediatamente que o pecado foi derrotado, esquecido e vencido
por Jesus. A reconciliação entre Deus e o homem se efetua por meio de Cristo.
Jesus Cristo é o próprio Deus, isto é, é Deus que se humilha a si mesmo. Em sua
liberdade, Deus cruza o abismo aberto e mostra que ele é verdadeiramente
Senhor.

Na encarnação, Deus se humilha a si mesmo. Barth não quer admitir a


humilhação do homem Jesus. Segundo ele, dizer que a humilhação se refere ao
homem é uma mera tautologia. Que sentido haveria em falar de um homem
humilhado? A humilhação é algo natural no homem. Porém, dizer que Deus se
humilhou a si mesmo, segundo Barth, é entender o verdadeiro significado de
Jesus Cristo como Deus. Ele é o Deus que se humilha que se revela, e é também
a própria essência da revelação.

Barth afirma que Cristo, embora haja se humilhado como Deus, foi
exaltado como homem. Ele se nega a admitir a ideia tradicional dos dois estados
de Cristo, humilhação e exaltação, referindo-se à totalidade do Deus-homem em
ordem cronológica. Para Barth, Deus se humilhou a si mesmo e o homem (a
humanidade de Jesus) foi exaltada. Dizer que o estado de exaltação se refere a
Deus também é mera tautologia. Que sentido haveria em falar em um Deus
Teologia Contemporânea 73

exaltado? A exaltação é algo natural em Deus. Segundo Barth, em Cristo, a


humanidade é humanidade exaltada, assim como a divindade é divindade
humilhada. E a humanidade é exaltada com a humilhação da Divindade.

A doutrina de Barth traz implícito o universalismo. Outro problema


bastante polêmico dentro da neo-ortodoxia é a ambiguidade de seus proponentes
no que concerne à possibilidade de salvação universal. Barth desde o início
repudiou o conceito supralapsariano que é a dupla predestinação afirmando que
a eleição não diz respeito a pessoas, e sim à Cristo. Ele afirma que a tarefa da
igreja é proclamar que os homens já foram eleitos em Cristo, e que, portanto,
devem viver como escolhidos. Para Barth, a eleição não é um estado que
adquirimos em Cristo, e sim uma vida de ação e serviço a Deus.

Esse conceito barthiano implica em universalismo? Barth não afirmou,


mas também jamais negou essa hipótese. Em uma de suas últimas conferências
sobre a humanidade de Deus, ele disse que não temos o direito teológico de
estabelecer quaisquer limites à misericórdia de Deus que se manifesta em Jesus
Cristo.

2.2. Objeções à neo-ortodoxia

Como se pode observar, muitos pressupostos da neo-ortodoxia são


resultantes da influência do liberalismo, o que torna algumas de suas propostas
inaceitáveis para os teólogos ortodoxos. Há ainda muita polêmica dentro da neo-
ortodoxia, não sendo difícil levantar objeções a essa corrente teológica. O que
apresentamos a seguir são algumas objeções mais frequentes que são levantadas
contra a neo-ortodoxia.

Primeiramente, a neo-ortodoxia coloca a experiência subjetiva acima da


revelação objetiva. Para a neo-ortodoxia, a revelação não é simplesmente uma
declaração de Deus ao homem, e sim um encontro divino-humano, uma
confrontação e um diálogo existencial. De acordo com essa premissa, a Bíblia
não pode ser a Palavra de Deus. Ela se transforma em Palavra de Deus à medida
que Deus fala conosco por meio dela. Reconhece-se nessa premissa a dívida que a
neo-ortodoxia tem com a escola de filosofia existencialista.
Teologia Contemporânea 74

A neo-ortodoxia conserva a linguagem teológica ortodoxa, porém a


reinterpreta, e muitas vezes o resultado desta reinterpretação é tão nocivo quanto
veneno no leite. As doutrinas do pecado original, da queda de Adão, da
redenção, da ressurreição e da segunda vinda de Cristo são chamadas de mitos
por Brunner e de saga por Barth. A interpretação que a neo-ortodoxia dá a essas
passagens é acima de tudo existencial, quase nunca literal, sob alegação de que
essas doutrinas não descrevem eventos na história, e sim condições históricas sob
as quais todos os homens vivem. Gênesis 3, por exemplo, não deve ser tomado
como história literal, sendo apenas uma forma simbólica de explicar a realidade
do pecado e do orgulho na vida humana. Esse conceito de teologia não deixa
nenhuma porta pela qual possa entrar a pregação da vinda do Filho de Deus
como evento a ocorrer na história, por exemplo.

A insistência de Barth em Jesus Cristo como o coração da revelação é tão


forte que o leva a negar a existência de qualquer outra revelação de Deus. Essa
ideia é contrária a Bíblia, pois esta afirma que Deus se revela através da sua
criação (Atos 14.17 e Romanos 1.19-20). O conceito barthiano e neo-ortodoxo
de revelação também é contrário à doutrina bíblica da inspiração, e acaba por
destruir o caráter bíblico de revelação canônica.

Alguns acusam Barth de fazer uma interpretação dualista da encarnação


de Cristo, pois ele parece fazer distinção entre as duas naturezas, repudiando por
completo o credo da Calcedônia. Ora, Cristo não nos salvou apenas por meio da
sua divindade, mas também por meio da sua humanidade. Nós temos paz por
meio do sangue da cruz (Colossenses 1.20, Efésios 2.16) e não há nada mais
humano que o sangue de uma pessoa.

Ainda que Barth diz que nem afirma e nem nega a teoria da salvação
universal, sua ideia de “eleição universal em Cristo” parece uma espécie de
neouniversalismo. Além disso, seu repúdio pelas descrições do céu e do inferno
parecem um conceito de salvação bem diferente do que é apresentado nas
Escrituras. O resultado dessa postura “neouniversalista” é a destruição da
gravidade da incredulidade, e deste modo a neo-ortodoxia destrói as advertências
bíblicas contra a apostasia, bem como o chamado ao arrependimento e à fé.

Por várias razões, muitos teólogos têm entendido mal a neo-ortodoxia.


Essa corrente teológica pretende, entre outras coisas, ser um retorno ao ensino
Teologia Contemporânea 75

dos reformadores. A razão de ser da neo-ortodoxia é atacar o otimismo do


liberalismo clássico e as corrupções da teologia católica romana. É sua intenção
por em evidência a centralidade absoluta da pessoa de Cristo, a transcendência de
Deus e a necessidade de revelação. Naturalmente, todos esses pontos básicos
estão em harmonia com o conceito evangélico. Apesar disso, como se pode
observar, a neo-ortodoxia se separa da fé cristã histórica não somente em algumas
esferas pouco relevantes, mas também em seus conceitos básicos.

3. Revista Teológica Zwischen den Zeiten

O início da década de 1920 assistiu ao lento colapso da teologia liberal.


Uma nova geração de teólogos não se sentia confortável com o modelo teológico
de então, mas ainda não tinha os referenciais para uma nova abordagem do tema.
Um artigo do jovem teólogo Friedrich Gogarten, publicado na revista de
orientação liberal Christlich Welt, em 1920, ilustrava bem essa situação. Em suas
palavras:

O destino de nossa geração é o de encontrar-se entre os tempos.


Jamais chegamos a pertencer ao tempo que hoje chega ao fim. Será
que algum dia pertenceremos ao tempo que virá? [...] Encontramo-
nos no meio. Num espaço vazio. […] O espaço tornou-se livre para
a pergunta a respeito de Deus. Finalmente. Os tempos separaram-se
um do outro, e agora o tempo está em silêncio.

O título do artigo de Gogarten tornou-se o título de um novo periódico:


Zwischen den Zeiten. Entre os colaboradores da revista estavam o próprio
Gogarten, Eduard Thurneysen, Georg Merz e, mais tarde, Emil Brunner e
Rudolf Bultmann. No entanto, o teólogo mais importante, presente desde o
início do projeto, e mentor desta nova orientação teológica, era o jovem pastor
suíço Karl Barth.

Esta nova abordagem acabou conhecida como teologia dialética. Sua


principal característica consiste em enfatizar muito a transcendência de Deus em
relação ao mundo e ao homem e a soberania de sua revelação. O grande exemplo
desta abordagem é o livro inaugural de Karl Barth, “A Carta aos Romanos”.
Teologia Contemporânea 76

No início da década de 1930, o clima tumultuado da política europeia


acabou por influenciar a produção teológica. Enquanto Gogarten, por exemplo,
aderiu ao movimento dos "Cristãos alemães", que apoiava o nascente nacional-
socialismo de Hitler, Barth colocava-se completamente contrário ao mesmo.
Além disso, enquanto os articulistas da Zwischen den Zeiten tendiam, cada vez
mais, para o diálogo com a filosofia existencialista e a teologia natural, Karl Barth
se distanciava, marcando posição contrária a estes dois pontos.

Inevitavelmente, em 1933, Karl Barth anuncia a sua despedida da revista


para fundar um novo periódico: o Theologische Existenz Heute (do alemão,
"Existência teológica hoje"). Com a saída de seu principal nome, a Zwischen den
Zeiten encerra o seu ciclo de publicações.
Teologia Contemporânea 77

Capítulo 6

A Teologia Existencialista de Rudolf Bultmann


1. Bultmann

Um dos teólogos mais influentes do século XX, Rudolf Bultmann (1884-


1976) se destacou com seus escritos históricos e interpretativos sobre o Novo
Testamento. Ele foi, durante muitos anos, catedrático da Universidade de
Marburg, na Alemanha.

Segundo Bultmann, a tarefa da teologia é a de descobrir um


“conceptualismo”, cujos termos pudessem aproximar a mensagem do Novo
Testamento a cosmovisão moderna. Em correspondência pessoal, ele sempre
afirmou sua intenção proclamar uma mensagem contextualizada, ele se referiu
certa vez a uma senhora que retornou à Igreja, depois de muito tempo afastada,
por causa da leitura de um de seus livros.

Apoiando-se num esquema interpretativo existencialista, bastante


influenciado pôr Martin Heidegger, seu colega na Universidade de Marburg,
Bultmann passou sua vida lendo o Novo Testamento, como se fosse um
documento heideggeriano, e se valendo de métodos histórico-crítico para
eliminar do texto os elementos resistentes ao sistema filosófico existencialista.

Bultmann fez uma palestra em 1941 numa conferência para pastores, que
posteriormente foi publicada, “O Novo Testamento e a Mitologia”. A tese de
Bultmann: a humanidade contemporânea, que se acostumou com os avanços da
ciência, não pode aceitar o conceito mitológico do mundo expresso nos escritos
bíblicos.

De acordo com Bultmann, “a concepção do universo do Novo


Testamento é mítica. O universo é considerado como dividido em três andares.
No meio se encontra a terra, sobre ela o céu, abaixo dela o mundo inferior. O
céu é a morada de Deus e das figuras celestes, os anjos; o mundo inferior é o
Teologia Contemporânea 78

inferno, lugar de tormento. Mas também a terra não é o só o lugar do acontecer


natural e cotidiano, da previdência e do trabalho, que conta com ordem e lei; é
também cenário do atuar de poderes sobrenaturais, de Deus e de seus anjos, de
Satã e de seus demônios. Os poderes sobrenaturais interferem nos
acontecimentos naturais e no pensar, querer e agir do ser humano; milagres não
são nada raros. Satã pode lhe incutir pensamentos malignos. Mas Deus pode
dirigir seu pensar e querer, pode fazê-lo ter visões celestiais, fazê-lo ouvir a sua
palavra exortadora e consoladora, pode presentear-lhe a força sobrenatural de seu
espírito.

A história não percorre seu caminho constante e estabelecido por suas


próprias leis, mas obtém seu movimento e direção dos poderes sobrenaturais.
Este eón encontra-se sob o poder de Satã, do pecado e da morte (que
precisamente são considerados “poderes”). Rapidamente ela se encaminha para
seu fim, mais explicitamente um fim próximo, que ocorrerá numa catástrofe
cósmica. São eminentes as “dores de parto” do tempo final, a vinda do juiz
celestial, a ressurreição dos mortos, o julgamento para a salvação e perdição. De
acordo com Bultmann:

A concepção mítica do universo corresponde a exposição do


acontecimento salvífico, que constitui o conteúdo verdadeiro da
proclamação neotestamentária. A proclamação emprega linguagem
mitológica: eis que é chegado agora o tempo final; “vindo a
plenitude do tempo”, Deus enviou seu filho. Este um ser divino
preexistente, aparece na terra como um ser humano, sua morte na
cruz, a qual ele sofre como um pecador propicia expiação para os
pecados dos seres humanos. Sua ressurreição é o começo da
catástrofe cósmica, através da qual será aniquilada a morte, trazida ao
mundo pôr Adão: os poderes demoníacos universais perderam seu
poder. O ressurreto foi elevado ao céu, à direita de Deus; ele foi
transformado em “senhor” e “rei”. Retornará sobre as nuvens do céu,
a fim de consumar sua obra de salvação; então ocorrerá a ressurreição
dos mortos e o juízo; então terão sido aniquilados o pecado, a morte
e todo o sofrimento. Tudo isto acontecerá em breve; Paulo é de
opinião que ainda há de experimentar pessoalmente este evento [...]
Quem pertence a comunidade de Cristo, está ligado ao seu Senhor,
através do batismo e da ceia do Senhor, e pode estar seguro de sua
Teologia Contemporânea 79

ressurreição para a salvação, se não se comportar indignamente. Os


crentes já possuem o “penhor”, a saber, o Espírito, que age neles e
testifica sua filiação de Deus e garante sua ressurreição.
(BULTMANN, Rudolf. Novo Testamento e a Mitologia. In: Crer e
Compreender. Artigos Selecionados. Editor: Walter Altmann.
Editora Sinodal. São Leopoldo, RS).

A estes temas acima mencionados, que apresentam uma formulação


ortodoxa e evangélica, Bultmann responde dizendo que “tudo isto é linguagem
mitológica... Em se tratando de linguagem mitológica, ela é inverossímil para o
ser humano hoje” [Idem]. Ele se propõe para a teologia a tarefa de desmitologizar
a proclamação cristã, descobrindo a verdade que está inserida na concepção
mítica do universo do Novo Testamento.

A preocupação de Bultmann não era a eliminação dos mitos, pelo


contrário, ele procurou uma reinterpretação da linguagem mitológica da Bíblia.
“É bem possível que numa concepção mística passado do universo possam ser
descobertas de novo verdades que foram perdidas numa época de iluminismo”
[Ibidem]. “O sentido do mito não é o de proporcionar uma concepção objetiva
do universo. Ao contrário, nele se expressa como o ser humano se compreende
em seu mundo. O mito não pretende ser interpretado cosmologicamente, mas
antropologicamente melhor; de um modo existencialista”. [Ibidem]

O alvo de Bultmann ao interpretar os mitos bíblicos era ressaltar a


natureza da fé. Nesta ênfase à fé, manteve-se firme nas tradições de Paulo e de
Lutero.

Bultmann crê que o Novo Testamento contém a *Kerigma salvadora de


Cristo. A desmitologização consiste em desnudar o mito do Novo Testamento e
descobrir a Kerigma original.

*Kerigma - Palavra grega que significa “proclamação”. Pode referir-se ao


conteúdo do evangelho, à mensagem do sermão ou à pregação propriamente
dita. Na erudição neotestamentária atual, o termo é usado para descrever o
conteúdo da mensagem cristã primitiva, contendo em seu escopo a vida e a obra
de Jesus.
Teologia Contemporânea 80

Parte importante da interpretação de Bultmann é o seu modo de


entender a história. Ao contrário do idioma português, a língua alemã fornecia a
Bultmann duas palavras correspondentes a “história”. A primeira, Historie, é
usada em relação aos fatos da história. A segunda, Geschichte, é o termo que
subentende o significado ou relevância de um evento na história. Com o uso
destas duas palavras, é possível diferenciar entre o significado do evento e um
fato real.

Sendo assim, poder-se-ia dizer que Jesus morreu na Historie, mas sua real
ressurreição se deu na Geschichte. Ou seja, ele não nega a existência do Jesus
histórico, como fez a antiga teologia liberal alemã, mas nega a realidade dos
eventos sobrenaturais que o envolveram.

1.1. Um Ponto Crítico

A erudição de Bultmann tende a transformar o pensamento cristão em


um mero comentário a cosmovisão moderna. Toda a mensagem do Novo
Testamento tem de ser repensada em categorias existenciais. E nisto o evangelho
perde o seu valor e sua força, e passa a ser mais uma boa filosofia de vida.

Segundo Gilbert Durand,

As ideias de Bultmann são típicas do círculo em que mergulha todo


pensamento que busca um sentido enquanto se satisfaz em dar voltas
lineares, prisioneiro da temporalidade histórica; em que a tradição
passada remete à existência presente e vice-versa, indefinidamente.
[DURAND, Gilbert. A Fé do Sapateiro. Editora UnB. Brasília, DF.
p. 155]

O conceito do Deus objetivo e pessoal apresentado na Bíblia se rende ao


pensamento moderno. Em Bultmann, Deus não mais se relaciona objetivamente
com o homem, pois o conhecimento de Deus está perdido em meio aos mitos
descritos no Novo Testamento.

A diferenciação entre Historie e Geschichte, retira a ação de Deus na


história. Cristo é o Senhor, diria Bultmann, mas não o Senhor de nossa história e
sim de uma história existencial e subjetiva. Assim define George E. Ladd:
Teologia Contemporânea 81

A realidade histórica deve ser compreendida em termos de uma


imutável casualidade histórica. Se Deus é compreendido como tendo
a possibilidade de agir na história, a ação deve estar sempre oculta
nos eventos históricos, sendo evidentes apenas aos olhos da fé.
[LADD. George E. Teologia do Novo Testamento. JUERP. Rio de
Janeiro, RJ. Pág. 22]

Embora a mensagem do cristianismo seja, sem dúvida alguma, existencial


e contemporânea no sentido mais verídico, e exija a resposta subjetiva da fé. A fé
que ele requer é a fé numa realidade objetiva.

Quando o cristianismo é privado de sua objetividade, cujo fundamento é


a intervenção livre e sobrenatural de Deus na história, essa religião se torna uma
ideia vaga, uma abstração, um idealismo sem raízes, e nunca será o vibrante
cristianismo bíblico.

1.2. Objeções à doutrina de Bultmann

A teologia de Bultmann é anticristã e herética, e o nosso juízo sobre ela


deve ser negativo por vários aspectos:

Primeiro, a desmitologização, assim como a neo-ortodoxia, tem grande


dívida com a filosofia existencialista, que está em desacordo com o Novo
Testamento. No existencialismo, assim como na neo-ortodoxia e na teologia da
desmitologização, o enfoque central é o próprio homem, quando na Bíblia o
enfoque é Deus. Sob influência do existencialismo, Bultmann coloca o homem
no centro das atenções, cometendo uma injustiça e porque não dizer, sendo
desonesto para com o caráter teocêntrico do Novo Testamento. O verdadeiro
propósito do Novo Testamento é proclamar que o Deus soberano veio ao
mundo na pessoa de Jesus para restaurar a natureza humana e resgatar a
humanidade. O coração do Novo testamento continua sendo Deus, e não o
Homem.

A desmitologização destrói a objetividade do Novo Testamento,


portanto, é anticristã. Ela converte a Bíblia em uma religiosidade baseada no
irreal e pré-científico. A religião cristã se transforma em um aglomerado de mitos
Teologia Contemporânea 82

e a historicidade dos eventos milagrosos é logo descartada. Herman Riddebos


nota que, segundo Bultmann, Jesus “não foi concebido pelo Espírito Santo, nem
nasceu da virgem Maria. Sofreu sob Pôncio Pilatos e foi crucificado, mas não
desceu ao Hades, não ressuscitou dos mortos e nem subiu aos céus. Também não
está assentado à direita de Deus Pai e não voltará para julgar os vivos e os
mortos”. Segundo Bultmann, ressurreição, inferno e nascimento virginal são
palavras desprovidas de significado real, não sendo literais. São dogmas
mitológicos e não expressam nenhuma realidade objetiva. O mesmo ocorre com
a trindade, com a expiação vicária e com a obra do Espírito Santo.

O cristianismo primitivo está marcado pelo impacto da pessoa e da obra


de Cristo. Não existe outra justificativa capaz de explicar o nascimento da igreja e
da sua teologia, porém Bultmann reduz sua influência à zero. Ele
preconceituosamente assume uma postura antissobrenaturalista e presume, com
base em seus conceitos tendenciosos e sem nenhuma evidência plausível, que
todos os relatos confiáveis acerca de Jesus ficaram suprimidos ou destruídos no
breve período que transcorreu entre sua vida terrenal e o início da pregação
evangélica. Seu ceticismo é insustentável. Será que 50 dias é tempo suficiente
para que os discípulos viessem a esquecer tudo o que ouviram e viram?

Não foi só Heidgger que influenciou a teologia de Bultmann. As ideias


de David Hume, o cético escocês, haviam influenciado o mundo e seu legado se
estendia à época de Bultmann. É injustificável a negação de Bultamann dos
relatos sobrenaturais e a classificação arbitrária desses relatos como sendo
essencialmente mitológicos. Também podemos perceber várias pressuposições do
liberalismo clássico na obra de Bultmann, razão pela qual tanto o seu método
crítico como sua teologia da desmitologização ganharam o apelido de
neoliberalismo. Bultmann é totalmente incoerente ao basear suas ideias nas
Escrituras, pois o que ele chama de mito, a Bíblia chama fato. Seu
antropocentrismo pode estar bem de acordo com a filosofia existencialista, mas é
totalmente oposto ao caráter teocêntrico do Novo Testamento.

O desvendamento das Escrituras pela desmitologização é herético. Ao


contrário do que Bultmann pretende, não é a desmitologização que desvendará
de modo compreensível as Escrituras para o homem moderno, e sim o Espírito
Santo. Somente ele, segundo a Bíblia, é que pode dissipar as trevas da
incredulidade levando o pecador a ver o Evangelho.
Teologia Contemporânea 83

Com seu método interpretativo, Bultmann nos desafia a compreender o


homem moderno, quando pregamos a ele. Esse enfoque é digno e necessário,
mas não é “desmitologizando” o Evangelho e interpretando-o existencialmente
que nós solucionaremos os problemas da humanidade. Ao apresentar a
mensagem cristã ao homem moderno, devemos ter em mente que por mais
moderno que ele seja, ele ainda é homem natural, e, portanto “não pode
compreender as coisas que são do Espírito de Deus, porque lhe parece loucura”
(1Co 2.14). Creio que esse versículo, mais que qualquer outro, pode ser aplicado
ao método interpretativo de Rudolf Bultmann.
Teologia Contemporânea 84
Teologia Contemporânea 85

Capítulo 7

Teologia do Ser de Paul Tillich


1. Teologia do Ser

É uma teologia surgida dos ensinamentos de Paul Tillich. Tillich é


considerado um dos três maiores teólogos do século XX. Os outros dois seriam
Karl Barth e Rudolf Bultmann. Tillich doutorou-se em Filosofia em 1910 na
universidade de Breslau e licenciou-se em Teologia em 1912 na universidade de
Halle com duas teses sobre a filosofia da religião e sobre o misticismo. Ordenou-
se pastor luterano em 1914. Foi professor de teologia e de filosofia em Malburg,
Dresden, Leipzig e Frankfurt. Fundou o movimento “Socialismo Religioso”.
Adversário declarado do nazismo foi obrigado a exilar-se nos Estados Unidos em
1933, onde lecionou no Seminário Teológico União e na Universidade de
Colúmbia em Nova York. Na primavera de 1963 ministrou um curso na Escola
de Teologia da Universidade de Chicago, onde apresentou os principais
desenvolvimentos da teologia protestante dos séculos 19 e 20, bem como, a
maneira pela qual se utilizava desses desenvolvimentos para fomentar suas
próprias ideias. Revelou-se um herdeiro do movimento hermenêutico de Martin
Kaeler que opunha a correlação entre a situação humana e a mensagem cristã.
Colocou em diálogo a teologia protestante, que vai de Schleiermacher a Barth
passando por Ritschl e Bultmann, com o pensamento filosófico que vai do
racionalismo ao existencialismo passando pelo idealismo e pelo marxismo. Sua
principal preocupação é relacionar a mensagem bíblica à situação
contemporânea. Ele acha que deve haver uma correlação entre o pensamento e os
problemas do homem, e as respostas que a fé religiosa dá.

Quanto aos fundamentos filosóficos de sua doutrina, Tillich se baseia


fortemente no existencialismo. Da mesma forma ele aceita a crítica liberal da
Bíblia e os seus escritos atraíram a atenção tanto de teólogos como de filósofos.
Tillich vê a mensagem cristã como um conjunto de verdades sagradas que
aparecem em meio à situação humana como corpos estranhos procedentes de um
mundo estranho. Segundo Tillich devemos começar por redefinir a religião. A
Teologia Contemporânea 86

religião não é um conjunto de certas práticas ou crenças. O homem só é religioso


quando está “essencialmente preocupado”. A preocupação essencial é aquela que
tem prioridade entre todas as demais preocupações da vida. A preocupação
essencial se apodera do homem e determina o nosso ser ou não ser. Nos
preocupamos essencialmente com o que cremos e essa preocupação essencial tem
o poder de destruir ou salvar nosso “ser”, toda a nossa realidade humana, a
estrutura e o objetivo da existência. Deus é o Ser, o poder do Ser, o fundamento
do Ser. Porque o Ser transcende a existência. Deus é a resposta simbólica do
homem a busca de valor para superar a angústia da situação limite do homem
entre o Ser e o Não Ser.

Nessa mesma perspectiva Tillich redefine o pecado. Tillich repudia


qualquer interpretação ortodoxa da pessoa e obra de Cristo. Segundo ele a
afirmação de que Deus se fez homem é uma afirmação sem sentido. Os relatos
bíblicos da crucificação são, geralmente, relatos legendários contraditórios. Para
Tillich, o relato da ressurreição simplesmente significa que Jesus foi “restaurado à
dignidade de Cristo” na mente dos discípulos. As respostas tradicionais de
regeneração, justificação e santificação, foram reinterpretadas. A regeneração é
interpretada como: “o estado de ter sido incorporado na nova realidade
manifestada em Jesus” como portador do Novo Ser. A santificação também é
redefinida como um processo pelo qual o poder do Novo Ser transforma a
personalidade e a comunidade, tanto dentro como fora da igreja. Dessa forma o
Novo Ser manifestado em Cristo responde a preocupação mais profunda do
homem e a sua busca do fundamento de todo o ser.

A doutrina de Deus de Tillich não tem relação com a doutrina bíblica. A


distinção bíblica entre Criador e criatura não existe no sistema de Tillich. Para
Tillich, Deus não é natural nem sobrenatural: É mais um poder racional que
penetra em tudo, do que uma pessoa que se comunica e com quem o homem
pode entrar em comunhão.

A cristologia de Tillich reduz Jesus a um símbolo. É uma cristologia


“diluída” que poderia ser aceitável por um hindu ou um budista.
Teologia Contemporânea 87

2. Objeções à teologia de Paul Tillich

Quando nos deparamos pela primeira vez com a obra de Paul Tillich,
temos a impressão de estar diante de um incrível tratado teológico produzido por
uma mente enciclopédica, precisa, sutil e tremendamente criativa. No entanto,
sua teologia não é especificamente cristã, e sim uma “tradução” da linguagem
teológica em termos teosóficos e ontológicos. Às vezes essa tradução nos ajuda
a ver as coisas sob uma luz mais clara e profunda, porém na maioria das vezes,
sua tradução faz violência tanto ao Espírito quanto à letra que ele traduz.

Há várias objeções que se pode fazer à teologia de Tillich, entre elas a sua
rejeição da Bíblia como palavra de Deus. Seguindo os moldes neo-ortodoxos e
liberais, ele argumenta que a Bíblia, interpretada da maneira tradicional, não é
aplicável aos problemas da nossa época. Por esta causa, Tillich utiliza a filosofia
para analisar os problemas mais profundos da existência do homem
contemporâneo. No entanto, a maior falta dele não foi substituir a teologia pela
filosofia. Como escreveu o crítico Kenneth Hamilton, “sua maior falha foi
substituir a Palavra de Deus pela palavra do homem”.

O “princípio da correlação” de Tillich afirma que a filosofia pode dar-nos


uma análise adequada da situação humana. A Bíblia, nesse caso, pode até
aparecer, mas estará sempre em plano secundário.

Sua doutrina definitivamente não é doutrina bíblica. Não entendemos o


porquê Paul Tillich insiste em empregar a palavra Deus com sentido cristão. Sua
ideia de Deus não é trinitária e nem pessoal. Deus é um poder racional que
penetra a profundidade do ser, mas não é uma pessoa que se comunica ou com
quem possamos ter comunhão. O conceito de “Ser” que Tillich apresenta se
assemelha muito mais a um aspecto desse mundo do que existe por si só e
independe de sua criação. No sistema dele, não há mais distinção entre Criador e
criatura. Também não conseguimos entender que tipo de Deus pode estar além
da transcendência, e que não é nem sobrenatural nem natural.

Sua cristologia também é uma fraude. Tillich reduz Jesus a um mero


símbolo, o que faz dele um absoluto nada. Essa teologia diluída poderia ser
bastante aceitável para um budista ou um hindu. Religiosos de ambos os grupos
certamente abraçariam com alegria seus pressupostos, exceto pela sua afirmação
Teologia Contemporânea 88

de que só ele foi e é o Cristo. A soteriologia de Tillich não tem significado


concreto, exceto como um símbolo a mais para descrever uma situação
existencial que não tem relação com o Deus Vivo.

Vemos em Paul Tillich um sério compromisso com a filosofia


existencialista, ao mesmo tempo em que podemos perceber seu particular descaso
para com a Palavra de Deus. Ao negar a historicidade dos fatos narrados no
Novo Testamento, a ocorrência literal dos milagres e o maior milagre do
cristianismo: a ressurreição, Tillich remove o fundamento e a esperança da fé
cristã. Imagino o que diria o apóstolo Paulo a um pregador como Paul Tillich:
“E, se não há ressurreição de mortos, então, Cristo não ressuscitou. E, se Cristo
não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã, a vossa fé; e somos tidos por falsas
testemunhas de Deus, porque temos asseverado contra Deus que ele ressuscitou a
Cristo, ao qual ele não ressuscitou, se é certo que os mortos não ressuscitam.
Porque, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se
Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados. E
ainda mais: os que dormiram em Cristo pereceram. Se a nossa esperança em
Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os
homens”(1Co 15.13-19). Não sei ao certo como Paulo argumentaria com
Tillich, mas creio que seria algo assim.

Se por um lado Tillich é considerado excelente erudito sua interpretação


meramente existencial do cristianismo faz dele um teólogo ruim, da perspectiva
ortodoxa. Assim como Bultmann, ele lança tantas dúvidas acerca dos milagres e
da ressurreição que de nenhuma maneira, segundo os princípios paulinos, sua
teologia pode ser chamada cristã.
Teologia Contemporânea 89

Capítulo 8

Teologia Secular, Cox e Buren


1. Teologia Secular, Cox e Buren

Teologia Secular: Robinson, Cox e Buren: Uma teologia do mundo para


o homem moderno.

Na idade média houve uma forte tendência eclesiástica de


sacramentalizar a sociedade, de tal forma que o pensamento teológico acerca do
Reino de Deus se mesclou com as pretensões do papado. A intenção era trazer o
Reino de Deus através da força militar e plantar suas ideias na sociedade. Em
meados do século vinte, a tendência parecia ser a oposta. Desde Karl Barth, havia
um forte clamor por um cristianismo menos dogmático e mais vivenciável, e no
período pós-guerra esse clamor se intensificou e se homogeneizou com algumas
ideias extremamente sociais e humanistas. Começava a nascer então a teologia da
secularização.

Poucos sabem, mas o secularismo tão presente e difundido em nossa era,


já esteve organizado em um forte sistema religioso. A princípio, os secularistas
conservaram alguma forma moderada de religião, talvez por medo de se oporem
ao amor e ao culto cristão, mesmo quando pensavam que a ideia de Deus era
obsoleta. Esse tipo de concessão, porém, está mudando vertiginosamente, tanto
que se cumpre hoje o que foi dito por certo comentarista: “no fim do século
vinte, os cristãos consagrados serão uma minoria consciente no ocidente,
rodeados por um paganismo agressivo e arrogante, que é o desenvolvimento
lógico da nossa tendência secularista”. De fato, o final do século vinte e início do
século vinte e um, foram marcados por uma forte tendência secular, apostasia
deliberada e oposição aberta ao sagrado.

Uma das manifestações mais abertas e nocivas dessa “deserção secularista


de Deus” que caracteriza a apostasia, encontra sua versão religiosa no que passou
a chamar-se teologia secular. Sendo esse um movimento com muitas posições
Teologia Contemporânea 90

extremas, resiste a toda definição, ainda que exija atenção. O conhecido


movimento da morte de Deus talvez tenha já morrido como moda teológica,
porém, como ramificação da teologia secular, ele continua influenciando a igreja
e seus ensinos sadios.

Esse radicalismo ateológico ganhou proporções gigantescas no best-seller


de John Robinson, Honest to God (1963). O livro de Robinson começa com o
convencimento de que a ideia de um Deus “lá em cima”, tão transcendente
como na teologia de Kierkgaard, de Barth e na filosofia de Kant deve ser deixada
de lado por se tratar de uma ideia antiquada e errônea. O problema é que ao
invés de buscar a moderação entre a transcendência e a imanência de Deus, ele
parte para a ideia de um Deus no nosso interior, algo totalmente imanente.
Robinson reafirma que Deus é o fundamento do nosso ser, e acrescenta que a
igreja nunca deveria ser uma organização para homens religiosos; não deve haver
uma distinção entre igreja e mundo. O lema desses novos “crentes”, cristãos
secularistas é “ama a Deus e faça o que quiser”.

2. A Cidade Secular - Harvey Cox

Em outro livro, escrito em 1965, se percebem as mesmas exigências


teológicas. A Cidade Secular, de Harvey Cox, apresenta o secularismo não como
inimigo da igreja, mas como fruto do evangelho. Por secularismo, Cox entende o
processo histórico pelo qual a sociedade se liberta do controle da igreja e dos
sistemas metafísicos fechados. O centro de interesse dessa nova teologia não é a
igreja, mas sim o mundo e as suas necessidades. O Deus da Bíblia, segundo ele,
deve ser redefinido como sendo o Deus deste mundo (cf. 2 Coríntios 4.4).

3. A postura da teologia secular

Quais seriam os pressupostos dessa teologia do mundo? Que ideias os


chamados teólogos seculares defendem? O que apresentamos à seguir são as
principais ideias esposadas pela teologia do mundo.

Em primeiro lugar, os teólogos seculares estão de acordo que os


problemas deste mundo deveriam ser uma das preocupações vitais da igreja.
Teologia Contemporânea 91

Eles reclamam que a igreja tem se esquivado e racionalizado quanto as


suas falhas em não enfrentar-se com os males sociais e políticos. Com respeito a
isso, a voz mais eloquente foi Dietrich Bonhoeffer, pastor alemão executado
pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial por participar de um complô
contra a vida de Hitler. O espírito ativista de Hitler é o espírito da teologia
secular, e talvez seja essa a razão pela qual ele chegou a ser considerado uma
espécie de patrono do secularismo teológico. Muitos dos valores desse
movimento teológico foram retirados do diário e das cartas de Bonhoeffer,
escritas na prisão, enquanto este aguardava a execução.

3.1. Dietrich Bonhoeffer

A conduta de Bonhoeffer é reprovável e anticristã. A Bíblia nos instrui a


amar nossos inimigos (Mateus 5.44), não a assassiná-los; a orar pelas autoridades
(1 Timóteo 2.2), e não lutar contra elas. Porém, seus pressupostos nos trazem à
mente uma verdade que foi expressa pelo próprio Bonhoeffer, a de que “não se
pode encerrar a Cristo na sociedade sagrada da igreja”. O campo é o mundo, e a
nossa teologia não deve ser confinada às quatro paredes da nave de um templo.

Os teólogos seculares também afirmam que nossa teologia deve expressar


um espírito de secularização. Harvey Cox diz que devemos deixar de falar da
ontologia antiquada para começarmos a falar de funções e de ativismo dinâmico.
Nas palavras de Robinson, a pergunta “Como posso encontrar um Deus
benigno?” deve ser substituída por “Como encontrar um próximo benigno?”

Sem dúvida, o mais radical dos teólogos seculares é Paul Van Buren.
Buren, em seus razoamentos teológicos afirma que o próprio Deus deve ser
excluído do cenário teológico. O cristianismo, segundo ele, deve ser reconstruído
sem Deus, e Cristo deve ser visto como o paradigma da existência humana. Na
teologia secular, não há espaço para o Jesus salvador. Ele é, no máximo, um bom
exemplo.

A terceira objeção diz respeito à possibilidade do sobrenatural. Existe na


teologia secular um esforço para minimizar o sobrenaturalismo. A ideia liberal de
que Jesus foi apenas um homem bom que viveu perto de Deus ganhou vida
dentro da teologia secular. Robinson fala da expiação como “a entrega completa
de Jesus em amor”, no qual ele “revela que o fundamento do ser humano é o
Teologia Contemporânea 92

amor”. Ele, assim como Cox e Buren, repudia a ideia de uma expiação
sobrenatural e perdoadora. É uma teologia totalmente naturalista, cujo Deus é
literalmente o Deus deste mundo (2 Coríntios 4.4). Assim também, os teólogos
seculares rejeitaram totalmente o reino sobrenatural e a segunda vinda de Cristo.
O único mundo real é o aqui e agora, e a ideia do céu é chamada por eles de
“escotilha de escape”.

4. O século XX foi o século da morte de Deus

Não só a ciência desprendeu-se definitivamente de qualquer apelo ao


sobrenatural, como a maioria das constituições políticas dos novos regimes que
surgiram afirmaram sua posição secular e agnóstica, separando-se das crenças.
Chegou-se até ao radicalismo soviético que pronunciou-se como um Estado ateu.
Se bem que a religião ainda constitui um poderoso fator de mobilização das
massas e um, até agora, insubstituível apoio ético e moral, deve-se reconhecer
que as elites modernas deram as costas a Deus. Mas esse gigante da religião, da
teologia e da imaginação prodigiosa dos homens não morreu de uma vez só. Foi
morto aos poucos ao longo do século XIX, de Laplace a Nietzsche.

4.1. Deus, uma hipótese descartável

Ao enviar a Napoleão Bonaparte uma cópia do seu trabalho Méchanique


céleste (A Mecânica Celeste, 5 vols., 1799-1825), o matemático Laplace, quando
questionado pelo imperador sobre o papel de Deus na criação, respondeu que "Je
n'avais pas besoin de cette hypothèse-là", que ele não necessitara da hipótese da
existência de Deus para edificar a sua teoria do sistema solar. Com isso, com tal
declaração arrogante, que fez o gosto e deliciou Napoleão, aquele expoente maior
da física do Iluminismo rompia definitivamente com os elos dos seus
predecessores Galileu e Newton, que ainda ligaram o Todo-Poderoso à formação
do cosmo e à sua preservação.

4.2. O agnosticismo e a humanização de Cristo

Se, no século XVIII, a Revolução de 1789 e a moderna ciência francesa


davam início ao banimento de Deus, na Alemanha a pregação pelo afastamento
do Todo-Poderoso das coisas do mundo se fez pela verve da filosofia e, pasme-se,
pela própria teologia. Kant, com a sua doutrina agnóstica, que afastou as coisas
Teologia Contemporânea 93

da fé de qualquer provável entendimento racional (fé e razão atuam em esferas


distintas, inconciliáveis), abriu caminho para que a geração seguinte de cientistas
e pensadores passassem à crítica direta da religião. Sintoma disso foi a
humanização crescente da figura de Jesus, como deu-se na obra de David F.
Strauss, um teólogo. No seu Das Leben Jesu (A Vida de Jesus, 2 vol., 1835-36),
identificou a vida de Cristo com a teoria do mito, entendendo o Evangelho
como algo historicamente datado, afastando qualquer elemento sobrenatural
dela. Linha que foi seguida na França pela monumental obra crítica de Ernst
Renan, que a partir da Vie de Jésus (A Vida de Jesus, de 1863), que se estendeu
por dezessete anos, até 1880 quando a encerrou com Marc Aurèle et la fin du
monde antique (Marco Aurélio e o fim do mundo antigo), apresentando a mais
completa interpretação até então concebida da história do Cristianismo na ótica
do positivismo.

4.3. Deus é alienação

O passo seguinte ao do doutor Strauss, ainda na Alemanha, foi dado em


1841 por Ludwig Feuerbach com a publicação do Das Wesen des Christentums
(A essência do cristianismo), onde assegurou ser Deus uma projeção dos desejos
de perfeição do homem. Vivendo em meio a infelicidade e na insegurança do
sentimento de morte, os humanos idealizavam um reino perfeito nos céus, onde
serão eternamente felizes e imortais. Era a alienação do homem que criara a
crença no Ser Supremo, sentindo-se depois oprimido por ele. O mesmo
fenômeno diria Marx (outro "matador de Deus"), engendrara a sociedade
capitalista moderna, onde o Capital manipula os burgueses e oprime o
proletariado.

4.4. Darwin e o desencantamento do mundo

O seguimento dessa "luta contra Deus" - dentro do que Max Weber


chamou de Erzauberung, o desencantamento do mundo iniciado por obra dos
Iluministas - , deu-se com a espetacular e escandalosa publicação dos trabalhos
científicos de Charles Darwin na Inglaterra. O On the Origins of Species (A
Origem das Espécies), em 1859, seguida do The Descent of Mann (A
descendência do Homem), em 1871, implodiram a teoria bíblica da criação do
Homem e da Natureza. Duas obras, diga-se, que tornaram-se os primeiros best-
sellers científicos do mundo contemporâneo, com milhares de leitores
Teologia Contemporânea 94

entusiastas. As concepções de Darwin, desde então, causaram um abalo


irreparável nas crenças religiosas da elite pensante.

4.5. Não é Deus quem pune, é o bacilo

O arremate disso deu-se nas ciências naturais com as descobertas dos


bacilos e micróbios pelo doutor Pasteur, na França em 1863, e nas descobertas
do doutor Koch na Alemanha, em 1882. Eram micro-organismos que estavam
por detrás dos processos de putrefação e das doenças, como tifo e a tuberculose,
que assombravam os homens daqueles tempos, e não nenhum desejo do Ser
Supremo em punir os pecadores.

4.6. Totem, metáfora primitiva da divindade

Mas faltava ocorrer a morte de Deus em algo mais íntimo do homem, na


sua consciência, na sua psicologia por assim dizer. Então veio Sigmund Freud.
Em 1900, ele publica o seu célebre Traumdeutung (A Interpretação dos sonhos),
como que anunciando para o século XX entrante o surgimento de uma nova
mentalidade. Todos os terrores e fobias humanas nada têm a haver com as coisas
do sobrenatural ou com os mistérios da alma. Tudo se dá no reino natural. É em
meio a relação familiar, do nascituro com seus próximos, que todas as emoções e
neuroses se formam. Desejos primitivos, mas naturais, reprimidos ou
sublimados, é que dão energia à mente e moldam o comportamento dos
indivíduos. Deus, assegurou Freud no Totem und Tabu (Totem e Tabu, 1913),
nada mais lhe parece do que a poderosa projeção da imagem paterna incrustada
desde cedo na mente humana.

4.7. Deus foi assassinado

"Deus está morto" ("Gott ist tot" em alemão) é uma frase muito citada
do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Aparece pela primeira vez
em A gaia ciência, na seção 108 (Novas lutas), na seção 125 (O louco) e uma
terceira vez na secção 343 (Sentido da nossa alegria). Outra instância da frase, e a
principal responsável pela sua popularidade, aparece na principal obra de
Nietzsche, Assim falava Zaratustra.
Teologia Contemporânea 95

Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos


nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O
que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso
sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará
desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de
desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A
grandiosidade deste ato não será demasiada para nós? Não teremos
de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos
dele? Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça
depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história
superior a toda a história até hoje! (NIETZSCHE, Friedrich. A
Gaia Ciência, §125).

Deste modo, quando Nietzsche anunciou que "Deus está morto" no


primeiro canto do seu Also spracht Zaratustra (Assim falou Zaratustra), em
1883, nada mais fez do que escancarar para o mundo literário o que já vinha
sendo feito há muito tempo no terreno das ciências naturais e sociais. A lanterna
de Diógenes que ele carregava apenas veio jogar luz sobre o que já corria solto no
meio da ágora, Deus havia morrido. Os homens o mataram. Agora uma nova
raça de eleitos, segundo este burguês visionário (a expressão é de Helmuth
Walther), deveria por si só suportar o peso desse crime, alçando-se a si mesmo
como um novo homem, como a superação do homem, como um super-homem.

Entre 1920 e 1960, a Teologia Liberal perdeu totalmente o conceito da


Palavra de Deus e deu origem à Teologia Radical, ou da morte de Deus, também
chamada Teologia Secular, alimentada pelos pensamentos de Rudolf Bultmann,
que se dedicava à desmitologização das origens documentárias bíblicas e a
racionalizar a mensagem cristã, ou querigma. Para ele é impossível exigir um
sacrifício intelectual do homem moderno a ponto de crer nos espíritos, nos
demônios, nos milagres, no diabo, no nascimento virginal, na ascensão de Cristo
e na volta de Cristo.

Altizer, um dos expoentes da Teologia Secular, defendeu que o Deus que


transcende o mundo e que é seu Senhor soberano já não existe. Defendeu que
Ele se autoesvaziou da divindade passando ontologicamente para dentro de
Cristo, deixando a divindade e assumindo a carnalidade, se autoaniquilando na
cruz e, de alguma maneira, passando a existir novamente e em evolução na
Teologia Contemporânea 96

humanidade. Seu amigo e companheiro na obra A Morte de Deus, William


Hamilton, crê que o mundo deve ser aceito como intelectualmente normativo e
eticamente bom. Mas foi Dietrich Bonhoeffer quem divulgou e influenciou os
teólogos seculares a crerem e ensinarem um “cristianismo sem religião.” Ensinava
que “para a presente era, o cristianismo verdadeiro deve rejeitar todas as formas e
expressões que pertencem à mera religiosidade; e que deve, avançando além da
religião, apegar-se a um Cristo que pode ‘tornar-se o Senhor até mesmo daqueles
que não têm religião alguma’.”

Em resumo, podemos afirmar que o Iluminismo na Europa deu origem ao


liberalismo teológico, que migrou para os Estados Unidos e que lá deu origem a
uma Teologia Secularizada, pragmatizada em um Evangelho Social que teve por
essência:

(a) Não crer nas Escrituras como Palavra de Deus inerrante e infalível, inspirada
pelo Espírito Santo.

(b) Colocar o pensamento humano acima da revelação divina nas Escrituras.


Textos das Escrituras para serem aceitos precisam passar pelo crivo da razão
humana.

(c) Rejeitar todo o aspecto sobrenatural do cristianismo por não passar pelo
crivo da razão.

(d) Colocar o reino de Deus como sendo a própria sociedade e trabalhar pelo
aperfeiçoamento ético da humanidade tendo como padrão os ensinamentos
e a vida ética de Jesus com vistas a uma salvação social aqui e agora.

(e) Aceitar toda grande religião como verdade e buscar a convivência religiosa
harmoniosa.

(f) Rejeitar todos os dogmas ou doutrinas da religião cristã.


Teologia Contemporânea 97

Como podemos corrigir tudo isto em nosso próprio ministério?

(a) Firmando-nos na crença de que a Bíblia é a Palavra de Deus escrita como


revelação pessoal dEle ao homem, bem como de seu plano de salvação e
princípios para a vida de comunhão com Ele. 2 Timóteo 3:16 Toda a
Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão,
para a correção, para a educação na justiça, João 10:35 Se ele chamou
deuses àqueles a quem foi dirigida a palavra de Deus, e a Escritura não
pode falhar,

(b) Buscando exercitar em nós mesmos o que é ensinado na Bíblia como


características de um pastor 1Tm 3:2-7: Convém, pois, que o bispo seja
irrepreensível, marido de uma mulher, vigilante, sóbrio, honesto,
hospitaleiro, apto para ensinar; não dado ao vinho, não espancador, não
cobiçoso de torpe ganância, mas moderado, não contencioso, não
avarento; que governe bem a sua própria casa, tendo seus filhos em
sujeição, com toda a modéstia (porque, se alguém não sabe governar a
sua própria casa, terá cuidado da igreja de Deus?); não neófito, para que,
ensoberbecendo-se, não caia na condenação do diabo. Convém, também,
que tenha bom testemunho dos que estão de fora, para que não caia em
afronta e no laço do diabo.

(c) Não nos conformando com este mundo – Rm 12:1,2 Rogo-vos, pois,
irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por
sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E
não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação
da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e
perfeita vontade de Deus.

(d) Exercitando-nos na prática da fé cristã – 1Tm 4:7,8 Mas rejeita as


fábulas profanas e de velhas caducas. Exercita-te, pessoalmente, na
piedade. Pois o exercício físico para pouco é proveitoso, mas a piedade
para tudo é proveitosa.

5. Avaliação da teologia secular

Há quem creia que a teologia da secularização tenha trazido apenas


prejuízo à teologia ortodoxa, mas, apesar do prejuízo causado ter sido maior que
Teologia Contemporânea 98

o bem que ela tem feito, uma da suas contribuições para a teologia ortodoxa foi
plantar algumas perguntas que os teólogos, encerrados em seus sistemas
dogmáticos, não tinham pensado em fazer, e muitas delas têm repercussão
missionária e verdadeira importância na contextualização da mensagem cristã
para o mundo.

Qual deve ser a reação da igreja perante essas doutrinas? Certamente


reconhecemos que esses homens captaram o espírito de nosso tempo. O
problema é que eles não somente captaram, senão que deixaram dominar-se por
ele. A teologia secular é radical e antibíblica. É verdade que Jesus recomendou
que preocupássemos com os males do nosso mundo e buscássemos corrigi-los
(Mateus 25.31-46), mas os teólogos seculares confundem o serviço no mundo
com serviço para o mundo; estamos no mundo para servir nele, e não para servir
a ele. Além do mais, eles esquecem que o amor de Deus escolhe filhos, e não
apenas servos. A vida cristã é um viver com Deus, é uma vida em adoração e não
somente uma vida de trabalhos humanitários. Os teólogos seculares vestem seu
humanismo de jargões teológicos e nos ensinam a viver no mundo de Marta,
quando uma coisa só é necessária.

A teologia secular, em seu repúdio pela metafísica e a ontologia,


demonstram seu preconceito quanto ao mundo fenomenal. Eles não querem
uma Bíblia sobrenaturalmente inspirada, não querem crer em um Deus ativo na
criação, e não esperam um reino futuro. Tal como Bultmann, eles ignoram o
sobrenatural. Sua teologia é a essência da apostasia descrita na Bíblia como
característica do tempo do fim. A teologia secular fala de um reino centralizado
na obra e no futuro de um homem autônomo. O único reino que a Bíblia
conhece está centralizado no poder e na obra de Cristo, nunca no homem (cf.
Mateus 11.11 ss.; 12.22 ss.).

A teologia secular demonstra o desejo de uma reformulação do


cristianismo em termos que sejam aceitáveis para o pensamento moderno e que
possa ser traduzido em termos compreensíveis para o homem do século vinte. A
teologia secular é uma teologia mundana elaborada para responder à
incredulidade arrogante de um homem que não ama a Deus, mas a si mesmo.
Teologia Contemporânea 99

Capítulo 9

A Teologia da Esperança e da História


1. Teologia da Esperança – Jurgen Moltmann

Em 1965, um jovem teólogo alemão da Universidade de Tubinga fez


ressoar a sua voz através de seu livro The Theology of Hope (A Teologia da
Esperança), que saiu em inglês em 1967, cujo teor repercutiu grandemente no
mundo acadêmico. Há quem relacione ao movimento outros dois nomes:
Wolfhart Pannenberg, de Munique, e Ernst Benz, de Marburg.

No ano de 1969, foi publicada a sua segunda obra, Religion, Revolution


and the Future (Religião, revolução e o Futuro). Os teólogos receberam
entenderam o livro de Jurgen Moltmann como sendo um chamado refrescante a
uma maior valorização da escatologia, dentro da teologia cristã, além de ser um
ataque devastador aos teólogos existencialistas que argumentavam na linha de
Bultmann.

Entendendo a teologia futurista de Moltmann. A chave central para


entender a teologia futurista de Moltmann é sua ideia de que Deus está sujeito ao
processo temporal. Neste processo, Deus não é plenamente Deus, porque ele é
parte do tempo que avança para o futuro. No cristianismo tradicional, Deus e
Jesus Cristo aparecem fora do tempo, e no tempo. Na teologia de Moltmann, a
eternidade se perde no tempo. Para Moltmann, o futuro é a natureza essencial de
Deus. Deus não revela quem ele é, e sim quem ele será no futuro. Desta forma,
Deus está presente apenas em suas promessas. Deus está presente na esperança.
Todas as afirmações que fazemos sobre Deus, são produto da esperança. Nosso
Deus será Deus quando cumprir suas promessas e com isso estabelecer o seu
reino. Deus não é absoluto; ele está determinado pelo futuro.

Segundo Moltmann, toda teologia cristã deve modelar-se através da


escatologia. Acontece que a escatologia para ele não significa a previsão
tradicional da segunda vinda de Jesus. Moltmann interpreta como aberta ao
Teologia Contemporânea 100

futuro, aberta à liberdade do futuro. Deus entrou no tempo, e consequentemente


o futuro se tornou algo desconhecido tanto para o homem como para Deus.

O cristianismo evangélico relaciona intimamente a ressurreição de Cristo


com a escatologia. O Cristo ressuscitado é as primícias da ressurreição
(1Coríntios 15.23; At 4.2). A morte e ressurreição de Cristo são a garantia que
Deus dá de que haverá ressurreição futura, e por isso, o começo da ressurreição
final. A ressurreição de Cristo é um fato histórico que atribui pleno significado
ao nosso futuro. Porém, para Moltmann, a questão da historicidade da
ressurreição corporal de Jesus não é válida. Jesus ressuscitou dentre os mortos há
quase dois mil anos com seu corpo físico? Para Moltmann essa é uma questão
sem importância. Não devemos olhar desde o Calvário para a Nova Jerusalém, e
sim olhar o nosso futuro ilimitado para o Calvário. Afirma-se tradicionalmente
que a ressurreição de Cristo é a base histórica da ressurreição final. Moltmann
porém diria que a ressurreição final é a base da ressurreição de Jesus.

Ainda quanto ao futuro, Moltmann diz que o homem não deve olhá-lo
passivamente; ele deve participar ativamente na sociedade. A tarefa da igreja é
não é apenas se informar sobre o passado para mudar o futuro. É também pregar
o Evangelho de tal forma que o futuro se apodere do indivíduo e lhe impulsione
a agir de modo concreto para mudar o seu próprio futuro. O presente em si
mesmo não é importante. O importante é que o futuro se apodere da pessoa no
presente. Para que o futuro se realize na sociedade, as categorias do passado
devem ser descartadas, pois não existem formas ou categorias fixas no mundo. O
futuro significa liberdade e liberdade é relatividade.

O principal propósito da igreja é ser o instrumento por meio do qual


Deus trará a reconciliação universal e social. A participação da igreja na sociedade
poderá utilizar a revolução como meio apropriado, mesmo que ela não seja
necessariamente o único meio. Neste avançar para o futuro, o problema da
violência versus não violência recebe o nome de problema ilusório. A questão
não é a violência em si, e sim se o uso da violência foi justificado ou injustificado.
Essa tendência pragmática em que os fins justificam os meios é uma tendência
muito forte dentro da Teologia da Esperança. Assim como na Teologia Secular,
aqui também pode ser vista uma profunda consciência para com o mundo. A
ideia de Moltmann de considerar a Bíblia desde o começo como um livro
escatológico pode parecer um atrativo para o cristão ortodoxo. Realmente um
Teologia Contemporânea 101

assunto tão importante quanto a escatologia não deveria ocupar as últimas


páginas em nossos livros de teologia sistemática. Porém, qualquer conservador
certamente saberá reconhecer os erros patentes de Moltmann, bem como os
horrores que traria a sua visão ética.

1.1. Objeções à Teologia da Esperança

Moltmann critica muitos conceitos neo-ortodoxos, mas ele acaba levando


os conceitos barthianos muito mais longe. Barth havia transcedentalisado a
escatologia por meio do emprego da distinção entre Historie e Geschichte, mas
Moltmann foi ainda mais além, e rejeitou todo o conceito objetivo da história.
Se por um lado a dialética de Barth acabou com a possibilidade da relação entre
história e fé, a teologia de Moltmann destruiu até mesmo a possibilidade de
haver história.

Ainda que Moltmann revista sua escatologia de conceitos bíblicos, seu


sistema está mais fundamentado no marxismo do que em Cristo. O primeiro
livro de Moltmann, Teologia da Esperança nasceu de um diálogo com o ateu
alemão Ernst Bloch, e quando lemos o seu segundo livro, vemos que nesse
intercâmbio, Moltmann assimilou muitas ideias de Bloch. A ideia que
Moltmann tem da escatologia é destituída de base bíblica. Apesar de todo esforço
de Moltmann para produzir uma teologia bíblica, no final, seu sistema nada mais
é do que uma teologia centralizada no homem, em um homem que observa o
futuro e age na sociedade. A meta do futuro de Moltmann não é a plena
manifestação da glória de Cristo; ela é a edificação da utopia na terra. Para ele, o
Reino de Deus se introduz na terra por meio da política e da revolução. Para o
apóstolo Paulo, no entanto, o Reino de Deus é, e será introduzido por meio da
proclamação do poder salvador de Jesus Cristo (Atos 28.30-31). Para Moltmann,
esse reino é também uma realidade terrenal e tangível; o Reino de Deus, no
entanto, é descrito na Bíblia como celestial. Para Moltmann, o Reino de Deus é
trazido por meio da revolução; no entanto, segundo a Bíblia, o Reino de Deus
traz a paz, e não a guerra (Romanos 14.7).

Quanto ao conceito de Deus, ele não admitia nenhum Deus eterno ou


infinito. Ao entrar no tempo, segundo ele, Deus se tornou finito e aberto a um
futuro desconhecido. O Deus da Bíblia existe de eternidade a eternidade; o de
Moltmann, porém, só existe no futuro, pois no presente ele sequer é Deus.
Teologia Contemporânea 102

Como observou certo escritor: No monte Sinai, Deus disse a Moisés: Eu sou o
que sou, mas Moltmann não permitiu que Deus lhe dissesse o mesmo. A teologia
de Moltmann tem maior dívida com Nietzche, com Overback e com Feurbach
do que com Paulo, Pedro ou João. Ela é mais marxista que bíblica, e mais
filosófica que teológica. Em seu afã de refutar as teologias não-ortodoxas do seu
tempo, Moltmann ultrapassou o limite do bom senso e acabou por propor uma
teologia quase tão nociva quanto aquela a que ele se dedicou a refutar. Essa
teologia do Deus finito e temporal, e que ainda incita a rebeldia e a revolução,
não pode ser teologia bíblica. Ela é antes, um tropeço, um escândalo e uma
nociva ameaça à sã doutrina.

2. Teologia da História – Wolfhart Pannemberg

Wolfhart Pannenberg e a teologia histórica da ressurreição. No final da


década de cinquenta se podia facilmente perceber o surgimento de uma nova
escola de interpretação teológica. Esta nova ênfase podia ser claramente
percebida nas teses de doutorado de jovens professores como Ulrich Wilckens,
Klaus Koch e Rolf Rendtorff. Porém, o maior nome dessa nova escola foi sem
dúvida o de Wolfohart Pennenberg, tanto que esse grupo de jovens teólogos e a
nova escola ganhou o epíteto de círculo de Pannenberg.

Wolfhart Pannemberg, jovem professor de teologia sistemática da


Universidade de Mainz, na Alemanha, foi o responsável por dar uma forma mais
sistemática ao que posteriormente se convencionou chamar Teologia da História,
ou Teologia da Ressurreição.

Apesar do caráter particular da sua obra, há quem associe a este círculo o


nome de Jurgen Moltmann. É verdade que Pannenberg compartilhem algumas
ideias comuns, como o interesse pela relação entre a história e a fé, o desejo de
uma orientação teológica escatológica e principalmente a ressurreição de Cristo,
além do esforço por refutar os pressupostos existencialistas de Bultmann. Porém,
mesmo com tal similaridade de interesses, seria incorreto agrupar os dois na
mesma escola de pensamento, isso porque, se por um lado há um ponto de
contado entre os dois, por outro lado há diferenças importantes entre esses dois
esquemas teológicos. Por exemplo: Moltmann não está tão interessado em
alicerçar a fé na história. Outra diferença entre ambos está no modo de entender
a fé: Para Pannenberg, a fé está relacionada com o passado, enquanto Moltmann
Teologia Contemporânea 103

a relaciona com o futuro. Neste sentido, Moltmann está muito mais vinculado a
Bultmann que a Pannenberg. Os dois também falam da ressurreição de cristo
como um tema central da fé cristã, porém, enquanto Moltmann descarta
qualquer interesse pela ressurreição corporal como sendo algo impertinente,
Pannenberg reconhece a realidade histórica da ressurreição como algo crucial
para a compreensão do Novo Testamento. Pannenberg também não compartilha
dos pressupostos marxistas de Moltmann, nem com suas ideias de revolução
social.

2.1. A questão da fé relacionada à história.

Em sua teologia, Pannenberg apresenta uma forte resistência às ideias de


Rudolf Bultmann, principalmente por seu conceito de redução da história à
experiência individual. Ele também se opõe à Karl Barth, acusando-o de proteger
sua teologia, escondendo-a dos ataques da história.

As ideias de Pannenberg foram revolucionárias em seu tempo, ao ponto


de certo crítico afirmar que ele foi o primeiro teólogo alemão contemporâneo a
romper totalmente com os pressupostos dialéticos barthianos. Ele não consegue
assimilar as ideias dialéticas. As supostas diferenças entreHistorie eG eschi cthe,
entre o Jesus histórico e o Cristo Kerigmático, e ainda os dois mundos propostos
por Kant: o dos fenômenos e o mundo numenal, na visão de Pannenberg são um
clamor sem sentido. A pregação da Palavra de Deus é uma afirmação vazia se não
estiver relacionada com aquilo que realmente aconteceu. A fé não pode ser
separada de sua base e conteúdo histórico.

2.2. O conceito de revelação e fé em Pannenberg.

Pannenberg insiste em que a revelação de Deus não chega ao homem de


forma imediata, e sim mediata, por meio dos sucessos históricos. Ele afirma
ainda que esta história na qual se dá a revelação, não é uma revelação especial que
só pode ser compreendida pela fé. Segundo ele, não devemos fazer distinção
entre história salvífica e história secular ou profana, uma vez que os atos salvíficos
de Deus realmente aconteceram e tem o seu lugar na história. Para ele, a
revelação se dá exclusivamente por meio de atos históricos.
Teologia Contemporânea 104

Não existem partes específicas na história, ou ramificações dentro da


história, antes, toda história é algo plenamente conhecido e até mesmo ordenado
por Deus. Esta revelação histórica está ao alcance de todo aquele que tenha olhos
para ver. O conhecimento histórico é a única base da fé. A fé é, portanto, o
conhecimento da verdade histórica.
Teologia Contemporânea 105

Capítulo 10

Teologia da Evolução de Teilhard de Chardin


Um dos acontecimentos religiosos que mais despertaram o interesse dos
teólogos no fim da década de cinquenta foi a popularidade póstuma do cientista
e místico jesuíta Pedro Teilhard de Chardin (1881-1955), fundador de um
sistema teológico que ficou conhecido como teologia da evolução. Durante sua
vida, este teólogo foi impedido de publicar seus livros, considerados pela igreja
católica como sendo nocivos e de conteúdo herético. Porém, quinze anos depois
da sua morte, esses livros suprimidos durante toda a sua vida começaram a
aparecer.

Embora ele tenha sido um teólogo católico, alguns dos seus comentaristas
mais apaixonados são cientistas e teólogos protestantes. Sua influência pode ser
percebida até mesmo nos países que compõem o nosso terceiro mundo.
Francisco Bravo, estudioso equatoriano, publicou uma obra meticulosa sobre
Teilhard. Suas ideias lograram arrancar elogios até mesmo de Dom Hélder
Câmara, arcebispo do Recife.

Muitos fatores ajudam a explicar a repentina popularidade que alcançou


a teologia de Teilhard. Sua destacada personalidade e seu caráter humanitário
podem ser percebidos por qualquer pessoa que o tenha conhecido ou lido algo
acerca da vida deste destacado sacerdote católico, que apesar das restrições que o
Vaticano impôs aos seus livros, permaneceu fiel a sua ordem durante toda vida.
Seus conhecimentos de geólogo e paleontólogo são grandes atrativos para o
mundo científico.

1. Conhecendo a proposta teológica de Teilhard de Chardin.

O ponto de partida do pensamento teológico de Telhard é a evolução, a


qual ele chama de “luz que ilumina todos os fatos, curva a que devem seguir
todas as linhas”. A terra, segundo ele, foi formada entre cinco e dez milhões de
anos e desde então vem se desenvolvendo através da evolução. Este processo
Teologia Contemporânea 106

evolutivo avança segundo o que Teilhad chama de “lei da consciência e da


complexidade”, com o que ele alude que na evolução existe uma tendência por
parte da matéria, que a faz tornar-se cada vez mais complexa. O processo,
segundo ele, pode ser resumido como consta no seguinte esquema: Partículas
elementares (chamadas de Ponto Alfa) => Átomos => Moléculas => Células
Vivas => Organismos Pluricelulares. Ele admite que a terra veio a existir por
meio de um lento processo, que pode ser descrito na seguinte ordem: Barisfera
(época da “terra derretida”) => Formação da crosta => Formação da água e do ar
=> Formação da atmosfera. Esta é a fase da história evolutiva da terra aparece a
vida biológica na terra, ou biosfera. Para descrever a etapa seguinte, em 1920,
Chardin criou o termo noosfera, que significa a “camada mental” da terra. Essa
noosfera nada mais é do que o surgimento do homem pensante sobre a terra.
Esta é a etapa mais importante na história do mundo, e também é chamada de
hominização. Nesta fase, o processo evolutivo adquire consciência de si mesmo.

Nessa etapa de sua teoria evolutiva, Teilhard começa a se apoiar na


teologia para predizer o futuro da evolução. Ele vê todo o processo evolutivo que
começa com as partículas, o ponto Alfa; e converge no que ele chama de Ponto
Ômega, ou seja, a união sobrenatural de todas as coisas em Deus. Assim sendo,
Deus vem a ser a causa final, mais que a causa eficiente do universo, dando a
perfeição a todas as coisas. Nesta etapa, Deus será tudo em todos (1Coríntios
15.28), numa forma superior de panteísmo, a expectativa da unidade perfeita, na
qual cada um dos elementos alcançará sua consumação, ao mesmo tempo que o
universo.

Na teologia darwiniana de Teilhard, Cristo é o centro do processo


evolutivo e o seu princípio básico. O Cristo de Teilhard é o reflexo no coração
do processo do ponto Ômega, e se encontra no final do processo. Por meio de
um ato pessoal de comunhão, Cristo incorpora em si o “psiquismo” total da
terra, e o universo se autorrealiza em Cristo. Esse movimento para o centro, para
Teilhard, é o processo de amor. O amor, segundo ele, não é exclusividade
humana, e sim propriedade geral de toda a vida, sendo ele a afinidade do “ser”
com o “ser”. Movidos pelas forças do amor, os fragmentos do mundo se buscam
para que o mundo possa chegar a “ser”.
Teologia Contemporânea 107

2. Principais objeções a teologia evolucionista de Chardin.

Os princípios de Teilhard de Chardin apresentam várias dificuldades


para o crente ortodoxo. Sua linguagem é obliqua e seu esforço hercúleo para
fazer de Cristo o centro da evolução é desonesto e contraditório. Sua teologia é o
reflexo do pensamento naturalista do seu tempo. Sua ênfase na personalidade
autônoma que, desde Kant aparece e reaparece na teologia contemporânea, é
também contrária a Bíblia.

Dessa síntese filosófico/naturalista procedem as demais divergências de


Teilhard com a teologia ortodoxa. Assim como as teorias evolutivas seculares, a
teologia evolucionista deste teólogo descaracteriza a criação, tal como aparece na
Bíblia. Há muitos teólogos contemporâneos que concordam com a teoria da
antiguidade da terra, e com a evolução das espécies à partir das espécies criadas
por Deus (Gênesis 1.21-25), fazendo diferenciação entre microevolução e
macroevolução. Microevolução é a mutação que ocorre dentro das espécies e
seria o fator responsável pelas diferentes raças de cães, diferentes tons de pele,
etc., mas nenhuma dessas concessões desabilita o esquema de criação conforme
narrado em Gênesis. Ao contrário disso, a teoria de Teilhard é
macroevolucionista e negligencia completamente o ponto mais básico da criação
que é Deus fazendo todas as coisas do nada pela sua palavra, e criando cada ser
em conformidade com a sua espécie. Assim como todas as teorias evolucionistas
seculares, a teologia de Teilhard Chardin parte do pressuposto de que o homem
alcança sua verdadeira dignidade e plenitude espiritual por meio do processo
evolutivo. Isso também é contrário a doutrina da graça, segundo a qual o
aperfeiçoamento advém da comunhão com Cristo Jesus.

Como todas as teorias evolucionistas, a teologia da evolução de Teilhard


é demasiado otimista. Ele divaga pela senda do universalismo e do panteísmo,
prometendo um final feliz para todos, sem fazer nenhuma alusão à graça de
Deus. Talvez essa seja uma das razões da sua difusão rápida. O homem moderno
está disposto a aceitar qualquer tipo de droga entorpecente que se apresente sob o
pseudônimo de ciência.

A teologia de Chardin não permite que a graça seja graça, e nem permite
que o pecado seja pecado. A proclamação da evolução constante por parte de
Chardin nunca se vê alterada pela realidade bíblica do pecado no homem. Por
Teologia Contemporânea 108

essa mesma razão, a doutrina bíblica do juízo quase não se vê na obra de


Teilhard. O mal, para ele, é uma superabundância da estrutura de um mundo
em evolução, que se manifesta em planos diferentes, através da desordem
material, morte, solidão e angústia.

A ideia de Teilhard de união do universo com Cristo, sendo que o


universo representa o corpo orgânico de Cristo ainda em evolução, apresenta
dois grandes inconvenientes: Primeiro, tal união tem como consequência lógica a
deificação da criação (panteísmo). Em segundo lugar, a cristologia de Chardin
transforma o Cristo da Bíblia em um Cristo cósmico. Em última análise, o
resultado de tal união é a perda tanto do mundo, como de Cristo.

A teologia da evolução, bem como as teorias evolucionistas seculares, é


antagônica a Bíblia. Não há como sustentar esse sistema teológico sem perder a
identidade cristã. Teilhard foi um homem totalmente deslumbrado com as
teorias científicas do seu tempo, chegando ao ponto de afirmar que a evolução é
“o sucesso mais prodigioso que a história jamais se referiu”. Ele se emociona
tanto com a evolução que se esquece que, segundo a fé cristã, o maior sucesso da
história é a vinda de Cristo, e não a teoria da evolução.
Teologia Contemporânea 109

Capítulo 11

Teologia do Processo
De origem norte-americana, essa nova escola teológica tem como seu
maior expositor o professor Dr. Charles Hartshorne, da Universidade de
Chicago. A teologia do processo como escola teológica é uma tentativa de
restabelecer a doutrina de Deus em um mundo extremamente cético. Assim
como as outras teologias radicais surgidas no século vinte, a teologia do processo
também toma por empréstimo alguns pressupostos de uma vertente filosófica
contemporânea, a saber, a filosofia do processo, elaborada pelo famoso
matemático e filósofo, Alfred North Whitehead (1861-1947), que por sua vez,
elaborou sua filosofia em torno de algumas ideias de Charles Darwin.

1. Pressuposições da Teologia do Processo

Os filósofos antigos desenvolveram seus sistemas em torno da ideia de


que o mundo era algo fixo, em que o ser incluía o porvir. Whitehead
desenvolveu seu sistema ao redor da ideia de que o mundo é dinâmico, estando
sempre em constante processo de transformação. Segundo ele, até Deus está
sujeito ao porvir (um conceito semelhante ao do teísmo aberto e da teologia da
esperança). A religião, para ele, é a visão de algo que está além, atrás e dentro do
fluxo passageiro das coisas imediatas; algo que é real e ao mesmo tempo espera
por realizar-se, algo que é uma possibilidade remota e mesmo assim é o maior de
todos os atos presentes, possuí-la é o bem último, e mesmo assim, está além do
nosso alcance. O legado kantiano, como se pode observar, está bem latente na
filosofia de Whitehead.

Harthshorne desenvolveu ainda mais a filosofia de Whitehead e aplicou


suas conclusões no cenário teológico. Associado com teólogos radicais de língua
inglesa como Norman Pittenger, Daniel Day Willlians, Schubert Ogden e John
Coob Jr., o grupo está convencido que para responder à Teologia da Morte de
Deus, devemos demonstrar a realidade objetiva de Deus através de uma
metafísica racional. Nesse sentido, Whitehead lhes serve como ponto de partida.
Teologia Contemporânea 110

As ideias de Chardin também são muito parecidas com a dos teólogos do


processo, isso porque tanto ele quanto Whitehead assimilam ideias
evolucionistas.

2. Objeções à teologia do processo

Deus, segundo a teologia do processo, não é um ser, e sim uma força


dinâmica por detrás da evolução, emergindo sempre em tudo, tanto na história
como na natureza. Com isso, a teologia do processo descaracteriza Deus,
reduzindo-o a um mero conceito panteísta. Assim como na filosofia kantiana, na
teologia do processo também há um grande apelo à autonomia e a liberdade
humana. Os teólogos do processo também comprometem a soberania de Deus.
Deus, segundo Whitehead, é cocriador do universo. A criação de Deus é um
processo contínuo, uma coexistência de ordem e liberdade na qual o homem
participa para criar o futuro. Essa tendência teológica torna injustificável a
escatologia, pois uma vez que não há um Deus soberano e onisciente, não há
certeza alguma quanto aos eventos futuros. Desse modo, o livro de apocalipse e
as profecias bíblicas perdem todo o sentido.

Assim como na teologia de Paul Tillich, a teologia do processo tende à


dissipar a ideia de Deus como ser pessoal, reduzindo Deus à uma força que existe
como o aspecto principal de todas as coisas, o que reduz o cristianismo bíblico a
uma mera versão panteísta de religião. Nas palavras de Hartshorne, o teólogo do
movimento, Deus literalmente contém o universo.

Ainda que muitos teólogos do processo se neguem a admitir que


descrevem Deus em termos panteístas, em sua teologia o mundo se torna
necessário para que Deus exista. Além disso, o mundo também condiciona as
atividades de Deus. Dessa forma, o Deus pessoal da Bíblia que se autorrevela,
fala e atua por conta própria, e manifesta seus desígnios de forma inteligente,
dentro da teologia do processo é uma sequência de experiências pessoalmente
ordenada, um conceito mental tomado à partir de analogias da experiência
humana. Mesmo que a teologia do processo tenta dar um toque bíblico em sua
teologia, esse biblicismo é apenas aparente. Como disse Carl Henry: apesar de
todo esforço, [na teologia do processo] a criação se transforma em evolução, a
redenção se transforma em relação e a ressurreição se transforma em renovação.
Há um abandono do sobrenatural, os milagres desaparecem, e o Deus vivo da
Teologia Contemporânea 111

Bíblia fica submerso em termos imanentes. Como podemos ver, também na


teologia do processo há uma tendência em reinterpretar os milagres da Bíblia em
termos existenciais. Sua cristologia também é bastante confusa. Cristo aparece
mais como um símbolo da atividade divina na terra do que como uma
intervenção divina no curso desse mundo. Ele é um homem em quem Deus
atuou, mas suas conclusões o dissociam do Deus encarnado.

A doutrina da ressurreição, segundo os teólogos do processo, também é


insustentável porque tal ato seria uma coerção divina, uma intervenção direta no
livre-arbítrio humano. Um evento tal como esse acabaria por forçar nossa
vontade. Como se pode perceber, a teologia do processo está muito mais
fundamentada em hipóteses filosóficas do que naquilo que a Bíblia realmente
diz.

Ao negar o conhecimento que Deus possa ter de fatos ainda não


ocorridos, a teologia do processo põe em risco a credibilidade das Escrituras, pois
se Deus não tem nenhum conhecimento dos fatos ainda não ocorridos, como
pode fazer predições sobre o futuro? A consequência lógica do seu sistema é que
não pode haver predição cem por cento segura na Bíblia, pois parece altamente
improvável que um ser que não tenha presciência plena dos contingentes futuros
saiba o que acontecerá. A Bíblia na afirma categoricamente: “Deus não é homem
para que minta”, mas se Deus é ignorante em relação a grandes períodos da
história futura, de que maneira qualquer uma das profecias preditivas das
Escrituras poderia ser qualquer coisa além de probabilidades? A teologia do
processo aniquila a fé que o crente tem em Deus, e não somente isso, mas
também retira o próprio Deus Soberano do cenário e introduz em seu lugar uma
divindade caricata, impotente, panteísta e consequentemente, finita.
Teologia Contemporânea 112
Teologia Contemporânea 113

Capítulo 12

Teologia da Libertação
1. Contextualizando a teologia da libertação

Nas décadas de 60 e 70, o ambiente teológico da América Latina passou


por sérias transformações. O ambiente no Brasil e na Argentina era de ditadura.
Os teólogos que viveram esse período foram levados a formular uma teologia que
fosse menos acadêmica e teórica, e mais laica e prática, que pudesse sanar os
problemas sociais e econômicos de então. Em meio a uma estrutura social em
que um homem velho morre aos vinte e oito anos, onde quinhentos em cada mil
crianças morrem antes de completar um ano de idade, onde os estudantes que
protestam são torturados, e oitenta por cento da população vive com uma renda
de oitenta dólares por ano, a voz revolucionária começou a clamar em favor das
massas. Católicos romanos como Juan Luís Segundo, Hugo Assman e Gustavo
Gutiérrez Merino, animados pela política mais aberta do Vaticano II;
protestantes como Rubem Alves, Emílio Castro, José Míguez Bonino e o então
missionário no Brasil, Richard Shaull, se empenharam em buscar uma teologia
que pudesse resolver os conflitos sociais da América Ibero Hispana.

As palavras chaves para entender essa teologia social são revolução,


libertação, exploração, dominação estrangeira, capitalismo e proletariado.
Qualquer semelhança com os conhecidos jargões do comunismo não é mera
coincidência. Ele foi a maior fonte de inspiração e o impulso motor dessa nova
tendência teológica. Sob a palavra libertação, não está subentendida a obra de
Cristo por nós, e sim os ideais do marxismo. A palavra, dentro desse movimento
teológico significa: Libertação política das pessoas e setores socialmente
oprimidas. Libertação social para melhores condições de vida, uma mudança
radical nas estruturas, resultante da criação contínua de uma nova maneira de ser
e de uma revolução permanente. Libertação pedagógica para uma consciência
crítica através do que o pedagogo brasileiro Paulo Freire chamou de
conscientização, sendo o cerne dessa conscientização o despertar da consciência
das massas miseráveis que vivem a cultura do silêncio, para se interarem da
Teologia Contemporânea 114

dominação social, política e econômica que lhes é imposta. A teologia da


libertação e a revolução social. Os teólogos da libertação se declararam várias
vezes favoráveis a luta armada, ao ponto de alguns considerarem Camilo Torres,
sacerdote colombiano que morreu em um tiroteio como membro da guerrilha de
Che Guevara, como o santo patrono da causa.

O padre Camilo costumava dizer que cada católico que não é


revolucionário e não está do lado da revolução comete pecado mortal. Na
questão da violência, como se pode deduzir dessas linhas, os teólogos da
libertação são bem pragmáticos. Para eles, o problema da violência e da
nãoviolência é um problema ilusório. Apenas existe a questão do uso justificado
ou injustificado da força, e se o fim é nobre, os meios se fazem necessário. Essa
atitude violenta foi de fato uma proposta aberta aos religiosos para que tomem
lugar nas barricadas e lutem em prol do desenvolvimento social e econômico da
América Latina.

No Brasil, Dom Hélder Câmara, então arcebispo do Recife, promove


uma revolução pacífica, por não se contentar com as reformas triviais. Leonardo
Boff, a principal voz do movimento no Brasil. Embora Hugo Assman e Dom
Hélder Câmara sejam dos nomes que representam o pensamento da teologia da
libertação no Brasil, atualmente é o Dr. Leonardo Boff que está no centro do
debate sobre a teologia da libertação. Como membro do conselho editorial da
Editora Vozes entre 1970 e 1985, Boff participou da coordenação e publicação
da coleção

2. Teologia da Libertação

Em 1984, em razão de suas teses ligadas à teologia da libertação,


apresentadas no livro Igreja: Carisma e Poder, foi submetido a um processo no
Vaticano. Em 1985, foi interrogado pelo cardeal Joseph Ratzinger (o atual papa
Bento XVI), então prefeito da Congregação da Doutrina e da Fé, órgão herdeiro
da Inquisição, e condenado a um ano de silêncio obsequioso, sendo também
deposto de todas as suas funções editoriais e de magistério no campo religioso.
Dada a pressão mundial sobre o Vaticano, a pena foi suspensa em 1986,
podendo retomar algumas de suas atividades. Em 1992, sendo de novo
ameaçado com uma segunda punição pelas autoridades de Roma, apostatou de
sua condição de padre e da própria Igreja Católica para se unir com uma mulher.
Teologia Contemporânea 115

Mudou de trincheira para continuar a mesma luta: continua como teólogo da


libertação, escritor, professor e conferencista nos mais diferentes auditórios do
Brasil e do exterior, assessor de movimentos sociais de cunho popular libertador,
como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e as Comunidades
Eclesiais de Base (CEB‘s), entre outros. Curiosamente a cúpula da CNBB parece
continuar com boas relações com Boff, apesar de sua apostasia e de seu
marxismo.

Os pressupostos da Teologia da Libertação e as objeções à doutrina. O


ponto de partida para a elaboração da teologia da libertação, segundo o peruano
Gutiérrez, é o esforço do ser humano para ser parte do processo através do qual o
mundo será transformado, o que faz da teologia da libertação mais um
movimento político que um movimento meramente teológico. Tal ponto de
partida deve ser contextual, com raízes na dimensão humana e política, e a
teologia deve ser elaborada à partir de elucubrações sociopolíticas. Como
movimento político, ela tem sido um brado a favor da dignidade humana, de
uma sociedade mais justa e fraterna. Porém, o que eles admitem na teoria, foi
negado por eles mesmos muitas vezes na prática.

A salvação, dentro da cosmovisão libertária, se resume em um processo


que abarca o homem e a história, e o evangelho, em nossa época, deve ter uma
transcrição e aplicação política. O encontro com Deus é descrito como o
compromisso com o processo histórico da humanidade. Essa concepção de
salvação talvez corresponda à ideia judaica de messianismo na época de Cristo,
mas pouco tem a ver com o conceito tal como utilizado por Jesus e por Paulo. A
responsabilidade social é um dever do cristão, mas a salvação não se restringe a
essa responsabilidade: salvação significa perdão e cancelamento dos pecados
cometidos contra Deus (Hebreus 9.28, 1João 3.5).

Nesse processo de teologia libertária, a missão da igreja acaba por


confundir-se com confrontamento político e adesão e exposição de ideias sociais,
mas a missão do cristão, segundo a Bíblia, é proclamar que o filho de Deus
ressuscitou e tem poder de perdoar pecados.

É preciso ressaltar que as afirmações de violência não são de nenhum


modo característica de todos os teólogos da libertação. Toda rotulação é pobre, e
nesse sentido, há de se admitir a classificação do movimento da teologia da
Teologia Contemporânea 116

libertação como um movimento violento é falha. Ainda assim, não podemos


deixar de aludir que, ainda que não totalmente, a teologia da libertação é
fortemente um movimento violento. Como disse, Rubem Alves, também teólogo
libertário, a violência se converte na força que move a história no caminho para
conduzir à sociedade perfeita. Em outras palavras, é justo empregar a violência
contra a violência, pois neste caso, os fins justificam os meios. Ele também
afirma que o amor para os oprimidos significa cólera contra os opressores. Como
é difícil associar todo esse discurso com as palavras de Jesus no Sermão da
Montanha! Como o evangelicalismo deve responder a essa revolução teológica? É
óbvio que o cristão não deve viver alienado de qualquer ideia política ou deva se
conformar a uma mentalidade status quo. O problema é que, conforme temos
exposto em tese, a tendência da teologia cristã é polarizar: Ou a experiência, ou a
razão; ou a história, ou a fé; e no caso da Teologia da Libertação, ou o marxismo,
ou não somos cristãos. Não é preciso polarizar para ter responsabilidade social,
nem é preciso forçar a exegese ou fazer eisegese para defender pressupostos
sociais.

Devido à repressão ao movimento, hoje não há muitos grupos ou


indivíduos que mantém a Teologia da Libertação. Atualmente o movimento se
reduz a algumas comunidades de base, que tentam colocar em prática as ideias
sociais da mesma, mas a influência nas faculdades ainda é grande. A teologia da
libertação está fundamentada em uma postura na qual a presente práxis histórica
se transforma em norma canônica para descobrir a vontade de Deus. Ao refletir
algo parecido com a ética situacional, a teologia da libertação não pode escapar
das mesmas acusações levantadas contra ela: moralidade relativista e pragmática.
Ela foge totalmente a ortodoxia reformada, e não há nenhuma possibilidade de
um crente evangélico sustentá-la sem cair em contradição, isso porque a Sola
Scriptura não admite nenhum somado a, ou junto com.

3. Principal erro da Teologia da Libertação

Afinal, qual o principal erro da Teologia da Libertação (TL)?


Sinteticamente serão apontados três erros da Teologia da Libertação.

Primeiro, a TL afirma que o pobre é o lugar de Salvação e, por isso, a


Salvação se dá por meio do pobre. Isso contraria gravemente os ensinamentos
bíblicos e a doutrina da Igreja. Para a Bíblia e a para a Igreja o lugar da
Teologia Contemporânea 117

veracidade da teologia é toda a humanidade, com todos os seus grupos e


segmentos sociais e, não apenas o pobre. Cristo veio para toda a humanidade e
não apenas para os pobres, justamente porque “todos pecaram e destituídos estão
da glória de Deus” (Romanos 3, 23). Jesus Cristo não é o Salvador apenas de
uma classe social (o proletariado) e de um grupo social (os pobres), mas de toda a
humanidade. Ele não salva apenas a vida material (comer, vestir, etc.), mas salva
o homem em sua totalidade (vida econômica, emocional, espiritual, estética,
etc.).

Segundo, em grande medida libertar o homem da pobreza significa


oprimi-lo dentro de novas formas de sofrimento físico e espiritual. As populações
da Europa e de outras partes do planeta que conseguiram se libertar da pobreza
atualmente vivem sob o jugo de novas opressões (terrorismo, depressão, suicídio,
individualismo, ditadura da mídia, morte da democracia, etc.). Jesus Cristo sabe
que o libertador de hoje fatalmente é o opressor de amanhã.

Terceiro, o real intuito da TL não é libertar o pobre. Se realmente a


Teologia da Libertação desejasse libertar o pobre, ela não apoiaria abertamente
regimes tirânicos como Cuba e a Coréia do Norte. O pobre não passa de massa
de manobra dentro dos planos da TL. O que realmente ela deseja é implantar na
América Latina um regime fechado nos moldes de Cuba. Na prática a Teologia
da Libertação funciona como uma cabeça de ponte, ou seja, de um lado, é uma
forma de ideias e doutrinas não cristãs entrarem dentro da Igreja. Entre essas
doutrinas cita-se: o secularismo, o ateísmo, a defesa de um Estado totalitário e,
por causa disso, a opressão de toda a população. A TL funciona como uma
espécie de idiota útil, ou seja, deve legitimar o discurso opressor oriundo do
totalitarismo. Sendo que essa legitimação é feita por meio da estrutura da Igreja e
de uma indevida interpretação da Bíblia. Do outro lado, a Teologia da
Libertação funciona, a nível latino-americano, como um grande palanque
político da esquerda. Não é crime uma facção religiosa ter uma ideologia política.
Muitos grupos religiosos adotam posições e ideias políticas. O grande problema é
que a TL afirma defender o pobre. Na prática o que realmente ela deseja é
angariar a simpatia e os votos dos pobres para a esquerda.

A Teologia da Libertação simplesmente ignora que historicamente foi a


esquerda quem perseguiu e matou milhões de cristãos em todo o mundo.
Grande parte dos sofrimentos que a Igreja sofreu nos últimos duzentos anos se
Teologia Contemporânea 118

deve à esquerda. A esquerda é a grande propagadora, a nível mundial, do ateísmo


e de doutrinas anticristãs. Entretanto, tudo isso não interessa a TL. A Teologia
da Libertação está mergulhada num mar de alienação, de totalitarismo e de
doutrina marxista anticristã.

Por fim, é preciso afirmar que sem dúvida a teologia e, portanto, toda a
Igreja deve estar preocupada e empenhada em combater a pobreza,
principalmente a pobreza extrema que causa a morte física do indivíduo. A
sociedade cristã não pode admitir a existência de pobres e de pessoas morrendo
de fome. Entretanto, a luta contra a pobreza deve ser feita por meio da doutrina
social da Igreja e não por meio da ideologia marxista, opressora e totalitária
defendida pela Teologia da Libertação. Os países que a TL apresentam como
modelos (Cuba, Coréia do Norte, Venezuela) não extinguiram a pobreza. Os
modelos de homens propostos pela TL (Marx, Che Chevara, Fidel Castro, etc.)
são pessoas que trouxeram para seus países a morte e a destruição. Quem
realmente deseja combater a pobreza deve ter como modelo Jesus Cristo. Além
disso, deve colocar em prática a doutrina social da Igreja.
Teologia Contemporânea 119

Capítulo 13

Teologia Relacional
As ondas gigantes que provocaram a tremenda catástrofe na Ásia no final
de dezembro de 2004 afetaram também os arraiais evangélicos, levantando
perguntas acerca de Deus, seu caráter, seu poder, seu conhecimento, seus
sentimentos e seu relacionamento com o mundo e as pessoas diante de tragédias
como aquela. Dentre as diferentes respostas a essas perguntas, uma chama a
atenção pela ousadia de suas afirmações: Deus sofreu muito com a tragédia e
certamente não a havia determinado ou previsto; ele simplesmente não pôde
evitá-la, pois Deus não conhece o futuro, não controla ou guia a história, e não
tem poder para fazer aquilo que gostaria. Esta é a concepção de Deus defendida
por um movimento teológico conhecido como teologia relacional, ou ainda,
teísmo aberto ou teologia da abertura de Deus.

A teologia relacional, como movimento, teve início em décadas recentes,


embora seus conceitos sejam bem antigos. Ela ganhou popularidade por meio de
escritores norte-americanos como Greg Boyd, John Sanders e Clark Pinnock. No
Brasil, estas ideias têm sido assimiladas e difundidas por alguns líderes
evangélicos, às vezes de forma aberta e explícita [Ricardo Gondim, René Kivitz, e
outros].

A teologia relacional considera a concepção tradicional de Deus como


inadequada, ultrapassada e insuficiente para explicar a realidade, especialmente
catástrofes como o tsunami de dezembro de 2004, e se apresenta como uma nova
visão sobre Deus e sua maneira de se relacionar com a criação. Seus pontos
principais podem ser resumidos desta forma:

1. O atributo mais importante de Deus é o amor

Todos os demais estão subordinados a este. Isto significa que Deus é


sensível e se comove com os dramas de suas criaturas.
Teologia Contemporânea 120

2. Deus não é soberano

Só pode haver real relacionamento entre Deus e suas criaturas se estas


tiverem, de fato, capacidade e liberdade para cooperarem ou contrariarem os
desígnios últimos de Deus. Deus abriu mão de sua soberania para que isto
ocorresse. Portanto, ele é incapaz de realizar tudo o que deseja, como impedir
tragédias e erradicar o mal. Contudo, ele acaba se adequando às decisões
humanas e, ao final, vai obter seus objetivos eternos, pois redesenha a história de
acordo com estas decisões.

3. Deus ignora o futuro, pois ele vive no tempo, e não fora dele.

Ele aprende com o passar do tempo. O futuro é determinado pela


combinação do que Deus e suas criaturas decidem fazer. Neste sentido, o futuro
inexiste, pois os seres humanos são absolutamente livres para decidir o que
quiserem e Deus não sabe antecipadamente que decisão uma determinada pessoa
haverá de tomar num determinado momento.

4. Deus se arrisca

Ao criar seres racionais livres, Deus estava se arriscando, pois não sabia
qual seria a decisão dos anjos e de Adão e Eva. E continua a se arriscar
diariamente. Deus corre riscos porque ama suas criaturas, respeita a liberdade
delas e deseja relacionar-se com elas de forma significativa.

5. Deus é vulnerável

Ele é passível de sofrimento e de erros em seus conselhos e orientações.


Em seu relacionamento com o homem, seus planos podem ser frustrados. Ele se
frustra e expressa esta frustração quando os seres humanos não fazem o que ele
gostaria.

6. Deus muda

Ele é imutável apenas em sua essência, mas muda de planos e até mesmo
se arrepende de decisões tomadas. Ele muda de acordo com as decisões de suas
criaturas, ao reagir a elas. Os textos bíblicos que falam do arrependimento de
Deus não devem ser interpretados de forma figurada. Eles expressam o que
realmente acontece com Deus.
Teologia Contemporânea 121

Estes conceitos sobre Deus decorrem da lógica adotada pela teologia


relacional quanto ao conceito da liberdade plena do homem, que é o ponto
doutrinário central da sua estrutura, a sua “menina dos olhos”. De acordo com a
teologia relacional, para que o homem tenha realmente pleno livre arbítrio suas
decisões não podem sofrer qualquer tipo de influência externa ou interna.
Portanto, Deus não pode ter decretado estas decisões e nem mesmo tê-las
conhecido antecipadamente. Desta forma, a teologia relacional rejeita não
somente o conceito de que Deus preordenou todas as coisas (calvinismo) como
também o conceito de que Deus sabe todas as coisas antecipadamente
(arminianismo tradicional). Neste sentido, o assunto deve ser entendido, não
como uma discussão entre calvinistas e arminianos, mas destes dois contra a
teologia relacional. Vários líderes calvinistas e arminianos no âmbito mundial
têm considerado esta visão da teologia relacional como alheia ao cristianismo.

A teologia relacional traz um forte apelo a alguns evangélicos, pois diz


que Deus está mais próximo de nós e se relaciona mais significativamente
conosco do que tem sido apresentado pela teologia tradicional. Segundo os
teólogos relacionais, o cristianismo histórico tem apresentado um Deus
impassível, que não se sensibiliza com os dramas de suas criaturas. A teologia
relacional, por sua vez, pretende apresentar um Deus mais humano, que constrói
o futuro mediante o relacionamento com suas criaturas. Os seres humanos são,
dessa forma, coparticipantes com Deus na construção do futuro, podendo, na
verdade, determiná-lo por suas atitudes.

Contudo, a teologia relacional não é novidade. Ela tem raízes em


conceitos antigos de filósofos gregos, no socinianismo (que negava exatamente
que Deus conhecia o futuro, pois atos livres não podem ser preditos) e
especialmente em ideologias modernas, como a teologia do processo. O que ela
tem de novo é que virou um movimento teológico composto de escritores e
teólogos que se uniram em torno dos pontos comuns e estão dispostos a
persuadir a igreja cristã a abandonar seu conceito tradicional de Deus e a
convencê-la que esta “nova” visão de Deus é evangélica e bíblica.

Mesmo tendo surgido como uma reação a uma possível ênfase exagerada
na impassividade e transcendência de Deus, a teologia relacional acaba sendo um
problema para a igreja evangélica, especialmente em seu conceito sobre Deus.
Embora os evangélicos tenham divergências profundas em algumas questões,
Teologia Contemporânea 122

reformados, arminianos, wesleyanos, pentecostais, tradicionais, neopentecostais e


outros, todos concordam, no mínimo, que Deus conhece todas as coisas, que é
onipotente e soberano. Entretanto, o Deus da teologia relacional é totalmente
diferente daquele da teologia cristã. Não se pode afirmar que os adeptos da
teologia relacional não são cristãos, mas que o conceito que eles têm de Deus é,
no mínimo, estranho ao cristianismo histórico.

Ao declarar que o atributo mais importante de Deus é o amor, a teologia


relacional perde o equilíbrio entre as qualidades de Deus apresentadas na Bíblia,
dentre as quais o amor é apenas uma delas. Ao dizer que Deus ignora o futuro, é
vulnerável e mutável, deixa sem explicação adequada dezenas de passagens
bíblicas que falam da soberania, do senhorio, da onipotência e da onisciência de
Deus (Is 46.10a; Jó 28; Jó 42.2; Sl 90; Sl 139; Rm 8.29; Ef 1; Tg 1.17; Ml 3.6;
Gn 17.1 etc.). Ao dizer que Deus não sabia qual a decisão de Adão e Eva no
Éden, e que mesmo assim arriscou-se em criá-los com livre arbítrio, a teologia
relacional o transforma num ser irresponsável. Ao falar do homem como
coconstrutor de Deus de um futuro que inexiste, a teologia relacional esquece
tudo o que a Bíblia ensina sobre a queda e a corrupção do homem. Ao fim,
parece-nos que na tentativa extrema de resguardar a plena liberdade do arbítrio
humano, a teologia relacional está disposta a sacrificar a divindade de Deus. Ao
limitar sua soberania e seu pleno conhecimento, entroniza o homem livre, todo-
poderoso, no trono do universo, e desta forma, deixa-nos o desespero como
única alternativa diante das tragédias e catástrofes deste mundo e o ceticismo
como única atitude diante da realidade do mal no universo, roubando-nos o final
feliz prometido na Bíblia. Pois, afinal, poderá este Deus ignorante, fraco,
mutável, vulnerável e limitado cumprir tudo o que prometeu?

Com certeza a visão tradicional de Deus adotada pelo cristianismo


histórico por séculos não é capaz de responder exaustivamente a todos os
questionamentos sobre o ser e os planos de Deus. Ela própria é a primeira a
admitir este ponto. Contudo, é preferível permanecer com perguntas não
respondidas a aceitar respostas que contrariem conceitos claros das Escrituras.
Como já havia declarado Jó há milênios (42.2,3): “Bem sei que tudo podes, e
nenhum dos teus planos pode ser frustrado. Quem é aquele, como disseste, que
sem conhecimento encobre o conselho? Na verdade, falei do que não entendia;
coisas maravilhosas demais para mim, coisas que eu não conhecia.”
Teologia Contemporânea 123

Capítulo 14

A Teologia da Prosperidade
Teologia da prosperidade, também conhecida como confissão positiva,
palavra da fé, movimento da fé e evangelho da saúde e da prosperidade, é um
movimento religioso surgido nas primeiras décadas do século XX nos Estados
Unidos da América. Sua doutrina afirma, a partir da interpretação de alguns
textos bíblicos como Gênesis 17.7, Marcos 11.23-24 e Lucas 11.9-10, que os que
são verdadeiramente fiéis a Deus devem desfrutar de uma excelente situação na
área financeira, na saúde, etc.

O pioneiro desse movimento foi o estadunidense Essek. M Kenyon,


enquanto o maior divulgador foi Kenneth Hagin, que influenciou a muitos
pregadores nos Estados Unidos que ganharam reconhecimento mundial, como
Kenneth Copeland, Benny Hinn, David (Paul) Yonggi Cho, entre outros. A
Partir dos anos 70 e 80, a teologia da prosperidade se estendeu a muitos paises,
incluindo Portugal, onde se destacou Jorge Tadeu, fundador da Igreja Maná, e
também o Brasil. Ao longo dos anos essa doutrina foi abraçada principalmente
por igrejas neopentecostais. No Brasil, as maiores igrejas desse movimento são a
Igreja Universal do Reino de Deus, do Bispo Macedo, a Igreja Internacional da
Graça de Deus, do Missionário R.R. Soares, a Igreja Mundial do Poder de Deus,
fundada pelo Apóstolo Waldemiro Santiago, também dissidente da Igreja
Universal, a Igreja Apostólica Renascer em Cristo, fundada pelo casal Estevam e
Sônia Hernandes, além da Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo, de Valnice
Milhomens. Além destes movimentos e igrejas, existem também conferencistas
itinerantes proclamadores desta doutrina, como Marco Feliciano, Paulo Marcelo,
entre muitos outros.

Movidos em primeira mão por suas necessidades básicas, mas em seguida


por outras motivações não tão dignas, quanto à inveja, a ganância, o poder etc.,
muitas pessoas buscam a Deus tão somente por aquilo que Ele pode oferecer,
ignorando o Seu caráter e o desejo do Seu coração de que sejamos pessoas
melhores.
Teologia Contemporânea 124

Kenneth Hagin discípulo de Kenyon, sofreu várias enfermidades e


pobreza na juventude; aos 16 anos diz ter recebido uma revelação quando lia Mc
11.23,24, entendendo que tudo se pode obter de Deus, desde que confesse em
voz alta, nunca duvidando da obtenção da resposta, mesmo que as evidências
indiquem o contrário. Isso é a essência da "Confissão Positiva". Foi pastor da
igreja batista; da Assembleia de Deus, em seguida passou por várias igrejas
pentecostais, e, finalmente, fundou sua própria igreja, aos 30 anos, fundando o
Instituto Bíblico Rhema.

As ideias de Hagin que levaram ao estabelecimento da teologia da


prosperidade pode ser dividida em três pontos principais:

(1) Autoridade Espiritual

Segundo K. Hagin, Deus tem dado autoridade (unção) a profetas nos


dias atuais, como seus porta-vozes. Ele diz que "recebe revelações diretamente do
Senhor"; “... Dou graças a Deus pela unção de profeta... Reconheço que se trata
de uma unção diferente... é a mesma unção, multiplicada cerca de cem vezes"
(Hagin, Compreendendo a Unção, p. 7).

(2) Bênçãos e Maldições da lei

K. Hagin diz, com base em Gl 3.13,14, que fomos libertos da maldição


da lei, que são: (1) Pobreza; (2) doença e (3) morte espiritual. Ele toma
emprestadas as maldições de Dt 28 contra os israelitas que pecassem. Segundo
essa doutrina, o cristão tem direito a saúde e riqueza; diante disso, doença e
pobreza são maldições da lei. Eles ensinam que "todo cristão deve esperar viver
uma vida plena, isenta de doenças" e viver de 70 a 80 anos, sem dor ou
sofrimento. Quem ficar doente é porque não reivindica seus direitos ou não tem
fé. E não há exceções. Pregam que Is 53.4,5 é algo absoluto. Fomos sarados e não
existe mais doença para o crente. Os seguidores de Hagin enfatizam muito que o
crente deve ter carro novo, casa nova própria, as melhores roupas, uma vida de
luxo.
Teologia Contemporânea 125

(3) Confissão Positiva

É o terceiro ponto da teologia da prosperidade. Ela está incluída na


"fórmula da fé", que Hagin diz ter recebido diretamente de Jesus, que lhe
apareceu e mandou escrever de 1 a 4, a "fórmula".
Se alguém deseja receber algo de Jesus, basta segui-la:

(a) "Diga a coisa" positiva ou negativamente, tudo depende do indivíduo. De


acordo com o que o indivíduo quiser, ele receberá". Essa é a essência da
confissão positiva.

(b) "Faça a coisa". "Seus atos derrotam-no ou lhe dão vitória. De acordo com
sua ação, você será impedido ou receberá".

(c) "Receba a coisa". Compete a nós a conexão com o dínamo do céu". A fé é o


pino da tomada. Basta conectá-lo.

(d) "Conte a coisa" a fim de que outros também possam crer". Para fazer a
"confissão positiva", o cristão dever usar as expressões: exijo, decreto,
declaro, determino, reivindico, em lugar de dizer: peço, rogo, suplico; jamais
dizer: "se for da tua vontade", pois isto destrói a fé.

Cinco termos hebraicos que descrevem a prosperidade no Antigo


Testamento:

(a) Tsālēach: a prosperidade como fruto de uma vida bem-sucedida. No Antigo


Testamento a palavra hebraica mais comum para descrever a prosperidade é
tsālēach, isto é, "ter sucesso", "dar bom resultado", "experimentar
abundância" e "fecundidade". Esse termo é usado em relação ao sucesso que
o Eterno deu a José (Gn 39.2,3,33) e a Uzias (2Cr 26.5). No contexto
bíblico, a verdadeira prosperidade material ou espiritual é resultado da
obediência, temor e reverência do homem a Deus. A Escritura afirma que
Uzias "buscou o SENHOR, e Deus o fez prosperar".

(b) Chāyâ: a prosperidade de uma vida longeva. Outro termo hebraico que
descreve a vida próspera échāyâ. Literalmente a palavra significa "viver" ou
Teologia Contemporânea 126

"permanecer vivo", entretanto, em certos contextos significa "viver


prosperamente": "Até que eu venha e vos leve para uma terra como a vossa,
terra de trigo e de mosto, terra de pão e de vinhas, terra de oliveiras, de azeite
e de mel; e assim vivereis e não morrereis" (2Rs 18.32). Em 1 Samuel 10.24,
a frase "Viva o rei!", quer dizer "Viva prosperamente o rei!"; "Viva o rei em
prosperidade".

(c) Śākal: a sabedoria que traz prosperidade. Outro termo muito significativo no
Antigo Testamento é śākal. Textualmente significa "ser sábio", "agir
sabiamente" e, por extensão, "ter sucesso". Esta palavra está relacionada à
vida prudente, ao agir cautelosa e sabiamente em todos os momentos e
circunstâncias. Um exemplo negativo que serve para ilustrar a importância
do que estamos afirmando é o marido de Abigail. Nabal, do hebraico nābāl,
ipsis litteris, "louco", "imprudende", "tolo", demonstrou imprudência, tolice
e loucura ao negar socorrer a Davi em suas necessidades. Embora rico, não
era sábio e prudente (1Sm 25.10-17); sua estultice quase o leva à morte pelas
mãos de Davi, mas não impediu que o mesmo fosse morto pelo Senhor
(1Sm 25.37,38). Nabal não agiu com śēkel, isto é, "sabedoria", "prudência";
não procedeu com prudentemente, portanto, "não teve sucesso", "não foi
próspero". Davi, por outro lado, viveu sabiamente diante de Saul, dos
exércitos de Israel, do povo e diante do próprio Senhor: "E Davi se conduzia
com prudência [śākal] em todos os seus caminhos, e o Senhor era com ele"
(1Sm 18.14 ler vv.12,15).

(d) Shālâ: o estado de imperturbabilidade da prosperidade. O vocábulo procede


de uma raiz da qual se deriva as palavras "tranquilidade" e "sossego". O
termo significa "estar descansado", "estar próspero", "prosperidade". O
termo também diz respeito à prosperidade do ímpio (Jr 12.1). Porém, o foco
que pretendo destacar é o flagrante estado de "imperturbabilidade" que pode
levar ao orgulho. No Salmo 30. 6 o poeta afirma:"Eu dizia na minha
prosperidade [shālâ]: Não vacilarei jamais". Provérbios 1.32 revela com
muita propriedade que "a prosperidade dos loucos os destruirá". O Salmo 30
descreve o louvor pelo recebimento da cura divina e pelo livramento da
morte: "Senhor, fizeste subir a minha alma da sepultura; conservaste a vida
para que não descesse ao abismo" (v.3). A salmodia foi composta logo após o
restabelecimento da saúde física do salmista. Neste poema fala a respeito de
sua prosperidade e de como sentia-se seguro, tranquilo e imperturbável até
Teologia Contemporânea 127

que a calamidade adentrou nos umbrais de sua frágil vida e seu orgulho e
confiança na riqueza foi abatido. A confiança na estabilidade da prosperidade
cede lugar à confiança inabalável na bondade divina: "Ouve, Senhor, e tem
piedade de mim; Senhor, sê o meu auxílio" (v.10). A prosperidade
anunciada por meio do vocábulo shālâpode produzir, como afirma o teólogo
Victor Hamilton, "despreocupação" (Ez 23.41; Pv 1.32). Portanto, esse
termo afirma o perigo que subjaz na prosperidade. Esta não deve substituir a
confiança em Deus e nas santas promessas das Escrituras.

(e) Dāshēm: a prosperidade abundante. Este termo é mais frequente nos textos
poéticos do que nos prosaicos. Logo, trata-se de um vocábulo poético e
idiomático hebreu. Literalmente significa "engordar", "ser gordo" e,
consequentemente, "ser próspero". Em nossa obra, Hermenêutica Fácil e
Descomplicada (CPAD)

1. O Que Não é a Verdadeira Prosperidade

A verdadeira prosperidade não é sinônimo de riqueza material, como


muitos pensam. Nem sempre um homem rico pode ser considerado como
próspero e, da mesma maneira, não podemos dizer que um homem pobre não
possa ser próspero. Vejamos alguns exemplos:

Jesus é o maior exemplo, pois Ele veio a este mundo e viveu como pobre
(Zc 9.9). O barco onde ele ensinava as multidões, não era seu (Lc 5.3); O
jumentinho no qual ele entrou montado em Jerusalém, também não era seu (Lc
19.30-35) e Ele mesmo disse que não tinha onde reclinar a cabeça (Mt 8.20).
Quando precisou pagar o imposto, não tinha dinheiro algum, por isso mandou
que Pedro fosse buscar a moeda na boca do peixe (Mt 17.27). Nem por isso, Ele
deixou de ser próspero, pois cumpriu sua missão e foi exaltado por Deus (Ef
1.20,21; Fp 2.9).

O apóstolo Paulo também sofreu muito e passou por muitas necessidades


(II Co 11.24-33). Algumas vezes precisou de auxílio dos irmãos (Fp 4.10-19).
Escrevendo aos filipenses ele disse que aprendeu a estar contente com o que
tinha. Sabia ter abundância e sabia também padecer necessidade (Fp 4.12-13).
Mesmo assim, ele foi um homem próspero. Mesmo sem dispor de Rádio,
Televisão, Internet e meios de transportes modernos, pôde ganhar milhares de
Teologia Contemporânea 128

vidas para Cristo, fundar dezenas de igrejas, treinar obreiros e, através de suas
epístolas, contribuir para a edificação das igrejas em todo o mundo.

O Novo Testamento menciona que algumas igrejas eram pobres (2Co


8.2; Ap 2.9). Os cristãos da Judéia passaram por dificuldades financeiras e foram
ajudados pelos coríntios e pelos macedônios (2Co 8 e 9; Rm 15.26). Os próprios
irmãos macedônios viviam em “profunda pobreza” (2Co 8.2). No entanto, o
médico Lucas diz, acerca destas igrejas: “Assim, pois, as igrejas em toda a Judéia,
e Galiléia e Samaria tinham paz, e eram edificadas; e se multiplicavam, andando
no temor do Senhor e consolação do Espírito Santo” (At 9.31).

Estes são apenas alguns, dentre tantos outros exemplos bíblicos, de


pessoas que, apesar de serem pobres, foram prósperas e cumpriram os propósitos
divinos.

2. O Que é a Verdadeira Prosperidade

A verdadeira prosperidade não se limita a posse dos bens terrenos, mas,


principalmente no reconhecimento e na aquisição dos bens espirituais e eternos.

2.1. A verdadeira prosperidade é ter a Deus como bem maior:

(a) O salmista Asafe, depois que entrou no santuário, disse: “Quem tenho eu
no céu senão a ti? e na terra não há quem eu deseje além de ti... para
mim, bom é aproximar-me de Deus…“ (Sl 73.25,28);

(b) Quando a multidão estava abandonando a Cristo, e não queria mais


segui-lo, Ele perguntou aos discípulos: Quereis vós também retirar-vos?
Ao que Pedro lhe respondeu: “Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as
palavras da vida eterna” (Jo 6.67,68);

(c) O apóstolo Paulo disse: “O que para mim era ganho reputei-o perda por
Cristo. E, na verdade, tenho também por perda todas as coisas, pela
excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri
a perda de todas estas coisas, e as considero como escória, para que possa
ganhar a Cristo” (Fp 3.7,8).
Teologia Contemporânea 129

2.2. A verdadeira prosperidade é possuir riquezas espirituais:

(a) O apóstolo Paulo nos exorta a buscar e a pensar nas “coisas que são de
cima” (Cl 3.1,2);

(b) Pedro não tinha prata nem ouro, mas tinham autoridade para curar em
nome de Jesus (At 3.1-6);

(c) A igreja de Laodicéia era materialmente rica, mas vivia em miséria


espiritual. Por isso, foi repreendida pelo Senhor Jesus (Ap 3.17-18).
Enquanto que a igreja de Esmirna vivia em pobreza, e o Senhor Jesus
disse que ela era rica (Ap 2.9).

3.3. A verdadeira prosperidade é possuir riquezas eternas:

(a) Jesus disse: “Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem
tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam; Mas ajuntai
tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os
ladrões não minam nem roubam” (Mt 6.19,20);

(b) Lázaro era um mendigo que vivia cheio de chagas, mas, depois da morte,
foi levado pelos anjos para o seio de Abraão (Lc 16.19-31);

(c) O apóstolo Paulo disse: “Porque nada trouxemos para este mundo, e
manifesto é que nada podemos levar dele” (1Tm 6.7). E o escritor da
Epístola aos Hebreus, disse: “Porque não temos aqui cidade permanente,
mas buscamos a futura” (Hb 13.14).

Por isso, o apóstolo Paulo diz que nós somos “... como pobres, mas
enriquecendo a muitos; como nada tendo, e possuindo tudo” (2Co 6.10).

3. Advertências Bíblicas Sobre as Riquezas Terrenas

A Bíblia traz muitas advertências sobre os perigos que envolvem as


riquezas. Vejamos algumas:

(a) Jesus disse que dificilmente entrará um rico no céu (Lc 18.24);
Teologia Contemporânea 130

(b) O apóstolo Paulo disse os que querem ser ricos, caem em tentação e em
muitas concupiscências; e que o amor do dinheiro é a raiz de toda a
espécie de males (1Tm 6.9,10); A riqueza pode conduzir a avareza,
excluindo-o do reino dos céus (I Co 5.11; 6.10; Ef 5.5; Cl 3.5);

(c) Não devemos colocar a nossa confiança na riqueza (Sl 49.6,7; 52.7;
62.10; Pv 11.28; 1Tm 6.17);

(d) Pode tirar a tranquilidade (Jó 27.19-20; Ec 5.12);

(e) Além disso, a riqueza não garante solução para os maiores problemas do
ser humano (Pv 11.4).

4. Como Obter a Verdadeira Prosperidade

A verdadeira prosperidade é uma realidade que pode ser alcançada por


qualquer cristão. Para alcançá-la, é necessário:

(a) Meditar na Lei de Deus (Js 1.8; Sl 1.3);

(b)Obedecer a Palavra de Deus (Dt 29.9; 1Cr 22.13; 2Cr 31.21 ; 1Rs 2.3);

(c) Reconhecer que a prosperidade vem de Deus (Ne 1.11; 2.20).

Os dias hodiernos são caracterizados por uma sociedade capitalista e


materialista, onde a inversão os valores tem feito com que muitas pessoas,
inclusive cristãos, se apeguem aos bens terrenos e materiais. Muitos vivem numa
busca desenfreada pelos bens materiais, a ponto de sufocar a vida espiritual. Cabe
aos cristãos, o direito de escolha: priorizar os bens terrenos ou as riquezas
espirituais. No entanto, aquele que colocar no seu coração o propósito de buscar
as riquezas celestiais e espirituais, poderá desfrutar de muitas bênçãos no presente
século, e, principalmente, no século vindouro.
Teologia Contemporânea 131

Capítulo 15

A Teologia Negra
1. Definição da Teologia Negra

A teologia negra é um movimento teológico que surgiu entre os cristãos


negros nos Estados Unidos da América na segunda metade da década dos 60. Ela
se concentra na reflexão teológica sobre a luta dos negros norte americanos,
liderados no princípio pelo pastor batista Martin Luther King, Jr., para
conseguirem a justiça e libertação sociais, políticas e econômicas numa sociedade
dominada pelos brancos. Ela se baseia na Bíblia e nas características singulares da
experiência religiosa dos negros americanos. Ela encontra na Bíblia uma base
para o sentido político da libertação, isto é, o êxodo do Egito. E ela encontra na
experiência religiosa dos escravos negros, manifestada nos seus cânticos, sermões
e orações que destacam a ressurreição de Jesus, a base para o sentido escatológico
ou futurista da libertação. A teologia negra pode ser classificada como um tipo de
teologia de libertação, pois ela se preocupa basicamente com a libertação de um
grupo de oprimidos. Contudo, ela se distingue da teologia da libertação latino-
americana e da teologia feminista ao evitar o uso da análise social-econômica
marxista e ao concentrar-se na libertação de uma raça oprimida ao invés de uma
classe social-econômica ou de um grupo oprimido por causa de seu sexo.
Entretanto, os líderes da teologia negra americana têm mantido um diálogo com
os líderes da teologia da libertação latino-americana e asiática, da teologia
feminista e da teologia Africana, especialmente na África do Sul.

2. O Pano De Fundo Histórico Para a Teologia Negra

Para podermos compreender adequadamente esta nova teologia, é


indispensável refletirmos um pouco sobre as condições históricas que geraram a
necessidade para uma teologia especificamente negra nas Américas. Portanto,
consideraremos os dois séculos da escravidão dos negros e o período subsequente
de racismo institucionalizado.
Teologia Contemporânea 132

2.1. Os Duzentos Anos da Escravidão Racista (1600-1865)

O chamado “tráfico de negros” foi iniciado em meados do século XV


pelos portugueses que, ao procurarem ouro no literal ocidental da África,
descobriram outra fonte de riqueza material, a saber, a venda de escravos negros
primeiro na Europa e subsequentemente nas recém descobertas terras do novo
mundo. Do século XVI até quase o final do século XIX, os portugueses e outros
europeus trouxeram, sob condições indescritivelmente cruéis a bordo dos navios
negreiros, entre 10 e 20 milhões de escravos da África para o hemisfério
ocidental. Isto aconteceu só para alimentar a demanda cada vez maior para a mão
de obra forte e barata nas Américas. Ao passo que o Brasil recebeu uns 38% de
todos estes escravos para labutar em suas minas e plantações e engenhos de
açúcar, a América do Norte recebeu apenas 6% deles para labutar em suas
plantações de tabaco e algodão.

2.2. Cem Anos do Racismo Institucionalizado (1860-1960)

O racismo é a crença de que as outras raças são inferiores mental, física,


moral e culturalmente à sua própria raça. Ele pode se expressar tanto no nível
individual quanto no nível institucional. Este racismo institucional se refere ao
fato de que as políticas e regulamentos das comunidades, escolas, igrejas,
empresas e outras organizações restringem as oportunidades dos membros dos
grupos discriminados na sociedade em questão. Mesmo depois de sua
emancipação em 1865, após a Guerra Civil nos EUA, os negros foram
submetidos a cem anos de opressão institucionalizada através de leis que
defenderam a ideia de instituições “separadas, mas iguais” (um conceito
aprovado pelo Tribunal Supremo em 1896, mas derrubado pelo mesmo em
1954).

3. Fatores Que Contribuíram Para o Surgimento da Teologia Negra

Conforme Prof. Cone, houve três fatores principais que são responsáveis
pelo surgimento da teologia negra: (a) o movimento dos direitos civis, (b) a
publicação do livro de Joseph Washington, Black Religion [A Religião Negra]
em 1964 e (c) o nascimento do movimento “poder negro.” Agora, vamos
considerar estes fatores.
Teologia Contemporânea 133

3.1. O Movimento dos Direitos Civis (nas décadas dos 50 e 60)

Este foi um movimento popular dos próprios negros que visou conseguir para si,
exclusivamente por meio de métodos não violentos, os plenos direitos do
cidadão. A organização principal do movimento foi a “Associação Nacional para
o Progresso das Pessoas de Cor,” que desafiou com êxito muitas das leis que
permitiram a discriminação racial. O líder principal foi o pastor negro batista
Martin Luther King, Jr., que se tornou o profeta carismático do movimento e a
consciência ética da nação no que tange às questões sociais, até que ele foi
assassinado em 1968.

3.2. O Livro “Religião Negra” de Joseph Washington (1964)

O estudioso negro Washington argumentou, no seu livro, que há uma


religião negra nos EUA que se distingue do Protestantismo branco e de todas as
outras expressões do Cristianismo. Mas visto que, na opinião dele, esta religião
busca somente a liberdade e igualdade neste mundo, Washington concluiu que
as congregações negras não são igrejas genuínas, mas meras sociedades religiosas
sem teologias cristãs.

Ora, nenhum teólogo negro podia ignorar esta investida contra a Igreja
Negra e a teologia negra foi criada, em parte, para responder a este livro. Os
líderes negros queriam corrigir dois mal-entendidos: (a) que a religião negra é
não cristã e, por isso, não tem nenhuma teologia cristã, e (b) que o Evangelho
Cristão não tem nada a ver com a luta pela justiça na sociedade.

3.3. O Movimento “Poder Negro”

Na década dos 60, muitos dos líderes negros mais jovens ficaram
desiludidos com o “movimento dos direitos civis,” chefiado por Dr. King,
concluindo que era impossível mudar a atitude do homem branco. Usando a
divisa “poder negro,” ativistas como Stokely Carmichael abandonaram tanto o
ideal da integração com os brancos e suas instituições quanto o compromisso de
Dr. King com a nãoviolência.

Para a grande surpresa dos cristãos brancos, em 1966 o Comitê Nacional


do Clero Negro publicou no New York Times uma declaração, intitulada “O
Teologia Contemporânea 134

Poder Negro,” em que os pastores negros apoiaram o conceito do “poder negro”


como ele foi definido pelos ativistas políticos. O Professor Cone afirma que este
foi “o princípio do desenvolvimento consciente de uma teologia negra em que os
ministros negros conscientemente distinguiram seu próprio entendimento do
Evangelho de Jesus do Cristianismo branco e o identificaram com as lutas dos
pobres negros para a justiça. O clero negro denunciou o racismo branco como o
anticristo e foi inexorável no seu ataque contra sua presença demoníaca nas
denominações eclesiásticas brancas. Foi neste contexto que surgiu a expressão
‘teologia negra’.”13

4. A Defesa Acadêmica da Teologia Negra

A fim de desafiar o monopólio completo da definição da teologia cristã


por parte dos europeus e americanos brancos, alguns jovens estudiosos negros
levaram a luta para os seminários teológicos e universidades nos EUA,
publicando livros que explicaram sua posição sobre a tarefa da teologia cristã no
contexto atual. Os primeiros livros foram publicados por James Cone, professor
da teologia sistemática no Union Theological Seminary em Nova Iorque:
Teologia Negra e Poder Negro (1969) e Uma Teologia Negra da Libertação
(1970). Nestes dois volumes, Cone argumentou que os elementos libertadores do
movimento “poder negro” são a encarnação histórica autêntica do Cristianismo
em nossa época, pois ele é, na sua essência, uma religião de libertação.
Teologia Contemporânea 135

Capítulo 16

Teologia Africana
A teologia africana reflete sobre Jesus a partir das condições socioculturais
do continente. Diferentes imagens de um mesmo Jesus, encantadoramente
africano.

1. Jesus, o Irmão Mais Velho

Chamar Jesus de Irmão mais Velho é algo muito comum na África. Os


angolanos, por exemplo, cantam: "Jesus Cristo é nosso Irmão mais Velho. Ele é
africano".

O canto fala de Jesus como alguém que assume as funções do irmão mais
velho. Este defende os irmãos menores que se metem em apuros, atua como
mediador entre eles e os pais, por exemplo, em assuntos de casamento, e,
inclusive, se sente responsável por suas ações.

Esse modo de entender a pessoa de Jesus conduz os teólogos africanos à


figura do sumo sacerdote, apresentado pela Carta aos Hebreus como um irmão
cuja solidariedade com a família leva à salvação:

Pois tanto o Santificador quanto os santificados descendem de um


só. Por isso, Jesus não se envergonha de os chamar irmãos.
Convinha, por isso, que em tudo se tornasse semelhante a seus
irmãos, para ser, em relação a Deus, um sumo sacerdote
misericordioso e fiel... Pois, tendo ele mesmo sofrido pela tentação, é
capaz de socorrer os que são tentados (Hebreus 2.11,17-18).

Essa imagem de Jesus sublinha outro ponto importante, que o identifica


com suas irmãs e irmãos africanos: a participação nos chamados ritos de
Teologia Contemporânea 136

passagem, através dos quais o indivíduo se torna uma pessoa com plenos direitos
dentro de sua tribo.

São ritos muito diferentes de uma tribo para outra, ligados aos diversos
momentos da vida: nascimento, puberdade, matrimônio e morte.

Na realidade africana, esses ritos pressupõem a plena humanidade de


Jesus. Os evangelhos mostram que ele, para ser admitido como membro pleno de
sua comunidade, teve que passar por ritos assim.

Nesse sentido, as genealogias de Mateus e Lucas explicam sua filiação


tribal. Os pais dele levam ao templo as oferendas prescritas. A mãe tem que
passar por um período de exclusão, para restaurar desse modo a pureza após ter
dado à luz, como ensinava a tradição.

Através do batismo, mais tarde, Jesus se solidariza com seu povo. Segue
um período de reclusão e exclusão no deserto, através do qual ele passa a fazer
parte da vida pública como adulto, curando e ensinando a seus irmãos e irmãs.

Ao final de sua vida, Jesus participa do último rito de passagem: a morte


na cruz. Esta, para os africanos, é sinal de perfeição, e não de vergonha.

2. Jesus, o Antepassado

Se, por meio dos ritos de passagem, Jesus se torna membro de pleno
direito da comunidade humana, é por meio da ressurreição que ele passa a fazer
parte da comunidade dos antepassados.

A centralidade da ressurreição para a fé cristã indica a possibilidade de


que Jesus não seja apenas o primogênito entre os vivos, como Irmão mais Velho,
mas também o primogênito entre os vivos que morreram, como Antepassado.

A imagem de Jesus como Antepassado encontra ressonância no evangelho


de João, de três modos específicos:

(a) Em primeiro lugar, os antepassados são mediadores da força de vida para a


comunidade. Do mesmo modo, Jesus é como a videira que dá vida aos
Teologia Contemporânea 137

ramos (Jo 15.4-7). Ele é a água da vida (Jo 4.14), o pão da vida (6.51) e a
vida em abundância (10.10).

(b) Em segundo lugar, os antepassados são mediadores entre os viventes, com


suas orações e oferendas, e Deus. É desse modo que muitos africanos
entendem essas palavras, tão familiares: "Eu sou o caminho, a verdade e a
vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim" (Jo 14.6).

(c) Em terceiro lugar, os antepassados velam pela comunidade. Como Jesus, que
não abandona os discípulos desolados (Jo 14.18) e lhes promete o Espírito.

3. Jesus, o Grande Chefe

Segundo a religião tradicional africana, a salvação acontece nesta vida, no


equilíbrio social e na harmonia com vivos e mortos. É equilíbrio interior que
produz bem-estar físico. É algo que acontece aqui e agora, quando se é
abençoado com a amizade, com uma descendência numerosa e uma vida longa.

Assim, se Jesus quer se tornar salvador para os africanos, tem que oferecer
algo mais que uma vida eterna. Deve controlar as forças de que os africanos
lutam por se libertar, aqui e agora, como a infecundidade e os maus espíritos.
Para as comunidades africanas, uma das figuras que assume essa responsabilidade
salvadora é o chefe da tribo.

O chefe é o guardião da comunidade, a pessoa que encarna as aspirações


religiosas e políticas da tribo. Ele tem que ter valentia e heroísmo, sendo capaz de
triunfar sobre os inimigos dos mundos terreno e espiritual. A força do chefe vem
de sua posição de mediador entre esses dois domínios. Sua autoridade provém de
seus ancestrais.

O chefe é mediador entre todos os que constituem a comunidade: a


tribo, os antepassados e, inclusive, os que ainda não nasceram. A comunidade
adquire identidade e coesão a partir dele.

Essa solidariedade entre tribo e chefe se assemelha à que existe entre a


Igreja e Cristo. Como a tribo se identifica com o chefe, a Igreja se identifica com
Cristo (1Co 12.27).
Teologia Contemporânea 138

Cristo é a cabeça, "cujo corpo, em sua inteireza, bem ajustado e unido


por meio de toda junta e ligadura, com a operação harmoniosa de cada uma de
suas partes, realiza o seu crescimento para a sua própria edificação no amor" (Ef
4.15-16).

Em seu último ato de reconciliação, Jesus coloca em primeiro lugar a


comunidade. Na cruz, ele reconcilia o mundo com Deus (2Co 5.18) e cria uma
nova humanidade, livre de hostilidades (Ef 2.11-16). Ele é Senhor, ou Chefe,
precisamente porque se humilha na vida e na morte (Fp 2.5-7).

Por isso, o universo inteiro, os seres celestes, os terrestres e os que vivem


sob a terra, confessará que Jesus Cristo é o "Chefe" (Fp 2.10-11).

4. Jesus, Aquele que Cura

Outra figura-chave da vida tribal africana é a pessoa encarregada de


restabelecer a plenitude e a salvação. É o "nganga", o curandeiro-médico
tradicional. Um teólogo congolês explica que o curandeiro é a pessoa mais
poderosa e complexa da sociedade. De fato, a palavra "nganga" pode ser
traduzida por sacerdote, químico, mago, profeta e vidente.

Uma vez diagnosticada a doença, o nganga receita remédios que vão


desde sacrifícios até danças pelo restabelecimento das relações sociais.

Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas estão cheios de histórias que


mostram Jesus curando. São três as semelhanças entre Jesus como Aquele que
cura e o nganga africano:

(a) Em primeiro lugar, Jesus reconhece a ligação entre corpo e espírito. Junto
com a cura física, ele perdoa a culpa: "Os teus pecados estão perdoados" (Mc
2.5). E elogia a fé dos doentes: "A tua fé te curou" (Mc 10.52).

(b) Em segundo lugar, Jesus coloca a doença no contexto da reintegração social.


Os portadores de lepra – hoje conhecida como hanseníase, têm que avisar os
sacerdotes (Mc 1.44; Lc 17.14). O possuído pelo demônio, de Gerasa, tem
que voltar para casa e para junto de seus amigos (Mc 5.19). A sogra de Pedro
Teologia Contemporânea 139

tem que voltar a cuidar da casa depois de curada (Mc 1.31). Até mesmo as
palavras "vão em paz" contêm o sentido da totalidade social e do
restabelecimento da saúde (Mc 5.34).

(c) Finalmente, os métodos de cura de Jesus se aproximam aos dos nganga


africanos. Ele aplica saliva ou mistura de saliva e barro sobre o corpo do
enfermo (Mc 8.23), cospe nos dedos e toca a língua do surdo-mudo (Mc
7.33), faz sinais e geme (Mc 7.34).

5. Jesus, o Libertador

A teologia negra sul-africana se voltou para o Jesus histórico dos


evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), como outras teologias da
libertação, descobrindo nele o libertador dos oprimidos.

Junto com essa imagem de Jesus Libertador, porém, incorpora


influências do Movimento de Consciência Negra, que convida negros e negras a
acolher a beleza de sua raça.

É fundamental, para isso, fazer valer a própria história e tradição. Foi-se o


tempo da história contada por conquistadores holandeses e ingleses sobre "negros
pagãos". Agora é a vez da história dos mártires negros que lutaram pela justiça.
Não é uma história de exclusão ou submissão, mas de inclusão e libertação.

Essa teologia defende que Jesus passou a vida restituindo aos oprimidos e
oprimidas a história e as tradições que lhes estavam sendo negadas.

Curados, os leprosos podem agora apresentar aos sacerdotes as oferendas


prescritas. Os aleijados podem guardar o sábado. Os cegos, os coxos e as crianças
podem acompanhar Jesus ao templo. As prostitutas podem reclamar sua entrada
no Reino de Deus. Os cobradores de impostos podem ser chamados "filhos de
Abraão".

A todos eles e elas, doentes e pecadores, todos os excluídos, Jesus restitui


sua história e suas tradições.
Teologia Contemporânea 140
Teologia Contemporânea 141

Capítulo 17

Pentecostalismo
1. Historicidade do Pentecostalismo

Segundo o Dr. Gary B. McGee, teólogo pentecostal das Assembléias de


Deus, pelo menos dois reavivamentos do século XIX podem ser considerados
precursores do moderno movimento pentecostal. O primeiro teria ocorrido na
Inglaterra, ao redor de 1830, tendo como caudilho o ministério de Edward
Irving, e o segundo teria ocorrido no sul da Índia, sob a liderança de J. C.
Aroolappen.

O movimento também tem suas raízes na Doutrina da Perfeição Cristã,


de John Wesley. Em seu livro A Short Account of Christian Perfection, em 1760,
Wesley conclama os crentes à buscarem uma segunda obra de graça, posterior à
conversão, que livraria os crentes de sua natureza moral imperfeita. Essa doutrina
chegou na América do Norte, e inspirou o Movimento de Santidade, cuja ênfase
estava voltada à vida santificada. Porém, quando o pregador Wesleyano radical
da Santidade, Benjamin Hardin Irwin começou, em 1895, a ensinar sobre três
obras de graça, a dissidência teológica começou a surgir. Segundo Irwin, a
segunda obra de graça iniciava a santificação e a terceira trazia o batismo do amor
ardente, que é o batismo no Espírito Santo. A maior parte do Movimento de
Santidade condenou essa terceira obra da graça como sendo heresia. Mesmo
assim, porém, a noção que Irwin possuía de uma terceira obra de graça, o
revestimento de poder para o serviço cristão, firmou-se como alicerce do
Movimento Pentecostal.

Outros três livros que proporcionaram as bases sobre a qual foi


construído o movimento pentecostal foram Guia para a Santidade e A Promessa
do Pai, da irmã Phoebe Palmer, uma das principais líderes metodistas, e Tongue
of Fire (Língua de Fogo), de William Arthur. Aos que procuravam receber a
segunda obra de graça, era ensinado que cada cristão precisa esperar pela
Teologia Contemporânea 142

promessa do batismo no Espírito Santo, fazendo uma interpretação pessoal de Lc


24.49.

A crença na segunda obra de graça não ficou confinada ao metodismo. O


advogado e pregador cristão Charles G. Finney, por exemplo, acreditava que o
batismo no Espírito Santo provesse revestimento de poder para se obter a
perfeição cristã. Outros pregadores de renome, tais como Dwight L. Moody e
R.A. Torrey, também acreditavam que uma segunda obra de graça revestiria o
cristão com o poder do Espírito.

Dois eventos marcaram definitivamente a chegada do moderno


movimento pentecostal. O primeiro deles é datado de 1º de Janeiro de 1901,
quando Agnes Ozman, aluna da Escola Bíblica Betel de Charles Fox Parham, em
Topeka, no estado americano do Kansas, teve uma experiência mística e
começou a falar em outras línguas. Charles Parham era um pregador do
Movimento de Santidade, que influenciado por Irwin e convencido pelos seus
próprios estudos dos Atos dos Apóstolos, testemunhou um grande reavivamento
na Escola Bíblica Betel. Depois de Agnes Ozman, muitos outros alunos foram
batizados com o novo batismo, e falaram em outras línguas (xenolalia). Aqueles
que presenciavam esses acontecimentos, faziam rapidamente um paralelo com os
eventos do livro de Atos dos Apóstolos, e muitos diziam que o movimento era a
restauração da fé apostólica. De fato, quando Bennett Freeman Lawrence
escreveu a primeira história do movimento pentecostal, em 1916, deu ao
movimento o título de The Apostolic Faith Restored (Fé Apostólica Restaurada).

A princípio, os cristãos pentecostais achavam que as línguas faladas por


eles eram, de fato, xenolalia, isto é, línguas inteligíveis– idiomas pátrios. Depois
de 1906, porém, cada vez mais pentecostais estavam de acordo em que as línguas
por eles faladas eram glossolalia, isto é, línguas desconhecidas e não identificáveis
pela inteligência humana. Parham, porém, continuava crendo que as línguas
faladas pelos pentecostais eram xenolalia e que essas línguas eram expressões
idiomáticas de outras nações. Sendo assim, o fenômeno das línguas auxiliaria
como uma ferramenta nas mãos dos missionários transculturais, que seriam
capacitados sobrenaturalmente para falarem outros idiomas. Essa tese perdeu
força com o decorrer dos anos e hoje é crença quase comum em círculos
pentecostais que as línguas faladas por eles não são idiomas estrangeiros.
Teologia Contemporânea 143

A grande contribuição teológica de Parham ao movimento acha-se na sua


insistência de que o falar noutras línguas é a evidência bíblica vital da terceira
obra de graça: o batismo no Espírito Santo. Suas asserções estão baseadas nos
relatos de Atos dos Apóstolos, capítulos 2, 10 e 19, e desde então o falar em
outras línguas tem sido destacado pelos pentecostais como sendo a evidência
física inicial do batismo no Espírito e a prova cabal do mesmo.

Posteriormente, Parham mudou-se para Houston, e um de seus alunos,


um homem negro chamado William Seymour, após ter passado pela mesma
experiência mística, tornou-se líder de uma igreja na rua Azuza, em Los Angeles,
no ano 1906. Foi então que o movimento pentecostal explodiu. A partir da rua
Azuza, a mensagem pentecostal, que incluía o falar noutras línguas como sinal do
batismo no Espírito Santo, divulgou-se pelos Estados Unidos e pelo resto do
mundo.

Na verdade, experiências semelhantes, incluindo o falar noutras línguas,


já haviam ocorrido em fins do século XIX, tanto nos Estados Unidos quanto no
exterior, em lugares bem distantes entre si, como na já mencionada Índia e na
Finlândia, porém até então esses eram apenas casos isolados. Foi à partir do
início do século vinte que o pentecostalismo ganhou projeção mundial.

O Dr. Gary B. McGee também menciona as conferências de Keswick, na


Grã- Bretanha como tendo uma grande influência sobre o Movimento de
Santidade na América do Norte, e consequentemente sobre o pentecostalismo.
Os conferencistas de Keswick acreditavam que o batismo no Espírito Santo
produzia uma vida contínua de vitória, uma vida mais profunda, caracterizada
pela plenitude do Espírito. Essa sentença está alicerçada no conceito wesleyano,
que afirmava que o batismo no Espírito produzia a perfeição cristã.

2. Os principais pressupostos da doutrina pentecostal

No início do movimento houve muitos debates acerca da doutrina, e


logo nos primeiros dezesseis anos de existência, houve quatro grandes
controvérsias. A primeira, sobre o valor teológico da literatura narrativa, em
especial o livro de Atos e os últimos versículos de Marcos, para fundamentar o
falar noutras línguas como a evidência inicial do batismo no Espírito Santo. A
segunda controvérsia já foi mencionada, e diz respeito à natureza das línguas
Teologia Contemporânea 144

faladas. Um grupo acreditava tratar-se de expressões idiomáticas inteligíveis


(línguas pátrias) enquanto outro acreditava que as línguas faladas eram expressões
de mistério, portanto, ininteligíveis por meios naturais. Outro debate girava em
torno da segunda obra da graça: a santificação. Seria ela progressiva ou
instantânea? Os pentecostais de tendências wesleyanas asseguravam que a
santificação era uma obra instantânea, enquanto os pentecostais de tendências
reformada defendiam a santificação progressiva. A quarta controvérsia é de ênfase
cristológica. Em um sermão pregado em Arroyo Seco, R.E. McAlister observou
que os apóstolos batizavam apenas em nome de Jesus (At 2.38) ao invés da
fórmula trinitariana (Mt 28.19). Os que deram crédito à pregação de McAlister
foram rebatizados em nome de Jesus. Houve então uma cisma no movimento e
os que enfatizaram o batismo apenas no nome de Jesus acabaram por propor
uma doutrina modalística da trindade, que é uma variação do unitarismo. As
Assembleias de Deus, no entanto, não acompanharam as tendências modalísticas.

Vemos, portanto, o quanto resulta difícil fazer generalizações doutrinárias


acerca do movimento. Apesar disso, destacamos à seguir aquilo que
consideramos ser as crenças mais universais dos pentecostais. A lista não é
exaustiva, podendo haver outros itens não relacionados nessa pesquisa. Todos os
cristãos pentecostais crêem:

(a) No Batismo no Espírito Santo como experiência subsequente e distinta


da salvação;

(b) Na atualidade dos dons espirituais, tais como cura, profecias, línguas e
interpretação de línguas e operação de milagres;

(c) Que o batismo pentecostal reveste o crente com poder do alto


capacitando-o para exercer seu ministério ao mundo.

Além disso, a maioria dos cristãos pentecostais também crê:

(a) Na vinda de Jesus prémilenista e prétribulacionista;

(b) No falar em línguas como evidência física inicial do batismo no Espírito;

(c) São dispensacionalistas.


Teologia Contemporânea 145

3. Razões que contribuíram para crescimento do Movimento Pentecostal.

No final do século dezenove e início do século vinte, a medicina avançava


à duras penas e oferecia pouca ajuda aos que se achavam gravemente enfermos.
Consequentemente, a fé no miraculoso para a cura física começou a ressurgir nos
círculos evangélicos. Na Alemanha do século dezenove, os ministérios que
ressaltavam a importância da oração pelos enfermos atraíam a atenção dos
crentes estadunidenses, ao mesmo tempo em que a teologia pietista, com sua
crença na purificação instantânea do pecado ou no revestimento do poder do
Espírito produziu um ambiente receptivo aos ensinos da cura mediante a fé.

No Brasil, na época em que Daniel Berg e Gunnar Vingren aportaram


em nosso país, a medicina era ainda mais precária, havia em nossas terras um
grande número de leprosos e muita gente morria apenas por falta de higiene ou
por efeito de uma disenteria. A promessa de uma cura instantânea veio de
encontro com as necessidades básicas do nosso povo, de modo o movimento teve
ampla aceitação. A crença mística do povo brasileiro, sobretudo no norte do país,
também foi um fator decisivo para a recepção das doutrinas pregadas pelos
missionários suecos.

4. Objeções à doutrina pentecostal

Muitos cessacionistas têm se empenhado para desacreditar o


pentecostalismo e a atualidade dos dons espirituais. Porém, nenhuma exegese por
eles apresentada justifica o antissobrenaturalismo presente em sua teologia. Os
cessacionistas argumentam que se a inspiração profética é atual, então teremos
duas fontes inspiradas: a Bíblia e a profecia. Os restauracionistas pentecostais,
por outro lado, dizem que as profecias só são válidas se estiverem em comum
acordo com a Bíblia sagrada e terão valor apenas após o seu cumprimento. Outra
questão diz respeito aos milagres. Alguns cessacionistas dizem que a ocorrência
de sinais fantásticos seria mais que persuasão e violaria incondicionalmente o
livre-arbítrio humano. A isso os pentecostais dizem que Jesus e os discípulos
também faziam sinais, e nem por isso aqueles que se convertiam tinham seu
livre-arbítrio violado. Muitos presenciaram a multiplicação dos pães, mas nem
por isso se tornaram crentes.
Teologia Contemporânea 146

Muitas foram as contribuições do pentecostalismo. Em meio ao cenário


árido da teologia do início do século vinte, surgiu um movimento com ênfase na
santificação, na leitura e pregação devocional da Bíblia e com uma visão de
ministério às nações. As Assembleias de Deus, filha desse reavivamento espiritual,
tornou-se uma das maiores denominações do mundo.

É interessante perceber que nesses cem anos de controvérsias teológicas,


enquanto os teólogos alemães e norte-americanos patenteavam jargões como,
desmitologização, faziam estudos sobre o Jesus histórico desassociando-o do Jesus
da fé, criavam teologias com ênfase em teorias naturalistas e evolucionistas,
surgiu também um movimento de restauração da fé apostólica. O
pentecostalismo foi uma das principais reações contrárias ao secularismo
teológico que surgiu no século vinte. Se por um lado os demais movimentos
estavam associados ao desejo de amoldar a fé cristã aos padrões filosóficos e
científicos do homem moderno, o pentecostalismo por sua vez surgiu do desejo
de reencontrar a fé cristã primitiva e de desassociar-se do sistema secular.

O pentecostalismo surge no cenário contemporâneo na contramão da


teologia moderna liberal e neo-ortodoxa. Enquanto Barth, Bultmann, Tillich e
Brunner agitavam o cenário teológico mundial com inovações e com suas
tendências filosóficas, obviamente influenciados pelo existencialismo de
Kierkgaard, pelo ceticismo de David Hume e pelos apelos filosóficos de
Immanuel Kant, surgiu no cenário mundial um movimento que buscava
justamente o oposto. Se por um lado Paul Tillich buscava amoldar a Bíblia às
necessidades do homem, William Seymour e os demais pregadores do
movimento pietista pentecostal instavam para que os homens se amoldassem à
Palavra de Deus. Enquanto Barth apresentava Deus como Totalmente Outro, os
pregadores pentecostais insistiam na possibilidade de um relacionamento pessoal
com Deus e definiam-no como aquele que habita os céus e que paradoxalmente,
vive em nós. Muitos excessos têm sido cometidos desde então, mas isso não
desqualifica o movimento. Na verdade, esses excessos ocorrem bem na fronteira
de dois movimentos contemporâneos com muita força em nosso país: o
pentecostalismo e o neopentecostalismo. Apesar da semelhança semântica, quero
ressaltar que a dissimile é maior que qualquer afinidade que estes dois nomes
possam sugerir.
Teologia Contemporânea 147

Capítulo 18

Teologia
Neopentecostalismo
1. Introdução

Na década de 70, chegou ao Brasil o movimento que ficou conhecido como


Neopentecostalismo. Este movimento se originou a partir de denominações
históricas, tais como a Igreja Presbiteriana Renovada, em 1975; as Igrejas
Pentecostais Livres: Sinais e Prodígios, fundada em 1970, e Socorrista, em 1973;
as Igrejas com pouca estrutura eclesiástica, como a Igreja Universal do Reino de
Deus (IURD), fundada em 1977; e os Pentecostais Carismáticos, Renovação
Carismática, originária da Igreja Católica Romana, fundadas em 1967. Como já
foi dito no capítulo anterior, embora seja possível estabelecer uma símile entre o
pentecostalismo e o Neopentecostalismo, as diferenças entre esses dois grupos
protestantes são maiores que qualquer semelhança que possam ter.

2. História do Movimento Neopentecostal

Muitas pessoas no movimento da confissão positiva consideram Kenneth


Hagin como o pai do movimento, de tal forma que muitos pregadores da
prosperidade, inclusive os brasileiros, se consideram discípulos de Hagin. Porém,
quando se investiga o desenvolvimento histórico do movimento, chega-se à
conclusão de que o verdadeiro pai da confissão positiva é Essek William Kenyon.

Kenyon nasceu no condado de Saratoga, Nova York, Estados Unidos, em


1867. Em 1892, mudou-se para Boston, onde frequentou várias escolas, entre
elas a Faculdade Emerson de Oratória, fundada por Charles Emerson. Esse
Charles Emerson, segundo se sabe, foi uma mente muito confusa e sincretista, e
chegou a abraçar inclusive muitos ensinos de seitas heréticas, como por exemplo,
a Ciência Cristã, que à bem da verdade, não é nem ciência nem cristã.
Teologia Contemporânea 148

Kenneth Hagin fundou em Tusla, em 1974, a Escola Bíblica por


Correspondência Rhema e o Centro de Treinamento Bíblico Rhema em Tulsa.
Segundo o professor Paulo Romeiro, a Escola Bíblica de Hagin já formou cerca
de 6.600 alunos.

3. Pressuposições da Doutrina da Prosperidade.

É muito difícil enumerar os pressupostos do Neopentecostalismo, visto


que existem diversas denominações Neopentecostais e todas possuem sistema
doutrinário eclético. Apenas queremos chamar a atenção para algo que se tornou
o principal enfoque do Neopentecostalismo: a teologia da prosperidade.

Segundo essa abordagem teológica, pobreza e enfermidade são


características de uma vida sem fé. A doença tem sua origem na falta de
comunhão com Deus, de modo que um indivíduo realmente convertido nunca
deve ficar doente, baseando a cura divina na expiação e usando para isso o texto
de Isaías 53.4-5. A prosperidade financeira também é um direito do crente,
sendo a pobreza uma maldição. Para justificar o disparate, afirmam que Jesus era
rico, bem como os seus discípulos, mas até onde sabemos, o Filho do Homem
muitas vezes não tinha sequer onde reclinar a cabeça.

Na Igreja Universal do Reino de Deus podemos encontrar muitos


pressupostos do movimento da fé. A ênfase sobre a prosperidade financeira é
bastante acentuada, mas a semelhança com as práticas iconoclastias da idade
média é evidente: Substituindo a idolatria por metodologias visuais e palpáveis, a
denominação faz uso de rosas, copos com água, medalhas com inscrições, cruzes,
lenços, portais da felicidade, réplicas da Arca do Concerto, além de objetos sem
nenhum valor financeiro, supostamente importados de Israel, tais como água do
Jordão e azeite para unção.

Valnice Milhomens também tem aderido à muitas práticas


Neopentecostais. Entre seus ensinos mais controversos está o seu comentário de
Is 53.9, onde afirma que Jesus morreu duas vezes, física e espiritualmente; bem
como a afirmação de que o número dos salvos será maior do que o número dos
perdidos; a guarda do sábado. Ela também defende a maldição de família e a
necessidade de ruptura das mesmas.
Teologia Contemporânea 149

Os pregadores Neopentecostais também ensinam que a fé e o


recebimento das bênçãos de Deus está relacionada com a confissão que fazemos,
de modo que a fé é reduzida à uma mera confissão positiva. Por causa disso,
muitos membros dessas igrejas vivem frustrados, pois temem pronunciar
maldições que interfiram em seu progresso espiritual. A cura física também deve
ser pronunciada, ou ainda, utilizando um jargão próprio do Neopentecostalismo,
decretada. É comum assistir na TV pregadores da Prosperidade ensinando os
crentes a dar ordens em Deus. O Senhor Soberano foi substituído por um Deus
vassalo, sempre disposto à acatar ordens e tudo sem reclamar.

4. Objeções ao Neopentecostalismo

Basta examinar as Escrituras para notarmos que verdadeiros servos de


Deus passaram privações e dificuldades em suas trajetórias a serviço do Senhor.
O profeta Eliseu, que apesar de ter sido um grande profeta de Deus e de ter tido
um ministério marcado por muitos feitos sobrenaturais, morreu em
consequência de sua enfermidade. Será que ele não tinha fé ou estava em pecado?
Muito pelo contrário, pois a Bíblia diz que um soldado morto, após ser colocado
na sepultura de Eliseu, tocou em seus ossos e ressuscitou (2 Reis 13.14-21).
Outro exemplo é o de Jó. Seu sofrimento não foi causado por confissões
pessimistas, pecados ocultos ou falta de fé, nem tampouco foi o diabo quem
decidiu provar Jó. A iniciativa partiu de Deus.

O Neopentecostalismo, à luz da ortodoxia, é uma teologia mal elaborada,


eclético-pragmática que busca os resultados mais que a pureza doutrinária. Ela
desvirtua o crente, levando-o a buscar a prosperidade terrena, quando a
prioridade dele deveria ser buscar as coisas que são do alto. Cristo, alardeado
pelos teólogos da prosperidade como um homem abastado, nasceu humilde e
pobre, em um estábulo emprestado. Entrou no mundo desassistido de bens
materiais e proferiu suas pregações em um barco emprestado. Entrou em
Jerusalém montado em um jumento emprestado, e foi sepultado em um túmulo
emprestado. Só a cruz era dele. Em sua mensagem ele nos falou sobre a
necessidade de negar-se a si mesmo e tomar a cruz. Foi ele quem disse: “No
mundo, tereis aflições.” Temos depois o apóstolo Paulo escreveria aos coríntios:
“se esperamos em Cristo só nessa vida, somos os mais miseráveis de todos os
homens.” A mensagem triunfalista dos pregadores da prosperidade podem até
Teologia Contemporânea 150

caber em um discurso político onde a avareza prima sobre o caráter, mas não
cabe nos lábios de Cristo ou dos apóstolos, e nem na verdadeira igreja evangélica.

5. Conclusão

Temos buscado nessas páginas, além de apresentar as principais doutrinas do


século vinte, defender com muita submissão os valores do Evangelho e a
imaculada Igreja de Nosso Senhor Jesus, à qual fomos chamados. Muitos
obreiros e ministérios são envolvidos em assuntos aparentemente simples como
os que temos abordado, pensando estar fazendo o melhor para Deus, quando na
verdade estão sendo instrumentos para erosão perniciosa contra a vida espiritual
da Igreja. Estes, sejam pregadores ou leigos, vivem em busca de sinais de Deus,
de novas manifestações, mas lembremo-nos: o sinal sempre foi sinal para
incrédulos! Em toda a história, homens e mulheres no decorrer de sua incansável
busca por um toque religioso, sempre buscaram um sinal e uma materialização
do imaterial. Jesus chamou essa multidão que de um lado para o outro em busca
de uma experiência, de multidão má e incrédula (cf. Mateus 12.38-39).
Teologia Contemporânea 151

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