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Teologia

Contemporânea
e Ética

Dr. William Lacy Lane


Julho / 2014

Professor autor: Dr. William Lacy Lane


Coordenadoria de Ensino a Distância: Gedeon J. Lidório Jr
Projeto Gráfico e Capa:Mauro S. R. Teixeira
Revisão: Éder Wilton Gustavo Felix Calado
Impressão:
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por:

Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR


86055-670 Tel.: (43) 3371.0200
SUMÁRIO

Unid. - 01 Introdução à Teologia Contemporânea e Ética..............................05

Unid. - 02 Fundamentos da Teologia..................................................................13

Unid. - 03 História da Teologia do Período Bíblico e da Patrística...............23

Unid. - 04 História da Teologia Medieval e Reformada...................................33

Unid. - 05 Revisão em Teologia Moderna...........................................................37

Unid. - 06 Teologia Natural e Teologia Relacional............................................47

Unid. - 07 Teologias Narrativa e da Cultura.......................................................53

Unid. - 08 Teologia Pública e Teologia e Religião.............................................59

Unid. - 09 Síntese da Teologia Contemporânea................................................65

Unid. - 10 Ética Cristã: conceitos e questões fundamentais............................75

Unid. - 11 A Ação Humana na Sociedade e a Ética...........................................81

Unid. - 12 Concepções de Ética I..........................................................................87

Unid. - 13 Concepções de Ética II.........................................................................95

Unid. - 14 Ética Cristã: Desafios da Modernidade..........................................103

Unid. - 15 Ética das Virtudes...............................................................................113

Unid. - 16 Visões sobre a Ética............................................................................125

Unid. - 17 Princípios da Ética Cristã.................................................................135

Unid. - 18 Síntese das aulas 10 a 17....................................................................141

03
04 Teologia Contemporânea e Ética
teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 01
Introdução à Teologia Contemporânea e Ética

Introdução

Denominamos “Teologia Contemporânea” a produção


teológica da modernidade. É contemporânea não por ser
dos dias atuais, mas do período atual que compreende
o final do século XVIII até os dias de hoje. Esse período
foi marcado de um lado pela forte influência da razão e
do historicismo como instrumentos de conhecimento da
verdade e, por outro, uma tentativa de se responder por
meio da reflexão teológica a razão humana. A “Ética” trata
de como aplicar os princípios teológicos na sociedade hoje
por meio de valores e condutas que reflitam as convicções
básicas da fé.

Objetivos

1. Descrever em linhas gerais as principais


características da Teologia Contemporânea e da Ética;

2. Compreender em linhas gerais a dimensão histórica


e contextual da teologia;

3. Estabelecer uma base conceitual para o estudo da


Teologia Contemporânea e Ética.

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Introdução à Teologia Contemporânea e Ética

Esta disciplina é composta de dois campos bem distintos: a


Teologia Contemporânea e a Ética. A Teologia Contemporânea
compreende o estudo do pensamento teológico que abrange o final
do século XVIII até os dias de hoje. Esse período coincide com a
chamada Era Moderna ou, simplesmente, Modernidade. Na história
do pensamento, esse período é conhecido também por Iluminismo,
pois representa uma era de expansão do conhecimento humano. É
marcado pela ascensão da razão humana como sujeito autônomo do
conhecimento, o desprezo pelo sobrenatural e, consequentemente, o
enfraquecimento da fé como meio de conhecimento de Deus.
A Ética consiste do estudo teológico e filosófico do certo e
errado. A disciplina procura estabelecer princípios que norteiam a
vida humana na sociedade e delimitam as práticas boas das más. De
certo modo, a Ética pode ser entendida como aquele campo teológico
que traduz ou representa toda nossa convicção a respeito de Deus, do
mundo, do ser humano e da sociedade em esferas de ação para que a
vida humana realmente reflita o caráter de justiça e retidão de Deus.
Ainda que a Ética não seja um campo estritamente teológico,
pois envolve conceitos filosóficos e deve ser compreendida como uma
busca da sociedade em encontrar padrões de conduta para o bem
viver, nossa abordagem será essencialmente teológica.
Nessa aula introdutória, queremos abordar de maneira breve
esses campos de estudo.

1. Teologia Contemporânea
Conforme já mencionamos, a teologia contemporânea abrange
um período recente do estudo teológico. Ela não representa uma
escola de pensamento nem uma abordagem específica. Na verdade,
há diversas “teologias” ou perspectivas teológicas desse período. É um
equívoco associar a teologia contemporânea à teologia liberal. Ainda
que a teologia liberal tenha se expandido nessa época, o período
é marcado também pela reação à teologia liberal. Não obstante, há
características comuns das diversas maneiras de pensar teológico

06 Teologia Contemporânea e Ética


desse período. Nessa seção, trataremos de alguns desses aspectos,
porém, convém, antes disso, esclarecer brevemente o surgimento
dessa teologia.

1.1 Surgimento
De acordo com Alister McGrath, até os anos 1700 da era cristã,
a teologia cristã era essencialmente um fenômeno
europeu ocidental. A partir de então, a teologia “se
torna um fenômeno global”. Isso se deve, em grande
parte, a colonização dos Estados Unidos e o início da
produção teológica naquele continente, à expansão
da igreja para outros continentes, particularmente
Oceania, Ásia e África, posteriormente a América
Latina, e ao estabelecimento de seminários e
Alister McGrath
escolas teológicas. Com o fortalecimento da igreja
Fonte: Wikimedia Commons e de suas escolas teológicas, começam a surgir as
“teologias locais” que foram tentativas de refletir teologicamente o
contexto histórico, geográfico, cultural da igreja (McGRATH, 2010, p.
123-124).
Na América Latina em particular, surgiu no século XX o
movimento da Teologia da Libertação caracterizado pela ênfase na
práxis, isto é, na ação da igreja em favor dos mais necessitados e da
compreensão teológica de uma libertação política.
O pensamento e método teológico da teologia contemporânea
está então associado a esse período histórico e aos seus movimentos
filosóficos, sociais, políticos e eclesiásticos.

1.2 Aspectos
A teologia contemporânea tem sido frequentemente identificada
como uma teologia “modernista”. McGrath explica:
A Idade Moderna possui uma enorme importância para a
teologia dos séculos XIX e XX. Esse período estabeleceu o
contexto em que se assentam muitos dos desdobramentos
e dos debates recentes, assim como deu origem a muitos
dos movimentos que ainda influenciam a igreja e o mundo
acadêmico de hoje (2010, p. 124).

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Embora o termo “modernidade” ou “Idade Moderna” seja difícil
de conceituar e delimitar, a noção geral é que se
refere-se a um cenário bastante definido, típico de grande parte
do pensamento ocidental desde o começo do século dezoito,
que se caracteriza por uma confiança em relação à capacidade
do ser humano de pensar por si mesmo (McGRATH, 2010, p.
214).
No que tange à história do pensamento, esse período é conhecido
também por “Iluminismo”, pois este representa o principal movimento
filosófico da época. A principal característica desse movimento é que
abrange
um conjunto de ideias e atitudes características do período
de 1720 – 1780, como o uso livre e construtivo da razão, em
uma tentativa de destruir velhos mitos que, segundo a ótica
iluminista, mantinham indivíduos e sociedades presos à
opressão do passado. (McGRATH, 2010, p. 125).
O pensamento filosófico e teológico dessa época é marcado não
tanto pelo que pensavam, mas por como pensavam. Isto é, o Iluminismo
representa um movimento do método de se articular o pensamento.
Contudo, McGrath alerta ao fato de não confundir esse
movimento com o “racionalismo” nem de se referir a ele como “Idade
da Razão”, expressões tipicamente usadas para se referir ao Iluminismo
ou à Idade Moderna. Para McGrath, a ideia de “Idade da Razão” pode
dar a equivocada impressão de que o pensamento teológico antes disso
ignorava a razão. Pelo contrário, o período da escolástica protestante,
a Reforma e mesmo a Idade Medieval são também caracterizados
pelo uso da razão. A diferença está “na maneira como a razão era
utilizada e nos limites que lhe eram impostos” (2010, p. 125). Quanto
ao “racionalismo”, este representa os postulados de Descartes, Leibniz,
Espinosa, os quais foram objetos de intensas críticas ao final do século
XVIII. Embora o racionalismo tenha influenciado parte da filosofia
e do pensamento, inclusive teológico, do iluminismo, houve intenso
debate sobre a autonomia da razão.
Mas, há de se observar que a teologia protestante, mais do que
a católica romana e a ortodoxa, foi a que esteve mais aberta ou tenha

08 Teologia Contemporânea e Ética


sofrido mais com o impacto do movimento iluminista. McGrath
destaca quatro fatores que possivelmente expliquem isso (2010, p.
126):
1. A relativa fragilidade das instituições eclesiásticas protestantes.
2. A natureza do próprio protestantismo.
3. A relação entre o protestantismo e as universidades.
4. O diversificado impacto local do Iluminismo.
Esse período e esse ambiente intelectual se configuram no
contexto da reflexão teológica conhecida por teologia contemporânea.
Justamente por isso, a constante discussão dos escritos desse período
é o lugar da razão no pensamento teológico e, especificamente, o lugar
da revelação, da crença no sobrenatural, da pessoa de Jesus Cristo, da
origem do ser humano e da possibilidade do conhecimento de Deus.
Conforme veremos no decorrer do curso, a teologia contemporânea
discute intensamente essas questões.

2. Ética
A ética é o estudo que fornece as bases filosóficas para
fundamentação moral de uma sociedade. Em termos gerais, ela
estabelece padrões de vida e conduta dos seres humanos. Como
veremos, ética vem do grego ethos que significa “costume”, “hábito”.
Sua conotação religiosa pode ter o sentido de “lei”. É neste sentido que
as leis judaicas são chamadas de ethos na tradução grega do Antigo
Testamento, a Septuaginta.
A ética cristã se ocupa em estudar o modo como a humanidade
deve viver tomando como princípio os ensinamentos da Bíblia e da
tradução cristã. Ela estabelece as convicções e ensinamentos básicos
que devem nortear a relação do ser humano com Deus.
A ética tem diversos desdobramentos e, de certo modo, pode-
se dizer que cada campo de atuação da humanidade tem seu próprio
código de ética. Contudo, essas expressões particulares da ética, são,
de alguma forma, identificadas com padrões éticos gerais de uma
sociedade ou cultura.

09
O estudo da ética é essencial para a teologia por pelo menos
duas razões: a primeira é pela necessidade de padrões e valores claros
para reger a sociedade humana. Toda sociedade estabelece padrões
aceitáveis e não aceitáveis de conduta. Nem todos esses padrões estão
formulados em termos de leis e códigos penais. Por exemplo, no Brasil,
apenas recentemente passou-se uma lei da “ficha limpa” que estabelece
que candidatos a cargos políticos não poderão ter sido condenados ou
estar respondendo por processos contra sua administração e outros
crimes. Embora, há muito tempo supõe-se que todo servidor público
deva ser honesto e correto, não havia lei específica para tratar desses
casos. O próprio clamor popular e a pressão de entidades de classes
fizeram com que essas leis fossem aprovadas. Naturalmente, quanto
mais explícita for a consciência das convicções e princípios éticos de
uma sociedade, maior será a possibilidade de manter os padrões.
A segunda razão para o estudo da ética, é a elaboração de
princípios que nortearão questões sensíveis e polêmicas, isto é,
quando há conflitos de valores e convicções. Hoje cresce o estudo da
bioética. Devido ao avanço do conhecimento científico e as novas
possibilidades de manipulação e controle da vida, a ética estabelece
os limites e possibilidades do controle do ser humano sobre a vida.
Questões como aborto, eutanásia, manipulação genética, clonagem
são algumas das questões polêmicas sobre o nível de controle sobre
a vida e morte. Por aí, se percebe que vida é a morte são conceitos
filosóficos, teológicos influenciados grandemente por condições
culturais, sociais, ideológicas e religiosas. Do ponto de vista científico
ou tecnológico, não há o que impeça a clonagem de células humanas.
Contudo, a sociedade ocidental, de maneira geral, ainda respeita a
vida como um absoluto e não está pronta a permitir tamanho controle
humano sobre a reprodução de indivíduos.
A ética, portanto, serve de ponte entre a teologia e a sociedade.
Como se observará, há diversos desdobramentos da ética.

10 Teologia Contemporânea e Ética


Conclusão

Nesta disciplina nos ocuparemos com estes dois tópicos


principais: a teologia contemporânea e a ética. Nas próximas unidades
aprofundaremos as questões. Contudo, é importante ter em mente
esses elementos básicos e conceituais sobre o estudo da teologia
contemporânea e da ética.

Referências Bibliográficas

GRENZ, Stanley J.; DURETZKI, David; NORDLING, Cherith F. Dicionário


de teologia. S. Paulo: Vida, 2000.
GRENZ, Stanley J.; SMITH, Jay T. Dicionário de ética. S. Paulo: Vida, 2000.
McGRATH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma
introdução à teologia cristã. S. Paulo: Shedd Publicações, 2010.

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Anotações
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12 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 02
Fundamentos da Teologia

Introdução

Apesar desta disciplina refletir sobre um período


específico do pensamento teológico e, talvez, justamente
por se tratar de uma época de intenso debate, crítica e
reformulação de conceitos tradicionais da teologia, é
pertinente descrever e analisar os fundamentos da teologia.
Grosso modo, definimos teologia como um falar de Deus,
portanto, Deus, isto é, a revelação de Deus é a fonte primária
da teologia, contudo, a discussão envolve o processo de
entender a revelação. Nesta aula falaremos dessas fontes
e da importância particular sobre o estudo da Teologia
Contemporânea e da Ética.

Objetivos

1. Descrever as fontes da Teologia;

2. Relacionar as fontes com a Teologia Contemporânea;

3. Reconhecer o quanto o conhecimento e reflexão


teológica dependem da correta fundamentação da teologia.

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Fundamentos da Teologia

Como sabemos, a teologia consiste do estudo de Deus. Mais


especificamente é o estudo sobre a revelação de Deus. Pode-se dizer
que a fonte exclusiva da teologia é o próprio Deus, porém, aquilo
que ele revelou a respeito de si mesmo. Neste caso, a teologia estuda
a revelação de Deus. Essa revelação está contida não só nas coisas
criadas, mas também na sua palavra.
A questão metodológica que naturalmente se estabelece é como
compreender a revelação de Deus. Além disso, é preciso compreender
como a revelação se relaciona com a vida humana e qual é a finalidade
da revelação.

1. Fontes da Teologia
Alister McGrath apresenta essa discussão identificando quatro
fontes da teologia: as Escrituras, a Razão, a Tradição e a Experiência.
Vamos descrever em breve o que são essas fontes.
Em um certo sentido, a teologia é o estudo da revelação divina,
por meio da razão humana, levando-se em conta, de um lado, a
tradição da igreja e, de outro, a experiência. Essa percepção é necessária
para o estudo teológico em geral, não só para o estudo da teologia
contemporânea. Pois isso pressupõe que todo falar humano de Deus
se dá a partir de uma realidade e contexto próprio e também se dá
por meio da razão. Portanto, vamos descrever brevemente cada uma
dessas fontes.

1.1 Escrituras:
Naturalmente, a teologia tem como fonte de suas afirmações e
postulados teológicos e doutrinários a própria revelação de Deus. Na
teologia, particularmente na teologia contemporânea, o conceito de
revelação requer esclarecimento. Consideramos que a revelação de
Deus é natural e especial. A revelação natural consiste da manifestação
da pessoa e obra de Deus por meio da natureza, isto é, de sua obra
criada. A revelação especial ocorre particularmente por meio da obra

14 Teologia Contemporânea e Ética


salvífica de Deus em Cristo. Ainda que a teologia trate de ambas formas
ou meios de revelação, ela se desenvolve primariamente a partir da
revelação especial.
Para a teologia contemporânea também é necessário aprofundar
o sentido de Palavra de Deus. Há três sentidos básicos comumente
empregados pelos teólogos. De acordo com Alister McGrath, “o termo
‘Palavra de Deus’ é complexo e carregado de sutilezas” (2010, p. 207).
A expressão então pode significar:
1. Jesus Cristo como o logos, Palavra de Deus.
2. O evangelho de Cristo, isto é, sua mensagem.
3. A Bíblia, Escritura Sagrada.
Em geral, empregamos o termo no sentido de Escritura Sagrada
ou, simplesmente, Bíblia. No entanto, esse conceito foi grandemente
desafiado na teologia contemporânea. Para Barth, por exemplo, a
Palavra é Jesus Cristo e a Bíblia dá o testemunho a respeito da Palavra.
Entretanto, objetivamente, a teologia toma como fonte a Escritura
Sagrada, embora realmente busque nela o falar a respeito do ser e do
agir de Deus.
Dizer que a Escritura Sagrada é fonte da teologia significa que é a
partir das afirmações das Escrituras e de suas histórias que adquirimos
o conhecimento do ser e da obra de Deus. Por isso, grande parte da
tarefa da teologia envolve extrair conceitos e sentidos das afirmações
e relatos da Bíblia. A teologia sistemática se concentra em encontrar
doutrinas universais a respeito de Deus, da humanidade, da criação e
da obra de Cristo. A teologia bíblica procura identificar e discernir o
modo como os autores bíblicos entenderam Deus e sua obra em seu
contexto particular. Essa disciplina tem forte preocupação histórica
e literária. A teologia contemporânea se preocupa também com os
conceitos e a história, mas procurar formular a partir das Escrituras uma
compreensão contemporânea a respeito de Deus. Em outras palavras,
procura traduzir ao leitor moderno e em linguagem contemporânea as
verdades a respeito de Deus, de Cristo, do ser humano e da salvação.
Tomar as Escrituras como fonte da teologia implica,
necessariamente, em abordar o problema da interpretação, ou seja, a

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questão hermenêutica. Não basta simplesmente afirmar “está na Bíblia”,
“é bíblico”, mas é preciso entender como a Bíblia faz essa ou aquela
afirmação e qual a validade dela. A hermenêutica se ocupa da tarefa de
elaborar critérios para a análise do texto bíblico e, consequentemente,
da extração da mensagem bíblica.
Em síntese, a teologia encontra nas Escrituras a fonte das
afirmações a respeito de Deus e sua obra. Mesmo ao falar de teologia
contemporânea, devemos reconhecer que as Escrituras são a fonte da
teologia.

1.2 Razão
Os seres humanos são seres racionais, por isso a razão sempre
teve um papel importante na maneira do ser humano articular sua
compreensão a respeito de Deus. O ser humano não só vê, percebe e
sente Deus, como também é capaz de articular sua percepção de uma
maneira compreensiva e racional. Como afirma McGrath, “a segunda
grande fonte da teologia cristã
é a razão humana. Embora a Iluminismo: “Termo utilizado
importância da razão para a sobretudo em referência às
teologia cristã tenha sido sempre tendências filosóficas entre os
reconhecida, assumiu uma intelectuais ocidentais dos séculos
importância especial à época XVII e XVIII. [...] Os pensadores
do Iluminismo” (2010, p. 220). do Iluminismo rejeitavam as
Talvez justamente por causa autoridades externas como fonte
da influência do Iluminismo, de conhecimento; em vez disso,
consequentemente da visão elevaram a razão humana como
racionalista de compreender o melhor meio de chegar a um
a verdade, a teologia tenha entendimento do mundo” (Grenz,
procurado se distanciar do Guretzki, Nordling, 2005, p. 71)
estudo essencialmente racional
de Deus e das Escrituras. Alguns, inclusive, partem para o extremo do
anti-intelectualismo e a negação da razão. Contudo, a teologia como
disciplina racional não tem sua origem no período iluminista. Pelo
contrário, como observa McGrath, ao longo dos séculos da era cristã
houve diversas compreensões da relação entre teologia (ou fé) e razão:

16 Teologia Contemporânea e Ética


1. É uma disciplina racional conquanto “trabalha a partir do
pressuposto de que a fé cristã é fundamentalmente racional, podendo
portanto, ser sustentada e investigada pela razão” (p. 220). Isso não
significa que a fé cristã esteja limitada à razão humana ou ao que
pudesse ser comprovado pela razão. Assim,
A fé vai além da razão, tendo acesso a verdades e a revelações
que a razão não pode esperar penetrar ou descobrir de forma
autônoma. A razão tem o papel de construir sobre aquilo que
é conhecido pela revelação, investigando quais possam ser
suas implicações. Nesse sentido, a teologia é scientia – uma
disciplina racional, que utiliza métodos racionais para construir
a partir daquilo que é conhecido por meio da revelação, a fim
de ampliar esse conhecimento. (McGrath 2010, p. 220)
2. É a reapresentação das percepções da razão. A partir do século
XVII começou-se a dar prioridade à razão como meio de explicação da
fé cristã. Significava que qualquer elemento da fé ou do cristianismo que
não pudesse ser explicado por meio da razão deveria ser desprezado
como elemento “irracional”.
3. Consequentemente, a ideia de “revelação” foi sendo deixada
de lado e a teologia passa a trabalhar com categorias essencialmente
racionais. Falar do agir de Deus, da revelação de Deus e do próprio ser
de Deus implicavam em trabalhar com fatos, fenômenos e discursos
que pudessem ser comprovados racionalmente.
4. É redundante, pois a razão reina de forma suprema. A razão
passou a ser o grande árbitro da fé. Essa tendência teve diversos
desdobramentos, dentre eles o deísmo e o racionalismo iluminista
propriamente.
O reflexo desta tendência de compreender a razão para o estudo
teológico despertou todo um debate sobre milagres de Jesus, a busca
do “Jesus histórico” e o desprezo por toda ideia de revelação ou ação
sobrenatural.
A teologia contemporânea se desenvolve em meio a toda essa
discussão e reflete não só perspectivas racionalistas da fé como também
a reação ao racionalismo por teólogos que vieram a ser conhecidos
como neo-ortodoxos.

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1.3 Tradição
A terceira fonte da teologia é a tradição. Isso significa que a
teologia se fundamenta não somente na revelação e na razão, mas
há certo “consenso” teológico que estabelece as fronteiras entre o
verdadeiro ensino e o falso. No decorrer dos séculos, a igreja teve
inúmeras vezes de julgar a validade de um argumento teológico e ela
o fez não só evocando a revelação e a razão, mas também a aceitação

Deismo: “Crença segundo a qual Deus está distante, uma vez que
criou o universo, mas depois o deixou seguir seu curso sozinho, de
acordo com certas ‘leis naturais’ criadas igualmente por ele.” (Grenz,
Guretzki, Nordling, 2005, p. 36).

Racionalismo iluminista: “se baseia na crença de que a razão humana


consiga, de forma autônoma, fornecer as respostas a tudo aquilo que a
humanidade precisa saber” (McGRATH, 2010, p. 223).

ou recusa geral de uma doutrina. Desse modo, por exemplo, já nos


primeiros séculos da era cristã, a tradição apostólica foi desafiada
pela controvérsia gnóstica. Nessa controvérsia, Irineu (130 – 200
d.C.), um teólogo, bispo e apologista grego, combateu a visão
gnóstica argumentando que ela diferia em muito do ensino apostólico
preservado pela igreja.
No entanto, a tradição levada ao extremo passou também
a dominar a forma de estabelecer a doutrina verdadeira. Por isso,
houve uma distinção entre “tradição” e “tradicionalismo”. A tradição é
considerada dinâmica, viva e em constante adaptação. O tradicionalismo
é estático e independente, busca sua própria manutenção.
A tradição pode ser vista como uma forma tradicional de se
interpretar as Escrituras. Embora nos séculos XIV e XV a igreja também
entendeu “tradição” como uma fonte autônoma e independente da
revelação com autoridade normativa igual à revelação, a visão que
prevaleceu em grande parte foi a de que a tradição representa uma

18 Teologia Contemporânea e Ética


espécie de consenso sobre a interpretação de certos dogmas da igreja
(McGrath, 2010, p. 229).
A tradição, portanto, serve de referencial. É difícil, porém,
determinar o que na tradição é normativo e o que é aberto a
interpretação. Talvez, justamente por isso, houve uma tendência
de rejeição total da tradição por movimentos pietistas que viam na
tradição um empecilho para a compreensão de verdades esquecidas
pela igreja.

1.4 Experiência
A última fonte da teologia é a experiência. Pode parecer estranho
falar de experiência como fonte da teologia, principalmente quando se
considera o esforço da teologia racional em articular conceitos a partir
de um raciocínio objetivo. A experiência, por outro lado, tem caráter
subjetivo. Entretanto, a fé cristã não se resume a conceitos e verdades,
mas envolve também vivência e compreensão dessa vivência. A fé
cristã contém a dimensão existencial do ser humano. As experiências
do indivíduo e da comunidade contribuem para a formação do
pensamento teológico e das afirmações de fé.
De certo modo, o existencialismo procura resgatar esse
elemento da experiência humana para a compreensão sobre Deus, a
vida e o próprio ser humano. Pode se dizer que essa é uma preocupação
eminentemente da modernidade, contudo, não se limita a ela, pelo
contrário, pode ser percebida também nos tempos antigos e mesmo
na Bíblica. Como afirma McGrath,
O surgimento do existencialismo, no período moderno, reflete
a importância atribuída ao mundo interno da experiência
humana. No entanto, deve-se considerar que esse interesse
pela experiência humana não representa algo novo; é possível
sustentar que sua presença já era notada tanto no Antigo
quanto no Novo Testamentos, encontrando-se também nas
obras de Agostinho de Hipona. Martinho Lutero afirmou que
“a experiência faz o teólogo” e defendeu que era impossível
alguém ser um bom teólogo, sem que houvesse experimentado
o duro e terrível julgamento de Deus sobre o pecado humano
(2010, p. 234).

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A teologia em muitos sentidos pode
ser uma forma de articular as experiências
religiosas dos indivíduos com Deus.
McGrath mostra, ainda, que há
duas compreensões básicas da relação entre
experiência e teologia. A primeira afirma
que a “experiência fornece um recurso
fundamental à teologia cristã” (2010, p.
234). Isso significa que há uma experiência
humana religiosa comum que é estrutura
fundamental à fé e teologia cristã. A segunda
afirma que a “teologia fornece uma estrutura
Alister McGrath
Fonte: Wikimedia Commons interpretativa na qual a experiência humana
pode ser interpretada”(ibid). Neste caso, a
teologia é referencial para interpretar a experiência.
O impacto do existencialismo na teologia, particularmente
na teologia contemporânea, se deve provavelmente como reação ao
racionalismo iluminista que enfatizou demasiadamente a razão sobre
a fé. Alguns teólogos contemporâneos viram no existencialismo uma
oportunidade para preservar aspectos da experiência religiosa da fé
cristã diante do racionalismo que negava todo o sobrenatural.

20 Teologia Contemporânea e Ética


Conclusão

Procuramos nesta lição apresentar as fontes ou fundamentos


da teologia na perspectiva de Alister E. McGrath. Outros autores
sugerem fontes semelhantes, outros argumentam por uma fonte
essencialmente bíblica. O fato é que quando nos engajamos em uma
discussão teológica podemos identificar pelo menos essas quatro
fontes: a Escritura Sagrada, a Tradição, a Razão e a Experiência. Isso
significa que a teologia não se equipara à revelação no sentido de que
é algo divinamente inspirado, pelo contrário, é um falar humano a
respeito de Deus com todos os condicionamentos humanos. Falamos
a partir de nossas experiências e tradições, por meio da razão, à luz
da revelação, para interpretar e compreender ou articular e formular
nossas experiências.

Referências Bibliográficas

GRENZ, S. J.; GURETZKI, D.; NORDLING, C. F. Dicionário de teologia.


S. Paulo: Editora Vida, 2005.
McGRATH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma
introdução à teologia cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2010.

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Anotações
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22 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 03
História da Teologia do Período Bíblico e da
Patrística

Introdução

Quando estudamos uma teologia ou algumas teologias


de uma determinada época, é muito importante que
tenhamos uma ideia ou visão de conjunto das teologias que
as antecederam. Isto é importante porque o conhecimento
teológico nunca está isolado no tempo e no espaço, mas
sempre relacionado histórica e geograficamente. Ainda
que não nos aprofundemos em todas as teorias teológicas
desenvolvidas no decorrer da história da Igreja, devemos ter
noção delas, ao menos, daquelas que foram consideradas
mais importantes. Nesta unidade, nos ocuparemos com os
primórdios da teologia investigando inicialmente o próprio
período bíblico e, em seguida, a teologia patrística.

Objetivos

1. Recuperar brevemente as principais informações


sobre a teologia no período bíblico e antigo;

2. Possibilitar uma visão de conjunto da história da


teologia;

3. Estabelecer um pano de fundo histórico para o


estudo da Teologia Contemporânea.

23
História da Teologia do Período Bíblico e da
Patrística
O Senhor Deus me deu uma língua erudita, para que eu saiba
dizer a seu tempo uma boa palavra ao que está cansado. Ele
desperta-me todas as manhãs, desperta-me o ouvido para que
ouça, como aqueles que aprendem (Isaías 50.4).
Sabemos que o ser humano se esforça por conhecer a Deus desde
os tempos mais remotos de sua existência. As expressões desse esforço
podem ser encontradas na forma de desenhos, músicas, poesias,
narrativas e outras formas de produção de conhecimento. Embora a
teologia tenha recebido o seu nome da cultura grega no séc. II e sua
forma mais elaborada após essa época, não podemos considerar os
esforços anteriores como não teologia. É devido a isso que iniciamos
esta seção com a teologia produzida no período bíblico.

1. A teologia no Antigo Testamento


No Antigo Testamento havia uma cultura de expressar
oralmente e por meio de registros o conhecimento de Deus, portanto,
de fazer teologia, que, em sentido amplo, nada mais era do que o
esforço de pessoas de acolherem a revelação de Deus e, à sua luz, dar
sentido ao tempo e contexto em que viviam. Fizeram isto aqueles
que transmitiram oralmente o Antigo Testamento, o escreveram,
colecionaram, releram e o comunicaram às novas gerações, dando-lhe
novo sentido à cada nova situação histórica. Ainda que o conteúdo
dessa teologia seja considerado inspirado e fontal para a fé cristã, não
há como negar que, para isso, houve uma efetiva participação humana
no processamento da revelação de Deus. É uma teologia inspirada.
A narrativa foi o modo predominante da teologia no contexto
bíblico. Eles pensavam contando. Contavam os fatos vividos com
Deus e como o interpretavam para as novas situações da vida do povo,
com a ajuda da sabedoria, ou seja, pensavam contando em função
da vida com Deus no mundo. Os sujeitos dessa teologia foram os
profetas, os sábios, poetas, os cronistas e historiadores, discípulos,
apóstolos, sacerdotes, e, principalmente o povo, que foi o grande

24 Teologia Contemporânea e Ética


transmissor oral e fomentador das histórias de Israel e de Jesus.
Com base em Christopher Wright podemos dizer que foi intensa a
atividade dos teólogos do Antigo Testamento: “Os historiadores do
Antigo Testamento. Eles realizaram a tarefa de colecionar, selecionar,
editar e comentar as histórias do passado de Israel (séculos delas), com
critério e avaliação teológicos e éticos.”1 Bruno Forte também afirma
que no Novo Testamento há não somente um conteúdo, que pode ser
chamado de “Fontal”, mas um modo teológico, fruto da reflexão da
primeira comunidade cristã sobre o Cristo Salvador e as Escrituras
Sagradas:
É possível então concluir que no Novo Testamento existe uma
teologia, suscitada pelo próprio revelar-se divino e caracterizada
pelas diversas situações de vida em que a mensagem foi acolhida
e transmitida, uma história da verdade revelada originária.2
Bruno Forte ainda adverte que o fato de ter havido uma reflexão
teológica no Novo Testamento, não o torna menos Palavra de Deus.
A inspiração, nesse caso, seria uma ação de Deus na mediação
hermenêutica humana sobre o dado revelado, o que a torna um evento
dinâmico envolvendo o divino e o humano, no contexto cultural e na
história.
O Antigo Testamento contou com a participação de inúmeras
pessoas que atuaram como intérpretes e transmissoras da revelação
divina. Foram como que “autores humanos” de um processo dirigido
e sustentado pelo próprio Espírito de Deus.

2. A Teologia no Novo Testamento


A teologia no Novo Testamento não foi menos dinâmica e
vivencial. Jesus Cristo foi, sem dúvida alguma, o conteúdo predominante
da mensagem dos cristãos da época e no qual relacionavam todos os
demais assuntos. Não havia, porém, uma preocupação evidente com a
vida pessoal de Jesus, embora apresentassem sua pessoa nas narrativas.
Os evangelhos não são o que se possa chamar de “biografias” de Jesus,
pois não era essa a intenção de seus autores. O conteúdo central e
1
WRIGHT, Christopher J. H. Povo, Terra e Deus. 1991, São Paulo: ABU, p. 24.
2
FORTE, Bruno. A Teologia como Companhia, Memória e Profecia. São Paulo: Paulinas, 1991.

25
predominante em todo o NT era a obra salvadora de Jesus Cristo, o
seu evangelho.
Michael Green descreve a igreja neotestamentária como
“efervescente” e com um conteúdo
variado. Era a portadora do “anúncio
feliz da salvação messiânica longamente
esperada, a visitação de Deus para redimir
o mundo necessitado”.3 Em vista disso, a
nova mensagem passou a ser chamada de
“boas novas” ou to euaggelion. Era uma
mensagem dinâmica e contada por muitos
que se tornaram suas testemunhas diretas
ou indiretas.
Michael Green
Green acrescenta:
Fonte: Wikimedia Commons
Todos os cristãos tinham certeza de que Jesus
Cristo era a última palavra de Deus à humanidade, aquele
que trouxe tanto de Deus para nós quanto podemos absorver,
da única maneira em que podemos entendê-lo, que é a vida
humana. O único que teve suas afirmações e obras confirmadas
claramente pela morte e ressurreição. Nisto todos eles criam;
a maneira de expressá-lo dependia em grande parte do seu
próprio contexto intelectual e espiritual, e do de seus ouvintes.4
A mensagem da obra salvadora de Jesus Cristo era o conteúdo
prioritário daqueles cristãos, que somente poderia ser bem
compreendida tendo como base as Escrituras Sagradas. Uma expressão
recorrente entre os escritores neotestamentários era: “segundo
as escrituras”, significando que os escritos do Antigo Testamento
fundamentavam histórica e teologicamente os eventos que entre eles
ocorriam. Eram, de fato, as Escrituras em cumprimento diante dos
seus próprios olhos (ver Lucas 4.17-21).
A referência às Escrituras mostrou-se necessária na elaboração
teológica dessas primeiras comunidades cristãs, pois não estavam
iniciando uma nova religião, mas participando da ação histórica de
Deus em prol da salvação da humanidade e redenção da criação.
GREEN, Michael. Evangelização na Igreja Primitiva. São Paulo: Vida Nova, 1989,p. 56.
3

Idem, p. 70
4

26 Teologia Contemporânea e Ética


Percebe-se isso claramente no episódio de Filipe e o eunuco (Atos
8. 26-40). Na narrativa Filipe recorre às Escrituras para explicar ao
eunuco acerca de Jesus Cristo, iniciando em Isaías e percorrendo
outros textos bíblicos para comprovar àquele homem que Jesus era o
Cristo que havia de vir.
Para compreenderem Cristo nas Escrituras utilizavam a chave
hermenêutica do Reino de Deus e sua justiça em realização no mundo.
Jesus era a personificação do Reino e, consequentemente, o conteúdo
do seu ensino:
Interrogado pelos fariseus sobre quando o reino de Deus viria,
Jesus lhes respondeu: O Reino de Deus não vem com aparência
exterior; nem dirão: Está aqui! Ou: Está ali! Pois o reino de
Deus está entre vós. (Lucas 17.20-21)
É o Reino de Deus, muito bem percebido no Gênesis 1 e que
se plenificará no final de todas as coisas, conforme Apocalipse 22.1-
7, quem relaciona a história da salvação. Ele perpassa toda a história
e se realiza nela, porém não se reduz a ela, pois lhe é infinitamente
superior. Jesus Cristo é o Senhor desse Reino, aquele que possui “Toda
a autoridade” no céu e na terra (Mat. 28.18). O Reino se evidencia no
mundo através de sinais que lhes são próprios, e que foram visíveis na
missão dos discípulos, na vida da Igreja neotestamentária e devem ser
manifestos na missão da Igreja atual. Ele é caracterizado, bem como
os seus sinais, pela justiça de Deus que se manifesta no mundo e será
plena na era vindoura. É nessa justiça que aqueles que estão no Reino
de Deus devem viver, bem como devem fazê-la transparecer em suas
vidas de modo concreto.
A Teologia cristã se constitui como um saber em função do
Reino de Deus. Não visa outra coisa, senão seu esclarecimento e
anúncio pela via do conhecimento.
A teologia no Novo Testamento foi narrativa nos evangelhos
e Atos e pastoral nas cartas de Paulo e nas Cartas Gerais, visando
primeiramente as comunidades cristãs da época e sua edificação.
Trata-se de uma teologia cristológica, eclesial e em vista do Reino de
Deus.

27
3. A Teologia no Período da Patrística
Em resumo, o método teológico escriturístico era, ao mesmo
tempo, narrativo e retórico. Isto é visível nos dois exemplos a seguir:
O meu pai era uma arameu errante. Ele desceu ao Egito com
pouca gente e ali viveu e se tornou uma grande nação, poderosa
e numerosa. Mas os egípcios nos maltrataram e nos oprimiram,
sujeitando-nos a trabalhos forçados. Então, clamamos ao
Senhor, o Deus de nossos antepassados, e o Senhor ouviu a
nossa voz e viu o nosso sofrimento, a nossa fadiga e a opressão
que sofríamos. Por isso o Senhor nos tirou do Egito com mão
poderosa e braço forte, com feitos temíveis e com sinais e
maravilhas. Ele nos trouxe a este lugar e nos deu esta terra, terra
onde manam leite e mel. (Dt 26:5-9)

Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora


sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que
devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo,
tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em
forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até
à morte, e morte de cruz! Por isso Deus o exaltou à mais alta
posição e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para
que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra
e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o
Senhor, para a glória de Deus Pai. (Fil 2:5-11)
No período antigo da Igreja Cristã, também conhecido como
período patrístico, houve uma mudança significativa na forma de
se elaborar acerca da fé cristã. Devido às perseguições e à atividade
evangelizadora, os cristãos se espalharam pelo Ocidente e Oriente,
expandindo a Igreja grandemente. No Ocidente, prevaleceu o modo
filosófico-grego de compreender e explicar a realidade. Era necessário
que a fé cristã fosse comunicada na linguagem do novo mundo ao qual
ela adentrou, e esta linguagem era filosófica.
Exemplo acabado disto se observa na formulação dos dois
principais credos cristológicos, o de Nicéia e o de Calcedônia. O
Niceno preserva o caráter narrativo e retórico típico das Escrituras:

28 Teologia Contemporânea e Ética


Cremos em um Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da
terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um Senhor
Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus, gerado pelo Pai antes
de todos os séculos, Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro
Deus, gerado, não feito, de uma só substância com o Pai, pelo
qual todas as coisas foram feitas; o qual, por nós homens e por
nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne do Espírito Santo
e da virgem Maria, e tornou-se homem, e foi crucificado por
nós sob o poder de Pôncio Pilatos, e padeceu, e foi sepultado, e
ressuscitou ao terceiro dia conforme as Escrituras, e subiu aos
céus, e assentou-se à direita do Pai, e de novo há de vir com
glória para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim;
e no Espírito Santo, Senhor e Vivificador, que procede do Pai
que com o Pai e o Filho, conjuntamente é adorado e glorificado,
que falou através dos profetas; e na Igreja una, santa, católica
e apostólica; confessamos um só batismo para remissão dos
pecados. Esperamos a ressurreição dos mortos e a vida do
século vindouro.
O Calcedoniano demonstra a mudança paradigmática que
ocorreu em três séculos de contextualização:
Fiéis aos santos Pais, todos nós, perfeitamente unânimes,
ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso
Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade, e perfeito
quanto à humanidade; verdadeiramente Deus e verdadeiramente
homem, constando de alma racional e de corpo, consubstancial
com o Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós,
segundo a humanidade; em tudo semelhante a nós, excetuando
o pecado; gerado segundo a divindade pelo Pai antes de todos
os séculos, e nestes últimos dias, segundo a humanidade, por
nós e para nossa salvação, nascido da Virgem Maria, mãe de
Deus; um e só mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se
deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis, imutáveis,
indivisíveis, inseparáveis; a distinção de naturezas de modo
algum é anulada pela união, antes é preservada a propriedade
de cada natureza, concorrendo para formar uma só pessoa e em
uma subsistência; não separado nem dividido em duas pessoas,
mas um só e o mesmo Filho, o Unigênito, Verbo de Deus, o

29
Senhor Jesus Cristo, conforme os profetas desde o princípio
acerca dele testemunharam, e o mesmo Senhor Jesus nos
ensinou, e o Credo dos santos Pais nos transmitiu.
De acordo com David Bosch, embora a mudança tenha sido
drástica, ela aconteceu dentro do processo histórico:
Naturalmente, a transição não foi abrupta. Ela tampouco
resultou em uma nova teologia homogênea... A passagem do
mundo hebraico para o grego representou apenas um elemento
(embora extremamente importante) do novo cenário... Em
primeiro lugar, o que principiara como um movimento tinha se
tornado, bem antes do fim do século I, irrevogavelmente uma
instituição.5
E, provavelmente, tenha sido um dos mais evidentes fenômenos
de contextualização da teologia cristã que temos conhecimento. No
esforço de enculturar-se para se fazer entender, teve origem uma
forma de teologia reconhecidamente filosófica, contextualizada. Bosch
esclarece:
O Deus do Antigo Testamento e do cristianismo primitivo
passou a ser identificado com a idéia geral de Deus da metafísica
grega; apresenta-se Deus como o Ser Supremo, a substância, o
princípio, o que move sem ser movido... Refletir sobre o que
Deus é em si passou a ser mais relevante do que pensar sobre a
relação das pessoas com Deus. Atrás de tudo isso, encontra-se a
noção de que a idéia abstrata é mais real que o histórico.6

Esta reviravolta do paradigma teológico prevaleceu no


Ocidente, daí em diante. Na leitura das Escrituras o interesse não eram
mais as narrativas e o que elas relatam sobre Deus (no mundo real),
mas o sentido oculto e ideal dos textos (do mundo das ideias), somente
possível de alcançar através da alegoria. O Antigo Testamento perdeu
seu valor histórico em favor de sua importância tipológica, concebido
somente como uma sombra do Novo Testamento.
Para Martin Dreher, Clemente e Orígenes, da cidade de
Alexandria, foram as mentes mais influentes desse período e grandes
BOSCH, David. Missão Transformadora. São Leopoldo: Sinodal, 2002, p. 238.
5

IDEM, p. 243
6

30 Teologia Contemporânea e Ética


responsáveis pelo estabelecimento desse novo paradigma teológico:
Após Orígenes e Clemente de Alexandria, a Igreja não podia
mais deixar de lado a filosofia. Ela assumiu muitos elementos da
cultura helenista. Na discussão com a filosofia, o cristianismo
tornou-se grego. Por seu turno, o helenismo foi cristianizado e
desapareceu como cultura autônoma. Fora sugado pela fé.7
Por ser um período prolífero para a teologia, surgiram também
grandes heresias, que provocaram discussões épicas e deram origem a
alguns credos, como foi o caso do arianismo e sua contra-resposta no
Concílio de Nicéia e no credo niceno (séc. IV). As fórmulas cristológicas
e trinitárias, bem como a instituição do cânon bíblico, tiveram como
pano de fundo os debates teológicos de líderes eclesiásticos do período,
como Arius (arianismo) e Atanásio e dos concílios que fixavam a
doutrina como resultado das discussões.
Não era, todavia, um esforço de pensamento que objetivava
meramente a especulação. Conforme Zabatiero, a Teologia
característica desse período era naturalmente prática, ou seja, em vista
da Igreja:
A teologia era um habitus de vida e estudo, concebida como
conhecimento de Deus e construída por meio das disciplinas
da oração, do estudo e da participação litúrgica. Objetivava a
formação de pessoas, lideranças e comunidades eclesiais cristãs.
Seus principais sujeitos foram os pais da Igreja, a hierarquia
sacerdotal cristã e os concílios cristãos.8
A teologia se desenvolveu principalmente em diálogo crítico
com os ataques que a Igreja sofria, tanto internamente (pelas “heresias”)
quanto externamente, por religiões e filosofias concorrentes. Nesse
período, foram definidas as grandes linhas da teologia como atividade
acadêmica, em especial quanto ao vínculo com a reflexão filosófica,
seja mediante acordo metodológico seja pela recusa das premissas
do saber filosófico8. Foi nessa época, com Agostinho de Hipona, que
se tem notícias sobre o início do reconhecimento da existência da
Teologia cristã.
DREHER, 1993, p. 50
7

ZABATIERO. Júlio T. Fundamentos da Teologia Prática. SP: Mundo Cristão, 2007, p. 20.
8

31
Conclusão

Neste esboço da teologia cristã desde o período do Antigo


Testamento até o período antigo da igreja, ou a patrística, é possível
perceber algumas das questões teológicas que preocuparam as
comunidades cristãs e o modo como fizeram teologia.
Na próxima unidade, continuaremos a análise dando sequência
ao estudo da história da teologia no período Medieval e da Reforma
Protestante.

Anotações
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32 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 04
História da Teologia Medieval e Reformada

Introdução

Quando estudamos uma teologia ou algumas teologias


de uma determinada época, é muito importante que
tenhamos uma ideia ou visão de conjunto das teologias que
as antecederam. Isto é importante porque o conhecimento
teológico nunca está isolado no tempo e no espaço, mas
sempre relacionado histórica e geograficamente. Ainda
que não nos aprofundemos em todas as teorias teológicas
desenvolvidas no decorrer da história da Igreja, devemos ter
noção delas, ao menos, daquelas que foram consideradas
mais importantes.

Objetivos

1. Recuperar brevemente as principais informações


sobre a teologia no período medieval e da Reforma;

2. Possibilitar uma visão de conjunto da história da


teologia;

3. Estabelecer um pano de fundo histórico para o


estudo da Teologia Contemporânea.

33
1. Teologia no Período Medieval
O período antigo serviu como transição para a grande época
de sistematização da teologia cristã no Ocidente: a teologia medieval.
Esta se construiu ao longo de, aproximadamente, mil anos. A principal
característica desta teologia foi o modo racional e especulativo de
pensar a fé. Essa prática se tornou comum nas universidades criadas
como locais para o desenvolvimento do conhecimento. Devido a isto,
o modo teológico deste período foi denominado escolástico. À sua
formalização contribuíram as obras de Agostinho de Hipona.
Ainda que tenha vivido no período antigo da Igreja, sua obra
serviu de base para a teologia medieval, havendo influenciado a
Anselmo de Cantuária, o verdadeiro iniciador do método. Se Anselmo
modelou o método escolástico com o recurso à razão, Tomás de Aquino
o aperfeiçoou recorrendo à apropriação da filosofia aristotélica em
lugar da metafísica platônica, prevalecente em todo o período antigo.
Para ele, a filosofia está na base da teologia, assim como o natural
forma a base do sobrenatural.
Outro fato que já mencionamos em capítulo anterior, relativo
ao período medieval, foi a distinção entre teologia e doutrina cristã.
Esta de domínio da Igreja e aquela mais circunscrita aos espaços das
escolas. Isto gerou uma doutrina enrijecida que se apresentou na forma
de postulados e, por outro lado, uma teologia especulativa, em muitos
casos, irrelevante.

2. A Reforma Protestante
A Reforma Protestante procurou romper com o modelo
medieval e tomista. Em todas as suas variações, caracterizou-se por
uma nova exigência metodológica e atribuiu novo caráter autoritativo
às Escrituras, que passaram a ser lidas não mais alegoricamente, como
nos períodos patrísticos e medieval, mas em seu sentido literal. Para os
reformadores, a fé é aquela que acolhe a palavra de Deus e, a Palavra,
existe em função de Jesus Cristo e seu anúncio. Ao acolhermos a
Palavra pela fé, encontramo-nos com Jesus Cristo e sua graça que nos
justifica. Ao sermos justificados, somos libertos para servir a Deus e ao

34 Teologia Contemporânea e Ética


mundo. É nesse sentido que a fé é o caminho, a palavra possui primazia
e Jesus Cristo é a razão do fazer teológico e da vida da Igreja. Qualquer
teologia que se afirme protestante deve passar por essas concepções,
independente da variação que representa.
A primazia da Palavra não impediu, todavia, que ela fosse lida
a partir de um contexto, e, em função disso, traduzida para ele: o
contexto europeu em fins de Idade Média. A teologia dos reformadores
se localizou frente aos problemas dessa época e propôs respostas a eles.
Podemos destacar entre elas:
• a) Libertação da prática da indulgência que era um mecanismo
de ampla dominação do clero sobre o povo. Para isso, ela propôs a
teologia da graça e do livre acesso à Deus, promovendo então uma
liberdade cristã de repercussão imensurável.
• b) Promoção do direito individual e comunitário de leitura
e estudo das Escrituras na língua popular. Para isso, realizaram a
tradução das Escrituras e possibilitaram sua distribuição e estímulo da
leitura. Novamente recorreram à teologia do livre acesso a Deus e da
desprivatização do Espírito Santo, que conforme eles ilumina a todos
indistintamente, não somente o clero.
• c) A missão deixou de ser mera atividade evangelizadora e
expansionista da Igreja entre povos distantes, e passou a abranger toda
ação libertadora para fluência do evangelho e do Reino de Deus onde
quer que fosse.
Todavia, o protestantismo posterior originado na Reforma
não conseguiu manter os princípios de liberdade e espontaneidade
teológica conquistados pelo movimento do séc. XVI. Na ânsia de
estabelecer o específico da teologia protestante e sua ortodoxia, passou
a cometer erros parecidos daqueles que havia condenado, conforme
comenta Julio Santa Ana:
[...] logo após a Reforma do século XVI e até as primeiras décadas
do nosso século, a teologia ocidental clássica desenvolveu
um método que pretendeu combinar sucessivamente três
características: as de ser dogmático, apologético e científico.
Passadas as duas primeiras gerações de teólogos reformadores,
o protestantismo caiu numa fase ortodoxa, na qual o que
mais importava era a repetição de fórmulas doutrinárias que

35
provinham dos reformadores. Quer dizer, o peso da nova
tradição necessitava consolidar-se diante dos embates da
contrareforma católica, organizada a partir do Concílio de
Trento, teve um efeito paralizante sobre a teologia protestante
desde o final do século XVI até o começo do século XVIII.9 1

Para Santa Ana, uma forma de teologia mais prática e crítica ao


racionalismo protestante foi àquela desenvolvida pelo pietismo e nos
movimentos originários do evangelicalismo. No entanto, ele afirma
que por outro lado ela assumiu uma postura bastante apologética em
relação às filosofias da época e comprometeu, em certo sentido, seu
caráter vivencial e prático.

Conclusão

As teologias modernas foram produzidas em relação de


continuidade com tais teologias antigas. Mas, buscaram superar
padrões e, ao mesmo, contextualizar para as novas linguagens dos
novos tempos. A Reforma Protestante foi, sem sombra de dúvida, o
portal para as novas possibilidades da Teologia.

Profª. Regina Fernandes Sanches

1
SANTA ANA, Julio. Pelas Trilhas do Mundo, A caminho do Reino. São Paulo: Imprensa Metodista,
1985, p. 13.

36 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 05
Revisão em Teologia Moderna

Introdução

Quando estudamos uma teologia ou algumas teologias


de uma determinada época, é muito importante que
tenhamos uma ideia ou visão de conjunto das teologias que
as antecederam. Isto é importante porque o conhecimento
teológico nunca está isolado no tempo e no espaço, mas
sempre relacionado histórica e geograficamente. Ainda
que não nos aprofundemos em todas as teorias teológicas
desenvolvidas no decorrer da história da Igreja, devemos ter
noção delas, ao menos, daquelas que foram consideradas
mais importantes.

Objetivos

1. Identificar a produção teológica inicial do


protestantismo;

2. Possibilitar uma compreensão panorâmica do


desenvolvimento da teologia protestante no período
moderno;

3. Compreender a relação de continuidade entre as


teologias modernas e as teologias contemporâneas.

37
A Teologia do Protestantismo
Os reformadores não completaram sua obra. Eles iniciaram um
movimento que precisaria de muito mais tempo para ser completado,
do aquele que eles dispunham. Não incorreremos em erro se dissermos
que o movimento foi caracteristicamente fundante de uma nova
maneira de pensar, viver a fé e de ser Igreja.
Outro aspecto a ser mencionado é o eixo central da Reforma:
uma nova maneira de conceber as escrituras da autorevelação de Deus,
bem como sua autoridade e papel na dinâmica da fé. Outros aspectos
que se constituíram como fundamentais do movimento foram:
• a)A responsabilidade pessoal da fé, todavia, no conjunto da
vida da comunidade cristã.
• b) A liberdade de pensamento. Esse gérmen renascentista, do
qual a Reforma foi o braço religioso-cristão, melhor se desenvolveu
nas épocas posteriores a ela. Conforme Mackintosh essa é a novidade
da Reforma:
...a verdade revelada em Cristo não pode ser provada
externamente, pois vem a ser uma possessão interna da
mente, a qual crê pelo poder convincente do Espírito Santo”
– (Mackintosh, Teologia Moderna. SP: Novo Século, p. 17).
O desenvolvimento posterior da Reforma,
que podemos chamar de “protestantismo”,
foi caracterizado por esforços de organização
eclesiástica, divididos entre episcopais,
presbiterianos, congregacionais, etc., bem
como as definições de credos e confissões que
demarcariam o território teológico e eclesial de cada segmento. Do
séc. XVII e XVIII datam: a Confissões de Fé de Westminster (1643), I
Confissão de Fé dos Batistas (1646), II Confissão de Fé Batista (1677),
Declaração de Savoy – Congregacionalismo (1658). É comprovado
que a reflexão teológica nesse período serviu ao doutrinismo, ou seja,
à elaboração das doutrinas protestantes, inclusive demarcando as
diferenças e semelhanças entre as várias representações eclesiásticas
dentro do protestantismo.

38 Teologia Contemporânea e Ética


A Ortodoxia Protestante
Orto-doxia é um termo de origem grega que significa “doutrina”
“certa” ou doutrina correta. Tem a ver com a pretensão do ensino
correto da fé cristã.
Ortodoxismo é a característica do período entre a Reforma
e o Iluminismo (ou Racionalismo), que também é chamado de
Escolasticismo Protestante ou Confessionalismo.
O escolasticismo protestante foi caracterizado pelo rigor
teológico, ou como descreve Mackintosh “...significa aqui uma
disposição de ânimo intelectual que pode invadir qualquer tema em
qualquer época” (Ibidem, p. 20).
Foi, de fato, uma época de surgimento dos amplos sistemas
dogmáticos e discussões em torno da inspiração verbal das Escrituras e
da expiação (nesse caso estritamente penal e quantitativa). O resultado
desse esforço foi a chamada Ortodoxia protestante, que possuia as
seguintes características:

Aspectos Negativos:
1. Concepção do valor absoluto às fórmulas dogmáticas;
2. A fé ou a concordância com um credo significavam praticamente
uma mesma coisa;
3. Insensibilidade para com a natureza simbólica do cristianismo;
4. Arrogância teológica, pois nenhuma pergunta parecia ficar
sem resposta;
5. Polêmica doutrinal e forte atividade apologética;
6. Tendência à ossificação do pensamento teológico;
7. Presença do aristotelismo no que diz respeito à ênfase no
homem natural (sujeição da mensagem do evangelho à razão natural);
8. Um certo estancamento na produção exegética e teológica;
9. Rigidez dogmática em lugar da criatividade teológica;

39
Aspectos Positivos:
1. Consolidação de muitas ideias teológicas da Reforma;
2. Organização eclesiástica do movimento protestante;
3. Construção de um “pano de fundo” teológico sobre o qual o
protestantismo se desenvolveu posteriormente;
4. Evidenciou a possibilidade da diversidade de pensamento no
seio do protestantismo, conquistada pela Reforma.

O Pietismo
Este movimento de espiritualidade demonstrou sua força no séc.
XVIII. Surgiu em resposta à rigidez e à frieza da Ortodoxia Protestante,
embora, sem abrir mão completamente das suas conquistas teológicas
e doutrinárias. Visava:
1. Despertar uma nova vida espiritual na Igreja da época que
consideravam apática e distanciada da verdadeira espiritualidade;
2. Destacar a necessidade de uma interpretação mais espontânea
e um conhecimento devocional mais profundo das Escrituras;
3. Desenvolver uma nova vida eclesial comunitária através de
círculos (pequenos grupos) de estudos devocionais da Bíblia (muitas
vezes mais valorizados por eles que a própria Igreja);
4. Pregar a separação do mundo e de seus valores;
5. Criar instituições missionárias e sociais duradouras.
Pietismo – Como principais características do movimento
podemos afirmar que:
1. Enfatizavam a experiência de conversão, seguida de outras
experiências de fé no decorrer da vida cristã. Em alguns casos, como
condição para a aceitação divina;
2. Enfatizavam o aspecto subjetivo da fé, mesmo em detrimento
da ênfase na graça imerecida, característica do protestantismo;
3. Partiam do pressuposto que o valor das doutrinas cristãs
somente pode ser medido em relação a sua importância para a vida
cristã prática e de fé;

40 Teologia Contemporânea e Ética


4. De certa forma, quebrou o poder (a hegemonia) do
escolasticismo protestante e se mostrou como alternativa até mesmo
teológica;
5. Representou a partir do seu surgimento uma forma de fé vital
frente aos movimentos teológicos da época e posteriores a ele.

O Racionalismo/Iluminismo
O racionalismo teológico surgiu também no séc. XVIII no
contexto cultural do Iluminismo. Por outro lado, não há como
desvinculá-lo do período anterior do Escolasticismo Protestante
que, com sua ênfase na razão doutrinária, preparou terreno para um
racionalismo teológico.
Nesse período, no ambiente das academias teológicas
protestantes, surgiu um modo de tratar a fé que fosse correspondente
aos esforços da época de tratar toda a realidade a partir da própria
razão. Na Inglaterra destacou-se nesse período o chamado Deísmo.

Deísmo – crença de cientistas e teólogos na religião natural


(afirmação da existência de Deus e das leis morais racionalmente
demonstráveis e conhecidas por todas as pessoas), em contrapartida
à “religião revelada”. Eles defendiam que a principal finalidade da
religião era possibilitar sanção divina para a moralidade.(Grenz e
Olsen. Teologia do Séc. XX, p. 22).
Conforme Mackintosh, pode-se, no entanto, relacionar três
típicos comportamentos da época:
1. A necessidade e crença da possibilidade de se defender o credo
ortodoxo utilizando-se da razão. Visava, com isso, comprovar que a
verdade cristã tem seus fundamentos nas leis universais do pensamento
ou se harmonizavam com o restante do conhecimento ordinário;
2. Distinção entre a fé ortodoxa (que pode ser professada em
público) e as opiniões privadas (para aqueles que viam além da fé),
ou seja, uma versão naturalista para o estudo na academia e outra
sobrenaturalista para o púlpito;
3. A postura própria racionalista que colocava a razão como aquela
que, no trono do juízo, julgava a tudo e todos. Somente o que passa

41
pelo crivo da razão deve ser aceito. A este racionalismo responderam
os novos filósofos (Kant, Fichte, Schelling e Hegel).
A essa forma racionalista de fazer teologia responderam alguns
teólogos modernos, entre eles Schleiermarcher e Kierkegaard:

Friedrich Schleiermarcher (XVIII e XIX)


A Teologia do Sentimento
De origem calvinista, formado em escola pietistamoraviana.
Estudou filosofia kantiana e foi adepto do romantismo. Foi ordenado
presbítero e se ocupou do ensino. Negou que fosse possível conhecer
Deus por meio da razão e da ética, conforme defendiam os racionalistas.
Para ele, o caminho para o conhecimento de Deus era o sentimento de
total dependência e da intuição. Compreendia o cristianismo como
o sentimento da dependência de Deus. Dizia ele: “quanto mais volto
o meu olhar para dentro do meu ser, mais íntimo estou no campo da
eternidade”.
Com Schleiermarcher a teologia passou a ter um novo lugar
teológico: o sentimento e a intuição humana. Ele concebia Deus como
uma realidade suprapessoal e transcendente. Com isso, questionou
o dogma da Trindade e negou a interpretação da morte substitutiva
de Jesus. O pecado em sua concepção era uma fraqueza dos seres
humanos em sua dependência da divindade. Por outro lado, Cristo
é o salvador porque ele viveu a dependência absoluta de Deus e nisto
ele envolve os seres humanos e lhes serve de inspiração. A justificação
pela fé é, neste caso, a união mística do ser humano com a divindade
possibilitada por Cristo.

Soren Kierkegaard (1813-1855) - A Teologia do


Paradoxo
Pastor luterano dinamarquês. Frequentou reuniões dos
morávios. Doutorou-se em Teologia. Foi um crítico do cristianismo
institucionalizado e da igreja dinamarquesa. Acusou o cristianismo
de distanciar-se de sua versão neotestamentária. Para ele qualquer
relação com Deus tem que necessariamente partir do reconhecimento

42 Teologia Contemporânea e Ética


de nossa finitude humana em relação à infinitude divina. O encontro
do humano com o Deus infinito é, para ele, um verdadeiro paradoxo,
pois há uma enorme diferença entre o ser humano e Deus. Não há
como compreender a Deus por meio racional, mas somente através de
Cristo, o Deus feito homem e pela via da fé. A fé não é na realidade um
complemento da razão, mas um modo de viver. Nesse caso somente
a interioridade e a subjetividade são caminhos legítimos para o
conhecimento.

A Teologia Liberal Clássica


Os liberais pretendiam reconstruir a fé cristã à luz do
conhecimento moderno. Compreendiam que era necessário adaptar
a teologia cristã à configuração cultural da época e, assim, ajustar-se à
mentalidade científica e filosófica do momento. Baseam-se também na
liberdade (característica do protestantismo) de repensar as crenças a
partir de seu momento histórico. Conforme Grenz e Olsen “Os liberais
não desprezavam a Bíblia e nem a consideravam completamente sem
valor. Na verdade, procuravam dentro dela “o evangelho” – o cerne e
referencial eterno da verdade que não podia ser corroído pelos ácidos
do conhecimento científico e filosófico moderno” – (Grenz e Olsen, p.
58). Para os teólogos liberais:
1. Jesus Cristo era visto como o ser humano exemplar e não como
o salvador interventivo;
2. A mensagem bíblica estava envolta em toda uma série de
expressões e ideias culturais das quais precisava ser retirada;
3. Não negavam a transcedência de Deus, mas esta somente
poderia ser compreendida a partir da experiência humana no mundo,
pela via da moral, razão ou mesmo a intuição.

A neo-ortodoxia - Karl Barth (1886-1968)


Karl Barth, nasceu na Suiça e foi neto e filho de pastores e
teólogos. Tornou-se pastor e teólogo da Igreja Reformada da Suiça.
Nunca realizou um doutorado devido às ocupações com o pastorado.
Ao trabalhar em comunidades carentes envolveu-se com movimentos

43
sociais e busca de melhoria de suas condições de vida. Desgostou-se, no
entanto, da teologia liberal na qual foi formado quando 93 acadêmicos
alemães assinaram um documento apoiando o governo alemão e sua
política durante a 1a. Guerra mundial. Sua primeira obra de peso
“Carta aos Romanos” foi resultado das suas pregações e ensino. Com o
passar do tempo ele associou-se à chamada Igreja Confessante que se
opunha ao governo nazista e, devido a isso, foi expulso da Alemanha.
Barth se ocupou também em responder ao liberalismo teológico do
séc. XX com a sua Teologia da palavra de Deus ou Teologia Dialética.

Barth – resposta ao liberalismo


A teologia protestante do séc. XX se centrou na capacidade
humana de se chegar ao conhecimento de Deus somente através da
razão humana. De acordo com os teólogos da época, a imanência de
Deus no mundo e continuidade entre Deus e o homem faziam possível
criar uma teologia sem necessidade da revelação bíblica. Isto criara
uma expectativa otimista sobre a natureza humana e o seu potencial
histórico para estabelecer o reino de Deus na terra por meio de esforços
humanos.
A teologia liberal reduziu Deus ao nível do ser humano ao
abandonar sua transcedência. Deus, para Barth, era o “completamente
outro”. Há uma infinita diferença qualitativa entre Deus e o ser humano.
Para ele:
- Somente por causa da autorevelação se pode conhecê-lo;
- Somente por meio da graça se entra em comunhão com Ele;
- Somente por iniciativa divina se pode chegar a Deus;
- O pecado causou limitações no conhecimento humano. Ele nos
impede de conhecer a Deus através da razão, da filosofia ou mesmo da
teologia centradas nos ser humano;
- Devido a isso, sem a graça de Deus não podemos alcançar a
salvação;
- O esforço humano é insuficiente para isso.
- Há uma relação dialética entre os conceitos humanos e os
divinos. Somente a revelação divina possibilita superar o abismo
existente entre ambos e essa possui seu ápice na encarnação de Jesus

44 Teologia Contemporânea e Ética


Cristo. Barth rejeitou a filosofia ou a metafísica como ponto de partida
na reflexão teológica. Para ele esta é uma propriedade exclusiva da
Palavra de Deus (tríplice) e dentro do ambiente de fé, que é a Igreja:
- A Palavra proclamada;
- A Palavra escrita (Bíblia);
- A Palavra encarnada (Jesus Cristo).

Conclusão

A maior produção teológica do período moderno se deu


no cristianismo protestante. De certa forma, era o momento de
o protestantismo dizer o que pensava acerca da fé, bem como
demonstrar a validade da liberdade cristã que havia conquistado na
Reforma. No entanto, teve que lidar também com a novidade cultural
da modernidade e o avanço científico da época. Isso deu origem às
teologias como estudamos acima: confessionalista, racionalista,
liberal e neo-ortodoxa, sendo que esta última é estudada, muitas
vezes, também como Teologia Contemporânea. De qualquer forma,
é evidente que a Teologia Moderna estabeleceu bases sobre as quais
seriam construídas as teologias contemporâneas.

Profª. Regina Fernandes Sanches

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Anotações
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46 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 06
Teologia Natural e Teologia Relacional

Introdução

Nesta unidade apresentaremos de forma breve as


teologias Natural e Relacional, suas origens, principais ideias
e articuladores. Para introduzir o assunto distinguiremos o
período contemporâneo das demais épocas do pensamento
cristão.

Objetivos

1. Viabilizar um conhecimento panorâmico das


teologias Natural e Relacional, para fins de encaminhamento
de novos estudos e pesquisas sobre elas;

2. Possibilitar também a localização dessas teologias


nas épocas culturais e histórico-teológicas em que foram
articuladas.

47
A Teologia Contemporânea:
alguns esclarecimentos Periodização
Por “contemporâneo” entendemos aquilo que se refere ao tempo
atual. Na história geral a Idade Contemporânea refere-se ao período
que vai da Revolução Francesa (1.789 d.C.) aos dias atuais. Da mesma
forma, na História da Filosofia refere-se ao período que vai do final do
séc. XVIII aos dias atuais. Na História da Teologia, o período abarca as
teologias do séc. XIX aos dias atuais.
A formação da Bíblia se deu no período antigo, no contexto do
Oriente Médio. As teologias patrística, medieval e moderna se localizam
no período que vai do séc. II d.C. ao séc. XVIII, predominantemente
na Europa. A Teologia Contemporânea tem sido produzida tanto na
Europa, América do Norte como na Ásia, África, América Latina,
Caribe e Oceania.

A Teologia Contemporânea
A Teologia Contemporânea é, em suma, aquele saber sobre Deus
que se dá de forma ordenada desde o séc. XIX, e que busca corresponder
aos contextos históricos e sociais de cada tempo e lugar. Trata-se de
um período frutífero para a Teologia, que vê surgir várias formas de
pensamento teológico, em contextos históricos e geográficos-culturais
diversos. Uma dessas teologias é a chamada Teologia Natural, que
veremos à seguir, bem como seus desdobramentos.

Teologia Natural
A Teologia Natural é, por vezes, chamada também de “Religião
Natural”, pois se trata de uma forma de religião filosófica, de orientação
iluminista e caracteristicamente racional e natural. Sua análise sempre
é em relação ao mundo, seu curso e história, não considerando os
aspectos de transcendência e metafísicos.
Como um saber natural sobre Deus ela pretende ser comum a
todos os homens. Embora seja uma teologia do séc. XIX, sua origem
remonta à Tomás de Aquino (séc XIII) que estabeleceu a natureza
como base para o entendimento da revelação. Ainda que este teólogo

48 Teologia Contemporânea e Ética


medieval não tenha negado os aspectos metafísicos da fé, ele estabeleceu
as bases filosóficas e metodológicas para a Teologia Natural. Surgiram
dessa preocupação seus famosos argumentos naturais para a existência
de Deus.
A busca da Teologia Natural era por um Deus unificador, em
épocas de conflitos religiosos na Europa, que promovesse a unidade
ecumênica de todas as religiões. Um Deus que estivesse acima das
confissões, dogmas e doutrinas e que não se ocupava da condução
direta da vida humana e do mundo. Baseava-se na revelação natural,
todavia, compreendida à luz da razão humana, que, para esta teologia,
não está condicionada pelo pecado, ou seja, a razão humana é bem
capaz de conhecer suficientemente a Deus por meio das coisas criadas.
Esta forma de teologia, como várias outras, afirmava a existência
de Deus, seu papel como criador e como aquele que governa o
mundo; afirmava a crença na vida futura, na qual o homem receberia
o pagamento pelo bem e pelo mal. Todavia, sempre baseava-se em um
conhecimento de Deus advindo das coisas criadas, como o homem, a
natureza, etc. e pela iluminação da razão humana.
É uma forma de teologia que tem prevalecido muito mais no
meio católico e no protestantismo ecumênico.

Teologia Relacional
O que muitos chamam de Teologia Relacional (representada
no Brasil pelo Pr. Ricardo Gondim), não é exatamente o que se possa
chamar de uma Teologia, não no sentido
ordenado e metodológico do termo. Conforme
o próprio Pr. Gondim, não era essa também
sua pretensão, mas sim a de desenvolver
algumas reflexões sobre como Deus se relaciona
conosco. Muitos a associam ao “Open Theism”
também chamado de “Teísmo Aberto”, ou
“Teologia Aberta” ou “Neoteísmo”, que é uma
forma de pensamento defendido pelos teólogos
norteamericanos Clark Pinnock, Gregory Boyd
Pr. Ricardo Gondim
Fonte: Wikimedia Commons e John Sanders e muito bem explicado no artigo:

49
http://www.monergismo.com/textos/presciencia/open_oque.
htm As inquietações de Gondim surgem de uma crítica ao modelo
calvinista ortodoxo da teologia que prevalece em nosso contexto
eclesial brasileiro:
Existem vários modelos teológicos de como se olha para a
realidade humana. Primeiro, o fechado. Neste modelo tudo
foi providencialmente criado por Deus e tudo cumpre um
desígnio seu; nada acontece sem que tenha sido decretado
eternamente por Deus. Todos os seres humanos que nascem,
todas as guerrras, todas as catástrofes, todos os gestos bons e
maus de todas as pessoas, simplesmente cumprem um plano
eternamente concebido por Deus. Já que Deus não pode
nunca ser frustrado, não houve percalços. O trem da criação
não descarrilhou em momento algum e a humanidade navega
como um navio que nunca saiu de rota.
Em relação e contra isto ele interroga:
Mas como explicar coisas ruins se multiplicando? Como
conciliar um Deus onipotente e a maldade constatada? No
determinismo teológico, conclui-se que cada mínimo evento,
bom ou mau, faz parte de um plano divino e que redundará em
honra e glória para Deus.
As reflexões chamadas de Teologia Relacional (desenvolvidas
pelo Pr. Gondim e por um membro de sua Igreja chamado Stanlei
Belan), chegam às seguintes conclusões:
1. Deus se relaciona conosco em amor, portanto, em liberdade
verdadeira.
2. Como prova de seu amor e para a liberdade da sua criação ele
se ausenta do mundo, não o abandona.
3. A história não está totalmente pronta e não há um futuro pré-
determinado por Deus.
4. Há a possibilidade da cooperação humana na construção do
futuro que está em aberto, conforme Gondim:”...Deus criou o universo,
mas livremente decidiu (porque não havia necessidade) que a história
seria construída, digamos, “a quatro mãos” – as nossas e as dele””
(GONDIM, Teologia relacional – que bicho é esse?).

50 Teologia Contemporânea e Ética


A história não está completa. Deus ainda chama artesãos para
serem cooperadores dele. Essa convocação não subestima o
poder do pecado, mas exalta a graça. Partilho da idéia de que
Deus aposta nos homens ajudando na construção do porvir.1
Como Gondim, a teologia relacional fundamenta-se na defesa
da liberdade humana, não à parte de Deus, como muitas vezes fazia
entender a Teologia Natural, mas em conjunto com Deus, como uma
forma, não exatamente elaborada, de arminianismo adaptado aos dias
atuais e seus questionamentos.
Um texto interessante para conhecer com mais clareza as ideias
por ele defendidas, são: http://www.ricardogondim.c om.br/estudos/
teologiarelacional-que-bicho-e-esse/

Conclusão

Obviamente, tanto o Teísmo Aberto como as reflexões


que denominaram a Teologia Relacional, possuem suas origens
histórico-teológicas na Teologia Natural. Tanto quanto a teologia
calvinista ortodoxa que as condenam possuem suas origens diretas
no confessionalismo moderno e no fundamentalismo. São como
que pontas diferentes de uma mesma vara, a teologia. Conhecê-las é
sempre importante e necessário para sabermos como dialogar com elas
e ouvirmos o que elas tem a nos dizer. Mas, não podemos esquecer que
a contemporaneidade é um caldeirão teológico, do qual sairão ainda
muitas surpresas.

1
GONDIM. Ricardo. Eu creio, mas tenho dúvidas. Viçosa: Ultimato, 2007. p. 50-55.

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Anotações
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52 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 07
Teologias Narrativa e da Cultura

Introdução

Estudaremos de forma breve, nessa unidade, a


Teologia Narrativa e a Teologia da Cultura de Paul Tillich.
São duas formas de teologia que visavam também responder
às teologias modernas, seja na sua forma racionalista ou na
forma ortodoxa e confessionalista.

Objetivos

1. Apresentar de modo breve as teologias Narrativa


e da Cultura, visando tanto sua localização histórica como
despertar interesses para novos estudos e pesquisas.

53
A Teologia Narrativa e da Cultura
A teologia que ainda prevalece no ocidente desde a helenização da
fé cristã é aquela filosófica e metafísica. Ela se ocupa predominantemente
da definição de conceitos dos elementos específicos da fé cristã e
procura compreender e explicar a partir da abstração, como é o caso:
das Escrituras (bibliologia), da salvação (soteriologia), do pecado
(hamartiologia), de Deus (teontologia), de Cristo (cristologia), do
Espírito Santo (pneumatologia), das últimas coisas (escatologia), dos
anjos (angelologia), etc.
O método a que recorremos costumeiramente é o sistemático, ou
seja, fundamentação bíblica e histórica e aplicação prática. Tendemos
a construir ideias acerca dos elementos que são comuns a nossa fé e
tentar privatizá-lo em alguns conceitos e teorias, na pretensão, muitas
vezes, de esgotar seu sentido. Para Paulo Brabo isso incorre no risco da
idolatria, pois tem a ver com a pretensão de reduzir Deus a uma teoria:
O judaísmo recusava-se e ainda recusa-se a permitir que
Deus fosse reduzido ao nível das conclusões, dos conceitos e
das ideias. A “teologia” judaica, epitomizada pelo Talmude, é
dialética e não dogmática. O problema de tentar-se definir Deus
através de ideias é que uma ideia, uma vez formulada, torna-
se imediatamente um monumento, um marco fixo a que se
pode voltar e diante do qual podemos nos dobrar. Um conceito
estanque a respeito de Deus é, essencialmente, um ídolo – e
emblema da nossa obsessão em tentar formulá-lo no espaço ao
invés de vislumbrá-lo no tempo. (BRABO, Paulo, 2009, p. 3)
Ao remeter para a tradição judaica, portanto, também para o
Antigo Testamento, ele argumenta que a fé bíblica é essencialmente
histórica e baseada muito mais no fator tempo do que no fator
espaço próprio do pensamento grego e ocidental. A linguagem
bíblica, conforme ele, remete para a temporalidade, como é o caso
do sábado, da ideia do kairós de Deus e outras simbologias. Devido
a isso, a cosmovisão judaica era linear, enquanto das religiões a sua
volta e mesmo a grega, era cíclica. Ainda, de acordo com ele, além da
helenização da fé, outra situação que contribuiu definitivamente para
a supressão da visão narrativa bíblica foi a emergência do racionalismo

54 Teologia Contemporânea e Ética


medieval e moderno.
Todavia, novos paradigmas de pensamento e linguagem
têm sido recuperados nos dias atuais à luz da própria ciência e seu
desenvolvimento. Temos retomado o valor da narrativa para o
autoconhecimento humano e mesmo para a investigação teológica. Isto
não é recente, mas remonta à esforços ainda modernos de responder
ao racionalismo teológico.

A Teologia Narrativa
De acordo com Grenz e Olson citando Gabriel Fackre, uma
narrativa é “um relato dos personagens e acontecimentos dentro de
uma trama que se move ao longo do tempo e do espaço através de
conflitos rumo a um desfecho” (GRENZ E OLSON, 2003, p. 329).
Não se trata de um simples relato. Uma narrativa é uma história que
remete para um contexto e para uma ou mais comunidades. Ela é,
por natureza, integradora dos vários aspectos que formam nossa
realidade, pois normalmente não desmembramos as partes de um
evento ou história para analisá-los em separado, mas envolvemos um
conjunto de personagens, situações e seus respectivos cenários. Eles
ainda reforçam:
O ponto forte da teologia narrativa está em sua afirmação de
que a fé implica relacionar nossas histórias pessoais com a
história transcendente/imanente da comunidade religiosa e,
em sua expressão máxima, com a grande narrativa da ação
divina no mundo. A história divina, mediada pela comunidade
da fé, transcende nossas narrativas individuais e finitas; porém,
ela é imanente na história do mundo e, pela fé, no desenrolar da
vida do crente. (GRENZ E OLSON, p. 327).

O surgimento da Teologia Narrativa está relacionado às


primeiras crises acerca da “natureza da atividade teológica e da função
das Escrituras na teologia, que caracterizou a era moderna como um
todo” (GRENZ E OLSON, 2003, p. 329).
Originalmente, sua proposta era de que a teologia não poderia
prescindir da narrativa em seu trabalho sistemático, visto que esta

55
tanto é a linguagem bíblica, como de boa parte das comunidades
cristãs históricas. Mas, para tais teólogos, a narrativa prevaleceu ante
a sistematização da fé, e passaram a se referir a esta (sistematização
teológica) como um instrumento daquela (a narrativa teológica).
As teologias da revelação de Karl Barth e Richard Niebuhr
contribuíram para a consolidação de uma forma de teologia narrativa,
a partir da ideia da presença da palavra de Deus no mundo e nossa
correspondência humana à ela por meio de sua narração e pregação.
A Teologia Narrativa ainda é objeto de vários interesses e estudos.
No Brasil ainda é muito pouco conhecida e pesquisada, embora, a
tradição narrativa seja um traço forte de nossa cultura. Mas, a prática
narrativa da fé é comum ao nosso meio e compõe inclusive nossa
liturgia. Interessantes contribuições essa teologia tem oferecido ao
estudo da Bíblia e à pregação.

Teologia da Cultura
A Teologia da Cultura está relacionada mais diretamente ao
teólogo Paulo Tillich, um professor de Teologia Sistemática do séc. XX,
que atuou na Alemanha e América do Norte. Como teólogo e filósofo
interessava-se muito pelos assuntos da religião e da cultura, a ponto de
tornar essa a temática central da sua teologia. Para tratamento de tais
assuntos Tillich se serviu dos estudos próprios de Filosofia da Religião,
que serviram de base para sua teologia.
Para Tillich a religião é uma dimensão da vida humana e não
apenas um acessório, a qual todos os demais aspectos estão relacionados
e possuem nela sua profundidade, de acordo com Gibellini “[...]
e, portanto, o âmbito religioso e o âmbito secular não podem ser
separados, pois a religião não é um âmbito, uma região particular, mas
a dimensão da profundidade”. De acordo com Gibellini “A dimensão
da profundidade é uma metáfora espacial e representa a instãncia das
interrogações fundamentais e do sentido último” (GIBELLINI, 1998,
p. 86).
Sobre a relação entre cultura e religião, Tillich possuía uma
célebre afirmação “a religião é a substância da cultura e a cultura a
forma da religião”, ou seja, em todos os aspectos da cultura (cultura

56 Teologia Contemporânea e Ética


não exclusivamente no sentido popular e antropológico, mas no
sentido da arte e do saber) há um significado para a existência humana,
portanto, de caráter religioso. Da mesma forma, a religião é manifesta
na sociedade humana por meio da cultura, ela é a sua melhor forma.
Para Tillich, Deus, que ele nomeia de o Incondicionado, não
está restrito ou a serviço de uma cultura em particular, mas ele é o
fundamento de todas as expressões culturais, inclusive as seculares.
A teologia, nesse caso, a serviço da religião, deixa de ser o estudo
sistemático de dogmas específicos de uma confessionalidade e torna-se
o estudo da cultura, daí a Teologia da Cultura. Os principais conceitos
relacionados à Teologia de Tillich são:
Heteronomia – refere-se ao uso da força, inclusive no âmbito
eclesiástico e religioso, para impor regras aos seres humanos a fim
de que cumpram as chamadas leis da vida, ou universais. Ocorre
frequentemente nos meios políticos e religiosos.
Autonomia – como portador da razão universal o ser humano
faz suas próprias regras, é autônomo.
Teonomia – a criação cultural revela a dimensão da profundidade,
a preocupação transcendental, como própria de si mesma e pode,
inclusive, servir de base para a autonomia.

Conclusão

A modernidade gerou várias teologias e abriu caminhos para


os mais diversos esforços de reflexão sobre a fé. A Teologia Narrativa
não somente buscou corresponder à ela, mas responder-lhe em seu
tratamento frio e científico da Bíblia e da fé. Da mesma forma a Teologia
da Cultura de Tillich, que surge como a de Dietrich Bonhoeffer e J.
Moltmann em resposta à experiência ocidental de guerras mundias
e questionamento dos postulados teológicos considerados válidos até
então para orientação da fé cristã.

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Anotações
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58 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 08
Teologia Pública e Teologia e Religião

Introdução

Os assuntos desta unidade serão a Teologia Pública,


na forma como ela tem se apresentado na América Latina
e suas principais propostas, e a relação entre Teologia e
Religião, sua origem histórica e desafios atuais.

Objetivos

1. Apresentar, em linhas gerais, os caminhos


de discussão da Teologia Pública e da relação entre
Teologia e Religião, para fins de abrir caminhos para
possíveis aprofundamentos destas correntes teológicas
contemporâneas.

59
Teologia Pública: apontamentos
A Teologia Pública é uma das formas de teologia contemporânea.
Na América Latina ela surge no encalço da Teologia da Libertação e
como uma possibilidade de sua atualização. O termo “público” refere-
se àquilo que é manifesto, divulgado, é visto e ouvido por todos.
Significa que não é restrito a uma classe, grupo ou segmento, ou seja,
não é privado, é acessível.
No tocante à teologia como pública há diversos entendimentos e
possibilidades:
1. Aquela que se faz no espaço público e em relação a ele;
2. Aquela que não pertence a um grupo confessional específico,
mas democratiza o discurso sobre Deus e se faz para a coletividade.
O primeiro uso da expressão “Teologia Pública” que se tem
notícia foi em 1974, por Martin Marty em referência à Teologia de
Reinhold Niebuhr. Ele propunha que o conhecimento de Deus se
desse de modo atualizado pela Igreja e que servisse de referência
para a compreensão da vida atual dos povos. Já David Tracy, dando
continuidade à discussão, afirma que a publicidade da teologia deve se
dirigir a três públicos específicos: a sociedade, a academia e a Igreja:
Uma teologia pública deve estar atenta aos temas em pauta em
uma sociedade, buscando articular aquilo que lhe é específico
de maneira contextual1.
Em princípio, a Teologia Pública refere-se àquela forma de teologia
que não visa prioritariamente a formação do quadro eclesiástico das
igrejas cristãs. Mas, localizando-se no mundo acadêmico, propõe-se
a dialogar com as religiões e outras áreas do conhecimento científico,
para a construção do seu saber.
Roque Junges2 esclarece que ela, enquanto forma de expressão
da fé cristã na universidade, coloca-se propositalmente em duas
frentes:
___________
1
JACOBSEN, Eneida. O aborto publicizado. Rumo a uma teologia pública da libertação. In.: SCHAPER,
Valério Guilherme. A Teologia Contemporânea na América Latina e no Caribe. São Leopoldo: Oikos
e Est. 2008, p. 284-295.
2
O que a Teologia Pública traz de novo. In.: Cadernos IHU em formação – Teologia Pública, ano 2, nº
8, 2006. São Leopoldo: UNISINOS, p. 5-8.

60 Teologia Contemporânea e Ética


1. De diálogo, dentro da liberdade acadêmica, com as ciências, ao
ser desafiada por elas, buscando novas “compreensões e interpretações”
para os problemas e desafios da sociedade.
2. De presença crítica e humanística em relação aos paradigmas
modernos na ciência e na sociedade. Para ele, ao mesmo tempo em
que ela se deixa desafiar pelas ciências, ela as desafia. É em relação à
isso que ele diferencia a Teologia Eclesiástica, que se faz no espaço da
Igreja, da Teologia Pública, que se localiza no espaço público.
Para definir-se como Pública a teologia não necessita, nesse caso,
caracterizar-se como ciência da Religião, mas deve servir-se de seu
estatuto próprio como pensamento da fé, mas deve agir também como
saber específico, todavia, no espaço público e em envolvimento com ele.
Junges reforça que essa teologia cumpriria o papel de também
revitalizar a fé no meio acadêmico, dando-lhe novos significados na
atualidade. Ele argumenta que no meio acadêmico há uma constante
rejeição da fé por parte dos próprios cristãos, devido à falta de
atualização:
O problema é que a concepção da fé não se reduz ao que viram
como crianças. A compreensão intelectual da fé não acompanhou
o crescimento da compreensão cientifica. Esse desnível esvazia a
fé de seu significado. O problema é como dar aos intelectuais de
inspiração cristã uma visão mais adulta e consistente de sua fé. A
teologia tem um papel relevante nessa tarefa.
Para uma teologia de fato pública faz-se necessária novas
compreensões e práticas. Além de sua desprivatização em níveis
epistemológico, de comunidade teologal e destinatários, a própria
linguagem teológica deve ser revista. A teologia terá que falar a língua
comum dos espaços públicos de onde e para onde se faz, livrando-
se do vocabulário tão específico que é inteligível somente para os que
são da área. Há alguns que consideram as teologias libertacionistas
de meados do século passado, como: teologia negra, teologia asiática,
teologia africana, teologia da libertação latinoamericana e outras, como
formas de teologias pública. Isso se deve ao caráter contextual comum
a todas elas e de proposição de uma práxis eclesial transformadora da
realidade social.

61
Para os teólogos da Teologia Pública, ela, não abrindo mão de
seu conteúdo especificamente cristão, deve ser autocrítica, conforme
possibilita o círculo hermenêutico proposto por Juan Luís Segundo,
aberta a mudanças em vista do amplo diálogo.

Teologia e Religião
A discussão acerca da teologia e religião passa pela afirmação
abaixo de Michael Amaladoss (teólogo indiano):
Teologia é a busca por Deus. Deus está além de todas as nossas
imaginações e nossos raciocínios. Deus manifesta-se por
diferentes caminhos para diferentes povos. Um povo diferente
busca Deus por caminhos diferentes. A teologia das religiões
e a teologia na universidade devem reconhecer e aceitar essa
diversidade e envolver-se num diálogo, no contexto da busca
compartilhada por opinião e satisfação.
A relação entre fé e religião é um assunto que remonta ao povo de
Israel no Antigo Testamento. Desde sua estada no Egito e mesmo após
instalação em Canaã, Israel teve dificuldades em como lidar com as
religiões dos povos circunvizinhos. Vários relatos bíblicos são, muitas
vezes, localizados nesse confronto, por exemplo: os relatos da criação
e do dilúvio e sua relação com as cosmogonias mesopotâmicas.
No Novo Testamento o contexto não é tão diferente. Prova disso
é a influência judaizante nas comunidades da Galácia, influência pré-
gnóstica nas comunidades da Ásia Menor, etc. As cartas de Paulo e
João visam também orientar tais comunidades em relação a esses
movimentos religiosos.
Na modernidade o problema ressurgiu em sua forma
teóricocientífica. O problema em questão nesse período não eram
as religiões em si, mas a Religião e o seu lugar na nova mentalidade
do Ocidente racionalista. A Teologia do Sentimento de Friedrich
Schleiermarcher intencionou responder aos esforços de redução do
cristianismo à esfera dos valores morais e da filosofia metafísica.
Para ele, o que explica melhor a religião cristã é o sentimento da
própria comunidade em relação ao divino. Com isso, ele estabelece
um critério aplicável à toda experiência religiosa. A Teologia da

62 Teologia Contemporânea e Ética


Cultura de Paul Tillich, que enfatiza a importância da sacralidade
na vida religiosa, como modo de se resistir ao secularismo, procura
estabelecer bases de possibilidade para o diálogo entre as religiões
e suas teologias. Atualmente, na América Latina, é no contexto do
protestantismo ecumênico que a relação entre Teologia e Religião tem
sido de fato discutida e defendida. O Movimento Ecumênico iniciado
na Conferência de Evangelização em Edimburgo 1910, seguiu de uma
proposta micro-ecumênica (entre denominações protestantes), para
a macro-ecumênica (dentro do cristianismo em geral) e agora inter-
religiosa. O evangelicalismo histórico trata com reservas esse assunto.
A relação entre Teologia e Religião não é uma temática que ocupa sua
agenda normalmente.

O Estudo da Teologia e o Estudo da Religião


No Brasil, o reconhecimento do estudo formal da religião
precede o estudo teológico propriamente dito na forma de cursos de
graduação e pós-graduação. Isso forçou com que, inicialmente, muitos
realizassem estudos teológicos dentro da grande área do estudo da
religião, chamado de Ciências da Religião. Com o reconhecimento da
Teologia como estudo em nível superior, ela ganhou seu lugar próprio
como área de estudos. Intensificou-se, com isso, as discussões sobre
a relação entre Teologia e Religião e o papel de cada uma na esfera
social.
A Teologia é o estudo que se realiza a partir de dentro de uma
determinada religião, a partir dos seus textos sagrados e da experiência
histórica e atual nela. Temos a Teologia Cristã, Teologia Judaica,
Teologia Muçulmana, etc. Cada Teologia se ocupa da sua religião, o
que não impede que se realizem nelas estudos interreligiosos, como
normalmente se faz nas disciplinas de: História das Religiões, Teologia
das Religiões, Religiões Comparadas, etc.
As Ciências da Religião propõem realizar a análise de fora da
experiência religiosa, na medida em que isto é possível. Seu olhar é
mais especificamente para o fenômeno religioso. Não se ocupam
prioritariamente com nenhuma religião especificamente, mas buscam
abranger os vários movimentos de um determinado contexto. De

63
fato, são áreas distintas do conhecimento. Possuem não somente um
conteúdo, mas uma epistemologia diferente.

Conclusão

A Teologia Cristã propõe estudar Deus a partir da revelação


escriturada, da revelação natural e da nossa experiência cristã histórica
e atual no mundo. Ela assume o Deus Trino como sua própria razão de
ser e a comunidade cristã e sua missão no mundo como a razão do seu
serviço. Também busca auxílio das Ciências da Religião para melhor
compreender movimentos e expressões religiosas diversas do seu
contexto. Tal qual busca auxílio das Ciências Sociais para melhor
compreender a sociedade, da Biologia para compreender a vida.

64 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 09
Síntese da Teologia Contemporânea

Introdução

Nesta unidade faremos uma síntese das primeiras oito


lições em que tratamos da Teologia Contemporânea com
breve recapitulação sobre os pontos principais.

Objetivos

1. Recapitular principais ideias sobre a teologia


contemporânea;

2. Refletir sobre as possibilidades que a teologia


contemporânea oferece hoje.

65
Síntese da Teologia Contemporânea
Na primeira parte desta disciplina nos ocupamos com a
Teologia Contemporânea propriamente. Verificamos as diversas
fases do desenvolvimento da teologia até os desenvolvimentos mais
recentes, particularmente, os desdobramentos da teologia. Esse estudo
nos possibilita ter uma compreensão não só do desenvolvimento
dos diversos assuntos abordados pela Teologia Contemporânea
como também entender e apreciar as razões pelas quais surgiram
determinados temas e tendências metodológicas.

1. Origens da Teologia Contemporânea


Desejamos recapitular alguns pontos e aponta alguns caminhos.
Queremos destacar alguns pontos ou ideias centrais de cada etapa da
teologia para efeito de recapitulação e fixação.
Destaco dois fatos que abordamos na aula introdutória:
• Desde o século XVIII a teologia passou a ser um empreendimento
global, isto é, deixou de ser um labor exclusivamente europeu e se
estendeu à América do Norte, América Latina, África e Ásia. Isso
se deve, naturalmente, pelo fato de a igreja ir se expandindo. Em
consequência disso, novos eixos teológicos vão se criando e o centro
teológico vai se deslocando para as novas fronteiras.
• Apesar de a teologia contemporânea surgir no ambiente
intelectual da modernidade, é um equívoco confundir a teologia
contemporânea com o racionalismo, pois a razão como instrumento
de análise e compreensão de Deus já tinha sido empregada pela
escolástica.

2. Fundamentos da teologia
Mencionamos a importância de se entender os fundamentos
ou fontes da teologia. De acordo com Alister McGrath, a fonte da
teologia é a Escritura, a Razão, a Tradição e a Experiência. Outros
autores se referem a fontes semelhantes com algumas variações. Mas
a questão é entender que por mais que afirmemos que toda teologia

66 Teologia Contemporânea e Ética


deve se fundamentar na revelação de Deus, precisamos admitir que
para entendermos a revelação de Deus precisamos da razão. Além
disso, a compreensão teológica se dá dentro do contexto da vida da
comunidade, portanto, de acordo com a tradição teológica e, por fim,
não há como desprezar a experiência humana no estudo da teologia.
Há muitas vezes quem queira defender certo purismo teológico,
ou seja, uma teologia totalmente fundada na Bíblia e cuja fonte é
exclusivamente a revelação de Deus. No entanto, nem mesmo os
autores bíblicos expressaram sua teologia fora da tradição dos profetas
e apóstolos, a parte das experiências da comunidade e sem utilizar
meio de raciocínio e comunicação vigentes na época.

3. Recapitulação da história da teologia


3.1 Patrística e Medieval
Com respeito aos vários momentos da teologia:
No período antigo da Igreja Cristã, também conhecido como
período patrístico, houve uma mudança significativa na forma de
se elaborar acerca da fé cristã. Devido às perseguições e à atividade
evangelizadora, os cristãos se espalharam pelo Ocidente e Oriente,
expandindo a Igreja grandemente. No Ocidente, prevaleceu o modo
filosófico-grego de compreender e explicar a realidade. Era necessário
que a fé cristã fosse comunicada na linguagem do novo mundo ao qual
ela adentrou, e esta linguagem era filosófica.
O período antigo serviu como transição para a grande época
de sistematização da teologia cristã no Ocidente: a teologia medieval.
Esta se construiu ao longo de, aproximadamente, mil anos. A principal
característica desta teologia foi o modo racional e especulativo de
pensar a fé. Essa prática se tornou comum nas universidades criadas
como locais para o desenvolvimento do conhecimento. Devido a isto,
o modo teológico deste período foi denominado escolástico. À sua
formalização contribuíram as obras de Agostinho de Hipona.
Ainda que tenha vivido no período antigo da Igreja, sua obra
serviu de base para a teologia medieval, havendo influenciado a
Anselmo de Cantuária, o verdadeiro iniciador do método. Se Anselmo
modelou o método escolástico com o recurso à razão, Tomás de Aquino

67
o aperfeiçoou recorrendo à apropriação da filosofia aristotélica em
lugar da metafísica platônica, prevalecente em todo o período antigo.
Para ele, a filosofia está na base da teologia, assim como o natural
forma a base do sobrenatural.

3.2 Reforma
A Reforma Protestante procurou romper com o modelo
medieval e tomista. Em todas as suas variações, caracterizou-se por
uma nova exigência metodológica e atribuiu novo caráter autoritativo
às Escrituras, que passaram a ser lidas não mais alegoricamente, como
nos períodos patrísticos e medieval, mas em seu sentido literal. Para os
reformadores, a fé é aquela que acolhe a palavra de Deus e, a Palavra,
existe em função de Jesus Cristo e seu anúncio. Ao acolhermos a
Palavra pela fé, encontramo-nos com Jesus Cristo e sua graça que nos
justifica. Ao sermos justificados, somos libertos para servir a Deus e ao
mundo. É nesse sentido que a fé é o caminho, a palavra possui primazia
e Jesus Cristo é a razão do fazer teológico e da vida da Igreja. Qualquer
teologia que se afirme protestante deve passar por essas concepções,
independente da variação que representa.

3.3 Escolástica protestante


O desenvolvimento posterior da Reforma, que podemos
chamar de “protestantismo”, foi caracterizado por esforços de
organização eclesiástica, divididos entre episcopais, presbiterianos,
congregacionais, etc., bem como as definições de credos e confissões
que demarcariam o território teológico e eclesial de cada segmento. Do
séc. XVII e XVIII datam: a Confissões de Fé de Westminster (1643), I
Confissão de Fé dos Batistas (1646), II Confissão de Fé Batista (1677),
Declaração de Savoy – Congregacionalismo (1658). É comprovado
que a reflexão teológica nesse período serviu ao doutrinismo, ou seja,
à elaboração das doutrinas protestantes, inclusive demarcando as
diferenças e semelhanças entre as várias representações eclesiásticas
dentro do protestantismo.
O escolasticismo protestante foi caracterizado pelo rigor
teológico, ou como descreve Mackintosh “...significa aqui uma

68 Teologia Contemporânea e Ética


disposição de ânimo intelectual que pode invadir qualquer tema em
qualquer época” (Ibidem, p. 20).
Foi, de fato, uma época de surgimento dos amplos sistemas
dogmáticos e discussões em torno da inspiração verbal das Escrituras
e da expiação (nesse caso estritamente penal e quantitativa).

3.4 Racionalismo
O racionalismo teológico surgiu também no séc. XVIII no
contexto cultural do Iluminismo. Por outro lado, não há como
desvinculá-lo do período anterior do Escolasticismo Protestante
que, com sua ênfase na razão doutrinária, preparou terreno para um
racionalismo teológico.
Nesse período, no ambiente das academias teológicas
protestantes, surgiu um modo de tratar a fé que fosse correspondente
aos esforços da época de tratar toda a realidade a partir da própria
razão. Na Inglaterra destacou-se nesse período o chamado Deísmo.
Os liberais pretendiam reconstruir a fé cristã à luz do
conhecimento moderno. Compreendiam que era necessário adaptar
a teologia cristã à configuração cultural da época e, assim, ajustar-se à
mentalidade científica e filosófica do momento. Baseiam-se também na
liberdade (característica do protestantismo) de repensar as crenças à
partir de seu momento histórico. Conforme Grenz e Olsen “Os liberais
não desprezavam a Bíblia e nem a consideravam completamente sem
valor. Na verdade, procuravam dentro dela “o evangelho” – o cerne e
referencial eterno da verdade que não podia ser corroído pelos ácidos
do conhecimento científico e filosófico moderno” – (Grenz e Olsen, p.
58).
Para os teólogos liberais:
1. Jesus Cristo era visto como o ser humano exemplar e não
como o salvador interventivo.
2. A mensagem bíblica estava envolta em toda uma série de
expressões e ideias culturais das quais precisava ser retirada.
3. Não negavam a transcendência de Deus, mas esta somente
poderia ser compreendida a partir da experiência humana no mundo,
pela via da moral, razão ou mesmo a intuição.

69
3.5 Expressões teológicas da Modernidade
Teologia Natural
A Teologia Natural é, por vezes, chamada também de “Religião
Natural”, pois se trata de uma forma de religião filosófica, de orientação
iluminista e caracteristicamente racional e natural. Sua análise sempre
é em relação ao mundo, seu curso e história, não considerando os
aspectos de transcendência e metafísicos.
Como um saber natural sobre Deus ela pretende ser comum a
todos os homens. Embora seja uma teologia do séc. XIX, sua origem
remonta à Tomás de Aquino (séc XIII) que estabeleceu a natureza
como base para o entendimento da revelação. Ainda que este teólogo
medieval não tenha negado os aspectos metafísicos da fé, ele estabeleceu
as bases filosóficas e metodológicas para a Teologia Natural. Surgiram
dessa preocupação seus famosos argumentos naturais para a existência
de Deus.

Teologia Relacional
O que muitos chamam de Teologia Relacional não é exatamente
o que se possa chamar de uma Teologia, não no sentido ordenado
e metodológico do termo. Conforme o próprio Pr. Gondim, não
era essa também sua pretensão, mas sim a de desenvolver algumas
reflexões sobre como Deus se relaciona conosco. Muitos a associam ao
“Open Theism” também chamado de “Teísmo Aberto”, ou “Teologia
Aberta” ou “Neoteísmo”, que é uma forma de pensamento defendido
pelos teólogos norteamericanos Clark Pinnock, Gregory Boyd e John
Sanders.

Teologia Narrativa
De acordo com Grenz e Olson citando Gabriel Fackre, uma
narrativa é “um relato dos personagens e acontecimentos dentro de
uma trama que se move ao longo do tempo e do espaço através de
conflitos rumo a um desfecho” (GRENZ E OLSON, 2003, p. 329).
Não se trata de um simples relato. Uma narrativa é uma história que
remete para um contexto e para uma ou mais comunidades. Ela é,

70 Teologia Contemporânea e Ética


por natureza, integradora dos vários aspectos que formam nossa
realidade, pois normalmente não desmembramos as partes de um
evento ou história para analisá-los em separado, mas envolvemos um
conjunto de personagens, situações e seus respectivos cenários. Eles
ainda reforçam:
O ponto forte da teologia narrativa está em sua afirmação de
que a fé implica relacionar nossas histórias pessoais com a
história transcendente/imanente da comunidade religiosa e,
em sua expressão máxima, com a grande narrativa da ação
divina no mundo. A história divina, mediada pela comunidade
da fé, transcende nossas narrativas individuais e finitas; porém,
ela é imanente na história do mundo e, pela fé, no desenrolar da
vida do crente. (GRENZ E OLSON, p. 327)
O surgimento da Teologia Narrativa está relacionado às
primeiras crises acerca da “natureza da atividade teológica e da função
das Escrituras na teologia, que caracterizou a era moderna como um
todo” (GRENZ E OLSON, 2003, p. 329).

Teologia da Cultura
A Teologia da Cultura está relacionada mais diretamente ao
teólogo Paulo Tillich, um professor de Teologia Sistemática do séc. XX,
que atuou na Alemanha e América do Norte. Como teólogo e filósofo
interessava-se muito pelos assuntos da religião e da cultura, a ponto de
tornar essa a temática central da sua teologia. Para tratamento de tais
assuntos Tillich se serviu dos estudos próprios de Filosofia da Religião,
que serviram de base para sua teologia.

Teologia Pública
A Teologia Pública é uma das formas de teologia contemporânea.
Na América Latina ela surge no encalço da Teologia da Libertação e
como uma possibilidade de sua atualização.
O termo “público” refere-se àquilo que é manifesto, divulgado,
é visto e ouvido por todos. Significa que não é restrito a uma classe,
grupo ou segmento, ou seja, não é privado, é acessível.

71
No tocante à teologia como pública há diversos entendimentos e
possibilidades:
1. Aquela que se faz no espaço público e em relação a ele;
2. Aquela que não pertence a um grupo confessional específico,
mas democratiza o discurso sobre Deus e se faz para a coletividade.

Teologia e Religião
A relação entre fé e religião é um assunto que remonta ao povo de
Israel no Antigo Testamento. Desde sua estada no Egito e mesmo após
instalação em Canaã, Israel teve dificuldades em como lidar com as
religiões dos povos circunvizinhos. Vários relatos bíblicos são, muitas
vezes, localizados nesse confronto, por exemplo: os relatos da criação
e do dilúvio e sua relação com as cosmogonias mesopotâmicas.
No Novo Testamento o contexto não é tão diferente. Prova disso
é a influência judaizante nas comunidades da Galácia, influência pré-
gnóstica nas comunidades desde a Ásia Menor, etc. As cartas de Paulo
e João visam também orientar tais comunidades em relação a esses
movimentos religiosos.
Na modernidade o problema ressurgiu em sua forma teórico
científica. O problema em questão nesse período não eram as religiões
em si, mas a Religião e o seu lugar na nova mentalidade do Ocidente
racionalista. A Teologia do Sentimento de
Friedrich Schleiermarcher intencionou
responder aos esforços de redução do
cristianismo à esfera dos valores morais e da
filosofia metafísica. Para ele, o que explica
melhor a religião cristã é o sentimento da
própria comunidade em relação ao divino.
Com isso, ele estabelece um critério aplicável
a toda experiência religiosa. A Teologia
da Cultura de Paul Tillich, que enfatiza a
importância da sacralidade na vida religiosa,
Paul Tillich
como modo de se resistir ao secularismo,
procura estabelecer bases de possibilidade para o diálogo entre as
religiões e suas teologias.

72 Teologia Contemporânea e Ética


Conclusão

Encerramos na prática o estudo específico sobre a Teologia


Contemporânea. A partir da próxima unidade voltaremos nossa
atenção para a Ética e suas questões. No entanto, o que se percebe
no decorrer desse estudo é que a teologia não se resume à repetição
de dogmas ou doutrinas definidas pela igreja ao longo dos séculos. A
teologia é uma disciplina dinâmica, pois envolve o falar de Deus a partir
da experiência humana e da realidade histórica. A razão de intenso
debate teológico no período do Iluminismo se deve naturalmente pelo
fato de a própria fé estar sendo colocada em xeque pelo racionalismo.
A teologia precisou, de um lado, se defender dos ataques do liberalismo
e, de outro, se tornar compreensível ao entendimento da época.
O ambiente intelectual hoje é bem distinto, no entanto, ainda
temos grandes desafios. As teologias contemporâneas vão surgindo à
medida que a igreja vive na sociedade e enfrenta os desafios modernos.
Além disso, muitas vezes há conceitos teológicos e doutrinas que ficam
esquecidos e ressurgem a partir das experiências da igreja.

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Anotações
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74 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 10
Ética Cristã: conceitos e questões fundamentais

Introdução

Trataremos nessa unidade do estudo da relação entre


os problemas morais e a Ética, bem como da relação desses
assuntos com o ser humano e sua vivência na sociedade.

Objetivos

1. Compreender os problemas morais como campo


da Ética e a delimitação desse campo como área de estudos.

75
Introdução à Ética
Pr. Sidney de Moraes Sanches
Um homem se tornou um empresário bem-sucedido e construiu
para sua esposa uma casa enorme à qual chamou Castelo Monalisa.
Durante esse tempo, ele foi eleito deputado federal. Algum tempo
depois, ele foi eleito para a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados e,
por força do cargo, ele deveria corrigir os demais colegas quando eles
agissem mal no uso do seu mandato. Ele achava muito difícil um colega
corrigir outro colega devido à amizade que eles cultivavam entre si.
Muitos dos seus colegas já haviam sido auxiliados por ele, quando houve
certa investigação para saber se haviam se beneficiado de um esquema
do partido no poder, para a compra de votos dos parlamentares para
a aprovação de projetos de interesse do governo federal. Contra ele,
existiam várias ações trabalhistas por não recolhimento de impostos,
até de ex-funcionários. Em uma entrevista coletiva, ele reagiu a uma
pergunta de um jornalista se renunciaria ao seu cargo. Ele respondeu
com outra pergunta: “em qual tribunal fui julgado e condenado?”
Veja como essa história real está cheia de questões morais.
Certamente, o tribunal que o nobre deputado se esqueceu de
mencionar é o tribunal ético. Certamente você também já teve que
lidar com algum problema moral. Infelizmente, para muitos, falar de
moral é associar-se com alguma posição conservadora, reacionária,
antiquada, cerceadora da liberdade individual. No entanto, as pessoas
falam naturalmente de ética, como algo atual, moderno, inteirado.
Nesta aula, você aprenderá que os problemas morais são o campo
da Ética e aprenderá a delimitar esse campo. Você aprenderá a distinção
entre o problema prático-moral e o teórico-moral e como ambos
contribuem para constituir o conteúdo próprio do conhecimento
ético. Perceberá que a ética se desdobra a partir da consciência de duas
entidades autônomas, mas dependentes entre si: o indivíduo que age e
a sociedade na qual atua. Por fim, daremos alguns exemplos simples,
mas cotidianos, que ilustram toda a questão moral que nos preocupará
daqui em diante. Eles serão importantes para que você comece a se
situar no conteúdo do nosso curso.

76 Teologia Contemporânea e Ética


1. O agir moral como campo do conhecimento
ético
É comum às pessoas enfrentar problemas, todos os dias, nas suas
relações pessoais. Esses problemas decorrem da convivência com os
seus semelhantes, e até com aqueles que não são tão semelhantes (uma
árvore, um animal, um objeto, etc). Diante desses problemas, cada
ser humano deve decidir qual a melhor maneira de se comportar, de
solucionar tal problema, de agir de modo a resolvê-lo.
Ao fazê-lo, este ser humano se vê na condição de juiz e avaliador
dos seus próprios atos. Ele pode dizer se agiu certo ou se agiu errado.
Mas, também, ele se expõe aos demais seres humanos, que também
julgarão e avaliarão os seus atos. É comum que, em sociedade, e
devido à repetição dos mesmos problemas, já existam certas normas
que orientem o comportamento e a ação de cada ser humano, como
também facilitem o julgamento e a avaliação pelos demais da ação que
é realizada. Assim, o ser humano tem ao seu dispor um conjunto de
normas, comuns a qualquer membro da sociedade em que se encontra,
que indicam o que ele deve fazer em determinadas ocasiões. A esse
comportamento chamamos: prático-moral.
É comum, também, às pessoas, não apenas comportar-se
moralmente, mas, também, refletir acerca do seu comportamento
moral. Elas não apenas agem, mas justificam, fundamentam, constroem
argumentos para suas ações. Quando isso acontece, já estamos perante
um comportamento que chamamos: teórico-moral ou ético.
Este comportamento reflexivo gera certo conhecimento: o
conhecimento ético. Não cabe a este conhecimento dizer a cada pessoa
se sua ação foi certa ou errada, boa ou má em uma situação concreta.
Mas, ele pode ajudá-la, seja mostrando-lhe qual o melhor fim para o
seu comportamento, ou mostrando-lhe quais os desejos, as aspirações
corretas que devem motivar suas ações.
O conhecimento ético procura ajudar o ser humano nas questões
morais que envolvem o seu agir no mundo, entendendo que todo agir
humano é sempre um agir moral.

77
Assim, é parte do estudo da ética:
• a ação humana que contribui para uma finalidade boa;
• os motivos, desejos e aspirações que move a ação humana
enquanto justa, correta e conveniente;
• a ação humana de um indivíduo que deve ser acompanhada
de responsabilidade, liberdade, intenção e vontade, diante de duas ou
mais alternativas;
• a ação humana em uma sociedade que deve refletir a
obrigatoriedade de agir ou não conforme suas normas e códigos, a fim
de contribuir para o bem-estar desta sociedade;
• a forma como esses códigos e normas são elaborados pela
sociedade, na forma de frases que determinam o comportamento
moral, e como cada frase se organiza, funciona e se justifica naquela
sociedade;
• as sociedades, diferentes uma das outras, com diferentes
códigos e normas reguladoras, definindo o que é válido para todos
os seres humanos, em qualquer sociedade, e o que é restrito a uma
determinada sociedade, e como agir para com esta sociedade
particular, se o comportamento moral que ela aprova é muito diferente
do aceitável em outras sociedades.

2. O conhecimento ético como saber acerca do


agir moral
A Ética procura, a partir das questões bastante concretas das
relações humanas em sociedade, teorizar, isto é: explicar, esclarecer
ou investigar a realidade do agir moral do ser humano, procurando
fornecer-lhe meios de conhecer e agir moralmente na sociedade.
Com a ajuda da Ética, o ser humano consegue compreender seu
agir moral relacionando-o a um propósito mais amplo além da exigência
imediata, comparando-o com outras formas de comportamento
semelhante de outras pessoas em outras sociedades, sendo capaz até
de explicar, discutir e recomendar ou não seu comportamento perante
outros que agem de forma diferente dele mesmo.
Para ilustrar o que está sendo dito, leia alguns exemplos que
Marilena Chauí (1999:334,335) oferece:

78 Teologia Contemporânea e Ética


Um pai de família desempregado, com vários filhos pequenos e
a esposa doente, recebe uma oferta de emprego, mas que exige
que seja desonesto e cometa irregularidades que beneficiem seu
patrão. Sabe que o trabalho lhe permitirá sustentar os filhos e
pagar o tratamento da esposa. Pode aceitar o emprego, mesmo
sabendo o que será exigido dele? Ou deve
recusá-lo e ver os filhos com fome e a mulher
morrendo?

Uma mulher vê um roubo. Vê uma criança


maltrapilha e esfomeada roubar frutas e pães em
uma mercearia. Sabe que o dono da mercearia
está passando por muitas dificuldades e que o
Marilena Chauí roubo fará diferença para ele. Mas também vê
Fonte: Wikimedia Commons
a miséria e a fome da criança. Deve denunciá-
la, julgando que com isso a criança não se tornará um adulto
ladrão e o proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou
deverá silenciar, pois a criança corre o risco de receber punição
excessiva, ser levada para a polícia, ser jogada novamente às
ruas e, agora, revoltada, passar do furto ao homicídio?
Que fazer? conclui assim (1999:338):
O campo ético é, portanto, constituído por dois pólos
internamente relacionados: o agente ou sujeito moral e os
valores morais ou virtudes éticas.
Do ponto de vista do agente ou sujeito moral, a ética faz
uma exigência essencial, qual seja, a diferença entre passividade e
atividade. Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus
impulsos, inclinações e paixões, pelas circunstâncias, pela boa ou
má sorte, pela opinião alheia, pelo medo dos outros, pela vontade do
outro, não exercendo sua própria consciência, vontade, liberdade e
responsabilidade.
Ao contrário, é ativo ou virtuoso aquele que controla interiormente
seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute consigo mesmo
e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos, indaga
se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros
valores e fins superiores aos existentes, consulta sua razão e sua

79
vontade antes de agir, tem consideração pelos outros sem subordinar-
se nem submeter-se cegamente a eles, responde pelo que faz, julga suas
próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros.
E a Bíblia diz assim:
Meu filho, tenha sempre estas duas coisas em vista: a verdadeira
sabedoria é a capacidade de tomar decisões certas. Se você
possuir essas duas qualidades, terá sempre forças renovadas.
Elas são como uma medalha de honra. Elas o levarão por
caminhos seguros, onde você não tropeçará. Elas lhe darão um
sono tranquilo à noite. Não precisará ter medo de problemas
inesperados nem dos planos de homens maus, porque o Senhor
mesmo vai proteger você. Ele não deixará que você caia em
qualquer armadilha. (Provérbios 3:21-26, Bíblia Viva).

Conclusão

Vimos, portanto, que o agir moral é inerente, isto é, é parte da


condição humana. Este problema prático trata das relações do indivíduo
consigo mesmo, com os demais indivíduos, com a sociedade na qual
convive, e, ainda, com a natureza que o cerca e da qual ele depende
vitalmente. A observação do agir moral humano gera um conhecimento
ético, é uma sabedoria que se constitui em uma teoria do agir moral.
O acúmulo deste conhecimento pelas sociedades humanas oferece
um campo de estudos, pois ele regula o agir moral dos indivíduos e
das instituições que nela interagem. Desse modo, nada nem ninguém
escapa da ética, não importam as formas de conhecimento em que ela
se manifesta: um discurso científico ou prático. É preciso aprofundar
esse conhecimento do ser humano como agente moral no mundo no
qual vive, e é o que faremos na aula a seguir.

80 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 11
A Ação humana na Sociedade e a Ética

Introdução

Nesta unidade vamos nos voltar especificamente ao


modo como o ser humano se torna um ser moral e em
que medida a sua consciência moral lhe permite construir
valores que sustentem a organização e relação social.

Objetivos

1. Compreender a ação do homem na sociedade a


partir de sua consciência moral;

2. Refletir sobre o processo de amadurecimento


moral do indivíduo;

3. Relacionar os princípios éticos com as questões


éticas e morais da atualidade.

81
A Ação humana na Sociedade e a Ética
As questões que a Ética levanta surgem da observação do agir
moral dos seres humanos, e são as seguintes:
1. De onde vêm o senso moral e a consciência moral dos seres
humanos?
2. Como surgem, se mantém e se modificam os valores morais em
uma sociedade humana com a passagem do tempo?
3. Por que e sob quais condições as sociedades humanas diferem
quando prescrevem suas normas para o agir moral dos seus indivíduos?
4. O que é permanente e universal e o que é transitório e local no
agir moral proposto pelas sociedades humanas aos seus componentes?
5. O que são juízos morais e como avaliar os critérios que
fundamentam e justificam esses juízos?
6. O que é o agir moral e o que ele tem a ver com as ideias de
intenção, vontade, liberdade, responsabilidade e consequências que o
acompanham?
7. Como compatibilizar o objetivo de um ato moral e os meios
para alcançar esse objetivo?

1. O agir moral é próprio e exclusivo dos seres


humanos
Na medida em que o ser humano se desprendeu de sua
dependência da natureza e passou a interagir de modo independente
dela, ele criou para si uma forma de viver que não segue mais aquilo
que a natureza lhe impõe. Em uma situação onde pareceria natural
seguir os próprios instintos e desejos, por exemplo, juntar toda a
comida para si ou fazer sexo com qualquer mulher ou homem que tiver
vontade, o ser humano pára e considera os demais seres humanos. É
neste momento que ele se torna um agente moral.
Esta maneira moral de agir não nasce simplesmente com o ser
humano, mas é também recebida por meio de uma educação moral
dentro de uma sociedade. Ao ser educado em seu meio, aprende

82 Teologia Contemporânea e Ética


seus padrões de comportamento moral e se guia por esse código de
conduta moral, provavelmente, sem nunca perguntar por que faz isso.
E, se algum dia, perguntou, a resposta que ouviu foi: “porque é assim
que fazemos as coisas!” No momento em que o indivíduo passa a fazer
perguntas, quando ele manifesta sua capacidade de refletir criticamente
acerca da educação moral recebida, acontece uma importante fase de
amadurecimento pessoal: ele se torna livre para agir moralmente, ele
se torna um sujeito ético-moral, que conhece as causas, os fins e o
significado de sua conduta. Ele se torna moralmente responsável por
seus atos, devendo assumir as consequências resultantes, seja em
termos de louvor seja de reprovação.
O ser humano, assim amadurecido moralmente, passa a escolher
entre adotar uma conduta virtuosa ou se entregar aos vícios. Nesta
situação, toda sociedade elabora a sua ética. Ela o auxilia a analisar o
seu código moral e a avaliar a resposta dos seus membros, a educar
moralmente os seus membros, ajudando-os a compreender as suas
exigências morais.

2. A Ética é a ciência que estuda o agir moral do


ser humano
Para cumprir essa tarefa, a Ética parte da observação e
constatação dos fatos morais. Estes são as ações morais dos seres
humanos em sociedade. Ela as estuda como qualquer outro objeto de
análise e investigação científica. Isto quer dizer que um membro de
uma sociedade não precisa justificar cientificamente um ato moral que
ele pratica, mas a Ética submeterá esse ato moral a uma justificação
científica. E por que ela faz isso? Por que ela precisa generalizar aquele
ato moral, isto é, ela precisa tratá-lo não apenas como o ato de um
indivíduo, mas o ato de todos os indivíduos daquele povo.
O objetivo final da Ética, enquanto uma ciência, é propor a
uma sociedade uma teoria ou explicação rigorosa, racional, objetiva,
sistemática e comprovável da sua educação moral. Ao fazê-lo, a Ética
permite que esta sociedade repense sua educação moral, auxiliando-a
a avaliar-se criticamente e a mudar na medida em que a mudança for
um bem desejável e possível.

83
3. Entendendo melhor o agir moral do ser
humano
Agora, entendamos um pouco melhor a questão do agir moral
dos seres humanos. A Moral se realiza em dois planos: o normativo,
que reúne normas e princípios que procuram regular a conduta dos
seres humanos; e o fatual, constituído pelo agir humano concreto em
condições reais em obediência àquelas normas e princípios.
Podemos chamar esse plano fatual de agir moral humano. Só se
pode considerar ato moral aquele agir humano consciente e capaz de
ser moralmente reconhecido e aprovado por uma sociedade. Portanto,
o agir moral humano imprevisível e inconsequente não pode ser
colocado dentro desta compreensão.
Como se organiza o agir moral humano, quais são suas
características capazes de permitir que o reconheçamos?
Primeiro: todo agir moral deve ser precedido de um motivo
moral, um impulso para agir ou procurar alcançar determinado fim
moral. Os motivos para alguém agir são muitos, e nem todos são
morais. Motivos morais devem corresponder a virtudes igualmente
morais. Por exemplo: O motivo não é o mesmo quando alguém
denuncia um ato de corrupção, só porque o denunciante não pôde
tirar também proveito dele ou para receber uma pena menor. Aqui é
fundamental o interesse e vontade de que a justiça se faça, independente
do denunciante ser beneficiado ou não. O agir moral humano deve ser
capaz de oferecer um motivo moral para sua ação.
Segundo: o agir moral é voluntário. Isto quer dizer que o agir
moral é realizado em função de um resultado moral a se alcançar.
A visão do resultado moral deve estimular o ser humano a tomar as
decisões concretas que permitirão alcançar aquele resultado. A tomada
de decisões requer que o ser humano faça uma ou mais escolhas que
permitirão que o resultado seja alcançado. Ora, o agir moral humano
pode resultar em várias coisas, e, por isso, é necessário escolher uma
ou algumas delas e seguir o caminho proposto para alcançá-lo. Esse
caminho proposto diz respeito aos meios para que o resultado seja
alcançado. Conhecer os meios e saber escolher entre eles também faz

84 Teologia Contemporânea e Ética


parte do agir moral nesse momento. Neste caso, é importante discernir
que ainda que o resultado seja bom, não se deve usar de qualquer meio
para obtê-lo, ao contrário, o meio deve ser tão moral quanto o resultado
que se deseja.
Terceiro: o agir moral é responsável, isto é, é consciente das
consequências. Isto significa que ele leva em consideração o quanto
seu resultado pode afetar os demais seres humanos; o quanto ele está
de acordo com as normas morais estabelecidas pela sua sociedade;
o fato de que os resultados serão sancionados por esta sociedade, o
que poderá levar à aprovação ou rejeição do seu agir moral. Nesse
caso, esse julgamento deve consistir na análise de todo o agir moral:
motivos, intenções, meios, resultados e consequências, e não apenas os
resultados e consequências. Mas não dá para ser abstrato ou subjetivo,
isto é, achar que motivos e intenções têm precedência sobre os meios
e resultados concretos obtidos pelo agir moral.
Sánchez Vásquez conclui sua reflexão a respeito desse assunto da
seguinte forma:
O ato moral supõe um sujeito real dotado de consciência
moral, isto é, da capacidade de interiorizar as normas ou regras de
ação estabelecidas pela comunidade e de atuar de acordo com elas. A
consciência moral é, por um lado, consciência do fim desejado, dos
meios adequados para realizá-lo e do resultado possível; mas é, ao
mesmo tempo, decisão de realizar o fim escolhido, pois a sua execução
se apresenta como uma exigência ou um dever (2002, p. 78).

4. A falibilidade do agir moral do ser humano


Uma característica ética das sociedades é o de prever o agir
moral humano a ponto de lhe prescrever o que fazer em cada situação.
Isto também se chama casuística, quer dizer, com base no estudo
comparado de milhares de situações semelhantes, tenta-se ditar uma
norma de agir para todas.
Isto pode ser válido quando se trata de situações comuns e já
vividas historicamente. Quando ocorre uma situação incomum,
quando o agir moral humano oscila entre dois ou mais tipos de ato
moral, surgindo os chamados casos de consciência, não é possível

85
antecipar o agir moral mais adequado. Provavelmente, este ser humano
e esta sociedade deverão lançar mão das normas já conhecidas, olhar
a novidade da situação e escolher qual o melhor curso de ação moral
a seguir.
Isto nos leva a rejeitar a ideia de que o agir moral humano pode
ser prescrito em seus mínimos detalhes, retirando do ser humano toda
a possibilidade de tomar decisões, por si mesmo, diminuindo-o quanto
à sua capacidade e liberdade moral. Neste caso, a norma não deve ser
normativa enquanto inibidora, mas normativa enquanto orientadora.
Simplesmente, uma comunidade de seres humanos não deve tomar
decisões antecipadas pelos seus indivíduos, mas deve orientá-los para
que sejam capazes de decidir bem em toda e qualquer situação.

Conclusão

Nesta lição, com a ajuda das reflexões de Sánchez Vásquez,


conseguimos entender o que quer dizer a condição moral do ser
humano. Esta tem a ver não com as regras e normas morais, mas
com o momento em que o ser humano age em resposta a estas. Para
tal, ele precisa de um motivo que determina sua ação tendo em vista
um resultado. Este resultado, de caráter moral, é fundamental para
designar o agir humano como moral. Agora, precisamos entender o
desenvolvimento do conhecimento ético ao longo da história humana
no Ocidente1.
1 1]Todo o estudo é um resumo de partes da obra: Ética, de SÁNCHEZ VÁSQUEZ.

86 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 12
Concepções de Ética I

Introdução

Estudaremos nesta unidade uma breve história da


Ética a partir de suas concepções no mundo antigo e a
compararemos com a concepção cristã.

Objetivos

1. Desenvolver uma noção histórica e de conjunto da


Ética, bem como diferenciar a concepção cristã de Ética.

87
Concepções de Ética I
Texto do Pr. Sidney M. Sanches
Com certeza, você já percebeu que o comportamento moral
dos seres humanos está estreitamente vinculado ao modo como suas
sociedades se organizam ao longo da história e como eles se relacionam
com estas sociedades.
Pode-se dizer que a forma como os seres humanos compreendem
a Ética também possui uma história, seja porque sua matéria de
trabalho é esse comportamento moral em sociedade, seja porque a
Ética organiza seu conhecimento que tende a se ampliar em relação ao
passado e ao futuro.
Épocas de mudanças radicais como esta que estamos vivendo
trazem consigo profundos questionamentos dos valores, princípios
e normas morais considerados válidos até aqui em uma e em todas
as sociedades. Essa crise de valores ou de ética, como muitos estão
falando, requer que os seres humanos repensem o que é importante
para eles, seja justificando o que já conhecem, seja propondo a sua
substituição. Neste último caso, fica uma pergunta incisiva: substituir
pelo quê?
Em uma época de tantas dúvidas, é preciso refazer o caminho
histórico que a Ética percorreu até aqui em busca de alguma clareza. É
por isso que, nesta e nas próximas lições, seremos iniciados nas diversas
concepções da conduta moral dos seres humanos que os historiadores
da Ética recolheram para nós.
Começaremos pelos antigos gregos, de certo modo, fundadores
do nosso pensamento acerca da moral, pois foram os primeiros a
deixarem registros dessa preocupação com a
conduta humana na e em função da pólis/cidade.
Pessoas como Sócrates, Platão, Aristóteles,
e grupos como os Sofistas, os Epicureus e os
Estóicos, nos guiarão nesse estudo. Ao final
desse estudo, você terá uma boa introdução ao
Busto de Sócrates pensamento ético que será capaz de colocá-lo em
Fonte: Wikimédia Commons
conversação com seus próprios desafios éticos.
A Ética, como a conhecemos, nasce com a democratização da

88 Teologia Contemporânea e Ética


vida política entre as antigas cidades gregas, sobretudo em Atenas,
no século V a.C. A vida na polis/cidade requeria uma nova forma de
participação dos seus habitantes. Neste espaço físico chamado cidade/
pólis, homens como Sócrates, Platão e Aristóteles refletiram sobre a
melhor forma de convivência pública entre os cidadãos.

1. Os sofistas
Antes deles, porém, havia os Sofistas, mestres que andavam pelas
cidades gregas, preocupados em saber o que é o ser humano enquanto
participante de uma sociedade humana. Esta participação era vista
como política e jurídica. A participação na sociedade requeria saber
impor as idéias próprias de modo a convencer os demais de que
elas eram as melhores para todos. Claro que isso dependia de como
o discurso se adaptava às próprias situações que cada sociedade
vivenciava, isto é, os critérios para avaliar o que era melhor variavam
segundo as necessidades e comportamentos de cada sociedade. Não
havendo um critério baseado em um valor maior que a própria
situação, Protágoras, um desses sofistas fundadores do pensamento
ético grego, dizia: “O homem é a medida de todas as coisas!” Nem a
natureza, nem a tradição, nem os deuses podem dizer exatamente ao
ser humano o que ele devia ou não ser e fazer em sociedade.

2. Sócrates (470-399)
Sócrates não gostava muito desse relativismo e subjetivismo dos
Sofistas. Ele também achava que a Ética começava com o ser humano,
mas como este compartilhava a mesma natureza humana com todos
os seus semelhantes, um conhecimento válido para um ser humano
também dizia respeito a todos os demais, desde que seu ponto de
partida fosse racional. Para Sócrates, a racionalidade humana deveria
buscar o conhecimento do que é bom para praticá-lo na cidade/pólis.
Adquirido esse conhecimento racional, caberia a esta cidade ensinar
cada ser humano a cultivar a virtude (capacidade de agir bem) e a
rejeitar o vício (capacidade de agir mal). Agindo assim, o ser humano
teria todas as condições para ser feliz em sociedade, alvo final de sua
existência no mundo.

89
3. Platão (427-347)
Platão foi discípulo de Sócrates e repetiu duas ideias queridas a
seu mestre: o ser humano aprende o
que é bom na cidade/pólis quando por
ela ensinado. A partir dessas idéias,
Platão ensinou que a cidade/pólis deve
se organizar como um estado político
para cumprir aquele fim. Portanto,
apenas os seres humanos que faziam
parte da cidade, que se submetiam às
suas normas, praticavam suas regras
e partilhavam seus valores poderiam
ser eticamente educados.
Porém, Platão entendia que não Platão, em detalhe da Escola de Atenas,
de Rafael Sanzio (c. 1510)
cabia à cidade dizer ao ser humano o Fonte: Wikimédia Commons
que era bom. O que era bom estava
mais além e só poderia ser encontrado em um mundo ideal, perfeito,
imutável, a verdadeira realidade só alcançada pela alma humana
orientada pela sua racionalidade. O que é bom deveria, antes de
ser praticado, ser contemplado e compreendido pela alma humana.
Por meio dessa ação racional, o ser humano estaria preparado para
funcionar virtuosamente.
Esta compreensão platônica da moral é explicada em termos do
seu dualismo, isto é, a diferenciação que Platão fazia entre corpo e
alma. Como lugar das paixões, emoções e sentimentos, o corpo servia
pouco para educar o ser humano em sua conduta moral. O mundo
é outro lugar pernicioso para a educação moral do ser humano, pois
ele apelava aos instintos do corpo, não à racionalidade da alma. O ser
humano, precisava mesmo era da alma, o lugar da racionalidade no ser
humano. Esta lhe poderia ensinar a virtude e conhecimento. Assim,
quanto mais ele renunciasse a ser dirigido pelo corpo, e se submetesse
à direção da alma, mais moralmente educado seria.
A alma racional ensinaria ao ser humano a prudência, virtude
da alma; a fortaleza, virtude da vontade; a temperança, virtude dos
apetites do corpo. O equilíbrio e harmonia entre essas virtudes, em

90 Teologia Contemporânea e Ética


uma espécie de meio-termo, caberia a mais importante de todas as
virtudes: a justiça. Assim, Platão nos deixou a primeira Tábua de
Valores morais da época antiga:[1]

1. O primeiro e mais elevado lugar pertence aos Deuses e,


portanto, aos valores que podemos denominar religiosos.
2. Logo após os Deuses vem a alma que é, no homem, a parte
superior e melhor, com os valores que lhe são peculiares da virtude e
do conhecimento, ou seja, com os valores espirituais.
3. Em terceiro lugar, vem o corpo com seus valores (os valores
vitais como hoje se diria).
4. Em quarto lugar, vêm os bens da fortuna, as riquezas e os bens
exteriores em geral.

4. Aristóteles (384-322)
Aristóteles foi discípulo de Platão, mas se afastou dele para formar
um modo próprio de pensar. Ele concorda com Platão, e vai mais além,
ao dizer que o ser humano só é humano em uma vida política, nesse
caso, social. É a cidade/pólis que pode lhe prover esta vida social que é
a fonte da sua felicidade, ao lhe dar a condição de realizá-la.
Como isso acontece? Bem, Aristóteles ensinou que todo ser
humano carrega consigo uma compreensão do que é bom, sem
precisar buscar esse conhecimento em algo fora dele mesmo. Porém,
o ser humano precisa transformar esse conhecimento em uma ação
prática ou ética. Ele faz isso, primeiro, procurando conhecer mais
sobre o que é bom, e para isso deve se dedicar ao desenvolvimento
da sua racionalidade por meio do estudo. Quanto mais ele conhece e
pratica o que é bom, mais feliz será, isto é, mais plenamente humano
ele será.
O ser humano saberia que encontrou a sua realização ao praticar
a virtude, isto é, ao se conduzir por um caminho intermediário entre
duas condutas extremas. Um exemplo: Entre ser um alcóolatra e não
beber álcool nenhum, a virtude estaria em saber beber moderadamente,
pensando que essa conduta moral é a melhor para toda a pólis/
sociedade. Se o ser humano conseguisse se guiar completamente pela

91
virtude, realizaria sua vida na pólis/sociedade e alcançaria a felicidade,
objetivo para o qual tende toda a existência humana.
No final das contas, a moral é uma questão de o ser humano
entender o fim da sua existência, por Aristóteles chamado felicidade.
É claro que esta palavra pode dizer muitas coisas para pessoas e
sociedades diferentes. De acordo com Aristóteles, não se trata de uma
satisfação corporal ou física, uma sensação de prazer e gozo, porque
ela escraviza as pessoas. Nem de honra ou prestígio ou fama, porque
é algo dependente de condições sob as quais o ser humano não tem
controle. Nem o acúmulo de riquezas, porque elas não são um fim,
mas meios para adquirir outras coisas que seriam fins. Nem mesmo
a contemplação das coisas mais elevadas, porque se encontram
fora da experiência do ser humano. A perfeita felicidade, conforme
Aristóteles, consiste primeiro, na atividade racional ou intelectual da
alma humana, em que, pelo estudo, o ser humano pode alcançar e
reter para si mesmo a plenitude de suas potencialidades, ou a Verdade,
ou o mais próximo possível que se pode chegar de Deus. Segundo,
consiste em viver a vida conforme as virtudes éticas, as quais serão
tratadas em uma lição posterior.
Até então, para a concepção clássica de ética, a cidade/pólis e,
nela, a sociedade, é o lugar da realização da conduta moral dos seres
humanos. No entanto, com o passar do tempo, as cidades gregas
perderam sua autonomia ao serem submetidas por dois grandes
impérios: o macedônio e o romano. Ao perder a referência da cidade
e como habitante de um império, o ser humano ficou sozinho no
mundo, o que levou o pensamento ético a sofrer duas profundas e
importantes modificações a partir de duas novas formas de pensar a
conduta moral humana sob estas novas condições.

5. Zenão
A primeira nova forma de pensar a Moral foi proposta pelos
Estóicos. Seu grande representante foi Zenão. Eles entenderam que o ser
humano é apenas ele mesmo, um indivíduo, preso de forças cósmicas,
divinas e racionais, que iam além da sua capacidade de resistência.
Ele não pode votar contra elas, como os antigos gregos. Ele não pode

92 Teologia Contemporânea e Ética


resistir quando os exércitos imperiais saqueiam e escravizam os seres
humanos. Não lhe cabe escolher, mas compreender racionalmente o
que cada momento exige dele e tentar corresponder fazendo o que é
bom da melhor maneira possível, sem se entregar ao pior que a sua
situação poderia forçá-lo. Por exemplo, Se ele virou um escravo de
um senhor romano, o melhor a fazer é viver de modo adequado a essa
nova condição e tirar o melhor proveito dela. Ou, em acontecendo
uma tragédia, não se deve reagir irracionalmente, dominado pelas
emoções e paixões, mas resistir firmemente raciocinando que há
uma razão na natureza ou no processo das coisas para isso, aceitar
resignadamente essa razão e fazer o melhor possível dentro das
possibilidades oferecidas.

6. Epicuro
A segunda nova forma de pensar a Moral foi proposta pelos
Epicureus. Seu grande representante foi Epicuro. Segundo eles, tudo
o que existe é matéria, é átomo, é indivíduo, inclusive o ser humano.
Não há uma cidade/pólis, uma sociedade, uma tradição, um império,
forças cósmicas, um destino ou um deus, nem mesmo uma felicidade,
para guiá-lo. De fato, sua conduta deve guiar-se ao máximo pela fuga
daquilo que lhe traz perturbação, seja uma lembrança do passado, seja
um instinto do corpo, um sentimento da alma ou uma ambição futura.
O seu alvo é a ataraxia, isto é, a quietude, a apatia, a insensibilidade,
algo parecido com o sono ou a morte.
Por vezes, a conduta dos Epicureus é chamada de hedonista,
devido à sua insistência na busca do prazer. Deve-se, porém, fugir
da ideia vulgar de prazer ou gozo, a qualquer preço, pois se trata
justamente o contrário disso. O prazer que trará dor ou sofrimento,
mesmo que gozoso no momento deve ser evitado ao extremo. Ao
contrário, o ser humano deve olhar para dentro de si e, guiado pela
sua racionalidade, perguntar o que quer, o que lhe faz bem, o que
lhe dá sentido e propósito, e perseguir isso até o fim da vida. Ele não
está preso a nada, nem ao passado nem ao presente, e deve seguir
apaixonadamente o caminho que lhe parece mais prazeroso quando
se trata de praticar o que é bom. Nisso estará a sua felicidade pessoal.

93
Conclusão

Nosso estudo nos levou ao surgimento do conhecimento ético,


localizado nas cidades gregas, seguindo sua evolução histórica até que
elas foram dominadas, sucessivamente, pelos impérios macedônio
e romano. Nesse período, muitos se dedicaram à reflexão quanto ao
agir moral do ser humano, adequado em meio às condições históricas
de cada um desses períodos. Na próxima lição, você será apresentado
a um período histórico fundamental para a ética ocidental, no qual
o Cristianismo praticamente determinou o agir moral dos seres
humanos.

Anotações
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94 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 13
Concepções de Ética II

Introdução

Estudaremos nesta unidade uma breve história da


Ética a partir de suas concepções no mundo antigo e a
compararemos com a concepção cristã.

Objetivos

1. Desenvolver uma noção histórica e de conjunto da


Ética, bem como diferenciar a concepção cristã de Ética.

95
Concepções de Ética II
Nesta aula, você terá acesso à concepção cristã da Ética. Este
estudo será muito importante porque situará você na maneira como
nossas sociedades ocidentais foram impregnadas com os princípios,
valores e normas reunidas sob o nome Moral cristã. Você verá como
ela se tornou necessária na construção de um novo mundo que segue
ao fim do Império Romano. Terá acesso ao pensamento ético de um
dos principais cristãos da época, o qual determinou muito a Moral
cristã, Agostinho de Hipona, e perceberá porque a Ética cristã é uma
ética da redenção. Por fim, também perceberá porque a Ética cristã
é uma ética do amor, analisando um belíssimo texto de Basílio de
Cesaréia.
Ao final, você perceberá que sendo herdeira, em alguns pontos
da concepção greco-romana de Ética, a Ética cristã a modificou
profunda e definitivamente ao inserir a novidade do Cristianismo na
sua compreensão de como deveriam ser as relações humanas no novo
mundo que surgiu.

1. O Cristianismo substitui o Império Romano no


mundo ocidental
É importante iniciarmos esta lição com um pouco de história.
E ela começa com a queda do Império Romano, no século IV. Com
ele, todo um mundo vai desaparecendo, inclusive sua moral. Toda
a reflexão ética que se tentou elaborar até então é revista diante das
novas condições de vida social.
No intervalo entre o século IV e o século VII, outro mundo vai
surgindo, gestado dentro dos escombros do Império Romano. Ele não
mais é uma sociedade de senhores e escravos reunidos em uma cidade/
pólis. Nem mais uma sociedade de súditos e Imperador miscigenados
em uma grande extensão territorial. Agora, passa a existir uma
sociedade de pequenos proprietários de terras com seus servos, que se
submetem uns aos outros em uma espécie de dependência do menor
proprietário para o maior proprietário. A fragmentação territorial
e a hierarquização social serão as marcas desse período, as quais

96 Teologia Contemporânea e Ética


consolidarão as relações humanas no futuro Ocidente por mil anos.
As relações humanas neste mundo serão regulamentadas por
uma nova forma de vida social: o Cristianismo. Ele determinará uma
nova moral, agora religiosa, bem como proporá uma nova reflexão
ética, incluindo um personagem fundamental: Deus, tutelada por uma
instituição que se colocará acima de todos: a Igreja Católica.

2. O Cristianismo constitui a nova moral do


mundo ocidental
É preciso entender como o Cristianismo ocidental chegou a
elaborar uma nova moral religiosa para as relações humanas no novo
mundo que surgia. A preocupação inicial
do Cristianismo era anunciar a esse mundo
a salvação disponibilizada por Deus a partir
da encarnação de Jesus Cristo. Esta salvação
significava a redenção da humanidade por
meio de Jesus Cristo. Sob essa ótica, a condição
humana passou a ser descrita como carente
de redenção, isto é, pecadora, ignorante e
necessitada de vida. Jesus Cristo se tornou o
mediador entre a humanidade nessa condição e
o conhecimento, vida, fé e imortalidade de que
ela precisava. Isso queria dizer que somente por Fonte: Depositphotos
meio da fé em Jesus Cristo e do seu exemplo de
vida o ser humano seria capaz de viver uma vida moral agradável a
Deus.
A partir desta concentração cristológica, o Cristianismo
desenvolveu certas definições gregas básicas sobre a natureza do ser
humano. Segundo ele, este não é mais um ser de relações sociais na
cidade ou no Estado ou na natureza, mas consigo mesmo e com Deus.
O Cristianismo acentua a visão grega da divisão da natureza humana
entre alma e corpo. Para ele, a alma é dotada de livre arbítrio e capaz
de decidir entre o bem e o mal, desde que esclarecida pela sua razão.
Agora, porém, o ser humano não presta contas à sua razão, mas a Deus
que lhe deu a capacidade racional de julgar.

97
Outra modificação importante que o Cristianismo produziu
sobre as ideias gregas foi a identificação do mal com o pecado e
a culpa. Para o Cristianismo, o pecado é a opção da alma humana
pelo mal. Por que ela escolhe pecar? Os pensadores cristãos daqueles
tempos tiveram dificuldades para responder a essa pergunta. Elas
variaram, desde a responsabilização dos demônios que tentam o ser
humano até um ambiente que favorece ou determina essa opção.
Cedo, a explicação retorna ao Jardim do Éden, onde o primeiro casal
humano cede às instigações malignas, desobedece a Deus e atrai sobre
si e a humanidade todas as consequências do seu ato irresponsável.
Veja que, agora, a questão moral não se trata apenas das condições
presentes, mas de lidar com uma herança de pecado e culpa que aflige
e determina boa parte da conduta humana atual.
Entretanto, permanece fundamental para esses pensadores
cristãos a ideia de que o ser humano traz consigo uma disposição para
realizar o que é bom, nele colocada pelo
próprio Deus quando da sua criação.
A questão é como fazer prevalecer
essa boa disposição. A resposta cristã
é que, por sua encarnação, Jesus Cristo
possibilitou a retomada do projeto
adâmico iniciado por Deus, que criou
macho e fêmea bons, permitindo
recuperar em Cristo o que se perdeu em
Adão, tornando-se ele o iniciador de
uma nova humanidade, por ele redimida
da condição adâmica. Por sua morte na
cruz, Jesus Cristo levou sua obediência
a Deus às últimas consequências e
resgatou os seres humanos da escravidão
Fonte: Depositphotos
aos maus desejos, capacitando-os a
obedecerem a Deus. Ao aceitar a obra de Cristo em seu favor, cada ser
humano pode acumular mérito diante de Deus por suas boas ações, e
oferecer reparação ou satisfação a Deus por suas más ações. Assim o
Cristianismo elaborou o fundamento de sua moral cristã e preparou o
mundo ocidental para viver sob essa orientação por mil anos.

98 Teologia Contemporânea e Ética


3. A contribuição de Agostinho de Hipona
Existiu um grande cristão que, durante esse período, muito
contribuiu para uma ética cristã filosófica, isto é, para fundamentar
racionalmente a Ética cristã: Agostinho de Hipona.
Agostinho nasceu na cidade de Tagaste,
norte da África, no ano 354 e morreu em 430.
Durante a sua vida, ele assistiu a decadência
e fim do Império Romano e a ascensão do
Cristianismo, ao qual se converteu, tornando-
se bispo e, depois, um grande pensador das
questões que os novos tempos colocavam à sua
fé cristã.
Agostinho argumenta especificamente
sobre o problema do mal. Tem ele o mal como
algo presente, chega à definição do mal como
Agostinho de Hipona uma perversão da vontade humana desviada da
Fonte: Wikimédia Commons
Substância Suprema - Deus. Como Substância
suprema, Deus é suprema Existência e Bondade, e os seres humanos
devem procurá-lo para alcançar a Verdade. Julgar que o caminho para
se atingir a Verdade seja humano, ou dependa apenas de esforços
humanos, constitui soberba, pois a Verdade, que é a felicidade, é
externa ao ser humano e dependente de Deus. O conhecimento da
Verdade, que constitui a felicidade humana, é dada graciosamente por
Deus a qualquer ser humano a quem Deus queira dá-la.
Qual deve ser a conduta do ser humano, como ele deve agir, se
ele parte em busca do conhecimento da Verdade em Deus? O homem
deve procurá-la através da purificação da alma. Para purificar a alma
o homem deve reconhecer a condição miserável da humanidade após
o pecado original, e deve ter a humildade de reconhecer a felicidade
como existente fora dele mesmo. O ser humano deve se tornar digno
de receber a graça. Isso significa querer o bem, ainda que não possa
realizá-lo por si mesmo.
A purificação da alma para receber o conhecimento da Verdade
é equivalente a uma purificação da conduta. Agostinho defende
ardorosamente um ascetismo no comportamento moral dos seres

99
humanos, chegando a condenar o casamento e a procriação, e a cantar
a maravilha do celibato. O homem precisa se livrar das paixões, e por
paixões entende-se tudo aquilo que move (ou comove) a alma para
longe do seu objetivo: conhecer a Verdade que está em Deus. Estando
a alma purificada, está preparado o terreno para conhecer o Bem que
é conhecer a Deus.
Para Agostinho, todos os seres humanos querem ser alegres
e felizes, mas a verdadeira alegria só vem de Deus. A carne e seus
apelos, a matéria, podem levar o homem a confundir-se e fazer aquilo
que deseja fazer, mas não aquilo que realmente quer fazer. Deus é a
felicidade porque é a Verdade. E a alegria reside na Verdade. Esta é
uma só, e Deus a sua fonte. Como estímulo ao ser humano, Agostinho
aponta o exemplo de Jesus Cristo, que foi ao mesmo tempo Deus e
homem, verbo imortal e carne perecível. Ele dedicou a sua vida à busca
da vontade de Deus, renunciando a tudo aquilo que pudesse afastá-lo
desta busca, inclusive a própria vida.
Para o Cristianismo, todo esse exercício de autoconhecimento
em busca do conhecimento de Deus, uma vez alcançado, redireciona o
ser humano para uma ação amorosa no mundo, entendida como fazer
da prática do bem a razão e propósito maior da existência humana. É
assim que o Cristianismo introduz nas relações humanas na sociedade
ocidental o ideal do agir caridosamente de modo que todos tenham
suas carências mínimas atendidas.
Veja o que diz um desses cristãos, chamado Basílio, bispo da
cidade de Cesaréia, que viveu entre 330 e 379.
Reconhece, ó homem, o teu doador. Recorda-te de ti mesmo:
quem sou, que coisa administra, de quem recebeste, porque
foste preferido entre muitos. És servidor da bondade de Deus,
administrador dos teus companheiros de servidão. Não creias
que tudo seja destinado a teu ventre. Considera os bens que
estão nas tuas mãos como coisa de outros: por breve tempo
alegram-te, depois deslizam e desaparecem rapidamente; deles
deverás prestar contas pormenorizadas. Embora tenhas tudo
bem fechado com portas trancadas, amarrado e selado, todavia,
as preocupações te impedem o sono. Ruminas dentro de ti,
estulto conselheiro de ti mesmo: “Que farei?”. Seria, ao invés,

100 Teologia Contemporânea e Ética


ocasião de dizer: “saciarei quem tem fome, abrirei meus celeiros
e chamarei todos os indigentes. Imitarei o benéfico edito de
José: “Quantos não tenham pão, vinde a mim; tome cada um
o suficiente do dom concedido por Deus, como de uma fonte
comum” (Gn 47,13-26). Por que não és assim também tu? Tens
medo de que outros tirem proveito destes bens e, ruminando
na alma sentimentos maus, meditas, não tanto como distribuir
a cada um segundo a necessidade, mas como ajuntar ainda
mais bens e tirar de todos os proventos para ti.

Conclusão

Por meio desta lição, você descobriu que o Cristianismo não


é apenas uma religião de salvação, mas uma religião que possui
uma moral, isto é, que propõe regular o agir moral do ser humano,
oferecendo-lhe uma sociedade cristã como lugar no qual viver.
Vimos como Agostinho e Basílio de Cesaréia, dentre muitos outros,
refletiram sobre a vida cristã como uma ética que consistia na busca
da Verdade, em Deus; e na imitação da caridade, em Cristo. Agora, na
próxima lição, veremos como o mundo moderno ocidental representa
uma releitura da moral cristã, ao mesmo tempo em que questiona
profundamente a sua influência sobre o agir moral do ser humano.

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Anotações
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102 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 14
Ética Cristã: Desafios da Modernidade

Introdução

Estudaremos nesta unidade as concepções modernas


de Ética, e sua importância para a construção da concepção
de Ética na contemporaneidade .

Objetivos

1. Compreender como as discussões modernas


em relação à Ética estabelecem o pano de fundo para as
discussões contemporâneas.

103
Ética Cristã: Desafios da Modernidade
Pr. Sidney de Moraes Sanches
Nesta aula, você será introduzido à Ética moderna. Você
compreenderá porque ela recebe esse nome, devido a mais um conjunto
de profundas transformações que a humanidade, no Ocidente, veio
a experimentar a partir do Século XVI. Nós, neste início do Século
XXI, somos herdeiros de todas aquelas transformações e, portanto,
das concepções morais que serão o conteúdo da Ética desse tempo.
Dentre as muitas éticas, pois é assim que se começa a falar desde então,
no plural, destacaremos aquela de um importante filósofo prussiano,
chamado Immanuel Kant. Você perceberá como seu pensamento sobre
a Moral se tornou a base, a origem, das éticas que ainda pensamos
hoje. A seguir, veremos como outros filósofos, em diálogo com o
pensamento ético de Kant, questionarão e até proporão revisões em
seu pensamento ético.

1. As condições gerais da Modernidade ocidental


A Modernidade ocidental se caracterizou por um novo conjunto
de mudanças que aconteceram no mundo ocidental a partir do século
XVI, e se intensificaram nos séculos XVIII e XIX, sendo fundamentais
para nosso conhecimento do mundo de hoje.
Essas mudanças afetaram profundamente a concepção cristã
de ética vigente até o início desse período. Sánchez Vásquez descreve
essas mudanças assim:
Na ordem econômica, as forças produtivas se ampliaram a partir
do desenvolvimento da ciência e das novas relações capitalistas de
produção.
Na ordem social, a burguesia se fortaleceu ao estender seu poder
econômico a todos os domínios, inclusive a organização política
monárquica absolutista.
Na ordem política, os fragmentados estados resultantes da ordem
feudal foram substituídos por estados nacionais centralizadores.
Na ordem espiritual, o Cristianismo deixa de ter um lugar
referencial na determinação do modo de ser e pensar, e a Igreja Católica

104 Teologia Contemporânea e Ética


perde sua função orientadora na nova sociedade.
Na ordem religiosa, o Cristianismo se fragmenta a partir dos
movimentos provocados pela Reforma Protestante, e religiões como o
Judaísmo e o Islamismo e, mais tarde, as religiões orientais, adquirem
lugar equivalente ao Cristianismo na nova sociedade.
Em meio às mudanças, era natural que as pessoas começassem
a se ver de uma maneira diferente da concepção cristã prevalente até
então. Elas chamaram esse momento de Ilustração, Iluminação ou
Iluminismo, ou Tempo das Luzes. Essa experiência intelectual as levou
a novas compreensões de sociedade e a procurar, por conseguinte,
novas maneiras de se relacionar moralmente com as demais. Passa
a existir uma multiplicidade de propostas éticas. Uma tendência era
comum a todas, porém: o caráter antropocêntrico de todas elas. Este é
o primeiro ponto que vamos estudar.

2. Características gerais da ética moderna no


Ocidente
Duas atitudes das pessoas neste início de Modernidade ocidental
marcarão, profundamente e para sempre, os seres humanos. A primeira
será tremendamente negativa: a recusa da tradição e do coletivo. A
segunda é bastante positiva: a afirmação da autonomia e do indivíduo.
Perceba que uma coisa tem tudo a ver com a outra. Pois, é normal que
a tradição seja sustentada por uma experiência bastante coletiva da
existência à qual todos devem submissão. Isto se chama heteronomia,
pois a tradição é uma lei externa a qual todos se obrigam internamente.
Até então, cabia ao Cristianismo cumprir esse papel da tradição, e,
para ele, a lei de Deus ou sua vontade era o que chamava todos os seres
humanos à mesma convivência.
A autonomia acontece quando a experiência individual se
eleva acima da coletiva, permitindo que as decisões pessoais se
sobreponham àquelas definidas de antemão pela tradição. A lei, nesse
caso, está dentro do indivíduo e é a partir dele que as questões ao seu
redor devem ser julgadas e decididas.
Se você entender por lei o que chamamos de Moral, aprendida na
primeira lição, tudo ficará mais claro. Essa mudança antropocêntrica,

105
do objeto (fora do homem) para o sujeito (dentro do homem), obrigou
a refazer toda a concepção de ética, justificando chamá-la de moderna.
Tudo passa, portanto, pelo ser humano. Quem é ele? Sua
identidade e valor são medidos em relação a ele mesmo, e não mais
em relação a Deus, como antigamente. Ele é dotado de razão, de um
corpo, de uma vontade. Ele não apenas busca a Deus, mas pode atuar
no mundo à sua volta provocando profundas transformações. Para
isso, ele mesmo desenvolve recursos pela denominada ciência, cujo
conhecimento lhe é mais necessário que o próprio conhecimento de
Deus.
O ser humano se torna tão importante na ordem como as coisas
se organizam, que sua vida, seus interesses, suas necessidades, sua
existência, se colocam no centro de suas atividades. Se ele pode e deve
intervir em todas as coisas para a melhoria e progresso da própria
vida, também deve fazê-lo para estabelecer quais princípios, valores e
condutas são mais adequadas às suas mesmas necessidades, interesses
e existência. Sua ética partirá dele mesmo, sendo ele mesmo o próprio
fim da ética.
É claro que o Cristianismo não acabou e nem sua concepção de
ética. Porém, doravante, ele estará separado da razão, da sociedade, do
ser humano, devido à sua preocupação primeira com Deus. Quando o
ser humano tiver que tomar alguma decisão moral, não é a vontade de
Deus que ele vai procurar, mas a sua própria razão.

3. A contribuição de Kant para a Ética moderna


ocidental
Dentre os muitos filósofos que proporão novas éticas adequadas
a esta nova sociedade, nenhum deles foi tão bem sucedido em
modernizá-la quanto Immanuel Kant.
Kant nasceu em Königsberg, em 1724, e morreu lá mesmo, em
1804. Para ele, todo conhecimento começa com a experiência que o ser
humano faz do mundo. A questão é saber se o que experimentamos
tem um fundamento adequado, seja no que sabemos de antemão
sobre aquela experiência, seja no que sabemos a partir da experiência.
Será que é possível afirmar algo sobre alguma experiência no mundo

106 Teologia Contemporânea e Ética


que seja bem fundamentada e, portanto, válida
para qualquer outra experiência semelhante
em qualquer lugar do mundo? Sim, se o
indivíduo for capaz de fazer uma síntese
tanto da experiência quanto do que ele sabe
sobre ela. Tudo depende, então, da capacidade
racional desse indivíduo enquanto um sujeito
pensante. Assim, não é a experiência que faz
o sujeito, determinando o que ele pode saber,
Immanuel Kant e, assim, quem ele é, mas o sujeito é que faz
Fonte: Wikimédia Commons a experiência, explorando as possibilidades do
que pode saber sobre ela. Naturalmente, aquilo
que está fora do alcance experimental do sujeito, ele nada pode saber,
a princípio, sobre ele, e isso é válido inclusive para Deus.[2]
Qual a importância do pensamento de Kant para a concepção
moderna de ética? Kant escreveu algumas obras sobre esse assunto
e duas delas são muito importantes: Crítica da Razão Prática e
Fundamentação da Metafísica dos Costumes.[3] Tentaremos resumir
para você as ideias mais importantes da Primeira Seção desta última
obra, para que compreenda como a Moral é transformada pelo
pensamento de Kant.
Segundo Kant, a coisa mais importante e que define o espírito
humano ao final das contas é a vontade, a capacidade inerente à
sua natureza, de querer. Segundo ele, você pode ter talentos, bom
temperamento, boas qualidades, muito dinheiro e influência, mas nada
disso define uma vida bem vivida, uma felicidade de viver como o fim
de uma vida moral. E por quê? Porque todas essas coisas podem ser
deturpadas, direcionadas para fins incorretos e, portanto, promover a
infelicidade humana e da própria pessoa. Por exemplo: uma fortuna
não é certeza de vida feliz a menos que se saiba e se queira fazer o que
é certo com ela. Então, a vontade é o bem mais importante que o ser
humano possui e que determina sua vida moral em sociedade e no
mundo. É claro que a vontade assim entendida como boa tem valor
apenas por isso e não pela utilidade ou benefício que ela possa trazer.
Isto é, se alguém tem essa boa vontade e não tem dinheiro nenhum, já
tem valor só por possuí-la, mesmo que não consiga realizar nada do

107
que queira fazer de bom.
Há, porém, uma grande dificuldade em se compreender essa
ética racional. Pense na situação de uma pessoa que sabe que precisa
comer para preservar a própria vida. Ela está fazendo bem a si mesma
ao cumprir a finalidade da sua existência, comendo. Que há de moral
nisso? Agora, pense em uma pessoa que não tem a mínima vontade
de comer, mas se alimenta porque precisa estar viva para cuidar dos
próprios filhos. Agora, sim, trata-se de uma decisão moral, que custou
agir conforme a vontade racional, não de acordo com algum instinto
natural de sobrevivência. Pense, ainda, em uma mãe ou pai que sabe que
precisa se alimentar para continuar vivendo. No entanto, sua família
tem pouco alimento, e não será possível que todos comam. Não é
verdade que eles terão que decidir entre comer e deixar de comer, para
que os filhos comam, mesmo que contrariando os próprios instintos
de sobrevivência? Em ambos os exemplos, não foi o instinto que
resolveu, mas a vontade racional fazendo com que a pessoa tomasse
uma decisão contrária ao próprio desejo e profunda necessidade? E
porque os pais fariam isso? Kant lembra uma palavra que será muito
importante para sua ética: dever.
Há muitas situações, porém, em que a palavra dever não se aplica.
Por exemplo, quando um guarda de trânsito está em um semáforo
apagado, controlando o trânsito para que não haja batidas entre os
carros, não se trata de um dever ou obrigação moral, mas apenas
um cumprimento da função na sociedade para o qual é remunerado
por ela, mesmo que mal remunerado. Quando um verdureiro decide
vender pelo mesmo preço o tomate, ainda que pudesse fazer preços
mais altos para clientes mais ricos, ou enganar os compradores que
não sabem fazer contas, ele está pensando em não perder a clientela
em troca de um lucro rápido, mas prejuízo certo mais à frente, pois
esses clientes não retornarão para comprar de novo, quando souberem
que foram enganados por ele. Quando alguém resolve ajudar outra
pessoa financeiramente porque tem dinheiro para isso, porque é
Natal, porque é religioso, porque é político, porque é dirigente de
ONG, porque é assistente social, padre, pastor, etc, não há nenhum
valor moral nesta conduta, pois ela é parte da própria condição que se
espera dessas pessoas em tais circunstâncias.
Ao contrário, é cumpridor do dever moral aquela pessoa
que, mesmo sem encontrar nenhum sentido para viver, continua a

108 Teologia Contemporânea e Ética


preservar a própria vida; e sem nenhum recurso financeiro ou não
gostando das pessoas, ainda assim ajuda a muitos; ou mantém os
preços das verduras para atender uma clientela que não poderia pagar
mais alto por elas com prejuízo próprio. Para Kant, a máxima de Jesus:
“Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos”, resume bem o que
ele está pensando. Quem cumpre esta ordem de Jesus, sabe o que é
agir moralmente, pois é totalmente contraditório e prejudicial a si
mesmo amar e fazer bem a alguém que poderia lhe fazer mal. Vê-se,
portanto, que não são os propósitos e fins das ações que contam como
morais, mas certo princípio da vontade ou do querer, quando a ação é
praticada por dever moral.
Bem, essa forma de pensar e valorar a ação moral deixa de fixar
esta ação nas realizações das pessoas ou nas suas intenções, para fixá-
las na vontade de agir bem. No entanto, se nem as ações concretas
e nem as inclinações naturais são critérios para esse agir bem, resta
apenas à lei moral determinar este agir. Então, a gente tem a seguinte
equação: vontade mais lei moral é igual a agir bem.
Agora é importante entender o conceito de lei moral ao qual
Kant refere:
O objeto do respeito é, portanto, simplesmente a lei, quero
dizer, aquela lei que nos impomos a nós mesmos, e, no entanto, como
necessária em si. Como lei que é, estamos-lhe subordinados, sem
termos que consultar o amor-próprio; mas como lei que nós nos
impomos a nós mesmos, é ela uma consequência da nossa vontade.[4]
Você entende que ele não está falando de um código de leis de
uma sociedade, mas de uma obrigação moral que nos impomos a
nós mesmos, interiormente. Isto requer que cada ser humano pense
sobre como deseja que suas ações sejam avaliadas pelos demais seres
humanos e aja de conformidade. Segundo Kant, cada ser humano tem
que viver de acordo com uma máxima, uma espécie de lei moral geral
das ações, que ele mesmo traduziu assim:
Devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também
que a minha máxima se torne uma lei universal.
Para ilustrar sua máxima, Kant dá um exemplo muito comum a
todos nós. Quando alguém está em dificuldades com outra pessoa, é
comum ser tentado a fazer uma promessa sem, contudo, ter a intenção
verdadeira de cumpri-la. Ele só quer se livrar do problema do momento.
Você já esteve em situação parecida? Entretanto, se alguém faz uma

109
falsa promessa para conseguir se livrar de um problema momentâneo,
esse comportamento pode trazer problemas maiores depois, e, assim,
ele prefere não fazer a falsa promessa. A este comportamento moral,
Kant chama prudência ou esperteza.

4. Críticas modernas e propostas alternativas à


ética de Kant
Kant foi bastante criticado, nos Séculos XIX e XX, por tornar
a conduta moral um dever abstrato e universal, deixando de lado a
conduta do ser humano nas condições concretas colocadas pela
sociedade, sobretudo nas relações de produção e trabalho das
economias industrializadas.

Karl Marx
Para Karl Marx, as sociedades industrializadas dividiram os
seres humanos em classes, e ele reflete sobre esse ser humano que
deve conduzir-se moralmente em meio às relações sociais concretas
das sociedades divididas em classes. Para ele, a conduta moral de um
indivíduo depende das condições materiais nas quais vive e trabalha
e do grupo ao qual ele pertence. Esta conduta se opõe à conduta
moral dos outros grupos da mesma sociedade. Em sociedades
divididas pelas relações de produção e trabalho, o grupo que tiver o
domínio da produção governará os demais, impondo a sua conduta
moral a estes, pois detém os meios econômicos e sociais para isso. A
solução apontada por Marx são as sociedades sem classes, nas quais a
convivência comum promoveria uma espécie de superestrutura moral
na qual o tratamento seria igual para todos. Sua ideia é que não há
como requerer a mesma conduta moral para todos, enquanto uma
sociedade não disponibiliza a justiça social e econômica para todos.

Nietzsche
Para Nietzsche, a conduta moral não se trata de um dever, mas
de um poder. O poder de realizar a própria vontade e instintos e de,
efetivamente, realizá-los. Aqueles dentre os seres humanos, temerosos
da conduta de alguém que agisse conforme seu poder, trataram de
colocar freios à sua conduta por meio da norma moral. Desse modo,

110 Teologia Contemporânea e Ética


a norma moral, sobretudo a grega e a cristã, visa restringir, reprimir,
controlar, enfraquecer esse poder. Todavia, o ser humano que detém o
poder de realizar deve utilizá-lo, livrando-se de qualquer restrição que
a norma moral lhe imponha, pois, só desta maneira, obterá a plena
finalidade da felicidade humana: a própria satisfação.

Freud
Para Freud, a conduta moral de um sujeito racional e autônomo
guiada pela norma moral não leva em consideração todo um universo
de desejos que subjazem no interior do ser humano. Ao lhe impor a
norma moral, a sociedade faz com que ele reprima seus desejos, ela
se torna controladora deles, contradizendo a própria ideia de sujeito
racional e autônomo. Por outro lado, não há apenas uma vida racional
no ser humano, mas também uma vida de paixões. A plena realização
moral não consistiria somente na realização da vida racional, mas
também da vida passional. O grande desafio moral das sociedades é
equilibrar as duas vivências humanas de modo que a conduta moral
traga felicidade e realização ao ser humano.

Kierkegaard
Uma outra reflexão, a partir da noção de norma moral de Kant,
foi elaborada por Kierkegaard. Ele foi um homem muito preocupado
com as escolhas morais que fez durante a vida e com as angústias que
elas lhe provocaram. Por exemplo: em certo momento da vida ele ficou
muito angustiado entre casar ou não casar, pois já estava noivo. E por
quê? Porque ele tinha receios de que, casando, talvez o casamento lhe
impusesse obrigações morais que ele não quisesse sustentar ao longo
da vida, ou, pior ainda, ao ter que conviver com essas obrigações,
imporia um grande sofrimento à sua futura esposa. Bem, ele decidiu
terminar o noivado, deixando a ex-futura esposa bastante magoada
com ele. Assim, Kierkegaard e os futuros Existencialistas, ensinaram
que o ser humano, enquanto possuidor de uma razão que o torna livre
e autônomo nas suas decisões morais vive à beira de uma angústia
infinita, pois é sempre difícil dizer qual seria a melhor escolha. Portanto,
a norma moral se torna uma questão a ser resolvida livremente no

111
interior de cada ser humano, e é relativa a cada situação em que ele
se encontra, ficando à mercê de sua própria decisão em cada situação.

Conclusão

Bem, temos que encerrar a lição. Nela, você aprendeu sobre o


pensamento ético na Modernidade. Como seu ponto de partida está
no ser humano enquanto um sujeito racional e autônomo, construído
por Kant, e como essa construção conduziu a questionamentos e até
ao próprio esvaziamento de qualquer propósito moral a este sujeito.
Espero que você tenha se interessado e procure conhecer mais sobre
esse período excitante para a conduta moral dos seres humanos no
mundo Ocidental. Nos dias de hoje, a tentativa é refazer o pensamento
ético sobre a Moral, algo que veremos na próxima lição. Até lá, então!

Referências Bibliográficas

VÁSQUEZ Sánchez Adolfo. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


1999, p. 280.
Você pode saber mais sobre esse assunto lendo: MORA J. Ferrater. Dicionário
de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, Tomo III, p. 1623-1630.
Elas foram editadas em Português, por várias editoras. Basta você procurar
em qualquer biblioteca ou livraria.
KANT Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São
Paulo: Abril Cutural, 1980, p. 115.
[1] VÁSQUEZ Sánchez Adolfo. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1999, p. 280.
[2] Você pode saber mais sobre esse assunto lendo: MORA J. Ferrater.
Dicionário de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, Tomo III, p. 1623-1630.
[3] Elas foram editadas em Português, por várias editoras. Basta você
procurar em qualquer biblioteca ou livraria.
[4] KANT Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São
Paulo: Abril Cutural, 1980, p. 115.

112 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 15
Ética das Virtudes

Introdução

A Ética na contemporaneidade depara-se com


a chamada pós-modernidade e as novas inquietações
humanas dessa época. Retomar temas antigos sob novas
roupagens é uma das suas características. É nesse esforço
que compreendemos também a Ética das Virtuais.

Objetivos

1. Reconhecer as discussões atuais sobre Ética, à


luz do seu tratamento histórico e das inquietações do ser
humano contemporâneo.

113
Concepções Contemporâneas e a Ética das Virtudes
Pr. Sidney de Moraes Sanches
As tentativas de dar um nome à experiência humana ocidental
e globalizada atual ainda não obtiveram unanimidade. O nome pós-
modernidade tem-se mostrado o mais promissor, embora ele se pareça
como um guarda-chuva ou um armário sob ou dentro do qual se
colocam muitos objetos diferentes entre si.
Usa-se, ainda, outros nomes tais como: segunda modernidade,
modernidade tardia, alta modernidade, hiper-modernidade, ultra-
modernidade, modernidade contemporânea ou modernidade radical.
Diferencia-se, ainda, entre pós-modernidade como um modo de estar
no mundo, que produz uma forma de pensar o mundo e a si mesmo
enquanto parte dele; e pós-modernismo, como a diferenciação histórica
que a pessoa faz desse modo de estar no mundo em comparação com
outros períodos, por exemplo: pré-moderno e moderno.1

1. As muitas identidades do sujeito moral


contemporâneo
Para nosso estudo, é importante reconhecer a discussão feita
ao redor da experiência do sujeito moral desde a sua identidade que
transita através destas épocas distintas na experiência ocidental do ser
humano.
Stuart Hall vê a identidade deste sujeito moral sendo modificada
ao longo das diversas épocas históricas que demarcam o Ocidente.2 No
Iluminismo, o indivíduo, no masculino mesmo, era concebido como
uma pessoa única e una, dotado de razão, de consciência e de ação
próprias, coordenadas por um núcleo ou eu interior que ele já possuía
quando do seu nascimento e se desenvolvia ao longo de sua existência.
Na Modernidade, o indivíduo, ainda masculino, era concebido como
reflexo da crescente complexidade do mundo moderno, dependente
da interação entre seu núcleo ou eu interior e os eus dos demais
seres humanos, habitando em uma cultura, na qual, ao longo da sua
existência, vão se formando os seus valores, sentidos e símbolos,
inclusive morais.

114 Teologia Contemporânea e Ética


No mundo atual, o indivíduo, agora não mais apenas masculino,
é o resultado das muitas mudanças na paisagem externa ao seu núcleo
ou eu interior, as quais, ao entrarem em colapso ou se fragmentarem,
também desestruturam o indivíduo, que não mais possui um eu
coerente, mas fragmentado em múltiplas identidades.

2. A modernidade atual como condição utópica


da existência humana
É importante reconhecer que a pós-modernidade constitui um
estilo de vida, um modo de estar no mundo, um projeto de sociedade
para o ser humano, até uma utopia! Segundo José Maria Mardones,3
a pós-modernidade propõe, sim, uma utopia, que consistiria de:
resistência ao projeto tecno-burocrático da civilização moderna e a
ênfase no indivíduo autônomo, criativo, desde a sua própria experiência
humana particular. Mardones conclui que:
a dialética modernidade/pós-modernidade expressa um debate
sobre a sociedade atual, e, por isso mesmo, uma persuasão
começa a existir cada vez mais: a necessidade de reformular
as propostas da razão ilustrada com suas consequências sócio-
políticas, estéticas e morais.4
Percebeu esta última frase: “reformular as propostas da razão
ilustrada com suas consequências sócio-políticas, estéticas e morais”?
Algumas palavras já são familiares a você e muito importantes
para nosso curso: “razão ilustrada”, se refere à razão modelada pelo
Iluminismo, cuja Moral foi estudada na aula passada; e morais (assim
mesmo, no plural), não diz respeito apenas a qualificar a palavra
consequências, mas à pluralidade de éticas que convivem umas com as
outras nesse tempo de hoje.

3. A busca por uma ética contemporânea


Nosso estudo será dividido em dois momentos. No primeiro se
preocupará em entender melhor as exigências éticas do que chamamos
mundo pós-moderno. No segundo, buscaremos pela possibilidade de
um discurso ético acessível e necessário às atuais condições morais de

115
convivência humana em nossa sociedade global tão diversificada.
Existe um livro interessante, escrito por Jacqueline Russ,
chamado Pensamento Ético Contemporâneo.5 Nesse pequeno livro,
ela constata um renascimento do debate ético e a multiplicação das
discussões sobre ética nos dias atuais. As pessoas falam de bioética,
ética dos negócios, moralização da política e do uso dos bens públicos;
elas discutem sobre o uso ético do dinheiro, ou que ética permite que
uma sociedade deixe milhões de brasileiros à margem dos benefícios
que ela está produzindo, e assim por diante.
Russ percebe, porém, que existe um problema com essa demanda
por ética: ninguém saberia, exatamente, quais os parâmetros para
fundamentar uma nova ética para um mundo globalizado, onde as
sociedades socializam seus problemas e suas oportunidades, onde a
tecnologia e a economia afetam a todas as sociedades, no qual não vale
a ética de uma sociedade particular.
Russ explica quais são os desafios morais para propor uma Ética
contemporânea:

O vazio ético
Não existe um lugar comum, hoje, de onde se partir para falar
se uma lei é justa ou não, o que tem valor moral e o que não tem,
se existe um princípio organizador do agir moral, e mesmo se o ser
humano é dotado de um senso ou uma consciência moral inerente
a ele. A palavra para descrever essa característica presente se chama
niilismo. Quer dizer: como julgar algo no mundo se não existe uma
base comum, um sentido comum, um propósito comum, uma razão
comum para as ações humanas?

O fim das narrativas totais


Entende-se por narrativa total aquela narração da história
que sempre nos conduzia para um propósito final, normalmente
redentor. Muitas dessas narrações fundamentaram, em algum tempo,
o comportamento humano. O Cristianismo, com seu fim direcionado
para Deus que a tudo abrange, é uma das mais importantes. O
Marxismo, com seu fim orientado para uma sociedade sem classes,

116 Teologia Contemporânea e Ética


é outra dessas narrações. Ainda outras, são: a razão de Kant, com sua
confiança em um ser humano capaz de decidir e agir por si mesmo a
partir de uma lei racional interior. O Capitalismo, com sua proposta
de uma sociedade livre para produzir e consumir. A Democracia, com
sua confiança na capacidade de um povo se organizar e decidir por si
mesmo o que quer. Você pode estar pensando: nada disso acontece
de verdade! Você duvida de todas essas promessas, que é o que essas
narrações são, e, assim, fica cético, incrédulo. Se não existe uma
história que te diz que há algo te esperando lá na frente, pela qual você
pode julgar seu agir moral, e vê-lo recompensado, não existem mais
normas morais que obriguem alguém a fazer o que é certo e evitar
o que é errado. Você está sozinho e desamparado de valores morais
neste mundo.

O individualismo
As narrativas totais tendiam a formar e modelar tradições que
governavam a conduta moral humana. Com o seu fim, é possível
imaginar o que ocupa o seu lugar: o indivíduo. Esta é a senha para
a discussão da emergência do individualismo contemporâneo, uma
conduta humana que privilegia o indivíduo em relação à coletividade.
Certamente o indivíduo sempre esteve nas preocupações da Moral
ocidental, pois é a partir dele que se pode falar de um sujeito com
obrigações morais em uma sociedade. Na Modernidade, a ética
acentuou a individualidade ao libertar o ser humano ocidental de toda
forma de poder ou participação social constrangedora imposta de fora
para dentro sobre ele. Nesta idade contemporânea, porém, trata-se da
própria recusa do ser humano ocidental em conviver com qualquer
regra, disciplina ou norma moral que o sujeite à uniformidade coletiva.
Descrita por Russ assim,
As delícias do narcisismo, bem mais que o acesso a uma
autonomia, a explosão hedonista, mais que a conquista da
liberdade. Promoção dos valores hedonistas, permissivos,
psicologistas, culto da “descontração”, vinculação às
particularidades idiossincráticas, eis o que se esboça na idade
pós-moderna. Assim, entramos nessa do narcisismo.6

117
A questão que Russ levanta é a seguinte: como a Ética pode falar
de uma moral válida em uma era dos homens vazios de valores, senso
e consciência moral comum?

As novas tecnologias
A Ciência, e a sua face mais visível, a tecnologia, acabou por
constituir mundos à parte dos seres humanos, conduzindo-se por suas
próprias regras. Assim, ciência e
tecnologia passaram a representar
não apenas oportunidades e
benefícios para os seres humanos,
mas, também, ameaças e perigos.
Isto parece piorar quando a
ciência e a tecnologia começam
a entrar no próprio território da Fonte: Depositphotos
natureza humana, coisa antes
reservada para ciências como a Teologia e a Filosofia, levantando a
possibilidade da alteração desta natureza, colocando em cheque tudo
o que até agora se conhece como humanidade. O que fazer quando a
ciência e a tecnologia querem dizer e determinar a natureza e conduta
dos seres humanos, em uma espécie de desmoralização da moral,
isto é, removendo todos os valores, senso e consciência moral cuja
referência sempre foi o próprio ser humano? Russ conclui afirmando
a falência de toda moral conhecida pelos seres humanos até os dias
atuais, porque os seus fundamentos, Deus, razão, natureza humana,
sociedade humana e outros mais, nada dizem em termos de orientar
moralmente a conduta humana em uma sociedade científica e
tecnológica. Ela insiste na necessidade de uma nova Ética, com outro
tipo de fundamento, ao invés de permitir que a humanidade caia em
uma espécie de vazio moral destruidor. Mas que fundamento poderia
ser esse?
Assim, entramos na segunda parte do nosso estudo.
É muito importante entender a palavra fundamento. Trata-se
de um princípio que orienta, organiza todas as demais coisas. No
caso da Moral, sempre há a necessidade de um princípio orientador,

118 Teologia Contemporânea e Ética


válido em si mesmo. Alguma coisa que é moral e capaz de produzir
seres humanos morais. A Ciência, a tecnologia, seria a grande aposta
contemporânea. Mas como ela pode ser fundamento de alguma Moral,
se ela apenas lida com coisas materiais, sem alma? É certo que até os
cientistas precisam de uma Moral que anteceda suas próprias ações e
intervenções no terreno da ciência!
O livro de Jacqueline Russ trabalha com muitas possíveis
sugestões de fundamentos. Dentre eles, vamos enumerar alguns. Na
pluralidade das muitas opções individuais, não dá mesmo para falar
de um único fundamento. Portanto, sempre haverá a necessidade de
um diálogo amplo entre os diversos parceiros que discutem a Ética
para hoje. Mas, é necessário, primeiro, reconhecer esses parceiros.
Segundo ela, o princípio a partir do qual toda Ética moderna
ocidental se constituiu é o do ser humano autônomo, independente,
criativo, capaz de dizer para si mesmo o que ele quer fazer e assim
realizar sua ação no mundo, transformando a sua realidade. Esse ser
humano, porém, é visto, hoje em dia, como dissolvido no meio de
sistemas e estruturas, externas e alheias a ele mesmo, que dizem o que
ele deve ser e fazer, não lhe deixando muita ou nenhuma liberdade
para a prática da sua autonomia. Este ser humano dos dias de hoje
precisa de novo começo, de novo princípio. O que poderá animá-lo?
Escolhemos alguns dos princípios que Russ sugere, dentre
aqueles que consideramos mais relevantes para nosso estudo.

O princípio do religioso
Não se trata aqui de tornar a religião cristã o princípio dominante
na conduta dos seres humanos. E, sim, de perceber como ela pode
fornecer elementos para se constituir uma nova ética. Há um filósofo
da ética, chamado Emannuel Lévinas, que se utiliza do Talmude
judaico e da Bíblia cristã como inspiração para falar de uma ética da
alteridade. Esta leva cada ser humano a olhar para o outro ser humano
que está diante de si como a sua própria face. Desse modo, esse outro ser
humano é elevado a uma proximidade que vai além daquele encontro
momentâneo. Verdadeiramente, ao próprio Deus. É essa conclusão
que o levará a perguntar pelo tipo de responsabilidade moral que ele

119
tem para com o seu próximo, proverbial naquela famosa resposta de
Caim a Deus, quando este lhe pergunta: “Onde está seu irmão?” E
Caim responde: “sou eu cuidador do meu irmão?”

O princípio da realidade
Não é verdade que a vida realmente vivida tem mais momentos
de desânimo, dificuldades e tristezas, do que
alegrias e satisfação? Os seres humanos sempre
tentaram disfarçar essa realidade introduzindo
ideias que a revestiam de otimismo. Por que
não encarar as coisas como são e, a partir disso,
não pensar o que é possível fazer moralmente?
Um importante filósofo para essa proposta
ética é Arthur Schopenhauer, chamado de
o grande desilusionista da realidade. Ele tira
Arthur Shopenhauer nossas ilusões, para que possamos encarar, de
Fonte: Wikimédia Commons
frente, as duras condições da realidade e agir
corretamente nela.

O princípio da responsabilidade
O tema da responsabilidade é comum na Ética clássica. Por ela se
entender cada indivíduo como responsável pelas ações que cometeu
ou comete, pois estas são resultado
de sua própria escolha. Conforme
a Ética clássica, não se pode pedir
responsabilidade quanto a qualquer
ação futura, pela simples lógica de
que elas ainda não foram cometidas. É
exatamente aqui que a responsabilidade
adquire novo uso. O filósofo Hans
Jonas trata a responsabilidade como a
guarda que temos de fazer do futuro da
própria humanidade. Sendo ela frágil e
perecível, que compromissos devemos assumir hoje para garantir que
a humanidade tenha um futuro amanhã? Isto significa conciliar os

120 Teologia Contemporânea e Ética


nossos interesses no presente com as renúncias a esses interesses que
estamos dispostos a fazer, para que o futuro aconteça para as próximas
gerações.

O princípio da liberdade, da igualdade e da


diferença
É uma junção entre a Moral e a política. Trata de afirmar o
mais elementar e profundo direito humano fundamental: o direito
à liberdade. Liberdade para agir, para se exprimir, para usufruir dos
bens, de proteção da lei. Igualmente, trata
de estender essa liberdade a todos os seres
humanos, fazendo todos iguais porque
são todos igualmente livres. Este princípio
reconhece que nem todos desfrutam da
liberdade de modo igual, mas de maneiras
diferentes. Pense em uma criança em um
campo de refugiados, e outra em um
condomínio de luxo. Nesse caso, é sempre
John Rawls necessário que a lei proteja aqueles que
Fonte: Wikimédia Commons
gozam de menor possibilidade de realizar
a sua liberdade, o que não significa proteger aqueles que por pura
má-vontade preferem a desigualdade. Permanece, portanto, a justiça
como princípio fundamental para a Ética. O filósofo que trabalha este
assunto, reunindo-os sob o tema da justiça, é o norte-americano John
Rawls.

O princípio da atividade comunicativa


Para o filósofo Jürgen Habermas, o mundo precisa conversar
mais, e isto requer o domínio das linguagens que todos usamos no
nosso dia a dia. Quanto mais hábeis no uso das linguagens, mais clara e
transparente será a comunicação, portanto, melhores serão exprimidos
os pensamentos, e as pessoas se conhecerão e se compreenderão
melhor. A compreensão gerará o consenso, que será a base do agir
moral dos seres humanos, pois eles estarão de acordo sobre o que é o
Bom para todos.

121
O princípio das virtudes
Desde Aristóteles, a formação moral do caráter virtuoso fez
um percurso consistente e reconhecido. Entretanto, o Iluminismo
e sua recusa da tradição e do coletivo a relegou, como preocupação
secundária da moral. Na segunda metade do século 20, ela tem
experimentado uma espécie de refundação, a partir do reavivamento
do interesse acerca da sua contribuição para a moral contemporânea.
Isto se relaciona com a relação entre o indivíduo, agente moral, e
acerca de como seu agir moral tem o poder de afetar o meio no qual
vive, para o bem ou para o mal.
Este reavivamento neo-aristotélico tem seu principal proponente
em Alasdair MacIntyre, filósofo escocês radicado nos Estados Unidos.
Para ele, há um caos instalado no tratamento da moral. Isto se deve
às teorias morais rivais, e a incapacidade de estabelecer, em meio à
multiplicidade superficial, um terreno teórico comum que permita
a discussão de cada moral proposta. Esta discussão somente é
possível quando se recupera a tradição histórica de cada teoria moral,
percebendo seus movimentos dentro da própria tradição e como cada
uma recoloca a questão moral nos dias de hoje. MacIntyre, então,
assume que a tradição aristotélica, abandonada pelo Iluminismo e
Modernidade, seja uma destas, levadas em consideração, sobretudo a
sua formação moral do caráter humano pela educação nas virtudes.7

Conclusão

Bem, encerramos aqui nosso estudo e também esta Unidade


de Estudos. Neste, você percebeu como se descreve a sociedade
contemporânea na qual vivemos, as muitas dificuldades de propor
uma ética conveniente às suas condições hiperindividualistas, caóticas
e fragmentadas. Mas, há esforços nesta direção em todas as partes
do mundo. Pois os seres humanos, em todo o mundo, entenderam o
quanto estão juntos e dependem uns dos outros para sobreviver a esse
período atual. Espero que seu proveito seja grande e desperte você
para os grandes compromissos que temos à frente em nossa sociedade
brasileira e planetária.

122 Teologia Contemporânea e Ética


Referências Bibliográficas

BERTENS Hans, NATOLI Joseph (Eds.). Postmodernism. The Key Figures.


1

Oxford: Blackwell, 2002, p. xi-xvi.


2
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de
Janeiro. DP&A, 2002, p. 12,13. Na Internet, ver: http://www.angelfire.com/
sk/holgonsi/hall1.html#caráter.
3
MARDONES, José Maria. Postmodernidad y Cristianismo. El desafio del
fragmento. Santander: Sal Terrae, 1988, p. 59-77.
MARDONES, Idem, p. 78.
4

5
RUSS, Jacqueline. Pensamento Ético Contemporâneo. São Paulo: Paulus,
1999.
RUSS, Idem, p. 15.
6

7
A obra principal foi: After Virtue (1981), seguida de outras, entre 1988
e 1999, nas quais procura fundamentar a sua proposta. Veja o comentário
em: DE CARVALHO Helder Bueno Aires. Alasdair Macintyre e o retorno
às tradições morais de pesquisa racional. In: DE OLIVEIRA Manfredo A.
(Org.) Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea. 2ª. Ed. Petrópolis:
Vozes, 2000, pp. 31-64.

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Anotações
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124 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 16
Visões sobre a Ética

Introdução

Nesta unidade falaremos de diversas abordagens


ou visões a respeito da Ética. Até agora vimos aspectos
históricos e filosóficos da Ética. Contudo, há de se observar
que há diferentes perspectivas de se entender, como tratar,
a questão moral, principalmente quando se enfrenta
conflitos de valores morais.

Objetivos

1. Descrever as principais perspectivas sobre a Ética;

2. Compreender as implicações das diferentes visões;

3. Aplicar conceitos à realidade contemporânea.

125
Visões sobre a Ética
Até agora discutimos aspectos da ética em geral. Mas uma
questão que se impõe, naturalmente, é qual é o referencial da ética.
Isto é, como uma sociedade estabelece o referencial do bem e do
mal ou do correto e do incorreto, do justo e do injusto. Em geral,
esses valores e princípios de moral são construídos pela sociedade
com uma série de fatores históricos, culturais, religiosos e sociais.
Com o decorrer do tempo algumas convicções e valores vão sendo
abandonados ou substituídos por outros. Além disso, nem sempre o
que é considerado errado em uma sociedade é necessariamente errado
em outra. Contudo, muitas vezes as diferenças estão na ordem dos
costumes e práticas ou etiquetas sociais. Talvez a grande questão é se
podemos falar de uma ética universal, isto é, se há princípios absolutos
que regem a vida humana em geral independentemente da cultura e
da época. Nesta aula vamos ver alguns princípios que estão por trás
das diversas visões da ética.

1. Perspectivas sobre a ética


Imaginemos a situação típica de uma sociedade e, particularmente,
o que se vive hoje. Naturalmente, toda sociedade é regida por leis que
estabelece não só princípios fundamentais do sistema de governo
e organização civil como também as práticas corretas. Contudo,
inevitavelmente haverá certos valores e convicções que, apesar de
estarem por trás das leis, não são explicitamente expressos em formas
de leis. Por isso, é muito comum ouvir algo como é legal, mas não é
moral! O que significa isso? Normalmente, significa que apesar de a
sociedade considerar algo legal, um grupo não o considera. Mesmo
que a sociedade considera algo correto, na perspectiva cristã pode não
sê-lo.
Sempre que surge algum caso mais notório de corrupção, desvio
de dinheiro, principalmente ligado ao poder público, ouvimos os
acusados e seus defensores dizendo que o réu não fez nada ilegal. Em
outras palavras, a sociedade civil só tem para julgar os instrumentos
jurídicos. Mesmo que as leis reflitam os valores morais e éticos de

126 Teologia Contemporânea e Ética


uma sociedade, nem sempre elas contemplam todos os valores. Por
isso mesmo, muitas vezes, novas leis precisam ser propostas para
regulamentar certas práticas. Um exemplo é o caso recente da lei “ficha
limpa” que prescreve a necessidade de um candidato ao poder público
não estar respondendo a um processo criminal ou de administração
pública.
Em outras palavras, há princípios morais e éticos que regem
não só as leis explícitas de uma sociedade como também os valores e
convicções? Quando vemos a sociedade civil protestar contra práticas
“legais” das autoridades, talvez seja porque há princípios, valores
e convicções que estão sendo quebrados, mesmo que nenhuma lei
específica tenha sido transgredida.
Portanto, podemos falar de variadas visões ou perspectivas
sobre a ética. Norman L. Geisler destaca seis principais visões: o
antinomismo, o situacionismo, o generalismo, o absolutismo não
qualificado, o absolutismo conflitante, o absolutismo graduado. As
três primeiras são consideradas “não absolutistas”. Significa que não
consideram que haja valores ou princípios absolutos que regem a ética
individual e social. As três últimas reconhecem que há princípios
absolutos, embora divergem na maneira de aplicar os princípios
absolutos (Geisler, 2010, p.19, 24). Explicaremos cada uma delas.

1.1 Antinomismo
A expressão antinomismo vem do grego anti, “contra”, e nomia,
“lei”. Significa literalmente “sem lei” ou “contra lei”. Reflete a convicção
de que não há lei moral absoluta ou princípios normativos para reger
as pessoas. O antinomismo assumiu diversas formas ao longo dos
séculos e, às vezes, é conhecido por outros termos derivados dele. Por
exemplo, o hedonismo, o utilitarismo, o existencialismo, o niilismo, o
situacionismo são algumas expressões do antinomismo.
Em linhas gerais, o antinomismo entende que não há lei moral
normativa ou obrigatória. Ele é uma forma de relativismo ético, isto é,
o que é certo para uma pessoa ou sociedade não é obrigatoriamente
certo para outra. Cada indivíduo tem o seu próprio critério sobre o
que é certo e errado. Consequentemente, não se pode julgar o outro

127
por seus atos, pois quando ao julgar estamos, em geral, julgando a
partir de nossos próprios conceitos e valores.
O antinomismo não nega que as pessoas adotem princípios
morais e éticos, contudo, reconhece que esses princípios não passam
de escolhas individuais e subjetivas. Não significa que devam ser
transferidas para os outros. Ainda que o antinomismo aceite que a
sociedade precise de leis que rejam a conduta humana, entende que às
leis não estão fundamentadas em nenhum princípio absoluto, natural
ou divino. São leis que visam unicamente estabelecer uma ordem para
uma sociedade específica.

1.2 Situacionismo
O situacionismo, ou ética da situação, representa a forma de
pensamento que para todas as situações
há um único princípio ético: o amor. O
situacionismo se coloca entre o antinomismo
e o legalismo. O primeiro entende que não
há lei absoluta, o segundo tem lei para todas
as coisas. Um dos principais defensores do
situacionismo foi Joseph Fletcher. Para
Fletcher, o amor é o único imperativo ético.
Em certo sentido, o situacionismo pode ser
entendido como uma forma de absolutismo,
Joseph Fletcher pois entende que a lei do amor está acima
Fonte: Wikimédia Commons
de toda regra. Por meio do amor busca-se o
bem do próximo.
Derivam do situacionismo o pragmatismo, o relativismo, o
positivismo e o personalismo. Essas formas de ética da situação
são modos diferentes de aplicar a lei do amor. Para o pragmatismo,
tudo que “funciona” para colocar o amor em prática é que importa.
O relativismo supõe que o único absoluto é o amor, tudo o mais é
relativo, por isso, regras e leis são relativas. O positivismo defende
“que os valores são derivados de forma voluntária e não racional”
(Geisler, 2010, p. 43). Os valores de uma pessoa são mais o reflexo
de seus próprios sentimentos e experiências do que normas gerais da

128 Teologia Contemporânea e Ética


natureza. O personalismo entende que não há ações ou atitudes boas
ou más, antes, as pessoas é que são boas. As “coisas” não tem valor
moral. Elas são usadas para o bem ou para o mal conforme o caráter
do indivíduo.
Geisler resume o situacionismo como
“uma ética com estratégia pragmática, tática relativista, atitude
positivista e centro de valor personalista. É uma ética com um
único absoluto, sob o qual tudo se torna relativo e se direciona
para o fim pragmático de fazer o bem às pessoas” (2010, p. 44).

1.3 Generalismo
O generalismo é a visão ética que reconhece que há regras éticas
de obrigatoriedade geral. Não significa que as regras sejam absolutas
e universais. As regras tem seu valor uma vez que produzem bons
resultados. Por isso, uma das principais formas de generalismo é o
utilitarismo. Significa dizer que não há algo intrinsecamente bom ou
ruim nos atos das pessoas. Os atos, ações e atitudes das pessoas são
julgadas a partir de seus efeitos.
Para ilustrar, imaginemos uma empresa que adota certo código
de ética para seus executivos que os impeça de receber vantagens
pessoais nas transações comerciais da empresa. A empresa não quer
que sua marca esteja associada com práticas comerciais corruptas
ou, de alguma forma, incorretas. A empresa não entra no mérito da
moral da prática comercial, simplesmente, adota um código para
que seu nome não esteja envolvido com escândalos. Essa é uma ética
utilitarista, uma vez que se importa mais com o efeito do ato ou ação
do que do fato em si.
No generalismo, não são as normas que são absolutas, mas os
resultados. Para se viver em uma sociedade justa, é preciso que as
pessoas pratiquem a justiça, não que a justiça seja um absoluto do qual
leis justas devem emanar, mas para que a sociedade possa se manter de
forma justa. De certo modo, há um reconhecimento de que as normas e
regras são necessárias não por serem absolutas, mas porque as normas
são boas para o bem viver das pessoas e da sociedade (Geisler, 2010,
p. 60-61).

129
1.4 Absolutismo não qualificado
As três visões anteriores podem ser consideradas como
relativismo ético por não reconhecer a existência de regras ou
princípios absolutos. Estas próximas visões partem da noção de que
há absolutos. Significa dizer que há valores morais e éticos objetivos
para julgar algo como certo ou errado. Em outras palavras, o certo
e o errado não são só questão subjetiva (o que o indivíduo acha) ou
utilitarista (o que dá certo). Existe um absoluto a partir do qual ações
e atitudes são julgadas.
O absolutismo não qualificado sustenta que há regras invioláveis.
Significa que quando há duas regras em conflito, esse conflito é
apenas aparente. Não há possibilidade de quebrar uma regra menos
importante a favor de outra. Um exemplo típico é o que envolve mentir
e salvar a vida de alguém. É legítimo mentir quando a vida de alguém
está em risco. Agostinho de Hipona, considerado um absolutista não
qualificado, dizia que
“a mentira destrói o respeito pela verdade, porque a mentira
destrói toda a certeza. Quando o respeito pela verdade
é quebrado ou até mesmo enfraquecido, todas as coisas
permanecerão duvidosas. Em resumo, sem a verdade não há
integridade, e sem integridade não pode haver certeza. Uma
vez que a falsidade é admitida na comunicação, o indivíduo
não mais pode ter certeza de que o interlocutor está falando a
verdade” (Geisler, 2010, p. 78).
Em certo sentido, para o absolutismo não qualificado não há
concessões. O que é errado sempre será errado mesmo que estiver
a serviço de uma boa causa. Não há espaço para admitir diferentes
situações.

1.5 Absolutismo conflitante


O absolutismo conflitante, como o nome sugere, também parte
da noção de que existem regras morais absolutas e que algumas vezes
duas ou mais regras poderão estar em conflito. Uma vez que vivemos
em um mundo caído, é comum haver conflitos morais. No entanto,

130 Teologia Contemporânea e Ética


de acordo com essa visão, quando o indivíduo está diante de uma
decisão ele poderá escolher o “mal menor”, embora ele também terá de
responder pela regra que ele quebrou. Para o absolutismo conflitante,
o indivíduo responde por ambas regras ainda que escolha uma sobre a
outra (Geisler, 2010, p. 98).
Há quatro premissas básicas no absolutismo. Primeiro, a lei de
Deus é absoluta e não pode ser quebrada. Segundo, conflitos
inevitáveis entre os mandamentos de Deus irão ocorrer em um
mundo caído. Terceiro, quando conflitos morais acontecem, nós
devemos fazer o mal menor. Quarto, o perdão está disponível
se nós confessarmos os nossos pecados (Geisler, 2010, p. 100-
101).
O absolutismo conflitante admite também que há pecados ou
transgressões que são mais graves ou sérias do que outras, por isso, é
possível escolher o “mau menor”.

1.6 Absolutismo graduado


O absolutismo graduado, às vezes também chamado de
hierarquismo, é a visão ética que reconhece a existência de absolutos,
porém, há uma hierarquia de virtudes. Isso significa que “quando dois
deveres morais se chocam, o cristão está isento do dever menor em
virtude da obediência ao dever maior” (Geisler, 2010, p. 114).
Diante de um conflito de valores morais, o indivíduo deve
escolher o “bem maior” e não é culpado de transgredir do dever moral
menor.
Um exemplo de aplicação do absolutismo graduado é a execução
de um assassino. O que justifica tirar a vida de um bandido armado
que está colocando em risco a vida de outras pessoas. Embora matar o
bandido implique em quebrar o mandamento “não matarás”, deixar de
matá-lo pode implicar em muitas outras pessoas morrerem. Portanto,
quando o policial atira no bandido ele está potencialmente evitando a
morte de muito mais pessoas.
O absolutismo graduado tem seus desafios, pois envolve
estabelecer grau de valor e importância aos diferentes deveres morais.
No entanto, não é uma ética relativista, pois acredita firmemente

131
em absolutos, embora entenda que há diferentes graus de valor nas
virtudes.
Geisler resume graficamente as seis visões da seguinte maneira:

Figura 1: Seis visões éticas (Geisler, 2010, p.22)

2. Importância da discussão
Por que toda essa discussão é importante?
A sociedade sempre teve de lidar com isso. Como vimos, a Bíblia
trata disso, a filosofia grega lidou com a questão e a modernidade
trata disso. No entanto, a sociedade moderna tem um discurso
essencialmente antinomista, isto é, quer nos fazer crer que não há
normas absolutas, tudo é uma questão situacional. Além disso, há
uma tendência fortemente hedonista na sociedade. O hedonismo (do
grego hedone – prazer) é uma forma de antinomismo que entende que
aquilo que traz prazer e satisfaz o indivíduo é correto. Vemos isso na

132 Teologia Contemporânea e Ética


atualidade quando percebemos que as pessoas querem acima de tudo
satisfazer seus desejos sem se importar com o certo ou errado.
Dentre essas seis visões, a tradição cristã tem adotado as
diferentes formas de absolutismo. Geisler sugere que o absolutismo
não qualificado está associado à tradição anabatista, o absolutismo
conflitante, à tradição luterana, e o absolutismo graduado, à tradição
reformada (2010, p.113). De qualquer modo, a tradição cristã sustenta
que o princípio de verdade, retidão, justiça, amor e misericórdia
vem do próprio Deus, consequentemente, que nossos valores éticos
procedem de Deus e de sua revelação. Portanto, podemos divergir na
maneira de compreender o absolutismo, mas, em geral, aceitamos que
nossos valores morais são normativos e obrigatórios.

Conclusão

As diferentes visões sobre a ética nos permite entender a ética em


uma perspectiva mais ampla e reconhecer que há diferentes abordagens
cristãs e não cristãs sobre os deveres morais das pessoas.
Em geral, a sociedade secular mantém valores e deveres morais
e éticos. No entanto, muitos desses valores são generalistas ou
situacionistas, pois não evocam deveres absolutos e sim finalidades
absolutas. Isto é, para que a sociedade se mantenha é preciso haver
ordem, justiça, deveres etc, e para que isso aconteça é preciso haver leis
que garantam que tais valores sejam preservados.

Referências Bibliográficas

GEISLER, N. L. Ética cristã: opções e questões contemporâneas. S. Paulo:


Vida Nova, 2010.

133
Anotações
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134 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 17
Princípios da Ética Cristã

Introdução

A sociedade como um todo se fundamenta em valores


morais e ético por mais seculares que sejam seus valores.
Toda sociedade tem um princípio de certo e errado. A
diferença entre a ética social secular e a ética cristã é que
a ética cristã parte dos valores éticos e morais revelados
por Deus nas Escrituras, por isso, de maneira geral, a ética
cristã possui caráter absolutista conquanto admite valores
absolutos. Nesta unidade, vamos tratar de alguns desses
aspectos da ética cristã.

Objetivos

1. Compreender os princípios básicos da ética cristã;

2. Aplicar esses princípios para os conceitos éticos


contemporâneos.

135
Princípios da Ética Cristã
É importante observar que boa parte da nossa discussão anterior
sobre a ética gira em torno de uma questão fundamental: há valores
morais absolutos para a humanidade?
De um lado, há aqueles que sustentam
que os valores morais não são absolutos,
isto é, não são objetivos, permanentes e
válidos para toda a humanidade em todas
as épocas e contextos. Do outro lado, há
quem entenda que os preceitos morais e
éticas se fundamentam além do próprio
ser humano, de sua realidade histórica
e social, e de seus interesses e objetivos
particulares. A isso chamamos de valor
Norman L. Geisler
absoluto. No entanto, entre os que aceitam
Fonte: Wikimedia Commons o caráter absoluto dos valores morais,
nem todos admitem que esses valores se
originam ou se estabelecem a partir da pessoa de Deus. Isto é, nem
todo absolutista necessariamente confessa a existência de Deus. A
ética cristã, porém, além de ser absolutista, entende que os preceitos
morais se estabelecem a partir do ser de Deus.
Nessa perspectiva, desejamos descrever aqui alguns princípios
que norteiam a ética cristã. Para isso, nos baseamos na proposta de
Norman L. Geisler.

1. Características da ética cristã


1.1 Vontade de Deus
A ética cristã se fundamenta no princípio da vontade de Deus. O
certo e errado se estabelecem a partir do propósito e vontade de Deus
para a humanidade. Isso significa que o alvo último do fazer o bem
está no cumprir a vontade de Deus.
A vontade de Deus rege toda decisão moral do cristão. O
Evangelho de Mateus parece destacar esse aspecto da vontade de Deus
mais do que os demais Evangelhos. Algumas passagens de Mateus

136 Teologia Contemporânea e Ética


enfatizam a prática da vontade de Deus. Uma das passagens é a que
diz “Nem todo que me diz Senhor, Senhor! entrará no reino do céu,
mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está no céu” (7.21).
Mateus também é o único evangelista a contar a parábola dos dois
filhos de um homem que ordenou aos filhos para ir trabalhar na vinha.
Um disse que ia e não foi, o outro disse que não ia e foi. A pergunta de
Jesus é “Qual dos dois fez a vontade do pai?” (Mt 21.31). Além disso,
a oração que o Senhor ensinou diz “Venha o teu reino, seja feita a tua
vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). Podemos dizer que
fazer a vontade de Deus significa manifestar a vontade de Deus. A ética
cristã se fundamenta nesse princípio da vontade de Deus.

1.2 Absoluta
O segundo aspecto importante da ética cristã é que ela tem
caráter absoluto. Como já vimos, há maneiras diferentes de entender
o absolutismo da ética. Mas de maneira geral, pelo fato da ética se
fundamentar na pessoa e caráter de Deus, e uma vez que Deus não
muda, isso significa que valores e preceitos morais não mudam. Eles
são obrigatórios “a todas as pessoas e em todos os lugares” (Geisler,
2010, p. 16).
Por outro lado, um dos desafios da ética cristã é estabelecer quais
são os preceitos morais que procedem do caráter de Deus, portanto
são imutáveis, e quais são aqueles que procedem de sua vontade e que,
apesar de serem obrigatórios, não se aplicam necessariamente a todas
as pessoas em todas as épocas e lugares.

1.3 Revelação de Deus


Quando afirmamos que preceitos morais procedem do próprio
ser de Deus entendemos que só temos conhecimento de Deus a partir
do que ele revelou a respeito de si mesmo. A fé cristã reconhece a
revelação natural e especial de Deus. A revelação natural se dá por
meio da ordem criada e da história. A revelação especial se dá por
meio do Espírito Santo e de Jesus que falou aos antigos em visões e
revelações e fala por meio das Escrituras que testificam da revelação.
O apóstolo Paulo argumenta que a própria nautreza humana tem

137
leis que são praticadas mesmo pelos incrédulos. No entanto, a ética
cristã pressupõe que a vontade de Deus é revelada por ele em Cristo
por meio das Escrituras.
Acredito que a grande questão ética em torno da compreensão
da revelação de Deus não é tanto a aceitação ou não de que Deus revela
sua vontade moral nas Escrituras. Muito do debate contemporâneo
da igreja sobre preceitos morais envolve mais uma questão
hermenêutica de como entender certos ensinamentos das Escrituras
e aplicá-los à realidade contemporânea. Aqueles que argumentam que
determinados preceitos não se aplicam à igreja hoje não representam
necessariamente o abandono do absolutismo, apenas consideram
aspectos hermenêuticos para negar a validade de certos ensinamentos.

1.4 Prescritiva
A ética cristã também é prescritiva. Isso significa que determina
ou estabelece o que deve ser, não o que é. Ela não é descritiva das
práticas correntes dos cristãos. A implicação disso é que a ética deve
seguir a prescrição divina conforme se encontra nas Escrituras e
não simplesmente adotar a prática atual da comunidade cristã como
padrão. Não é o fato de “todo mundo fazer assim” que torna uma
prática verdadeira ou justa.
O caráter prescritivo da ética cristã supõe entende que por mais
que a realidade não esteja em total harmonia com o que é prescrito ela
não invalida o preceito moral nem autentica a realidade como padrão
moral.
No entanto, isso sugere também que nem sempre a comunidade
cristã está vivendo o ideal ou padrão prescrito. Pelo contrário, em
geral, justamente por causa do pecado humano, a prática estará muito
aquém do que Deus prescreveu como norma para o seu povo.

1.5 Deontológica
Como afirma Geisler, os “sistemas éticos podem ser divididos
em duas grandes categorias: a deontológica (centrado no dever) e a
teleológica (centrado nos meios e nos fins)” (2010, p. 17). Em outras
palavras, a diferença está entre os sistemas que consideram que

138 Teologia Contemporânea e Ética


princípios éticos são obrigações pelo fato de serem deveres prescritivos,
enquanto outros sistemas enfatizam a finalidade e seus meios. Em
essência significa responder a pergunta, “obedecemos uma ordem por
ser um dever ou obedecemos dependendo do que se pretende com
aquela ordem?”
O sistema deontológico entende que os deveres não deixam de ser
deveres e que devem ser seguidos pelo seu próprio caráter obrigatório.
Isso significa que a regra determina o resultado e que é boa ou benéfica
independentemente do resultado. Já o sistema teleológico entende
que o resultado determina a regra e que a regra só pode ser boa e
correta em função do resultado que tem. Em essência, o resultado é
que determina a qualidade, validade e importância da regra (Geisler,
2010, p. 18).

2. Implicações
Esses princípios norteiam a ética cristã. Naturalmente que há
divergências de como esses princípios podem e devem ser aplicados.
Como vimos anteriormente, há modos diferentes de enxergar como a
ética se aplica. No entanto, esses princípios servem de referência para
nossa compreensão sobre a ética cristã.
A implicação dessa discussão para a prática cristã é que de uma
maneira ou outra é preciso que se tenha consciência sobre a razão pela
qual aprovamos certas práticas e condenamos outras. Apesar de muitas
vezes alegarmos que fazemos tal coisa porque está na Bìblia ou porque
Deus ordena, na prática o fazemos porque estamos acostumados e
porque é o que a comunidade aceita.
Qual é o critério para sermos mais tolerântes com alguns pecados
e menos com outros. Temos a tendência de sermos muito rígidos com
pecados relacionados à sexualidade (adultério, fornicação, etc) e mais
tolerantes com pecados de ganância, cobiça, inveja etc.
Às vezes ocorre o contrário. Devida às mudanças sociais, somos
muito tolerantes com mudanças de padrões de comportamento das
pessoas e mais rígidos com pecados de engano, mentira etc.
Embora não descrevemos situações práticas e específicas, esses
princípios servirão de referência para tratarmos das diversas situações.

139
Conclusão

Como afirmamos anteriormente, a ética é um campo de estudo


filosófico que não se restringe à fé cristã. Embora a ética geral não
fundamente necessariamente seu padrão de moral na existência de
Deus ou de um absoluto transcendente ao ser humano, a ética cristã
precisa obrigatoriamente se estabelecer a partir da pessoa de Deus.
Esse é o diferencial da ética cristã em comparação à ética que uma
sociedade democrática pretende estabelecer.
Na sociedade hoje, diversas leis são aprovadas com o intuito
de promover a justiça e os valores éticos da cidadania, autoridade,
direitos humanos e etc. As sociedades ocidentais se firmam na
tradição judaica-cristã que é fortemente absolutista. No entanto, elas
têm caráter secular e proclamam a separação entre estado e religião.
Não obstante, seus preceitos éticos representam em grande parte esses
valores judaico-cristãos.

140 Teologia Contemporânea e Ética


teologia Contemporânea e Ética
Unidade - 18
Síntese das aulas 10 a 17

Introdução

O estudo da Ética é um desafio apaixonante. A Ética


nos impele a discutir nossos valores centrais diante de
valores seculares ou da ausência de valores. Nas últimas
aulas procuramos sintetizar alguns aspectos importantes
do estudo da Ética. Nesta aula, resumimos os pontos
principais.

Objetivos

1. Recapitular os principais conceitos da Ética


estudados nas lições anteriores;

2. Ser motivado a aplicar esses conceitos na nossa


reflexão sobre as decisões éticas atuais.

141
Síntese das aulas 10 a 17
O estudo da ética é essencial para a teologia por pelo menos
duas razões: a primeira é pela necessidade de padrões e valores
claros para reger a sociedade humana. Toda sociedade estabelece
padrões aceitáveis e não aceitáveis de
conduta. Nem todos esses padrões estão
formulados em termos de leis e códigos
penais. Por exemplo, no Brasil, apenas
recentemente passou-se uma lei da “ficha
limpa” que estabelece que candidatos a
cargos políticos não poderão ter sido
condenados ou estar respondendo por
processos contra sua administração e
outros crimes. Embora, há muito tempo supõe-se que todo servidor
público deva ser honesto e correto, não havia lei específica para tratar
desses casos. O próprio clamor popular e a pressão de entidades de
classes fizeram com que essas leis fossem aprovadas. Naturalmente,
quanto mais explícita for a consciência das convicções e princípios
éticos de uma sociedade, maior será a possibilidade de manter os
padrões.
A segunda razão para o estudo da ética, é a elaboração de
princípios que nortearão questões sensíveis e polêmicas, isto é,
quando há conflitos de valores e convicções. Hoje cresce o estudo da
bioética. Devido ao avanço do conhecimento científico e as novas
possibilidades de manipulação e controle da vida, a ética estabelece
os limites e possibilidades do controle do ser humano sobre a vida.
Questões como aborto, eutanásia, manipulação genética e clonagem
são algumas das questões polêmicas sobre o nível de controle sobre
a vida e morte. Por ai, se percebe que vida é morte são conceitos
filosóficos, teológicos influenciados grandemente por condições
culturais, sociais, ideológicas e religiosas. Do ponto de vista científico
ou tecnológico, não há o que impeça a clonagem de células humanas.
Contudo, a sociedade ocidental, de maneira geral, ainda respeita a
vida como um absoluto e não está pronta a permitir tamanho controle
humano sobre a reprodução de indivíduos.

142 Teologia Contemporânea e Ética


1. Aspectos essenciais da ética
A Ética procura, a partir das questões bastante concretas das
relações humanas em sociedade, teorizar, isto é: explicar, esclarecer
ou investigar a realidade do agir moral do ser humano, procurando
fornecer-lhe meios de conhecer e agir moralmente na sociedade.
Com a ajuda da Ética, o ser humano consegue compreender
seu agir moral relacionando-o a um propósito mais amplo além da
exigência imediata, comparando-o
com outras formas de comportamento
semelhante ao de outras pessoas em
outras sociedades, sendo capaz até
de explicar, discutir e recomendar
ou não, seu comportamento perante
outros que agem de forma diferente
dele mesmo.
Pode-se dizer que a forma como
os seres humanos compreendem a
ética também possui uma história,
seja porque sua matéria de trabalho consista nesse comportamento
moral em sociedade, seja porque a ética organiza seu conhecimento
que tende a se ampliar em relação ao passado e ao futuro.
Épocas de mudanças radicais como esta que estamos vivendo
trazem consigo profundos questionamentos dos valores, princípios
e normas morais considerados válidos até aqui em uma e em todas
as sociedades. Essa crise de valores ou de ética, como muitos estão
falando, requer que os seres humanos repensem o que é importante
para eles, seja justificando o que já conhecem, seja propondo a sua
substituição. Neste último caso, fica uma pergunta incisiva: substituir
pelo quê?
A ética, como a conhecemos, nasce com a democratização da
vida política entre as antigas cidades gregas, sobretudo em Atenas,
no século V a.C.. A vida na polis/cidade requeria uma nova forma de
participação dos seus habitantes. Neste espaço físico chamado cidade/
pólis, homens como Sócrates, Platão e Aristóteles refletiram sobre a
melhor forma de convivência pública entre os cidadãos.

143
2. O Cristianismo constitui a nova moral do
mundo ocidental
É preciso entender como o Cristianismo ocidental chegou a
elaborar uma nova moral religiosa para as relações humanas no
novo mundo que surgia. A preocupação inicial do Cristianismo era
anunciar a esse mundo a salvação disponibilizada por Deus a partir
da encarnação de Jesus Cristo. Esta salvação significava a redenção
da humanidade por meio de Jesus Cristo. Sob essa ótica, a condição
humana passou a ser descrita como carente de redenção, isto é,
pecadora, ignorante e necessitada de vida. Jesus Cristo se tornou o
mediador entre a humanidade nessa condição e o conhecimento, vida,
fé e imortalidade de que ela precisava. Isso queria dizer que somente
por meio da fé em Jesus Cristo e do seu exemplo de vida o ser humano
seria capaz de viver uma vida moral agradável a Deus.
A partir desta concentração cristológica, o Cristianismo
desenvolveu certas definições gregas básicas sobre a natureza do ser
humano. Segundo ele, este não é mais um ser de relações sociais na
cidade ou no Estado ou na natureza, mas consigo mesmo e com Deus.
O Cristianismo acentua a visão grega da divisão da natureza humana
entre alma e corpo. Para ele, a alma é dotada de livre arbítrio e capaz
de decidir entre o bem e o mal, desde que esclarecida pela sua razão.
Agora, porém, o ser humano não presta contas à sua razão, mas a Deus
que lhe deu a capacidade racional de julgar.
Outra modificação importante que o Cristianismo produziu
sobre as ideias gregas foi a identificação do mal com o pecado e
a culpa. Para o Cristianismo, o pecado é a opção da alma humana
pelo mal. Por que ela escolhe pecar? Os pensadores cristãos daqueles
tempos tiveram dificuldades para responder a essa pergunta. Elas
variam, desde a responsabilização dos demônios que tentam o ser
humano até um ambiente que favorece ou determina essa opção.
Cedo, a explicação retorna ao Jardim do Éden, onde o primeiro casal
humano cede às instigações malignas, desobedece a Deus e atrai sobre
si e a humanidade todas as consequências do seu ato irresponsável.
Veja que, agora, a questão moral não se trata apenas das condições
presentes, mas de lidar com uma herança de pecado e culpa que aflige
e determina boa parte da conduta humana atual.

144 Teologia Contemporânea e Ética


3. Ética na Modernidade
Duas atitudes das pessoas no início de Modernidade ocidental
marcaram, profundamente e para sempre, os seres humanos. A
primeira será tremendamente negativa: a recusa da tradição e do
coletivo. A segunda é bastante positiva: a afirmação da autonomia e
do indivíduo. Perceba que uma coisa tem tudo a ver com a outra. Pois,
é normal que a tradição seja sustentada por uma experiência bastante
coletiva da existência à qual todos devem submissão. Isto se chama
heteronomia, pois a tradição é uma lei externa a qual todos se obrigam
internamente. Até então, cabia ao Cristianismo cumprir esse papel da
tradição, e, para ele, a lei de Deus ou sua vontade era o que chamava
todos os seres humanos à mesma convivência.
A autonomia acontece quando a experiência individual se
eleva acima da coletiva, permitindo que as decisões pessoais se
sobreponham àquelas definidas de antemão pela tradição. A lei, nesse
caso, está dentro do indivíduo e é a partir dele que as questões ao seu
redor devem ser julgadas e decididas.
Se você entender por lei o que chamamos de Moral, tudo ficará
mais claro. Essa mudança antropocêntrica, do objeto (fora do homem)
para o sujeito (dentro do homem), obrigou que se refizesse toda a
concepção de ética, justificando chamá-la de moderna.
Tudo passa, portanto, pelo ser humano. Quem é ele? Sua
identidade e valor são medidos em relação a ele mesmo, e não mais
em relação a Deus, como antigamente. Ele é dotado de razão, de um
corpo, de uma vontade. Ele não apenas busca a Deus, mas pode atuar
no mundo à sua volta provocando profundas transformações. Para
isso, ele mesmo desenvolve recursos pela denominada ciência, cujo
conhecimento lhe é mais necessário que o próprio conhecimento de
Deus.
Há dois momentos decisivos no estudo da ética na pós-
modernidade. No primeiro se preocupa em entender melhor as
exigências éticas do que chamamos mundo pós-moderno. No
segundo, buscamos pela possibilidade de um discurso ético acessível
e necessário às atuais condições morais de convivência humana em
nossa sociedade global tão diversificada.

145
Russ explica quais são os desafios morais para propor uma Ética
contemporânea:

O vazio ético
Não existe um lugar comum, hoje, de onde se partir para falar
se uma lei é justa ou não, o que tem valor moral e o que não tem,
se existe um princípio organizador do agir moral, e mesmo se o ser
humano é dotado de um senso ou uma consciência moral inerente
a ele. A palavra para descrever essa característica presente se chama
niilismo. Quer dizer: como julgar algo no mundo se não existe uma
base comum, um sentido comum, um propósito comum, uma razão
comum para as ações humanas?

O fim das narrativas totais


Entende-se por narrativa total aquela narração da história que
sempre nos conduzia para um propósito
final, normalmente redentor. Muitas dessas
narrações fundamentaram, em algum tempo,
o comportamento humano. O Cristianismo,
com seu fim direcionado para Deus que a
tudo abrange, é uma das mais importantes.
O Marxismo, com seu fim orientado para
uma sociedade sem classes, é outra dessas
narrações. Ainda outras, são: a razão de Kant, com sua confiança em
um ser humano capaz de decidir e agir por si mesmo a partir de uma lei
racional interior. O Capitalismo, com sua proposta de uma sociedade
livre para produzir e consumir. A Democracia, com sua confiança na
capacidade de um povo se organizar e decidir por si mesmo o que
quer. Você pode estar pensando: nada disso acontece de verdade! Você
duvida de todas essas promessas, que é o que essas narrações são, e,
assim, fica cético, incrédulo. Se não existe uma história que te diz que
há algo te esperando lá na frente, pela qual você pode julgar seu agir
moral, e vê-lo recompensado, não existem mais normas morais que
obriguem alguém a fazer o que é certo e evitar o que é errado. Você
está sozinho e desamparado de valores morais neste mundo.

146 Teologia Contemporânea e Ética


4. Visões conceituais sobre a Ética
Podemos falar de variadas visões ou perspectivas sobre a
ética. Conforme vimos anteriormente, há seis principais visões: o
antinomismo, o situacionismo, o generalismo, o absolutismo não
qualificado, o absolutismo conflitante, o absolutismo graduado. As
três primeiras são consideradas “não absolutistas”. Significa que não
consideram que haja valores ou princípios absolutos que regem a ética
individual e social. As três últimas reconhecem que há princípios
absolutos, embora divergem na maneira de aplicar os princípios
absolutos (Geisler, 2010, p.19, 24).
A implicação dessa discussão para a prática cristã é que de uma
maneira ou outra é preciso que se tenha consciência sobre a razão pela
qual aprovamos certas práticas e condenamos outras. Apesar de muitas
vezes alegarmos que fazemos tal coisa porque está na Bìblia ou porque
Deus ordena, na prática o fazemos porque estamos acostumados e
porque é o que a comunidade aceita.

Conclusão

Procuramos resumir aqui os pontos essenciais do estudo da


Ética. Não devemos perder de vista a importância desse estudo para a
igreja. Diria que hoje não é apenas a sociedade secular que passar por
crise ética e moral, mas o próprio cristianismo. Isso nos mostra que a
conversão à fé cristã, isto é, a aceitação do evangelho e a filiação a uma
igreja não significa necessariamente a melhoria da qualidade ética e
moral das pessoas. O número de evangélicos cresce a cada dia no país,
mas isso não está tornando o país mais ético. Isso é tão sério, pois
mostra que de alguma maneira o evangelho não está transformando o
caráter e as ações morais das pessoas.

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Anotações
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148 Teologia Contemporânea e Ética

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