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Texto da aula Aulas do curso

Cartas de um Diabo a seu Aprendiz

O feiticeiro materialista
O materialista não é necessariamente alguém que nega por princípio a existência de realidades além da matéria,
mas alguém que atribui à matéria tanta importância, que a ela tudo subordina, a ponto de colocá-la no lugar de
Deus. É, numa palavra, um idólatra.

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Na Carta VII [1], debate-se a conveniência ou não de os homens saberem da existência dos
demônios. Pode-se até imaginar o inexperiente Wormwood a ensaiar sua primeira aparição ao
paciente, com requintes dignos de um filme de terror. Mas a orientação de Screwtape é bem
outra: o alto-comando (high command) do inferno decidiu que, atualmente, os demônios não
devem apresentar-se aos homens. 

Por isso, todas as vezes que um paciente achar que o diabo existe, há que fazê-lo pensar que o
diabo é como um homem qualquer, mas de calça legging vermelha, chifres e tridente… Noutras
palavras, algo ridículo a que ninguém em são juízo daria crédito. Mas por que o inferno decidiu
atuar por baixo dos panos? Porque uma das formas mais eficazes de perder uma alma é torná-
la materialista, mas de um tipo peculiar de materialismo, que une a falta de fé no que é
razoável crer ao excesso de credulidade no que é absurdo acreditar.

Essa mistura aparentemente contraditória tem como resultado o que Lewis chama the
materialist magician, o “feiticeiro materiliasta”. Ora, o que caracteriza o materialismo, ao
menos o que é interesse dos demônios alcançar, mais do que a suposição de que não existe
nada além do mundo material e quantitativo, é a convicção de que a matéria é o que há de
mais importante. Trata-se, portanto, mais de uma inversão que de uma negação propriamente
dita. Afinal, ao diabo interessa menos que o homem seja um materialista teórico, para quem
tudo se reduz à esfera do mensurável, que um prático, para quem Deus é o próprio ventre.

Se a ordem divina, por um lado, é que o imperfeito esteja subordinado ao mais perfeito — no
caso do homem, o corpo à alma e esta a Deus —, a desordem diabólica consiste em sujeitar o
mais ao menos perfeito. E o que a feitiçaria tem a ver com tudo isso? Lewis, na verdade, já
falara de feiticeiros materialistas em outros livros. É famosa, por exemplo, sua trilogia de
viagens espaciais. No segundo volume, Perelandra, sobre uma viagem a Vênus, um dos
personagens da série, o Prof. Weston, passa por uma metamorfose e, na nova etapa de sua
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evolução, ele se dá conta da “unidade profunda” entre todas as coisas, inclusive entre Deus e o
diabo, e da existência de “forças cósmicas” que tudo penetram e invadem.

Weston é o paradigma de feiticeiro materialista, alguém que se imagina superior na “escala


evolutiva”, a par de tudo o que de mais recente tem dito a ciência, e ao mesmo tempo porta-voz
de crendices pseudo-místicas. Um excelente raio-x desse tipo tão peculiar encontra-se na
Encíclica Pascendi, na qual o Papa São Pio X sintetiza os principais erros da heresia
modernista. Não sabemos se Lewis chegou a ler o documento pontifício, mas o fato é que o
feiticeiro materialista que Screwtape deseja forjar enquadra-se muito bem entre os
modernistas do século XIX.

Lewis escreveu esta carta em 1941. Trazendo-a para os dias de hoje, onde podemos ver sinais
disso que ele está denunciando? Na falsa espiritualidade da “Nova Era”, que encontrou espaço
até mesmo na Igreja Católica. Quantos fiéis hoje em dia, achando-se muito críticos para crer na
historicidade dos evangelhos, preferem crer em forças cósmicas, vibrações e energizações, a
ponto de esfregarem as mãos no Santíssimo para receber algum “influxo” positivo!

Para estes, Jesus nunca andou sobre as águas, foi apenas um delírio dos Apóstolos; jamais
multiplicou pães, somente ensinou a “partilha”; nem curou leprosos, só incluiu os excluídos,
etc. E no entanto acreditam na força milagrosa de chás, de florais de Bach, na existência de
energizações por pensamento, em chakras…

O estranho, porém, não é que creiam, porque ter fé, em certo sentido, é natural ao ser humano; o
estranho é que, rejeitando o que é racional crer, acabam crendo em qualquer coisa absurda.
Trocam a fé verdadeira por uma contrafação dela, na qual se mesclam de forma indigesta as
maiores tolices. Na época de Lewis, ainda era possível topar na rua com um cético de pedigree,
que não cria em nada além de si mesmo. Hoje, é quase impossível não conhecer alguém que se
diga cético, mas creia em qualquer novidade, nos modismos e nas ideologias em voga, isto é,
no que todo o mundo está dizendo.

“Nós”, diz Screwtape, “temos de emocionalizar e mitologizar a ciência deles”, ou seja,


transformar a ciência em mito, para que os homens pensem ser “científico” e, portanto,
inquestionável aquilo que os agrada, aquilo que não contradiz o conforto, aquilo que os deixa
sossegados no próprio egoísmo.

Na segunda parte da carta, discute-se um assunto já mencionado na missiva anterior: “Quero


saber detalhadamente sobre o seu paciente para saber se vamos ou não instigar nele o
pacifismo ou o patriotismo”. Screwtape recorda ao sobrinho: “É importante que você instigue
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no seu paciente os extremismos porque qualquer extremismo é bom para nós, desde que não
seja extrema a devoção” a Deus, o que seria inaceitável para os planos do inferno.

Com efeito, há períodos da história em que a humanidade se encontra afundada na tibieza,


morna, sem vitalidade, e os demônios sabem aproveitar-se dessa inércia para levar os homens
ao inferno por simples inação. Mas não é isso o que se via em 1941 na Inglaterra, tempo de
grandes polarizações. E também elas têm serventia para o trabalho do diabo. De fato,
Screwtape adverte o sobrinho: “Faça-os usar o pacifismo ou o patriotismo como parte de sua
religião inicialmente”, como se fosse essencial à identidade religiosa inglesa ser um patriota
ou ser pacifista. Inculquem-se para tanto ideias como: “Jesus dizia que precisamos defender a
família e a pátria”; ou “[...] que não podemos pegar em armas, que temos de buscar em tudo a
paz e a concórdia”.

O valor em jogo pouco importa. O importante é convencer os homens de que ele é elemento
integrante da religião para que, com o tempo, passem a vê-lo como algo superior à própria
religião, a qual está, na verdade, a serviço e em função dele. Este valor, ou fim, é algum bem
social ou político; a religião é simples meio. Se você é católico, por exemplo, deve converter os
outros ao catolicismo, não para que se salvem, mas porque o catolicismo é um meio sem o qual
não iremos alcançar a paz, razão por que deve lançar mão dos recursos materiais da Igreja para
fazer avançar a causa política do pacifismo.

Com isso, transforma-se a religião em besteira, em simples meio para alcançar um fim intra-
mundano, político, imanente — um suposto paraíso terreno, seja o de esquerda, em que todos
viveriam em paz perpétua, sem males nem desigualdade, seja o de direita, em que os valores
da moralidade e da pátria sejam finalmente alcançados e respeitados por todos. Em qualquer
dos cenários, no entanto, a religião não passa de instrumento de marketing para arrebanhar
seguidores. 

“Wormwood, se você conseguir fazer isso com o seu paciente, ele está no papo. Ele é nosso! A
única coisa que ele não pode descobrir é que a finalidade de tudo é Deus, e não esse mundo”.
Nessa obra diabólica, vale até converter a religião em fim último, pois o que é importa é varrer
a Deus da memória do homem. É assim que se produzem facções dentro da Igreja, cada uma
das quais se crê portadora da verdade última: há o pessoal do véu, o das correntes de
consagração a Nossa Senhora, o de anel de tucum e de atabaque…

Os grupos, em si mesmo, são coisa indiferente. O que o diabo quer é dividir a Igreja, para que os
fiéis vivam a religião como se fosse um time ou um partido: o apostolado degrada-se em
marketing, e todo aquele que não pensar estritamente como os do “nosso lado” estará
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necessariamente do lado errado.

Aqui, é claro, o que menos importa é a verdade. Quer se trate de causas políticas de esquerda ou
de direita, quer se trate de causas intra-eclesiais de facções em luta por território, tudo vale,
desde que o homem deixe de viver para servir a Deus e passe a servir-se de Deus a fim de viver
para si mesmo. Aqui está o trunfo do demônio.

“Nessas dificuldades humanas de polarização, seja política, seja dentro da Igreja, o que nós
temos de evitar é fazer com que a alma do seu paciente enxergue que todos esses conflitos, no
fim das contas, são material para a obediência a Deus. Ele não pode perceber isso”. Sim, as
tribulações são ocasião de obedecermos à vontade de Deus, abraçando a cruz e renunciando a
nós mesmos. Por isso, busca o diabo fazer-nos esquecer o valor das dificuldades para que
usemos a religião como meio em prol de causas mundanas, materialistas, transitórias,
passageiras, com o fim de erradicar todos os males deste mundo.

Screwtape conclui a carta com uma frase tremenda, medonha, que dá arrepios de ler: “Se você
vier ao inferno, vou mostrar para você uma jaula cheia de gente religiosa. É uma delícia ver
pessoas que foram religiosas a vida inteira e agora estão no poder do Pai das profundezas”. Em
última análise, o que esta carta nos ensina é o que Nosso Senhor Jesus Cristo já nos ensinara:
Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será acrescentado.

Não há verdadeiras soluções para os dilemas humanos, seja em que esfera for, se Deus não
fizer parte delas. Se faltar o essencial, que é o reinado de Cristo em cada coração, todo
empreendimento humano está fadado ao fracasso, não só pelo destino último ao qual se
condenam as almas sem Deus, mas pela impossibilidade prática de o homem construir
qualquer coisa digna e duradoura sem sujeitar-se à lei e à graça divinas.

Não significa que a nossa fé não tenha repercussões sociais. Sim, ela as possui; Cristo, porém,
jamais será rei de nossa sociedade se, antes, não estiver reinando na alma dos cidadãos.

Referências

1. Cf. C. S. Lewis, Cartas de um diabo a seu aprendiz. Trad. port. de G. Greggersen. Rio de Janeiro: Thomas
Nelson Brasil, 2017. p. 46-50.
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