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A TEOLOGIA COMO “CIÊNCIA”:


ALGUNS ELEMENTOS DE REFLEXÃO NO
CAMPO DA TEOLOGIA FUNDAMENTAL
“The Theology as ‘Science”: some elements of reflection in the field of
fundamental theology

Pe. Luis Artigas Mayayo *

RESUMO: O texto “A teologia como ‘ciência discute o lugar emergente da “nova” teologia
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fundamental, responsável pela justificação racional da fé cristã, i. é: pelo caráter racional do ato
de fé, pelo rigor científico da fé. Luis Artigas Mayayo se vale de téologos de renome, mas fixa-se
sobretudo em Tomas de Aquino para ressaltar a fundamentação clássica da teologia. Encontra
em três textos de Sto. Tomás de Aquino pressupostos para desenvolve uma aporia necessária
para a compreensão da teologia como ciência. Depois, atualizando a reflexão indica quatro
novos parâmetros da atualidade como fundamentos: a intersubjetividade, a operatividade, a
revisibilidade e a autonomia. finalizando, observa que a teologia, para além de ser ciência, é uma
questão anterior de fé cristã.

PALAVRAS CHAVE: teologia fundamental, razão, ciência, fé.

RESUMEN: The text “The Theology as ‘Science” discusses the emerging place of the
“new”fundamental theology, responsible for the rational justification of Christian faith, it is: the
rational character of the act of faith, by the scientific rigor of faith. Luis Artigas Mayayo makes use
of renowned theologians, but fixes itself above all in Thomas Aquinas to highlight the classical
statement of reasons of the theology. In three texts of St. Thomas Aquinas he finds assumptions
to develop an aporia essential to the comprehension of the theology as science. Later, updating
the reflection, he indicates four new parameters of the present time as foundations: the
intersubjectivity, the operativeness, the revisability and the autonomy. finalizing, he observes
that theology, apart from being science, is a question previous of the Christian faith.

PALABRAS CLAVE: fundamental theology, reason, science, faith.

* Professor de teologia sistemática do Studium Theologicum e doutor em Teologia Sistemática, pela Pontificia
Universidade Gregoriana, de Roma, falecido em 1999. O texto “Teologia como ´Ciência” foi escrito para uma
“Miscelânia comemorativa” dos 70 anos de Pe. José Penalva, músico, teólogo e também professor do Studium,
A intenção da reedição do artigo, publicado em 1994, é igualmente uma homenagem a todos os professores e
teólogos destes 75 anos da casa.
1. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

1.1 - A Teologia fundamental é uma das disciplinas teológicas que, nas


últimas décadas, mais discussões levantou a respeito do seu objeto, método e
estatuto1. Por um lado, a Teologia fundamental deve certamente conservar e
atualizar a tarefa da velha Apologética, estabelecendo a justificação racional
da fé cristã, tentando explicar o caráter racional do ato de fé. Esta função -
naturalmente, com as necessárias acomodações ao indivíduo e ao seu entorno
não deve desaparecer 2, embora esteja sendo sempre mais deslocada para junto
de outros prolegômenos da teologia que atualmente estão sendo incorporados
dentro dela 3, como fez, por exemplo, Karl barth, na sua Kirchliche dogmatik. Mas,
juntamente com estes prolegômenos e com esta função apologética, a Teologia
fundamental está sendo convidada, no presente, a assumir também outra,
semelhante àquela que a Crítica desenvolve no campo das ciências, isto é: explicar
os seus fundamentos e o seu método próprio, iluminar criticamente a essência e o
método da teologia como ciência 4 .
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1.2 - Esta questão poderia ser formulada da seguinte maneira: sendo a
teologia uma forma racional e científica da formulação da fé cristã, e dependendo
completamente da fé sobrenatural no que se refere às propriedades do seu
objeto, preenche ela, e de que maneira, as condições requeridas de uma verdadeira
ciência? 5 .

1 Cf. por exemplo, C. GEffRÉ, l ‘histoire récente de ia théologie fondamentale. essai d’i nterprétation,
Concilium, 46 (1969), pp. 11-28.
2 Cf. K. RAhNER, Sull’odierna formazione teoretica dei futuri sacerdoti, Nuovo Saggi, I, Paoline, Roma
1968, pp. 199-235.
3 Cf. h. bOUILLARD, l’expérience humaine et ie point de départ de ia théologie fundamentaie,
Concilium, 6 (1965), pp. 83-92.
4 Cf. G. SÓhNGEN, Fundamentaltheologie, Lexikon für Theologie und Kirehe, 4, ec. 452-459; lP.
TORREL, chronique de théologiefondamentale, Revue Thomiste, 64 (1964), pp. 101-102.
5 Cf.: Y. CONGAR, théologie, Dictionnaire de Théologie Catholique, xV, , c. 459; lb. METZ, theologie,
Lexikon für Theologie und Kirche, 10 (1965), c. 70: «Die Tendenz zur Wissenschaftlichkeit wurzelt
in dem auf die beansprechung des ganzen Menschen und auf verantwortlichen Kommunikation
zielenden Charakter des ‘Gegenstands’ der Theologie. Die konkrete bestinunung des
Wissenschatfscharakters der Theologie aIs Theologie und nicht bloss im hinblick auf die in ihr
angewandten Methoden und Erkentnisse der profanen Einzelwissenschaften ist angesichts
des gawandelten Wissenschaftbegriffs eine hõchst schwierige Aufgabe. War diese frage schon
unter der Vorherrschaft des aristotelischen Wissenschaftsbegriffes nicht eindeutig gek1ãrt, so
wurde sie der modernen Einzelwissenschaft noch zusãtzlich erschwert».
O Pe. Congar reconhecia já em 19436 que desde o início do século xx
as questões epistemológicas e metodológicas assumiram um grande lugar
na reflexão teológica, caracterizando este fato como o esforço para superar as
dissociações que, desde os tempos do Nominalismo, passando pelos movimentos
modernos do pensamento, introduziram-se na teologia, a fim de poder obter
assim uma nova unidade que integre também as aquisições científicas válidas da
época moderna. Esta efervescência epistemológico-metodológica de que Congar
falava continua ainda hoje, ainda que, evidentemente, com orientações novas, se
compararmos com sua história desde os tempos do modernismo.

Uma primeira questão que foi preciso enfrentar era a do valor científico
da teologia, desde que seu pressuposto de base é a fidelidade a uma fé vital e
também a uma certa ortodoxia; neste campo chegou-se, às vezes, recentemente,
a pretender excluir a teologia do campo universitário. Este debate, na primeira
metade do século xx, foi conduzido sobretudo no campo da assim chamada
teologia positiva, nascida no bojo da crise modernista, e teve certamente como
uma das suas conseqüências um início de integração das disciplinas teológicas nos
diversos movimentos do século (litúrgico, bíblico, patristico, ecumênico), junto
com um aprofundamento sobre a teologia do magistério e da comunidade eclesial
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como depositários e portadores da fé com seus conteúdos. A teologia deparou-
se com a exigência, bem viva ainda hoje, de incorporar os dados das ciências
humanas, as quais, de maneira geral, e apesar de uma melhoria substancial das
relações, ainda não adquiriram plena carta de cidadania dentro do pensamento
teológico, considerado de maneira global.

Nos tempos mais recentes, vários outros motivos fizeram com que a
reflexão metodológica e epistemológica da teologia se tomasse ainda mais
urgente. Apesar das exigências pastorais ou, talvez precisamente por causa delas,
a teologia encontra-se na situação de ter que repensar seus fundamentos, não
raramente contestados. Este re-pensamento fundamental é imposto, antes de
mais, pela situação nova que o pluralismo atual, introduzido em primeiro lugar
pela ciência moderna, colocou dentro dela 7. Se a teologia não deve cair num
dogmatismo fechado e estéril, e se, por outro lado, não deve se secularizar,
esquecendo a tradição e aceitando de maneira mimética e pouco inteligente
qualquer conclusão mais ou menos científica, então é preciso se engajar no esforço
de que estamos falando, isto é: ela deverá refletir criticamente sobre o caminho
que a verdade já percorreu (na realidade, esse caminho é que é o “método”)
até a nós (ninguém pode recomeçar do zero, mesmo que o pretendesse), para,
precisamente, discernir as “aquisições de verdade” feitas até hoje, bem como as
“tarefas a serem realizadas” que os limites de tais aquisições nos deixam como
6 Cf art. cit., c. 444
7 Cf. W. KASPER, Per un rinnovamento deI metodo teologico, Queriniana, brescia 1969, p 23.
herança e como missão. Notemos, finalmente, com Kasper8, que neste trabalho
nos encontramos ainda na fase dos estudos preliminares e que, por isso mesmo,
eles não podem não ser fragmentários e “tendenciais”.

1.3 - Ora, de que teologia nos ocupamos aqui? isto é, que significado
conferimos a esta palavra? Karl barth, seguindo neste ponto a Dogmática de J.
Gerhard9, distingue vários significados interessantes.

A Igreja, como comunidade salvífica, é portadora da mensagem de


Deus aos homens, mensagem que ela manifesta, também, falando aos homens.
Poderíamos dizer que a atividade da Igreja é, globalmente, “teologia”, a qual se
realiza na atividade de todo crente, desde que a fé é comum a todos, doutos e
ignorantes, realizando-se também, e mais explicitamente, no ministério oficial da
palavra. A estes dois primeiros significados acrescenta-se um terceiro, ou seja, a
46 função crítica que a Igreja realiza, dentro dela mesma e partindo dos seus próprios
pressupostos, a respeito do seu “discurso sobre Deus”. Este terceiro significado de
“teologia”é o mais estrito, e é ele que pode pretender com mais rigor o qualificativo
de “científico», julgando sobretudo pelos critérios atuais.

A teologia, assim entendida, depende certamente da graça de Deus, e


é um ato de obediência a ela. Reconhecendo ser também pecadora e falível, a
Igreja deve auto-examinar-se continuamente, colocando-se diante do problema
da verdade (neste sentido estrito). É o problema da conformidade-coerência do
seu testemunho com aquela realidade que fundamenta o seu ser. Ora, isto é a
teologia, enquanto julgamento-avaliação do discurso humano sobre Deus à luz
da mesma palavra de Deus. E isto, no tríplice nível dos fundamentos (teologia
bíblica e positiva), das finalidades (teologia prática: moral, espiritual, pastoral,
querigmática, ecuménica, missionária ... ), e dos conteúdos (teologia dogmática
ou, como se diz mais hoje em dia, teologia sistemática).

De fato, esta teologia assim estruturada - grosso modo- apresenta-se


hoje como um empreendimento de tipo científico, como a “ciência teológica”. É
possível aceitar esta fórmula? No nível deste artigo, vou me limitar a apresentar a
resposta de Santo Tomás de Aquino, e uma breve reflexão conclusiva.

8 ID, ibid., p. 20.


9 Kirchliche Dogmatik (edição em francês), 1. 1, pp. 1-2.
2. A TEOLOGIA COMO CIÊNCIA EM SANTO TOMáS DE AQUINO

2.1 - Durante muito tempo a ciência preocupou-se praticamente de


discernir os elementos duradouros e eternos além das aparências do temporal e
passageiro: compreendida neste sentido, a aquisição do saber é um ato religioso10.
No mundo grego, parece-me, é sobretudo em Platão que encontramos esta
maneira de pensar, com as duas teorias da reminiscência e da participação. Mas
também em Aristóteles há algo semelhante, por exemplo, a física que se resolve em
meta-fisica. Porém, quando a teoria aristotélica da ciência entra, na Idade Média,
num contexto já cristianizado, ela teve, na realidade, um efeito secularizador, como
se vê, por exemplo, na polêmica entre os místicos e os dialéticos, entre Abelardo e
São bernardo. Isto explica-se pelo fato de que a velha distinção sapientia-scientia,
que em Aristóteles não comporta nenhuma “ruptura” técnica, mudou de sinal a
partir do fato cristão, desde que ele introduziu um elemento novo, a Revelação
diante do qual a sapientia pagã foi fortemente relativizada.

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Dando por pressupostos todos os dados contextuais, eis, em resumo, a
visão tomista da teologia como ciência.

2.2 -. Os textos principais onde se expressa a solução tomista desta aporia


sobre o estatuto científico da teologia são três:

- O prólogo do seu comentário às Sentenças de Pedro Lombardo (poderia-


se acrescentar também ln iii Sent., d. 35, q. 1), onde Santo Tomás fala sobretudo do
paralelismo entre os mecanismos psicológicos do conhecimento científico e do
conhecimento de fé.

- A seguir, o opúsculo in Boethium de trinitate, onde ele expõe amplamente


a razão científica da teologia (cf. sobretudo: art. lI, ad 2um).

finalmente, a Summa theologiae, I, q. 1, que representa o estágio mais


amadurecido do seu pensamento a respeito.

10 Cf. I. T. RAMSEY, Wissenschafl, Religion im Geschichte und Gegenwart, 6 (1962), c. 1776.


 No comentário às Sentenças, Santo Tomás oferece já os pontos essenciais do
seu pensamento. Antes de mais, coloca a questão do objeto da teologia, opção
capital que orienta para a então concepção autêntica da ciência, mas de uma
ciência condicionada no seu ato e na sua percepção pela luz interior da fé. Para
fazer isto, ele se apoia na psicologia aristotélica, estabelecendo um paralelismo
articulí-principia, que comporta também o outro paralelismo lumen fidei -
intellectus principiorum, e mais um terceiro, entre o mundo exterior como
ponto de partida da ciência, e a obediência a uma pregação de autoridade
como ponto de partida da fé. Eis alguns textos significativos:

(1) “ Ista doctrina habet pro principiis primis articulos fidei, qui per lumen
infusum per se noti sunt habenti fidem, sicut et principia naturaliter
nobis insita per lumen intellectus agentis. Nec est mirum si infidelibus
nota non sunt, qui lumen fidei non habent; quia nec etiam principia
naturaliter insita nota essent sine lumine intellectus agentis. Et ex istis
principiis, non respuens communia principia, procedit ista scientia”.
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(2) “habitus autem istorum principiorum, scilicet articulorum, dicitur
fides et non intellectus, quia ista principia supra rationem sunt, et
ideo humana ratio ipsa perfecta capere non valet... Sed tamen ratio
manu ducta per fidem excrescit in hoc ut ipsa credibilia plenius
comprehendat, et tunc ipsa quodammodo intelligit”.

(3) “Tertio [fides potest dici argumentum] in quantum lumen infusum,


quod est habitus fidei, manifestat articulos, sicut lumen intellectus
agentis manifestat principia naturaliter cognita”.

(4) “habitus scientiae inc1inat ad scibilia per modum rationis ... Sed
habitus fidei, cum non rationi innitatur, inc1inat per modum naturae,
sicut habitus principiorum” .

(5) “Praeterea lumen fidei se habet ad articulos sicut lumen naturale ad


principia naturaliter cognita. Sed lumen naturale facit videre principia
per se nota. Ergo et lumen fidei facit videre articulos... Ad secundum
dicendum quod termini principiorum naturaliter notorum sunt
comprehensibiles nostro intellectui; ideo cognitio quae consurgit de
illis principiis est visio; sed non est ita de terminis articulorum. Unde
in futuro quando Deus videbitur per essentiam, articuli erunt ita per
se noti et visi sicut modo principia demonstrationis”11.

11 ln 1 Sent., prol., art. 3, sol. 2, ad 2; lbid., sol. 3, ad 3; ln 111 Sent., d. 23, q. 2, art. 1, ad 4; 1bid.,
d23, q. 3, art. 3, sol. 2, ad 2; 1bid., d. 24, q. 1, art. 2, sol. 1, obj. 2, et ad 2.
Santo Tomás distingue aqui entre o hábito infuso que é a fé e o hábito
adquirido que é a teologia:

“Sicut habitus principiorum non acquiritur per alias scientias, sed


habetur a natura, sic acquiritur habitus conc1usionum a primis
principiis deductarum, ita etiam in hac doctrina non acquiritur habitus
fidei, qui est quasi habitus principiorum, sed acquiritur habitus eorum
quae ex eis deducuntur et quae ad eorum defensionem valent”12.

Aparecejáaquiumanoçãoque SantoTomásdesenvolverásucessivamente,
isto é, a noção de subalternação e quase-subalternação:

“Potest autem scientia aliqua esse superior alia dupliciter: vel ratione
subiecti, ut geometria, quae est de magnitudine, superior est ad
perspectivam quae est de magnitudine visuali; vel ratione modi
cognoscendi, et sic theologia est inferior scientia quae in Deo est. Nos
enim imperfecte cognoscimus id quod ipse perfectissime cognoscit;
et sicut scientia subaltemata a superiore supponit aliqua, et per
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illa tanquam per principia procedit, sic theologia artículos fidei qui
infallibiliter sunt probati in scientia Dei, supponit, et eis credit, et per
istud procedit ad probandum ulterius illa quae ex articulis sequuntur.
Est ergo theologia scientia quasi-subaltemata divinae scientiae, a
qua accipit principia sua”13.

O raciocínio de Santo Tomás no comentário às Sentenças apoia-se,


portanto, sobretudo, no paralelismo entre a iluminação da fé na teologia, e a
iluminação do intelecto agente nos princípios da ciência.

 No comentário in Boethium de trinitate e na Summa (possivelmente o


primeiro é também anterior no tempo, mas a diferença doutrinal entre os
dois, neste ponto, é somente de acento), a argumentação de Santo Tomás
acrescenta apenas uma coisa, isto é, ele desenvolve mais a teoria fundamental
da subalternação. Na ciência concebida à maneira aristotélica, existe uma
autonomia dos campos junto com uma unidade fundamental do espírito,
fundamentada sobre a potência e sobre a analogia do ser. A união mútua dos
diversos “saberes” é feita pelas crenças, as quais subordinam mutuamente as
várias ciências.

12 ln I Sent., prol., art. 3, sol. 2, ad 3.


13 Ibid.
A teologia é simplesmente um caso particular desta subalternação, onde
o saber humano subordina-se, como a princípios, ao saber de Deus e daqueles
que vêem Deus:

(1) “Etiam in scientiis humanitus traditis sunt quaedam principia in


quibusdam earum quae non sunt omnibus nota, sed oportet ea
supponere a superioribus scientiis; sicut in scientiis subalternatis
supponuntur et creduntur aliqua a superioribus scientiis
subalternantibus, et hujusmodi non sunt per se nota nisi superioribus
scientiis. Et hoc modo se habent articuli fidei, qui sunt principia hujus
scientiae, ad cognitionem divinam, quia ea quae sunt per se nota in
scientia quam Deus habet de seipso, supponuntur in scientia nostra,
et creditur ei nobis hoc indicanti per suos nuntios, sicut medicus
credet physico quattuor esse elementa” 14.

50 (2) “Sciendum est quod duplex est scientiarum genus. Quaedam enim
sunt quae procedunt ex principiis notis lumine naturali intellectus,
sicut arithrnetica, geometria, et huiusmodi. Quaedam vere sunt
quae procedunt ex principiis notis lumine superioris scientiae,
sicut perspectiva procedit ex principiis notificatis per geometriam,
et musica ex principiis per arithrneticam notis. Et hoc modo sacra
doctrina est scientia, quia procedit ex principiis notis lumine sperioris
scientiae, quae scilicet est scientia Dei et beatorum. Vnde sicut musica
credit principia tradita sibi ad arithrnetica, ita doctrina sacra credit
principia revelata sibi a Deo»15

É evidente a necessidade de precisar um tanto este paralelismo (cr. o texto


das Sentenças citado acima, nota 13), pois na teologia não há subalternação de
objeto, mas somente de princípio, o que limita a autonomia do teólogo de maneira
muito mais radical (humanamente falando) do que acontece com o cientista no
seu campo próprio. Quer dizer, na teologia não se aceitam por fé determinados
princípios para poder constituir ou chegar a um objeto diferente, mas precisamente
por ser este objeto inacessível somente a razão: trata-se de uma subalternação no
mistério. Por isso a teologia pode, sim, ser considerada uma ciência, mas sempre de
maneira imperfeita, ou, se preferirmos, analógica, aos olhos das ciências humanas.

14 In boethíum de Trínitate, q. 2, art. 2, ad 5.


15 Summa Theologíae, I, q. 1, a. 2.
2.3 – Resumindo

Em primeiro lugar, a explicação tomista tem a vantagem de partir dos


pressupostos mesmos do problema, possuindo, por isso, uma singular capacidade
de atração para a colocação exata do mesmo.

Em segundo lugar, creio que pode existir o risco de exagerar


unilateralmente o assim chamado “intelectualismo” tomista. Na realidade,
o nervo da argumentação de Santo Tomás é a fé, a fé como iluminação e a fé
como obediência. Iluminação e subalternação procedem ao mesmo passo.
Certamente, a sacra doctrina (neste novo sentido: aqui a terminologia está
atrasada em relação à idéia) resulta uma disciplina complexa, que compreende
mais ou menos tudo aquilo que de alguma maneira pode ser chamado um
ensino da, ou sobre a, revelação, de maneira que ela, como tal, é formalmente
diferente da fé. Mas a fé (repetimos, a fé compreendida conjuntamente como
auditus e como lumen), é a alma da teologia, da constituição dos seus princípios,
da codifi dos seus artigos, da sua construção cientifi a: “fides est quasi
51
habitus theologiae” 16.

Em terceiro lugar, portanto, não podemos identifi de maneira


demasiado simplista, a teologia tomista com a ciência das conclusões, como mais
tarde outros farão, distinguindo o revelatum, que é objeto de fé, e o revelabile,
ou seja, o virtualmente revelado, que seria o objeto da teologia. Em Tomás de
Aquino a alma da teologia é o dinamismo da fé, “à Ia mesure démesurée de

16 In boethium de Trinitate, q. 5, a. 4, ad 8. Neste ponto o pensamento tomista evoluiu. Cf. In I


Sent., prol. art. 3, sol. 2, ad “e”: “ln hac doctrina non acquiritur habitus fidei, qui est quasi habitus
principiorum, sed acquiritur habitus eorum quae ex eis deducuntur”. Cf. também Dictionnaire
de Théologie Catholique, cit., c. 460:“Selon saint Thomas, il y a science quand ex aliquibus no tis
alia ignotiora cognoscuntur, et l’enseignement chrétien prend une forme de science quand ex
his quae fide capimus primae veritati inhaerendo, venimus in cognitionem aliorum secundum
modum nostrum, sci/icet discurrendo de principiis ad conc/usiones (In boethium de Trinitate,
q. II, a. 2). Notre science à nous est discursive et procede par raisonnement; mais, sur Ia base
de ce que Dieu nous a communiqué de sa science de lui-même, à quoi nous adhérons par
Ia foi, nous nous efIorçons de rattacher Ies ignotiora aux notis et finaIement toutes choses,
hiérarchiquement, au mystere unique et à Ia lumiere seule premiere de Dieu (In boethium de
Trinitate, q. II, a. 2). La théologie est science, et elle tend même à imiter, modo humano, Ia science
de Dieu: impressio divinae scientiae, vajusqu1à dire saint Thomas (Summa Theologiae, I, q. 1,
a. 3, ad 2; cf. In boethium de Trinitate, q. III, a. 1, ad 4). Ceci n1est pas une formule éloquente,
mais une expression techniquement précise de ce qu1est Ia théologie pour saint Thomas. Ainsi
Ia théologie nous apparait-elle comme un efIort, de Ia part de l’être rationnel croyant, pour
repenser Ia réalité comme Dieu Ia pense, non plus au plan de Ia simpIe adhésion de Ia foi, mais
au plan, aves les ressources et par les voies da Ia connaissance discursive et rationnelle. Elle est
un double de Ia foi, de mode rationnel et scientifique”.
cette rencontre de Dieu et de l›homme»17. O Pe. Chenu conclui, a meu ver com
justeza:

“Plus précisément, Ia doctrina sacra, l’enseignement chrétien, qui


comporte tant d’aspects et de modes n’appartenant pas de soi
à l’ordre de Ia science ... La doctrina sacra vérifie, dans l’une de ses
activités maitresses, dans 1 ‘une de ses fonctions propres, Ia qualilté
de science »18.

2.4 - Tomás de Aquino -seja-me perdoado este lugar comum- representa


uma síntese. Sua teologia não se encontra realmente em oposição (enquanto
ciência) à sapientia agostiniana, antes assume-a de maneira até então insólita,
dentro de uma visão mais confiada na razão humana (a época das Sumas ... !):

“Sapientia non dividitur contra scientiam , sicut oppositum contra


52 oppositum, sed quia se habet ex additione ad scientiam”19

Esta teologia não pode ser concebida nem realizada senão dentro de uma
vida de fé ardente que utiliza, sim, todos os possíveis recursos e instrumentos
racionais, mas cuja alma é o evangelismo, como podemos ver também nos escritos
bíblicos tomistas, que são obras também de crítica textual e de explicação. O
problema não é substituir Santo Agostinho com Aristóteles, embora o amor do
saber tenha transplantado o intelectualismo grego num clima bem diferente. Não
é Tomás de Aquino, mas o Nominalismo e, mais tarde, a Reforma20 que introduzirão
realmente a fratura, a divisão entre a fides e o intellectus, contribuindo em grande
parte à formação da consciência crítica moderna. Começa-se a diferenciar sempre
mais a fé e a razão, com novos métodos de acesso à realidade, que produzirão
uma dissociação entre os elementos do conceito clássico de teologia, provocando
também mais tarde a eclosão da mesma em muitas e diferentes “matérias”. Mas,
com estes elementos, deveríamos entrar já numa nova época, o que os limites
deste trabalho não consentem ...

17 M.D. ChENU, La théologie comme science auxIle siec/e, Vrin, Paris 1957, p. 78.
18
19 In boethium de Trinitate, q. 2, a. 2, ad 1.
20 Cí. W. KASPER, op. cit., pp. 22-25. Sobre o Nominalismo, cí. as análises de h. bLUMENbERG, Die
Legitimitiit der Neuzeit, Suhrkamp Verlag, frankfurt 1966.
3. PENSANDO NO PRESENTE...

3.1 - No momento atual, para podermos falar de ciência, requerem-se


bem outros presupostos.

A ciência moderna pretende - digo propositalmente “pretende”, para


não passar a impressão de que a ciência moderna já está constituída de maneira
absoluta, universal e infalível- antes de mais, a objetividade, no sentido de uma
validez mais ou menos universal, ou pelo menos muito ampla. Objetividade,
porém, não apenas no sentido individualista: isto é, uma objetividade que não
deixa de fora o sujeito, e que, de certa maneira, poderia ser chamada melhor
intersubjetividade21 .

Ela pretende, depois, o caráter de positividade, que significa a


coerência com os fatos, e uma total submissão ao controle da experiência.
Mais recentemente, esta positividade foi mudada pela operatividade o Isto não
53
significa que a ciência queira se reduzir apenas aos fatos em bruto, ao empirismo;
pelo contrário, ela pretende também possuir um caráter de racionalidade, que se
concretiza no esforço de conhecer um determinado campo da realidade (sistema),
conhecimento obtido de uma maneira adequada ao seu objeto (método) e que,
por sua vez, tende a se integrar dentro de um sistema racional e comunicável.

Porúltimo, aciênciamodernacaracteriza-sepelasuacontinua revisibilidade


e pela autonomia que reivindica diante do pensamento filosófico e teológico, isto
é, do pensamento determinado por instâncias “supra-racionais” ou inspiradas no
âmbito “religioso”.

Conseqüentemente, a ciência moderna, ainda que com uma marcada


tendência tecnicista e racionalizante, não é, nem pode ser -embora o pretenda-
puramente e simplesmente e somente prática. Apesar de tudo, ela continua
sendo, de certa maneira, abstrata, pelo menos na medida em que ela busca um
conhecimento da realidade além dos problemas mais imediatos, para atingir as
causas, as razões, os fundamentos das coisas e dos fatos. Portanto, a ciência poderia
ser descrita, hoje, segundo holzamer, como “a sempre novamente adquirida
21 Cf f. SELVAGGI, Scienza, Enciclopedia filosofica, t. IV, Sansoni, firenze 1957, c. 443; M. MÜLLER,
Wissenschaft, Lexikon für Theologie undKirche, 10 (1965), c. 1189: “Daher erheben die wissens-
chaft liche Erkenntnisse Anspruch ‘alIegemeingültig’, grundsatzlich ‘intersubjetiv’ gültig, an alIe
Subjekte vermittelbat zu sein; wenngleich bestimmte Erkenntisse bestimmten Subjekten tat-
sach1ich (info1ge individuelIen begabungsgrenze, Interesserichtungen, geschichtlichen bedin-
gheiten) unzuganglich bleiben kõnnen und werden” .
plenitude sobre a verdade certa (ou à probabilidade certa) das afirmações que
se referem à totalidade dos fundamentos de um determinado argumento,
considerado como um conjunto” 22

3.2 - De tudo isto resulta uma observação muito importante: nesta situação
não é possível privilegiar, e menos ainda exclusivizar um único conceito universal
de ciência, que fosse igualmente válido para todas as ciências e para todos os
homens. A mesma reflexão a propósito da classificação e da mútua relação entre
as ciências, não é uma conseqüência delas, mas de certa maneira as precede23 .

Deve-se também sublinhar que a ciência nunca existe sem pressupostos


(voraussetzunglos), pois a constituição do seu objeto formal e do seu método
respectivo é certamente algo prévio (pelo menos parcialmente) ao seu exercício
concreto. A ciência, uma ciência, admite somente aqueles pressupostos
indispensáveis para a constituição do sujeito cognoscente e para o exercício
54 da mesma ciência, ou seja, as condições para adquirir e controlar o saber
científico24. Isto equivale a colocar a pergunta sobre se a ciência conhece as coisas
nelas mesmas, ou se as coisas são pelo fato de serem conhecidas como tais. A
Antigüidade e o Medioevo afirmaram uma concepção metafísica da ciência em
geral, mesmo das ciências naturais. A ciência moderna, do seu lado, aceita uma
relação constitutiva e apriorística do espírito humano somente a respeito das
manifestações e tematizações do ente, e não sobre a sua “substancialidade”. Por
isso a ciência moderna não exclui a relação com o sujeito pensante, antes pelo
contrário, sem por isso considerar-se não-objetiva25. Poderíamos dizer, talvez de
maneira um tanto simplista, que o pressuposto principal da ciência moderna não
é uma “natureza” precedente e diferente do homem, mas o homem como tal. E no
nosso tempo esta afirmação quebra os seus possíveis limites individualistas para
atingir, desprivatizando-se, o nível da humanidade:

“Ainsi l’humanité prend-elle conscience d’elle-même comme d’une


totalité en expansion. On peut imaginer, avec Teilhard de Chardin,
que l’espece humaine, en recouvrant Ia surface de Ia terre, vient en
quelque sorte buter sur elle-même, et que ce phénomene d’implosion
provoque le passage à un stade nouveau» 26.

22 K. hOLZAMER, Wissenschaft, Staatslexikon, 2 (1963), cc. 873-874.


23 M. MULLER, loc. cit., c. 1190.
24 Lexikon filr Theologie und Kirche, cit., c. 1189; A. hALDER - M. MÜLLER, Ciencia, Sacramentum
Mundi, 1. 1, herder, barcelona 1982), cc. 722-737 (cf. também o. MUCK, Teoria de Ia ciencia, Ibid.,
cc. 737-745.
25 Cf. hALDER-MÜLLER, art. cit., c. 736.
26 J.M. DOMENACh, Visage du monde contemporain, em “bilan de Ia théologie du xxe siecle”, 1.
I.Casterman, Paris 1970, p.22
O interesse (no sentido habermasiano) da ciência moderna atual é o
homem ou, melhor, a humanidade, e isto manifesta-se também na sua tendência
crescente (na seqüência das ciências da natureza) à predição, orientando-se para
um futuro cuja sorte se vê nas mãos da humanidade, mas certamente não de
maneira pré-determinada e infalível:

“La conscience mondiale n’a guere dépassé encore le stade de Ia


peur des catastrophes dont nous sommes devenus capables. Mais,
peut-être, s’agit-il d’un commencement prometeur ... En tout cas,
que notre jugement soit optimiste ou pessimiste, une chose est
certaine: l’humanité est en train de se rassembler pour le meilleur
ou pour le pire. L’émancipation, inéluctable, débusque un à un les
peuples quei subsistaient dans l’ombre de l’istoire. Nul ne peut plus
prétendre à un destin séparé. Comme Péguy l’avait déjà senti, il n’y a
plus d’humanité de réserve. L’humanité avance, sans ligne de répli ;
elle prend un seul et mêmerisque. Qu’elle se perde ou se sauve, ce
sera solidairement». 27

3.3 - Diante do conceito moderno de ciência, tanto a filosofia quanto a


55
teologia não ficam certamente e necessariamente excluídas, a priori, ainda que
elas tenham em comum um certo caráter supra-racional e, no caso da teologia,
pressupostos chamados sobrenaturais, que fazem dela uma ciência-limite. Por
isso, como já foi dito -e na impossibilidade de desenvolver a fundo o estatuto
epistemológico da teologia- em alguns lugares chegou-se recentemente à
pretensão de exclui-Ia do âmbito universitário.

O mínimo que pode ser dito é que esta problemática é muito ambígua,
pois na realidade não se vê muito bem se se trata de uma real libertação da fé ...
ou da sua submissão à nossa sociedade «unidimensional». Contudo, ela obriga
à teologia a um sério re-pensamento dela própria, especialmente quando, não
ficando satisfeita somente com se apresentar como um discurso confessional
repetitivo, pretende cumprir exigências sistemáticas e se assentar sobre seus
próprios fundamentos.28

Concluindo estes breves apontamentos, não posso deixar de lembrar


como esta questão da teologia como ciência, que nela mesma poderia parecer
puramente acadêmica, na realidade toca um ponto vital: estou me referindo à
importância do elemento cognoscitivo para a vida cristã; mais ainda, à prioridade do
27 ID., ibid., p. 27.
28 Cí. M. xhAUffLAIRE, La théoiogie entre ia contestatíon et i’intégratíon. Queiques recherches
actuelles, revue des Sciences Phi1osophiques et Théo1ogiques, 54/3 (1970), pp. 552-553.
elemento cognoscitivo sobre o mesmo elemento operativo, na vida cristã. baste
lembrar algumas das objeções ou discussões a respeito do recente «Catecismo da
Igreja Católica»: para que, afinal, perguntam alguns, toda essa afirmação no nível
da doutrina, quando o que interessa é a prática ... ?

Será mesmo .. ?

Por um lado, o texto mesmo do «Catecismo» não faz segredo nenhum em


confessar que ele carrega o acento na exposição doutrinal (N. 23), deixando para as
outras instâncias as adaptações expositivas e metodológicas necessárias.

O cardeal Ratzinger, responsável principal pelos trabalhos que levaram


à redação final e a publicação deste texto fundamental, em repetidas ocasiões
falou e retomou o mesmo argumento. E não há dúvida nenhuma de que o texto
do “Catecismo” privilegia a dimensão “veritativa” da fé e da catequese. A respeito
disto nota um comentador:

56 “Privilegiando a exposição doutrinal, carregando o acento sobre


o conhecimento da fé, ele evidencia... a importância, o papel
insubstituível da ‘ratio intelligendi’ sobre a ‘ratio agendi’, a prioridade
e o papel de guia-luz que o conhecer tem sobre o agir, inclusive no
âmbito cristão, sem por isso diminuir a importância da circularidade
existente entre ‘lex orandi, lex credendi, lex vivendi’“29 .

De fato, o homem, o cristão, não é lógico somente quando exerce uma


lógica formal de maneira científica ou pré-científica; por outro lado, a reflexão
não é um luxo suplementar e opcional para o homem, mas um momento da
totalidade originaria do seu ser. O espírito de pesquisa científica não permite à
teologia ficar somente no passado, hipostatizando suas formulações. De fato a
desconfiança sobre o caráter científico da teologia é justificada, de muitos pontos
de vista; o perigo, todavia, consistiria na renúncia a este caráter cientifico de uma
teologia destinada ao serviço da igreja. Santo Tomás, no seu tempo, seguiu, com a
sua teologia, a lei da pesquisa e da revisão dos resultados do passado, juntando a
isso os frutos do seu trabalho pessoal; é por isso que ele se tomou um teólogo que
de certa maneira antecipou os tempos e que exercitou uma grande influência na
história da teologia. Infelizmente, os discípulos nem sempre estiveram à altura do
mestre. A doutrina dos grandes teólogos (Orígenes, Agostinho, Tomás, Scheeben
... ) é sempre um válido apoio para uma pesquisa teológica fiel à tradição, à
condição de que a teologia não se limite a uma repetição mecânica (ou quase)

29 R. MARTINELLI, Perche il Catechismo della Chiesa cattolica? Sua attualità nella Chiesa e nei
mondo di oggi, L’Osservatore Romano, 31.10.1992, pp. 7-8.
do que já foi dito. O espírito de pesquisa obriga a teologia a formular opiniões,
cuja validez nem sempre é sustentada pela tradição teológica do passado .. As
dificuldades, parece-me, não nascem tanto do fato de formular novas teorias,
mas, sobretudo, do desejo, muitas vezes demagógico, de divulgar em seguida as
próprias opiniões para os fiéis de qualquer condição. Ora, uma ciência consciente da
própria responsabilidade, começa em primeiro lugar verificando a fundo as suas
hipóteses, transmitindo os resultados aos outros homens somente quando se tem
uma segurança pelo menos relativa de que eles se sustentam verdadeiramente.
Do contrário, o teólogo é tão criminosamente irresponsável quanto o laboratório
que distribui um remédio novo sem suficiente experimentação sobre seus
resultados e efeitos colaterais. Sim, existe também a corrupção teológica, a
busca de notoriedade, ou de justificativa para as próprias opções pessoais, ou,
simplesmente, a falta de seriedade e rigor intelectual, o que torna o teólogo,
aos meus olhos, gravemente leviano. Este sentido de responsabilidade deveria
acompanhar sempre a ciência teológica.

Certamente, a pesquisa teológica não é confiada somente à fé dos


teólogos, mas também à sua capacidade científica, motivo pelo qual ela pode
produzir opiniões imperfeitas, pouco seguras, até erradas. A teologia, como toda
57
ciência, tem o “direito de errar”. Este risco é inerente a toda pesquisa humana,
sendo também parte do preço que a teologia deve pagar se quiser alimentar
o progresso no conhecimento do mistério de Cristo. As opiniões erradas dos
teólogos não são muito perigosas quando acompanhadas da humildade que
caracteriza toda e qualquer pesquisa cientifica “verdadeira”, e quando os teólogos
estão prontos a “verificar” antes de “divulgar”, como aliás faria qualquer “cientista”
sério. Um erro, todavia, pode se tomar perigoso quando é acompanhado de uma
atitude de excessiva segurança que impede ao teólogo aceitar um componente
essencial da ciência: a revisibilidade das próprias opiniões. Por outro lado a história
da teologia conhece também casos de opiniões que na realidade alimentaram
um autêntico progresso, mas que em alguns momentos foram até condenadas
por autoridades eclesiásticas; muitos teólogos que hoje contam, não foram
sempre compreendidos e aceitados no seu tempo, o que vale não somente para
Orígenes, ou, modernamente, para Newman, Scheeben ou Rosminí, mas até para
o mesmíssimo Santo Tomás de Aquino, mais de uma vez condenado em Paris. A
capacidade e a audácia de um autêntico gênio teológico, pode provocar facilmente
uma reação negativa entre aqueles que, por uma razão qualquer, preferem sempre
a priori as formulações alcunhadas no passado. A prudência é, certamente, uma
virtude, mas quando lhe falta a tensão para o futuro e o impulso criativo, toma-
se uma etiqueta que recobre amiúde a mediocridade e a preguiça intelectual. A
pesquisa teológica, como toda pesquisa que olhe para frente, deve aceitar o risco
de não ser compreendida logo, inclusive por aqueles a quem pretenderia servir.
Este risco pode ser aceito somente com humildade e com sentido profundo
de responsabilidade pelo conjunto da igreja; o teólogo deve pensar, deve viver,
não só e principalmente “em primeira pessoa do singular”, mas, ao mesmo
tempo, em todas as pessoas da declinação humana.

Uma Igreja que deixasse desvalorizar a teologia, que aceitasse a diminuição


da sua seriedade de fé e de ciência, conjuntamente, que não tentasse formar
os seus quadros, clericais ou leigos, na vivência do Evangelho e na
competência profissional, estaria fadada a um futuro nada risonho. E. na
minha opinião, ela teria feito por merecê-lo.

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