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FILOSOFIA
SUMÁRIO

1. O que é a filosofia...........................................................................................................................................4
1.1 Psicologia e filosofia...................................................................................................................................................... 4
1.2 Uma definição de filosofia........................................................................................................................................ 4
1.3 Filosofia e visão de mundo....................................................................................................................................... 5
1.4 Visão de mundo em diferentes sociedades.................................................................................................. 5
1.5 Quando há filosofia?...................................................................................................................................................... 6
1.6 Demarcação da filosofia............................................................................................................................................. 7

2. A teoria das quatro causas........................................................................................................................9


2.1 O ente .................................................................................................................................................................................... 9
2.2 Causa e efeito ................................................................................................................................................................. 9
2.3 Causa formal................................................................................................................................................................... 10
2.4 Causa material................................................................................................................................................................ 11
2.5 Hilemorfismo aristotélico........................................................................................................................................ 11
2.6 Causa eficiente.............................................................................................................................................................. 11
2.7 Causa final.........................................................................................................................................................................12
2.8 Acidente e substância...............................................................................................................................................12

3. Bondade e verdade.....................................................................................................................................14
3.1 Perfeição e completude........................................................................................................................................... 14
3.2 Finalidade e bem.......................................................................................................................................................... 14
3.3 O ser humano e a busca pelo bem................................................................................................................... 15
3.4 O equívoco do relativismo...................................................................................................................................... 15
3.5 A perda da ideia de finalidade objetiva..........................................................................................................16
3.6 O bem absoluto............................................................................................................................................................. 17

4. Virtudes intelectuais.................................................................................................................................. 18
4.1 Virtudes morais versus intelectuais..................................................................................................................18
4.2 Ciência ...............................................................................................................................................................................18
4.3 Sabedoria...........................................................................................................................................................................19
4.4 Inteligência.......................................................................................................................................................................19
4.4.1 O princípio de não-contradição............................................................................................................................................. 19
4.4.2 O princípio do terceiro excluído...........................................................................................................................................20
4.5 Arte .................................................................................................................................................................................................... 20
4.6 A prudência.................................................................................................................................................................... 20
5. Graus de certeza..........................................................................................................................................22
5.1 A distinção entre demonstração e argumentação................................................................................. 22
5.2 A precariedade do ente material....................................................................................................................... 22
5.3 A realidade não é matemática............................................................................................................................ 23
5.4 O risco inerente à existência................................................................................................................................ 24
5.5 Para além do antagonismo entre racionalidade e irracionalidade............................................. 25

Referências bibliográficas...........................................................................................................................26
1 O QUE É A FILOSOFIA

1.1 Psicologia e filosofia


Inicialmente, a psicologia era entendida como um campo da filosofia; os primeiros
pensadores que estudaram temas como alma humana, união entre corpo e alma e o
enigma do ser humano foram precisamente os filósofos. Tais temáticas residem até
os dias atuais nas discussões filosóficas com o nome de antropologia filosófica, psico-
logia racional ou filosofia do homem.
Aristóteles tratou sobre a psique humana em sua obra intitulada Περὶ Ψυχῆς (perí
psychḗs), traduzida para o latim como De Anima e para o português como Sobre a
Alma. Quando fala de alma, esse filósofo não está pensando apenas no ser humano:
para ele, a alma é o princípio fundamental do ser vivente — o ser vivo é o ser animado,
enquanto o que não possui vida é dito inanimado.
Estudando a alma começa-se a pensar, portanto, na vida — esse aspecto miste-
rioso caracterizado principalmente pela existência de um movimento interno. Os seres
vivos movem-se por dentro, por si mesmos, e possuem interação mais rica e profun-
da com o ambiente do que aquela verificada entre os seres inanimados. Aristóteles
percebeu isto e identificou a existência de graus de vida: vegetal, animal e humana.
A partir desta descoberta no âmbito da filosofia, é possível chegar a noções que
serão muito caras para a psicologia. O objetivo desta disciplina é apresentar estas
ideias e noções esclarecedoras para aqueles que tratam do ser humano, da alma hu-
mana e da psique. Como será visto no decurso destas páginas, mesmo a psicologia
científica ou técnica — que desenvolveu-se de modo a adquirir independência em re-
lação à filosofia — jamais pode prescindir dos conceitos filosóficos, em última análise.

1.2 Uma definição de filosofia


A filosofia possui uma particularidade em relação a outras áreas de conhecimen-
to: defini-la já é exercê-la. Quando se busca uma definição para matemática, por
exemplo, nota-se que esta é uma discussão mais circunscrita aos limites da filosofia
do que da matemática propriamente dita; de modo semelhante, não se está fazen-
do física ao defini-la. O mesmo vale para química, biologia e qualquer outra área de
conhecimento.
Na filosofia, contudo, as perguntas sobre sua definição já constituem sua própria
atividade, pois pressupõem uma reflexão filosófica. Por isso há tantas explicações
diferentes sobre a sua finalidade, algumas demasiado abrangentes, outras excessiva-
mente ambiciosas e, o que parece ser comum, ainda outras demasiado tímidas — que
terminam por apresentar uma versão mutilada desta grande área do conhecimento.
FILOSOFIA

Segundo certas definições, como será visto, a filosofia sequer teria um objeto próprio.
Ainda falando de Aristóteles: dizia este filósofo que, se não houvesse entes ima-
teriais, a principal das ciências seria a física (Met. 6. c.1. 1026, a, 27 - 32). É importante

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ressaltar, no entanto, que o sentido de física para este autor é diferente do encon-
trado no uso atual: trata-se, na verdade, do que se chama de filosofia da natureza.
Ou seja, não havendo imaterialidade, o principal conhecimento humano seria preci-
samente os ensinamentos de filosofia da natureza — da física enquanto estudo dos
entes dotados de matéria.
Aristóteles defende, contudo, que este não é o caso. Segundo ele, existem entes
imateriais e, portanto, a física não é a primeira e mais importante das disciplinas filo-
sóficas: este é o lugar da metafísica.
Note-se que alguém que defenda a inexistência de realidades imateriais neces-
sariamente terá uma concepção de filosofia inteiramente distinta. Parece que, para
esta pessoa, seria inevitável que a filosofia se visse reduzida a um apêndice absorvido
pelas ciências naturais, que abrangem medições, sensações e aspectos quantita-
tivos. Neste caso, portanto, seria válida a hipótese de Aristóteles, de que a filosofia
seria fundamentalmente reduzida à física.
Na verdade, esta é uma definição defendida por muitos autores que consideram
que a filosofia não traz conhecimento positivo acerca das coisas, mas tão somente
uma conversa interessante, instigante ou bela, com pouco reflexo de verdade. A con-
cepção de mundo que determinada pessoa possua deve conduzi-la a uma determina-
da definição de filosofia, e vice-versa.

1.3 Filosofia e visão de mundo


Embora estejam relacionados, os conceitos de filosofia e de “visão de mundo” não
são idênticos. O que se pode chamar de visão de mundo é algo inevitável para o ser
humano: todos eles terão a sua própria. São concepções com as quais se tenta ex-
plicar a realidade ao redor e, principalmente, o sentido da própria vida. Mesmo quem
jamais tenha refletido filosoficamente possui uma visão sobre a realidade; é comum
que esta visão seja recebida da sociedade na qual a pessoa se encontra.
Pode ocorrer de alguém, após um longo tempo conformado com essa visão irre-
fletida da realidade, se revolte com essa situação. Jamais tendo pensado sobre o as-
sunto, uma vez que se questiona acerca das origens de suas ideias sobre si e sobre o
mundo, percebe que não chegou a tais conclusões — que até então tinha como suas
— por conta própria. Este caso evidencia um importante fato: adotar uma concepção
de mundo e refletir a respeito dela são dois acontecimentos que podem ocorrer em
momentos distintos.
As pessoas também derivam esquemas valorativos a partir de suas visões de
mundo, o que se manifesta em suas escolhas. A partir de seus comportamentos, é
possível observar como o homem hierarquiza a família, o emprego, o dinheiro e o
prazer material, por exemplo.

1.4 Visão de mundo em diferentes sociedades


FILOSOFIA

A concepção de mundo é um conceito bastante amplo. É comum que possua


fundamentação religiosa ou que seja pautada em pensamentos transmitidos de pais
para filhos por muitas gerações. No mundo atual, há uma série de pensamentos do-
minantes entre as pessoas — a maioria delas parece acreditar em alguma divindade,
por exemplo.
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Não obstante, a importância dada à noção acerca da existência de uma divindade
pode variar razoavelmente, tanto entre pessoas distintas como nas mesmas pessoas
em momentos diferentes da vida. Mais do que isso, as religiões que fundamentam
essas concepções de mundo variam razoavelmente entre si.
Há um campo de estudo que investiga a diferença nas concepções de ateísmo
em diferentes sociedades. Um ateu que vive em um país muçulmano possui um con-
junto de crenças e de oposições à religiosidade que se mostram distintas daquelas
de um ateu criado em uma sociedade cristã ou das consideradas por um ateu no
mundo hindu.

1.5 Quando há filosofia?


Ao passo que concepções de mundo se fazem presentes em todos os seres hu-
manos de todas as épocas, há discussão sobre o quanto é possível dizer o mesmo
da filosofia. No século XX, por exemplo, alguns autores (de origem majoritariamente
alemã, como o notável Werner Jaeger) defendiam que não havia filosofia antes do
mundo grego. Segundo esta interpretação, o que haveria antes, em outros países e
culturas, seriam visões de mundo que poderiam também ser chamadas de visões
sapienciais.
A sabedoria, que será discutida em mais detalhes no decurso desta disciplina,
consiste no conjunto de conhecimentos globais da realidade. O sábio é aquele que
enxerga o mundo não nos seus detalhes, mas percebendo os princípios fundamen-
tais que regem a realidade como um todo. Várias religiões possuem explicações de
natureza sapiencial sobre o mundo. A ideia de recompensa aos bons e de castigo aos
maus, por exemplo, é uma delas.
O que importa destacar nesta discussão entre especialistas acerca das origens da
filosofia é que, independentemente de onde esta tenha surgido, de fato trata-se de
algo diferente das ditas explicações sapienciais. Estas últimas podem conter histó-
rias, narrativas, mitos, parábolas que contêm uma realidade; mesmo quando não são
propriamente reais, portam uma mensagem que se pretende um núcleo de verdade.
Alguns autores julgam que o episódio do dilúvio não seria histórico, mas uma
mensagem que determinada religião tomou para si e transmitiu aos seus seguidores.
Outros, por sua vez, dizem que o evento efetivamente ocorreu, mas que pode mesmo
assim ser entendido como uma mensagem, isto é, como o castigo para os homens
que se afastaram de Deus, enquanto Noé teria sido salvo por sua fidelidade. Essa
história contém a mensagem de que o homem que está de acordo com a ordem da
realidade terá uma vida mais feliz e será recompensado, enquanto os que se revol-
tam contra tal ordem enfrentam o sofrimento e podem mesmo morrer por isso.
O mito de Pandora porta uma mensagem semelhante. Nele, a primeira mulher
humana criada pelos deuses, que dá nome à história, é enviada ao mundo com uma
caixa contendo incontáveis males. Zeus a envia como punição à humanidade por
receber o fogo roubado por Prometeu. A caixa, quando aberta, espalha o mal pelo
FILOSOFIA

mundo. Mais uma vez, nota-se a ideia do castigo pela desobediência à ordem divina
(Hesíodo, Trabalhos e dias, vs. 60-105).
É belo o fato de que vários mitos portam aspectos semelhantes, como a ideia de
que uma falha na humanidade ocasionou um castigo cujas consequências marcam a
origem do mal no mundo — a narrativa de Adão e Eva traz a mesma mensagem (Gn 2,
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15-25; 3, 1-24). Salta aos olhos a repetição de alguns desses elementos fundamentais
em sociedades distintas. Naturalmente, há muitos elementos diferentes entre cada
uma delas; percebe-se, porém, a existência de um núcleo significativo de verdades e
convicções compartilhadas de época para época e de povo para povo.
A filosofia propriamente dita surge e se distingue das concepções de mundo
quando o homem começa a explicar por meio da razão o que vem a ser estas ver-
dades compartilhadas pela humanidade. Aristóteles diz na Metafísica que a filosofia
surgiu da admiração e também do desejo de conhecer. É famosa a sua frase: “todos
os homens desejam saber” (Met.1, c. 1; 980a); é uma inclinação do ser humano a bus-
ca pelas causas do que acontece.
A procura da verdade é despertada pela admiração; esta última surge de certa
ignorância. A partir do momento em que o homem busca explicar o que ocorre à sua
volta por meio do emprego da inteligência — ainda que existam as influências da
cultura e sociedade na qual está inserido — pode-se dizer que há filosofia. É nisto
mesmo que ela consiste: na tentativa de explicar a realidade através da razão.

1.6 Demarcação da filosofia


No início, a filosofia abrangia as tentativas de explicação de uma miríade de outras
áreas, incluindo da psicologia. Fazia parte de seus limites, ainda, campos atualmente
incluídos entre as ciências naturais, como física e biologia. Após certo tempo, vários
destes ramos adquiriram autonomia e passaram a ser estudados de modo experi-
mental segundo métodos distintos do método filosófico.
Formaram-se, então, áreas distintas da filosofia, a respeito das quais, contudo,
foram mantidas preocupações de natureza filosófica — como no exemplo já citado
da antropologia filosófica, que ainda hoje é um campo da filosofia. Qual é, então, a
diferença entre estudar o ser humano no âmbito da filosofia e fazê-lo sob a ótica das
demais ciências?
A distinção pode ser resumida pela afirmação de que a filosofia busca as causas
fundamentais, isto é, o porquê das coisas. As ciências costumam voltar-se para o as-
pecto quantitativo da realidade, estabelecendo fórmulas e conduzindo experimentos
que resultam em descrições quantitativas.
Quando se fala de força na física, por exemplo, usa-se a fórmula matemática F =
M x A, que significa que a força é igual ao produto da massa e da aceleração. Trata-
-se de uma fórmula que funciona, mas que consiste tão somente em uma descrição
quantitativa de relações.
O conceito de força, todavia, foi tomado emprestado pela física da filosofia. Para
esta outra área de estudo, força está ligada a um acidente das substâncias que são
ação e paixão: aquele que age possui uma ação e aquele que recebe a ação possui
uma paixão. Neste modo de ver, ação e paixão são acidentes de um determinado
ente.
A filosofia, portanto, não está em busca de uma fórmula, mas do entendimento
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do que é este fenômeno. O que é força? O que é movimento? Aristóteles responde


que “movimento é o ato do ente em potência enquanto tal” — sendo ato “a coisa que
é em si mesma nesse momento” e potência a “capacidade de vir a ser aquela coisa”
(ARISTÓTELES, Fis., 3. 1, 201a9-11).

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SAIBA MAIS
Estes conceitos podem ser melhor ilustrados com um exemplo: a água em um
copo, naturalmente, possui uma temperatura atual; potencialmente, contudo,
o líquido está em uma temperatura mais alta ou mais baixa, já que pode cair
— chegando mesmo a zero graus — ou subir, atingindo os cem graus que o
fariam evaporar. Sabe-se que a água congela a zero graus e torna-se vapor
aos cem: esta é uma potencialidade própria da água.

A potência é, portanto, onde é possível chegar, e o ato é o que é atualmente. O


movimento ocorre quando algo que tem a possibilidade de ser alguma coisa está
indo na direção de tornar-se esta coisa. Retomando o exemplo: caso se tente aque-
cer a água da temperatura ambiente para os sessenta graus, sua alteração de uma
temperatura para outra é o movimento. Seria, deste modo, o ato do ente em potência
enquanto potência: sessenta graus é o ponto para o qual deseja-se que a água se
atualize e ela está em ação nesta direção, mas ainda não chegou no ato pleno. Quan-
do chega no ato pleno, cessa o movimento.
Estes conceitos podem parecer complexos para o leitor que se depara com eles
pela primeira vez. Não há problema, contudo: para os fins desta etapa introdutória da
disciplina, importa mais observar como se dá a reflexão filosófica do que entender
com precisão o que é movimento. A filosofia se debruça sobre os porquês e os con-
ceitos de ato e potência fazem parte do conjunto de noções que explicam como a
realidade funciona.
Nota-se que tudo é assim: em todas as coisas há certa instabilidade. As coisas
que são também estão inclinadas a ser outra coisa: o homem é o que é, mas seus ca-
belos caem enquanto outros nascem, seu peso aumenta ou diminui… a filosofia busca
explicar a natureza destes movimentos por meio da identificação de suas causas pri-
meiras e finalidades últimas.
A biologia, ao descrever a vida, discorre sobre o cérebro, a atividade cerebral, a
respiração e o funcionamento dos órgãos. É possível dar descrições físico-químicas
para falar sobre a atividade cerebral; contudo, investigar de onde vem a ideia de alma
e do princípio que faz com que haja a vida e o movimento são questões do âmbito da
filosofia. O filósofo se preocupa com o que é próprio do ente.
É importante notar que mesmo a ciência enquanto descrição pressupõe a exis-
tência de um ordenamento da realidade: é isto que possibilita a própria identificação
e descrição de leis da natureza; a filosofia questiona e investiga a origem destes pa-
drões e a razão de sua existência. Todas as ciências utilizam conceitos oriundos da
filosofia.
Por último, interessa tecer alguns comentários sobre a significação da filosofia a
partir de sua etimologia: amor à sabedoria. A plena sabedoria é possível a quem é
capaz de conhecer todas as coisas — esta é, contudo, uma prerrogativa da divindade.
FILOSOFIA

Aos seres humanos resta, portanto, tornarem-se amantes da sabedoria, aproximan-


do-se constantemente dela — ainda que seu pleno atingimento não seja possível.

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2 A TEORIA DAS QUATRO CAUSAS

2.1 O ente
A teoria das quatro causas foi proposta na Física de Aristóteles, que posterior-
mente a retomou e desenvolveu em sua Metafísica. Para melhor entendê-la, é impor-
tante saber o que se pretende dizer ao usar a palavra “ente”: trata-se daquilo que é.
Tudo o que existe é um ente.
Ressalta-se que há entes ficcionais e reais. Dom Quixote é um ente ficcional; o
unicórnio é um ente mitológico. A pessoa que um homem cumprimenta ao ir para o
trabalho, por outro lado, é um ente real, assim como o é o carro utilizado por ele no
percurso; nesse mesmo carro, há vários elementos que constituem entes reais e as-
sim sucessivamente.
O homem descobre o verdadeiro sobre a natureza do ente ao compreender suas
causas. Como será visto, todas as perguntas que podem ser feitas a respeito das coi-
sas buscam saber precisamente uma das quatro causas identificadas por Aristóteles,
já que estas se relacionam com toda a realidade que há.
A busca empreendida por este filósofo foi bastante ambiciosa: elencar as noções
fundamentais que servem para dar o fundamento de todas as coisas. Como já discu-
tido, trata-se de uma abordagem diferente daquela feita pela biologia ou pela quími-
ca. Naturalmente, um cientista pode refletir sobre esses temas; todavia, caso o faça,
estará agindo como filósofo — e os grandes cientistas de algum modo souberam
relacionar importantes noções filosóficas ao seu trabalho.

2.2 Causa e efeito


Aristóteles afirma que a causa é um princípio do qual o ser do efeito depende.
Pode-se dizer, de forma simplificada, que o princípio de uma coisa consiste simples-
mente em algo que está antes dessa coisa, ou necessário para que ela seja. Há uma
miríade de princípios que não influenciam no ser do efeito — e, portanto, não se-
rão causas dele —, ao passo que outros exercem alguma influência, sendo por isso
causas.
O efeito de um mesmo tempero, por exemplo, não muda se este for comprado
por certo valor ou por outro dez vezes maior, considerando que a qualidade seja a
mesma; um vendedor que aumente o preço deste tempero não estará, com sua de-
cisão, elevando a qualidade das preparações de seus compradores.
Este exemplo ilustra bem o fato de que, embora princípios sejam algo anterior ao
efeito (no caso, comprar o tempero ocorre antes da preparação do alimento), isto não
significa que os efeitos dependam de qualquer princípio anterior — a qualidade da
FILOSOFIA

comida não é afetada propriamente pelo preço do ingrediente, para um mesmo nível
de qualidade deste.
Por outro lado, se em vez do preço, a qualidade do tempero for maior, seu efei-
to será melhor percebido na preparação da receita. É importante notar que há uma

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relação de proporção entre o efeito e a causa: quanto melhores forem as causas,
maiores serão as chances do efeito produzido ser também melhor.
Há, portanto, proximidade entre causa e efeito. Uma das maneiras de conhecer
as causas é, inclusive, por meio de seus efeitos. Esta, contudo, não é a melhor forma:
um pintor capaz de produzir belíssimas obras poderia traçar um rabisco no papel, e
faria dele um juízo muito imperfeito aquele que julgasse suas habilidades por esse
rabisco. Sabendo algo dos efeitos, é possível dizer algo sobre as causas; todavia, não
é possível fazê-lo perfeitamente.
Ainda que seja legítimo tentar chegar às causas através de seus efeitos — em al-
guns casos, este é mesmo o único meio disponível —, o conhecimento mais perfeito
se dá através da própria causa. Conhecendo-a diretamente, é possível prever seus
efeitos com exatidão.
Quatro são as causas: material, formal, eficiente e final. Estas dividem-se entre
causas intrínsecas ao ente (material e formal) e extrínsecas ao ente (eficiente e final).
As duas primeiras explicam a constituição dos seres ou entes, ao passo que as últi-
mas explicam seu movimento e mudança. Há relações de dependência e preponde-
rância entre elas, como será melhor visto adiante. Ademais, nos variados entes, todas
as causas estão presentes de maneira diversa.
Para a psicologia, o conhecimento das quatro causas é particularmente impor-
tante no entendimento de desordens e problemas humanos. A noção das causas é
importante para analisar tais questões de forma completa, evitando as dificuldades
ou mesmo danos que seriam causados por entendimentos unilaterais e amputados
de seus aspectos.

2.3 Causa formal


A causa formal é responsável por um ente ser o que é. Uma estátua e uma cadei-
ra, por exemplo, podem ser feitas do mesmo material; todavia, é a sua forma que as
distingue. Tome-se ainda outro exemplo, do ácido que se une a uma base e se trans-
forma em um sal. A matéria que havia no ácido e na base separados é a mesma que
há no momento posterior, em que se unem e se transformam em sal: o que muda é a
forma de organizar esta mesma matéria.
A madeira corrompida pelo fogo gera a cinza. Isto é o mesmo que dizer que a
matéria que estava antes ali transformou-se em outras coisas e, do que outrora era
a madeira, surgiu a cinza. Pode-se colocar esta cinza, ainda, na terra, onde talvez
seja absorvida pelas plantas que ali vivem. Se esta planta servir de alimento para um
animal, aquela mesma matéria que antes compunha a madeira passará a constituir
este animal.

SAIBA MAIS:
Note-se que o que ocorre nestes casos é um ciclo no qual a materialidade se
mantém, mas a matéria é a cada momento organizada segundo uma forma
FILOSOFIA

diferente. Toda matéria conhecida está sempre associada a uma determinada


forma: a matéria, em si mesma, é pura potência, pura possibilidade, mas sua
existência concreta nunca se dá sem forma alguma — é precisamente na ma-
téria associada à forma que há o ente material.

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2.4 Causa material
A causa material talvez seja a mais simples de entender: é aquela referida quando
o homem se pergunta de que algo é feito. Uma estátua grega é feita de mármore;
uma mesa é feita tipicamente de madeira. A matéria é pura potência e só será um
ente material propriamente dito quando for atualizada pela forma.
A madeira, antes atualizada como um pedaço de madeira, sofre uma modificação
que dá a ela forma de mesa. Caso essa mesa seja queimada, por exemplo, sua forma
será atualizada e esta se transformará em cinzas.

2.5 Hilemorfismo aristotélico


O ente material é dito também hilemórfico: a palavra deriva da junção entre ὕλη
(hyle), palavra usada pelos gregos para designar as matérias, e μορφή (morphē), que
significa forma. Todos os entes materiais são uma conjunção entre matéria e forma,
isto é, certa quantidade de matéria organizada segundo determinada forma.

REFLITA:
Não existe, de fato, “matéria-prima”, ou seja, a matéria não atualizada ou deter-
minada por qualquer forma. Este é um conceito puramente intelectual, já que
na realidade nunca se viu matéria sem forma alguma. É importante destacar,
contudo, que mesmo uma matéria disposta de determinado modo pode ser-
vir de causa material para realidades muito diferentes. É curioso — e até belo!
— pensar que mesmos os entes vistos pelo homem como os mais materiais,
como um carvão, uma pedra ou um copo d’água, não são apenas matéria: ain-
da que dois entes materiais sejam formados pelos mesmos componentes, as
formas os distinguem e os atualizam de modo variado.

A forma é, afinal, o fundamental em um ente material, por ser o que o diferencia.


O homem conhece através das formas: ao deparar-se com um ente, abstrai sua ma-
téria e fica com a forma da coisa. Em uma rosa a sua cor, seu odor e o espetáculo das
pétalas, que se unem ou desabrocham, são todos organizações da matéria segundo
uma forma específica. Cinco, vinte ou cem rosas compartilham todas do mesmo or-
denamento segundo uma única forma.

2.6 Causa eficiente


Como já discutido, o ente material é a matéria atualizada por alguma forma. Mas
como se dá esse movimento? O que ocasiona um arranjo específico entre matéria e
forma? A resposta para esta pergunta revela a causa eficiente de um ente; trata-se da
causa que designa o que originou a mudança ou movimento que culminou no ente.
FILOSOFIA

A causa eficiente da escultura é o escultor, pois é ele o agente que promove a


transformação do mármore, que estava sob a forma anterior de bloco, em uma es-
cultura. Quando a madeira é corrompida e transformada em cinzas, é o fogo a causa
eficiente deste movimento. O fogo, por sua vez, pode ter sido originado por um raio,

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que será, então, sua causa eficiente. Um movimento produz outro, de modo que há
causas mais próximas ou mais distantes de um determinado efeito.
Há uma ideia importante subjacente à noção de causa eficiente: a de que as coi-
sas não se movem por si mesmas. É necessário, portanto, que algo as mova. Nos seres
vivos, é possível buscar explicações biológicas para o movimento; todavia, mesmo
essa sucessão de causas suficientes do ponto de vista fisiológico levaria a alguma es-
pécie de princípio vital. Trata-se de um salto para o aspecto filosófico — a alma — que
não é aceito pelos materialistas. É importante ressaltar, no entanto, que este passo
não diminui a importância da explicação científica — somente destaca sua insuficiên-
cia como explicação isolada.
Há vida no homem quando seu coração bate, mas por que seu coração bate?
Pode-se dizer que há um conjunto de condições fisiológicas que permitem o bom
funcionamento deste órgão, o que é verdade. Mas por que em um corpo idêntico a
outro, um pode ter vida e outro não? Parece haver algum princípio intrínseco do pró-
prio ente que originou este movimento: este seria a alma.

2.7 Causa final


A causa eficiente sempre age em vista de um fim, de forma consciente ou não.
No caso da escultura, seu escultor promove a transformação do mármore visando
conscientemente transformá-lo em escultura; o fogo, por sua vez, não age de forma
consciente sobre a madeira, mas ainda assim só possui um fim em contato com esta.
Dito de modo amplo, o próprio fogo “age” tendo em vista uma determinada finalidade
que está em sua natureza.
Explicadas as quatro causas, torna-se mais fácil compreender o porquê de esta-
rem dispostas em dois pares: causa material e causa formal, já que o ente não pode
ser constituído de matéria sem forma; e causa eficiente e final, já que o ente não pode
ser produzido por um movimento que não possua finalidade.
Os antigos diziam que a causa final é a causa das causas, porque as demais cau-
sas do ente assim o são em vista da causa final. O material da estátua é escolhido
de acordo com o tipo de estátua que se deseja produzir; toda a ação do escultor na
promoção da transformação do bloco de mármore se dá em vista da finalidade de
produzir uma determinada escultura; do mesmo modo, a forma será escolhida sob a
determinação da finalidade.
Quando um ser humano produz um artefato qualquer, a causa final deste ente
está em sua mente. Aristóteles não utiliza o exemplo da escultura à toa: de algum
modo, a ação do homem na criação destes artefatos imita o próprio processo de
criação na natureza.

2.8 Acidente e substância


Um automóvel é composto de um conjunto de peças que existem em si mesmas:
FILOSOFIA

parafusos, pistões e correias continuam existindo mesmo após desmontar o veículo.


Juntá-los para formar um automóvel provoca alterações acidentais, mas não subs-
tanciais nestes elementos.

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O que isto significa? Diz-se que a substância é o ser em concreto, que existe em
si mesmo; não existe, portanto, somente em outro ser. O acidente, por outro lado, é
aquilo que não existe por si mesmo, mas apenas em outro ser. A forma acidental é
aquela que se une a um sujeito autônomo, a substância.
É importante estabelecer estas definições para melhor entender o que é uma
mudança substancial. As transformações substanciais são aquelas nas quais a ma-
téria passa a integrar um novo ente diferente do anterior: há, desse modo, uma outra
substância que ela passa a compor. A madeira que vira cinza sofreu uma mudança
em substância; o homem que perde um dedo sofre uma mudança acidental (isto é,
não perde sua substância de homem após esta transformação).
Ilustrando ainda com outro exemplo: se uma maçã era verde e se torna vermelha,
trata-se de uma mudança acidental, pois sua substância enquanto maçã se man-
tém; por outro lado, se esta for comida, sofre uma mudança substancial — já não há
mais maçã.

FILOSOFIA

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3 BONDADE E VERDADE

3.1 Perfeição e completude


Há uma dinâmica interessante nos entes, particularmente perceptível nos seres
vivos: a forma tende à sua plenitude. Ao pensar em um animal qualquer ou mesmo no
ser humano, nota-se que ao seu nascimento segue-se um processo de crescimento
e desenvolvimento que culmina em uma plenitude de força e de perfeição, em ter-
mos físicos e biológicos.
O desenvolvimento até tal perfeição física é um padrão nos entes, determinado
pela sua própria forma. Após atingir seu ápice, o ente degenera; este ciclo, embora
melhor notado entre os seres vivos, aplica-se também para os entes inanimados. A
forma busca sua própria plenitude e tenta se manter nela até que não mais o possa
— pode-se dizer, assim, que a forma está voltada para uma finalidade.
Caso não houvesse tal finalidade, isto é, uma maneira própria inerente ao ente
que o leva a inclinar-se em determinada direção, não haveria repetições e padrões
na realidade. O fogo, por exemplo, sempre agirá de determinado modo por conter
em sua própria substância tendências inatas que o conduzem a certo fim. É isto o
que impede que todas as realidades sejam aleatórias. O homem sabe que certos ali-
mentos lhe farão mal ou bem, por exemplo, pela identificação destas tendências que
refletem as finalidades das coisas.

3.2 Finalidade e bem


Por que é bom para um homem realizar exercícios físicos? Pode-se dizer que isto
seja bom em vista de uma finalidade. Como o sujeito deseja manter o próprio corpo
saudável, vê a atividade física como um bem. A partir deste exemplo, delineia-se
outra ideia filosófica muito importante: a noção de bem e de bondade possui relação
com a causa final e a causa formal de um ente. O bem de algo é atingir a plenitude de
sua forma e mantê-la; isto ocorre precisamente porque a finalidade da forma é esta
plenitude.
É difícil definir o bem; ainda que todos possuam alguma noção do que este venha
a ser, trata-se de uma daquelas noções primeiras, em relação às quais não há noções
anteriores que possam servir para defini-las. Os antigos diziam que o bem é aquilo ao
qual todas as coisas tendem. Tudo o quanto existe busca o seu bem.
O homem com sede toma para si um copo d’água e bebe seu conteúdo. A água é,
neste caso, o bem que permite atingir a finalidade de matar a sede. Se, ao contrário, o
mesmo homem precisa fazer jejum de água por duas horas para a realização de um
exame, a água passa a ser um mal.
FILOSOFIA

A finalidade de realizar o exame é um bem, pois visa zelar adequadamente pela


saúde do corpo; portanto, o que leva à sua realização também será um bem. Man-
ter-se saudável permite atualizar o corpo de modo que fique em um estado que lhe

14
é próprio. Note-se que a palavra “saudável” costuma ser utilizada tanto para indicar o
que causa saúde como para denotar aquilo que manifesta o efeito da saúde.
Considera-se, por exemplo, que uma temperatura corporal de 36,7° é saudável.
Naturalmente, a temperatura em si mesma não pode ser dita saudável — trata-se
simplesmente de uma temperatura como qualquer outra. Por que, então, é assim
designada? Porque uma pessoa saudável com esta temperatura não está com febre,
e a febre é um indicativo de que algo no corpo não vai bem.

3.3 O ser humano e a busca pelo bem


A noção de bem, como já dito, denota aquilo para o qual tudo se inclina. É inte-
ressante observar a semelhança entre ciência e filosofia neste aspecto. Quando se
fala de algo que está nos animais e os inclina à própria preservação, não é esta no-
ção muito semelhante à de instinto? Visando a preservação individual e da espécie,
os animais são dotados de um instinto sexual e outro de alimentação, por exemplo.
Ainda que não busquem conscientemente estas coisas, tratam-se de inclinações que
estão na sua própria natureza.
O ser humano também possui instintos semelhantes aos dos animais; não obstan-
te, é dotado de consciência, o que lhe confere a possibilidade de adquirir por meio
da educação um discernimento avançado acerca do que é bom. No decorrer de sua
vida, o homem se depara com variadas tendências, por vezes conflitantes — comer
ou não; fugir ou enfrentar uma situação de risco. A razão humana auxilia na identifica-
ção das opções que melhor representam o bem a depender do caso específico.

3.4 O equívoco do relativismo


Para o estudante de psicologia, é fundamental munir-se do conhecimento de
que, ainda que a bondade seja um conceito dependente da circunstância específica,
esta manifesta-se de forma objetiva em dada situação concreta.
Pensando no exemplo de um homem que deseja fazer uma casa, pode-se con-
siderar que, de acordo com o projeto de construção, certos materiais serão boas
escolhas e outros serão más opções. Do mesmo modo, certos utensílios deverão ser
usados segundo disposições específicas para garantir o bom seguimento do plano.
Em uma casa projetada para locais com praia e altas temperaturas, o projeto terá
algumas características próprias de construções em ambientes quentes; por outro
lado, se a construção ocorre em um local onde neva, o projeto será modificado de
modo a acomodar este perfil climático.
O bem possui alguma relatividade neste sentido; todavia, dada a finalidade espe-
cífica da situação concreta, há opções que seriam objetivamente boas e outras que
seriam ruins. O próprio fato de ser possível argumentar em defesa de meios mais
adequados a depender do caso evidencia que tais escolhas não são puramente sub-
jetivas ou arbitrárias.
FILOSOFIA

Evidentemente, alguém poderia insistir em certo projeto de maneira indepen-


dente da circunstância concreta — utilizar em um local quente um projeto de casa
desenhado para locais frios, por exemplo. No entanto, esta pessoa sofrerá todas as
consequências que decorrem de sua escolha ruim.

15
O bem e o mal são objetivos no sentido de que há respostas certas ou erradas
para atingir certa finalidade. Estas são realidades que persistem, ainda que o homem
decida fazer algo contra a natureza da coisa e impedir que ela atinja aquilo para o
qual se inclina — o que pode, na verdade, ser necessário em casos nos quais se tem
em vista outro bem maior.
Um exemplo esclarecedor desta última situação é o do homem que impede que
seu cachorro ataque um convidado que entra em sua casa à noite. Ao fazê-lo, o su-
jeito impede que a natureza do cachorro atinja a sua finalidade própria, considerando
para isso que zelar pela vida de seu convidado é um bem maior.
Note-se mais uma vez que, embora os conceitos de bem e mal possam variar de
acordo com a situação, não se trata de algo arbitrário; pode-se considerá-los relati-
vos somente no sentido de que estão numa relação específica dada por uma circuns-
tância concreta, mas não no sentido de não haver para eles um fundamento real.

3.5 A perda da ideia de finalidade objetiva


A ignorância ou rejeição dos princípios supracitados por vezes estende-se para o
campo dos estudos em saúde psíquica. É comum, por exemplo, que o trabalho do
psiquiatra seja visto atualmente como um conjunto de práticas orientadas não para
finalidades específicas, mas para a eficiência. Que isto quer dizer?
Segundo tal concepção, o psiquiatra visaria a harmonia interna e o bom funcio-
namento do ser humano independentemente de quais sejam as finalidades busca-
das por aquela pessoa em sua própria vida. Não seria, portanto, uma função muito
diferente do gerente administrativo que busca aumentar a eficiência da companhia
independentemente desta trazer um bem ou um mal para a sociedade.
Todavia, seria possível que o homem fosse dotado de harmonia e funcionalidade
sem perseguir as finalidades que lhe são próprias? Esta concepção equivocada da
psiquiatria possui raízes mais antigas do que parece; foi, na verdade, semeada desde
o final da idade média por meio do abandono da ideia da existência de uma finalidade
objetiva para as coisas. Tal perda teve como marco principal o período do Iluminismo
e, graças a ela, a própria noção de uma causa final deixa muitas pessoas perplexas.
Para a filosofia clássica, contudo, a causa final é absolutamente fundamental. Tra-
ta-se, afinal, da causa das demais causas — é o que explica o todo e o que possibilita
o descobrimento do bem e do mal. Abandonando a noção de causa final, termina-se
por afirmar que o ente não possui nenhuma finalidade em si mesmo e que sua finali-
dade, na prática, é arbitrária.
Esta falsa noção de que o homem pode advogar para si e para todas as coisas fi-
nalidades escolhidas arbitrariamente está na gênese de parcela significativa do sofri-
mento humano. Dela decorre a dificuldade de adaptar-se ao mundo e de aceitá-lo tal
como o é, já que não há sequer o reconhecimento de tendências e funcionamentos
inerentes para as coisas. No entanto, a realidade, com suas consequências para as
boas e más escolhas, subsiste independentemente desta crença enganadora.
FILOSOFIA

A dúvida sobre formar ou não uma família, por exemplo, não possui solução uní-
voca: a depender da circunstância específica, qualquer das alternativas pode ser le-
gítima e boa. Uma vez feita a escolha, no entanto, agir em desacordo com suas con-
sequências não terá nenhum efeito além de gerar sofrimento.

16
3.6 O bem absoluto
Aristóteles, Platão e os adeptos da tradição de pensamento medieval afirmam
que Deus é o único bem absoluto. Caso o homem O conhecesse, perceberia imedia-
tamente sua perfeição e não consideraria deixar de escolhê-Lo.
Com as outras realidades, no entanto, não é assim. Seria, aliás, incorreto concluir
a partir da noção de objetividade do bem que há uma única escolha correta que
deve ser objetivamente preferida por todos os indivíduos em cada situação. Afinal,
os sujeitos são diferentes, em termos de temperamento, história, preferência e com-
promissos. Para uns, casar pode ser a melhor opção; para outros, não. O mesmo vale
para inúmeras decisões de maior ou menor relevância. A divindade é o bem absoluto;
porém, no mundo não se vê a Deus diretamente, vê-se apenas Seu reflexo nas várias
coisas.
É importante para o profissional de saúde mental ter em vista as nuances desta
questão. Há, de fato, um leque de dilemas que são opináveis e para os quais pode-se
respeitar preferências individuais sem prejuízo. Porém, isso não significa que todas as
opções sejam igualmente boas sempre. Por isso, há vidas felizes e plenas, enquanto
outras podem tornar-se tragicamente incompletas, tristes e fracassadas.

REFLITA:
A alma sempre é unida a um corpo concreto com suas próprias características
e particularidades. É fundamental ter simultaneamente em vista a dignida-
de que caracteriza todo ser humano e as diferenças individuais entre cada
pessoa. Há, nos homens, variadas cores de cabelo, de olhos, de pele, bem
como variados temperamentos e capacidades de inteligência. Algumas pes-
soas tenderão mais à saúde que outras. Cada humano é irrepetível, ainda que
compartilhe da mesma forma dos demais.

Em seu livro Ética a Nicômaco, Aristóteles destaca que a finalidade mais nobre
para o ser humano é a própria visão da divindade; todavia, tal contemplação não é
possível neste mundo. A felicidade seria possível, então, em uma forma precária e
incompleta. Tomás de Aquino, que aborda a mesma temática utilizando-se do termo
“bem-aventurança”, aceita a imperfeição da felicidade humana no mundo, mas diz
que a contemplação do divino é possível no céu.
Tais exemplos teológicos estão profundamente relacionados com a noção de fi-
nalidade: ver a Deus é a finalidade última porque a faculdade mais nobre do homem
é a razão e o objeto mais alto ao qual a inteligência pode se dedicar é a própria
divindade.
O indivíduo, assim, terá suas inclinações e tendências próprias dadas pela for-
ma da humanidade, mas também suas inclinações individuais dadas pela sua cir-
cunstância específica e única. Ao final, seu caminho será bom se, com todas as suas
FILOSOFIA

particularidades, lograr crescer nas virtudes que proporcionam a felicidade e o cum-


primento de suas finalidades. Quando se esquece de sua circunstância específica
ou da objetividade inerente de sua finalidade enquanto ser humano, tem seu pleno
desenvolvimento tolhido. O resultado desse impedimento é a raíz da frustração e
da tragédia.
17
4 VIRTUDES INTELECTUAIS

4.1 Virtudes morais versus intelectuais


Em seu livro Ética a Nicômaco (1103a1-10), Aristóteles distingue dois tipos de vir-
tudes: intelectuais e morais. O primeiro tipo é aquele que aperfeiçoa a inteligência
humana e pode ser em grande parte produzido e ampliado pela instrução. As vir-
tudes morais, por outro lado, são um produto do hábito e dizem respeito à parte da
alma que não raciocina, mas ainda assim pode seguir a razão.
Há uma diferença importante entre estas duas classes de virtudes. Ao passo que
as virtudes morais são inevitavelmente ligadas ao bem efetivo do indivíduo, as vir-
tudes intelectuais podem ser utilizadas para o bem ou para o mal, ainda que sejam
virtudes. Um homem corajoso, por exemplo, é dotado de uma virtude moral e só
pode com sua coragem fazer algo bom; pessoas com aparente coragem que fazem
o mal — um bandido com grande ousadia, por exemplo — não possuem esta virtude
de fato, mas alguma outra característica, um simulacro.

SAIBA MAIS:
As virtudes intelectuais, que aprimoram a razão humana e são desenvolvidas
pela educação, são cinco e dividem-se ainda em dois tipos: três são as ditas
especulativas teóricas, para as quais o conhecimento em si mesmo é a única
finalidade, e duas práticas, que abrangem conhecimentos que são utilizados
para fazer algo. As especulativas teóricas são a ciência, a sabedoria e a inteli-
gência; as práticas são a arte e a prudência.

4.2 Ciência
Esta virtude (do grego ἐπιστήμη, ou episteme) possui como característica principal
o fato de consistir em um conhecimento universal e necessário. No caso da física, por
exemplo, é possível determinar a temperatura de solidificação e de evaporação da
água de acordo com uma fórmula fixa que tem como variável a pressão.
As conhecidas temperaturas de zero graus para solidificação e de cem graus para
evaporação da água funcionam nas chamadas CNTP (condições normais de tempe-
ratura e pressão); no entanto, por meio desta fórmula, é possível determinar as tem-
peraturas de mudança de estado da água para quaisquer níveis de pressão. Trata-se
de uma fórmula que estabelece uma generalização que sempre funcionará.
O mesmo se aplica para a lei da gravidade, que estabelece uma relação fixa e uni-
versalmente válida entre um grupo de variáveis, ou para a capacidade de condução
FILOSOFIA

de eletricidade em diferentes metais. A ciência consiste, portanto, neste mapeamen-


to de fenômenos que ocorrem necessariamente.

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4.3 Sabedoria
A ciência costuma dizer respeito ao que é particular, tratando de certo recorte
da realidade e não desta como um todo; reside nesta característica sua principal
diferença em relação à sabedoria. Esta última virtude, por sua vez, volta-se para os
objetos mais elevados e valiosos, envolvendo a busca pelo conhecimento das cau-
sas primeiras e do que é fundamental. A sabedoria — em grego σοφία ou sophia — é
justamente a filosofia, enquanto fornecedora dos conhecimentos que posteriormente
são utilizados nos variados campos do saber.
A sabedoria, portanto, é o campo das explicações mais profundas e gerais que
podem ser alcançadas pela razão. Não obstante, a relação entre o sábio e o cientista
é de complementaridade e não de competição: o filósofo oferece seus conhecimen-
tos para uso do cientista. A própria ideia de que o ser humano é capaz de conhecer a
realidade é um pressuposto filosófico reconhecido por qualquer ciência. O contrário
também ocorre: por vezes, os conhecimentos trazidos pela ciência provocam novas
reflexões filosóficas.

4.4 Inteligência
A inteligência (em grego νοῦς ou nous) diz respeito à faculdade da alma de intuir
os princípios indemonstráveis. Trata-se, portanto, de um hábito relativo aos primeiros
princípios, que não são deriváveis por constituírem as fontes do conhecimento e da
verdade. Um de seus exemplos é a proposição de que é preciso fazer o bem e evitar
o mal: a própria ideia de bem e de mal já permite a obtenção desta conclusão. O bem
é a perfeição e o mal é o irracional e absurdo; naturalmente se sabe, assim, que se
deve evitar o mal e buscar o bem. O ser humano não consegue fazer o mal, enquanto
mal e por ser mal.
Mesmo aqueles que “buscam o mal”, na verdade, assim o fazem porque vêem nis-
so um bem. O homem sempre age buscando algo que crê que possa trazer-lhe algo
positivo. Naturalmente, é possível errar nas escolhas que são feitas visando este bem;
todavia, mesmo no caso do homem que erra a ponto de atentar contra a própria vida,
por exemplo, existe a busca desordenada pelo bem que seria o cessar do sofrimento.
Os primeiros princípios não são provados por nada; ao contrário, são a base para
provar todo o resto. Se tudo precisasse ser provado por algo anterior, haveria uma
cadeia infinita de proposições: A seria provado B, que seria provado por D e assim
sucessivamente, sem jamais chegar a algum conhecimento que seja, de fato, confi-
ável. Felizmente, o homem alcança alguns princípios que não necessitam de prova
alguma, pois se impõem pela sua própria natureza. São como os axiomas dos quais
serão derivadas as demais proposições.

4.4.1 O princípio de não-contradição

Um exemplo de primeiro princípio é o de não-contradição. Aristóteles enuncia-o


FILOSOFIA

da seguinte maneira: “é impossível que um mesmo atributo pertença e não pertença


simultaneamente ao mesmo sujeito e no mesmo sentido” (Met., l. 4, c. 3; 1005, b, 19 –
22). Não se pode dizer “A é B” e “A não é B”. Embora este princípio tenha sido atacado
e debatido nos últimos anos, trata-se de uma necessidade do próprio pensamento.
Sem supor o princípio de não-contradição, não é possível pensar em nada.
19
4.4.2 O princípio do terceiro excluído

Além do princípio da não-contradição, há outros que também dizem respeito ao


ente enquanto tal. O mais importante deles é o do terceiro excluído, que estabelece
que “não é possível que haja qualquer intermediário entre enunciados contraditórios:
é preciso necessariamente ou afirmar, ou negar, um único predicado, qualquer que
seja, de um determinado sujeito” (ARISTÓTELES, Met., l. 4, c. 7; 1011, b, 23 – 24). Ou
seja, não há uma terceira possibilidade, um ente intermediário, entre uma afirmação
e sua negação. Se a afirmação é verdadeira, a negação será falsa, ou vice-versa.
Esse princípio se aplica entre afirmações e negações, e não simplesmente entre
afirmações distintas. Por isso, se alguém sustenta que uma camisa é verde, e outro
a considera vermelha, ambos podem estar errados, porque a cor verdadeira é azul.
Porém, se um afirma que a camisa é verde, e outro que ela não o é, um dos dois terá
de estar correto, sem haver uma terceira opção que negaria as duas primeiras.

4.5 Arte
A arte ou técnica (do grego τέχνη ou techne) é a reta razão para produzir delibe-
radamente algo exterior ao indivíduo; o bem desta prática é determinado pelo bem
daquilo que foi feito. Se o que foi feito é bom, a produção foi boa. Não se pergunta,
portanto, a respeito do efeito daquela ação no interior do próprio agente.
Uma pessoa que compre um pão pode julgar o emprego da técnica utilizada para
produzi-lo como bom ou ruim somente observando o próprio pão; não é necessário
para tanto investigar a bondade das intenções do padeiro. Em termos de arte ou téc-
nica, o que importa é o resultado: se o resultado é bom, a técnica foi bem empregada.
Trata-se, portanto, da produção de coisas (não necessariamente materiais) que
requerem o talento do artista. A arte da marcenaria para produzir ótimos móveis, a
do músico para produzir belas músicas, do escritor para produzir bons livros ou a do
retórico para produzir discursos convincentes.
A técnica permite que o artista faça, mas não necessariamente dá regras absolu-
tas e de funcionamento universal. Nas ciências, é possível estabelecer fórmulas que
associam mudanças de estado da água a certas temperaturas e pressões fixas. Nas
coisas humanas e nas coisas concretas, não é possível obter este tipo de exatidão.
Um cozinheiro, por exemplo, deve considerar em suas preparações o estado dos
ingredientes, o gosto dos que provarão o prato, a ocasião e uma série de outras su-
tilezas inexatas para exercer bem sua arte. Trata-se, portanto, de considerar as cir-
cunstâncias concretas e adaptar-se visando produzir o melhor produto viável nestas
mesmas condições.
Naquilo que é humano e naquilo que é concreto, e neste âmbito é incluída a pró-
pria psicologia, não há exatidão ou relações necessárias; figura, ao contrário, o con-
tingente, domínio da técnica.
FILOSOFIA

4.6 A prudência
Esta virtude (do grego φρόνησῐς ou phronesis) trata-se da reta razão no agir. Ao
passo que a arte implica na reta razão na produção de algo exterior, a prudência diz

20
respeito à aplicação da reta razão nas ações, tendo em vista o objetivo de viver bem.
Importa, neste caso, não propriamente o efeito exterior do ato, mas dizer se este con-
tribui para tornar o agente uma pessoa melhor.
Pela prudência, portanto, busca-se o aprimoramento não enquanto artista ou téc-
nico, mas enquanto ser humano. A prudência é a razão que ilumina a conduta do
homem de modo que esta possa ser virtuosa. Neste caso, a bondade nas intenções
do agente importa; é a melhor forma de agir, não somente de fazer. Naturalmente,
agir bem implica em procurar realizar uma dada tarefa do melhor modo possível; no
entanto, somente produzir um bom resultado com o próprio trabalho não é suficiente
neste caso. São necessários, também, os bons motivos.

FILOSOFIA

21
5 GRAUS DE CERTEZA

5.1 A distinção entre demonstração e argumentação


Nas realidades humanas, não é possível contar com o caráter de necessidade,
isto é, com a segurança de que as coisas que ocorrem não poderiam ter acontecido
de outra maneira. O conhecimento prático exige, então, certa flexibilidade diferente
das certezas percebidas pelo conhecimento científico ou pela sabedoria.
Aristóteles defende a tese de que faz parte da pessoa inteligente perceber que os
vários objetos de conhecimento admitem graus de certeza distintos. Não faz sentido,
por exemplo, exigir demonstrações no mesmo sentido que se diz “demonstração ge-
ométrica” para o campo da ética.
No âmbito da política, da ética e da moral não há como estabelecer demonstra-
ções por meio de deduções que seguem necessariamente de certas premissas. No
campo da matemática, por outro lado, não faz sentido falar sobre argumentação: as
provas são estabelecidas precisamente pelo método rigoroso e exato anteriormente
citado, que não se aplica ao caso das ciências humanas.
Ao discutir as questões relativas ao ser humano, não é possível munir-se de ver-
dades absolutamente necessárias. Isto ocorre porque o homem, mesmo que dotado
de inúmeras restrições, possui a liberdade humana que possibilita o escape de ten-
dências e padrões. No cotidiano do psicólogo, este fato é particularmente presente.

5.2 A precariedade do ente material


No mundo da prática, a inexatidão deriva do fato de que tudo o que é material
tende a decompor-se e, de certa forma, tornar-se defeituoso. É possível que certas
disposições esperadas de um ente material não se verifiquem na realidade devido a
anomalias.
Platão não à toa associava a perfeição ao imaterial: foi, além de filósofo, um grande
matemático. Na área dos números, é possível obter verdades que funcionam sempre
e não estão sujeitas às possíveis anomalias e manifestações imperfeitas do mundo
material.
A matemática serve para contar e medir quantidades que se apresentam no mun-
do real; todavia, os números propriamente ditos são realidades relacionais e imate-
riais. Nas questões relativas à matéria, tal relação de necessidade inexiste e a exa-
tidão torna-se apenas um ideal. O que havia em potência pode ser atualizado sem
conseguir atingir a perfeição para a qual tende.
FILOSOFIA

22
REFLITA
As próprias ciências relativas à natureza, como a química, física ou biologia
trabalham com modelos extraídos de observações da realidade, mas que são
eles próprios abstrações. Com as devidas adaptações, é possível explicar bem
o que ocorre no mundo: na física, por exemplo, é possível usar fórmulas para
prever o comportamento de algo que está em movimento retilíneo uniforme;
no entanto, nada está de fato em movimento retilíneo uniforme de modo per-
feito, devido às inúmeras forças que influenciam o movimento e impedem sua
perfeição.

Naturalmente, as aproximações feitas pelos cientistas são boas e muito úteis. Por
meio delas, é possível estabelecer previsões e explicar certas relações. Seria incorre-
to, no entanto, confundir tais modelos com a realidade em toda a sua complexidade.
Tome-se por exemplo o caso do engenheiro: embora este seja um profissional
versado nas ditas ciências exatas e familiarizado com diversos modelos científicos,
seu trabalho se dará com o mundo prático. Cada construção específica exigirá, por
isso, projetos que serão ajustados de acordo com a acurácia do olhar do profissional.
A engenharia é um saber próximo e incompleto, não absoluto; isto é, uma técnica.
Assim o são, também, a medicina e a advocacia, por exemplo.

5.3 A realidade não é matemática


A dificuldade de reconhecer a inexatidão do mundo material, onde nem sempre
as potências se atualizam segundo a própria perfeição, acarreta em muitas pessoas
o sofrimento da busca por convicções fáceis e exatas, porém incorretas.
Administrar uma empresa, por exemplo, é uma tarefa que exige conhecimentos
de matemática, finanças e até mesmo de psicologia. No entanto, diferente da abor-
dagem dessas disciplinas em seu sentido teórico ou abstrato, o gerenciamento de
negócios e de pessoas envolve aspectos práticos que possibilitam no máximo a ação
orientada por boas estimativas ou aproximações; por vezes, haverá ainda escolhas
conflitantes para as quais será difícil obter sequer respostas aproximadas.
Nos últimos séculos, teve lugar um processo de valorização do conhecimento
científico enquanto caminho para o controle e obtenção de certezas sobre a realida-
de. Pode-se dizer que um dos pioneiros deste processo de valorização da exatidão
foi René Descartes, que em sua famosa obra Discurso do Método chegou a propor um
método filosófico idêntico ao que utilizou no campo da geometria analítica.
Descartes, em última instância, procurava uma moral matemática, uma política
matemática, uma medicina matemática e a formulação de muitas outras ciências
que tratam do ser humano segundo a lógica matemática. Seu método consistia na
rejeição de todo conhecimento para o qual não fosse possível obter certeza em nível
matemático.
FILOSOFIA

Não é possível, contudo, quantificar, medir ou estabelecer relações necessárias e


exatas para muitos dos aspectos mais importantes da existência humana. Nas belas
artes, por exemplo, é possível argumentar sobre a grandiosidade de certos autores e

23
de suas obras, mostrando aspectos que fundamentam as afirmações propostas; no
entanto, não há fórmula que contenha uma relação exata e quantificável para dizer
quão bom é Machado de Assis em comparação a Shakespeare.
A proposta de Descartes para a reflexão filosófica incutiu na modernidade o senso
de que aquilo que não pode ser provado deve ser descartado, independentemente
do objeto analisado. Para muitas pessoas, causava estranhamento a exigência de
julgar como conhecimento somente aquilo que pudesse ser respaldado por provas
lógicas, claras e irrefutáveis. O chamado Círculo de Viena, no início do século XX,
constituiu-se em um grupo de filósofos que visavam reconceituar o empirismo — o
conhecimento obtido pelos sentidos — e a lógica como os únicos saberes efetivos.
O resultado deste esforço foi uma profunda reação contra a metafísica, pauta-
da pela crença de que todo o conhecimento que não pudesse ser percebido pelos
sentidos ou que não derivasse de uma verdade lógico-matemática não seria uma
verdade que merecesse consideração. Tal recorte terminou por produzir uma visão
mutilada do ser humano: este só poderia ser entendido segundo o âmbito abstrato
sistematizável de forma científico-matemática.
Além do cientificismo, a não aceitação de verdades compreensíveis por métodos
de fora da esfera de influência das ciências exatas deu lugar também ao naturalismo,
no sentido desta palavra que se refere à crença de que a realidade só abrange ele-
mentos apreensíveis pelos sentidos.
A escalada da valorização da racionalização de toda a realidade avançou até ir-
romper em seu extremo oposto: a negação da própria racionalidade, verificada em
autores como Friedrich Nietzsche. O erro anterior, do apego irrestrito à lógica analíti-
ca, deu lugar então ao assentimento ao absurdo.

5.4 O risco inerente à existência


A razão é importante e por meio dela é possível obter uma série de respostas.
Tanto a redução da realidade à lógica analítica quanto seu oposto — a negação de
qualquer ganho em compreensão da realidade por meio da razão — são reflexos de
uma profunda dificuldade em reconhecer os riscos inerentes à própria existência.
O ser humano não pode ser abarcado de modo a tornar-se absolutamente previ-
sível. Sua liberdade, ao contrário do que dizem os que tentam explicar integralmente
o comportamento humano por sua dimensão física, não é mera ilusão; não obstante,
o homem não pode conquistar o domínio absoluto sobre a realidade. A formulação
de tendências e estimativas proporciona a quem as utiliza razoável grau de poder
preditivo, explicativo e de capacidade de manejo do mundo. Trata-se de um avanço
muito importante, porém limitado.
Os reflexos psicológicos desta dificuldade de lidar com o componente de incerte-
za e de risco da existência se estendem para todas as áreas da vida. Um dos grandes
desafios relativos à crise do casamento nos dias atuais, por exemplo, decorre preci-
samente da necessidade desordenada por controle e previsibilidade.
FILOSOFIA

O casamento é sempre uma aposta. É inevitável que, no decurso dos anos, ambos
os cônjuges mudem. A natureza desta mudança jamais pode ser inteiramente pre-
visível: é precisamente na solidez do compromisso permanente do matrimônio que

24
o homem pode estabelecer a fixidez mínima para construir uma família e toda uma
vida. Naturalmente, desta incerteza não se supõe que a escolha do futuro marido ou
esposa seja arbitrária. A seleção da pessoa com quem se deseja casar possui grande
importância, mesmo com os riscos inerentes a qualquer escolha.

5.5 Para além do antagonismo entre racionalidade e irracionalidade


Para bem lidar com a realidade e bem viver, a negação completa da razão e a
aceitação de uma racionalidade reduzida à lógica matemática devem ser substitu-
ídas por um outro entendimento: o de que há graus de certeza distintos acerca da
realidade, que podem ser obtidos por modos de racionalidade também diferentes.
Como defende a filosofia aristotélica, a razão não será usada sempre do mesmo
modo independentemente do objeto do qual trata. Certos tipos de razão serão mais
apropriados para determinadas realidades e será possível obter diferentes graus de
certeza a partir destas diferentes racionalidades.
Para certas situações, por exemplo, será o caso de considerar relações de veros-
similhança; outras, por outro lado, serão analisadas sob juízos de natureza estética.
A aplicação de conhecimentos científicos às realidades concretas e mutáveis supõe,
ainda, o uso de outro tipo de racionalidade. Muitos são os exemplos de casos para os
quais o raciocínio lógico analítico não oferece as melhores respostas, ainda que seja
também um tipo importante de razão.
O homem não se satisfaz simplesmente com sensações, posto que é criatura ra-
cional. Deve, portanto, buscar a aplicação hábil dos diferentes tipos de racionalidade
disponíveis para as circunstâncias da vida apresentadas em suas variadas formas.

FILOSOFIA

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: Editora UnB, 2011.


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