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VIRTUDES HUMANAS
SUMÁRIO

1. A Ética como ciência antropológica.....................................................................................................6


1.1 Psicologia e finalidade humana............................................................................................................................. 6
1.1.1 O “Princípio de Nirvana” em Freud: ........................................................................................................................................ 6
1.1.2 O finalismo ficcional de Adler: .................................................................................................................................................. 7
1.1.3 Frankl e a busca por sentido: ..................................................................................................................................................... 7
1.1.4 Seligman e a felicidade: ................................................................................................................................................................ 7
1.2 Preconceitos sobre ética............................................................................................................................................ 7
1.3 Vontade e liberdade...................................................................................................................................................... 8
1.4 Virtude não é ataraxia — o lugar das paixões.............................................................................................. 9
1.5 A noção de perfeição e a virtude.......................................................................................................................... 9

2. As virtudes humanas.................................................................................................................................. 11
2.1 Reta razão e unidade do bem............................................................................................................................... 11
2.2 As virtudes cardeais.................................................................................................................................................... 11
2.2.1 Prudência................................................................................................................................................................................................. 11
2.2.2 Justiça ..................................................................................................................................................................................................... 12
2.2.3 Fortaleza................................................................................................................................................................................................. 12
2.2.4 Temperança ....................................................................................................................................................................................... 12
2.3 Como as virtudes são adquiridas? ...................................................................................................................12
2.3.1 Figura: Pedagogia da afetividade........................................................................................................................................ 12
2.4 Não bastam as aparências.....................................................................................................................................13
2.5 O virtuoso, o continente, o incontinente e o vicioso..............................................................................13

3. Prudência..........................................................................................................................................................15
3.1 Confusões sobre o significado de prudência............................................................................................. 15
3.2 Omnis virtus moralis debet esse prudens........................................................................................................ 15
3.3 Educação da razão e realidade........................................................................................................................... 15
3.4 Consciência circunstancial.....................................................................................................................................16
3.5 O triângulo da prudência.........................................................................................................................................16
3.5.1 Figura: as direções da prudência......................................................................................................................................... 17
3.6 As virtudes anexas à prudência.......................................................................................................................... 17
3.6.1 Memoria: ................................................................................................................................................................................................ 17
3.6.2 Intellectus: . .......................................................................................................................................................................................... 17
3.6.3 Docilitas: ............................................................................................................................................................................................... 17
3.6.4 Solertia: .................................................................................................................................................................................................. 17
3.6.5 Ratio: ........................................................................................................................................................................................................ 18
3.6.6 Providentia: ................................................................................................................................................................................18
3.6.7 Circumspectio: .........................................................................................................................................................................18
3.6.8 Cautio: ...........................................................................................................................................................................................18

4. Justiça................................................................................................................................................................ 19
4.1 Diferentes noções acerca de justiça................................................................................................................19
4.2 A definição de justiça.................................................................................................................................................19
4.3 O fundamento da justiça é a natureza humana........................................................................................19
4.4 A justiça é para os outros — o objeto da justiça..................................................................................... 20
4.5 O sujeito da justiça..................................................................................................................................................... 20
4.6 É lícito julgar? ................................................................................................................................................................21
4.7 Justiça comutativa versus distributiva.............................................................................................................21
4.8 A composição da justiça..........................................................................................................................................21
4.8.1 Religião.................................................................................................................................................................................................... 22
4.8.2 Piedade ................................................................................................................................................................................................ 22
4.8.3 Dulia.......................................................................................................................................................................................................... 22
4.8.4 Gratidão ................................................................................................................................................................................................ 22
4.8.5 Verdade ou veracidade.............................................................................................................................................................. 22
4.8.6 Amizade ............................................................................................................................................................................................... 22
4.8.7 Liberalidade........................................................................................................................................................................................ 22
4.8.8 Epiqueia: .............................................................................................................................................................................................. 22

5. Fortaleza...........................................................................................................................................................23
5.1 Os impedimentos à vontade ............................................................................................................................... 23
5.2 Sujeito e objeto da fortaleza................................................................................................................................ 23
5.3 A ira é má?........................................................................................................................................................................ 23
5.4 O que a fortaleza modera...................................................................................................................................... 24
5.5 As virtudes anexas da fortaleza ........................................................................................................................ 24
5.5.1 Magnanimidade.................................................................................................................................................................................24
5.5.2 Magnificência......................................................................................................................................................................................24
5.5.3 Paciência................................................................................................................................................................................................25
5.5.4 Perseverança.......................................................................................................................................................................................25

6. Temperança....................................................................................................................................................26
6.1 A sociedade do prazer e da culpa..................................................................................................................... 26
6.2 A importância da honestidade............................................................................................................................ 27
6.3 As virtudes anexas à temperança..................................................................................................................... 27
6.3.1 Abstinência ..........................................................................................................................................................................................27
6.3.2 Sobriedade ........................................................................................................................................................................................ 28
6.3.3 Castidade ............................................................................................................................................................................................ 28
6.3.4 Modéstia .............................................................................................................................................................................................. 28
6.3.5 Humildade ......................................................................................................................................................................................... 28
6.3.6 Estudiosidade .................................................................................................................................................................................. 28

7. Virtudes aplicadas.......................................................................................................................................29
7.1 Introdução......................................................................................................................................................................... 29
7.2 Integração da vida....................................................................................................................................................... 29
7.3 O sentido de missão.................................................................................................................................................. 30
7.4 A unidade perdida........................................................................................................................................................31
7.5 O idealista é o verdadeiro realista......................................................................................................................31
7.6 Personalidade e integração de vida................................................................................................................ 33
7.6.1 Figura : a atuação do psicoterapeuta............................................................................................................................... 33
7.7 Elementos desagregadores da personalidade........................................................................................ 33
7.8 Profissionalismo .......................................................................................................................................................... 34
7.8.1 Figura: a pirâmide de Miller.......................................................................................................................................................35
7.8.1 Competências extratécnicas....................................................................................................................................................35
7.8.2 Habilidades de comunicação e empatia.......................................................................................................................35
7.8.3 Desafios ao exercício da profissão:.....................................................................................................................................35
7.9 A importância da formação cultural................................................................................................................ 36
7.10 A família . ........................................................................................................................................................................ 36
7.11 As cinco grandes áreas da vida............................................................................................................................................... 36
7.11.1 Figura: as cinco grandes áreas.............................................................................................................................................37
7.12 Organização do tempo........................................................................................................................................... 37
7.13 Burnout e o ciclo do cansaço............................................................................................................................ 38
7.13.1 Figura: o ciclo do cansaço....................................................................................................................................................... 38
7.13.2 Tabela: os tipos de cansaço e descansos correspondentes....................................................................... 38
7.14 A solução é interna................................................................................................................................................... 39
7.15 A convivência social................................................................................................................................................. 39
7.15.1 Figura: diagrama das esferas sociais.............................................................................................................................. 40
VIRTUDES HUMANAS

7.16 Planejando a dedicação de atenção............................................................................................................ 40


7.16.1 Figura: organização de tempo mínimo e padrão, por área ........................................................................... 41
7.17 A importância da universidade...........................................................................................................................41

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8. Virtudes e vida de estudos.....................................................................................................................43
8.1 Introdução......................................................................................................................................................................... 43
8.2 Pode o estudo ser uma arte?............................................................................................................................... 43
8.3 A finalidade do estudo............................................................................................................................................. 44
8.4 Conhecer é o modo mais intenso de viver.................................................................................................. 45
8.5 Estudo e desenvolvimento de virtudes........................................................................................................ 46
8.5.1 Diligência: ............................................................................................................................................................................................. 46
8.5.2 Magnanimidade ............................................................................................................................................................................. 46
8.5.3 Longanimidade................................................................................................................................................................................ 46
8.5.4 Paciência............................................................................................................................................................................................... 46
8.5.6 Humildade........................................................................................................................................................................................... 46
8.5.7 Temperança........................................................................................................................................................................................ 46
8.5.8 Fortaleza ...............................................................................................................................................................................................47
8.6 A motivação sobrenatural do estudo............................................................................................................. 47
8.7 O estudo e o desenvolvimento da atenção............................................................................................... 47
8.8 O que é estudar?......................................................................................................................................................... 48
8.8.1 Percepção ........................................................................................................................................................................................... 48
8.8.2 Imaginação ........................................................................................................................................................................................ 48
8.8.3 Avaliação ............................................................................................................................................................................................. 48
8.8.4 Memória ............................................................................................................................................................................................... 48
8.9 Como estudar?.............................................................................................................................................................. 48
8.9.1 Memória visual ................................................................................................................................................................................. 49
8.9.2 Memória recente ........................................................................................................................................................................... 49
8.10 O que deve ser estudado?..................................................................................................................................50

Referências bibliográficas............................................................................................................................51
VIRTUDES HUMANAS

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1 ÉTICA COMO CIÊNCIA ANTROPOLÓGICA

1.1 Psicologia e finalidade humana


“Virtude”, “vício” e “hábito” são palavras comuns no uso cotidiano; seu emprego
amplamente disseminado, contudo, não implica na plena compreensão de seu senti-
do. Por isso, para bem abordar as ditas virtudes humanas no decurso desta disciplina,
o primeiro passo será garantir o bom entendimento de tais termos.
As palavras que busca-se utilizar para promover o aprendizado e o aprofunda-
mento no tema das virtudes humanas não são meros construtos mentais atribuídos
à realidade, tendo em vista a realização de alguns testes. Neste curso de virtudes
humanas, serão buscados os conceitos — resultantes de uma apreensão de algo que
de fato existe e inseridos em um universo antropológico.
É útil fazer algumas perguntas para melhor entender o que se quer dizer, de fato,
com o conceito de virtude.

• O que o homem realmente quer?


• Qual é a motivação constante por trás de todas as suas motivações particula-
res e passageiras?
• Qual é a motivação dos atos humanos?
• O que leva o homem a querer o que quer?
• Qual é o objetivo geral perseguido por cada ser humano particular?
• Qual é o fim último da vida humana?

Durante boa parte de sua tradição — relativamente curta, considerando que re-
monta ao século XIX —, a psicologia moderna abandonou tais questões por con-
siderá-las pré-científicas. Em geral, assumiu-se como justificativa para o abandono
a assunção de que a natureza humana é uma entidade biológica determinada por
processos evolutivos, ou que, em uma concepção ainda mais radical, sequer existia
senão como mera construção social.
O questionamento acerca da finalidade do homem e de sua natureza, entretanto,
não é um empreendimento de todo revogável. Por isso, algumas respostas foram
desenvolvidas em meio às contribuições teóricas em psicologia no último século.
Algumas destas respostas serão examinadas a seguir.
VIRTUDES HUMANAS

1.1.1 O “Princípio de Nirvana” em Freud:

Ao discutir sobre pulsões (trieb) e os fatores que impelem o indivíduo a cumprir


uma ação sob o estímulo de uma tensão, Sigmund Freud buscava entender, de cer-
to modo, as motivações humanas. Depois de muito tempo discutindo sobre pulsão
de vida, descobre ainda uma outra que se opõe a ela — a pulsão de morte. Como o
autor entendia a energia psíquica em termos quantitativos, isto é, como um recurso
armazenado no organismo, concluiu que o homem tenderia a cansar-se do processo

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de agir em resposta aos estímulos das tensões. Haveria, desse modo, um esforço
humano na supressão de tais excitações e de saída do ciclo de elevação e redução
de carga no organismo. A tal desejo de cessação Freud chamou “princípio de nirvana”,
tomando como base a tradição budista; trataria-se do esforço pela quietude das pai-
xões e cessação do querer.

1.1.2 O finalismo ficcional de Adler:

Alguns dos discípulos de Freud romperam com sua tradição após um tempo. Um
deles foi Alfred Adler. Esse autor percebeu que o homem sente necessidade de al-
guma finalidade e da ideia de um fim último, ainda que, em última instância, tal fina-
lidade seja uma mera construção subjetiva. A partir desta observação, introduziu o
conceito de finalismo ficcional — a ideia de finalidades imaginadas que regem o mo-
vimento humano e que podem ser dispensadas quando cessam de ser úteis.

1.1.3 Frankl e a busca por sentido:

Viktor Frankl, fundador da logoterapia, destacou a existência de uma sede de


sentido no homem. A busca pelo sentido seria o elemento que fortalece a motivação
humana. Há discussões entre os logoterapeutas a respeito da natureza desse senti-
do; não se sabe ao certo se trataria-se de um sentido único para todos, que se atua-
lizaria de forma particular em cada vida, ou se tratava-se de um conceito semelhante
ao finalismo ficcional de Adler.

1.1.4 Seligman e a felicidade:

A psicologia positiva, ramo da psicologia experimental, faz seu recorte temático


visando estudar a promoção da felicidade e do bem-estar humano. Um de seus gran-
des teóricos, Martin Seligman, afirma que o homem não busca somente a ausência
de sofrimento, mas aspira à felicidade. Tal felicidade procurada não seria passageira,
mas um estado de vida de plenitude rico de gratificação (que não necessariamente
equivale ao prazer).
De modo bastante explícito, a psicologia positiva traz consigo algo semelhante
ao elemento da tradição que a filosofia clássica chama de εὐδαιμονία (Eudaimonia),
o estado de plenitude e bem-estar. Nota-se que, após um grave afastamento, a psi-
cologia vem gradativamente aproximando suas reflexões de uma disciplina já elabo-
rada ao longo de milênios. Tal disciplina fornece um conjunto de práticas que visam
encontrar as ferramentas que levam o ser humano a seu objetivo último: trata-se
da ética.
VIRTUDES HUMANAS

1.2 Preconceitos sobre ética


A palavra “ética” costuma evocar, de pronto, elementos de caráter legislativo —
como os códigos de ética de diferentes profissões, de órgãos públicos e de empre-
sas. A ética é, ainda, pensada em seu sentido retórico, como um conjunto de regras
acerca do que não fazer.
Curiosa é, também, a diferenciação por vezes feita entre ética e moral, como se
a ética tratasse de uma reflexão racional sobre o que convém ser feito, enquanto a

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moral associaria-se a um conjunto de costumes e regras obedecidos irrefletidamen-
te. “Moral” e “ética”, todavia, são tão somente palavras de mesmo significado origi-
nadas em idiomas diferentes (latim e grego, respectivamente). Sem defini-las, ainda,
pode-se dizer que filosofia moral e ética são expressões utilizadas para referir-se à
mesma temática, isto é: a natureza da ação humana e suas consequências.
Outra armadilha nas discussões atuais sobre ética é a sua concepção enquan-
to um conjunto de leis positivas e extrínsecas. Trataria-se, segundo essa análise, de
mero fruto adaptativo de convenções humanas. Ou então assumiria formas utilitaris-
tas, segundo as quais o que deve ser feito é o que tem um objetivo útil. Tais signifi-
cações, contudo, são apenas uma pálida sombra do esplendor da disciplina da ética
ou filosofia moral.
O que parece ser uma ciência que tolhe a liberdade humana para observadores
pouco ou mal instruídos é, na verdade, um conjunto de práticas que visam a busca
do fim último do homem. Tal finalidade suprema é aquilo que o homem não é capaz
de deixar de desejar: a felicidade. Mesmo o suicida busca a ação de pôr fim à vida
por não encontrar nela a felicidade; não viver parece-lhe menos infeliz. O desejo de
felicidade é inegável e a ética é, em última análise, a ciência da felicidade humana.
Santo Agostinho, em seu Sermão 53, diz:

Chega ao seu fim o alimento, chega ao seu fim a veste; o alimento chega
ao fim porque foi comido; a veste é finalizada ao ser tecida; ambos che-
gam ao seu fim. Porém, um final significa a destruição e o outro significa
estar completo. (AGOSTINHO, 1991, p.68)

Ao falar do fim último do homem no estudo da ética, fala-se do fim semelhante ao


da veste. Não é o homem que chegou ao fim e acabou; trata-se do ser humano que
ficou pronto.
O fim da veste é sua perfeição. Cada pessoa usa uma roupa diferente, mas cada
roupa em si é perfeita, por já estar pronta. Pode-se atualizá-la, contudo em diferentes
formas de tecitura. Do mesmo modo, o fim do ser humano é sempre o mesmo, mas
se atualiza em cada homem segundo um caminho absolutamente particular.
É introduzida, assim, a relação entre virtude e felicidade: as virtudes são as fer-
ramentas utilizadas para tecer o homem até que atinja sua perfeição, isto é, até que
alcance a felicidade. Uma é o meio, a outra é o fim; e a ética é a ciência prática do
manejo de tais ferramentas.

1.3 Vontade e liberdade


A vontade pode ser dita livre, mas com restrições: o homem não pode escolher
VIRTUDES HUMANAS

como fim último outra coisa que não sua própria felicidade e o objeto próprio dela.
Este é um desejo irrevogável. Em que sentido, então, a vontade é livre?
A liberdade de vontade que o homem possui diz respeito à escolha dos meios
para atingir a felicidade. Tais meios, contudo, podem ser mais ou menos apropriados
— o homem pode errar ao longo do caminho. A ética das virtudes, enquanto discipli-
na, visa adequar os meios ao fim que a vontade quer.

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1.4 Virtude não é ataraxia — o lugar das paixões
As paixões denotam o elemento propriamente afetivo do ser humano, como seus
desejos e sentimentos. Para um bom entendimento da disciplina, é importante saber
a relação entre paixões e racionalidade humana.
A virtude não é razão fria em oposição aos afetos. Não é a ἀταραξία (Ataraxia) es-
toica, que constitui um estado de tranquilidade e ausência de afetação decorrente
da ausência de paixões. A realidade humana possui uma dimensão afetiva e o cultivo
das virtudes não visa rejeitá-la. Trata-se, em vez disso, de uma pedagogia dos afetos
e da formação do desejo. O que se quer é educar as paixões em conformidade com
a razão, de modo que o homem cultive bons sentimentos ao realizar atos virtuosos.
Uma pessoa virtuosa não é somente uma pessoa que age de maneira correspon-
dente ao que parece virtuoso, mas alguém que se sente bem agindo virtuosamente,
ainda que isso lhe custe. É, portanto, a superação da cisão entre razão e sentimentos.

REFLITA:
Destaca-se, aqui, a distinção que Martin Seligman faz entre entre prazer e
gratificação: o prazer pode ser bom ou mau, mas não leva, em si mesmo, à
felicidade; a gratificação, por outro lado, é precisamente o afeto que acompa-
nha a execução de um ato que conduz à felicidade. Tal discussão, portanto, já
conquistou um espaço na psicologia moderna, ainda que de maneira limitada.

No sujeito virtuoso, as paixões são sentidas de maneira razoável. Deve-se ressaltar


que o ser humano possui uma alma intelectiva, que abarca as propriedades das al-
mas vegetativa e sensitiva e vai além. É próprio do ser humano, portanto, o sentir e o
pensar de forma não dicotômica — o sentir racional.

1.5 A noção de perfeição e a virtude


Como indicado pela analogia de Santo Agostinho, aperfeiçoar as potências da
alma e paixões da alma humana nada mais é do que dar-lhes os elementos que as
completam para que atinjam seus objetivos. A felicidade é o objetivo último de tal
aperfeiçoamento.
Há, ainda, outro conceito cuja significação em ética não corresponde à atribuição
comum: o de hábito. Tal palavra não significa costume ou ações realizadas de forma
automática; em antropologia e ética clássicas, trata-se de algo instalado em uma po-
tência humana para modificá-la. É uma “segunda natureza instalada”.
VIRTUDES HUMANAS

Quando um hábito é aderido a um ente de modo a conduzi-lo à perfeição, consi-


dera-se que é um hábito bom; se, ao contrário, é um hábito que desvia o ente de sua
finalidade, é chamado de mau. Um mau hábito seria como um malware instalado em
um computador para impedir seu bom uso.
Mas de que se tratam as potências e paixões humanas, afinal? Pode-se dizer que
são os acidentes próprios do homem. São os princípios das operações do ser huma-
no que facilitarão o cumprimento da finalidade daquela potência ou paixão. Fala-se,

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portanto, dos hábitos operativos, que aderem a essas paixões e potências que possi-
bilitam a operação do ser humano.
Hábitos operativos bons farão com que aquela potência ou paixão adquira co-
naturalidade com o bem, isto é, a plena conformidade ao bem de forma natural. Em
outras palavras, é como se a potência ou paixão adquirisse afinidade com o verda-
deiro bem, que levará à felicidade. Os hábitos operativos bons são o que se chama
de virtudes.

VIRTUDES HUMANAS

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2 AS VIRTUDES HUMANAS

2.1 Reta razão e unidade do bem


A partir do discutido na seção introdutória desta disciplina, foi possível perceber
que há distinção entre o significado da palavra “virtude”, como usualmente concebi-
do, e sua definição real. Para um bom estudo de virtudes humanas, o estudante deve
afastar quaisquer perspectivas associadas a “bom-mocismo”, pois virtudes não se
tratam simplesmente de ações boas realizadas por cidadãos tidos como “bonzinhos”.
Virtudes são ferramentas que, por excelência, levam o ser humano à felicidade.
O cultivo das virtudes promove o controle racional e volitivo da afetividade. Isso é
o mesmo que dizer que proporciona uma integração do homem, já que estabelece
nele um ordenamento perfeito sem conflitos entre suas partes: afetividade, racio-
nalidade e vontade agem em comunidade, sob a orientação da razão. Quando em
conformidade com este ordenamento, a parte afetiva do homem “entende” que a
racionalidade é o melhor guia para levá-la onde deseja.
Recapitulando, então, o que já foi discutido: virtude é um hábito operativo bom
— uma disposição estável — que se adere às potências e paixões do homem para
conduzi-las a seus objetivos próprios, levando o homem à sua finalidade última, isto
é, à felicidade.
As virtudes aperfeiçoam o agir com base na integração das paixões à ordem da
reta razão. Define-se reta razão como aquela que está adequada à realidade extra-
mental, ou seja, à verdade do real. A virtude, então, é o desejo educado, afetividade
permeada de racionalidade e cativada pela verdade da realidade.
Um importante princípio da metafísica e da antropologia tradicionais é o da uni-
dade do bem. O bem, enquanto aquilo que de fato se conforma à estrutura do real, é
uno; as virtudes, portanto, compõem uma unidade. Os vícios, ao contrário, dispersam,
porque o vício é o mal e o mal não possui substância.
Esta seção destina-se a estudar as virtudes de maneira mais ampla, para que
sejam apresentadas posteriormente, em detalhes, segundo suas diferentes formas
específicas.

2.2 As virtudes cardeais


As virtudes fundamentais, tradicionalmente chamadas de cardeais, são o núcleo
VIRTUDES HUMANAS

da ética. Relacionam-se mais diretamente à busca do fim último do homem e pos-


suem maior grau de associação com a ação humana propriamente dita. São quatro:

2.2.1 Prudência

Possui como particularidade o fato de ser a única virtude intelectual dentre as


cardeais. Trata-se da virtude que dispõe a razão para que ela apresente à vontade
os meios adequados para atingir o fim último do homem. São Tomás de Aquino a

11
define como “recta ratio agibilium”: a reta razão no agir. É a reta razão aplicada na ação
humana.

2.2.2 Justiça

Trata-se da virtude moral que consiste na vontade constante e firme de dar a cada
pessoa aquilo que lhe é devido, segundo a ordem da reta razão. A justiça atua sobre
a vontade.

2.2.3 Fortaleza

É a virtude moral que assegura a resistência, mediada pela reta razão, às difi-
culdades e obstáculos impostos entre o sujeito e o bem que ele deve realizar. Atua
sobre o apetite irascível.

2.2.4 Temperança

A temperança é a virtude moral que modera a atração pelos prazeres segundo a


reta razão. Atua sobre o apetite concupiscível.

Note-se que todas as virtudes conservam dependência em relação à prudência,


única virtude simultaneamente intelectual e moral. Além de ser chamada de reta
razão no agir, a prudência possui duas alcunhas interessantes que denotam sua rela-
ção com as demais virtudes: auriga virtutum — a condutora das virtudes — e também
genitrix virtutum — a geradora das virtudes.

2.3 Como as virtudes são adquiridas?


Os apetites humanos não se apresentam de pronto ordenados e, embora o en-
tendimento de sua correta orientação seja importante, tampouco pode uma decisão
racional ajustá-los imediatamente. Há um processo educativo dos apetites humanos
que se desenvolve segundo algumas etapas.
Antes de iniciar os passos da educação propriamente dita, porém, a própria razão
precisa se tornar reta. É decisivo para a possibilidade de ajuste das virtudes que a in-
teligência humana identifique corretamente os bens verdadeiros, que de fato levam o
homem à felicidade. Uma vez retificada a razão, inicia-se a pedagogia da afetividade.

2.3.1 Figura: Pedagogia da afetividade

As etapas da pedagogia da
VIRTUDES HUMANAS

afetividade
Interpretar as paixões

Avaliar as paixões

Dirigir as paixões
Fonte: elaboração própria
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Primeiramente, deve-se investigar as raízes e causas do sentimento, processo de
interpretação das paixões. Trata-se de uma etapa de interesse na origem dos próprios
sentimentos e inclinações — boas ou más. Em seguida, as paixões são avaliadas: uma
vez munido do conhecimento sobre a causa de seus sentimentos, o homem está
pronto para adquirir consciência acerca das situações que tornam seus sentimentos
mais evidentes. O indivíduo conhece, nesse momento, as reações que lhe são mais
próprias.
Por último, as paixões são efetivamente dirigidas. Nesse processo, o homem de-
cide, a partir da avaliação prévia, se agirá contra ou a favor do que inicialmente a in-
clinação apontava. Trata-se do momento em que a razão orienta o afeto, mostrando
se seu objeto de fato promete o que é desejado ou se proporcionará uma satisfação
enganosa.

2.4 Não bastam as aparências


O processo de educação dos afetos, embora simples, não é fácil nem rápido. A
correção da motivação pela racionalidade é um processo de busca pela conaturali-
dade com o bem nas paixões. Além de exigir esforço e tempo, tal processo não pode
ser reduzido à mera repetição frequente de ações virtuosas.
Por vezes, observa-se que alguns países possuem habitantes que parecem dota-
dos de um profundo senso de dever cívico e mostram-se avessos à ideia de atentar
contra o bem comum; não lhes são típicas atitudes como sujar as ruas ou dirigir-se
de modo desrespeitoso aos outros. São pessoas aparentemente virtuosas que, con-
tudo, convivem com altos índices de infelicidade, depressão e suicídios. Por que isso
ocorre?

REFLITA:
Para a obtenção da felicidade, objetivo último perseguido pelo homem por
meio da educação de seus afetos, não basta a repetição. É preciso que os atos
virtuosos sejam exercidos pela motivação correta. Há diferença de resultados
entre a ação de um indivíduo acostumado à ideia de submissão cega a um
Estado agigantado e a ação consciente movida pelas boas motivações. A con-
quista da felicidade por meio do cultivo das virtudes demanda, portanto, uma
repetição reiterada de atos virtuosos. As motivações orientadas para o bem
devem ser sempre reforçadas no homem conforme este busca agir correta-
mente. Sem tal preocupação, o cultivo de atitudes boas leva ao vazio.
VIRTUDES HUMANAS

2.5 O virtuoso, o continente, o incontinente e o vicioso


O homem virtuoso é o que age de forma virtuosa movido pelas boas motivações.
Enquanto o sujeito ainda não atingiu tal conaturalidade com o bem, diz-se que é so-
mente continente; isto é, trata-se de alguém capaz de controlar a paixão desordena-
da, mas que ainda não é virtuoso.

13
O incontinente, por sua vez, é a pessoa capaz de identificar o bem e de reconhe-
cer sua existência, mas não age reiteradamente nesse sentido. Ao passo que o con-
tinente ao menos consegue repetir, com esforço e sacrifício, as atitudes virtuosas, o
incontinente vê o caminho, mas não consegue segui-lo.
Por último, há o vicioso. Sua situação é a pior, pois nele há conaturalidade com o
mal, fruto da repetição reiterada de atos maus que o conduziram à imperfeição e que
o desviaram de sua finalidade. O homem vicioso, então, realiza um ato operativo mal
que opõe-se à virtude: o vício.
A instalação do vício não é rápida, assim como não o é no caso da virtude. O su-
jeito precisa agredir a própria consciência reiteradamente para chegar ao ponto de
conaturalidade com o mal. Importante destacar que a consciência é um ato, não uma
potência. Ela mostra ao homem se este age conforme sua natureza e se suas ações
o levam à sua finalidade última. Sua corrupção é um processo de desumanização,
do mesmo modo que a educação dos afetos é uma apropriação do que há de mais
humano no homem.
A educação das virtudes, portanto, não é falar sobre elas. Trata-se do exercício de
submeter-se reiteradamente ao juízo da reta razão. Tal princípio serve não somente
para a educação de si, mas também quando se pretende educar os outros: dizia Aris-
tóteles que a régua da virtude é o virtuoso.
Não se trata, assim, de algo abstrato. A pessoa virtuosa é a prova de que a feli-
cidade é de algum modo possível; o virtuoso atesta que existem vidas mais plenas
que outras. Educar outrem para a felicidade é engajar-se em um processo de busca
pessoal da virtude. Giuseppe Abbà ressaltava, ainda, a possibilidade de educação da
virtude pela experiência moral pré-filosófica — através da literatura. Em suma, são
as boas referências e boas histórias os determinantes de uma boa pedagogia das
virtudes.

VIRTUDES HUMANAS

14
3 PRUDÊNCIA

3.1 Confusões sobre o significado de prudência


Nesta seção, será apresentada a primeira virtude cardeal, condutora das outras
três. O primeiro passo para este empreendimento será desmentir alguns estereótipos
acerca da prudência, como foi feito anteriormente com o conceito geral de virtude.
Há uma confusão generalizada acerca da concepção de prudência: tipicamente,
a palavra que a designa passou a ser vista como sinônimo de cautela. Usa-se corri-
queiramente o termo quando se quer indicar que talvez seja bom não agir — com o
objetivo, em suma, de indicar hesitação. Nestes termos, é como se prudência corres-
pondesse a uma espécie de covardia existencial; nada poderia estar mais distante
do seu real significado. Trata-se de uma grande difamação de uma virtude elevada e
necessária.
A prudência tem por objeto não propriamente o fim último do homem, conhecido
pela razão. Embora vise o fim último, tem como objetos próprios os meios neces-
sários para atingi-lo. A vontade não é livre para escolher a finalidade, mas o é para
eleger os meios, que podem desviar-se ou não da felicidade. A prudência é, desse
modo, precisamente a virtude que busca ordenar e identificar os meios adequados
para atingir este fim último.

3.2 Omnis virtus moralis debet esse prudens


Todas as virtudes dependem da prudência. Dizendo como São Tomás de Aquino:
toda virtude é necessariamente prudente (omnis virtus moralis debet esse prudens).
A forma da virtude é a reta razão no agir e, por isso, todas as virtudes morais serão a
reta razão no agir em certa especialidade, que será determinada pelas potências e
paixões que aperfeiçoam. Pode-se dizer que a prudência é a forma geral da qual as
demais virtudes morais são particularizações.
A prudência é a virtude que dá a medida de todas as demais — não em sentido
quantitativo, mas na própria qualidade da coisa. Em última análise, a justiça é justa
porque é prudente, a temperança assim o é porque é prudente e a fortaleza é forta-
leza também por ser prudente.
O prudente não equivale ao cauteloso, mas ao ordenado ao bem na ação. Tanto a
vontade quanto a ação devem estar informadas pelo conhecimento aperfeiçoado da
VIRTUDES HUMANAS

verdade modular, proporcionado pela razão.

3.3 Educação da razão e realidade


Como já visto, a educação da razão é o passo que antecede a chamada pedago-
gia dos afetos. A verdade é descoberta pela revelação da realidade, ou seja, é a ade-
quação da razão a ela. O padrão da prudência, portanto, deve ser a própria realidade.

15
Há uma profunda conexão entre prudência e instalação do homem no real. Na es-
fera da prudência ocorre o conhecimento da realidade ontológica objetiva e a mode-
lação da vontade e da ação segundo esse conhecimento. Como aponta um clássico
dizer do professor Olavo de Carvalho: a realidade é soberana. Somente nela há vida;
contra ela não há luta.
Tome-se por exemplo uma pessoa que toca um instrumento musical. Há relações
de encadeamento de sons simultâneos que gerarão uma estrutura. Tal estrutura po-
derá ser considerada harmônica ou desarmônica, mas é inescapável que apresente
alguma harmonia que integre essa relação e estruturas presentes na realidade obje-
tiva. Pode-se, portanto, tocar o instrumento fazendo qualquer barulho estranho; mas
nesse caso, a harmonia enquanto essa estrutura segue inalterada e quem se destrói
— se torna menor — é quem toca. Tal é o sentido da primazia da realidade.

3.4 Consciência circunstancial


É a prudência que promove a instalação na realidade de modo a conduzir gra-
dativamente o homem na direção da perfeição e da felicidade. O caráter próprio da
prudência é o “comprometimento no campo”. A famosa máxima de Ortega y Gasset
postula: “eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim”.
Pela prudência, torna-se possível resgatar o conceito de consciência circunstancial da
ética clássica e entendê-lo como um ditame da filosofia moral prática, isto é, como
um princípio que conduz o homem a uma vida plena e feliz.
A consciência circunstancial promove a adequação de conhecimentos e noções
gerais acerca da realidade a cada circunstância e situação prática. São Tomás de
Aquino ressaltava o fato de que a lei moral é sempre um princípio geral, mas as situ-
ações são sempre particulares. A sabedoria reside precisamente na adequação entre
ambos e é por meio da prudência que pode-se empreender tal adequação.

REFLITA:
Por isso, a ética clássica não pode ser reduzida a uma legislação casuística
que resulta num catálogo de situações e respostas prévias. Trata-se de uma
formação da consciência moral de modo abrangente, visando tornar o homem
capaz de exercer ações que correspondem ao conhecimento desenvolvido
acerca da estrutura da realidade.

3.5 O triângulo da prudência


VIRTUDES HUMANAS

A prudência tem duas direções. A intelecção real, ou seja, a extração de princípios


a partir da realidade das coisas, direciona tanto o querer quanto o agir. Por tratar-se
da reta razão do agir, a prudência é, então, a razão prática.

16
3.5.1 Figura: as direções da prudência

Intelecção do real

Modelação do querer Modelação do agir

(Fonte: elaboração própria )

É frequente ver o estabelecimento de uma dicotomia entre o conhecimento dos


princípios da verdade das coisas e a aplicação de ferramentas na prática para lidar
com a realidade. Trata-se de um mal-entendido: a ferramenta é propriamente esse
saber que decorre da prudência. O conhecimento da realidade educa o olhar do ho-
mem para que transborde em um querer e em um agir que correspondem à verdade
compreendida.

3.6 As virtudes anexas à prudência


Entre os componentes que integram a prudência, encontram-se elementos ne-
cessários para o seu desenvolvimento e manutenção, além das suas chamadas vir-
tudes anexas.

3.6.1 Memoria:

Trata-se do receptáculo dos dados e impressões oriundos dos objetos da realida-


de captados pelos sentidos. A memória fiel ao ser é fundamental para a formação da
prudência, por tratar-se da conservação da verdade das coisas. Deriva dela o experi-
mentum, chamado por muitos de experiência de vida.

3.6.2 Intellectus:

É a virtude do entendimento que dá ao homem o conhecimento do presente, da


esfera dos princípios universais aplicados à situação particular.

3.6.3 Docilitas:

Trata-se da docilidade que cria no homem a disposição de aprender, de se dei-


xar instruir, de ser corrigido e de ouvir o conselho alheio. Não é possível para cada
VIRTUDES HUMANAS

homem, individualmente, atingir todo o conhecimento por conta própria; por isso,
torna-se necessária a mediação da realidade a partir dos outros.

3.6.4 Solertia:

É a clara objetividade em meio à situações críticas, isto é, o bem agir diante do


inesperado. Joseph Pieper ressalta que o desenvolvimento do vigor físico e psíquico

17
é necessário para o cultivo da solertia. Isso porque agir conforme a razão durante si-
tuações inesperadas pode requerer grande resistência e força;

3.6.5 Ratio:

É a razão enquanto raciocínio para casos particulares e incertos. Trata-se da habi-


lidade de proceder a partir de conhecimentos provenientes de outros conhecimentos
ou julgamentos, formando, desse modo, um conjunto de julgamentos.

3.6.6 Providentia:

A providência é o oposto da solertia, no sentido de tratar-se da capacidade de


antecipação. É a habilidade de desenvolver uma intuição acerca da melhor forma de
agir diante de incertezas futuras;

3.6.7 Circumspectio:

É a virtude anexa da prudência que aperfeiçoa a consciência circunstancial, de-


senvolvendo no homem a capacidade de prestar atenção às matérias que se colo-
cam em questão diante dele.

3.6.8 Cautio:

Por fim, mas não reduzida a ela, a prudência inclui a cautela — a capacidade de
aplicar o conhecimento para a ação tendo em vista evitar algum mal.

VIRTUDES HUMANAS

18
4 JUSTIÇA

4.1 Diferentes noções acerca de justiça


No diálogo Górgias, Sócrates diz a Cálicles que receber uma bofetada não é a
maior ignomínia, como também não o seria cair nas mãos de um assassino ou ladrão;
para ele, cometer tais injúrias é muito pior para o autor do que para a vítima a quem
elas se destinavam. Neste trecho, Platão discute pela voz de Sócrates a virtude da
justiça.
É um exercício interessante ler nos diálogos platônicos as discussões sobre a
virtude. Percebe-se que, se a civilização ocidental tivesse como referência sujeitos
como Cálicles, seu desenrolar teria sido muito diferente. Isso não deve-se ao fato de
a justiça ser uma construção social, mas ao fato de Cálicles — um defensor dos tira-
nos — entender a virtude tão somente como a imposição do próprio poder pela força.
Tal concepção do que é virtuoso não se restringiu, contudo, aos tempos de Pla-
tão. Já no século XX, Carl Schmitt chega a afirmar que a virtude da justiça consiste
em defender os amigos e atacar os inimigos. Trata-se de um tema riquíssimo com
reflexos em áreas como ética, direito e psicologia. Para os propósitos desta disciplina,
interessa a compreensão da justiça enquanto virtude moral.
Ora, as virtudes visam a condução do homem ao seu fim último: a felicidade. Se
um homem comete um ato contrário à virtude, então desvia-se do seu fim último a dá
um passo na direção da infelicidade. É a noção da justiça enquanto virtude, portanto,
que permite compreender a forte afirmação de Sócrates.

4.2 A definição de justiça


Definições clássicas possuem, com frequência, a vantagem de serem frutos de
longas buscas pelas palavras adequadas para se referir a certa realidade. Tome-se
a definição clássica de justiça, por exemplo: “Vontade constante e perpétua de dar a
cada um o seu direito” (AQUINO, 2016).
Trata-se de uma definição que conduz a uma série de reflexões. Primeiramente,
se a justiça visa dar a cada um o que é seu direito, há algo que precede a justiça: a
discussão sobre a noção de que algumas coisas pertencem às pessoas. A palavra
“pertencer” denota que algo é próprio de alguém, seja por ação ou por natureza.
VIRTUDES HUMANAS

4.3 O fundamento da justiça é a natureza humana


Joseph Pieper afirma que a justiça se prende à integridade ontológica do homem.
Fazer tal afirmação equivale a dizer, com outras palavras, que o homem possui uma
dignidade e natureza próprias, sem as quais não pode haver justiça. Em psicologia,
é comum haver receio em falar sobre natureza humana, em grande parte pela su-
posição de que discuti-la equivale a declarar um padrão que obrigaria todos a se

19
conformarem. Ora, como será possível falar de direitos humanos sem supor antes um
conjunto de características próprias que serão associadas a tais direitos?
Não é possível entender o que é de direito do homem prescindindo de assumir o
que é o homem; é precisamente o afastamento de uma noção de natureza humana
que cimenta o caminho para crueldades. Quando se fala de objetificação da mulher,
por exemplo, questiona-se — com razão! — o ato de reduzi-la a objeto de satisfação
de baixíssimos desejos alheios. A objetificação é uma injustiça porque confere à mu-
lher algo diferente do que lhe seria digno e do que lhe seria de direito, e isto só se
sabe por haver uma noção anterior do que é a mulher.
É interessante lembrar que, como Sócrates bem apontou, o homem que comete
uma injustiça deste tipo contra uma mulher rebaixa-se a si mesmo; desumaniza-se,
portanto. Atos contrários à virtude são contrários à própria felicidade.
A virtude da justiça é o hábito operativo bom que leva à prática de atos justos. É
importante lembrar que dotar-se da virtude da justiça, portanto, supõe a adequação
dos afetos: é preciso agir reiteradamente com justiça querendo fazê-lo. Dizia Aristó-
teles que é fácil fazer o que é justo, mas, para aquele que não possui a virtude da
justiça, difícil é fazer como o justo faz — com alegria e sem hesitação.

4.4 A justiça é para os outros — o objeto da justiça


Cícero, filósofo romano, dizia que a virtude da justiça é a regra que mantém entre
os homens a comunidade e sociedade devidas. São Tomás indica, ainda, que a justiça
diz respeito somente ao que é relativo aos outros. Pode-se pensar na justiça para si,
de maneira figurada, caso refira-se a si mesmo como um ser humano em particular
em relação às suas partes (intelecto, apetite…). Reitera-se, contudo, que esta seria a
justiça em sentido figurado.
A justiça propriamente dita diz respeito ao que é próprio da relação; é, portanto,
a virtude que rege as relações humanas. É uma virtude que orienta-se para o que é
chamado na filosofia clássica de bem comum, que é precisamente tudo aquilo que
trata das relações da vida em sociedade.

4.5 O sujeito da justiça


Ao analisar a virtude da prudência, aprende-se que seu sujeito é o aspecto ra-
cional por essência. No caso da justiça, por sua vez, o sujeito da virtude é a vontade,
a potência apetitiva racional. Justiça, então, é a retidão da vontade. Não cabe a ela
dirigir nenhum ato de conhecimento — tal é a contribuição da prudência; tampouco
associa-se às paixões, observadas pelas virtudes que serão tratadas nas próximas
VIRTUDES HUMANAS

seções. Paixões interiores não são ordenadas em primeiro lugar a outrem e é exata-
mente a relação com os outros que será contemplada pela justiça.
A justiça relaciona-se com as ações humanas e a potência que mobiliza a estrutu-
ra indicativa do ser humano para agir chama-se vontade. Trata-se da potência voltada
para o apetite que se guia pela razão.

20
SAIBA MAIS:
Diz-se da justiça que é a virtude moral superior. Primeiro, por seu objeto: ao
visar as relações humanas e o bem comum, a justiça caracteriza-se como uma
virtude benfazeja. Abandonar-se em prol dos outros dignifica o homem. Em
segundo lugar, é a virtude moral cujo sujeito é a vontade, em contraposição
às demais, cujo sujeito será a paixão humana. As partes do homem possuem
também uma hierarquia entre si, e a vontade ocupa uma posição mais nobre
do que as paixões. Ressalta-se que a justiça é superior quando comparada às
demais virtudes puramente morais, a saber, a fortaleza e a temperança.

4.6 É lícito julgar?


Discutir justiça envolve responder a uma questão tida como polêmica: afinal, é
lícito julgar? A oposição à ideia de julgar os outros possui variadas raízes, incluindo as
de natureza política e as religiosas, derivadas do cristianismo — “Não julgueis, e não
sereis julgados” (Mt 7:1).
São Tomás de Aquino, porém, ao abordar a virtude da justiça, esclarece que há
um roteiro segundo o qual é lícito estabelecer julgamentos. São seus critérios:
1. o julgamento deve proceder de uma inclinação vinda da justiça, ou seja, não é
um juízo temerário. Julga-se tendo em vista um bem para outrem.
2. deve vir de uma autoridade competente que esteja na posição de julgar.
3. deve ser proferido segundo a reta norma da prudência.
No trecho do Evangelho acima citado, por exemplo, a proibição refere-se ao juízo
temerário. Deve-se, acima de tudo, evitar julgamentos cotidianos feitos sob um olhar
maldoso.

4.7 Justiça comutativa versus distributiva


Classicamente, divide-se a justiça em dois tipos. Uma seria a justiça comutativa,
que rege relações particulares — aquelas entre uma parte e outra de um todo. A jus-
tiça distributiva, por sua vez, rege as relações da comunidade com as partes, repar-
tindo o que é comum de maneira proporcional. A maioria dos homens é chamado a
refletir sobre a justiça comutativa, somente.
Contudo, algumas pessoas ocupam posições de governo nas mais diversas esfe-
ras. Tais indivíduos se colocam na posição de julgar pelo todo e possuem, por isso, uma
responsabilidade mais grave. Estas encontram-se no campo da justiça distributiva.
VIRTUDES HUMANAS

4.8 A composição da justiça


Tal como a prudência, a justiça possui algumas características necessárias para
seu desenvolvimento, bem como virtudes anexas.

21
4.8.1 Religião

A virtude da religião parte da consideração da existência de um ser supraexce-


lente; há, portanto, aquilo que lhe é próprio. Consiste, em suma, em dar à divindade
aquilo que lhe é de direito.

4.8.2 Piedade

Esta virtude refere-se, fundamentalmente, à virtude da piedade filial. Abrange o


que o homem deve ao seu país e à sua pátria.

4.8.3 Dulia

Trata-se da obediência e respeito devidos aos superiores. Estende-se às auto-


ridade constituídas e também as pessoas que são excelentes em algo, às quais é
devida a admiração.

4.8.4 Gratidão

Virtude que ajuda o homem a agradecer com atos às ajudas e bens recebidos dos
outros.

4.8.5 Verdade ou veracidade

Consiste na exposição honesta de si e dos fatos, sem mentiras ou dissimulações.

4.8.6 Amizade

É o dever de agradabilidade, na correta medida, com o próximo.

4.8.7 Liberalidade

Consiste na virtude que dispõe o homem ao desapego material e à generosidade


na concessão dos próprios recursos aos necessitados.

4.8.8 Epiqueia:

É a capacidade moderar o rigor da lei em prol da obediência às exigências da


justiça e do bem comum.
VIRTUDES HUMANAS

22
5 FORTALEZA

5.1 Os impedimentos à vontade


Anteriormente, foram vistas virtudes que agem pelo intelecto e pela vontade,
educando indiretamente os afetos. Inicia-se, com esta seção, o exame das virtudes
que moderam diretamente as paixões humanas. A primeira a ser abordada é a forta-
leza, que pode ser definida como a virtude que assegura a firmeza diante das dificul-
dades na busca pelo bem.
Existem dois modos pelos quais a vontade pode ser impedida de seguir a reta
razão. No primeiro caso, um bem considerado deleitável, prazenteiro, atrai a vontade
para fora do domínio da razão. Tal é o desvio que será combatido pela temperança,
que atua sobre os apetites concupiscíveis.
No segundo caso de desvio da vontade do seguimento da razão, sobrevém uma
dificuldade que afasta a vontade da esfera da racionalidade. Neste tipo de desvio, a
vontade é levada a desistir de perseguir o bem que lhe é próprio. Este é o desvio que
será impedido pela fortaleza.

5.2 Sujeito e objeto da fortaleza


A fortaleza reside no apetite irascível, vetor da alma em direção ao mundo que
a dirige aos chamados bens árduos. Ao contrário do que se poderia supor, um bem
árduo não é aquele que surge posteriormente a um esforço, como passar em um
concurso público; é, antes disso, o bem do processo de estudar e sacrificar-se pela
aprovação. O apetite irascível deseja o sacrifício e é o sujeito da fortaleza.
São Tomás de Aquino diz que há duas espécies de prazer: aquele produzido pelo
tato corporal e o prazer psíquico produzido pela apreensão da alma. O prazer do ho-
mem dotado de fortaleza é o segundo. É interessante, também, relembrar a distinção
entre prazer e gratificação na psicologia positiva de Martin Seligman. Neste último
sentido, no ato de fortaleza não existe prazer, mas há gratificação.
Esta virtude, portanto, consiste na aceitação consciente dos perigos e na capa-
cidade de suportá-los. Seu objeto será a audácia diante do medo da morte, que é
o medo material por excelência. Contudo, apesar de moderar a coragem no campo
da ação tendo por objeto a audácia, a fortaleza consiste muito mais em reprimir o
medo; São Tomás chega a afirmar que é bem mais difícil reprimi-lo do que moderar
VIRTUDES HUMANAS

a audácia.

5.3 A ira é má?


Há um mal-entendido comum acerca do apetite irascível e da ira. Diz-se que o vir-
tuoso é manso em oposição ao comportamento ou sentimento irado. A ira, contudo, é
uma paixão e não é boa ou má em si mesma. Haverá o uso ordenado e desordenado
dela; logo, há mesmo situações em que é necessária.

23
REFLITA:
A confusão a respeito da ira costuma decorrer de uma concepção errônea
acerca das próprias paixões. Como já mencionado, a busca pela virtude supõe
o uso ordenado das paixões humanas e não a sua total supressão, como um
estoico defenderia. Nesse sentido, há no estoicismo um anti-humanismo, pois
nele nega-se algo que é próprio do ser humano.

A ira, portanto, só é má quando imoderada; se guiada pela reta razão será não
somente de grande ajuda, mas indispensável. Jordan Peterson destaca o fato de que
o bom homem não é o inofensivo, mas a ‘besta controlada’. Daí decorre sua famosa
frase: “Se você tem medo do que é capaz um homem forte, espere até ver o que um
homem fraco é capaz de fazer”. O homem não pode ser bom sem a virtude da forta-
leza, que implica no bom manejo da ira.

5.4 O que a fortaleza modera


A fortaleza impede, em primeiro lugar, o temor — o medo excessivo. Assim como
a ira, o medo é uma paixão necessária e não é intrinsecamente bom ou ruim. O que
indica quando uma situação pode se tornar crítica é o medo. Assim como o temor é
um medo desordenado (um vício, portanto), também o é a intrepidez. Esse vício, por
outro lado, consiste na ausência de medo ou em tê-lo em menor grau do que seria
devido. O intrépido é o homem que se lança ao mundo sem considerar os perigos
que são próprios das situações; não é o forte, é o louco.
Por fim, a audácia também pode apresentar-se desmedida. Sua versão viciosa é
a precipitação, que implica a não realização do exame devido dos meios antes de
iniciar uma ação.

5.5 As virtudes anexas da fortaleza

5.5.1 Magnanimidade

Consiste na grandeza da alma, no sentido de sua orientação para os atos nobres


— aqueles que consistem no emprego de um bem superior. O objeto da magnani-
midade são as honras; destaca-se aqui que o anseio pela obtenção de honras não é
mau se for bem ordenado, isto é, se elas forem desejadas como fim de uma grande
obra. Os vícios opostos à magnanimidade são: i) a presunção, que se opõe à magna-
nimidade por excesso; ii) a ambição, que leva o homem ao desejo egoísta de glórias
VIRTUDES HUMANAS

incompatíveis com seu estado; iii) a vanglória, que é o apetite pela glória vã; e iv) a
pusilanimidade, que é a fraqueza de ânimo e de vigor que leva o homem a buscar
somente o que está abaixo de sua potência.

5.5.2 Magnificência

É a capacidade de empreender grandes obras, mesmo que impliquem em gran-


des despesas. Seu oposto é a parcimônia, que consiste no cálculo excessivo dos
custos de uma boa ação, levando o vicioso a agir com pequeneza.
24
5.5.3 Paciência

Trata-se da capacidade de suportar os males com igualdade de ânimo, sem dei-


xar-se perturbar pela tristeza. Seu vício oposto, por óbvio, é a impaciência.

5.5.4 Perseverança

É a manutenção na busca de um bem, com constância, até que atinja sua con-
sumação. Seus vícios opostos são a moleza — a renúncia fácil de um bem devido às
dificuldades — e a teimosia — obstinação excessiva ou desordenada.

VIRTUDES HUMANAS

25
6 TEMPERANÇA

Na última seção desta disciplina, será examinada a segunda virtude que modera
a paixão humana: a temperança. Esta é a virtude responsável pela regulação da atra-
ção pelos prazeres e visa o equilíbrio no uso de bens que proporcionem prazer físico.
Os bens cuja apreciação é moderada pela temperança são os chamados delei-
táveis — aqueles propriamente materiais e relacionados ao corpo. Isso significa que
residem no apetite concupiscível, destinado a tais bens.

6.1 A sociedade do prazer e da culpa


É curioso falar sobre moderação do prazer, já que nos dias que correm vive-se
simultaneamente um aproveitamento excessivo e desregrado pelos prazeres — o
hedonismo — e uma grande escrupulosidade em torno dos mesmos. É como se os
desejos e prazeres tivessem para as pessoas a condição tácita da culpa. Surgem
daí nichos e mercados voltados para o prazer sem remorso: no caso da comida, por
exemplo, isso se reflete na imensidão de produtos sem lactose, sem açúcar, sem glú-
ten e outras restrições. “Coma sem culpa” é um slogan que costuma atrair atenção.
Para quem não é temperante e não sabe lidar bem com os bens deleitáveis, tudo
parece culpável.
Ora, todos os tipos de prazer podem ser desfrutados sem culpa. Como já foi dito
e reforçado, o caminho para a felicidade não é obtido através do sepultamento das
paixões e prazeres, mas do seu uso segundo a ordem da reta razão. O apetite con-
cupiscível possui uma posição inferior na hierarquia interna do homem, mas nem por
isso deixa de ocupar uma posição.
A temperança, portanto, não é a resistência aos bens deleitáveis, mas seu bom
aproveitamento. Embora a abordagem deste curso abranja explicações que majori-
tariamente apelam a uma estrutura entitativa e à antropologia clássica, é interessante
observar que mesmo um psicólogo evolutivo compreende perfeitamente bem a im-
portância dos prazeres para a conservação da espécie.
São Tomás de Aquino escreve:

“Ora, a natureza ajuntou o prazer às atividades necessárias à vida do ho-


mem, por isso a ordem natural exige que ele desfrute esses prazeres, en-
quanto indispensáveis à sua saúde, quer quanto à conservação individual,
quer quanto à da espécie; portanto, pecaria1 quem evitasse os prazeres
VIRTUDES HUMANAS

sensíveis a ponto de desprezar o que é necessário para a conservação da


natureza, contrariando assim a ordem natural” (ST, vol. VII)

Note-se que na primeira sentença o trecho chega a assemelhar-se ao que dizem


hoje os psicólogos evolutivos. A desordem mencionada em seguida pelo autor é a
insensibilidade — o vício do desprezo pelos prazeres do tato. Naturalmente, abster-se

1 O autor diz que pecaria aquele que evitasse desregradamente os prazeres sensíveis no sentido de que tal pes-
soa cometeria um vício; isto é o que será importante para os fins da disciplina.

26
de determinado prazer tendo em vista um objetivo superior não se enquadra como
vício. Um atleta profissional por vezes precisa encarar rigorosas restrições alimenta-
res; isso não significa, contudo, que não goste de uma sobremesa ou de uma pizza. O
mesmo aplica-se aos que possuem objetivos meditativos, religiosos, militares ou de
saúde, por exemplo.
O vício oposto da insensibilidade é conhecido como intemperança. Trata-se da
imoderação no usufruto do prazer. Aristóteles a considerava um vício infantil, já que a
dificuldade em conter-se é própria das crianças. O imoderado, segundo ele, é o mais
reprovável dos homens, por causa da sua imaturidade. Com isso, não se pretende
dizer que seja o vício mais grave: há homens contidos que cometem maldades de
natureza muito pior. Contudo, a imoderação é o vício mais reprovável, por ser aquele
que rebaixa o homem a um estado de animal, tirando-lhe a humanidade.

6.2 A importância da honestidade


Antes de discutir as virtudes anexas à temperança, é importante analisar uma
virtude que é condição para todas as suas partes: a honestidade. A dificuldade que
muitas vezes se apresenta no estudo da filosofia clássica reside no fato de que o
significado dos termos empregados não mais coincide com as atribuições cotidianas
para as mesmas palavras — assim é no caso da honestidade. Enquanto virtude, ela
trata da capacidade humana de discernir e diferenciar os bens que convêm e os que
não convêm ao indivíduo.

SAIBA MAIS:
Os bens que convêm são os chamados bens honestos. Nem tudo é uma ques-
tão de moderação: alguns prazeres específicos não convêm ser desfrutados.
Não é conveniente a ninguém usufruir de certas comidas, por exemplo. O mes-
mo vale para certas formas e circunstâncias de relacionar-se sexualmente.
A honestidade, portanto, é uma condição no sentido de que a avaliação da
conveniência no usufruto dos prazeres antecede as ponderações sobre seu
usufruto moderado. Dito em outras palavras: antes de saber como se deve
desfrutar de certo prazer, é necessário saber se ele deve ser desfrutado.

6.3 As virtudes anexas à temperança

6.3.1 Abstinência
VIRTUDES HUMANAS

Tal virtude não significa, em seu sentido clássico, abster-se do prazer. Denota, em
vez disso, a parte da temperança que modera os prazeres da comida. Tal moderação
não é quantitativa — comer em excesso é, aliás, somente uma das formas do vício da
gula. As outras três são a insensibilidade em relação ao prazer da comida, as formas
desordenadas e comer (apressadamente, por exemplo) e o refino e meticulosidade
desordenados ao comer.

27
6.3.2 Sobriedade

É a moderação dos prazeres da bebida. Seu vício oposto pode ser, tal como no
caso da comida, a insensibilidade em relação aos prazeres ou a embriaguez.

6.3.3 Castidade

Consiste na virtude que modera os prazeres do sexo. Seus vícios opostos são a in-
sensibilidade e a luxúria. Cumpre lembrar que “não se mede o meio-termo da virtude
quantitativamente, mas pelo ajustamento com a reta razão”, como dizia São Tomás
de Aquino. Assim, a relação sexual ordenada é aquela feita de modo a dignificar o ho-
mem, nunca bestializá-lo; não se deve buscar sexualmente o outro como um objeto,
mas como alguém cujo bem-estar deve ser visado. Ressalta-se, ainda, outro dito de
São Tomás: “na verdade, não é contrário à virtude que o ato da razão seja às vezes
interrompido por algo razoável”. A obnubilação temporária da razão causada pelo
intenso prazer do ato sexual, portanto, não o torna vicioso, resguardadas as modera-
ções já citadas. Se suspender a razão fosse sempre um problema, não seria conforme
à razão dormir.

6.3.4 Modéstia

É a virtude que modera os demais prazeres, levando o homem a manter uma


atitude correta e harmoniosa em tudo o que faz. Aparece não somente no modo de
vestir-se, mas na posição do corpo, na fala, nas brincadeiras e tudo o mais. A virtude
da eutrapelia, especificamente, deriva da modéstia e diz respeito à moderação do
divertimento e das brincadeiras.

6.3.5 Humildade

É a capacidade do homem de bem regrar tudo à sua volta tendo em vista o sobe-
rano domínio de Deus e os bens superiores.

6.3.6 Estudiosidade

Trata-se da moderação no estudo. Seu vício oposto é a curiosidade vã, que desvia
o homem de seus objetivos e o coloca em situação de tornar-se viciado.
VIRTUDES HUMANAS

28
7 VIRTUDES APLICADAS

7.1 Introdução
A aplicação das virtudes humanas é um tema multidisciplinar, razão que o torna
tão desafiador. Para falar sobre ele, vamos tomar como substrato o grande assunto
que é a gestão do tempo em todas as áreas da vida prática, também chamada de
“conciliação trabalho-família”, work-life balance ou “integração vida profissional e vida
pessoal”. Para isso, faremos um apanhado de autores, ideias e conceitos de diversas
áreas como antropologia, filosofia, medicina, psicologia, história, teologia e até negó-
cios. Não se pretende, naturalmente, esgotar os autores e ideias de cada uma dessas
áreas, mas examinar como eles se comunicam ao abordarem a importância de um
elemento integrador da vida humana.

7.2 Integração da vida

“Todos os livros, estudos, regras corporativas e legislações sobre esse


tema nada mais são do que uma tentativa de responder a seguinte ques-
tão que aflige a todos: na prática, como viver a vida moderna? É possível
ter uma carreira pujante e ser uma boa mãe ou um bom pai? A vida moder-
na permite, afinal, uma vida espiritual rica, saúde física e mental? Será o
nosso destino inevitável correr e competir, bater a cabeça aqui e ali e ter-
minar nossa vida machucados e fatigados? Talvez estejamos mais interes-
sados em saber como fechar as contas no fim do mês ou como atender os
vários compromissos desta semana do que em descobrir como devemos
viver. A tentação do curto prazo sempre leva a deixar de lado as questões
de fundo mais importantes.” (PEREZ, 2021)

Maurício Perez, doutor em história do Brasil, discorre no trecho acima sobre o


cenário a respeito do qual esta disciplina pretende tratar à luz das virtudes humanas.
Muitos experimentam hoje uma profunda divisão interior causada pela necessidade
não suprida de coerência entre suas ações no âmbito familiar, profissional e social.
Resolver o problema da boa vivência nos tempos modernos implica solucionar tal
cisão.
Tratando das mesmas questões acerca da necessidade de integração das dife-
rentes esferas da vida humana, o autor alemão Ernst Burkhart aponta que, para dar
VIRTUDES HUMANAS

unidade à vida, é preciso integrar a inteligência, vontade e afetos humanos. Estes são
conceitos comumente abordados no ramo da antropologia que trata das virtudes
humanas. Burkhart diz que a vontade humana tem o seguinte poder: “como essa
faculdade humana dirige todas as outras faculdades e potências, ela passa a gerar
uma dinâmica de unidade nas operações do homem, culminando numa verdadeira
experiência de unidade interior” (BURKHART–LÓPEZ, 2013).

29
Por que o inverso disso é experimentado por tantas pessoas na época atual? Há,
nos dias que correm, um sentimento compartilhado de desagregação interna e de
falta de conexão real com as atividades desempenhadas no cotidiano. É comum que
o homem hoje faça suas tarefas mais importantes do dia enquanto ocupa a mente
com outros assuntos. A incapacidade de manter a atenção se dá pela existência de
outras demandas, mas também pelo advento das mídias sociais e dos demais meios
de comunicação. É importante ressaltar que se fala de atenção, nestas páginas, tanto
no sentido estritamente biológico de sustentação do foco quanto no que diz respeito
ao ato de voltar-se para o que de fato importa na vida.
Burkhart-Lopez continua lembrando que vontade, inteligência e sentimentos es-
tão desagregados e compatibilizar todas as dimensões da vida é uma tarefa que não
possui uma solução mágica, porque é a própria questão da vida. Para isso serve o
esforço de viver todas as virtudes, as quais capacitam o homem aos distintos âmbitos
de sua ação. Esse esforço acompanha o desenvolvimento da própria personalidade.
É necessário haver uma força unificadora que arraste o afeto do homem desde uma
miríade de quereres dispersos até a unidade. (BURKHART–LÓPEZ, 2013)
Não se trata, assim, de uma fórmula infalível, mas de um empenho contínuo em
prol da unificação interna do homem. Assim, a vida humana assume uma totalidade
unificada em suas múltiplas e dispersas manifestações.

7.3 O sentido de missão


Nuria Chinchilla, professora do IESE, uma importante escola de negócios da Es-
panha, é também uma grande referência no campo da conciliação entre trabalho e
família — também conhecido como work-life balance. A autora indica que diferentes
aspectos da nossa vida podem ser vistos como círculos separados, que podem es-
tar fragmentados ou bem integrados. É preciso, portanto, ter prioridades claras: for-
mar-se, para evitar que tudo se desagregue em diversas partes fragmentadas; e dar
atenção à família e ao trabalho. Para esta autora, o sentido de missão é o que dá um
sentido coerente à vida humana.
É interessante observar que, ainda que seja de uma área extremamente pragmá-
tica — business —, Nuria Chinchilla aponta a importância de um sentido unificador. A
autora afirma, ainda, que cada pessoa possui uma missão pessoal e que é preciso
evitar a armadilha do ativismo: nela, o homem curva-se ao ritmo intenso das ativida-
des cotidianas de modo a preocupar-se mais com com o que faz do que com o por-
quê de fazê-lo. Em suas palavras: “cada um de nós tem uma missão pessoal na vida
que nos torna únicos e irrepetíveis”.
Nota-se que a necessidade de um elemento unificador é indicada por vários au-
VIRTUDES HUMANAS

tores de diferentes áreas. Alguns chamam esse elemento de missão, outros de ideal;
alguns chegam mesmo a usar o termo clássico “unidade de vida”, enquanto outros
ainda falam de “vocação” ou mesmo de “propósito”.

30
7.4 A unidade perdida

“Já no primeiro terço deste século, Max Weber nos oferecia a crônica ante-
cipada daquela unidade perdida. O homem contemporâneo encontra-se
interiormente dilacerado por uma multiplicidade de lealdades incompatí-
veis que vivem em ruidosa falta de harmonia. Cada um de nós pode expe-
rimentar em nossa própria carne aquelas experiências de descontinuida-
de que o obrigam a mudar de roupagem várias vezes ao longo do dia, de
modo que em um só sujeito coabitam vários personagens sem que seja
fácil identificar-se com algum deles. Afinal de contas, o que nós somos?”
(LLANO, 2000, tradução própria)

Llano, autor do trecho acima referido, é um autor em ética e antropologia que


lecionou em universidades no México, Estados Unidos e Espanha. O questionamento
do texto faz alusão ao desencanto do mundo pela ciência, conforme anunciado por
Max Weber. A modernização levou à produção de um tipo de homem: o especialista
sem alma. Nesse mundo, a falta de sentido é o preço a pagar pela substituição gene-
ralizada de convicções por convenções.
A separação entre estruturas políticas e econômicas de um lado e a vida real e
concreta do indivíduo do outro produziu um cisma interior no homem, que passa a
carregar consigo uma constante perplexidade. O sujeito desta nova sociedade se vê
como mero personagem, sem assimilar o ideário da função social que exerce; tal de-
sagregação interna cimenta o caminho para a infelicidade e falta de realização.
Na verdade, o necessário ao homem é a unificação de todos os seus papéis so-
ciais. Para dar cabo deste empreendimento, no entanto, é preciso dedicar-se a res-
ponder a uma questão anterior: afinal, quais são as grandes áreas da vida para as
quais o homem deve dar atenção?

7.5 O idealista é o verdadeiro realista


O professor e filósofo brasileiro Olavo de Carvalho ressalta ainda o quão grave é
o abandono de um ideal. No texto introdutório de um de seus cursos sobre vida inte-
lectual, diz:

[O ideal] ergue-se como um tribunal soberano e neutro para a arbitragem


de todos os conflitos do presente, que ali se resolvem e superam de modo
que mesmo as tendências mais antagônicas da alma possam convergir
num só ímpeto ascensional. O ideal é, por isto, condição indispensável
para a coesão da personalidade, que sem ele se dispersa em aspirações
fortuitas e esforços estéreis. (CARVALHO, 1987)
VIRTUDES HUMANAS

O elemento unificador é aqui chamado de ideal. De algum modo, é o ideal que


julgará as ações do homem e agregará mesmo aquelas aparentemente desconec-
tadas entre si. Caso esta unidade não seja percebida pelo homem, a consequência
inevitável desta ausência será a angústia. Ele continua:

É a síntese desta tripla exigência, intelectual, estética e moral, que se de-


nomina “ideal”. Ele concilia, no homem, o desejo de auto-afirmação, de

31
autodefesa, de permanência, com o impulso de crescimento, de doação
e de superação de si. Ele dá uma significação universal às tendências in-
dividuais, e põe estas a serviço daquela. Spencer falava dos sentimentos
“ego-altruístas”, intermediários entre o egoísmo e o altruísmo; neles, uma
satisfação dada a si mesmo é, indireta porém voluntariamente, ocasião de
benefício para os outros. O ideal extrai grande parte do seu dinamismo
dessa pulsação ego-altruísta, em que a felicidade de um homem se iden-
tifica com o bem dos demais. O ideal é como o fogo em que se transfunde,
no forno alquímico da alma, o egoísmo em altruísmo, a paixão reflexa em
ação refletida. (CARVALHO, 1987)

Olavo de Carvalho fala, portanto, de uma “plena estatura humana”. Não é a este
fim que as virtudes encaminham o homem? Por meio do cultivo das delas, o homem
desfaz as amarras dos defeitos, vícios e apegos de modo a permitir que o homem
extraia de si todo o seu potencial. Cada virtude representa um aspecto desse desen-
volvimento pessoal.
O autor conclui deste modo seu raciocínio:

Pelo ideal, as qualidades latentes do homem tendem a orientar-se para


fora e transformar-se em atos e obras no mundo. O ideal é o caminho pelo
qual as aspirações individuais de felicidade distribuem-se nos sulcos já
abertos da realidade exterior, saem da redoma do sonho e ganham um
corpo no cenário maior dos fatos e das coisas. Sem um ideal definido,
todas as melhores aspirações não passam de sonhos, porque não há um
dever moral imanente a exigir que se amoldem à realidade, que se limi-
tem em extensão para realizar-se em intensidade. Só o homem idealista
é realista; os demais são sonhadores ou cínicos. Não tendo uma medida
do que as coisas deveriam ser, vêem-nas melhores ou piores do que são.
(CARVALHO, 1987)

Mais uma vez, destaca-se no estudo da virtude seu papel enquanto facilitadora
da transformação do homem em atos no mundo. Portanto, trata-se de um assunto
que guarda aspectos bastante práticos. Há, no trecho acima, um apelo à realidade
exterior e objetiva, de modo a evitar a perda de si em labirintos interiores permeados
pelo excesso de subjetivismo.
Assim, fala-se de algo bastante diferente do conceito de ideal concebido por
muitos enquanto algo demasiado abstrato, como um solilóquio individualista ou um
psicologismo isolador. O ideal aponta, em vez disso, para a instalação na realidade
exterior, termo tão usado pelo filósofo espanhol Julián Marías.
Olavo de Carvalho prossegue:
VIRTUDES HUMANAS

Para que as qualidades latentes possam se manifestar, é necessário um


esforço constante numa direção definida; sem ideal, o esforço gasta-se
em gestos reativos, momentâneos e sem proveito. Por isto, o sentimento
de insatisfação, de vazio e de tédio que experimentamos quando traímos
ou esquecemos o ideal é o sinal de alarma que nos permite corrigir o
rumo e reencontrar o sentido da vida. [...]. O ideal é a medida efetiva do
tempo existencial, o padrão de intensidade e profundidade da significação
dos momentos. Sem ideal, os instantes e os lugares se homogeneizam

32
na massa do indiferente, após a breve excitação casual que os torna inte-
ressantes. O ideal é a coluna mestra e a força da personalidade. Traí-lo ou
esquecê-lo é entregar-se, de ossos quebrados, nas mãos da contingência
e do absurdo. (CARVALHO, 1987)

A falta de sentido percebida nos tempos correntes, tão discutida e causadora de


tanta angústia, é precisamente a falta de ideal. O estudo das virtudes dá ao homem
munido destes conhecimentos a formação gradual no sentido desta coesão interna
para trabalhar, estudar e servir profissionalmente.

7.6 Personalidade e integração de vida


Entre os psicoterapeutas e demais atuantes da área de saúde, já é conhecida a
necessidade de associação entre conhecimento técnico ou teórico — proporciona-
dos pelo ambiente acadêmico — e aplicações práticas no atendimento ao paciente.
Porém, o objetivo que deve ser perseguido é a interseção entre todas as esferas de
atuação do profissional, incluindo a vida familiar, saúde física e psíquica e alinhamen-
to de valores.

7.6.1 Figura : a atuação do psicoterapeuta

Conhecimento Atendimento
técnico (teórico) ao paciente
(aplicação

X
prática)

Vida pessoal
(família, saúde,
valores, etc.)

Fonte: elaboração própria

É necessário integrar todas as esferas da vida do profissional em uma peça única:


a personalidade. O psicólogo americano George Kelly define personalidade como
“um modo estável de se relacionar consigo próprio, com os demais e com o mundo”.
VIRTUDES HUMANAS

7.7 Elementos desagregadores da personalidade


Recentemente, cunhou-se na literatura acadêmica a sigla F.O.M.O, do inglês Fear
of Missing Out — o medo de perder algo ou de “ficar de fora”. A expressão descreve
o medo de estar desatualizado em meio à torrente de informações da contempo-
raneidade, sentimento comum nos dias de hoje. O uso intensivo de mídias sociais

33
fortaleceu entre seus usuários a sensação de urgência em acompanhar o que está
sendo dito na mídia e nos demais meios de comunicação.
Há, ainda, um sentimento de tédio generalizado cujo mau entendimento é um
elemento desagregador adicional. Tipicamente, imagina-se que o tédio decorre de
não ter o que fazer; o professor de filosofia Victor Salles, contudo, cita Pascal para
introduzir uma concepção diferente: “A única coisa que nos consola das nossas mi-
sérias é a diversão que, entretanto, é a maior das nossas misérias; porque é ela que
principalmente impede-nos de pensar em nós mesmos” (PASCAL, 2023).
Salles explica em seguida: “Diversão não é o oposto do tédio, mas a causa dele”;
isto é, diversão envolve a saída do nosso caminho. A diversão não pode ser só um
mero passatempo, inútil como quem considera suas atividades lúdicas e de descan-
so como intervalo evasivo de passatempo. Não. Ele continua: “Ao serem considera-
das secundárias e inúteis, as ocupações ‘ociosas’ se tornam atividades gratuitas e
descartáveis”
Ressalta-se, assim, a importância do lazer não como mera diversão que implique
em perda de tempo; agir assim cimenta o caminho para o tédio. O tempo de descan-
so deve ser, por isso, pensado não como um elemento desagregador adicional, mas
sim como uma peça na formação da personalidade.
Julio Diéguez, referência nas áreas de antropologia e teologia, aponta:

Pode-se dizer que um indicador da qualidade de formação de uma pessoa


é precisamente a sua capacidade de integrar os diferentes acontecimen-
tos e mudanças pelos quais passa ao longo do tempo aos princípios que
assumiu como determinantes da sua própria existência. (DIÉGUEZ, 2020)

O problema da desagregação, portanto, não pode ser solucionado senão por


meio de um esforço consciente e reiterado no sentido da integração de cada aspecto
da vida humana. Sem dúvida, aí está presente a virtude da ordem.

7.8 Profissionalismo
Há uma área da medicina, denominada profissionalismo médico, que dedica-se a
tratar das habilidades e conhecimentos extra-técnicos necessários para que o médi-
co e os demais profissionais de saúde exerçam suas tarefas com excelência.
Algumas das grandes instituições médicas do mundo vêm apontando para a ne-
cessidade de oferecer serviços de excelência. Em muitos casos, são realizadas me-
lhorias somente em aspectos institucionais; entretanto, algumas publicações já evo-
cam a necessidade de formação pessoal. Modificar diretrizes institucionais não é o
que garantirá a entrega de um serviço de excelência; isso será feito a partir de uma
VIRTUDES HUMANAS

motivação pessoal.
Gia Merlo, professora da Universidade de Nova York e autora da área, define pro-
fissionalismo médico como “um conjunto de proficiência, habilidades e competên-
cias que tornam o profissional capaz de entregar uma boa prática. Medicina é uma
carreira desafiadora, mas o profissional não pode sobreviver, precisa buscar a exce-
lência”. Merlo mostra também a chamada pirâmide de Miller e aponta a relevância
não somente de saber, mas de fazer e, mais ainda, de tornar-se.

34
7.8.1 Figura: a pirâmide de Miller

Ser

Fazer

Demonstrar

Saber como

Saber

Fonte: elaboração própria

Em seu livro Principles of Medical Professionalism, a autora prossegue afirmando


que a habilidade de moldar as atitudes que cada um escolhe tem a ver com a capa-
cidade de lidar com situações, inclusive difíceis (MERLO, 2021).

7.8.1 Competências extratécnicas

• Organização do tempo e produtividade


• Inteligência emocional
• Trabalho em equipe
• Manejo de risco e incertezas
• Mentoria: a quem pedir conselho
• Otimização de adesão

7.8.2 Habilidades de comunicação e empatia

• Situações críticas: aprofundamento na relação médico paciente (não se esqui-


var de temas difíceis, longos e desagradáveis); end-of-life decisions;
• Contextos específicos: barreiras linguísticas, culturais, pessoais e familiares;

7.8.3 Desafios ao exercício da profissão:

• Estresse, burnout, condições insalubres de trabalho


• Exercer a medicina defensivamente
• Educação continuada: busca da excelência e atualização constante
VIRTUDES HUMANAS

• Formação para o trabalho em equipe


• Conciliar demandas pessoais, como tempo para a família e cuidado com a
saúde
• Crescimento em habilidades pessoais, autoconhecimento, vida intelectual e
cultural
• Estratégias para a autorrealização profissional: mentoring sistemático, aconse-
lhamento pessoal, assessoramento financeiro, marketing médico

35
7.9 A importância da formação cultural
Italo Calvino, escritor e jornalista italiano, diz em seu livro “Assunto Encerrado —
Discursos Sobre Literatura e Sociedade”:

As coisas que a literatura pode buscar ensinar são poucas, mas insubsti-
tuíveis: a maneira de olhar o próximo e a si mesmo, de relacionar fatos e
pessoas e fatos pessoais e fatos gerais, de atribuir valor a pequenas coisas
ou a grandes, de considerar os próprios limites e vícios e os dos outros,
de encontrar as proporções da vida e o lugar do amor nela, e sua força e
o seu ritmo, e o lugar da morte, o modo de pensar ou de não pensar nela;
a literatura pode ensinar a dureza, a piedade, a tristeza, a ironia, o humor
e muitas outras coisas necessárias e difíceis. O resto que se vá aprender
em outro lugar, da ciência, da história, da vida, como nós todos temos de
ir aprender continuamente. (CALVINO, 2009)

Italo Calvino mostra, nesse trecho, a imensa importância de um único aspecto —


a literatura — dentro de uma formação humana generalizada que se estenderá para
todas as áreas da vida, por menos intelectuais que pareçam.
A formação cultural é vista, sob esse enquadramento, não como mera erudição
diletante ou acúmulo de conhecimentos aparentemente estéreis, mas como aquisi-
ção de cultura em seu sentido mais amplo. Isso significa que tal formação se aplicará
no seu meio através dos mais variados contatos sociais e empreendimentos pessoais.

7.10 A família
Stephen Kanitz, escritor, colunista e palestrante, possui uma célebre citação que diz:

“Seu chefe vai esquecê-lo em um mês depois que você se aposentar, bem
como seus colegas. Os únicos que jamais vão esquecê-lo são seus filhos,
pela sua lealdade ou pelas pequenas decepções e infidelidades cometi-
das por você ao longo da vida” (KANITZ, 2012)

Não se ganha a confiança, intimidade, respeito e carinho dos filhos com grandes
presentes ou outras atitudes isoladas. Nesse sentido, as pessoas são como plantas:
não basta encharcá-las uma só vez. O apreço é conquistado com ações constantes,
autênticas e sacrificadas. Nota-se que, para isso, é imprescindível o cultivo das virtu-
des. É por meio delas que tal sacrifício reiteradamente repetido será possível.

7.11 As cinco grandes áreas da vida


VIRTUDES HUMANAS

A figura a seguir ilustra as grandes áreas nas quais pode-se compreender a vida
do homem.

36
7.11.1 Figura: as cinco grandes áreas

‘Big picture’: espiritualidade, religião, sentido da vida

‘Social’:
Trabalho/ Família amigos, cultura,
Profissão voluntariado

Saúde física e psíquica

Fonte: elaboração própria

Três áreas são as que tipicamente se pensa ao falar da vida: o trabalho ou profis-
são, as relações familiares (incluindo cônjuge, filhos e a grande família) e uma vida
social ampla que inclui amizades, cultura e atividades (como voluntariados). Dando
suporte a elas está a saúde, tanto física quanto psíquica. Por último, uma quinta gran-
de área envolve e dá sentido a todas as demais que demandam atenção prática. Essa
área é dedicada a questões religiosas, de espiritualidade e ligadas à finalidade última
da vida.
Cada uma dessas cinco áreas precisa receber a atenção do homem sob o risco
de falha na busca pela realização pessoal. Ademais, o equilíbrio entre elas deve ser
buscado sob a compreensão de que trata-se de um equilíbrio dinâmico. A desatenção
e fragmentação imposta pelo homem numa sociedade que dissocia suas partes, em
vez de integrá-las, causa seu adoecimento e infelicidade.

7.12 Organização do tempo


São comuns hoje as discussões acerca de produtividade, gestão do tempo e
aumento de foco, atenção e vigor; como consequência, abundam ferramentas que
possibilitam o progresso em todos esses aspectos. Todavia, mais importante que o
manejo do tempo é o manejo da atenção.
Adam Grant, professor de psicologia organizacional da Universidade da Pensil-
vânia, indica em um de seus artigos que o gerenciamento da atenção é uma opção
melhor do que o do tempo propriamente dito. O gerenciamento de atenção é a arte
de fazer muitas coisas pelos motivos certos, nos lugares e momentos certos. Fre-
quentemente, a falta de produtividade é causada não por falta de eficiência, mas por
falta de motivação. A produtividade não é uma virtude, é um meio para um fim: só
será virtuosa, portanto, se o fim for digno.
Para ser produtivo de maneira consistente, o homem precisa fiar-se em sua força
VIRTUDES HUMANAS

de vontade e motivação. Caso ele preste atenção nos motivos que o entusiasmam
em determinado projeto e nos que serão beneficiados com ele, então será natural-
mente atraído por uma motivação intrínseca. Trata-se, portanto, de desenvolver uma
mentalidade profissional de serviço.
No fim das contas, o que se defende é a busca pela ordem interior. Para isso, tor-
na-se necessário alinhar os componentes antropológicos básicos — vontade, inteli-
gência e afetos —, o que só se pode alcançar por intermédio das virtudes.

37
7.13 Burnout e o ciclo do cansaço
Para perseguir uma vida realizada e integrada em todos os seus aspectos, torna-
-se fundamental, também, o manejo da energia pessoal. O psiquiatra Fernando Sar-
rais formulou, com base na necessidade de tal manejo, algo que se poderia chamar
de ciclo do cansaço.
O processo começa quando o cansaço gera no homem a evasão das tarefas que
deveriam ser feitas; surgem aí os vícios como alimentação desorganizada, consumo
excessivo de bebidas alcóolicas, pornografia, drogas, ou um mergulho ainda mais
desordenado no trabalho. Os vícios são atos desviados — desvirtuados — que não
proporcionam a realização e felicidade pretendidos e que, em última instância, levam
o homem ao último estágio: frustração. Frustrado, o sujeito torna a ficar cansado e o
ciclo recomeça.

7.13.1 Figura: o ciclo do cansaço

Cansaço

Frustração Evasão

Vício

Fonte: elaboração própria

Sarrais cita, ainda, algumas das diversas fontes de cansaço psíquico já bem co-
nhecidas: preocupações, rotinas, autoestima desorganizada, competitividade desre-
grada, busca excessiva por perfeição, pressa, o ativismo multitask e o próprio cuida-
do com os outros que, embora seja uma função nobre, pode causar esgotamento.
A tabela abaixo ilustra os três tipos de descanso para os cansaços citados, agru-
pados de acordo com a natureza do cansaço.

7.13.2 Tabela: os tipos de cansaço e descansos correspondentes

Cansaço Exemplos Descanso

Físico Dormir, comer, hidratar-se Corporal

Psíquico Pausas, viagens, leituras, filmes, hobbies Mudar de atividade


VIRTUDES HUMANAS

“Biográfico” Experiências novas ou marcantes Cosmovisão

Fonte: elaboração própria

O aspecto corporal denota o cansaço físico propriamente dito. Um outro aspecto


do descanso que deve ser reforçado é a simples mudança de atividade, no caso de
cansaço psíquico. Mas existe ainda outro nível de cansaço, que pode estar relacionado

38
a afecções de natureza clínica não oriundas de depressão e ansiedade em seus as-
pectos médicos, mas sim de um cansaço biográfico. O cuidado com o cansaço desta
natureza abrange a renovação dos elementos necessários para a formação de uma
cosmovisão, tais como experiências marcantes, novas e profundas. É imprescindível
a identificação correta do tipo de cansaço para a indicação do descanso apropriado.
Este adequado manejo da energia pessoal é um dos elementos que vai influenciar
no desenvolvimento das virtudes, porque o indivíduo desmotivado - pouco engajado,
com algum dos tipos de cansaço - é precisamente aquele que não irá se desenvol-
ver, porque não conseguirá empreender o esforço moral típico de uma ação virtuosa.

7.14 A solução é interna


Até aqui foram expostas as aplicações práticas das virtudes e organização da
vida, bem como a conciliação entre diversas áreas em âmbito estratégico, tático e
operacional. O âmbito estratégico deve ser a definição de valores, o tático será o
planejamento e a priorização e o operacional trata dos compromissos e tarefas pro-
priamente ditas.
O autor Romano Guardini descreve em um de seus livros o tipo de homem que
busca seu desenvolvimento aplicando as virtudes de maneira prática:

Não abandona o trabalho, prossegue com toda a fidelidade para aten-


der as exigências da família, da profissão, da coletividade com as quais
contraiu obrigações; realiza-o com a mesma exatidão e com o mesmo
cuidado de antes, apesar de eventuais fracassos, porque descobriu que o
sentido dos deveres se revela através do seu cumprimento. Nesses seus
esforços por disciplinar-se e por ajudar os outros persevera sempre, pois
sabe que o constante reinício das ações humanas aparentemente inúteis
acaba por criar uma corrente de impulso de ação coordenados que faz
prosperar a vida humana, protegendo-a dos movimentos isolados incon-
troláveis que de outro modo ameaçariam desintegrá-la na sua raiz. Essa
atitude exige muita disciplina pessoal e muita renúncia. (GUARDINI, 1990)

No desenvolvimento obtido pelos ganhos da virtude o homem apresenta em ple-


nitude seu caráter e sua personalidade. É com essas pessoas que se pode contar,
precisamente porque já não possuem a ilusão de grandes êxitos; são capazes de
realizar obras duradouras. Assim deveriam ser os estadistas, médicos e educadores:
homens que oferecem garantias e cuja quantidade e influência definem as perspec-
tivas culturais de uma época.

7.15 A convivência social


VIRTUDES HUMANAS

A busca pela realização de que trata este capítulo não implica na vivência isolada
ou em um círculo fechado de pessoas com pensamentos semelhantes. Por outro
lado, é essencial que o homem exerça o protagonismo em sua vida também nesta
esfera, escolhendo os assuntos que priorizará, a cosmovisão que considerará e as
pessoas de cuja convivência desfrutará.
O diagrama abaixo ilustra o funcionamento de uma vivência conjunta consciente,
com suas respectivas partes.

39
7.15.1 Figura: diagrama das esferas sociais

Amigos

Confidentes

Conselheiros

Fonte: elaboração própria

Há na literatura a defesa da ideia de mentorship, que consiste na escolha de um


profissional ou pessoa de referência — seja na área de atuação do sujeito ou não —
para auxiliá-lo no processo de concretização da própria vida. Essa figura deve ser
capaz de apontar fatores subjetivos e objetivos que contribuam para a autorreali-
zação do mentorado; devem, ademais, ser pessoas em relação às quais guarda-se
algum tipo de afinidade profissional e de valores, além de ser admirada pelo que será
auxiliado.
O grupo mais amplo do diagrama acima representa os que serão considerados
amigos: aqueles com quem serão compartilhadas ideias e com quem haverá algum
alinhamento de valores. Entre esses, haverá um grupo significativamente menor que
será o dos confidentes, isto é, aqueles para os quais será possível aumentar o grau
de exposição das realidades interiores. Por último, há a figura do conselheiro: pessoas
que podem ou não ter amizade com o sujeito e que cumprem o papel de referência
técnica cuja opinião será estimada em alguns aspectos. O mentor ocupa o ponto de
interseção entre o amigo, o confidente e o conselheiro.

7.16 Planejando a dedicação de atenção


A última ferramenta que será apresentada nesta seção destina-se a aprimorar o
gerenciamento de tempo, já entendido como um gerenciamento da atenção. Nela, o
VIRTUDES HUMANAS

indivíduo definirá o tempo e atenção que dedicará a cada uma das áreas de sua vida
segundo dois critérios: o mínimo e o padrão.

40
7.16.1 Figura: organização de tempo mínimo e padrão, por área

Trabalho / Social / Saúde física e


Família Espiritualidade
Profissão Amizades psíquica

Mínimo

“Padrão”

Fonte: elaboração própria

Ressalta-se que o tempo considerado “padrão” para cada área deve ser designa-
do não segundo uma expectativa otimista ou sequer ideal, mas realista. Escolhidos
os valores para cada área, torna-se possível checar objetivamente se foram cumpri-
dos para, em seguida, entender os motivos de possíveis falhas.
Trata-se, portanto, de uma ferramenta que auxiliará o sujeito nos autoexames pe-
riódicos para definir estrategicamente os valores que priorizará.

7.17 A importância da universidade


A partir do exposto nestas páginas, foi possível perceber a existência de diversas
pressões externas que dificultam a realização do homem: excesso de tarefas e de
informações, dissociação entre as estruturas políticas e econômicas e a vida concreta
individual, concepções errôneas acerca da importância de cada área da vida para o
todo, entre muitas outras. Todos esses fatores são reais e impõem desafios.
Contudo, ainda que os elementos materiais e culturais dos tempos que correm
possam facilitar ou dificultar, a resolução dos problemas é sempre pessoal, única e ir-
repetível. Trata-se, com efeito, de promover no homem a assunção do protagonismo
em sua própria vida e a busca pelo elemento integrador das áreas separadas.
A agenda das tarefas concretas feitas no dia precisa seguir um planejamento
tático que, por sua vez, deve refletir os valores do homem em nível estratégico. O
emprego de ferramentas para facilitar esse processo de integração pode envolver
autoexames ao fim do dia, revisando a programação, falhas e sucessos. Assim, são
estabelecidos postos de observação da própria vida.
Tudo o que foi discutido formou-se a partir de um conjunto de conhecimentos de
diversos autores em áreas distintas, apontando para algumas conclusões. Primeira-
mente, é necessária a identificação de um elemento unificador pessoal e intransfe-
VIRTUDES HUMANAS

rível que caracterize o protagonismo pessoal. Ou seja, é preciso mais integração do


que conciliação ou equilíbrio entre as variadas partes da vida do homem.
Em segundo lugar, percebe-se como imprescindível o uso das virtudes na cons-
trução desse protagonismo. Somente por meio delas é possível a autorrealização na
entrega do serviço para os pacientes e para a sociedade. O objetivo do estudo das
virtudes é precisamente a obtenção dessa força motriz que possibilita a unificação
pessoal e profissional.

41
Por fim, as reflexões feitas legam um convite aos ambientes universitários, que
será mais uma vez trazido pela voz de Alejandro Llano.

“A universidade atual não pode refugiar-se em uma simplicidade bucóli-


ca que talvez nunca tenha existido de fato e que agora é simplesmente
impossível pelas características de nossa época. Ao contrário, se ela de-
seja seguir sendo ela mesma, se encontra hoje durante o desafio de com-
preender a nova complexidade do cenário humano, geri-la e convertê-la
numa complexidade que não seja perversa, mas sim humana. Assim se
abre uma nova possibilidade para a instituição universitária, graduação,
pós-graduação: realizar uma síntese entre os saberes e uma harmoniza-
ção dos estilos de vida.” (LLANO, 2000, tradução própria)

VIRTUDES HUMANAS

42
8
VIRTUDES E VIDA
DE ESTUDOS

8.1 Introdução
Anteriormente, examinou-se a natureza das virtudes, seus tipos e a importância
da integração da vida humana por meio delas. Há, contudo, um aspecto especial
relacionado que deve ser destacado ao analisar esse assunto: o estudo. A não reali-
zação do estudo coeso conduz invariavelmente a lacunas na existência do homem.
Muitas das consequências dessas lacunas são abordadas no estudo do psicólogo,
tais como vazio existencial, ansiedade e até outros problemas de natureza patológica
mais grave.
Em decorrência da importância do assunto, as próximas seções serão dedicadas
à apresentação deste aspecto em sua natureza, finalidades e meios de condução
bem-sucedida.

8.2 Pode o estudo ser uma arte?


A definição de arte segundo o dicionário é:

“Habilidade ou disposição dirigida para a execução de uma finalidade prá-


tica ou teórica, realizada de forma consciente, controlada e racional.”

Trata-se de uma sábia definição que será utilizada como ponto de partida para os
propósitos desta seção. Em geral, pensa-se em arte como um recurso plástico ou es-
tético; evoca-se, para isso, figuras extraordinárias, que fogem à banalidade cotidiana
— tais como os grandes músicos, pintores e cinegrafistas. De fato, tais são as figuras
que entretêm o público, elevando suas almas e carregando consigo vários sentimen-
tos e sensações transmitidas.
Todavia, a arte possui ainda esse aspecto mais geral descrito no dicionário. Para
dizer se o estudo pode ser uma arte, deve-se, então, testar sua conformidade a cada
aspecto da definição acima.
Primeiramente, a arte é, de fato, uma habilidade enquanto prática que é desenvol-
vida. As habilidades de escrita, filmagem, atendimento a um paciente, leitura e mui-
tas outras são vocações de atividades profissionais corriqueiras. Uma habilidade se
desenvolve com a prática, que só pode existir se houver constância e habitualidade.
Nas mais variadas áreas de atuação, abundam pessoas extraordinárias em termos
VIRTUDES HUMANAS

de habilidade, mas negligentes em habitualidade. Tais profissionais não costumam


ter carreiras duradouras, o que em grande parte se deve a esta falta de constância,
seriedade e de incrementos graduais no trabalho penoso.
Percebe-se facilmente que o homem deve, então, somar aos seus dotes e habili-
dades a técnica, a prática e o hábito. É somente por meio desta adição que o homem
deixa de ser somente alguém em potência e torna-se, de fato, quem poderia ser. A
habilidade do estudo é assim: deve ser exercida habitualmente. É fundamental que

43
seu cultivo seja uma prática diária inegociável. A pessoa que não estuda morre um
pouco a cada dia.
Tem-se, então, que o estudo é uma habilidade. Adiante, prossegue a definição
especificando que a arte é uma habilidade que se volta à execução de uma finalida-
de. Portanto, a habilidade que é arte precisa ter um fim. Para que, então, o homem
estuda?
Por último, a execução da finalidade deve ser feita de modo ordenado, racional e
controlado para que a habilidade em questão seja considerada arte. O estudo, por-
tanto, deve seguir certos métodos para ser arte. Ora, o estudo não deriva puramente
da espontaneidade e do bom senso, mas possui uma forma apropriada de ser feito.
O objetivo das páginas a seguir será, então, mostrar que o estudo possui finalida-
des definidas e métodos que devem ser utilizados para bem conduzi-lo.

8.3 A finalidade do estudo


Muito do que vem à mente em resposta à pergunta “para que estudar?” abran-
ge respostas absolutamente pragmáticas e utilitárias bastante reais que, não raro,
constituem aspecto importante da finalidade do estudo. Um concurso público, por
exemplo, pode ser um propulsor mais eficaz para o estudo do que quaisquer das fi-
nalidades mencionadas nas páginas seguintes. Entretanto, é importante reparar que
tal propulsão é contextual e pontual; há muitas pessoas que estudaram para um con-
curso público e obtiveram a aprovação, mas nem por isso se tornaram estudiosas.
É possível pensar no estudo como algo semelhante a uma virtude: um hábito
operativo bom que se torna inerente à personalidade e faz do homem alguém me-
lhor. A virtude é algo que começa como um hábito positivo, porém penoso, e termina
por tornar-se uma parte importante do ser.
Tome-se por exemplo o desenvolvimento da virtude da laboriosidade. O homem
jovem tem uma grande dificuldade de levantar-se na hora correta e fazer o que deve
ser feito. Depois que começa a trabalhar, todavia, é submetido a uma rotina de traba-
lho e, de maneira bastante improvável, começa a se motivar ao trabalho — que deixa
de ser penoso e passa a ser até mesmo considerado prazeroso. O homem torna-se,
assim, laborioso: não mais trabalha porque o chefe ordena ou para pagar as contas,
mas porque o trabalho se tornou natural.
Tal dinâmica é perfeitamente extensível ao estudo. Pode-se dizer, assim, que exis-
te uma virtude do estudo e que o estudioso não empenha-se somente visando ob-
jetivos meramente terrenos — ainda que legítimos. O homem que se torna virtuoso
neste sentido, contudo, estuda por finalidades superiores às corriqueiras.
A primeira motivação superior do estudo é o fato de que trata-se de uma obriga-
VIRTUDES HUMANAS

ção decorrente da vocação do homem. Estudar, portanto, não é um favor que deve
ser prestado em troca de uma contrapartida esperada, como a aprovação em um
processo seletivo ou concurso. Tratar essa esfera da vida como uma troca de deveres
por direitos seria o itinerário da mediocridade. O homem que presta um concurso não
estuda como quem faz um favor ou uma troca, mas o faz porque constitui a realiza-
ção concreta da sua vocação.

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Parece que muito daquilo que se considera vocação é associado a sonhos e de-
vaneios que constituem uma fuga da realidade concreta de um livro em uma mesa
de madeira. Há, contudo, uma obrigação humana no próprio processo de estudo: se
foi dada ao homem a inteligência ordinária, existe então para ele a responsabilidade
correspondente do estudo. “Àquele que puder ser sábio, não o perdoamos que não o
seja”.
A fuga do estudo revela, portanto, a mediocridade. Não é possível viver um am-
biente familiar e profissional repleto de vida, amor e preenchimento sem dar cumpri-
mento às responsabilidades correspondentes da inteligência. Naturalmente, não se
pretende com isso dizer que todos devem ser pensadores extraordinários; deve-se,
contudo, buscar o constante crescimento em conhecimento dentro dos limites im-
postos pelas circunstâncias.

8.4 Conhecer é o modo mais intenso de viver


Entre conhecer e não conhecer, seguramente é melhor conhecer. Jorge Vicente
Arregui e Jacinto Choza dizem no livro Filosofia del hombre que “conhecer é o modo
mais intenso de viver”. Quem conhece dilata sua alma e sua existência; vive mais, em
última análise. Aquele que se debruçou sobre uma ciência vê a vida inteira à luz das
revelações que obteve e sente-se angustiado ao pensar como vivia limitado antes.
Simone Weil, uma grande pensadora de tradição judaica, diz que o motor das
atividades manuais é a vontade, ao passo que para o trabalho intelectual é preciso
algo diferente. Para dar cabo de empreendimentos manuais, basta o empenho físico;
para as tarefas de ordem intelectual, contudo, este “franzir de testa” não é suficiente.
O motor para o estudo é um desejo específico: a alegria de conhecer.
A alegria de conhecer é a autêntica finalidade de uma vida de estudos. Deriva daí
também a tradição espanhola que fala da fome de saber (hambre de saber). Retoma-
-se, então, o exemplo do homem laborioso: antes preguiçoso, passa não somente a
ser trabalhador, mas a gostar de trabalhar. Em verdade, sequer se pergunta se gosta
ou não gosta — o trabalho para ele é como o bater do coração. O estudioso, do mes-
mo modo, começa a ver um encanto no estudo. O elemento que desperta tal força é
precisamente o desejo de saber.
Estudar é, portanto, uma obrigação grave. Aquele que não estuda não pode se
tornar plenamente bom, mas estará restrito à mediocridade. Não estudar é uma falta
por omissão. Os homens que trabalham e servem os outros com sua inteligência têm,
ainda, obrigação redobrada de estudar: é o estudo que nutre sua inteligência e que
irá auxiliá-la na resolução dos problemas alheios.
Pode um réu acusado ficar um dia a mais na cadeia em decorrência de pequenas
VIRTUDES HUMANAS

negligências de seu advogado? Para a área do Direito e qualquer outra, basta uma
análise séria acerca das consequências da boa ou má qualidade da atuação profis-
sional para chegar à firme conclusão de que o trabalho de um único homem pode ter
impactos imensos.
A vagueza e o comodismo não permitirão que o homem cumpra bem seus deve-
res de estado. Para o bom atendimento desses deveres, é preciso pagar o preço do
estudo. Tal é a primeira motivação para estudar: a da obrigação.

45
8.5 Estudo e desenvolvimento de virtudes
A segunda grande finalidade para o estudo é o ganho de virtudes. Trata-se de um
campo concreto, acessível no momento presente, para adquiri-las; é importante, por
isso, rejeitar a concepção do estudo enquanto uma pena e encará-lo como a opor-
tunidade que de fato é para aquisição de prestígio profissional, de mudança de vida e
de cumprimento de obrigações que dão ao homem plenitude.

8.5.1 Diligência:

Trata-se da virtude com a qual se combate o mal da preguiça. Por meio dela, o
homem responde a seus deveres com boa disposição interior e exterior. O homem
diligente passa a interessar-se pelo bom aproveitamento do tempo; natural que, por
isso, abandone o espírito de maledicência e de curiosidade vã. A diligência é criada
com o estudo, pois quem começa a estudar forçadamente para cumprir uma meta
começa a achar natural o cumprimento das mesmas. Aproveita, desse modo, melhor
seu tempo em todas as áreas da vida.

8.5.2 Magnanimidade

O estudioso logo começa a ver resultados em seu empenho e recupera a auto-


estima, percebendo em si alguém capaz de grandes planos e projetos. Tal é a raíz da
magnanimidade: a sede pela grandiosidade movida pelo olhar voltado para as coisas
do alto.

8.5.3 Longanimidade

O sujeito outrora imediatista, que só estudava às vésperas e era imprevidente,


desenvolve pelo estudo a capacidade de levar fielmente a termo os projetos no de-
curso do tempo.

8.5.4 Paciência

Não se percebe os benefícios do estudo em toda a sua extensão em uma úni-


ca semana. O homem que se torna estudioso, portanto, aprende também a supor-
tar incômodos e situações desagradáveis em prol da colheita dos frutos de seu
empreendimento.

8.5.6 Humildade

Talvez uma das melhores coisas que podem acontecer no decorrer do estudo é
VIRTUDES HUMANAS

a obtenção de uma nota ruim. Por meio dos desafios e dificuldades encontradas na
vida de estudos, o homem torna-se mais consciente de suas próprias limitações. Tor-
na-se, assim, humilde, por perceber com crescente clareza quão pouco sabe.

8.5.7 Temperança

Aquele que estuda com afinco e compromisso acaba por buscar, consequen-
temente, a moderação dos prazeres imediatos tendo em vista o aprimoramento do

46
rendimento no estudo. Tal moderação é o que caracteriza a virtude da temperança: o
bom direcionamento dos apetites concupiscíveis.

8.5.8 Fortaleza

A capacidade de ultrapassar obstáculos para conquistar os chamados bens ár-


duos é condição necessária para o desenvolvimento da vida de estudos. A mode-
ração deste apetite pelos bens árduos, chamado de apetite irascível, é a virtude da
fortaleza.
As virtudes, portanto, alimentam o estudo e são alimentadas por ele. Tais virtudes
assim adquiridas, no entanto, não se estendem somente aos limites do estudo: o ho-
mem é um só e possui uma só existência.

8.6 A motivação sobrenatural do estudo


Há um aspecto pouco óbvio do estudo que, embora demande maior grau de
maturidade no estudante para fazer-se presente, tem potencial de trazer consigo a
maior motivação para incorporação deste hábito. Trata-se da motivação sobrenatural
para o estudo, já inserida na tradição cristã de grandes nomes do catolicismo, como
Santa Catarina de Sena e São Josemaria Escrivá.
Uma ideia já universalizada, porém ainda pouco propagada, é a da importância
das atividades cotidianas aos olhos da divindade; o estudo pode ser percebido sob
essa perspectiva. Pode-se dizer, por exemplo, que uma hora de estudo equivale a uma
hora de oração, desde que seja cumprida com o mesmo empenho de uma oração.
Para usufruir desse grande fruto do estudo não é preciso recorrer a nenhum me-
canismo ou prática complexa: basta manter a consciência de sua importância sobre-
natural e dedicar-se de acordo com tal entendimento. Como já dito nas páginas ante-
riores, se ao homem foi dada a inteligência, é seu dever levar este dom ao seu devido
rendimento. O desenvolvimento dos dons da inteligência potencializa a efetividade
no atendimento ao próximo e confere plenitude à existência; é, portanto, agradável
aos olhos de Deus.
O estudo, assim, não é estéril, do mesmo modo pelo qual a oração não é infecun-
da. Ainda que humanamente e profissionalmente não se perceba sua importância,
terá sua devida relevância espiritual se nele for depositada esta intenção. Sob a pers-
pectiva sobrenatural, o estudo é relevante como um fim, já que pode ser enxergado
como oração; é importante, ademais, como meio, já que aprimora e potencializa a
atuação para o bem na sociedade. O homem que estuda aumenta sua eficiência no
trato dos problemas alheios e seu prestígio profissional tem poder de contagiar os
demais, mostrando que tal grandeza é alcançável e desejável.
VIRTUDES HUMANAS

8.7 O estudo e o desenvolvimento da atenção


Simone Weil, já mencionada, trouxe ainda outra reflexão sobre o estudo que re-
vela uma motivação pouco intuitiva para seu cultivo: sua importância em gerar e de-
senvolver a atenção. A pensadora defende que a atenção é uma faculdade humana
fundamental no trato com Deus, constituindo o elemento mais importante para uma
vida de oração.

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Tal perspectiva abre um novo leque de motivações: pode-se dizer que o estudo é
importante porque desenvolve a atenção, que por sua vez é necessária para assistir
a uma aula ou a uma palestra, ler um livro, redigir um relatório sem erros e realizar as
mais variadas tarefas. Trata-se do desenvolvimento de um ativo cada vez mais raro
nos dias que correm.
A atenção é, sem dúvidas, uma faculdade muito desejada e sua formação é o
maior objetivo do estudo. Quem não consegue rezar, não consegue estudar e vice-
-versa. É difícil imaginar que execute bem seu trabalho um homem com tal limitação.

8.8 O que é estudar?


Conforme exposto no decurso desta disciplina, estudar é conhecer e conhecer é
a melhor forma de existir. É importante, então, investigar como o processo de aquisi-
ção de conhecimento se dá.
O homem conhece por dois sentidos: os externos e os internos. O conhecimento
de qualquer natureza é submetido, primeiramente, à filtragem dos sentidos externos
— visão, tato, olfato, paladar e audição. Estes tratam das sensações de calor do am-
biente, bem como sua clareza, rigidez e os variados aspectos exteriores.
Em seguida, o homem conhece pelos chamados sentidos internos, que são:

8.8.1 Percepção

É a faculdade que permitirá ao homem estabelecer conclusões sobre a forma do


ambiente a partir das informações captadas pelos sentidos externos.

8.8.2 Imaginação

Trata-se de um arquivo de percepções, permitindo a sua reprodução na forma de


imagens mentais, bem como a criação de novas imagens e cenários.

8.8.3 Avaliação

É o sentido que relaciona a percepção guardada na imaginação e aplica às situa-


ções da vida.

8.8.4 Memória

Responsável por conservar as avaliações e os atos, além das conclusões tiradas a


respeito destes. Possui aspectos individuais e coletivos.
Para bem viver o estudo, é imprescindível promover a justa moderação desses
VIRTUDES HUMANAS

sentidos. O silêncio e a moderação são as portas da vida interior.

8.9 Como estudar?


Guarda-se, em geral, grandes ressalvas ao estudo pautado na decoração. Tais
receios devem-se ao entendimento de que a memorização seria uma tarefa contrária
ao uso da inteligência. Em grande parte por isso, na vida acadêmica contemporânea
abundam pensadores críticos dispostos a tudo desconstruir. Contudo, pode-se sinte-
tizar com convicção que estudar é sinônimo de decorar.
48
Sem a memorização, não há sequer bases para uma análise crítica. Não é pos-
sível, ademais, estabelecer quaisquer relações entre os fenômenos. Decorar não é
uma atividade viciosa, mas uma atividade santa de trazer para o coração o que se
memoriza.
Para decorar, é fundamental primeiro a leitura. Daí já se respondem às dúvidas
entre ler um livro, assistir a uma aula/vídeo ou ouvir um audiolivro. Uma vez voltado
para o estudo que visa reter as informações, o mais importante para o estudante é
manter o contato visual e textual com as informações. É fundamental, portanto, ler e,
sobretudo, reler.
A atenção é o grande ativo que se busca adquirir com o estudo. Tal faculdade,
contudo, vem do desejo de saber e de reter o que se recebe do mundo. Lendo como
se tivesse interesse, o homem despende esforço para lembrar do que leu em um
outro momento: esta deve ser a abordagem ao se aproximar do material de estudo.
Vídeos e aulas não permitem um contato suficientemente repetido e atento. Na-
turalmente, não se pretende dizer que sejam por isso ferramentas inúteis. São, em
verdade, de grande ajuda para ajudar quem as assiste a lembrar os elementos cen-
trais. Viver buscando memorizar tudo o que se lê e escuta seria impossível e não é
sequer desejável. Contudo, se o conteúdo do estudo for importante para a atividade
profissional, humana e espiritual, deve-se dedicar um grau superior de atenção para
o qual a leitura será a chave.
Para a boa apreensão de conteúdo, ademais, é importante manter ativas as me-
mórias visual e recente:

8.9.1 Memória visual

É importante que o material de estudo seja construído ou adaptado de modo a


adquirir um aspecto visualmente agradável. Pode-se, por exemplo, fazer uso de ano-
tações em prosa ou até mesmo em poesia, grifar trechos, sublinhar, inserir símbolos
e sinais de alerta. É interessante, sobretudo, produzir um caderno hierarquizado que
ative a memória visual e facilite a absorção das informações nele contidas.

8.9.2 Memória recente

Mesmo com todos os recursos de memória visual bem aplicados, o homem es-
quece, pois faz parte de sua natureza. Só não se esquece aquilo que foi muito repe-
tido com atenção. É fácil perceber que muitas informações são de fato decoradas
deste modo, como dados pessoais e telefones importantes.
Recomenda-se ao estudante que tenha um material diretamente associado a
cada conhecimento que precisa adquirir (p.ex: um caderno sobre antropologia, se
VIRTUDES HUMANAS

esse tema for de relevância para o aluno). Pode-se partir das aulas de algum pro-
fessor ou de algum material previamente elaborado. Em seguida, o aluno deve fazer
anotações e trazer complementos ao material-base.
Em última linha, o estudo é sempre uma tarefa de catalogação. Recomenda-se,
no tocante à preparação de material, confiar pouco na memória e reunir tudo o que
parecer importante junto aos registros. A chave do estudo é a reunião, catalogação e
consulta de informações.

49
8.10 O que deve ser estudado?
O estudante deve elaborar um plano de estudo tomando o cuidado de não su-
cumbir à escolha de conteúdos que seriam perda de tempo (por tratarem-se de um
interesse prejudicial ou desordenado). Há conhecimentos que não se deveria desejar
ter, com tanta escassez de tempo. O homem está obrigado a saber aquilo pelo qual
é responsável e não pode abandonar a busca por estes conhecimentos em prol de
futilidades.
Quanto à necessidade de evitar a desordem no estudo, recomenda-se o segui-
mento da máxima non multa, sed multum: não muitas coisas, mas com muita inten-
sidade. Escolhe-se umas poucas frentes e dedica-se a elas com intensidade e ha-
bitualidade. A qualidade e intimidade que será perseguida é mais importante que a
quantidade; ademais, reconhecer as próprias limitações na extensão do campo de
estudo escolhido é um exercício de humildade.
O ideal é selecionar três frentes para o plano de estudos que será seguido por
toda a vida. Na primeira, incluem-se as ciências terrenas: estas serão associadas à
ocupação daquele que estuda, partindo do campo específico para o geral. Este deve
ser o grupo que ocupa a maior parte do estudo. O segundo campo é o das humani-
dades, que abrange temáticas como literatura, poesia, filosofia e desenvolvimento
pessoal. Destaca-se aqui novamente a importância de uma formação humana até
mesmo para a boa execução da atividade profissional.
Por fim, deve-se separar uma terceira frente voltada para os estudos de natureza
espiritual. É importante sustentar o cultivo do conhecimento acerca da existência,
vida interior e transcendência. Tais são os saberes que iluminarão todo o existir do ho-
mem. Aqui busca-se, também, diretrizes e orientações de caráter moral e vocacional.
Antes de falar sobre o tempo dedicado a cada classe de estudo, deve-se destacar
a importância das pequenas práticas diárias levadas a cabo de maneira inegociável:
são elas mais importantes do que os grandes esforços pontuais. Dito isso, a prática
diária de leitura destinada às humanidades e assuntos espirituais deve ser de até
vinte minutos; nem muito mais, por empolgação, e nem muito menos, por desleixo.
Quanto às ciências terrenas, recomenda-se encarar seu estudo como parte da
própria profissão e dedicar a elas algo entre meia hora e uma hora por dia. É funda-
mental, ademais, manter atualização frequente; para isso, é apropriado reservar um
dos dias da semana.
VIRTUDES HUMANAS

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